DANO MORAL - ABRANGÊNCIA
Wilson J. Comel1
Toda pessoa tem direito de ver preservada sua honra e boa fama, a intimidade
pessoal e familiar, sua imagem construída com o labor de seu amor-próprio e de sua
conduta social e profissional.2
Toda manifestação de irreverência ou menosprezo
dirigida contra esse status ou prestígio poderá constituir-se em dano moral. Não raro, a
fonte geradora do dano reside na animosidade entre as pessoas, do ofensor em relação
ao ofendido ou de acessos biliosos circunstanciais.
Não se pode afastar a observação de que o nosso cotidiano, de manhã à noite, do
levantar ao deitar, no ambiente familiar, social e profissional, está impregnado de
encontros e desencontros, de aborrecimentos mil relativamente ao planejado ou
esperado que tisnam nosso desejo de conviver em tranqüilidade.3 A vida moderna, mais
particularmente a vida nos centros urbanos que nos aglomera e nos faz partícipes de
uma grande aldeia global (Marshall MacLuhan), nos submete, pela impaciência e
egoísmo dos outros ou nosso, pela nossa negligência consciente ou inocente, pela
avidez de tirar vantagem (lei de Gerson), ou porque reduzidos a um cadastro, a um
número ou a uma ficha, somos submetidos a constrangimentos de diversos matizes,
ainda que a sós, acompanhados e/ou em público. 4
Aqui, então, surge a questão das lindes do dano moral, de sua verificação,
porque não há entre ele e os desgostos diuturnos uma linha demarcatória, senão uma
faixa de tons cinzentos que toma nitidez ou contornos segundo a maneira de como ele é
encarado. Transtornos, meros dissabores não ensejam a condenação por dano moral;5
ou contra-tempos que sofre o homem no seu dia a dia, presentes na vida de qualquer
1
OAB/PR - 2.095.
Embora esse aspecto positivo, por assim dizer romântico, da honra e boa fama, deve-se tomar em
consideração, também, por mais paradoxal que pareça, o direito ao segredo da desonra que, de uma forma
ou outra, dormita no íntimo das pessoas. É um direito de impedir que terceiros conheçam ou desvelem a
vida privada, em especial os pecados de cada qual que, certamente, os desmereceriam perante a
sociedade. Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra.
3
Diz o ditado: o homem propõe e Deus dispõe.
4
"O ser humano tem uma esfera de valores próprios que são postos em sua conduta não apenas em relação ao
Estado, mas, também, na convivência com os seus semelhantes. Respeitam-se, por isso mesmo, não apenas
aqueles direitos que repercutem no seu patrimônio material, mas aqueles direitos relativos aos seus valores
pessoais, que repercutem em seus sentimentos. Não é mais possível ignorar esse cenário em uma sociedade que
se tornou invasora porque reduziu distâncias, tornando-se pequena, e, por isso, poderosa na promiscuidade que
propicia" (TJRJ - RT 693/199).
5
STJ, REsp 861977/MG, Min. JORGE SCARTEZZINI, 4ª T, 05/10/2006.
2
um, tais como: longa espera em filas de atendimento, engarrafamentos,6 desculpas por
impontualidade social, filas nos supermercados, nas agências bancárias, algum retardo
de veículos de transporte, mudanças de escalas de vôo com conseqüente atrasos, 7 a
salvo nestes casos, circunstâncias peculiares ao passageiro por compromissos inadiáveis
e programados.8
Com efeito, o dano moral não se pode prestar a especulações, a subjetivismos
exagerados. Como anotado por CARLOS ROBERTO GONÇALVES e na observação
de que “só se deve reputar dano moral o sofrimento, a dor que, fugindo à normalidade,
venha a romper o equilíbrio psicológico do indivíduo de forma intensa e duradoura, e
não o mero incômodo, dissabor ou sensibilidade exacerbada”,9 ou, na de ANTÔNIO
CHAVES: “propugnar pela mais ampla ressarcibilidade do dano moral não implica no
reconhecimento de todo e qualquer melindre, toda suscetibilidade exacerbada, toda
exaltação do amor próprio, pretensamente ferido, a mais suave sombra, o mais ligeiro
roçar de asas de uma borboleta, mimos, escrúpulos, delicadezas excessivas, ilusões
insignificantes desfeitas, possibilitem sejam extraídas da caixa de Pandora do Direito,
centenas e milhares de cruzeiros”.10 Não, também, o “mero aborrecimento inerente a
prejuízo material”,11 ou percalços comuns.12
J. J. CALMON PASSOS, em artigo denominado O Imoral nas Indenizações por
Dano Moral, depois de assinalar que nos dias de hoje a moralidade se faz algo
descartável e de menor importância - e até, acrescentamos, objeto de deboche -, em que
a tônica do comportamento é o relativismo, o pluralismo, o cinismo, a permissividade e
o imediatismo, manifesta, a propósito da indústria da indenização por dano moral o
receio (medo) de que “talvez tenhamos, dentro em breve, empresas especializadas no
6
STJ, REsp1181395/SC, Min. HUMBERTO MARTINS, 2ª T, 29/04/2010.
O TJSP, pela 11ª C., j. 16.06.94, por exemplo, julgou mero aborrecimento, a mudança de escala de vôo com
conseqüente atraso, insuscetível de caracterizar dano moral (RT 711/107). Assim os dissabores decorrentes da
inadimplência contratual (STJ, REsp 746087/RJ, 4ª T, Min. ALDIR PASSARINHO JUNIOR, 01/06/2010).
8
Também não constituem danos morais as contrariedades que ficam “limitadas à indignação da pessoa,
sem qualquer repercussão no mundo exterior”.
7
9
Comentários ao código Civil, Saraiva, SP, 2003, vol. II, p. 519. Faz referência, neste particular, ao art.
496, I, do Código Civil português segundo o qual só são indenizáveis os danos não patrimoniais que,
"pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito".
10
Citado por Aparecida Amarante (Responsabilidade Civil Por Dano À Honra, ed. Del Rey, BH, 1998,
p. 259.
11
Maria Izabel Diniz Gallotti Rodrigues. Enunciado aprovado na 3ª Jornada de Direito Civil, ao art. 186.
12
MIRNA CIANCI.O valor do dano moral, Saraiva, SP, 2007, p. 137.
treinamento de pessoas para habilitá-las a criar situações que levem alguém a ofendê-lo
moralmente”.13/14/15 Prosperum ac felix scelus/virtus vocatus. 16
Antes da Constituição de 88, não eram poucas as decisões que somente
admitiam a reparação pecuniária do dano moral na hipótese de reflexos materiais,
constituindo estes a medida do alcance da indenização, o que tornava infrutífera a
pretensão do ofendido em caso de dano moral puro, id est sem consequências
patrimoniais,17 deixando impune o agente, salvo se a ofensa adentrasse o campo da
ilicitude penal. Washington de Barros Monteiro, ao tratar do ato ilícito, sob a égide do
art. 159 do Código Civil de l9l6, excluía o dano moral se não resultasse em dano
material: “Esse dano deve ser material; o dano moral, segundo vimos, só é ressarcível,
quando produza reflexos de ordem econômica. Assim os sofrimentos morais autorizarão
a ação ex delicto se acarretarem prejuízos materiais”.18
CLÓVIS, em seus comentários ao Código Civil de l916, faz síntese conclusiva:
“A reparação é a regra para o dano, seja moral, seja material. A irreparabilidade é
exceção.” Entretanto, no seu sentir, “o dano moral, nem sempre, é ressarcível, não
somente por se não poder dar-lhe valor econômico, por não se poder apreçá-lo em
dinheiro, como, ainda, porque essa insuficiência dos nossos recursos abre a porta a
especulações desonestas, acobertadas pelo manto nobilíssimo de sentimentos
afetivos”.19 Alerta este, por sinal, presente nos dias de hoje.
Atualmente, porém, em doutrina e em jurisprudência - por imposição da norma
constitucional - é pacífica a recepção de que o dano moral puro, isto é, aquele do qual
não se pode ou são extremas as dificuldades de demonstrar eventuais reflexos materiais
(pessoais, familiares, políticos, psicossomáticos ou sociais), não está indene de
reparação pecuniária. Exemplo comum e corriqueiro é o reconhecimento de dano moral
13
Revista Magister - Direito Civil e Processual Civil, n. 26, set/out 2008, p. 56.
Em consulta no meu escritório, nem uma nem duas vezes, o consulente, depois de relatar o fato que
sofreu (?), indaga: - Doutor, isso dá dano moral? - sem qualquer alusão à dor moral. É um pib em
crescimento.
15
R$ 21,7 milhões é quanto quer Francenildo dos Santos Costa - pivô do escândalo que derrubou o
ministro mais forte do governo Lula, Antônio Palocci, da Fazenda - diz nota veicula pelo O Estado de
São Paulo de 18 de abril de 2006, A7 e de 23 de abril de 2006, J7 (sendo R$ 17.500.000,00 da Caixa
Econômica, pela quebra do sigilo bancário, e R$ 4.200.000,00 da revista Época pela divulgação do
extrato).
16
Um crime bem sucedido e feliz é chamado virtude.
17
TJSP, 1ª C., j. 28.03.95. RT 717/143. Inclusive o Tribunal de Justiça do Paraná, pela sua 4ª Câmara Cível,
em 27.04.l983, tendo como Relator o Des. Ronald Accioly, entendeu que "O dano moral, para ser indenizável,
deve produzir reflexos no patrimônio de quem o tenha sofrido" (RT 588/212).
18
Barros, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, 1º vol., 5ª ed., Saraiva, SP, l967, p.289.
19
CLÓVIS BEVILAQUA, Código Civil, vol. IV, Liv. Francisco Alves, l957. Comentários ao art. 1537.
14
decorrente da inscrição do nome do cliente no cadastro dos devedores inadimplentes (?)
pelos estabelecimentos financeiros, estando já solvida a dívida, sem que tenha sido
possível demonstrar prejuízos de ordem material; a presunção é iuris tantum e pronto!20
A jurisprudência pátria, reformulando posição anterior, tem estaqueado a de que
o dano moral resulta da simples ofensa, sem que seja necessário demonstrá-lo
concretamente. “Basta a ofensa - decidiu o egr. TJDF (RT 733/297) - para justificar a
indenização”. Pelo voto do Ministro Octávio Galotti, o excelso Supremo Tribunal
Federal (in RTJ 115/1.383/1.386) assentou: “Dano, puramente moral, é indenizável”,
prescindindo, pois da apuração da patrimonialidade do dano. A desnecessidade da prova
dos prejuízos tem merecido agasalho no egr. Tribunal Superior de Justiça (in RT
746/183).
Basta a ofensa para justificar a indenização”,21 de modo que o ônus da prova
passa ao agente do dano moral, incumbindo-lhe demonstrar que não feriu a moral em
virtude das circunstâncias e das condições do ofendido.22
Isso porque, segundo Sérgio Cavalieri Filho, citado em acórdão do TJAL (1ª
Câm. Civ),23 ".. o dano moral existe in re ipsa, deriva inexoravelmente do próprio fato
ofensivo, de tal modo que, provada a ofensa, ipso facto está demonstrado o dano moral
à guisa de um presunção natural hominis ou facti, que decorre das regras da experiência
comum (Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas. p. 86)".
O alargamento dessa presunção já está, hoje, a alcançar a pessoa jurídica, como
agente passivo de dano moral.24
20
E, todavia, a "prestação de socorro e de assistência material e moral a vítima não constitui presunção de
culpa, uma vez que, além de ser uma imposição legal é também dever humanitário" (TAMG, julg.
02.06.98, 2ª CCiv., ac. 0255005-4)
21
STF, 1ª T., j. 12.08.l986. RT 614/236. TJSP, 2ª C., j. 07.03.l995. RT 718/103. 1º TACivSP, 2º GrCs, j.
23.06.94, segundo o qual "Dano moral é moral", independe de seqüelas somáticas. TJSC, 2ª C., j. 14.08.l990.
RT 670/143. RT 712/170. TJDF, 4ª T., j. 04.03.96. RT 733/297. TJPB, 2ª C., j. 15.09.l994. RT 717/234.
22
A matéria não era tão pacífica, como parece estar atualmente. Decisão do 1º TACiv/SP entendeu que a
dor moral não se presume. Deve ser comprovada, a depender do modo como viviam o morto e seus
parentes (RT 670/100, 16ª C., julg. 25.10.90). No caso negou-se o reconhecimento de dano moral aos
filhos por morte da mãe em acidente que a vitimou: filhos com vida própria que não viviam com a mãe,
nem a a ajudavam e nem ela os socorria.
23
RT 923/970.
24
Antes do atual Código Civil, já aflorava a opinião de que a pessoa jurídica pode ser atingida em sua
imagem, no seu bom nome, no seu conceito comercial. A ofensa à honra objetiva da pessoa jurídica
enseja indenização por dano extrapatrimonial. 24 porque “a imagem e a boa fama não são atributos
exclusivos das pessoas físicas”.24 O abalo de crédito, por indevido protesto de título, constitui violação do
direito à imagem de pessoa jurídica”.24 A sociedade civil pode ser objeto de crime contra a honra, pois
“os atributos de reputação e conceito podem ser atingidos”. 24 Aliás, sabido é que o bom nome da pessoa
Cabe colacionar, ainda nesse horizonte, o dano existencial, como categoria
distinta de dano extrapatrimonial, suscetível de indenização autônoma à imagem e
semelhança da do dano moral.
Dano existencial é - ut Keila Pacheco Ferreira e Rafae Ferreira Bizelli - "o dano
a saudável existência, à normal rotina, ao comum cotidiano da pessoa. Haverá o dano
existencial, portanto, sempre que a pessoa não poder mais fazer daquele modo, ou estar
impedida de realizar determinada atividade usual".25 A rotina da vida, o cotidiano da
pessoa faz parte do que ela é, de sua personalidade.
Já dizia IHERING: "No meu direito, compreende-se todo direito que é violado e
contestado; é esse que é defendido, sustentado e restabelecido".26
jurídica é penhor de sua aceitação e, consequentemente, de sua estabilidade econômica e empresarial e
confiança em seus serviços.
25
A Cláusula Geral de Tutela da Pessoa Humana: enfoque específico do dano existencial, sob a
perspectiva civil-constitucional. Revista de Direito Privado n. 54, 2013, p. 33, RT.
26
IHERING, Rudolf von. A luta pelo Direito. Edição da Organização Simões, Rio, l953, trad. João
Vasconcelos, p. 103.
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