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ESCOLA DE PSICANÁLISE KOINONIA
CURSO DE TEORIA PSICANALÍTICA A DISTÂNCIA
MODULO V
APOSTILA 9
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As Estruturas Clínicas em Freud
Antes que o movimento do estruturalismo antropológico de Claude Lévi-Strauss, em
sintonia com a Linguística e a Sociologia, dominasse o pensamento francês dos anos 60, Freud
já se antecipara, dotando a psicanálise com o rico conceito de estrutura. Isto aconteceu em 1900,
com A interpretação dos sonhos, onde elementos interligados: o recalcado, os estímulos visuais
do sonho, e os conteúdos manifestados na associação livre, constituíam uma engrenagem
correspondente à descrição do aparelho psíquico como um aparelho óptico, com a chamada
“hipótese telescópica”, na primeira tópica. Freud afirmou:
Os dois sistemas psíquicos, a censura que os separa, o fato de uma atividade inibir outra,
unir-se a ela, as relações das duas com a consciência, (...) tudo isso pertence à estrutura
normal de nosso aparelho
psíquico, e o sonho é uma das vias que permitem conhecê-lo.
Para ficarmos só com mais uma citação, em 1909, em Notas sobre um caso de neurose
obsessiva, descrevendo o caso clínico do Homem dos Ratos, diz Freud:
(...) ainda não consegui, até agora, penetrar e elucidar, por completo, a complicadíssima
estrutura de um caso grave de neurose obsessiva.
Quando, em 1923, é publicado o texto d’O eu e o isso, com a introdução da segunda tópica,
esta foi caracterizada simplesmente como “hipótese estrutural”. Estava aberto o caminho para
as chamadas estruturas clínicas.
Uma questão que Freud deixou em suspenso foi de como as pessoas “escolhem” suas
neuroses. Uma única alegação encontrada seria no sentido de que se escolhe a estrutura que
vai proporcionar o menor desprazer. Igualmente pouco definida ficou a possibilidade de
mudança de estrutura, durante a vida, que Freud parece admitir. A dificuldade da escolha deriva
do fato de que o sujeito não está sozinho nesta decisão, já que está enredado numa estrutura,
da qual outros elementos, a mãe e o pai, são inseparáveis.
Uma estrutura é, então, um conjunto complexo de elementos interdependentes, que não
podem operar isoladamente, e cada um depende dos outros. Para Freud, o conceito de
complexo se reporta a representações inconscientes na vida psíquica. Foi nesta direção que
evoluiu o conceito de complexo de Édipo: de início, o Édipo positivo, considerando a sexualidade
como biologicamente determinada. Num segundo momento, o Édipo negativo, em que a
sexualidade já não é natural, mas assumida psiquicamente, independente da anatomia. Por fim,
o Édipo completo, estrutural, assimétrico no menino e na menina, baseado na lei da proibição
do incesto.
No triângulo edipiano, cada elemento tem uma função específica. A mãe é o primeiro
objeto de amor. O pai é o representante da lei e responsável por sua aplicação. No texto sobre
As perspectivas futuras da técnica psicanalítica, Freud fala também do complexo paterno, em
que o filho demonstra medo ao pai (ele é grande, o pai real), hostilidade contra o pai (ele é o
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rival, o pai imaginário) e falta de confiança no pai (ele também é castrado, o pai simbólico). Os
conceitos de real, imaginário e simbólico são contribuições lacanianas, posteriores.
Sendo assim, as estruturas clínicas dependem de um conjunto, no qual a presença e
atuação do pai têm um papel determinante. Este papel fica claramente definido, embora
implicitamente, no texto citado sobre O Homem dos Ratos. Freud esclarece que os sintomas do
paciente decorreram, de forma repetitiva, dos sintomas do próprio pai, que escolheu casar-se
com a mulher rica não amada, e que contraiu uma dívida no jogo, que ele nunca pagou. Logo,
ele falhou em dois pontos cruciais: provar que deseja a esposa (mãe de seu filho), e ter uma
palavra confiável, de bom pagador. Em síntese, compete ao pai provar que tem desejo e que
tem palavra. Se ele falhar, poderá haver consequências clínicas para sua descendência.
O que vai determinar, portanto, a estrutura clínica de qualquer sujeito, é a maneira como
sua história se desenrola, como os papéis vão sendo desempenhados no núcleo familiar, e
como o próprio sujeito apreende e interpreta os acontecimentos que o enlaçam. A margem de
escolha ou opção é imprevisível. Mas, a escolha acontece, já que nos deparamos com pessoas
que se organizaram de maneiras diferenciadas.
A castração operada pelo pai, ao separar o filho de sua mãe, causa uma angústia que, por
um lado, faz sofrer e, por outro, abre as portas para uma subjetividade sadia. Contra o
sofrimento, a criança tenta se defender com mecanismos variados, cuja predominância vai
caracterizar a estrutura clínica. Estes mecanismos são: a Verdrängung, ou recalque, a
Verleugnung, ou desmentido, e a Verwerfung, repúdio ou forclusão.
Parte-se do princípio de que existem três estruturas clínicas:
- a neurose, cujo mecanismo é o recalque, em que o sujeito aceita a castração, com a
condição de mantê-la afastada no inconsciente. Em resumo, a neurose é o resultado de um
conflito com recalque;
- a perversão, com o mecanismo do desmentido, traduzido também por renegação ou por
recusa da realidade, em que a pessoa aceita, em princípio, a castração, mas se dá o direito de
também desmenti-la. Em resumo, a perversão é uma renegação da castração, com uma fixação
na sexualidade infantil;
- a psicose, com o mecanismo do repúdio, traduzido também por rejeição e forclusão, em
que o sujeito rejeita a castração, antes mesmo que ela seja integrada no inconsciente. Em
resumo, a psicose é a reconstrução de uma realidade alucinatória.
Freud mantinha uma flexibilidade ao associar uma estrutura e seu mecanismo. Assim, o
recalque é relacionado à neurose (no caso do Homem dos Lobos), à perversão (no texto sobre
o Fetichismo) e à psicose (no caso do Presidente Schreber). O desmentido é referido só no
texto sobre o Fetichismo. O repúdio ou forclusão encontram-se na neurose (no caso do Homem
dos Lobos), e na paranoia (caso do Presidente Schreber). Isto sugere que Freud utilizava um
mecanismo dominante ao identificar uma estrutura, além de outros critérios.
Freud acreditava na possibilidade de mudança de estrutura, uma vez que, em seus casos
clínicos, mudava os diagnósticos conforme o andamento do tratamento.
Na história da medicina e da psiquiatria há um episódio, no mínimo, curioso, com relação
aos conceitos de neurose e psicose. O termo neurose foi proposto em 1769, pelo médico
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escocês William Cullen (1710-1790). Pela etimologia, refere-se a uma doença dos nervos,
portanto, orgânica. Já o conceito de psicose, proposto pelo psiquiatra austríaco Ernst Von
Feuchtersleben (1806-1849) aponta, pela etimologia, a um transtorno psíquico, não orgânico.
Com o passar do tempo, houve uma inversão nas definições, e a neurose passou a designar
um transtorno psicológico, enquanto a psicose cobria um comprometimento orgânico do sistema
nervoso.
A psicanálise só aproveitou os nomes, sem encampar as definições médicas ou
psiquiátricas de neurose e psicose.
1- A estrutura das neuroses:
A neurose designa uma doença nervosa, cujos sintomas simbolizam um conflito
psíquico recalcado, de origem infantil. É um modo de defesa contra a castração, pela
fixação a um cenário edipiano.
Tipos de neurose, ou subestruturas:
- A histeria, que se caracteriza por conflitos psíquicos
inconscientes que se exprimem de maneira teatral e sob
forma de simbolizações, através de sintomas corporais
paroxísticos (ataques ou convulsões de aparência
epiléptica), ou duradouros (paralisias, contraturas ou
cegueira), também chamadas de histeria de conversão. Às
vezes, é precedida da sedução real ou imaginária.
- A histeria de angústia, ou fobia. A fobia, do grego
phobos, significa o pavor ou medo em relação a um objeto, uma pessoa ou uma situação. É o
chamado ‘pânico’ moderno. A fobia não é propriamente uma neurose, é um sintoma da histeria,
que converte uma angústia num terror imotivado, frente a um objeto que, em si mesmo, não
apresenta nenhum perigo real. É diferente do medo que se pode sentir diante de um leão, por
exemplo, que é um medo objetivo.
- A neurose obsessivo-compulsiva foi inventada por Freud, em 1894, chamada, então, de
neurose de coerção. Sua origem é um conflito psíquico infantil e uma etiologia sexual
caracterizada por uma fixação da libido na fase anal. No plano clínico, manifesta-se através de
ritos conjuratórios de tipo religioso, sintomas repetitivos (compulsão), e uma ação mental
permanente, na qual intervêm dúvidas e escrúpulos (obsessão), que inibem o pensamento e a
ação. Quando, em 1995, foi publicado o novo Manual Estatístico e Diagnóstico, DMS IV, órgão
oficial da psiquiatria mundial, esta neurose passou a se chamar de ‘transtorno obsessivocompulsivo’, mais conhecido por TOC.
- A neurose atual não se origina de um conflito infantil, e não tem um significado
interpretável, razão pela qual Freud a considera estéril do ponto de vista psicanalítico, embora
o paciente possa tirar um benefício terapêutico da psicanálise. Ocorre, por exemplo, quando a
pessoa se vê impedida de exercer sua vida sexual, temporariamente, por motivo de doença ou
ausência prolongada de um dos parceiros, ou de uma gravidez de risco. O recurso à abstinência
sexual forçada ou à masturbação continuada pode levar a um estado de tensão psicológica que,
entretanto, vai desaparecer quando as circunstâncias se normalizarem, sem necessidade de
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um recurso à terapia. Se persistir por muito tempo, a neurose atual pode se transformar em
psiconeurose.
- A psiconeurose foi um conceito mais amplo, adotado por Freud, em 1894, incluindo, por
um lado, as psiconeuroses de defesa, decorrentes de uma situação edipiana, como as fobias,
obsessões e histeria, e de outro, as psiconeuroses narcísicas, decorrentes de uma situação préedipiana, como a paranoia e a esquizofrenia. Posteriormente, Freud abandonou o conceito de
psiconeurose, considerado desnecessário, desdobrando-o, simplesmente, em neurose e
psicose.
A neurose de guerra não é em si uma entidade clínica, mas pertence à categoria da neurose
traumática, com base na definição freudiana de trauma histérico. Definida por Hermann
Oppenheim (1858-1919), a neurose de guerra é uma afecção orgânica decorrente de um trauma
real, provocando uma alteração física dos centros nervosos, acompanhada por
sintomas psíquicos, como depressão, hipocondria, angústia, delírio etc.
Após a Primeira Guerra Mundial, incrementou-se o debate sobre a
neurose de guerra. Os chefes militares alegavam que os soldados simulavam
a neurose para se afastar das linhas de combate, como desertores. Os
psiquiatras entraram em ação, utilizando o tratamento elétrico. Houve suspeita
de que o psiquiatra Julius Wagner-Jauregg estivesse conivente com os
simuladores, e um inquérito militar foi aberto.
Freud foi convocado como perito no inquérito. Mostrou-se respeitoso com relação ao
psiquiatra, mas criticou veementemente o método de choque elétrico, bem como a ética dos
médicos que o utilizavam. Lembrou que o dever do médico é de se colocar a serviço do doente
e não de qualquer poder estatal ou bélico, e ainda se saiu com uma tirada espirituosa: Todos
os neuróticos são simuladores, simulam sem saber, e essa é sua doença”.
Estes são os casos clínicos de neurose, analisados por Freud:
O caso de Dora, uma histérica, já foi trabalhado em apostilas anteriores, juntamente com
o conceito de transferência.
O Pequeno Hans, ou Análise de uma fobia em um menino de cinco anos, foi publicado em
1909. Herbert Graf (1903-1973) foi a única criança de que Freud cuidou, de maneira indireta,
supervisionando o pai, Max Graf, ao mesmo tempo em que analisava a mãe do menino. Desde
que Hans fizera três anos, seu pai começou a tomar notas sobre o comportamento e a
sexualidade do filho, seguindo o pedido que Freud fizera a vários outros pais, com o fim de
encontrar provas para sua teoria sobre a sexualidade infantil. E as provas foram surgindo.
Nesta época, Hans tinha medo de sair de casa e ser mordido por cavalos. Para complicar
as coisas, nasce Anna, sua irmã. Ele percebeu a maleta do médico e as bacias de água suja de
sangue da mãe. Sacou que a história da cegonha era uma piada. Mas não conseguiu superar
o ciúme da irmã, pelo menos, por uns seis meses, quando assistiu ao banho do bebê e constatou
que ela tinha um ‘faz-pipi’ pequeno, que ainda ia crescer.
Hans perguntou ao pai de onde ele viera, e o pai respondeu: você nasceu de sua mãe.
Nesta resposta, o pai se eximiu de sua participação paterna. O garoto, então, pergunta à mãe:
você tem ‘faz-pipi’? Ela respondeu: sim. Se bem que o garoto atribuía um pênis até à vaca e à
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locomotiva, a resposta da mãe deve tê-lo deixado atordoado. Se perguntou, é porque devia ter
alguma dúvida. O pai não comprovou ter um, quando de fato tinha, e a mãe provou ter, sem ter.
O pequeno apaixonou-se por uma menina e pediu aos pais para que ela fosse à sua casa,
para dormir com ela. Era uma tentativa de substituir a relação incestuosa, que o incomodava.
Assim seguiu uma história de um garoto cheio de dúvidas, que fazia perguntas inteligentes
e irônicas, acima de sua idade, sem encontrar clareza nas respostas, aumentando seu medo
dos cavalos de uma empresa de transportes, situada bem à frente de sua casa. Temia que os
cavalos entrassem em seu quarto e o mordessem. Temia ou desejava? Como o cavalo é o
representante paterno, o que ele mais queria era que seu pai assumisse a função esperada, de
castrá-lo, porque a mãe o levava para dormir na própria cama, levava-o junto quando ia ao
banheiro, com a conivência do pai ausente.
A angústia se instalou no menino, que parecia ter mais clarividência da situação que seus
próprios pais. De uma feita, interpelou o pai: Beije-a um pouco mais. Estava dizendo para o pai
assumir a esposa, a fim de que esta não colocasse o filho numa situação constrangedora. Freud
ia orientando o pai, que passava as instruções ao filho, vindas do ‘professor’. Com isto, Hans
desenvolvia uma transferência indireta com Freud.
Na única vez em que Hans foi conversar com Freud, ouviu o seguinte: Vou lhe contar essa
grande história que eu inventei, que já sabia antes que você nascesse. É que, um dia, viria um
pequeno Hans que iria amar demais sua mãe, e que, por causa disso, detestaria seu pai. Hans
chega em casa e conta o que aconteceu: Isso é muito interessante, isso é muito excitante,
como isso é bom, é preciso realmente que ele tenha falado com Deus, o Professor, para ter
descoberto um troço desses. Freud esclarece a Hans que ele tem medo do pai justamente por
gostar tanto de sua mãe.
A mãe considerava o filho como seu falo, dentro das equivalências simbólicas, propostas
por Freud: pênis igual a filho. Aliás, sua resposta anterior ao filho, dizendo que tinha um pênis,
significava bem isto: eu fabriquei você, que tem um pênis, logo, este pênis é meu. Tudo isto em
fantasia, no imaginário. Ao mesmo tempo em que se deliciava com o amor da mãe, Hans lutava
para se livrar da devoração dela, já que o pai não interferia para tirá-lo desta prisão.
Hans relata uma fantasia em que estava com sua mãe nua, de camisola. E o pai pergunta:
Mas ela estava nua, ou de camisola? Resposta: Ela estava com uma camisola tão curta que se
podia vê-la nua.
Assim Freud comenta o surgimento da angústia e da fobia: a crescente ternura pela mãe
traduz uma aspiração libidinal recalcada, à qual corresponde o surgimento da angústia. Essa
transformação da libido é irreversível, e a angústia tem que encontrar um objeto substituto, que
constituirá o material fóbico.
Freud sugere ao pai que explique claramente ao menino que sua mãe e todas as outras
criaturas femininas, como ele pode perceber pela pequena Anna, não possuem um ‘faz-pipi’.
Um belo dia, a mãe flagra Hans se masturbando, e censura-o severamente, ameaçando
de mandar cortar seu ‘faz-pipi’. Pela primeira vez, impõe-lhe um limite, uma lei. Hans, então,
brinca dizendo que o pai queria mordê-lo, dando a entender que o identificava com o cavalo. Já
que o pai não morde, não castra, Hans vai ensiná-lo a fazer isto.
Este caso não passou por nenhuma revisão historiográfica. Embora considerado um
ponto de referência para a psicanálise de crianças, esta recebeu profundas modificações
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posteriores, sobretudo com as contribuições de Melanie Klein.
O Homem dos Ratos, ou Notas sobre um caso de neurose obsessiva, publicado no
mesmo ano de 1909, narra a elaborada e estruturada história de Ernst Lanzer (1878-1914), e
suas relações com o pai, Heinrich Lanzer, um militar que amava uma mulher pobre, mas acabou
casando com uma mulher rica, da qual não gostava. Heinrich apreciava o jogo de cartas, sendo
apelidado de Spielratte (em alemão: rato-de-jogo, jogador). Como suboficial, encarregado das
finanças do destacamento militar, retirou do “caixa” certa quantia para aplicar no jogo. Perdeu
tudo e não tinha como pagar. Tomou empréstimo com um amigo e repôs o dinheiro do quartel.
Mas nunca encontrou mais o amigo para quitar a dívida, que ficou insolvível.
O filho estudava Direito, quando se apaixonou por sua prima Gisela, que ele adorava. Ela
era pobre, não muito bonita, estéril, e pouco entusiasmada com Ernst. O pai opôs-se ao namoro,
preferindo que ele escolhesse uma mulher rica. Após a morte do pai, Ernst escolhe também a
carreira militar, servindo no regimento do exército imperial. Começam a surgir suas obsessões
sexuais e mórbidas. Gostava de funerais e ritos de morte, habituara-se a olhar seu pênis num
espelho, para medir o grau de ereção, e tinha ideias suicidas, seguidas de boas intenções e
orações. Para se masturbar, precisava ler as belas passagens da autobiografia de Goethe:
Memórias: poesia e verdade.
Aos 27 anos de idade, já era um obsessivo grave, com muitas dúvidas a respeito do
casamento com Gisela. Tinha também a compulsão de se apresentar para as provas antes da
hora marcada, e sem estar preparado. E já tinha lido o texto freudiano sobre A psicopatologia
da vida cotidiana.
Durante um exercício militar, foi que lhe aconteceu o pior, como causa desencadeante de
sua neurose. Seu capitão era um homem cruel, adepto dos castigos corporais, e assustava os
comandados com histórias ameaçadoras. Uma delas relatava uma tortura chinesa, descrita pelo
romancista realista francês, Octave Mirbeau (1848-1917), que consistia em obrigar o prisioneiro
a se despir e se ajoelhar no chão, com o dorso curvado para frente. Nas nádegas do homem,
fixava-se, então, por meio de uma correia, uma grande vasilha furada, onde um rato se agitava.
Esfomeado e cutucado por um ferro em brasa, introduzido na vasilha, o rato tentava fugir da
queimadura, e penetrava no reto do torturado, ferindo-o. Depois de meia hora, o prisioneiro e o
rato estavam mortos.
Quando Ernst contou esta história na análise, Freud verificou suas expressões faciais: era
uma face de horror ao prazer todo seu, do qual ele mesmo não estava ciente. Era um fascínio,
mistura de horror e prazer, que a psicanálise, hoje, chama de gozo. Nas associações,
prosseguiu com dificuldade: Naquele momento, atravessou minha mente, como um relâmpago,
a ideia de que isso estava acontecendo a uma pessoa que me era muito cara. Referia-se a
Gisela.
Muito agitado durante a sessão, chamou Freud de Sr. Capitão. Como resposta ao ato falho,
Freud o acalmou: Não serei cruel com você.
No mesmo dia em que escutou a narração do suplício oriental, Ernst ficou atordoado, e
perdeu seu pincenê, durante as manobras militares. Telegrafou a seu oculista, em Viena, para
providenciar outro e enviar-lhe pelo correio. Dois dias depois, recebeu a encomenda, das mãos
do mesmo capitão, que o informou de fazer o pagamento ao funcionário do correio. Uma série
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de equívocos, imprevistos e trapalhadas impediu Ernst de efetuar o pagamento. A história do
rato e do pagamento dos óculos misturou-se em sua mente com a dívida não paga do pai. Nesta
altura, ele já é um homem obcecado por ratos e por dívida.
Ernst contou também que, em criança, levou uma surra do pai, aos quatro anos, quando
mordeu alguém, e aos seis anos, flagrado em masturbação. Nesta última, escutou do pai a
seguinte condenação:
Ou este menino vai se tornar um grande homem,
ou será um grande criminoso.
Na idade adulta em que estava, Ernst sabia que não era um grande homem. Angustiado,
perguntava a um amigo confidente se era então um criminoso, e o amigo o acalmava. Mas, em
seu inconsciente, gostaria mesmo de matar o pai ou, melhor, que os ratos o mordessem e
comessem.
No início da análise, quando combinaram o preço das sessões, Freud estipulou 70 florins.
O paciente logo associou: tantos florins, tantos ratos. Mas Freud estava tendo dificuldade em
identificar o ponto central desta neurose. Como o paciente também se identificava com um
verme, e falava da sífilis, doença contraída por seu pai, Freud tentou reunir as equivalências
simbólicas que já havia estabelecido entre pênis, criança, dinheiro e fezes, acrescentando as
de rato, sífilis e verme. Estava utilizando aí o método de “associação de palavras”, proposto por
Jung, mas não chegou a concluir nada.
Foi então que teve um clarão, ao verificar o que chamou de ‘pontes verbais’, pontes para
o inconsciente, elementos linguísticos, relacionando as palavras Ratten (ratos), com Raten
(prestações, pagamento). Estas palavras estão associadas no inconsciente, ligando os ratos às
dívidas, por um simples deslocamento de letras, e camuflando os sintomas daí decorrentes.
Além disso, a referência ao pai como jogador, Spielratte, e ao casamento que, em alemão é
Heiraten, insistindo nos significantes Ratten-Raten, mostraram bem como o recalque age no
inconsciente, e por que a cura volta pelas palavras.
Este caso mostrou uma falha na teoria. O paciente desenvolveu um comportamento que
Freud batizou de “defesas secundárias”. Consistia no seguinte: embora amasse Gisela, Ernst
tinha atitudes agressivas contra ela, como, por exemplo, de colocar uma pedra no caminho em
que ia passar a carruagem dela, para provocar um acidente. Obsessivamente, ele punha e tirava
a pedra, várias vezes, mas não queria prejudicar a namorada. Rezava com frequência: Que
Deus proteja Gisela! Repetia várias vezes, e cada vez mais rápido, porque temia que, ao falar,
o advérbio ‘não’ pudesse se intrometer, inconsciente e involuntariamente, e ele dizer: Que Deus
não proteja!
Freud estava sentindo que a primeira tópica (consciente, pré-consciente e inconsciente),
proposta dez anos antes, não dava conta de algumas questões clínicas. Ao propor o conceito
de defesas secundárias, Freud já estava antecipando a noção de supereu (superego), que iria
oficializar-se treze anos depois, com a segunda tópica.
E o que são essas defesas? São defesas contra as ideias obsessivas que tentam penetrar
na consciência. Consistem em produzir, no processo secundário (consciente), os efeitos do
processo primário (inconsciente). Atuam no pré-consciente. Este conceito não foi mais utilizado.
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Este atendimento foi considerado o mais
bem sucedido de todos os casos publicados
por Freud. Todas as noites, Freud anotava
detalhadamente as sessões com seus
pacientes. O único registro de notas que
conhecemos, publicado junto com o caso
clínico, é o do Homem dos Ratos
Pouco após o término da análise, Ernst Lanzer casou-se com sua querida Gisela, por sua
escolha e contra o antigo desejo do pai. Tornou-se advogado, foi convocado pelo exército
imperial, foi feito prisioneiro pelos russos, e morreu sem ter tido tempo de se aproveitar do
trabalho sofrido e fecundo de sua análise.
Freud, muito sensibilizado, acrescentou a seguinte nota ao caso: O paciente, a quem a
análise que acaba de ser relatada restituiu a saúde psíquica, foi morto durante a (Primeira)
Grande Guerra, como tantos jovens valorosos, em quem era possível depositar muitas
esperanças.
No final do relato clínico, Freud insere um capítulo sobre o Complexo Paterno. E o caso é
muito ilustrativo deste conceito. Duas funções definem o papel do pai: desejar a mulher (mãe
de seus filhos) e ser um homem de palavra. Com a primeira função, ele interdita o filho de
desejar incestuosamente a mãe, mostrando que ela é o objeto de desejo do pai. Pela segunda,
ele impõe a lei, da qual é o representante, introduzindo o filho no circuito das trocas sociais e
sexuais. O pai do paciente falhou nas duas funções: não desejava sua mulher, e não cumpriu a
palavra de pagar a dívida.
Na década de setenta, a Rádio BBC de Londres produziu um filme, com o título de Rat
man, traduzido por O homem rato, exibido no Brasil pelo Globo Repórter. Tem a duração de
cinquenta minutos, em preto e branco, seguindo um roteiro bastante fiel ao texto freudiano.
Bernard Archad faz o papel de Freud, e Edward Fox representa o Homem dos Ratos.
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O Homem dos Lobos, que completa o trio dos grandes casos analisados por Freud (junto
com Dora e o Homem dos Ratos), conta a História de uma neurose infantil, publicado em 1918.
É um caso único na história da psicanálise, por ter sido comentado muitas vezes, por todas as
escolas psicanalíticas, pelos mais diversos autores, e pelo próprio protagonista que, tendo
atravessado as duas Guerras Mundiais, publicou uma autobiografia intitulada: O homem dos
lobos, pelo homem dos lobos, em que analisou a análise que Freud fez dele.
O paciente chamava-se Serguei Constantinovich Pankejeff (18871979), nascido na Rússia, de rica família aristocrata, que morava numa
imensa propriedade rural. Foi criado junto com a única irmã, Anna, um ano
mais velha, cuidados, ambos, por três governantas e alguns preceptores. Sua
mãe era hipocondríaca, e o pai era depressivo, um político de tendências
liberais.
Anna era muito precoce e exercia liderança sobre o irmão, com laivos
de maldade, amedrontando-o nas brincadeiras. Por volta dos três anos e meio do garoto, Anna
tentou seduzi-lo, mostrando-lhe seu bumbum e, depois, preparou-lhe uma surpresa, mostrandolhe a figura do lobo mau, numa revista do Chapeuzinho Vermelho. Sabia que ele ia se assustar
e, de fato, ele entrou em pânico ao ver o lobo ereto, com as orelhas empinadas. A partir daí,
Serguei ficou intranquilo. E foi a sua vez de tentar seduzir a babá, Nânia, que o repreendeu.
Aos quatro anos, Serguei teve um sonho, de que ainda se lembrava com todos os detalhes,
quando estava em análise:
Sonhei que era noite e eu estava deitado em minha cama
(...). Eu
sabia que era inverno. De repente, a janela se abriu sozinha
e,
com
enorme susto, vi que havia uns lobos sentados na grande
nogueira
em frente à janela. Eram uns seis ou sete. Os lobos eram inteiramente brancos e mais
pareciam raposas ou cães pastores, pois suas caudas eram compridas como as das raposas,
e eles tinham as orelhas em pé, como os cães quando prestam atenção a alguma coisa. Com
grande medo, obviamente, de ser devorado pelos lobos, gritei e acordei.
Aos dez anos de idade, o menino já apresentava sinais de uma grave neurose. Nesta
época, tentou seduzir a irmã, que o repeliu. Enquanto frequentava o ginásio, sua irmã suicidouse e, dois anos depois, também seu pai se matou. O rapaz conheceu uma mulher do povo,
chamada Matrona, com a qual contraiu gonorreia. Aí começaram os ataques de depressão, que
o levaram aos sanatórios, hospícios, clínicas de repouso, transformando-se num paciente
psiquiátrico ideal. Entre outros, procurou o famoso psiquiatra alemão, Emil Kraepelin, que
diagnosticou uma psicose maníaco-depressiva. Serguei submeteu-se também à hipnose,
massagens, hidroterapia, sem resultado. Nesta época, sentia-se excitado ao ver mulheres de
condição inferior, sobretudo as faxineiras, enquanto esfregavam o chão, agachadas. Esta
posição era uma condição erótica para ele.
Num dos sanatórios, apaixonou-se por uma enfermeira mais velha, encontrando grande
oposição da família, porque a moça era plebeia. Seu psiquiatra também se opôs, alegando que
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a sexualidade era o pior dos remédios nos casos de loucura. Finalmente, um jovem médico
recomendou que ele procurasse Freud.
Ao recebê-lo e inteirar-se do caso, Freud disse: Até o momento, o senhor esteve
procurando a causa de sua doença num urinol. Isto significava que os tratamentos anteriores
foram inúteis, e também era uma alusão à patologia de Serguei, que sofria de distúrbios
intestinais permanentes, doença que era também de sua mãe.
A análise começou aí. Em vez de proibir o paciente de se encontrar com Teresa, a
enfermeira, Freud lhe pediu para aguardar o fim do tratamento. As primeiras manifestações
transferenciais do paciente eram violentas. Numa carta a Sandor Ferenczi, Freud declara:
O jovem russo rico que recebi, por causa de uma paixão amorosa compulsiva, confessoume, após a primeira sessão, as seguintes transferências: judeu escroque! E ele gostaria de
me agarrar por trás e me cagar na cabeça. Aos seis anos de idade, o primeiro sintoma
manifesto consistiu em injúrias blasfematórias contra Deus: porco, cachorro etc. Quando via
três punhados de cocô na rua, sentia-se mal, por causa da Santíssima Trindade.
Pela primeira vez, Pankejeff teve a impressão de estar sendo escutado, sem ser
considerado um doente. E a relação transferencial se tornou amistosa, sendo que Freud
também manifestou sempre grande simpatia por ele. De início, Freud aplicou-lhe o diagnóstico
de histeria de angústia, pela fobia aos animais. Depois, pensou numa neurose obsessiva. Mas
estes diagnósticos não foram mantidos, e Freud publicou o caso com uma vaga indicação de
neurose infantil.
Como no caso Dora, a análise baseou-se, fundamentalmente, no sonho relatado acima,
contado e desenhado pelo paciente, e que serviu para reconstruir a origem desta neurose. No
desenho do sonho, publicado no texto de Freud, curiosamente, foram colocados só cinco lobos,
quando, no relato, eram seis ou sete, o que representa um detalhe importante.
Com base neste sonho e em outros episódios, como a figura do lobo mau na revista, ereto,
com as orelhas em pé, e a fixação do paciente em mulheres agachadas, em posição de quatro,
Freud construiu, com detalhes cronológicos e horários precisos, uma cena primária, que ficou
famosa entre os psicanalistas. Elisabeth Roudinesco cita o resumo desta descrição, assim:
Numa tarde quente de verão, o pequeno Serguei, então com 18 meses de idade e sofrendo
de malária, dormia no quarto de seus pais, para onde também estes se retiraram,
parcialmente despidos, a fim de tirar uma sesta; às cinco horas da tarde, provavelmente no
auge da febre, Serguei acordou e, com a atenção fixa, observou seus pais, parcialmente
trajados com roupa de baixo brancas, ajoelhados sobre lençóis também brancos,
entregarem-se por três vezes ao coito a tergo (por trás); reparando nos órgãos genitais dos
pais, e no prazer estampado no rosto da mãe, o bebê, habitualmente passivo, teve um
movimento intestinal repentino e começou a chorar, assim interrompendo o jovem casal.
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O paciente relatou também lembranças de infância, em que comparou as nádegas de
Gruscha, a criada, com asas de borboleta e com o número V romano, que seria alusão aos
cinco lobos e às cinco horas do dia do coito. Contou ainda um episódio de infância, em que vira
seu dedo mínimo decepado por um canivete, quando, de fato, era uma alucinação.
A visão das nádegas de Gruscha e da relação sexual dos pais, por trás, fez Freud deduzir
que, naquela época, o paciente acreditava na teoria sexual infantil do nascimento das crianças
pelo ânus. E o episódio da alucinação do dedo cortado, alusão à castração, era uma rejeição,
Verwerfung, termo que poderia justificar também um diagnóstico de psicose, embora Freud
tenha preferido manter o diagnóstico de neurose.
Num outro sonho de infância, o paciente tinha visto um homem cortando, com uma tesoura,
as asas de uma Espe. Como esta palavra não existe em alemão, Freud a entendeu como um
ato falho, no lugar de Wespe, que significa ‘vespa’. Perguntando ao paciente o que significava
Espe, ele respondeu: sou eu. A palavra se pronuncia como as consoantes SP, iniciais de seu
nome: Serguei Pankejeff.
Mas Freud observou que a letra W, omitida na palavra vespa, é também a inicial da palavra
Wolf, lobo. Nesta altura, os lobos eram uma obsessão para o menino. Ele pedia ao avô para
contar as muitas histórias infantis em que o lobo aparece. E ainda a letra W pode ser encarada
como as orelhas do lobo, em posição invertida, tanto da revista do lobo mau, quanto dos lobos
do sonho e, sobretudo, a posição de quatro, da mãe no coito. Já a posição do pai, ajoelhado,
com a cabeça ereta, mostra bem porque Serguei ficou tão atordoado quando viu o lobo na
revista.
A angústia que o menino sentiu ao ver a relação dos pais, angústia por estar excluído da
cena, cuja verdadeira natureza ele não entendia naquele momento, retornou e fez sentido mais
tarde, quando viu a figura do lobo mau, ereto, na mesma posição de seu pai. Neste segundo
momento, a posteriori, como insistia Freud, é que a neurose se desencadeia, e a fobia é
localizada no lobo, o representante do pai. Portanto, era do pai que ele tinha medo inconsciente,
mas o sintoma é camuflado e deslocado para os lobos.
É curioso como, nos três casos de pacientes masculinos, há um animal polarizando os
sintomas. Os cavalos, em Hans, os ratos, em Ernst, e os lobos, em Serguei. Estes animais são
colocados como substitutos e representantes do pai, como se os pacientes estivessem, com
isso, reivindicando a intervenção paterna da castração, para poderem se assumir como sujeitos.
A análise chegou ao fim, Serguei sentiu-se curado, voltou à Rússia e atribuiu à análise o
sucesso de seu casamento com Teresa, a mulher amada. Duas semanas depois, estourou a
Guerra de 1914. A família do paciente perdeu todos os bens. Sua bela propriedade foi
transformada em quartel do exército. Alguns anos depois, Serguei e Teresa foram morar em
Viena. Agora, Serguei era um homem arruinado, pobre, obrigado a aceitar um emprego numa
companhia de seguros.
Em forte depressão, Serguei volta a procurar Freud. Este o acolhe e lhe dá de presente o
recém publicado texto de seu caso. Ficou mais alguns meses em análise e, segundo Freud,
liquidou os restos de transferência e saiu curado.
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Na realidade, Serguei continuava a apresentar os mesmos sintomas, agravados agora
com a péssima situação financeira. Freud fez uma campanha entre seus discípulos para
arrecadar dinheiro e ajudar aquele que já era identificado como o Homem dos Lobos. Seis anos
depois, o paciente volta a procurar Freud, que preferiu encaminhá-lo para Ruth Brunswick, que
era sua paciente. Serguei conhece então Muriel Gardiner, outra paciente de Ruth, que se tornou
sua amiga e confidente.
Ruth diagnosticou Serguei como paranoico e publicou a segunda versão do caso:
Suplemento à história de uma neurose infantil. Descreve o paciente como antipático e
hipocondríaco, preocupado com a imagem corporal e com uma pústula no nariz, que o paciente
vivia coçando. Nesta altura, o Homem dos Lobos já era conhecido de todo o mundo
psicanalítico, e seu diagnóstico era considerado psicose, por uns, e neurose, por outros.
Iniciada a Segunda Guerra Mundial, logo que os nazistas invadiram Viena, Serguei
encontrou sua mulher Teresa morta no apartamento do casal, por suicídio. Ele ficou apático
pelo resto da vida. Estimulado pela amiga Muriel, conseguiu redigir suas memórias, publicadas
em 1971, traduzidas no mundo inteiro. Sentia-se orgulhoso por ter contribuído para o progresso
da psicanálise. Psicanalistas do mundo inteiro afluíam a Viena para conhecer este personagem,
objeto de admiração, até 1979, quando faleceu.
Alguns anos antes, Serguei concedera longa entrevista a uma jornalista, relatando sua
vida e suas análises, dizendo que preferia o diagnóstico freudiano, não aceitando o de Ruth
Brunswick. Em compensação, declarou que a famosa cena do coito a tergo não havia
acontecido. Na primeira análise com Freud, o paciente tinha concordado com a hipótese. Para
a IPA, Associação Psicanalítica Internacional, Pankejeff era um arquivo precioso da história da
psicanálise. Assim, o Homem dos Lobos também poderia ser considerado o Homem dos
psicanalistas.
A jovem homossexual é o nome utilizado, no meio psicanalítico, para designar uma
paciente, cujo tratamento é descrito como A psicogênese de um caso de homossexualismo
numa mulher, publicado em 1920, portanto 20 anos depois do caso Dora. Neste intervalo, o
pensamento e atitude de Freud, frente ao problema da homossexualidade, são
substancialmente diferentes.
Uma jovem de 18 anos, bonita e inteligente, foi levada pelos pais à presença de Freud. O
motivo da consulta foi o fato de seu pai tê-la surpreendido em companhia de uma senhora da
sociedade, de má fama. As duas costumavam andar juntas pelas ruas próximas ao ponto de
trabalho do pai da jovem. Encontrando-as na saída do escritório, o pai lançou um olhar irado
para a filha, o que levou a senhora a propor o término do relacionamento. Desesperada, a jovem
saiu correndo e atirou-se de um pequeno viaduto, sob o qual passava a linha férrea. Os
ferimentos não foram graves.
A dama demi-mondaine era 10 anos mais velha, bissexual, vivia com uma mulher casada
e tinha vida íntima com alguns amigos homens. Apesar disto e da proibição dos pais, a jovem
paciente encontrava-se frequentemente com sua amada, enviava-lhe flores e presentes,
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apresentando-se com ela em público.
A preocupação dos pais aumentava pelo fato de sua filha não mostrar interesse por
rapazes, mas não sabiam até que ponto ia o relacionamento das duas. Inclusive, não era a
primeira vez que a filha mostrava interesse por pessoas do mesmo sexo. Entretanto, após a
cena da queda, os pais resolveram relaxar o controle sobre a filha, ao mesmo tempo em que a
dama ficou mais atenciosa, reconhecendo a prova de paixão da jovem.
Foi neste momento que, não sabendo mais o que fazer, os pais, não conhecendo também,
devidamente, os objetivos da psicanálise, pediram a Freud para corrigir a filha, e encaminhá-la
para o casamento com um homem.
O pai da jovem era um homem sério e conceituado, mas rígido e pouco afeito aos filhos.
Incomodava-se muito com o comportamento da filha. Já a mãe era uma mulher bonita e vaidosa,
e compreendia melhor o que se passava, embora fosse áspera com a filha. Preocupava-se só
com a reputação social. Com os outros três filhos, a mãe era até excessivamente indulgente.
Da parte de Freud, o único problema vinha do fato de a demanda de análise ter vindo
dos pais e não da própria paciente. Esta dispunha-se a cooperar, para diminuir o sofrimento dos
pais, mas não considerava um problema o fato de ser homossexual, nem se esforçaria para
mudar isso.
Freud observou que a jovem era de estatura alta, como o pai, e de aparência pouco
feminina. Intelectualmente, era perspicaz e objetiva. Em sua opinião, ela amava à moda
masculina, isto é, supervalorizava o objeto sexual, assumindo o papel de amante e não de
amada. O fato de ter escolhido uma prostituta corresponde também ao modelo masculino de
degradar o objeto amoroso para poder desejá-lo. Ocupando o lugar do homem, esta relação
seria, então, caracterizada como heterossexual.
Por volta dos 13 anos, a jovem teve uma grande afeição por um menino de três anos, a
quem tratava como um filho. Tudo apontava para seu desejo de ser mãe. Segundo Freud, nesta
idade, a jovem revivia seu complexo de Édipo, desejando ter um filho do pai. Algum tempo
depois, sua mãe engravida, realizando um desejo que era o seu. Aquele filho, que a jovem
desejava do pai, foi dado à sua mãe. Em função do desapontamento, a jovem desenvolve uma
rivalidade forte com a mãe, substitui esta pela dama, e assume um papel masculino, rivalizando
agora com pai e vingando-se dele.
Tendo percebido o incômodo do pai em relação a ela, a jovem escancara ainda mais sua
amizade com a dama, como um recado para que o pai a amasse da mesma maneira que fazia
aquela mulher. Tudo não passava de uma farsa, um desafio ao pai. E Freud chega a afirmar
que sua castidade genital, se é possível usar esta expressão, permanecera intacta. Nada
acontecia entre elas, além de beijos e abraços.
A análise feita por Freud a respeito da tentativa de suicídio revelou dois motivos: em
primeiro lugar, era uma autopunição, por ter odiado tanto a mãe quanto o pai; em segundo lugar,
era a realização inconsciente de seu desejo de ter um filho do pai. Para comprovar o segundo
motivo, Freud chama a atenção para o verbo niederkommen, que, em alemão, significa ‘cair’ e
também ‘dar à luz’. Sua queda foi um parto imaginário do filho almejado ou, quem sabe, o parto
simbólico de si mesma na análise.
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Alguns sonhos ajudaram a esclarecer o caso. Neles, a paciente confessava seu desejo
de amar um homem e ter filhos com ele. Entretanto, seu discurso desperto orientava-se numa
direção oposta, sobretudo quando ela dizia que se casaria só para escapar das pressões do
pai, mas não renunciaria às tendências homossexuais, porque podia-se ter relações com um
homem e uma mulher, a um só e mesmo tempo, como demonstrava o exemplo da dama
adorada.
Neste ponto da análise, Freud disse-lhe que não acreditava naqueles sonhos, que os
encarava como falsos ou hipócritas, e que ela pretendia enganar-me, tal como habitualmente
enganava o pai. Daí surgiu uma questão teórica nova e desconcertante:
O quê! exclamarão, o inconsciente, o centro real de nossa vida mental, a parte de nós que se
acha tão mais próxima do divino (...) pode mentir também? E Freud esclarece: Um sonho não
é o inconsciente; trata-se da forma pela qual um pensamento remanescente da vida desperta
pré-consciente ou mesmo consciente pode, graças ao estado favorecedor de sono, ser
remoldado.
Esta análise terminou de maneira estranha e questionável. O próprio Freud tomou a
iniciativa de interromper o tratamento, encaminhando a paciente para uma analista mulher, sem
explicar as razões de tal procedimento. Hoje em dia, é aceito, sem restrição, que qualquer
analista, no exercício de sua função simbólica, é um ser ‘assexuado’ para seu paciente. Estar
no lugar do objeto ‘a’, causa do desejo, independe do sexo anatômico ou da escolha sexual do
agente do discurso analítico. Aliás, segundo Lacan, a posição do analista, homem ou mulher, é
sempre uma posição feminina, de ser objeto causa do desejo.
Entretanto, talvez, tão importantes quanto o caso clínico em si, sejam as considerações de
Freud sobre a homossexualidade. Aliás, bem a propósito, qual foi o diagnóstico do caso? Freud
o explicita com todas as letras:
A jovem nunca fora neurótica, e chagara à análise sem um único sintoma histérico. (...) não estava,
de modo algum, doente (não sofria em si de nada, nem se queixava de sua condição) e a tarefa a
cumprir não consistia em solucionar um conflito neurótico, mas em transformar determinada
variedade da organização genital da sexualidade em outra.
Muito significativa a referência a uma variedade de atividade sexual. Assim como, na
infância, é comum e normal a curiosidade das crianças para verem o sexo oposto, na puberdade
a questão é como decidir a escolha sexual propriamente dita. Acrescenta Freud:
Sabe-se bem que, mesmo em uma pessoa normal, leva algum tempo antes de se tomar
finalmente a decisão com referência ao sexo do objeto amoroso. Entusiasmos homossexuais,
amizades exageradamente intensas e matizadas de sensualidade são bastante comuns, em
ambos os sexos, durante os primeiros anos após a puberdade. (...) Não compete à
psicanálise solucionar o problema do homossexualismo.
Uma das mais intrigantes afirmações anteriores de Freud, uma nota acrescentada, em
1915, aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, diz o seguinte:
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A pesquisa psicanalítica se opõe, com o máximo de decisão, que se destaquem os
homossexuais, colocando-os em um grupo à parte da humanidade, como possuidores de
características especiais. (...) Todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha
de objeto homossexual e, na realidade, o fizeram no seu inconsciente. (...) O interesse sexual
exclusivo de homens por mulheres também constitui um problema que precisa ser elucidado.
2. A estrutura da perversão: o conceito de perversão sempre foi um dos mais nebulosos
na psicanálise. O próprio Freud colaborou em defini-lo de maneira ambivalente, do mesmo modo
que fez com a noção de sexualidade feminina. Se, por um lado, o conceito de neurose, apanágio
da psicanálise, é claramente definido e, por outro, o de psicose, apanágio da psiquiatria, é
bastante evidente também, a definição de perversão tem sido uma torre de babel. Isto porque
sua origem tem fontes muito diversificadas, como a medicina, o direito, a sociologia, a religião,
a psicanálise, sendo impossível um acordo em discursos tão divergentes.
A primeira distinção fundamental a fazer é entre os conceitos de perversões e perversão.
As perversões são descritas em longas listas de atividades sexuais, comportamentos concretos,
divergentes de uma norma moral ou religiosa, que estipula o objetivo da sexualidade em função
da procriação. Assim, tudo o que impedir ou comprometer a reprodução será catalogado como
desvio, aberração ou, simplesmente, perversões.
As perversões designam também várias formas de arte erótica no Oriente e no Ocidente,
variando conforme as épocas e as culturas, sendo rejeitadas e marginalizadas ou, ao contrário,
valorizadas pelos escritores, poetas e filósofos. O melhor exemplo é o da homossexualidade,
enaltecida na antiga Grécia como a forma suprema de amor, encarada como vício satânico pelo
Cristianismo, e classificada como degenerescência pelo saber psiquiátrico do século XIX.
A desconstrução da noção de perversões veio com a psicanálise, ao privilegiar o princípio
do prazer como objetivo da sexualidade humana, instituindo novo parâmetro, o conceito de
desejo, como regulador da atividade sexual, decorrente da maneira como o sujeito se posiciona,
psiquicamente, diante da lei da proibição do incesto. Estabeleceu-se assim o conceito de
perversão, uma escolha subjetiva, que não se confunde com determinada atividade sexual, mas
é encarado como uma estrutura clínica, ao lado da neurose e da psicose. Assim, a perversão
se afasta de qualquer conotação pejorativa ou moralista.
Portanto, em vez de se orientar por um dicionário de perversões sexuais, a psicanálise
define uma psicogênese da perversão, entendida como estrutura, fundada na causalidade
psíquica e nos processos metapsicológicos. Entretanto, foi longo e confuso o percurso freudiano
até aí. Vejamos as etapas:
- Em 1905, no texto chamado Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud
descreve o caráter selvagem, bárbaro, polimorfo e pulsional da sexualidade perversa: uma
sexualidade infantil em estado bruto, cuja libido se restringe à pulsão parcial. Ao contrário da
sexualidade dos neuróticos, essa sexualidade perversa não conhece nem a proibição do
incesto, nem o recalque, nem a sublimação. Ficou famosa sua descrição da criança como
perversa-polimorfa, ou com várias formas de perversão que, no entanto são normais.
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Descrevendo as perversões de objeto, caracterizadas pela fixação num único objeto em
detrimento dos demais, estão, por um lado, as relações sexuais com um parceiro humano
(incesto, homossexualidade, pedofilia, autoeerotismo) e, por outro, as relações sexuais com um
objeto não humano (fetichismo, zoofilia). Nas perversões de alvo, estão: o prazer visual
(exibicionismo, voyeurismo), o prazer de sofrer ou fazer sofrer (sadismo, masoquismo), e o
prazer pela superestimação exclusiva de uma zona erógena, a saber, da boca (felação,
cunilíngua) ou do aparelho genital.
- A partir de 1914, com os estudos sobre o narcisismo e a metapsicologia, começam
mudanças profundas nesta teoria. Depois de propor que as pulsões não têm um objeto
específico, por exemplo, a mulher não é, necessariamente, um objeto de desejo para o homem,
e vice-versa, Freud abandona as perversões, no plural, e pensa num esquema da perversão,
como modelo de uma organização do eu, baseada na clivagem (divisão) do eu.
- Em 1923, no texto sobre A organização genital infantil, Freud introduz o conceito de
Verleugnung (desmentido, renegação), para mostrar que as crianças negam a realidade da falta
do pênis na menina, e para afirmar que esse mecanismo de defesa caracteriza a psicose, em
oposição ao mecanismo do recalque, que encontramos na neurose: enquanto o neurótico
recalca as exigências do id (isso), o psicótico renega a realidade.
- Em 1927, com o texto sobre o Fetichismo, Freud revê sua afirmação anterior, dizendo
que não é só o psicótico que renega a realidade, mas também que, na perversão, o sujeito faz
coexistirem duas realidades: a recusa e, ao mesmo tempo, o reconhecimento da ausência de
pênis na mulher. Assim, a clivagem do eu caracteriza tanto a psicose quanto a perversão.
Ao lado da psicose, definida como a reconstrução de uma realidade alucinatória, e da
neurose, resultante de um conflito interno seguido de recalque, a perversão aparece como uma
renegação ou um desmentido da castração, com uma fixação na sexualidade infantil.
O que vem a ser o fetiche, mais característico do sujeito masculino perverso? É um objeto
inanimado, em geral, um sapato ou uma roupa íntima feminina, ou uma parte do corpo, o pé, as
nádegas, os cabelos etc. O sujeito se fixa em algum destes detalhes, para não ter que encarar
o fato amedrontador de que a mulher é desprovida de pênis, o que levaria o homem a ter que
encarar a possibilidade de sua própria castração.
Com relação às peças íntimas femininas, nas quais o homem ficaria fixado e fascinado,
diz Freud que elas cristalizam o momento de se despir, o último momento em que a mulher
ainda podia ser encarada como fálica. (...) o fetiche salva o fetichista de se tornar homossexual.
Continua Freud:
O fetiche é substituto do pênis da mãe, em que o menino acreditava e não quer abandonar.
Se uma mulher tinha sido castrada, então sua própria posse de um pênis estava em perigo
e, contra isso, ergueu-se em revolta a parte de seu narcisismo, que a natureza, como
precaução, vinculou a esse órgão específico.
Em resumo, todo este esforço de Freud, que exigiu dele superar seus próprios
preconceitos, produziu, pelo menos, uma tese clara: o característico da perversão é o fato de a
pessoa aceitar, em princípio, uma castração que é inegável, mas, mesmo assim, tentar
desmenti-la, como se não existisse.
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Uma pergunta: será que, no estado atual de nossa cultura, esta ideia do fetiche, ligada às
peças íntimas femininas, ainda é sustentável? O fato é que existe hoje uma grande
cumplicidade, entre homens e mulheres, no tocante ás condições eróticas da vida sexual. As
mulheres sabem muito bem que os homens se entusiasmam, ou até perdem a cabeça, quando
elas usam uma lingerie sensual, e sabem melhor ainda se apresentarem para uma situação
especial, tornando-se mulheres fatais, e tudo rola muito bem. Faz sentido chamar isto de
perversão?
Freud não publicou nenhum grande caso clínico envolvendo o diagnóstico de perversão.
Encontram-se somente fragmentos de casos em suas obras.
Psicanálise e homossexualidade. A história da homossexualidade na psicanálise é uma
segunda torre de babel. A começar pelo fato de que o conceito de homossexualidade não é
próprio da psicanálise, e não há uma teoria específica a respeito. Simplesmente se defende que
ela deriva da bissexualidade, própria da natureza humana e animal. De início, ela foi ligada ao
conjunto das perversões sexuais e, mais tarde, à estrutura da perversão.
Ninguém pergunta sobre os motivos que levam alguém a escolher a heterossexualidade.
Mas há muita curiosidade sobre a escolha homossexual. Freud forneceu duas pistas. Em
primeiro lugar, o narcisismo exacerbado pode levar alguém a valorizar muito seu próprio sexo,
subestimando o sexo oposto, e a só aceitar um parceiro que seja do mesmo sexo.
A intolerância à castração é o segundo motivo. Assim, um homem fugiria de se defrontar
com uma mulher, porque a ausência de pênis lembraria a ele a possibilidade de perder o seu.
Além disso, sua fixação na mãe o impede de entregar-se a outra mulher. Ao escolher outro
homem como parceiro, o homossexual masculino vê nele a figura do próprio pai, oferecendo-se
a ele como se fosse uma mulher, identificado que está com sua própria mãe.
A mulher, por sua vez, fugiria do homem, porque a visão do pênis atualizaria nela a
angústia que já sentiu quando, em criança, imaginou que tiraram o seu. Fixada na mãe, ela
costuma se queixar da ausência do pai em sua vida. Ao escolher uma parceira, a homossexual
pode comportar-se como um homem, colocando-se em posição ativa em relação a ela, como
Freud observou no caso da jovem homossexual.
A primeira contribuição da psicanálise consistiu em negar à homossexualidade a pecha de
tara ou degeneração, que fazia os homossexuais ser considerados uma raça maldita. Os
antissemitas os comparavam aos judeus. Marcel Proust, escritor francês (1871-1922), no livro
Em busca do tempo perdido, dizia que o homossexual tem ódio da parte feminina em si mesmo.
Freud, a despeito da tradição judaico-cristã em que foi criado, também foi influenciado pela
cultura grega e pela literatura, e salientou que muitos dos grandes criadores eram
homossexuais. Mas preferiu omitir, no mito do Édipo, o episódio da homossexualidade de Laio
com o belo Crísipo.
Em 1906, Sandor Ferenczi assume a defesa dos homossexuais perseguidos na Hungria.
Pouco depois, Freud declara a existência de uma homossexualidade latente nos
heterossexuais, em decorrência da bissexualidade. Mantém o conceito de perversão, incluída
aí a homossexualidade, embora sem qualquer conotação pejorativa.
Em 1920, com o caso já descrito da jovem homossexual, Freud afirma que, na mulher, a
homossexualidade decorre de uma fixação infantil na mãe e uma decepção com o pai.
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Acrescenta que é inútil tentar curar o homossexual, e que o tratamento psicanalítico não deve
ter este objetivo.
Transformar um homossexual plenamente desenvolvido num heterossexual é uma
empreitada com tão poucas probabilidades de êxito quanto a operação inversa. (S. Freud, em
A jovem homossexual)
Em 1921, com Psicologia de grupo e a análise do ego, Freud define a homossexualidade
masculina: esta decorre de um vínculo intenso entre o filho e a mãe. Em vez de renunciar a
esta, o filho se identifica com ela, transforma-se nela, e procura objetos capazes de substituir
seu ‘eu’, aos quais ele possa amar, como foi amado pela mãe.
Mas, foi numa carta de 9 de abril de 1935, a uma mulher norte-americana, que pedia
orientação sobre a educação de seu filho homossexual, que Freud consagrou seu pensamento
a respeito:
A homossexualidade, a princípio, não é uma vantagem, mas tampouco é algo com que tenha
que envergonhar-se. Não é um vício, nem um sinal de degeneração, e não pode classificarse como uma enfermidade. Nós a consideramos uma variação da função sexual, originada
de uma parada do desenvolvimento sexual.
Muitas pessoas respeitadas, tanto na antiguidade como no presente, têm sido homossexuais.
Entre elas, estão algumas das maiores (Platão, Leonardo da Vinci etc). É uma grande
injustiça perseguir a homossexualidade como um crime, além de ser uma grande crueldade
também.
Quando me pergunta se posso ajudá-la, suponho que quer dizer se posso acabar com a
homossexualidade de seu filho e substituí-la pela normalidade, pela heterossexualidade. A
resposta é, em termos gerais, que não podemos assegurar o resultado. Em um certo número
de casos, conseguimos despertar os germes frustrados das tendências heterossexuais, que
estão presentes em todo homossexual, mas, na maioria dos casos, isso não é possível. É
uma questão da personalidade e da idade que o indivíduo tenha. Os resultados do tratamento
não são predizíveis.
O que a psicanálise poderia fazer por seu filho é algo muito diferente. Se ele se sente infeliz,
neurótico, desgarrado pelos conflitos, inibido em sua vida social, a análise poderia trazer-lhe
harmonia, paz mental, plena eficiência, independentemente de seguir sendo homossexual
ou se muda.
Já entre a ‘fina flor’ dos discípulos de Freud, surgiu um contencioso sobre a questão. Tratase dos membros do Comitê Secreto, ou Ring, anel, (1912-1927), um grupo de seis eminentes
analistas, escolhidos por Freud e agraciados por este com um entalhe grego, que eles
mandaram engastar em anéis de ouro. A missão deste grupo era preservar a ortodoxia da
psicanálise, contra os desvios, sobretudo da parte de Jung que, neste momento, vivia às turras
com Freud.
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Os membros berlinenses do Comitê propunham proibir os homossexuais de ter acesso à
profissão de analistas, sob a alegação de que a psicanálise não poderia curá-los de sua
‘inversão’. Já os vienenses alegavam que a única exigência de qualquer candidato era sua
competência. No debate, destacou-se Ernest Jones, afirmando que o mundo inteiro considerava
a homossexualidade um crime repugnante: se um de nossos membros o cometesse, atrairia
para nós um grave descrédito. Note-se que Jones fora acusado de abuso sexual durante sua
temporada no Canadá.
A pressão dos berlinenses venceu a disputa, a tal ponto que o próprio Freud e Ferenczi
cederam em suas convicções, e foi mantida a proibição ao ingresso de homossexuais na
Associação Psicanalítica. O mal-estar perdurou por muito tempo, apesar da pífia tentativa de
alguns analistas de converterem os homossexuais em heterossexuais, o que resultou num
verdadeiro desastre clínico.
Outro nome de destaque, neste imbróglio, foi Anna Freud, que deturpou as teses liberais
de seu pai, justo ela que foi suspeita de manter uma ligação lésbica com Dorothy Burlingham.
Por muitos anos, Anna cuidou dos filhos de Dorothy, mesmo após a morte desta. Segundo
Elisabeth Roudinesco, Melanie Klein, mais arejada, entretanto, considerava a
homossexualidade como uma identificação com um pênis sádico, no caso da mulher, e como
um distúrbio esquizoide da personalidade, no caso do homem.
Do ponto de vista teórico, em muitos analistas, houve um inexplicável retorno da
identificação da homossexualidade com a perversão, tomadas como sinônimas. Isto implicou,
para eles, em considerar a homossexualidade como uma estrutura clínica.
A própria sexologia tentou mitigar o estigma da homossexualidade, vendo-a com o enfoque
científico das doenças hereditárias, para desligá-la da condenação como pecado. O jurista
alemão Carl Heinrich Ulrichs (1826-1895), homossexual, foi quem lançou a ideia da ‘alma de
mulher num corpo de homem’, transformada, depois, na ideia de um ‘terceiro sexo’.
O discurso psiquiátrico do século XX sempre defendeu a tese de que a homossexualidade
era uma inversão sexual, uma anomalia psíquica, ou constitucional, um distúrbio da
personalidade, que podia levar à psicose ou ao suicídio. Com relação às mulheres, cunhou-se
o termo ‘safismo’ ou ‘lesbianismo’, em referência a Safo, a poetisa grega da ilha de Lesbos, que
defendia o amor entre as mulheres.
A partir de 1970, com o filósofo francês, Michel Foucault (1926-1984), homossexual
assumido, a homossexualidade deixa de ser vista como doença, para ser considerada,
simplesmente, como uma prática sexual distinta. Foucault já encontrou a trilha da psicanálise,
que afirmou ser a homossexualidade derivada da bissexualidade, resultante de uma escolha
inconsciente, ligada ao complexo de Édipo. Pressionada, a American Psychiatric Asssociation
decidiu, em 1974, retirar a homossexualidade da lista das doenças mentais. Em 1987, foi a vez
do termo ‘perversão’ ser substituído, no mundo inteiro, pela noção de parafilia.
Há quase um consenso de que a situação hoje é a seguinte:
1. A homossexualidade não é considerada uma estrutura clínica. Ela pode encontrar-se nas
outras três estruturas, assim como a heterossexualidade.
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2. A homossexualidade não é uma perversão.
3. A psicanálise é útil para homossexuais e heterossexuais, não para fazê-los mudar de escolha
sexual, mas para ajudar a superar seus conflitos internos.
4. Nem a homossexualidade nem a heterossexualidade são uma doença.
5. Os heterossexuais e os homossexuais podem até ser perversos, mas por outros motivos, que
não têm a ver com sua escolha sexual. A explicação virá na apostila seguinte, onde, finalmente,
Lacan vai apresentar uma abordagem moderna sobre a perversão.
Bibliografia
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Médicas, 1989.
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Freud, Sigmund. Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. ESB. Vol. X, Rio de
Janeiro, Imago, 1972.
Freud, Sigmund. Notas sobre um caso de neurose obsessiva. ESB. Vol. X, Rio de Janeiro,
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Freud, Sigmund. As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica. ESB. Vol. XI, Rio de
Janeiro, Imago, 1970.
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Freud, Sigmund. A organização genital infantil. ESB. Vol. XIX, Rio de Janeiro, Imago, 1976.
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Irma. Clínica Lacaniana, casos clínicos do Campo Freudiano. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1989.
Julien, Philippe. Psicose, perversão, neurose. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2002.
Melman, Charles. Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre, CMC Editora,
2003.
Quinet, Antonio. Teoria e clínica da psicose. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997.
Roudinesco, Elisabeth. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.
Próxima apostila: As estruturas clínicas em Freud e em Lacan.
5 questões sobre a apostila anterior (Aluno especial)
1. Eu trago para você uma questão que se refere à metapsicologia do ‘objeto a’. À pág. 5 você
define a pulsão como um representante do interior do organismo. Entendo que esse organismo
está em interação com o mundo externo.
Resposta. Sinto uma forte coceira para identificar este aluno especial, mas, infelizmente, ele
não me autoriza, embora levante questões instigantes, a respeito de um assunto que o próprio
Freud confessava ser um tema confuso, e que se tornou polêmico entre seus seguidores. Mas,
vamos lá: na pulsão, trata-se de um representante ‘psíquico’ do interior do organismo. O fato de
que é de natureza psíquica, já aponta a interação com o mundo externo também. Como vimos
na lição 3, sob o título de ‘Quando surge o psiquismo?’, tanto Freud quanto Lacan defendem a
tese de que a existência do psiquismo supõe a alteridade, o outro em espelho, onde a criança
apreende sua própria imagem refletida fora dela, no mundo externo. É exatamente o momento
em que ela se percebe distinta daquilo que lhe parecia um caos simbiótico.
No Dicionário Enciclopédico de Psicanálise, Pierre Kaufmann distingue três aspectos da pulsão:
a) o aspecto fisiológico da excitação da área reflexa, com sua origem interna, sua força
constante, e a impossibilidade de fugir dela; b) o aspecto biológico que tenta controlar a
excitação de prazer-desprazer; c) o aspecto psicológico ou biopsicológico, conceito-limite entre
o psíquico e o somático. Aí chegamos ao representante das excitações provenientes do interior
do corpo e que chegam ao psiquismo. A representação, em si mesma, já extrapola o fisiológico
e o biológico, só podendo ser de natureza psicológica.
2. À pág. 6 você parece complementar a definição anterior da pulsão ao falar de mundo externo
e, logo a seguir, da libido objetal. Acho que estamos falando do ‘objeto a’. Mas aí surge o
problema do autoerotismo que, para mim, é mais uma força de expressão de Freud. Mesmo na
vida fetal o bebê está no mundo externo, a do útero materno, como um ser-no-mundo.
Resposta. Estas questões vão deixando clara a importância do conceito de ‘objeto a’ elaborado
por Lacan, trazendo mais luz na obscuridade. O conceito de autoerotismo carrega, em seu bojo,
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certa ambiguidade, sim. Haja vista que a definição freudiana de autoerotismo e de narcisismo
quase se superpõem: ‘tomar o próprio corpo como objeto de amor’. A linha divisória entre estes
conceitos é fornecida por Freud como sendo a presença do ego no narcisismo. Se o sujeito se
toma como objeto de si mesmo, está claro que ele está se representando. E a função atribuída
ao ego é justamente a de se plugar com o mundo externo.
Numa comparação audaciosa e pouco adequada, o filhote de cachorro leva uns quinze dias
para abrir os olhos e ver o mundo que ele habita. O filhote do homem (le petit d’homme, como
dizia Lacan) leva quase um ano para se aperceber completamente do mundo externo como
distinto dele. Mesmo dentro do útero, ele já é distinto deste mundo, como provam suas mães
que conversam com ele, cantam para ele, o acariciam por fora. Até que ponto ele entende isso,
é uma incógnita.
Mas não há dúvida de que o feto já é um ser-no-mundo. Ele pode sair do útero materno a
qualquer momento, quando abortado, ou na hora certa do nascimento. E um médico pode fazer
nele uma intervenção cirúrgica que não atinge o organismo da mãe.
3. Quando você fala (ibidem) que o objeto da pulsão é um oco, um vazio, entendo isso no sentido
de uma pulsão in statu nascendi, carente de representação, mas não de representante, isto é,
de ‘objeto a’ ou de fantasma. Aquela forma de falar (oco, vazio) talvez tenha dado a Klein a
vontade de insistir nas relações objetais. Lacan, inteligentemente, se aprofundou no conceito de
representante, exagerando, às vezes, de forma retórica. Trata-se de objeto narcísico, que é
sempre um objeto e, na percepção sinal (carta 52) do inconsciente, é um ‘objeto a’, fantasmático.
Resposta. Lacan escreveu um Seminário inteiro, chamado de A relação de objeto, para defender
a ideia de que não existe relação de objeto, nem sequer existe o objeto que, no dizer de Freud,
foi perdido para sempre, isto é, a mãe, na qualidade de primeiro objeto de amor para a menina
e o menino. A esta mãe Freud chamava de Das Ding, a Coisa. A palavra ‘coisa’ tem a mesma
etimologia latina de ‘causa’. Daí que Lacan chama o ‘objeto a’ de objeto causa do desejo. A
perda do primeiro objeto materno deixou um buraco, um vazio, que jamais será devidamente
substituído por nenhum outro objeto.
Passamos nossa vida buscando por inúmeros objetos supostamente substitutos da mãe.
Nenhum o é. Por isso a afirmação lacaniana de que o objeto (este objeto fatal) não existe.
Porque para ele, os objetos que procuramos só teriam valor na nossa fantasia, mantendo a
ilusão de um desejo que, também por definição e pela etimologia, aponta para a falta.
A crítica que Lacan fazia a Melanie Klein e aos teóricos da Relação de Objeto era no sentido de
entenderem o objeto como algo concreto que traria uma completude imaginária. Para Lacan, a
linguagem existe justamente para substituir ou representar o objeto ausente, cuja presença é
só simbólica.
Por isto, Lacan atribui ao conceito de pulsão a estrutura da borda. A pulsão bordeja os objetos
sem conseguir capturá-los, girando em torno de um oco, um buraco, um vazio, os orifícios do
corpo. Ele falou também da palavra vazia, aquela em que o falante não se subjetiva. Desde a
Idade Média, é conhecido o mote latino verba volant, as palavras voam, ou palavras ao vento,
ou blá-blá-blá. Não se atribui valor legal aos contratos puramente verbais. Por outro lado, scripta
manent, os textos escritos, como a lei, permanecem.
Lacan propôs também uma nova pulsão, a pulsão invocante, a pulsão do falar. Curiosamente,
a boca também é um buraco, um vazio, é (b)oca. Quando Freud insistiu em dizer que a pulsão
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não tem objeto específico nem concreto, era bem neste sentido: seu objeto é sempre
fantasmático.
4. Dizer que a relação sexual não existe é outra forma de expressão retórica de Lacan, que
contradiria o seu mérito de insistir no conceito de ‘objeto a’. Esse é um ponto importante, para
não cairmos num conceito de pulsão apenas corporal, sem objeto.
Resposta. Freud se antecipou à frase lacaniana de efeito, citada acima, quando disse que o
amor é narcísico e, portanto, não se dirige ao outro, mas a si mesmo. A gente ama a si mesmo
no outro, ama no outro aquilo que julgamos ser uma parte de nós mesmos. O mestre disse
também que o homem não deseja a mulher que ama (representante da mãe), e não ama a
mulher que deseja (representante da prostituta). Isto é, não há uma verdadeira relação sexual
com nenhuma das duas.
Entretanto, uma mulher ou um homem podem funcionar como ‘objeto a’ para seu parceiro,
despertando neste o desejo interno. Como as mulheres preferem ser desejadas que desejar,
elas são o protótipo do ‘objeto a’ para o homem, sendo a causa do desejo para ele. Também o
analista é um ‘objeto a’ para o paciente, despertando neste o desejo de se analisar. Logo, a
posição do analista é uma posição feminina, de causa (ou coisa) do desejo.
5. Como Lacan insiste, não existe angústia pura. Como pode haver um exagero por parte de
alguns freudianos para quem o corpo é a única fonte da pulsão, também pode haver uma
insistência objetal, até mesmo concreta, por parte de alguns kleinianos que chegam a manifestar
ojeriza de um conceito de pulsão com raízes no organismo, até o ponto de eliminar do referencial
teórico o conceito de pulsão freudiano, que seria só objetal.
Resposta. Nossa sorte é que o primeiro objeto de amor, a mãe, está perdido para sempre. Se
isto nos causa alguma angústia, a angústia de castração, que não é pequena, por outro lado,
se retornássemos ao seio materno, a angústia seria muito maior, seria o retorno ao caos. Se a
falta (da mãe) já angustia, muito pior é a falta desta falta. Não teríamos o referencial simbólico,
e estaríamos mergulhados num imaginário de completude objetal.
Para a psicanálise, freudiana ou lacaniana, a angústia está mesmo situada é no registro do real,
o mesmo registro que abarca o ‘objeto a’.
6. Não ficou muito claro o que realmente significa o falo. É ele o significante da falta? (Thiago)
R. Na descrição do complexo de Édipo foi dito que, na primeira fase do imaginário, momento
incestuoso, tanto a criança quanto a mãe (ou o pai) vivem uma simbiose que completa a ambas,
que as faz sentirem-se como se nada lhes faltasse. Na liturgia religiosa existe um canto assim:
O Senhor é meu pastor, nada me faltará. Assim como a mãe (ou o pai) e a criança são
mutuamente o falo, posse exclusiva de uma para com a outra, assim o pastor e as ovelhas são
o falo mútuo. Ser o falo imaginário significa ter uma sensação de completude, mas é uma
sensação ilusória, falsa, porque esta completude não existe de fato, ela falta. Tanto assim é que
a criança precisa de algo, fora dela, para completá-la, do mesmo modo que a mãe precisa da
criança para se sentir completa. Em si sós, elas não são completas, logo, algo lhes falta.
Na segunda fase do Édipo, em consequência da castração ou proibição do incesto, o falo passou
por um processo de metaforização, adquiriu agora um significado simbólico, isto é, a criança e a
mãe (ou o pai) não podem mais desejar-se mutuamente sem restrições. As restrições são no
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sentido de que a mãe não pode ser desejada como mulher, pela criança, e o pai não pode ser
desejado como homem. Mas, devido à aquisição da linguagem, a criança pode nomeá-los agora,
substituindo-os por um significante (papai e mamãe). Crianças e pais são agora o falo, mas no
sentido simbólico da falta, transformados em significantes. Haverá um momento em que nem os
significantes funcionarão mais, quando a morte chegar para fechar os olhos (do imaginário) e a
boca (do simbólico). Portanto, algo nos falta estruturalmente.
Em linguagem vulgar se fala em bater o pinto na mesa. Significa mostrar a força, a (im)potência,
o poder. É também o sentido do falo, num deslocamento em que pênis e falo possuem algo em
comum. Por conseguinte, tanto o falo imaginário quanto o falo simbólico remetem a uma falta. E
o pênis, junto com sua potência, está em constante ameaça de faltar ou falhar.
7. Como fazer uma leitura do "bem e mal" na óptica Psicanalítica? Seria ele um "meio termo"
entre eles? (Thiago)
R. Bom e mau (ou bem e mal) são conceitos morais ou religiosos. O inconsciente não é nem
bom nem mau, é amoral. Esses valores são imaginários e residem na fantasia de cada um. A
psicanálise não trabalha com conceitos morais, mas com posturas éticas. Esta ética é uma ética
do desejo, que é pessoal. O sujeito avalia o próprio desejo, faz um cálculo dos riscos, e assume
as consequências. Assim ele decide o que é bom para ele. A teoria kleiniana do “seio bom e seio
mau” não aposta no conceito moral, mas em algo que só é bom ou mau na fantasia inconsciente
dos bebês. Na psicanálise, o princípio do prazer e o princípio da realidade é que servem de
bússola para as escolhas subjetivas.
8. É possível um paralelo entre morte e culpa? (Thiago)
R. A culpa inconsciente foi uma preocupação na teorização de Freud. É como se houvesse uma
culpa original, tipo pecado original, com a diferença de que esta culpa não é coletiva, é individual.
No fundo, a culpa advém do amor incestuoso (edipiano) na fase do narcisismo, ou estádio do
espelho. Esta culpa costuma produzir neuroses ou psicoses, levando o sujeito a se punir com
diferentes sintomas, com a realização de crimes em busca da autopunição e, inclusive, com a
própria morte.
9. Lendo alguns filósofos, entre eles Santo Agostinho, percebi que a vontade conota um aspecto
negativo da natureza humana. Porém o sujeito, para a Psicanálise, é o sujeito da falta, que deseja
(estou correto?). Como situar o sujeito dentro deste pensamento? (Thiago)
R. Santo Agostinho é considerado por Lacan como um precursor da psicanálise, sobretudo nas
considerações sobre a linguagem. Seria interessante pesquisar a palavra latina original utilizada
pelo Bispo de Hipona. Porque, em latim, há duas palavras com o sentido de vontade: voluntas e
libido. Esta última aponta mais para uma vontade de prazer, libidinosa. Assim temos a expressão
ad libitum, à vontade. Na oração cristã do pai-nosso, está dito: seja feita a vossa vontade, não a
nossa. Em qualquer hipótese, a vontade é vista mesmo como perigosa, do ponto de vista
religioso, porque pode conduzir ao pecado. A psicanálise não trabalha com o conceito de
vontade, mas com o de desejo, consciente ou inconsciente. É a busca do desejo, na trilha do
princípio do prazer, que condiciona a subjetividade. Em lições anteriores, o conceito de desejo
foi já trabalhado, e voltaremos a ele algumas vezes ainda.
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10. Por que gozo significa morte? Morte de quem ou do quê, do desejo? Tem relação com o
capitalismo? (Fernando Sérgio)
R. O conceito de gozo foi só esboçado em Freud. Já estava implícito em Aristóteles e Platão, ao
falarem sobre a ambiguidade dos conceitos de prazer e desprazer, prazer e dor. Quando Freud
escreveu “Além do princípio do prazer”, abordou o fato de que o sofrimento pode ser prazeroso,
o que ele chamou de “outro tipo de prazer”. No texto citado, Freud desfaz sua posição anterior
de que o Princípio do Prazer era oposto ao Princípio da Realidade. O que existe agora além do
prazer é a repetição, numa nova oposição, agora entre pulsão de vida e pulsão de morte.
Lacan foi quem formalizou melhor a noção de gozo, afastando-o dos conceitos de prazer ou
desprazer imaginários, e ligando-o ao Real, da morte. Pode-se entender como morte do desejo
também, no caso em que o sujeito se recusa a abandonar sua relação incestuosa com a mãe,
mantendo-se ligado a ela no gozo mortífero (quanto ao desejo) da psicose. É a interdição paterna
que opera a castração do incesto, levando o sujeito a renunciar ao gozo da mãe para assumir o
desejo quanto a outras mulheres (ou homens), subjetivando-se.
Com relação ao capitalismo, o sujeito que se submete às suas garras é levado pelo consumismo
irrefreável, onde o mais importante é ter (os bens) e não ser. É o mercado que passa a desejar
e criar necessidades que não nascem do sujeito.
11. Um dos aspectos apresentados na lição 8 tinha a ver com a Psicologia Transpessoal que,
pelo seu caráter Trans (de mim para ti, através de) da Psicologia.... (Anselmo Chizenga)
R. A pergunta chegou incompleta, por problema da internet. Pelo que pude depreender, respondo
que a psicanálise segue o raciocínio da filosofia hegeliana, segundo a qual ‘a consciência de si
vem da consciência do outro’, isto é, a alteridade como constituinte do sujeito. A presença do
outro é fundamental para o surgimento da subjetividade, pela percepção da diferenciação do ‘eu
e não-eu’. Para Lacan, temos a afirmação de que o ‘desejo do homem é o desejo do outro’. Há
aí, então, então uma ‘transitividade’. A diferença é que, na psicanálise, este ‘outro’ não está
necessariamente fora, é o próprio inconsciente de cada um, o seu duplo desconhecido. Já a
Psicologia Transpessoal, na esteira da Psicologia Profunda junguiana, (ambas se denominam
‘Psicologia’) situa-se no registro da consciência e as possibilidades de expansão da mesma.
Além disso, a psicanálise não trabalha com o conceito de pessoa, mas com o de sujeito do
inconsciente.
12. Um dos aspectos apresentados na liçäo 8 tinha a ver com a
Psicologia Traspessoal, este que pelo seu caracter Trans (de mim, para
ti, através de) da psicologia defende a inclusäo ou agregaçäo da
espiritualidade e valores religiosos nas práticas e procedimentos
terapêuticos. Isto pode ser em parte uma critica a Freud por näo ter
tomado em conta a dimensäo da. Qual pode ser a relaçäo de convivencia
entre a Psicanalise e a psicologia traspessoal? (Anselmo Chizenga)
R. A primeira parte desta pergunta está respondida na pergunta anterior. Quanto à sequência, é
preciso distinguir bem entre religião e espiritualidade. Freud refere-se à religião enquanto
instituição oficial, hierárquica, ritualista e dogmática. Ele a compara com a neurose obsessiva e
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deixa claro o aspecto infantilizante em que as religiões aprisionam as pessoas, obrigando-as a
acreditarem em teorias absurdas e incompreensíveis racionalmente, além de imporem severas
repressões sexuais, com promessas ilusórias de felicidade total em outra vida e ameaças de
excomunhão e condenação a quem discordar.
Já a espiritualidade é uma forte tendência de busca da transcendência, sem necessidade de
nenhuma filiação religiosa ou da figura de um Deus pessoal. O próprio Freud, ateu confesso, que
não praticou nenhuma religião, foi um grande espiritualista que desenvolveu sua teoria sobre a
alma (psique) humana. Haja vista que a tradução oficial que divulgou o termo ‘psique’ poderia ter
sido mais honesta com o original alemão, em que Freud usa a palavra “Seele”, que significa
‘alma’, no sentido filosófico de uma alma mortal. Oskar Pfister, ministro protestante e psicanalista,
amigo de Freud, foi enfático ao dizer que via Freud mais perto do trono de Deus do que muitos
homens da Igreja que resmungam preces e conduzem cerimônias.
A psicanálise, ao contrário da Psicologia Transpessoal, não agrega espiritualidade ou valores
religiosos em suas práticas ou procedimentos terapêuticos, como não agrega nenhuma outra
ideologia, e trata todas as questões trazidas pelos pacientes com a mesma isenção e suspensão
de juízo de valores, ou de moral. Assim, os pacientes têm total liberdade de falar sobre temas
religiosos, espiritualistas ou outros, que serão igualmente interpretados em sua relação com o
inconsciente, dentro da economia do desejo, sem privilegiar e sem desprezar nenhum material
trazido numa sessão de análise. Em síntese, a psicanálise não sugere religiosidade,
espiritualidade, ateísmo, opção sexual ou política, mas a paixão do analista consiste em catalisar
o processo analítico no sentido de o próprio paciente escolher e direcionar seus desejos,
responsabilizando-se, eticamente, pelas consequências.
Aqui está o diferencial teórico básico entre a psicanálise e as demais formas de terapia. Estas
não negam sua intenção de agregar valores (bens comuns para todos os pacientes) préestabelecidos em suas práticas e procedimentos terapêuticos. Além da religião e espiritualidade
já citadas, Jung e seus discípulos adotam o misticismo, com toda a naturalidade. Tal suposição,
entretanto, não se sustenta diante do grande número de ateus, infiéis, agnósticos, materialistas,
para os quais estes bens são um mal, e sem os quais vivem confortavelmente.
Quanto à convivência da psicanálise com outras abordagens, ela é coerente com a suspensão
de juízos de valor, isto é, respeita e espera ser respeitada.
13. Na página 5 da lição esta patente uma citaçäo de Freud, uma das
ideias patentes é a presença de conflitos entre as pulsöes de
sexualiadade e as pulsöes do eu. Na página a seguir esta ideia parece
um tanto paradoxal, porque afirma-se que as pulsöes säo inseparáveis
pelo facto delas estarem vinculadas ao mesmo órgäo! (Anselmo Chizenga)
R. Ao introduzir o conceito de narcisismo em sua teoria, Freud deu-se conta de uma contradição
em sua primeira formulação da teoria das pulsões. A saber: se, com o narcisismo, o sujeito toma
o próprio ‘eu’ como objeto (sexual) de amor, então não há oposição entre pulsão do eu e pulsão
sexual. Do dualismo
pulsional, ele passa então ao monismo: pulsão narcísica. Baseado no mito de Narciso, que se
apaixona pela própria imagem, mas se desespera até à morte por não poder dominá-la, Freud
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retoma, posteriormente, o dualismo das pulsões de vida e de morte. Entretanto, vida e morte não
passam de duas faces da mesma moeda.
14. No dialogo entre Freud e Eistein, Freud faz uma distinçäo entre
instintos Eróticos e os agressivos ou destrutivos,mas defende que
apesar da sua disposiçäo oposta (Amor e Ódio), nenhum desses dois
instintos é menos essencial do que o outro. A posiçäo dos éticos tende
a dar primazia aos instintos eróticos, pelo seu carácter normativo
orientado para o bem comum, que justificaçäo ética vinculada a
psicanalise
se pode dar a essa afirmaçäo? (Anselmo Chizenga)
R. Mesmo quando retoma a dualidade das pulsões, Freud mantém a ideia de que amor e ódio,
eros e destrutividade, vida e morte são duas faces complementares de uma mesma moeda. A
questão ética será abordada na resposta seguinte.
15. Na página 14 onde fala-se do paradoxo da guerra, há uma tendencia
de extrema relactividade sobre a ideia do bem, entendo que quando o
relactivismo é exacerbado näo há senso de responsabilidade e
co-responsabilidade, gerando-se oportunismos. Lembremos a visäo
colonial que defendia a colonizaçäo e escravatura porque os africanos
näo tinham ideia do bem, nem de Deus,daí o mal feito pelos europeus
poderia ser encarrado como bem pelos africanos, essa visäo deixa cair
por terra os principios s éticos e a sua universalidade! Näo tenho
nada contra isso,alias tem sido este o campo de batalha do
afrocentrismo gerado no interior das ciências humanas,pois cada caso
deve ser visto como um caso particular. (Anselmo Chizenga)
R. Esta é uma questão profunda, delicada e difícil. Acho que a psicanálise é a única disciplina
que tem a coragem de enfrentar milênios de filosofia e de religiões, afirmando que não existe o
tão propalado Bem Comum. Tanto a filosofia quanto as religiões defendem a ideia abstrata e
teórica de Bem Comum, que nunca funciona na prática, sobre o qual não há consenso, inclusive
porque ninguém consegue defini-lo. Na prática, o Bem Comum não passa de uma somatória de
bens particulares. A ideia de completude ou totalidade é da ordem do imaginário.
Há que distinguir entre moral e ética. A moral é de natureza social, apoiada nos costumes. E os
costumes mostram que cada povo, cada nação, cada religião entendem o Bem Comum de
maneiras diferentes, condizentes com suas crenças ou interesses. As guerras sempre existiram
e existirão, porque não há critérios definindo o interessa a todos. Países são invadidos e
depredados de forma irresponsável, com justificativas mentirosas. As próprias religiões
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promovem ‘guerras santas’, cruzadas, inquisições, em que, em nome de um suposto Bem
Supremo (Deus, no caso), promovem-se matanças de pessoas só porque pensam diferente.
Também no âmbito político, os interesses particulares de cada nação, sobretudo das mais ricas,
predominam sobre as mais fracas, em que pese tanto esforço da Organização das Nações
Unidas, que não tem ‘moral’ nem força para refrear a ganância. Como consequência, a riqueza
do Planeta concentra-se em poucas mãos, enquanto a miséria, a desnutrição, a fome e a morte
de milhões de seres humanos passam despercebidos mesmo por aqueles que arrotam a ideia
do Bem Comum.
Já a Ética é sempre pessoal. É uma ética do desejo, atrelada à verdade de cada sujeito, verdade
singular que também difere da verdade do outro. Não há uma ética universal, como atestam os
fatos sugeridos na pergunta acima. Qual é a grande discussão, hoje, em âmbito mundial? É a
urgência em socorrer as instituições bancárias, em prejuízo dos cidadãos que devem sacrificarse sempre mais em favor dos ricos e dos colonizadores. Onde encontrar o Bem Comum? No
Brasil também já se argumentou que os índios não tinham alma. Na Europa Medieval, fazia-se a
mesma pergunta com relação às mulheres, em geral.
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