EDITORIAL
“Os nomes diferentes são indicadores
evidentes de deuses primitivamente
diferentes”1
N
ovamente a questão do pai nos ocupa e preocupa. Assim como retornava aos textos clássicos, encontrando neles inspiração para
o desdobramento das interrogações fundamentais, nos dirigimos ao
texto freudiano onde, seguramente, – a persistência de seu trabalho sobre o
discurso o comprova – poderemos reencontrar conceitos orientadores. “Moisés
e o monoteísmo” é o texto sobre o qual trabalharemos nas próximas jornadas “Relendo Freud e conversando sobre a APPOA”, na trilha de novas indagações sobre o que hoje faz sintoma no discurso social: o declínio da função
paterna e a decadência do patriarcado. Precisamente nesse texto, Sigmund
Freud desdobra uma cuidadosa análise da delicada arquitetura em que os
significantes se articulam para produzir essa trança que vai do Pai ao Outro,
ligando o Discurso Social ao Fantasma singular.
No texto lacaniano, essa arquitetura segue o percurso do Nome-doPai, tendo como ponto de partida o suposto de pai único para cada um – em
termos de posição chave para determinar a função simbólica, temos aqui o
Seminário 3, “As Psicoses” – embora o significante que o represente não
seja um só. Passando, depois, o que merece então uma leitura après coup,
para a pluralidade da posição paterna que faz a função – na sua produção no
Seminário 18 (“De um discurso que não o seria do Semblante”) e no Seminário 21 (“Os não ingênuos se equivocam”, ou os “Nomes-do-Pai”).
Certamente hoje este é um guia de leitura essencial para se compreender no quê estamos metidos, atualizando o que Freud inspiradamente
denominou “nervosismo contemporâneo”.
1
GRESSMANN apud FREUD, S. Moisés y la religión monoteísta (1934-8 [1939]). In:_____.
Obras Completas . Madri : Biblioteca Nueva, 1968, p. 207-8.
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JORNADA DE ABERTURA
EM DIREÇÃO A UM CONGRESSO DE PSICANÁLISE
No dia 8 de abril de 2000, encontramo-nos para a IX Jornada de Abertura, que teve como título: “A clínica psicanalítica”, um tema que nos ocupa
sempre no sentido de fazer, mas que vem, cada vez mais, convocando-nos a
escrever e falar.
A primeira mesa do dia abriu a possibilidade de pensar sobre a posição do analista enquanto autor e a clínica como ato criativo, um tema muito
presente nas discussões da jornada. Edson de Souza falou da escrita de um
caso clínico como um espaço no qual se revelam o sujeito e o analista; concebendo o caso, não como uma história do paciente, mas como uma ficção
clínica construída com a memória do analista, sendo impossível suprimir seu
sentido transferencial. Simone Rickes nos falou da necessidade de reinventar
a clínica a cada momento, do a posteriori como tempo de apropriação do
fazer clínico e de uma certa dose de “loucura” implicada no trabalho do analista.
A mesa seguiu convocando-nos a pensar a responsabilidade do analista sobre os atos que produz. O trabalho de Liz Ramos interrogou a posição da psicanálise nas instituições, propondo que a análise depende mais
da sustentação em ato do inconsciente do que de lugares idealizados, que
ofereçam a ilusão de se estar mais próximo da prática do pai fundador. Ana
Maria da Costa, entre outras questões, apontou o ato criativo – falar e escrever sobre a clínica – como uma “saída para a tranferência”, concebendo a
transmissão da experiência como uma transposição resolutiva do trabalho
analítico.
Ao encerrar a Jornada, Alfredo Jerusalinsky referiu-se à direção do
trabalho de transmissão ao qual a APPOA se propõe: produzir através do
discurso analítico – naquilo que Lacan formulou como o lugar do analista – a
possibilidade de que todos sintam-se convocados a sustentar um lugar de
saber, marcado pela falta. É nesta aposta que inauguramos os trabalhos do
ano, renovados pelos interrogantes desta jornada.
OTÁVIO DE SOUZA E A IMPORTÂNCIA DA ALTERIDADE
NA ESTRUTURAÇÃO DO PSIQUISMO
Na tarde do último dia 24 de março, estivemos reunidos para mais um
momento de diálogo e discussão com nosso colega do Rio de Janeiro. Neste dia, contamos com a presença de dois outros psicanalistas cariocas: Ana
Carolina Lobianco, membro do “Tempo Freudiano” e Luciano Elia, do “Laço
Analítico do RJ”. Na ocasião, que também tinha a função de encontro preparatório para o Congresso de outubro, Otávio discorreu algumas linhas de seu
trabalho mais recente: “Aspectos do encaminhamento da questão da
cientificidade da psicanálise no Movimento Psicanalítico” –, tema ao qual
está se dedicando há algum tempo; e a transferência de trabalho com APPOA
permite sua discussão de tempos em tempos.
É um projeto de fôlego investigar e analisar algumas das mais importantes orientações do movimento psicanalítico (Melanie Klein, Anna Freud,
Bion, Balint, Winnicot e Lacan) a fim de “buscar matéria de reflexão em
alguns dos problemas que estiveram na origem de sua diversificação”. Uma
das discussões importantes está expressa na controvérsia entre Klein e
Anna Freud, em que transparece uma diferença de concepção fundamental
para o futuro do movimento psicanalítico: a questão da alteridade e da significação como estruturantes do nascimento dos processos psíquicos. Isto
passa por toda a tradição pós-freudiana, na qual Lacan está incluído, no
dizer de Otávio, que se empenha em fazer a crítica dos fundamentos biológicos e energéticos da teoria das pulsões.
Combinamos continuar o trabalho, dialogando em futuro próximo, sobre os efeitos na clínica desta mudança conceitual, a qual J. Lacan dedicou
boa parte de seus primeiros seminários.
Robson de Freitas Pereira
Ana Laura Giongo Vaccaro
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 79, maio 2000
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DÉCIO FREITAS NO ANIVERSÁRIO DE GILBERTO FREYRE
O autor de “Casa Grande e Senzala”, um dos livros que inventaram o
Brasil, estaria completando cem anos dia 15 de março passado. Naquela
noite, a APPOA realizava uma de suas reuniões preparatórias ao Congresso
“Brasil: descoberta V invenção” e se associava a uma série de comemorações que acontecerão em diversas cidades brasileiras ao longo deste ano.
O conhecido professor, escritor e historiador gaúcho lembrou de seus
encontros com o antropólogo pernambucano e, apesar das ressalvas e críticas feitas ao “Mestre de Apipucos”, não deixa de reconhecer sua genialidade
e grandeza. Décio Freitas afirmou que a obra de Freyre irá permanecer por
seu valor literário, mostrando o grande escritor que ele foi. Gilberto Freyre
conseguiu a proeza de produzir uma tese que, sem deixar de fazer as pesquisas aprofundadas que a academia exigia, ainda inovou ao descrever os
detalhes biográficos e cotidianos de uma cultura que, até então, não havia
sido analisada por seus costumes e hábitos. Hoje, estamos acostumados
às “histórias da vida cotidiana”; entretanto, no início da década de 30 (“Casa
Grande...” teve primeira edição em 1933), isto foi verdadeiramente revolucionário.
No início dos anos 80, Gilberto Freyre respondia assim a uma entrevista: “Casa Grande e Senzala foi escrito para responder a seguinte pergunta: afinal, o que é o Brasil? E a primeira e principal fonte de pesquisa fui eu
mesmo. Minhas histórias, de minha família, meu medo da morte...” Para os
psicanalistas esta é uma resposta conhecida; pois ela indica o nascimento
da própria psicanálise, a começar por Sigmund Freud.
Robson de Freitas Pereira
DILEMAS E DESAFIOS DO SÉCULO XX
Professor da Universidade de Paris VII, no curso de doutorado em
Ciências Sociais, o sociólogo e psicólogo Eugène Enriquez esteve, no dia
22 de março próximo passado, na sede da APPOA, onde desenvolveu, numa
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enriquecedora palestra, o tema que o ocupa neste momento: “Desafios do
século XX: entre a civilização e a barbárie”. Sendo um teórico da sociologia,
encontra suas referências também na psicanálise, trabalhando com conceitos desta, que importa para entender o homem e seu tempo.
Citando Walter Benjamin, que inspirou o título deste trabalho, lembra
que todo fenômeno de civilização é também um fenômeno de barbárie, uma
vez que um dos custos daquela é o recalque e seu retorno. Um estudioso
atento do poder e de como ele se manifesta nos regimes totalitários, anota
que, onde há poder, há a tentação de abusar dele.
No contexto do individualismo contemporâneo, onde o homem sofre
constantemente a injunção da performance, Eugène Enriquez distingue duas
posições subjetivas que, pelo aumento de sua incidência, merecem atenção: uma é a posição sádica, com seu desejo de dominar o outro e a segunda, que ele chamou de apática, sobre a qual se deteve mais longamente.
Encontra a descrição desta em Sade, no desejo daquele que jamais quer ser
perturbado por qualquer emoção, que busca o controle ou a eliminação das
mesmas, desenvolvendo uma insensibilidade em relação aos outros, um
desinvestimento de si e do próximo na mesma proporção de um
superinvestimento dos objetos que se compraz em dominar.
O desprezo para com a subjetividade do outro e para com a própria
produz a assustadora face de um ego grandioso e frio; eis a nova barbárie,
pois tal posição produz uma disposição à “servidão voluntária”, produtora ou
coadjuvante de grandes tragédias sociais e políticas, que regimes totalitários não cessam de demonstrar.
Durante o debate das idéias apresentadas, foi possível aproximar a
descrição da posição apática, ao ideal de impessoalidade da neurose obsessiva, que os valores contemporâneos parecem incrementar – tema que
foi objeto de trabalho das nossas últimas jornadas clínicas. Apesar do quadro pessimista que descortina, o professor Enriquez aposta na capacidade
dos humanos em desenvolver a sublimação, em fundamentar seus atos não
apenas na ética da convicção (baseada nas ideologias), mas na ética da
responsabilidade, que avalia antecipadamente as conseqüências de nossas
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ações. Não houve tempo para que pudéssemos trabalhar com mais detalhe
as facetas do conceito de sublimação que ele utiliza, pois, se a tomarmos
como des-sexualização, suas conseqüências seriam semelhantes ao quadro que denuncia.
O professor Eugène Enriquez finalizou sua palestra, propondo a
reinvenção da solidariedade, que permitiria a vivência de uma aventura coletiva, que não se contrapõe à capacidade de estar só, de criar e de fantasiar.
Nossos agradecimentos aos coordenadores do Programa de pós-graduação
de Administração de Empresas da UFRGS, a cujo convite o Professor E.
Enriquez esteve em Porto Alegre, proferindo a aula inaugural do curso, e à
professora Rosinha Carrion, que oportunizou o encontro.
Maria Ângela Brasil
escravocrata, quando um porco era carneado, as melhores partes eram destinadas à casa grande, enquanto que as patas, as orelhas e outras partes
menos nobres, na senzala misturavam-se ao feijão, para alimentar os escravos (daí a expressão soul food).
Às contribuições de Peter Fry, Maria Eunice acrescenta o fato de
algumas características físicas também poderem constituir-se em emblemas – para reivindicações identitárias, por exemplo – passando da parte
para o todo, estendendo-se de um grupo étnico para o restante do país.
Carmen Backes
“PÂNICO E DESAMPARO”
‘SOUL FOOD’
Dando prosseguimento as suas atividades em torno da obra de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, o Cartel preparatório ao Congresso de
Psicanálise, Brasil: descoberta V invenção, contou, no dia 29 de março, com
a participação da antropóloga da UFRGS, professora Maria Eunice Maciel.
O tema de sua palestra foi “Sociedade e Cultura”, que propôs articulações
entre a obra citada e outros autores tais como Sérgio Buarque de Holanda,
Caio Prado Jr. e Roberto Da Matta.
Maria Eunice também deu destaque às recentes contribuições do
antropólogo inglês, naturalizado brasileiro, Peter Fry que escreveu o artigo
“Para inglês ver”. Neste, o autor analisa, com propriedade, o quanto uma
comida, ou um certo tipo de música, ou um esporte pode, no Brasil, tomar o
caráter de símbolo nacional. Exemplos disso são a feijoada, o samba e o
futebol. A feijoada, só para comentar um destes exemplos, é tomada, em
muitos países, não como símbolo nacional, mas, ao contrário, num certo
caráter pejorativo como “soul food”. Isto está evidentemente relacionado, de
uma certa forma, à própria história da feijoada no nosso país: no período
Ainda neste mês de abril, recebemos na APPOA o psiquiatra Mario
Eduardo Costa Pereira, apresentando seu livro “Pânico e desamparo”, lançamento da editora Escuta, resultado de sua tese de doutorado realizado no
Laboratórie de Psychopathogie Fondamental da Universidade de Paris VII,
sob a orientação do Professor Doutor Pierre Fédida.
O palestrante nos traz algumas considerações a respeito do termo
“Pânico” – que este reaparece hoje com grande impacto, através da criação
da categoria psiquiátrica “transtorno de pânico”, o que gerou inúmeras controvérsias. Ele diz que em 1980, essa categoria foi incorporada à terceira
revisão do Manual de Diagnóstico e de Estatística da Associação Psiquiátrica Americana (DSM– III), passando a ter uma forte repercussão sobre as
concepções contemporâneas dos “estados de angústia”. Lembra-nos que a
divulgação maciça pela mídia também contribuiu para a construção da imagem de uma “nova doença” descoberta pela medicina moderna, originada
pela disfunção dos neurotransmissores cerebrais e curável com drogas específicas.
Então, a “incompreensibilidade” dessas “crises de pânico” foi um dos
argumentos usados em favor de inúmeras hipóteses biológicas, elaboradas
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 79, maio 2000
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para explicar os enigmas propostos por este “transtorno”. O fenômeno deveria ser considerado como de natureza estritamente biológica, independente
da vida psíquica e da história do indivíduo. Inclusive, acrescenta o palestrante,
muitos autores propuseram que a abordagem psicanalítica deveria ser descartada, já que corresponderia à introdução de uma preocupação suplementar, inútil para um paciente que sofre com uma doença orgânica.
Em relação ao seu livro, afirma que pretende introduzir uma perspectiva psicanalítica – obviamente não querendo demonstrar a superioridade de
uma abordagem teórica sobre as demais no campo da psicopatologia –,
mas mostrando como se configura o campo do pânico quando este é estudado a partir do vértice da psicanálise. Sua hipótese de trabalho, segundo
consta em seu livro, é a de que a noção freudiana de desamparo é capaz de
situar o problema psicopatológico do pânico em um plano metapsicológico,
abrindo a possibilidade de um discurso psicanalítico sobre este estado afetivo.
A partir daí, aponta que já podemos abrir um debate, que permita
especificar o pânico no interior desse vasto campo “angustiante”, por isso
traz abordagens de Freud, Lacan e outros que tecem considerações importantíssimas sobre o tema.
Luzimar Stricher
RELENDO FREUD E CONVERSANDO SOBRE A APPOA
O HOMEM MOISÉS E A RELIGIÃO MONOTEÍSTA (1939 [1934 - 1938])
de textos freudianos dedicados às questões do inconsciente e do social.
Fazendo um esforço para nos desvencilharmos do encantamento que
as formulações deste texto freudiano nos provoca, atentemos para o modo
como Freud tece sua linha argumentativa.
Estabelece uma via que vai dos processos neuróticos aos fenômenos
religiosos, do romance individual ao acontecimento histórico, do trauma à
tradição de um povo. Freud publicou este texto não sem antes hesitar.
O homem Moisés e a religião monoteísta, título que figura na edição
alemã, é, então, muito mais do que uma mera aplicação da psicologia do
indivíduo à psicologia social.
Como se pode observar, a referência à herança paterna e à herança de
um povo ocupa um lugar nodal neste texto. Eis aí uma questão que pode
guiar-nos no debate acerca da transmissão da psicanálise no Conversando
sobre a APPOA.
PROGRAMA
RELENDO FREUD
Sexta-feira – 19 de maio
18h30
Abertura: Cartel do Relendo Freud – Ieda Prates
O homem Moisés, um romance histórico – Valéria Rilho
Nos dias 19, 20 e 21 de maio, estaremos nos reunindo em Canela
para mais uma edição do Relendo Freud e Conversando sobre a APPOA.
O texto escolhido para animar o nosso trabalho deste ano surge na
esteira de nossas indagações sobre o lugar do Outro no Brasil e em outras
paragens, tema do Congresso de Psicanálise da APPOA “Brasil: descoberta V invenção” e do Colóquio Internacional APPOA/Associação Freudiana
Internacional, que acontecerão no mês de outubro.
O homem Moisés e a religião monoteísta, precedido de Totem e tabu
(1912-13) e Psicologia das massas e análise do eu (1921), integra uma série
Sábado – 20 de maio
9h30
Porque só Freud poderia ter escrito “O homem Moisés”...? – Maria Auxiliadora
Sudbrack
Afinal, quem tinha razão? Entre Freud e a Bíblia – Maria Folberg
Coordenação: Henriete Karam
10h30 – Coffee-break
11h – Os filhos escolhidos e a recusa do ato: os destinos do narcisismo – Mario
Fleig
Coordenação: Luzimar Stricher
Tarde livre
20h30 – Coquetel de confraternização por adesão
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CONVERSANDO SOBRE A APPOA
Domingo – 21 de maio
9h30
A transmissão da psicanálise: comissões de ensino, eventos, publicações, analistas-membros, biblioteca e serviço de atendimento clínico
12h – Encerramento – Alfredo Jerusalinsky
INSCRIÇÕES:
Abertas a todos os associados e freqüentadores do ensino da APPOA
LOCAL: GRANDE HOTEL CANELA – Rua Getúlio Vargas, 300 – Canela/RS
Tel./Fax: (54) 282 1285 e-mail: [email protected]
VALOR DE DIÁRIAS (por pessoa):
Chalé / apto. sgl.
R$ 70,00 + 10% Chalé / apto. qdpl.
R$ 37,00 + 10%
Chalé / apto. dbl./tpl. R$ 40,00 + 10% Buffet (almoço ou janta) R$ 8,00 + 10%
CONGRESSO DE PSICANÁLISE
Informamos que o Congresso da APPOA acontecerá no Salão de
Atos da UFRGS, nos dias 26 a 29 de outubro. Já foram confirmadas as presenças de: Charles Melman, Roland Chemama, Contardo Calligaris e Maria
Belo, entre outros.
Articulado ao Congresso, estaremos promovendo, em conjunto com a
Association freudienne internationale - AFI, o Colóquio “Questões sobre o
Outro” (nos dias 30 e 31 de outubro).
Em breve, estaremos divulgando os programas.
Comissão de Eventos
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CARTEL DO INTERIOR
Informamos que nossa próxima reunião será em Canela, no Relendo
Freud e Conversando sobre a APPOA.
O horário combinado para essa reunião do cartel, é no dia 21 de
maio, às 8h e 45min, lembrando que está aberta a todos os interessados.
JORNADAS PREPARATÓRIAS PARA O CONGRESSO
Com a realização da jornada de trabalhos em Santa Maria/RS, tem
início, no interior do Estado, as atividades preparatórias ao Congresso da
APPOA. O tema “Brasil: descoberta V invenção”, tomado como um significante, nos faz trabalhar as diversas possibilidades de interpretação e análise
dos efeitos em nossa cultura. Assim, incentivar uma discussão sobre os
aspectos culturais particulares de cada região e as peculiaridades da prática
clínica local foi uma das conseqüências mais diretas. A Coordenação Preparatória do Congresso, expressando um desejo da Associação, espera que
estas iniciativas, que acontecerão ao longo do ano, sejam parte deste processo que visa, além do Congresso de outubro, reafirmar e ampliar o exercício de laços de trabalho que se constróem e renovam desde o início da
APPOA. Além da jornada em Santa Maria (e do evento que se realizará no
mês de maio, em Bento Gonçalves, junto à Fenavinho) estão previstos encontros no sul do Estado, na região das Missões e na Serra Gaúcha.
SANTA MARIA
500 ANOS: REDESCOBRINDO AS ORIGENS
E CONSTRUINDO UMA HISTÓRIA
Em que a história ou as origens de uma cidade, estado ou país podem
interessar à psicanálise? O que o relato ou a transmissão dos saberes entre
as gerações, a tradição, importam para os analistas e de que forma esse
registro se torna memória, recalque, sintoma?
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As produções discursivas indicam uma origem determinada, um traço
na constituição dos sujeitos que ali são inscritos pela filiação. Vergonha ou
orgulho parecem ser os traços mais comumente manifestados pelas pessoas, quando interpeladas para falar sobre sua raça, etnia, ou descendência...
Não temos como escapar da nossa origem, mesmo que quiséssemos, o
sobrenome, o gesto, o sotaque, o cabelo ou a cor dos olhos nos inscreve
nessa história, produzindo uma dívida que nos cabe assumir e em algum
momento pagá-la com o repasse.
No Brasil, país-continente, do futuro, da miscigenação, parece não
haver unanimidade sobre o que é ser brasileiro, sobre uma identidade nacional. Além da língua, o que nos une?
De que forma as diferentes colonizações e imigrações recortaram o
Brasil, trazendo suas recordações, suas filiações primeiras, tendo, ao mesmo tempo, que fazer seu nome numa nova terra? E como isso repercute na
clínica pela via do relato dos pacientes?
O Núcleo Psicanalítico de Santa Maria, a Associação Psicanalítica
de Porto Alegre e o Centro Universitário Franciscano, reconhecendo a importância do tema, convidam profissionais, alunos e interessados a participar
desta jornada.
PROGRAMA
05 de maio 2000 – Sexta-feira
19h30
Brasil - memória e invenção. Lúcia Serrano Pereira
A família vista pelo direito. Roger Raupp Rios
A campanha de Getulio Vargas e a colonização alemã. Angélica Ruiz Veras
06 de maio 2000 – Sábado
08h30
História da cidade: ecologia ou memória. Paula Uglione Ritter
História e religião na Quarta Colônia Imperial do RS. Edir Brondani
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Mostra Fotográfica - Cultura material: arte, design e tecnologia na 4ª colônia de
migração italiana. Sérgio Brondani
10h30
O fascínio da brasilidade. Carmen Backes
Redescobrindo o Brasil: vicissitudes do aprender. Norton Cezar Rosa Jr.
14h
Os saberes populares: reminiscências ou resistências. Alberto Manuel Quintana
O homem Moisés e o Ato Fundador. Mario Fleig
15h45
A história oficial. Conceição Beltrão
História e ficção na clínica psicanalítica. Volnei Antonio Dassoler
BENTO GONÇALVES
A comissão organizadora da XI Festa Nacional do Vinho, a Associação Psicanalítica de Porto Alegre e o Centro Psicanalítico de Bento Gonçalves, convida-os a participar do evento: Pensando a imigração: língua e história.
A Jornada terá lugar em Bento Gonçalves, Hotel Dall‘Onder (rua Erny
H. Dreher, 197, sala Chardonnay) no dia 13 de maio com início marcado para
8h e 30min.
PROGRAMA
MESA 1:
Um caso no qual a avó e sua língua precisavam ser esquecidas – Conceição
Beltrão, psicanalista;
A influência da cultura na linguagem do sintoma – José Zir, gastroenterologista;
A educação no tempo do Império – Nadir Bonini Rodrigues, historiador;
Intervalo: Apresentação do CD-Rom “Imagens e Palavras”, cedido pela UNISINOS
e sob a coordenação de Cleci Favaro.
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NOTÍCIAS
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MESA 2:
A antiga colonização italiana e a religião: graças a Deus? – Luciane Dal Vesco
Ferrari, psicanalista;
Bordando enquanto trabalham, os panos de prato nas casas dos imigrantes –
Cleci Favaro, historiadora;
O que significa perguntar: qual é a tua origem? – Mario Fleig, psicanalista.
Portanto, apresentamos aqui uma das reuniões preparatórias que enlaçam a instituição e a comunidade, ampliando o espaço de discussões que
vem sendo trabalhadas no interior da APPOA (cartel preparatório para o Congresso, no cartel do Interior e cartel preparatório para o Relendo Freud).
Inscrições no local, sem taxa, mas com vagas limitadas.
CONVERGÊNCIA PROMOVE ENCONTRO NO RIO DE JANEIRO
Nos próximos dias 27 e 28 de maio estará acontecendo, no Rio de
Janeiro, o primeiro encontro preparatório ao Congresso da Convergência,
Movimento Lacaniano para a Psicanálise Freudiana (previsto para fevereiro
de 2001, em Paris).
Na ocasião, as instituições brasileiras que assinaram a convocatória
de Barcelona, assim como outras entidades psicanalíticas que estão trabalhando sua entrada no Movimento, terão a oportunidade de discutir questões
que afetam sua prática, assim como as vicissitudes dos laços interinstitucionais no Brasil.
A APPOA, como uma das oito instituições brasileiras signatárias da
Ata de Fundação da Convergência, estará presente através de seus representantes, tanto na primeira parte, cujo tema será “O inconsciente”, como
no segundo dia da jornada, quando os trabalhos institucionais serão discutidos.
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“O QUE QUEIMA DESDE A PUBERDADE”
No dia 15 de abril, teve início na APPOA a série de seminários ministrada pelo psicanalista Rodolpho Ruffino, já conhecido por sua extensa pesquisa e produção acerca do tema adolescência. Foi uma oportunidade na
qual várias questões em torno da clínica e da teoria puderam ser levantadas.
Rodolpho Ruffino iniciou falando da pouca atenção delegada à adolescência na teoria psicanalítica, destacando, neste sentido, a ausência deste
conceito tanto em Freud quanto em Lacan. Ele apontou o fato de Freud
referir-se à expressão “puberdade”, dirigindo sua atenção ao caráter econômico, ou seja, ao equilíbrio das “descargas” pulsionais. Lembrou-nos ainda,
de que no “Projeto para uma Psicologia Científica”, texto de 1895, Freud
concebe a puberdade como uma possibilidade de “arranjo” em um aparelho
psíquico em estado de “desarranjo”. Este ponto na teoria permitiria tomar a
adolescência como um momento decisivo para a constituição subjetiva, um
momento re-estruturante, no entanto esta questão desdobrou-se por outros
caminhos. A perspectiva econômica colocava limites para pensar a adolescência e Freud não contava com os conceitos de Real, Imaginário e Simbólico, fundamentais para compreender o que está em jogo na adolescência.
Numa outra via, a leitura de Ernest Jones acabou tendo efeitos sobre as
traduções e biografias de Freud, de tal modo que os ingleses apostaram
mais na idéia de adolescência como “turbilhão” e tomaram-na numa vertente
evolutiva.
Uma das questões trabalhadas no seminário foi a importância de
desvincular a adolescência de um processo evolutivo, para compreendê-la
como uma operação psíquica. Segundo Ruffino, a problemática adolescente
é detonada pelo Real, sendo o Real tomado aqui não somente no sentido do
que vem do organismo, mas também naquilo que as mudanças do corpo
podem produzir sobre o olhar do outro, por exemplo, na mãe que estranha o
cheiro do filho adolescente e percebe-se não tendo o mesmo acesso ao seu
corpo. Em um processo aproximado ao que foi vivido no Estádio do Espelho,
na adolescência o olhar do outro tem o seu peso, e produz um estranhamento,
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SEÇÃO TEMÁTICA
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uma desacomodação para o sujeito, do mesmo modo que seu corpo passa
a ser tomado num lugar diferente aos olhos do outro.
Para Ruffino, a puberdade configura-se como uma forma de trauma,
sendo que a eclosão do Real exige do adolescente ressituar-se no Simbólico. As mudanças pubertárias são vividas como trauma devido ao declínio da
função paterna na cultura, o que convoca o sujeito adolescente a um trabalho psíquico, no qual é preciso construir uma passagem para a vida adulta
sem poder apoiar-se em dispositivos sociais – rituais, cerimônias –, que
autorizem e garantam esta passagem. Nos rituais, a função paterna era
sustentada pela rede simbólica, não estava encarnada em uma figura que
deveria dar conta deste lugar. Foram levantadas questões a respeito do que
poderia estar cumprindo hoje a função de ritual de passagem, dado que não
encontramos na atualidade um dispositivo que contenha a eficácia simbólica
dos rituais das sociedades tradicionais. Ruffino afirma que o ritual, atualmente, precisa ser substituído por um trabalho singular, no qual cada sujeito
encontre seu modo de simbolizar as mudanças convocadas pela puberdade.
Lidar com o trauma da puberdade implicaria, segundo Ruffino, o trabalho de
construir uma paternidade que escape à paternidade infantil, onde o Pai se
encarna num personagem. A adolescência seria um momento privilegiado
de descoberta da função paterna, e o trabalho psíquico fundamental de um
adolescente seria alcançar a questão do pai para além de uma encarnação.
Compreender a adolescência enquanto operação psíquica traz como
efeito a impossibilidade de tomá-la como um momento da evolução cronológica. Neste sentido, Ruffino afirma que o único tempo possível para se pensar a adolescência é o Tempo Lógico. Não há um tempo específico para o
início e o fim do trabalho psíquico ao qual um adolescente precisa dedicarse. A adolescência não se dá somente numa proximidade temporal à puberdade, é comum que ela se estenda por um longo tempo. Cabe considerar,
também, que um trabalho psíquico pode encontrar êxito ou não, sendo que a
grande maioria das adolescências não são resolvidas e convocam um trabalho de recalque. Desde aí, emergem questões deixadas em aberto: haveria
um final da adolescência? O que restaria de não elaborado ao fim da opera-
ção adolescente? Poderíamos estabelecer uma associação entre o término
da adolescência, na passagem aí implicada, e o término da análise, no passe?
Escutando Ruffino, percebemos que a adolescência é um momento
privilegiado para se pensar questões fundamentais para a psicanálise, pois
ali coloca-se em jogo a estrutura mesma do sujeito, e é por isso que, segundo ele, ao pensar a adolescência como operação psíquica, nos vemos convocados a rever várias questões teóricas. Neste sentido, este seminário não
se dispõe somente a pensar na adolescência, mas a retomar pontos fundamentais da clínica e da teoria psicanalítica. Instigados por estas e outras
questões levantadas por Ruffino, renovamos, o convite para os próximos encontros. Abaixo lembramos a programação dos seminários de maio e junho.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 79, maio 2000
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 79, maio 2000
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PROGRAMAÇÃO (sábados, das 09 às 14h)
13/05 – A invocação do Pai na adolescência
24/06 – Do suposto limite do tratar do real pelo simbólico, uma interrogação
Ana Laura Giongo Vaccaro
ENSINO – ARGUMENTOS
SEMINÁRIO – A CONSTRUÇÃO DO FANTASMA
Freud, ao deparar-se com as produções fantasmáticas de seus pacientes, elaborou a noção de ‘realidade psíquica’ do sujeito como sendo produções
individuais. A existência real de sedução feita pelo adulto não tem mais consistência explicativa para o que seja o trauma na neurose. Permanece, no entanto,
uma questão: se não houve trauma real, qual é a origem destas fantasias?
Freud responde esta indagação com uma elaboração das fantasias originárias.
Lacan retorna à leitura freudiana e inscreve a fantasia no âmbito de uma
estrutura significante e não somente imaginária. Para Lacan, a construção do
fantasma vem responder à sujeição original do sujeito ao Outro.
O que é fantasia? Qual é a função da construção do fantasma na clínica?
Como podemos articular a temática da construção do fantasma do sujeito com o
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NOTÍCIAS
SEÇÃO TEMÁTICA
que seja a construção do espaço/laço coletivo? Estas são algumas das questões que orientarão nossas discussões.
Coordenação: Cristian Giles
Seminários quinzenais, às terças-feiras, às 20h.
Local: Espaço de Estudos Psicanalítico – Ijuí.
SEMINÁRIO – PSICOSSOMÁTICA: INTERDISCIPLINA E TRANSDICIPLINA
A psicossomática é hoje um tema abordado por múltiplas disciplinas –
inclusive a psicanálise – geralmente de forma isolada, com pouca ou nenhuma
interlocução e questionamento recíproco entre elas. A abordagem multidisciplinar
é, por isto, empobrecedora e reducionista, pois cada disciplina cuida de seu
objeto de estudo, sem levar em consideração às demais, bem como ao sujeito
que está sendo atendido de forma fragmentada pelas mesmas.
Este seminário visa à constituição de um espaço comum, no qual os
participantes (de diferentes especialidades), partindo do desejo de interdisciplinariedade, possam construir uma rede de significações que articule as respectivas disciplinas e transcenda as fronteiras dos saberes de cada uma. Isso
não implica uma descaracterização de cada disciplina, mas, sim, a construção
de um saber compartilhado, a partir do trabalho das diversas especialidades e
de intervenções clínicas específicas dos participantes.
A psicanálise, neste contexto, é o fio condutor da comunicação interdisciplinar, através uma concepção compartilhada (a ser construída no decorrer do
seminário) a respeito do sujeito do desejo e do posicionamento ético comum
que decorre da mesma, o que permite a convergência das diferentes especialidades na transdisciplinariedade.
Com este objetivo, serão trabalhados textos psicanalíticos de diferentes
autores, bem como contribuições das disciplinas dos participantes presentes
ou de convidados, centrados em torno de intervenções clínicas.
C
omo de costume, o mês de maio é marcado por nosso encontro
anual em Canela. Um momento muito especial para retomarmos a
leitura dos textos de Freud. O escolhido para este ano é “Moisés e
o Monoteísmo”. O título mesmo já lança interrogações, pois se consultarmos o original em alemão – Der Mann Moses und die Monotheistische Religion
– encontraremos uma alusão ao homem Moisés, questão fundamental, a
partir da qual se desenvolve toda a elaboração de Freud sobre a fundação da
religião judaica em torno de um pai estrangeiro.
Desde o homem Moisés, desenrola-se um fio condutor que nos leva a
testemunhar a implicação do homem Freud na produção do texto. Como se
mirássemos através de um caleidoscópio, ao lermos os trabalhos de Maria
Auxiliadora Pastor Sudbrack, Anna Irma Callegari e Maria Elisabeth da Silva
Tubino, vamos desvelando diferentes nuances da história da escrita deste
texto e do fascínio que o personagem Moisés exercia sobre Freud.
O trabalho de Rodolpho Ruffino discute as hipóteses e formulações
teóricas de Freud sobre a questão da transmissão, levando em conta o espírito naturalista de sua formação e sua época. Falar de transmissão implica
falar de um Pai simbólico, fundador e, nesta via, contamos com o texto de
Alfredo Jerusalinsky sobre o desejo paterno.
Destacamos, ainda, uma entrevista com Charles Melman, realizada
por Conceição Beltrão e Mário Fleig, e a resenha do livro de Richard Bernstein
– Freud e o legado de Moisés, por Luzimar Stricher – que vêm compor este
número do Correio da APPOA, o qual se traduz em um convite para nos
aventurarmos no texto freudiano.
Ana Laura Giongo Vaccaro
Márcia Ribeiro
Maria Lúcia Müller Stein
Coordenador: Jaime Betts
Freqüência: mensal, sábado das 10 às 11h e 45min
Local: Novo Hamburgo
Informações e inscrições: (51) 5941561 e 99880798
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SEÇÃO TEMÁTICA
SUDBRACK, M. A. P. Moisés é um plural?
MOISÉS É UM PLURAL?
Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack
No caminho de casa, Hans perguntou ao pai:
“O professor Freud conversa com Deus?
parece que já sabe tudo, de antemão”.
“Pequeno Hans”, Freud.
E
stá em todos os jornais desta semana: “O Papa João Paulo II refaz o
caminho de Moisés, em sua peregrinação à Terra Santa – Jordânia e
Israel – realizando parte do percurso de Moisés durante o êxodo do
Egito, segundo a Bíblia. Nessa ocasião, visitará o monte Nebo, próximo de
Amã, local onde Moisés, conforme a tradição, teria avistado a Terra-Prometida, antes de morrer. Também aí conhecerá uma igreja do século IV,
construída no lendário lugar onde Moisés morreu”.
Ainda no mês passado esteve no monte Sinai – Egito – na terra em
que Moisés teria recebido os Dez Mandamentos. Também é esperada uma
carta do Papa, intitulada “Memória e Reconciliação: A Igreja e os Pecados
do Passado”, pedindo perdão por “todas as faltas graves do passado”, ao
longo da História ,como a “utilização da violência a serviço da verdade”, incluindo a Inquisição, a colaboração à escravidão na América e a posição omissa da Igreja no extermínio dos judeus pelos nazistas, durante a Segunda
Guerra Mundial.
Reportemo-nos, agora, a Freud. Ele sempre teve uma especial fascinação pela figura de Moisés, por isso não é sem razão, que fizesse constantes e demoradas visitas à igreja de S. Pietro in Vincoli, em Roma, a cada
viagem àquela cidade.
Em 1914 publica anonimamente um minucioso trabalho intitulado O
Moisés de Michelangelo, onde numa série de confidências, ele expressa sua
grande admiração por tudo o que aquela estátua pudesse representar: o
olhar colérico de Moisés enraivecido, olhar que Freud procurava sustentar,
“... como se eu mesmo pertencesse àqueles que seus olhos fulminavam,
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aquela turba incapaz de manter-se fiel a nenhuma convicção, que não tinha
fé, nem sabia esperar, e que se rejubilava ao reconquistar seus ilusórios
ídolos”.
Assim, a representação de Moisés lhe é intensa e perturbadora: Freud
vê, num de seus “sonhos romanos”, uma Roma tomada em penumbras, tal
como a Terra Prometida que o herói bíblico contempla do monte Nebo...
Ainda nessa obra, baseado em suas observações da estátua de mármore, vai dizer ao leitor das diferenças que ele encontra entre o Moisés de
Michelangelo e o da Bíblia: “... este não é o Moisés da Bíblia, porque este
teve uma crise de ira, jogou longe as Tábuas e quebrou-as. Esse Moisés
deve ser um homem inteiramente diferente, um novo Moisés da concepção
do artista (p.273). E mais adiante: “Mais importante é a alteração que, em
nossa suposição, Michelangelo fez no caráter de Moisés(...), dessa maneira, acrescentou algo novo e mais humano à figura de Moisés” (p.275).
Essa forma de pensar viria a ser apenas de Michelangelo? Vejamos o
que se passara em Freud: em carta a Lou Andreas-Salomé (1935), Freud
comenta sobre o poder com que a figura de Moisés assombrou-o durante
toda a sua vida. Assim, seguindo um vínculo com as afirmativas apresentadas há vinte e cinco anos atrás em Totem e Tabu, começa a trabalhar em O
homem Moisés e a religião monoteísta, título que J. Strachey mudou para
Moisés e o monoteísmo.
Freud se pergunta como se teria criado, realmente, o caráter particular do povo judeu, chegando à conclusão que este se devia a uma criação de
Moisés. Então, quem foi esse Moisés e o que realizou? A resposta está
neste texto, aliás, o último que Freud publicou, e que consta de três ensaios, os dois primeiros Moisés, um egípcio e Se Moisés fosse egípcio foram
escritos em Viena, sob o período da ameaça nazista; porém o terceiro –
Moisés, o seu povo e a religião monoteísta – já residindo em Londres onde,
afirma, “novamente posso falar e escrever, (...) e pensar”.Isto porque a dita
proteção da igreja Católica na Áustria, a qual Freud tanto cuidava para não
melindrá-la, não passara, no momento em que se efetuava a invasão alemã,
de um mero engano, mostrando-se como “uma cana quebrada”, segundo
sua expressão tirada da Bíblia.
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SEÇÃO TEMÁTICA
SUDBRACK, M. A. P. Moisés é um plural?
Freud, no começo de sua tese, dá um detalhe crucial: o nome de
Moisés é um nome egípcio. De acordo com a interpretação de diversas lendas bíblicas, Freud sustenta que os fatos históricos ocorrem de modo exatamente contrário de como nos chegaram. Não foi Deus quem escolheu o povo
judeu para que o adorasse e obedecesse a seus mandamentos, mas sim,
Moisés, aristocrata egípcio que escolhera o povo judeu para perpetuar nele
um antigo monoteísmo egípcio. Como acontecera? Moisés talvez fosse um
príncipe da dinastia real e zeloso adepto da fé monoteísta que o faraó egípcio
Amenófis IV havia transformado na religião dominante, por volta de 1350 a.C.
O Egito estava no apogeu de suas conquistas, poder que se refletiu
no desenvolvimento de idéias religiosas, sob a influência dos sacerdotes do
deus solar ON; surgindo, nesse momento, a idéia de um deus universal
ATEN. Contra o politeísmo então reinante, o jovem faraó empenhou-se em
promover a nova religião, que tornou seu deus único e universal, ATON, deussol, objeto de adoração exclusiva. No seu ardor pela neoreligião, o rei até
mudou o seu nome, passando a chamar-se AQUENATON, mandando apagar, ao mesmo tempo, as inscrições onde aparecia o nome de seu pai.
Rejeitava o antropomorfismo, magias, bruxarias e não aceitava vida após a
morte.
Com sua morte, porém, as coisas mudaram: não havia possibilidade
de continuação dessa religião no Egito, já que ela não era popular e os
sacerdotes queriam vingança por terem sido excluídos; assim, voltaram todos aos antigos deuses.
Moisés, um monoteísta convicto, resolve salvar a religião de Aton e,
tendo consciência de que não haveria possibilidade de continuá-la no Egito,
decidiu, para tanto, escolher uma atrasada tribo semita que lá vivia, libertouos da escravidão e os fez submeter-se ao costume egípcio da circuncisão,
para que não se sentissem inferiores àqueles, levando-os para o deserto,
onde fundou uma nova nação.
Entretanto, Moisés revelou-se ainda mais exigente, excedia a rigidez
da religião de Aton, impondo-lhes preceitos e condutas por demais severas:
uma das mais importantes consistia na proibição de fabricar imagem de
Deus, deveriam, sim, adorar um Deus que não podiam ver, um Deus que não
teria nome nem semblante. É o triunfo da intelectualidade – geistigkeit –
comenta Freud -; origem do simbólico?
O povo, não suportando aquela tão áspera vida, revoltou-se e assassinou Moisés. A lembrança desse ato é recalcada. E seu povo retornou aos
antigos ídolos.
Acompanhando os estudos de Edouard Meyer e Ernst Sellin, Freud
considera que as tribos judaicas, que mais tarde se desenvolveram no povo
de Israel, adquiriram uma nova religião num determinado ponto do tempo. No
entanto, isso não se realizou no Egito ou no sopé de uma montanha na
Península do Sinai, mas numa certa localidade conhecida como MERIBA –
CADES, um oásis rico em águas, no sul da Palestina (próximo, talvez ao
atual Negev – cf. Bíblia, Números XX, XIV).
Portanto, nesse lugar, eles assumiram a adoração de um deus local,
vulcânico, demônio sinistro sedento de sangue, de nome JAVÉ (Jahve), provavelmente pertencente às tribos vizinhas dos midianitas.
Importante é ressaltar que o mediador entre esse deus e o povo, na
fundação dessa religião, era também chamado Moisés (... e apascentava o
rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote em Midian... – Exodo III, I). Nesse
ponto Freud afirma que é esse outro, o Moisés que nós chegamos a conhecer, o ancestral dos sacerdotes de Cades, ou seja, uma figura oriunda de
uma lenda genealógica colocada em relação a um culto, um pastor a quem
Javé se revelou, diferente da personalidade histórica, de um Moisés pertencente à realeza egípcia. É este, o egípcio, o Homem Moisés, o que provavelmente exerceu uma influência muito mais poderosa sobre a evolução posterior do povo, porque trouxe de seu país uma tradição que faltou aos outros,
além de que, certamente, ter sido acompanhado por um séquito de seguidores mais chegados, inclusive escribas e professores, provavelmente os Levitas, da tribo de Levi, razão porque seja apenas entre estes que os nomes
egípcios ocorram mais tarde.
Os Levitas multiplicaram-se nas gerações seguintes, fundiram-se, mas
permaneceram fiéis ao seu senhor egípcio, preservando a sua memória e
continuando a tradição de suas doutrinas, na figura dos Profetas, pelos tempos afora. Formavam, pois, uma minoria culturalmente influente e superior
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SUDBRACK, M. A. P. Moisés é um plural?
ao resto da população.
Nessa sequência, Freud sustenta a existência de acomodações e
acordos entre as duas religiões – Entstellung – , isto é, deformações e deslocamentos ocorridos entre elas, com o intuito de demonstrar a grandeza e o
poder do novo deus Javé, renegando, inclusive, o longo intervalo ocorrido
entre uma e outra. Desse modo, o homem Moisés foi fundido com a figura do
fundador religioso posterior, o genro do midianita Jetro, emprestando-lhe seu
nome Moisés.
“Estamos justificados em separar as duas figuras e em presumir que
o Moisés egípcio nunca esteve em Cades e nunca escutou o nome de Javé,
e que o Moisés midianita nunca esteve no Egito e nada sabia da Aten. A fim
de soldar as duas figuras, a tradição ou a lenda receberam a missão de
trazer o Moisés egípcio a Midiã, e vimos que mais de uma explicação disso
era corrente.’’(p.57)
Freud ainda acrescenta que o homem Moisés, dando essa religião a
seu povo, imprimiu neles esse caráter que os mantinha unidos, ou seja, a
posse comum de uma certa riqueza intelectual e emocional, escolhendo-os
a participar de uma nova idéia de Deus.
Ao final de seu II ensaio, após uma longa argumentação, Freud faz
uma interessante conclusão, diz ele que a história judaica nos é familiar por
suas dualidades, ou seja, dois grupos de pessoas que se reúnem para formar a nação; dois reinos – de Israel e Judá – em que esta nação se divide;
dois nomes de deuses nas fontes documentárias da Bíblia; a fundação de
duas religiões – a primeira recalcada pela segunda, emergindo depois vitoriosamente; e dois fundadores religiosos, ambos chamados pelo mesmo nome
de MOISÉS, cujas personalidades se distinguem uma da outra. Podemos,
ainda, acrescentar os dois nomes do faraó: Amenófis e Aquenaton. Portanto, essas dualidades são conseqüências necessárias uma da outra, pelo
fato de uma parte do povo ter tido uma experiência traumática, a qual a outra
escapou.
Este é um texto de Freud de uma enorme complexidade, apresentando repetições de assuntos que vêm e vão, sempre acrescentando ou modificando algo, difíceis de serem atraídos por um fio condutor, circulando sobre
variedades de temas , mais parecendo os trajetos errantes dos judeus no
deserto. O próprio Freud nos diz que falta–lhe “a consciência de unidade”,
mas não a “ausência de convicção na correção da conclusão”, a qual ele
adquirira já em 1912, ao escrever “Totem e Tabu”. E acrescenta: “Desde
aquela época, nunca duvidei que os fenômenos religiosos só pudessem ser
compreendidos segundo o padrão dos sintomas neuróticos individuais que
nos são familiares(...)”.
Para tanto, transita através de conceitos como o trauma primitivo, a
defesa, latência, tradição, clínica da neurose, retorno parcial do recalcado,
relacionado, este último, ao assassinato de Moisés – idem o suposto assassinato judicial de Cristo – com o do Pai Primevo, após um longo período de
latência entre eles. É como se a gênese do monoteísmo não pudesse passar sem essas ocorrências, nos diz Freud. As mortes de Moisés e de Cristo
passam para primeiro plano como causas, já que elas significaram o assassinato primeiro.
Assim, uma tradição deve ter experimentado a sorte de ter sido
recalcada, demorando-se no inconsciente, antes de se capacitar a apresentar efeitos tão poderosos no seu retorno, como no caso da tradição religiosa.
São as metáforas das leis do funcionamento psíquico. A religião judaicocristã é fundada no amor ao Pai e no recalcamento da hostilidade contra ele.
O “grande homem” Moisés é a figura paterna de autoridade, não só amado,
como temido, ambivalência que faz parte do âmago desta relação. É o verdadeiro Pai, porque é o pai morto.
O interessante é que, na antiguidade, não foi encontrado nenhum texto que mencionasse traços sobre a neurose obsessiva, isto é, sobre o Pai
morto, a não ser, após à fundação da religião judaica. Ora, a religião, ao
proporcionar a filiação, realiza uma operação de simbolização do real. Também, isso é relativo porque a religião faz com que o Urverdrängt, o
recalcamento originário, seja apenas parcialmente recalcado. É a nossa
conhecida e ambivalente recusa de que haveria uma falha no grande Outro.
Outra abordagem nos mostra que o Pai no obsessivo apresenta-se
“bifurcado”, numa dublagem, onde ele produz paradoxalmente o desfalecimento imaginário do pai efetivo, ao mesmo tempo em que provoca simbolica-
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mente um segundo pai, ideal, ali se mantendo. Então, há Um – numa condição religiosa do Outro não castrado –, em oposição a sua neurótica castração imaginária.
Freud comenta que os mitos gregos homéricos não passam de fragmentos de lendas gregas, que sobreviveram de uma brilhante pré-civilização
– minóico-miceniana –, que desapareceu antes de 1250 a.C.. Penso, então,
que posso usar de liberdade para citar o mito de Édipo, mostrando a
equivocidade que ele apresenta desde a figura da Esfinge, isto é, de dois
semi-corpos, como o semi-dizer, quanto lançando a pergunta que inclui também uma tripartição: – O que é o homem? quem sabe o que ele é?. Interrogação que também se encontra implícita nos subterrâneos de O Homem
Moisés..., romance-estudo da estrutura do sujeito, e pelo qual Freud se pergunta, também, sobre seu lugar de judeu e ateu, trabalho do processo de
“homonização” que ele estende a toda humanidade.
Nos caminhos que se encontram entre Freud e o monoteísmo, podemos asseverar que somente ele, Freud, criador da psicanálise, a qual se
sustenta apenas na palavra e na falta, poderia ter escrito o Homem Moisés.
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CALLEGARI, A. I. O homem Moisés e a religião monoteísta.
O HOMEM MOISÉS E A RELIGIÃO MONOTEÍSTA
Anna Irma Callegari
“O
homem Moisés e a religião monoteísta” é uma das maiores obras de Freud, foi o último livro que publicou, e pelos conteúdos que aborda provocou ataques polêmicos na época entre
os próprios judeus e mesmo admiradores. É um livro desconcertante, difícil,
que instiga a reflexão e o questionamento, ainda hoje.
Apesar dos apelos de alguns judeus, estudiosos sobre o assunto,
que Freud não publicasse o livro, ele o lançou num período mais ameaçador
e crítico da histórica judaica.
Freud sempre teve grande interesse pela figura de Moisés, especialmente nos últimos anos de sua vida. Em seus escritos procura especificar
seu caráter distintivo e a contribuição do povo judeu, que deixou como herança na memória cultural o monoteísmo ético, a espiritualidade, (o avanço na
intelectualidade) permitindo a sobrevivência do povo judeu, a despeito das
perseguições.
A preocupação de Freud neste inabalável e constante esforço em conhecer a história milenar do povo judeu, tinha a finalidade de buscar no passado às raízes históricas judaicas que dariam sustentação no presente e
ainda exerceriam, de certa forma, a garantia de estender sua influência no
futuro.
Freud fez um longo e minucioso estudo dos fatos históricos e da religião atribuída a Moisés, dedicando-se mais intensivamente a esta pesquisa
e estudo a partir de 1930.
Os dois primeiros ensaios sobre o tema foram publicados em 1937,
pela Imago, quando Freud morava em Viena.
No primeiro ensaio ele aborda: Moisés, um egípcio. Neste texto o
autor não discute o monoteísmo, mas sustenta que Moisés libertou o povo
judeu, lhe deu as leis e fundou a religião monoteísta. Ocupa-se também na
interpretação do mito em torno de Moisés.
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CALLEGARI, A. I. O homem Moisés e a religião monoteísta.
No segundo ensaio assume a hipótese da negação do mito: Se Moisés
fosse egípcio... Afirma ser um enigma difícil de decifrar. Queixa-se da falta de
provas objetivas para sustentar a reconstrução histórica do assunto. Ele retorna
a questão do monoteísmo, a tradição judaica, a circuncisão, o assassinato
de Moisés...
O livro “O homem Moisés e a religião monoteísta” se destaca pela
criatividade que Freud se dedica ao tema. Há um certo fascínio no conteúdo
e nos argumentos que o autor apresenta. Escrito em sua forma definitiva
quando Freud já tinha passado os oitenta anos, o livro constitui um último
esforço criador (Jones, 1976).
A apresentação excepcional que foi escrita explica a forma irregular
do livro. Freud inicia o primeiro prefácio dizendo: – “Com a audácia daquele
que tem pouco ou nada a perder, proponho-me a acrescentar a parte final
que retive sobre Moisés. É uma investida arriscada, não é uma tarefa simples”. Ele não nega a existência de lacunas e incertezas.
Quando ele retoma a continuação do livro, já na Inglaterra, escreve:
Aqui me sinto bem; agora o peso foi tirado de mim e mais uma vez posso
falar e escrever – quase disse “e pensar” – como quero ou como devo.
O livro surpreende pelo modo que foi composto e pela excentricidade
de suas conclusões. São três partes escritas em períodos diferentes e várias vezes revisadas. São dois prefácios situados no começo da terceira parte
e um terceiro localizado na metade desta última. Há inúmeras repetições e
redundâncias entre elas e também no interior de cada uma. Não era a maneira habitual de Freud escrever. Ele mesmo critica esta forma de expor seu
trabalho e se desculpa mais de uma vez.
Freud não tinha dúvida sobre o perigo que corria sua obra. Já no primeiro prefácio escreve: “... minhas forças não seriam suficientes para isso...”.
Refere-se, não só ao debilitamento dos poderes criativos, mas também as
enormes dificuldades externas que viveu na fase final: os distúrbios políticos
na Áustria, a ocupação nazista de Viena, a migração forçada para a Inglaterra e também a saúde, devido ao câncer. Constantemente preocupado com
os acontecimentos violentos que se sucediam, mostrava-se cauteloso e receoso com a publicação do livro.
Ao falar das dificuldades que encontrou na composição do estudo de
Moisés, menciona a mudança fundamental que ocorreu, dando a seguinte
explicação: anteriormente vivia sob a proteção da Igreja católica, que era
dominante no governo austríaco, e temia que a publicação do meu trabalho
resultasse numa proibição da publicação. Acrescenta: com a invasão alemã, tinha certeza de que seria agora perseguido, não apenas por minha linha
de pensamento, mas também por minha “raça”, acompanhado por muitos
amigos, abandonei a cidade que desde minha primeira infância, fora meu lar
durante setenta e sete anos.
Sobre a ocupação nazista de Viena, a migração forçada para a Inglaterra, Freud assim se expressa: se a invasão alemã me forçou abandonar o
meu lar, mas também me libertou da ansiedade de minha publicação que ela
poderia ser viável num lugar onde a psicanálise ainda era tolerada. Achei
irresistível a tentativa de tornar acessível ao mundo o conhecimento que eu
havia retido. Aventuro-me agora apresentar ao público a última parte da minha obra (p. 125).
Freud revela, com esta decisão, muita coragem e força para enfrentar
o desafio de tornar público as conclusões a que chegara na análise teórica e
prática do tema.
Em toda a sua obra é constante o questionamento em relação ao que
escreve. Ele mesmo se confessa insatisfeito e preocupado, e faz a seguinte
afirmação: Sinto-me incerto do meu próprio trabalho, falta-me a consistência
da unidade. Meu discurso é constantemente atravessado por interrogações,
aparece cheio de lacunas, de falhas, de idas e vindas. “A meu senso crítico,
este livro, que tem sua origem no homem Moisés, assemelha-se a uma
dançarina a equilibrar-se na ponta de um dedo do pé...”.
Religião Monoteísta. O estilo de Freud (1938) é espontâneo. O método que emprega convida o leitor a acompanhá-lo no seu próprio caminhar.
O leitor segue o autor e no próprio percurso constatam suas descobertas e suas contradições, suas idas e vindas. Segue o caminho ao longo
do qual o próprio investigador já viajou anteriormente (é o método que poderia
se chamar genético) (Freud, 1938).
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Neste, escreveu o que é sua própria caminhada; o autor busca descobrir aquilo que pensa e faz do leitor um acompanhante do seu andar e de sua
aventura.
E, por que não acompanhar este longo caminho percorrido por Freud?
No percurso desta leitura, nos deparamos com a nossa cultura, tradição,
ritos, mitos, lendas, esperanças, ilusões, sonhos, decepções, e no mais
íntimo de nós mesmos seguimos como se fizesse para ele nossa história!...
O livro “O homem Moisés e a religião monoteísta”, o último a ser publicado, poderia ser tomado como a última mensagem de Freud, “o canto do
cisne”. Ele pagou um preço muito alto pelo conteúdo dessa sabedoria que
lhe custou muito esforço, preocupação, sofrimento e conflito.
O conteúdo nos dá inúmeros caminhos para estudo de temas de psicanálise.
Tomamos, por exemplo, a figura de Moisés, o grande homem idealizado, que impôs uma renúncia pulsional sob a pressão da autoridade. É o pai
simbolicamente necessário como agente de castração. A função paterna
não é a simples repetição de um fato anterior, mas é algo que se impõe (o pai
deve ser morto) como uma fantasia organizadora do sujeito e da cultura.
BIBLIOGRAFIA
FREUD, S. Moisés e o monoteísmo (1939). In: _____. Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro : Imago,
1969. v. 23.
_____. Algumas lições elementares de psicanálise (1940 [1938]). In: _____.
Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro : Imago, 1969. v. 23.
JONES, E. A vida e a obra de Sigmund Freud. Buenos Aires : Hormé, 1976. v. 3.
p. 381.
JERUSALINSKY, A. O desejo paterno.
O DESEJO PATERNO1
Alfredo Jerusalinsky
A meu pai
A
modo de introdução, vamos citar Lacan. No seminário XXV, “Momento de Concluir”, ele diz: “A psicanálise não consiste em que a gente
se sinta liberado de nossos sintomas de modo algum. A psicanálise
consiste em que a gente saiba em quê está enredado.”
Vamos tentar desenodar, se isso for possível, pelo menos provisoriamente, vamos tentar desenredar uma parte dessa meada na qual estamos
enredados.
Digo, provisoriamente, porque nessa hora de trabalho que temos pela
frente, se conseguíssemos – não sei se vamos conseguir – mas se conseguíssemos desenredar algo da rede na qual estamos tomados, certamente
bastaria sairmos daqui – não digo atravessar a porta da sala, mas, quem
sabe, já atravessando a porta daqui debaixo, certamente estaríamos enredados de novo. O que de alguma maneira, me deixa tranqüilo para falar, porque
há uma certa garantia de que todos nós vamos sair daqui tal como entramos.
Não é porque a palavra não tenha seu efeito. Se não tivesse, não
estaria aqui falando. Mas qual o efeito que ela poderia vir a ter naquilo que
preserva nossa consistência imaginária?
Dito de outro modo, que, ao sairmos daqui, embora os efeitos da
palavra, cada um de nós continuará a se sentir si mesmo. Que cada um se
sinta “si mesmo”, sabemos não é mais do que um engano. Porque não há
nada mais alheio que o “si-mesmo”. Até porque para ser “mesmo”, esse “si”,
ele precisa se repetir. Dito de outro modo, tem que se advertir de que seu
segundo aparecimento não é o primeiro. Ou seja, que, como mínimo, há,
nesse aparecimento uma diferença cardinal. Isto é, do segundo para o primeiro. Senão não tem “mesmo”. Isto quer dizer que, evidentemente não há
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Este trabalho foi apresentado na Jornada da APPOA - Função paterna e o sintoma, em maio
de 1993; e publicado, originalmente e com os debates que sucederam à sua apresentação,
na Revista AM(a)RElinhaS, n. 1, ago./set. 1994, Biblioteca Freudiana de Curitiba, p. 9-24.
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um sem outro, já que, esse um para ser “mesmo”, para que esse “si” do um
seja “mesmo”, ele precisa de uma repetição. Bem, que cada um se tranqüilize ao sair daqui, comprovando que, apesar dos esforços dos analistas que
aqui falaram, continuam sendo “si-mesmo” não deixa de constituir uma certa tranqüilidade imaginária. Precisamente o fato dessa tranqüilidade ser imaginária é o que entusiasma para falar.
Isto é, sabemos que, muito além dessa consistência imaginária, a
palavra se aninha num percurso que causa efeitos bem além desta tranqüilidade, desta calmaria ilusória da repetição do “si mesmo”. A dizer verdade,
quando sairmos daqui, não seremos os mesmos, embora imaginemos que
sim.
Mas é disto precisamente que eu quero falar, porque... o quanto que
um sujeito suporta? O quê que um sujeito suporta em termos de transformação? Evidentemente, ele não pode suportar nenhuma transformação que possa
chegar além dos limites do seu reconhecimento. De seu auto-reconhecimento, isto é, ele não poderia suportar aquilo que lhe provocasse um
estranhamento. É por isso que, embora a palavra incessantemente repercuta, golpeie de um modo forte em cada um, é por isso mesmo que o sujeito
não pode senão novamente buscar o ponto de consistência imaginária aonde possa manter esse auto-reconhecimento.
Mas a questão do reconhecimento e do estranhamento que, como é
fácil de perceber, está intrinsecamente ligada com a questão especular –
isto é, com o fato de se enxergar em algum lugar, em alguém, em alguma
coisa – não precisa, evidentemente, do aparelho de vidro, mas de se enxergar em algum traço e se reencontrar ali. É fácil de perceber, então, dizíamos
que, a função de reconhecimento e do estranhamento tem uma intrínseca
ligação com o especular.
É interessante lembrarmos aqui, também, que o que permite o reconhecimento no espelho não é a mera analogia do traço, mas uma separação
entre a imagem do espelho e a posição do um, já que a imagem do espelho
representa o Outro. É esta separação entre a imagem do espelho, que não é
mais do que o que o Outro enxerga em nós – por isso a imagem do espelho
é o outro e não nós mesmos –, e o fato de nós olharmos, no espelho, para
aquele traço que nos olhos do Outro vai significar nosso reconhecimento. É
isso que faz com que o traço imaginário no espelho, ele se torne secundariamente analógico. Dito de outro modo, esse traço do espelho somente tem
uma possibilidade comparativa através do olho do Outro. É o Outro que nos
informa que esse traço o faz dizer nosso nome. A esse traço é aplicável
nosso nome, em função do que o olho do Outro vê ali. E nós não podemos
senão sermos capturados por aquele traço que faz com que esse Outro diga
nosso nome. Como vêem, não há nada mais alheio do que o si mesmo; já
que esse si mesmo que se repete no espelho somente é advertido como
repetição, como duplicação analógica, através do olho do Outro. Entenda-se
bem: se não é análogo, não é nós mesmos, mas outro que nos representa.
Interessa assinalar isto aqui porque acabamos de ver que o sujeito
não suporta além dos limites de seu auto-reconhecimento. Quero dizer que
ele é incessantemente reenviado, pela sua angústia, a encontrar o traço que,
no olhar do Outro, lhe permita reencontrar seu próprio nome. Dito de outro
modo, nos dedicamos a produzir e reproduzir incessantemente os traços
imaginários que permitam ao Outro nos reconhecer. Porque é nesse reconhecimento que podemos nos especularizar, isto é, manter a tranqüilidade
de que somos os mesmos. Embora saibamos que não somos, isto é, apesar de sabermos que passo a passo não somos já os mesmos, vamos produzir e reproduzir incessantemente os traços imaginários que conduzam o
olhar do Outro a testemunhar que somos os mesmos.
Bem, somos então reenviados a buscar uma consistência imaginária.
Quer dizer, somos reenviados incessantemente por esta impossibilidade de
nos reconhecermos a não ser através do Outro; somos reenviados, então,
por esse ato de separação entre Um e o Outro, somos reenviados a tentar
nos juntarmos com Outro penetrando no seu olhar, ou no seu dizer. Quer
dizer, vamos buscar no olhar do Outro e nas palavras do Outro o cantinho
que está reservado para nós; e, se não houver, vamos tentar conduzir o traço
e o fazermos. É por isso que a gente se arruma, se penteia – os que podem
– enfim, outros apelamos a outras coisas. O Outro do qual estamos falando
evidentemente é o Outro maiúsculo, é o Grande Outro. É o Grande Outro
simplesmente porque não se trata de qualquer semelhante. Se trata daquela
instância desde a qual a marcação de um traço em nós tem uma força
particular, isto é, tem uma capacidade de posicionar nossa condição subje-
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tiva. Não é o outro qualquer; está marcado por isso com maiúsculo, pela
capacidade que tem de instância, de nos referir, ou seja, de ser nossa referência. Bem, sabemos que este Outro, o grande Outro não é alguém em
particular. Isto é, os olhares e palavras, os textos e discursos nos quais nós
podemos encontrar traços diversos que nos dizem respeito podem estar
espalhados pelo mundo todo. Aliás, tudo está distribuído de tal modo, que,
eu diria, ao acaso. Não sabemos exatamente em que momento vamos nos
encontrar com algo que nos diga respeito desde a posição desse grande
Outro. Mas, incessantemente, nos encontramos com isso, não temos outro
remédio senão que estarmos referidos a esse olhar; estamos buscando-o
por todos os lados e, certamente, quem busca, encontra.
Acontece que esse encontro com esse grande Outro não é inofensivo.
Este encontro com o grande Outro, ele é inquietante.
No mínimo inquietante. Isto é, ali onde encontramos o traço que nos
diz respeito imediatamente um alarme surge. Uma inquietação surge, uma
agitação, porque somos incessantemente, imediatamente, convocados a vir
a nos manter nesse ponto aonde encontramos uma referência no grande
Outro que nos diz respeito. E gostaríamos imensamente que, nesse momento, isso que ali representa o grande Outro, abra sua boca e nos diga: Te
amo. Isto é, que aparecesse uma boca ali, que pudesse falar e testemunhasse que este encontro com esse grande Outro ele se realiza no campo
idílico. Porque, evidentemente, não é o único modo em que se pode realizar
este encontro.
Este encontro com o grande Outro não se realiza, não é única possibilidade que ele se realize no campo idílico, no campo do amor. Evidentemente que ele pode ficar muito duro conosco. Muito duro até o ponto de
negar-nos seu olhar; de negar-nos seu olhar de um modo inquietante. O
encontro que acabo de ter com o tempo agora, muito apesar da Neuza,
evidentemente não é tão tranqüilo. Mas, então? Então, quero fazer ainda
uma observação antes de passarmos ao ponto mais central de nosso trabalho de hoje: de que nós bem sabemos que este Grande Outro está intrinsecamente ligado a função paterna. Precisamente o fato de estar intrinsecamente ligado a função paterna é o que faz com que ele tenha, essa instância
tenha, esse poder particular e uma força particular de nos outorgar uma
referência, seja ela simpática ou não, mas uma referência. Essa função paterna que ali se cumpre, se desenvolve, se faz presente, através da instância
do Grande Outro, ela está, como acabamos de ver, intrinsecamente ligada a
uma operação lógica de separação, ou seja, não há Um sem Outro. E, então, este Um que ali nasce como obra desta separação imediatamente passa a buscar a reunião com este Outro, a re-união com este Outro, ou seja a
separação o angústia porque provoca este estranhamento que o leva a ir
buscar este traço de reconhecimento no olhar deste Outro. Isto é, uma operação lógica que conduz inevitavelmente o sujeito, nesta posição de Um, a
se dividir na busca do Outro.
Ou seja, o sujeito se instala neste Um, vai buscar o Outro, ali se divide
e tenta de novo a junção. É nesta junção, que somente pode ser imaginária,
nesta re-unificação, que ele encontra uma certa consistência, esta consistência de si-mesmo. “Ah! não sou outro, sou eu. Saí daqui marcado pela
palavra, mas ali ainda sou o mesmo.”
Isso o sujeito vai fazendo numa espécie de espiral, de circulo inacabado.
É por isso que topologicamente, Lacan inclusive a marca deste modo, como
um movimento incessante que tem uma forma topológica particular – que
agora não vamos ver, mas... – que conduz a uma reincidência da operação
lógica de separação e re-união. Digo re-união, porque este Um, que aqui
toma existência nesta separação, e somente toma existência na separação,
ele se angustia com isso e então vai buscar a sua consistência imaginária.
Mas precisamente todo este conceito de Grande Outro, que Lacan
introduz, nos evita a referência imaginária ao Pai e à Mãe. Contardo nos
lembrava isto nestes dias. Que, digamos, este Grande Outro não é nem pai,
nem mãe – ele está na ordem da função paterna, mas o personagem que
vem a cumprir esta função pode estar distribuído de um modo diverso.
Pareceria então que os personagens não tem demasiada importância. Bem isso não é assim. Os personagens são decisivos, ou seja, o terreno do imaginário não é banal. Eu diria que um dos problemas com que com
que tropeçamos na psicanálise, hoje em dia, é o fato de que tanto nos desenvolvimentos kleinianos como os desenvolvimentos lacanianos, o desejo
do qual se fala é o desejo materno. Em nenhum dos dois desenvolvimentos
se fala do desejo do pai. Não estou falando da função paterna; estou falando
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do desejo do pai, isto é, como se a função imaginária não tivesse nada a ver
com o pai. Como se a função imaginária não transitasse em sua constituição subjetiva pelo lado paterno. Não enquanto função, mas enquanto personagem. Por que estamos falando do imaginário. Lacan diz que o sujeito se
constitui no barramento do desejo da mãe e na versão significante que a
função paterna introduz, no espaço vazio que este barramento deixa. Dito de
outro modo, no espaço vazio que ocorre, que aparece na separação entre o
filho e a mãe, nesse espaço vazio um significante tem que responder. Esse
significante provem da função paterna. (Estamos resumindo). E este
significante que responde ali, nesse espaço, nesse intervalo que se abre, é
na medida em que ele seja capaz de representar ao sujeito, é nessa medida
que ele é sintoma, isto é, um significante em função imaginária. Como diz
Lacan, em seu seminário “O avesso da Psicanálise”, o sintoma poderia ter
outro nome e esse nome é “signo”. Ou seja, um significante em função imaginária. Muito bem, se se trata do barramento do desejo da mãe aquilo que
constitui o sujeito, deveríamos nos interrogar como está estruturado o desejo materno para sabermos o quê que ali vem a ser barrado. O desejo materno, partindo de Freud, tem a ver com a feminilidade. E sabemos muito bem
que a feminilidade consiste em ter que suportar que o objeto que falta à
mulher tem de vir do outro. Dito de outro modo, que a mulher seria obrigada
a suportar que a versão do objeto que lhe falta, a versão que ela terá que
carregar nas suas costas, no seu corpo (às vezes não é de costas, às vezes
é de frente), venha do outro.
Mas é no seu corpo que terá que carregar essa versão imaginária que
lhe falta. É por isso que as mulheres se arrumam muito mais que os homens. Evidentemente porque suportam o olhar do outro de um modo tal que
as implica fantasmaticamente. Isto é, as implica de raiz, é a condição – o
olhar do Outro – de que elas possam vir a ver – a ter – o objeto que lhes falta.
Dito de outro modo, a mulher depende do desejo do outro. Mas não do Grande Outro, e essa é sua desgraça; senão do outro qualquer. Isto é, qualquer
olhar para a mulher a situa a respeito dessa falta de objeto e em seguida ela
terá que responder tentando averiguar o que o outro deseja para oferecer a
ele. É por isso que Lacan dizia que a mulher é alguém que faz de tudo com
nada.
Então temos que o desejo da mulher se ordena em função do desejo
do outro qualquer. É por isso que as mulheres são o diabo. Dito de um modo
mais grosso, são todas putas. Isto é, sem insultar ninguém, elas estão disponíveis para o olhar do outro... qualquer. É verdade: quando perguntamos
para uma histérica para quem esta se arrumando, ela diz “não sei”, e é
verdade: pra todo mundo, para quem quiser.
Então, o que é ser mãe? Ser mãe... é curioso. Eu aqui abro um parêntese, porque o acesso à maternidade introduz a mulher no campo da pureza.
É paradoxal, porque na verdade sua gravidez é testemunha de que ela pecou. Mas esse pecado a transforma em pura. Isto é, ela se situa a respeito
do outro numa posição particular. Agora já não é qualquer um: é desse. É
desse que lhe veio o objeto de seu fantasma. Quer dizer, por outro lado, que
uma mulher qualquer peque é possível, mas o que faz escândalo é o pecado
da mãe, ou seja, o que faz escândalo é que uma mãe de novo entre em
relação sexual. Aliás, esta é a estrutura do Édipo, não é verdade? Isto é,
“como é que a minha mãe transa? Que horror! Uma vez que ela tinha entrado
no retiro santificado da pureza, ela reincide!”.
Desde então, o que é ser mãe? Ser mãe é desejar ser desejada por
outro qualquer para haver o objeto que ali falta. É por isso que Freud dizia
que feminilidade na menina se realiza, ou seja, adquire um certo coroamento,
uma certa coroação quando a menina brinca com a boneca. Isto é, quando
se encena a fantasia de receber de outro qualquer um filho. Mas o modo
como a menina imaginariza ter um filho não pode ser sob a forma de um
outro qualquer. Dito de outro modo, se a histeria tenta universalizar o olhar do
outro através da moda, por exemplo, de traços escolhidos como suposta
garantia de ser olhada pelo outro, evidentemente a menina, a pequena menina, não pode apelar a essa universalização. Dito de outro modo, que a histérica tenha fantasias de que há um outro do Outro, a menina não chega tão
longe com seu espírito. Ela tem que dar uma versão a esse objeto. Tem que
dar uma versão a este objeto e tem que buscá-la no olhar paterno.
Dito de outro modo, não tem outra alternativa a não ser ir buscar sua
consistência imaginária no outro personagem que não representa ainda a
sua separação. Dito do outro modo, ela acaba de se separar do corpo mater-
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no e se instalar no lugar do Um, que vai buscar no olhar do Outro algo que a
reconheça.
É ali que seu destino se bifurca. Será que vai ser sintoma no olhar da
mãe ou no olhar do pai? Para que ela possa buscá-lo no olhar do pai, o pai
tem que ser desejante. Isto é, tem que se mostrar obsceno. A obscenidade
do pai é essencial para a constituição do sintoma feminino. Numa posição
tal que o desejo da menina – o desejo feminino – escape a uma identificação
absoluta com o fantasma materno. O pai, então, como personagem é essencial. É essencial porque é ele que dá ao sujeito uma verão imaginária capaz
de lhe proporcionar consistência, ou seja, de lhe permitir um SINTHOMA, ou
seja, um sintoma na sua estrutura.
É por isto que Lacan diz que o pai não é mais do que um sintoma. O
diz no “Seminário do Sintoma”, precisamente. O pai não é mais do que um
sintoma, quer dizer, é um olhar desejante que outorga ao objeto que falta
uma versão imaginária determinada, sem a qual o sujeito não tem outra
possibilidade a não ser o retorno à re-unificação com o corpo materno. Confesso-lhes que o que me fez pensar essa questão não foi de modo algum a
proposta teórica de Lacan no Seminário do Sintoma. O que me fez pensar
isso foi um caso clínico.
Um caso clínico do qual não teria conseguido, seguramente, extrair
as suas conseqüência se não tivesse lido o Seminário do Sintoma, de Lacan.
Este caso clínico é de um menino de três anos e dez meses, que não vou
relatar em extensão, mas vou tomar um pequeno fragmento. Um menino
com uma psicose não decidida, isto é, que está a beira da psicose, à beira
da forclusão, e que é filho de sua mãe, obviamente, que foi fecundada por
esperma extraído do banco do esperma. E quando chegam na primeira entrevista, os pais se olham entre eles e se dizem entre eles: “bom vamos ter
que dizer a verdade, não é?” – isto conversando entre eles: “Sim aqui tem
que dizer a verdade...” “Bom, pois é. Então fala tu”. “Não fala tu.” “Bom, tá,
então eu vou falar.” O pai por último. Ele diz: “Ele não é meu filho”. Esta é a
apresentação deste menino. Diante do qual a mãe leva um susto e diz:
“Como não?”. “Bom acontece que ele é filho de um banco de esperma.”
E o que me determinou a pensar sobre o desejo paterno é que o pai
continua e diz, para mim: “imagine como me sinto”. Esta demanda de que eu
imagine como ele se sente mostra a posição, estritamente, do sintoma, o
ponto onde o imaginário se une com o real – que essa é a posição do sintoma. Onde o imaginário se une com o Real – “Imagine como me sinto” – é o
que testemunha da impossibilidade de desejar esse filho, a esse objeto
materno. É por isso que ela se surpreende e diz “Como não é teu filho?”.
Então é como se dissesse: Que objeto tenho eu aqui?
Bem, para concluir, vocês sabem que Lacan toma, no “Seminário do
Sintoma”, James Joyce para ilustrar, particularmente na obra Ulysses, a
posição do sintoma. Todo mundo deve saber que a vida de Joyce não foi
nada fácil, que ele viveu em condições de pobreza, de miséria, de degradação social na sua infância e juventude. Condições terríveis. E cujo pai não
podia ser investido de dignidade pelo seu alcoolismo, pela sua derrota social. Joyce coloca na boca de Stephen – personagem central a obra de Ulysses
– parlamentos que podem ser atribuídos a ele, Joyce, praticamente como
autobiográficos. Não porque contenham um relato histórico de sua vida, mas
porque Stephan fala – como um alto-falante – somente das coisas que dizem respeito a Joyce mesmo. E o que forçou provavelmente James Joyce a
fazer seu sintoma no campo da literatura, isto é, a ter que escrever de novo
o nome de seu pai na sua existência, é possivelmente o fato de ele não ter
encontrado no olhar de seu pai o desejo que lhe permitisse dar a seu sintoma uma versão imaginária que lhe tornasse possível transitar tranqüilamente
pela vida. Assim, Joyce teve que se agarrar à escritura, ou seja, se viu na
necessidade de instalar uma letra que pudesse cortar o real, isto é, que
pudesse fazer ali um Outro do qual ele obtivesse um olhar. Um olhar vindo do
leitor ao qual ele convoca a compreendê-lo – função imaginária, como este
pai que dizia “Imagine como me sinto” – a compreendê-lo numa língua que
não é a língua de todos, mas que é uma língua ad hoc fabricada por James
Joyce. E convocar o leitor para que o compreenda na sua posição de não
poder falar a língua de todos, porque o significante paterno não fez versão do
paterno no desejo do pai. Talvez seja por isso que James Joyce termina o
Ulysses com uma frase, na boca de Stephen, que diz: “old father, old artificer,
stand me now and ever in good stead”. “Velho pai, velho artista. Mantenhame agora e sempre junto a seu bom calor”.
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TUBINO, M. E. da S. O Moisés de Michelangelo ou ...
O MOISÉS DE MICHELANGELO OU O MOISÉS DE FREUD
Maria Elisabeth da Silva Tubino
F
reud, no artigo “O Moisés de Michelangelo”¹, declara seu grande interesse pelas artes, em especial a literatura e a escultura e com menor
intensidade a pintura.
Um ponto que chama a atenção é que Freud, tendo feito esta declaração de seu interesse pessoal, publicou este artigo anonimamente. O artigo
já estava planejado em 1912, tendo sido escrito em 1913 e publicado em
1914, pela Imago. Porém, só em 1924 a autoria foi descoberta.
Freud fez sua primeira visita a Roma em 1901 e no quarto dia foi
conhecer a estátua de Moisés, na Igreja de San Pietro in Vincoli, uma criação de Michelangelo. Ficou muito impressionado com a obra e retornou muitas
outras vezes para analisá-la nos mínimos detalhes 2.
Acredito que, neste grande espaço de tempo entre a primeira visita e
a publicação do artigo, Freud dedicou-se a pesquisar vários autores que já
tivessem escrito a respeito de Moisés de Michelangelo. E não foram poucos,
ele evoca vários nomes, mais de quinze, com as respectivas citações de
trechos de suas análises.
Em sua pesquisa, Freud tenta entender porque um artista escolhe
expressar-se através da escultura, e não através das palavras e qual sua
intenção ao executar determinada obra. E ainda busca fazer uma interpretação para também compreender porque esta obra, em especial, o afetou tão
fortemente.
Freud faz descrições da postura, da expressão facial e até mesmo
tenta supor o momento histórico que Michelangelo quis retratar.
Refere-se a Moisés como “outra dessas inescrutáveis e maravilhosas
1
FREUD, Sigmund. O Moisés de Michelangelo. In: _____. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro : Imago, 1969. v. 13.
2
Cabe destacar que, no início do volume, encontra-se uma ilustração da estátua de Moisés
de Michelangelo e, no artigo, ela está em detalhe. E também lá estão os três desenhos
encomendados por Freud. Chama a atenção é não ser comum Freud utilizar ilustrações em
seus textos.
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obras de arte” (p. 255). Outra, porque ele fez referência anteriormente a Hamlet,
“Obra-prima de Shakespeare”.
É interessante que, nesta passagem, ele se refere à análise feita pela
psicanálise, que diz ter acompanhado de perto, reportando-se a “Interpretação dos Sonhos”. Realmente, acompanhou de muito perto, porque foi ele
próprio quem se utilizou dessa tragédia para ilustrar o tema edipiano. E acrescenta que, só depois da interpretação psicanalítica, seu efeito foi explicado.
Esta ilustração justifica seu empenho pela interpretação de Moisés:
“O Moisés de Michelangelo é representado sentado; o corpo volta-se para
frente, a cabeça com a pujante barba olha para a esquerda, o pé direito
repousa sobre o solo e a perna esquerda acha-se levantada de maneira que
apenas os artelhos tocam o chão. O braço direito une as tábuas da lei e uma
parte da barba e o esquerdo repousa sobre colo” (p. 256).
Assim, Freud faz a apresentação da sua observação da obra.
A partir daí, vai analisando as várias descrições que recolheu.
Salienta que não há concordância entre os críticos em suas descrições, por isso não se surpreendeu com a divergência de opiniões quanto ao
significado de diversas características da estátua.
Refere as palavras de um crítico de arte que diz em 1912: “Nenhuma
obra de arte no mundo foi julgada de modo tão diverso quanto o Moisés com
a cabeça de Pan. A simples interpretação da figura deu origem a pontos de
vista completamente opostos” (p. 255).
Destaca a descrição de um outro autor, que acha a mais correta, a
respeito da expressão facial de Moisés: “Ira em suas sobrancelhas ameaçadoramente contraídas, dor no olhar e desprezo no lábio inferior saliente e nos
cantos da boca, voltados para baixo” (p. 257).
Critica algumas análises, com as quais não concorda, e outros autores que foram indiferentes à obra ou, ainda, que acharam grotesca a figura.
Na sua busca por descobrir qual o momento da vida de Moisés que
Michelangelo quis retratar, conclui que: “Foi à descida do Monte Sinai, onde
Moisés recebera de Deus as Tábuas, o momento em que percebe que o
povo havia naquele meio-tempo feito para si um Bezerro de Ouro e estava
dançando em torno dele e rejubilando-se” (p. 258).
Freud levanta a hipótese de que este é um momento de hesitação, de
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TUBINO, M. E. da S. O Moisés de Michelangelo ou ...
calma antes da tempestade. No momento seguinte, Moisés se erguerá, pois
seu pé esquerdo já está erguido; arremessará as Tábuas por terra e dirigirá
sua cólera sobre o povo infiel. Portanto, está prestes a levantar-se e agir.
Outro elemento que Freud destaca é “A posição fora do comum”, com
a qual Moisés segura as Tábuas na sua mão direita. Parece que estão prestes a cair.
Frente à justificativa de alguns autores, de que a atenção de Moisés
foi despertada bruscamente, o que o levou a voltar a cabeça e os olhos para
a esquerda, enquanto o corpo permaneceu voltado para frente, e que a posição pouco comum das Tábuas deve-se à agitação de seu portador e possivelmente cairão no solo; Freud afirma que as Tábuas estão sendo seguras
calma e firmemente pela mão direita, e não estão a ponto de deslizar.
Contrapondo-se à idéia de que Moisés estivesse em movimento, Freud
refere uma das interpretações que encontrou: “essa estátua foi planejada
como uma entre seis e a intenção era fazê-la sentada. Ambos os fatos contradizem o ponto de vista de que Michelangelo pretendia registrar um momento histórico particular, porque, com referência à primeira consideração, o
plano de representar uma fileira de figuras sentadas como tipos de seres
humanos – como a vita activa e a vita contemplativa – excluía a representação de um episódio histórico determinado e, em relação à segunda, a representação de uma postura sentada – postura necessária à concepção artística de todo o momento – contradiz a natureza desse episódio, a saber, a
descida de Moisés do Monte Sinai para o acampamento” (p. 262).
É a partir dela que Freud passa a admitir que não poderá mais sustentar a idéia de que Moisés está prestes a levantar-se, mas que está em repouso, como concebido nas demais estátuas. E, também, que este momento
não é sucedâneo da sua descida do Monte Sinai, não havendo, portanto,
motivos para quebrar as Tábuas.
Revela que, muitas vezes, ficou diante da estátua, sentado, esperando vê-la levantar-se e atirar as Tábuas ao chão, extravasando sua ira.
E diz: “Nada disso aconteceu. A imagem de pedra torna-se cada vez
mais imobilizada, uma calma quase opressivamente solene dela emanava e
eu era obrigado a compreender que ali estava representado algo que permaneceria imutável; que aquele Moisés ficaria sentado assim, em sua cólera,
para sempre” (p. 263).
Freud passa, então, a concordar com a posição do escritor que acredita que Michelangelo quis representar “um certo tipo de caráter”, independente do relato histórico.
O seu interesse também se volta para a análise de dois pontos que
não foram corretamente descritos ou sequer trabalhados.
Refere-se a posição da mão direita que está em contato com a barba
e, simultaneamente, sustenta as Tábuas que estão em uma posição que
pode sugerir pouca atenção com estes objetos sagrados.
Para fazer uma análise minuciosa destas questões, volta a se utilizar
da hipótese do Bezerro de Ouro. Faz a suposição de que um possível movimento súbito de Moisés levou sua mão direita, em especial o dedo indicador,
a pressionar parte da barba, indicando que houve uma seqüência de gestos
que determinaram essa reprodução da mão em contato com a barba em
decorrência do deslizar das Tábuas.
Chegou a encomendar a um artista três desenhos, para explicar a sua
hipótese de que a posição representada na estátua é a quarta etapa de uma
seqüência de movimentos. Inicialmente, Moisés estaria sentado, com o corpo e a cabeça voltados para frente, sua mão direita estaria segurando as
tábuas, perpendicularmente, sob o braço direito. No lado inferior das Tábuas,
destaca-se uma saliência na parte dianteira, que é um elemento (como um
chifre) indicativo do verdadeiro lado superior das tábuas, com referência a
escrita. Este apoio da mão na saliência, indicativa da parte superior das
tábuas, explica a posição invertida destas, a facilidade de carregá-las.
Freud abandona a sua interpretação de que a estátua de Moisés retratava sua perturbação ao assistir o espetáculo de seu povo a dançar e a
adorar um ídolo. Conclui que estava errado em esperar que num momento
seguinte se levantaria, quebrando as tábuas para realizar sua vingança e diz:
“O que vemos diante de nós não é o início de uma ação violenta, mas os
restos de um movimento já efetuado. Em seu primeiro transporte de fúria,
Moisés desejou agir, levantar-se, vingar-se e esquecer as Tábuas; mas dominou a atenção e permanecerá sentado e quieto, com sua ira congelada e
seu sofrimento mesclado de desprezo. Tampouco atira as Tábuas, de maneira a que se quebrem sobre as pedras, pois foi por sua causa especial que
manteve contida sua paixão. (...) Nessa atitude permaneceu imobilizado e
foi nela que Michelangelo o retratou como guardião do túmulo” (p. 272).
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Freud chama ainda atenção para o braço esquerdo cuja mão repousa
no colo e segura a extremidade da barba com tranqüilidade.
Outra conclusão a que chega é que este não é o Moisés da lenda e da
tradição. Aquele “tinha um temperamento impetuoso e era sujeito a crises
de paixão.” (p. 275) Lembra o episódio em que matou um egípcio que estava
maltratando um israelita e, por isso, teve que fugir do país para o deserto e,
ainda, em outra explosão semelhante quebrou as Tábuas da Lei, escritas
por Deus. “(...) Michelangelo colocou um Moisés diferente na tumba do Papa,
um Moisés superior ao histórico ou tradicional. (...) Dessa maneira, acrescentou algo de novo e mais humano à figura de Moisés; de modo que a
estrutura gigantesca, com sua tremenda força física, torna-se apenas uma
expressão concreta da mais alta realização mental que é possível a um
homem, ou seja, combater com êxito uma paixão interior pelo amor de uma
causa a que se devotou” (p. 275).
Freud acredita que a escolha de Moisés pelo escultor pode ser atribuída a seu relacionamento com o Papa Júlio II, que tinha um temperamento
violento e não costumava pensar nos outros em suas decisões; tendo, por
isso, atingido ao próprio Michelangelo. E também porque ambos tinham projetos grandiosos. “Assim, esculpiu seu Moisés na tumba do Papa, não sem
uma censura ao pontífice morto, mas também como uma advertência a si
próprio, elevando-se, pois, através da autocrítica, a um nível superior à sua
própria natureza” (p. 276).
Não resta dúvida de que Freud dedicou-se a uma análise profunda do
Moisés de Michelangelo. Em sua pesquisa, colheu muito material para este
trabalho. O que o levou, penso eu, a refletir a respeito do “homem Moisés”,
lendário ou não.
Acredito que, a partir daí, dedicou-se a escrever sua última obra publicada, “O homem Moisés e a religião monoteísta”, que continua produzindo
discussões tão controversas quanto à obra do escultor.
Freud encerra seu artigo questionando o seu próprio empenho em
interpretar a intenção do artista, que não sabe se ele pretendeu exteriorizar
em sua obra. Por esse motivo utilizei o título.”O Moisés de Michelangelo ou
o Moisés de Freud”.
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 79, maio 2000
RUFFINO, R. Às margens do “Moisés” de Freud.
ÀS MARGENS DO “MOISÉS” DE FREUD 1
Rodolpho Ruffino
À minha filha Erika
“‘M
oisés’-de-Freud” é o nome de uma construção apresentada
por Freud em torno de uma curiosa hipótese tomada de Sellin2. Malgrado a reputação de pouca seriedade deste historiador, ele deve lhe ter parecido digno de algum crédito, pois sua hipótese bem
combinava com algumas de suas convicções pessoais (expostas em seus
escritos através das idéias de memória arcaica, herança filogenética de experiências historicamente vividas no passado por nossos ascendentes, repetição da filogênese na ontogênese e, mais particularmente, a sua específica hipótese, capacitada agora a se reeditar, da incorporação da civilidade
pela culpabilidade pelo assassinato real de uma autoridade fundadora cometido pelos ancestrais, desta feita, para explicar a origem de um povo, como
pode antes, dela servir-se, para explicar a passagem da natureza à cultura).
Sellin, sendo autor da suposição segundo a qual Moisés, o legislador hebreu
do pentateuco, teria sido assassinado pelo excessivo zelo religioso de seu
sobrinho neto Pinchas (da família sacerdotal de Aharon, o irmão de Moisés),
daria a Freud, além do mais, a oportunidade de avançar em novas conseqüências teóricas, a partir daquelas convicções. É curioso verificarmos o quanto Freud, somando convicções pessoais pouco compartilhadas entre os seus
mais próximos – a exceção de Ferenczi, mas este já havia falecido antes
que a publicação completa do “Moisés” de Freud viesse à luz – com a assunção
de uma tese selliniana, nunca por ninguém mais levada a sério, terminou por
1
Aqui se apresenta, em primeira mão, um resumo da pesquisa em andamento do autor. Uma
versão ampliada e documentada da mesma, ele fará publicar em breve.
2
E. SELLIN, E. Mose und seine Bedeutung für die israelitisch-jüdische Religionsgeschichte.
Leipzig :s/ed., 1922.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 79, maio 2000
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SEÇÃO TEMÁTICA
nos expor, sob o preço de uma deformação infringida à história e de uma
atribuição à natureza – o que aqui queremos demonstrar – de um poder que
esta, a nosso ver, não possui em si mesma, uma preciosidade no que se
refere à eficácia da função paterna e, diríamos, a transindividualidade de seu
campo de circulação.
Essa tese de Freud nos remete ao seu “Totem e tabu”3 – onde é
afirmada a necessariedade de que, nos primórdios da humanidade, haveria
de ter ocorrido realmente, para cada agrupamento, o efetivo assassinato do
pai da horda primitiva para que se explicasse a intrusão do que desse conta
da enigmática passagem, acontecida um dia, da natureza à civilização. Esta,
desde 1912, não era pensada por Freud senão como uma resposta à culpabilidade pela morte do pai primordial. Deste modo, o assassinato de Moisés
explicaria a constituição particular do povo de Israel, assim como o mito
realístico do assassinato do pai da horda primitiva explicaria a constituição
da humanidade. Isto conduz a se pensar que cada povo, cada nação, cada
comunidade de filiação, só teria sua origem freudianamente pensada se se
lhe encontrasse o sacrifício do pai morto em resposta ao qual o grupo se
constituiu. Mas, antes de assinarmos nossa freudianicidade quanto a este
veredito, saibamos o que compramos com este pacote. “Moisés e o monoteísmo” e “Totem e tabu” remetem-nos a uma crença dita lamarckiana do
homem Freud, crença esta que era, de fato, a conseqüência de uma inquietação freudiana x – o x de nossa questão. Essa inquietação x, sendo impossível a Freud de ser resolvida por outra via se não pela sua articulação às
fontes darwinianas – darwinianas, mesmo que todos as suponhem lamarckianas – de sua formação, conduziu o pensamento freudiano a considerar o
trilhamento que esta via lhe fez parecer pensável como o caminho necessário.
Supomos que o x que, pelas margens, conduz à origem do “Moisés”
de Freud se encontra na pergunta que interroga: “o que é uma transmissão?”, “de onde lhe advém e em quê consiste o elemento da eficácia
RUFFINO, R. Às margens do “Moisés” de Freud.
constitutiva que ela porta para um sujeito?”. Esse x, vê-se, conduz-nos à
função paterna e à relevância que o estudo do judaísmo veio a ter para nós,
mas, para tomarmos essas inquietações em sua origem, faz-se necessário,
inicialmente, um deslocamento. Aqui, permaneceremos nesse deslocamento. Permaneceremos no inicial. Não mencionaremos explicitamente nem o
pai, nem o judaísmo e nem Moisés, mas nos comprometemos em explicitar
o x que fez daqueles temas pontos de interesse para o campo da psicanálise.
Freud acreditava que uma experiência vivida por gerações anteriores
nos seria transmitida filogeneticamente e nos constituiria em nosso funcionamento. Também acreditava que, por leis físicas ainda não esclarecidas, a
telepatia4, a qual não seria um fenômeno psíquico, mas poderia interferir no
psíquico, causava efeitos e merecia ser considerada por alguma ciência,
mesmo que esta não precisasse ser a psicanálise. Crente do “lamarckismo”
e da telepatia, eis o nosso Freud. Mas como não sê-lo quando, por um lado,
a escuta clínica lhe evidenciava que há transmissão, mesmo desprovida de
enunciados e inclusive envolvendo distâncias consideráveis e, por outro, se
encontrava na ignorância, pelo que pudesse vir do saber constituído, no que
se referisse às vias por onde ela poderia se efetuar? Essas crenças, ao
menos, estavam no limiar da Weltanschauung científica, eram elas ou a
alternativa de supor alguma possessão sobrenatural. Esperaríamos do velho
Sigmund que ele seguisse as vias de um Herder5, que desde 1774 pensava a
Bildung do sujeito como formada pela história e pela linguagem? Mas, sem o
saber, ele o fez, só que acrescentando aí o que ele pensava ser o único
suporte concreto para realizá-la: a concretude do indivíduo6, onde está mate-
4
FREUD, S. Tótem y tabú (1913 [1912-3]). In: _____. Obras Completas. Buenos Aires :
Amorrortu, 1996, p. 1-164. v. 13
Ver S. Freud: Psicoanálisis y telepatía (1921), só publicado em 1941; Sueño y telepatía
(1922); El significado ocultístadel sueño (1925), só liberado da censura dos editores da
Gesammelte Werke, em 1952; Sueño y ocultísmo, in Nuevas conferencias de introducción
al psicoanálisis (1933[1932]).
5
HERDER, J. G. Também uma filosofia da história para a formação da humanidade (1774).
Lisboa : Antígona, 1995.
6
Freud disse não poder ver no social, em si mesmo, uma concretude como a que nele viam
os marxistas. O social adquire sua concretude do que está materializado na concretude dos
indivíduos em suas relações e pelo que eles portam, filogeneticamente, do passado. Confirma no En torno de una cosmovisión, in Nuevas conferencias de introducción al psicoanálisis
(1933[1932]), Buenos Aires : Amorrortu, 1996, p. 146-68.
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 79, maio 2000
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SEÇÃO TEMÁTICA
RUFFINO, R. Às margens do “Moisés” de Freud.
rializada uma filogênese “lamarckiana”, isto é, aberta à experiência e às
aquisições da ambiência exógena. Ou então, será que quereríamos o pior?
Quereríamos que Freud tivesse engavetado o constatado na clínica, como
se este não nos demandasse consideração? Explicá-lo pelas leis da cultura,
da história ou da linguagem, convenhamos, para alguém com a formação
naturalística que foi a de Freud, era esperar demasiado ou exigir da psicanálise um avanço de cinco décadas em sua marcha.
Freud ultrapassou como ninguém o naturalismo de sua formação, mas,
cauteloso, só avançava hipóteses fora dele quando, desse fora, lhe adviessem
garantias superiores às daquele, que ele bem conhecia. O excesso de cautela, aqui, tornou-o o último dos sábios a professar o “lamarckismo” ou a
crença na eficácia da telepatia. Mas também foi o primeiro a ousar confrontar-se com a transmissibilidade, fazendo “humanidades”, mas armado não
pelas humanidades, e sim pelas ciências naturais7. Hoje não se avançaria
nessa questão senão pelo que Freud, sem o saber, e pelo que nele escapava
ao naturalismo, lá, nas linhas e entrelinhas de sua obra, já nos adiantou.
Ernst Kris, em 1956, numa transmissão da BBC comemorativa ao
centenário de nascimento de Freud, observava: “as propensões lamarckianas
de Freud eram muito lamentadas por vários de nós”8. Mas Kris não se importava com a constituição da subjetividade. Para ele bastava pensar o homem
como um organismo que se adapta por ser passível de algum processo
identificatório dos mais elementares entre os assinalados por Freud. E o
“lamackismo” freudiano, com toda a conotação de lamentabilidade que esse
termo veio a adquirir, é uma atribuição que só a nossa pouca informação
autoriza. Desde o nosso “secundário” vem-nos a diferença que teria oposto o
genial Darwin ao obsoleto Lamarck. Como repete a cantilena dos livros didáticos, Lamarck teria “afirmado” a herança filogenética de caracteres adquiri-
dos, Darwin teria “corrigido” tamanha afronta às mais básicas evidências
postulando a evolução pela seleção natural. A história foi outra, entretanto.
Consultem Lucille B. Ritvo 9, na leitura de quem nos instruímos para o que se
segue.
Sim, a tese darwiniana da seleção natural supera a teoria da herança
de Lamarck. Mas Darwin não se deu conta disso. Darwin, em seus últimos
anos, e outros evolucionistas já vinham opinando, entre si, sem que se lhes
ocorresse que isso dizia respeito a Lamarck, contra a plausibilidade do que
chamavam, abreviadamente, a teoria do uso, mas não se davam conta de
que já havia um constructo teórico, formulado pelo próprio Darwin, capaz de
ultrapassá-la. Quem primeiramente se deu conta, após a morte de Darwin, já
à beira do séc. XX, de que a sua tese da seleção natural era suficiente para
dispensar uma teoria da herança filogenética do adquirido ou experienciado,
tese que não era de Lamarck, mas a única, agradando ou não, existente
enquanto sistematizada até então, foi August Weismann10 (o mesmo que
Freud cita, mas não se referindo a este assunto, quando introduz a pulsão
de morte11). Ritvo enumera quantos sábios deixaram documentado, até
Weismann, na história, o seu descontentamento com o dito “lamarckismo”:
três! O poeta romano Lucrécio, séc. I a. C., e, no séc. XVIII, Immanuel Kant
e o naturalista suíço Charles Bonnet. Destes, só o último poderia falar com a
autoridade de especialista, mas sua posição era só opinativa, secundária
para o seu trabalho e não se apoiava em provas evidentes.
Neste sentido, Freud passou por lamarckiano por ter sido um darwiniano
inquietado com a eficácia da transmissão dos efeitos e das respostas a
experiências ancestrais não passadas por enunciados educativos e nem
dadas a se inscreverem como representação, seja no inconsciente, seja no
pré-consciente. Não dispondo de uma teoria do signficante ou do furo do real
7
9
Fazer “humanidades”, armado pelas ciências naturais, foi isto que Freud se viu capaz de
realizar quando, passando da medicina à psicanálise, finalmente iria dar cumprimento à sua
vocação de juventude, tendo agora já percorrido uma formação naturalística, por um desvio
a que se viu convocado pela audição, à época do “secundário” da Ode à Natureza, atribuída
a Göthe, em meio a uma palestra sobre a teoria da evolução de Darwin.
8
Referência encontrada na p. 47 da obra que mencionaremos na nota seguinte.
48
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 79, maio 2000
RITVO, L. B. A influência de Darwin sobre Freud. Rio de Janeiro : Imago, 1992.
WEISMANN, A. The evolution theory (1902[1894]) Trad. com a colab. do autor por J. A.
Thomson e M. R. Thomson. London : Edward Arnold Ed., s/d.
11
S. Freud refere-se, de Weismann, a Über die Dauer des Lebens (1882), a Über Leben und
Tod (1884), e a Das Keimplasma (1892), mas não ao na nota acima mencionado, publicado
em 1902, no seu Más alla del princípio de placer (1920). Buenos Aires : Amorrortu, 1996.
10
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SEÇÃO TEMÁTICA
no simbólico, a filogênese e a telepatia lhe pareciam boas candidatas, providas de certa concretude possível, biológica ou física – e bem ao gosto de um
naturalista – para por elas se pensar o que veicularia experiências à distância e produziria efeitos constitutivos da Bildung do indivíduo, dos povos e da
humanidade. O erro de Freud tem seu mérito: o de nos revelar que em psicanálise, mesmo quando se perseverava na naturalidade da herança
“lamarckiana”, o que Freud negava era a determinação do constitucional em
última instância. Ele preferiu, podemos dizê-lo, ser obsoleto a recusar o
estatuto constitutivo da experiência e do que hoje chamamos o laço que
articula o sujeito ao Outro, atrás do muro da linguagem. Por isso, para todos
nós, Freud continua mais atual do que o seu sábio e moderno aluno Kris. O
problema todo se resume apenas no fato de que, à época, não era possível
se reconhecer que a via mesma da transmissibilidade, ela também, é da
ordem, não da filogênese12, mas da linguagem.
12
A filogênese “lamarckiana”, se era equivocada na afirmação das vias da transmissibilidade
do experiencial, ao menos dava a esta concretude e legitmidade. Hoje é mister que essa
concretude e legitimidade lhe sejam devolvidas pela via do que é da ordem da linguagem. O
ensino de Lacan deixou-nos os meios, mas não nos apresentou a tarefa como já realizada.
Entre os que se referenciam em Lacan, Pierre Legendre muito avançou para sistematizar
esta questão. Não foi seguido por muitos lacanianos. Enquanto nos paralizávamos, Pierre
Fédida introduziu a teoria de Legendre aos neo-ferenczianos da escola francesa, interrogou seus textos à luz de seus próprios pressupostos e, hoje, pensa o elemento da
transmissividade entre as bases da psicopatologia fundamental, pela qual cada sujeito se
constitui em sua singularidade. Por estas interrogações, talvez não seja difícil, ao leitor e a
nós, recolher alguns elementos significantes do texto freudiano e do ensino de Lacan para
arriscarmos algumas idéias em torno da questão: o que há nessa transmissibilidade que
nos constitui sob o signo da brasilidade, em meio a plurinacionalidade e por sobre a
plurietnicidade que caracteriza nossa coletividade, nesses quinhentos anos, nos quais
gentes oriundas de lugares distantes vivem nesta terra em vizinhança próxima? Sem
filogênese comum, que laço faz a língua? Qual a eficácia estrutural presente no imponderável
de um ato de adoção, na ausência da fatalidade da consangüinidade? Seremos filhos de
pai nenhum, por não termos sacrificado um, como se supõe a partir de uma noção
eurocêntrica do monárquico pai Um, tomado por muitos que nos são próximos – quer
quando o louvam, quer quando o depõem – como o único possível? Lacan sabia que, do
pai, seus Nomes são plurais e que o pai do real não consiste como corpo.
50
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 79, maio 2000
ENTREVISTA COM CHARLES MELMAN
ENTREVISTA COM CHARLES MELMAN1
“O COMPLEXO DE ÉDIPO”
A
partir de duas intervenções de Charles Melman a propósito do texto
de Freud, “O homem Moisés e a religião monoteísta”, uma no seu
Seminário do Hospital Sainte-Anne, em 14 de maio de 19982; e outra
em 22 de maio de 1997 no debate promovido pela Revue d’éthique et de
théologie morale3, realizamos a presente entrevista. Segundo Melman, a chave
para decifrar esse incompreensível e derradeiro texto freudiano se encontra
no que denomina de “complexo de Moisés”, que assim é caracterizado:
“A radicalidade do ‘romance’ de Freud sobre Moisés é de colocar que,
para o eu, o ideal é sempre Outro; a alteridade do ideal nos parece no centro
desta obra, de outro modo incompreensível. Moisés é, sem dúvida, o único a
ter experimentado que, no encontro supremo no qual o homem espera o
modelo que lhe permitirá confortar sua imagem, ele encontra o vazio. Seu
nome merece, graças ao texto de Freud, definir o complexo: a tentativa desesperada do eu de reencontrar um ideal que é Outro, reveladora, no campo
do narcisismo, da mesma cesura que aquela que individa o campo objetal. A
conivência do eu com o ideal somente é possível pelo artifício de uma comunhão coletiva em que se forja um ancestral comum – em geral a partir de
uma língua partilhada – no quadro da forma política que representa hoje o
integrismo nacional ou religioso”. 4
Correio – Como podemos, hoje, ler e interpretar “O homem Moisés e
a religião monoteísta” de Freud?
Melman – Creio que Freud escreveu este texto pela origem egípcia
de Moisés e é esse o grande escândalo. A origem egípcia de Moisés é o
1
Entrevista com Charles Melman realizada em 30/01/2000 por Mario Fleig e Conceição
Beltrão.
2
Cf. La Célibataire, n. 1, 1998, p. 7-9.
3
Revue d’éthique et de théologie morale, n. 201, jun. 1997, p. 221-3.
4
La Célibataire, n. 1, 1998, p. 8.
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SEÇÃO DEBATES
ENTREVISTA COM CHARLES MELMAN
escândalo puramente romanesco, posto que, do ponto de vista histórico,
não temos testemunho, exceto que Moisés era um nome egípcio. Por esse
fato, não temos nenhuma prova histórica da origem egípcia de Moisés. Então, se Freud escreveu tal romance, foi talvez para tentar, como eu havia dito
nos artigos referidos, dar conta de um fato de estrutura.
Se o Pai tem para nós uma posição Outra, é justo que a religião seja
de um modo a fazer de nós e de estabelecer entre nós e ele um laço sagrado. Ele fica, todavia, irredutivelmente Outro. Isso quer dizer que a dimensão
Outra do Pai é um fato de estrutura. Então, pretender o estabelecimento da
descendência entre esse Pai e os filhos é um ato, um certo ato de fé, que
apenas mascara o caráter Outro do Pai.
Se o complexo de Édipo marca o fato de que a relação com o objeto
é tocada por um impedimento, uma vez que esse complexo significa que eu
não seria jamais senão um substituto do objeto amado, isso quer dizer que
entre o sujeito e o objeto há um fosso intransponível.
O que eu chamo “complexo de Moisés” inscreve o mesmo corte num
campo não mais objetal, mas no campo do narcisismo. Dito de outra forma,
se é preciso experimentar meu narcisismo afirmando a filiação com o Pai na
medida em que ele é estruturalmente Outro, salvo morrendo eu mesmo, não
posso pretender reencontrá-lo. Então, se Freud escreveu isso em 1934 e
1937, e finalmente publicou em 1939 com muitas hesitações, é, eu suponho,
sua resposta aos acontecimentos políticos que o fizeram fugir da Áustria.
Ele não percebia o quanto sua afirmação de uma filiação com um Pai seria
capaz de ter efeitos políticos nefastos.
É assim que eu compreendo “O homem Moisés e a religião monoteísta”.
De outra forma, parece-me incompreensível, pois senão não se pode absolutamente compreender qual seria a intenção de Freud, que, como se sabe,
hesitou muito para publicá-lo. Sabe-se que o primeiro artigo remonta a 1934.
Após, ele o deixou, estava pouco à vontade, não sabia bem o que fazer. Mas
é um livro que continua para nós inaceitável, na medida em que imaginar que
o Pai no Outro nos é estrangeiro, isso nos é insuportável. Não podemos
suportar e isso nos joga na paranóia. Aqui está, também, uma das razões
pelas quais o livro foi considerado uma excursão mal conduzida e infeliz de
Freud, porque isso que ele diz nesse livro não é subjetivamente aceitável
para nós.
Para os gregos e os romanos não era dessa forma. É para nossa
subjetividade. Para os gregos e para os romanos o problema era diferente, e
para os egípcios certamente também. Mas para nós, é subjetivamente inaceitável.
Correio – É a ferida no narcisismo?
Melman – Sim, é o obstáculo definitivo colocado à realização do
narcisismo. Quer dizer, de se afirmar como o filho, como a criança, de ser a
descendência.
Correio – Podemos pensar que a cena da faca de pedra, na qual
ocorre a circuncisão, envolvendo o homem Moisés, e que é trabalhada por
Lacan no Seminário A angústia, constitui o corte no narcisismo?
Melman – Eu não creio. Você evoca a circuncisão, e essa é uma
forma de fazer pacto com o Pai. Isso não é de forma nenhuma uma incisão
no narcisismo. A circuncisão é um acontecimento de um pacto simbólico
enlaçado com o Pai, ou seja, como se simbolicamente o sexo estivesse
remetido ao Pai, submetido a seu serviço.
Correio – Considerando suas formulações, existe uma relação entre
o complexo de Moisés e o complexo de Colombo?
Melman – Se há uma relação, é preciso perguntá-la aos que estão
concernidos, eventualmente, pelos dois complexos, não é? O que é certo é
que se observa bem como uma grande parte da história, desde a Bíblia, é
ocupada pelo cuidado das comunidades em testemunhar que os verdadeiros
filhos não são esses que se crê. E esses caracteres são ilustrados, é o que
eu dizia há pouco a respeito do complexo de Moisés, que nos é intolerável
pensar que não somos as crianças amadas pelo Pai. É um problema banal
e que se vê bem, por exemplo, de maneira mais simples, mais imediata e
com freqüência no problema das mulheres que são levadas a pensar que o
filho é o verdadeiro representante do Pai, isso vai no mesmo sentido. Tudo o
que se vê nas mulheres como esforço para justamente mostrar, por exemplo, no trabalho como virilização, que o verdadeiro filho do Pai não é o menino. É uma ilustração fácil e banal para mostrar como o amor do Pai é isso
que nos é ainda mais caro do que a relação com o objeto, que o narcisismo
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SEÇÃO DEBATES
ENTREVISTA COM CHARLES MELMAN
prevalece sobre a relação objetal. Então, o complexo de Colombo vem se
inscrever aí dentro. Se você toma, por exemplo, um esforço feito atualmente
pelos creoles 5, os intelectuais creoles, para se inventar uma identidade. Quer
dizer, inventar uma identidade é propor uma história comum, ao mesmo tempo, é inventar um ancestral comum, tendo em vista a recusa a considerar
que sua comunidade carece de um Pai. O Pai Colombo, o colonizador, não
se comportou como um pai face às suas crianças, pois praticou a escravatura. Então, há esse problema, que você conhece bem por sua formação, que
é esse de nossa defesa contra o caráter irredutivelmente Outro desse que
nós chamamos Pai. Defendendo-nos contra isso, nós recusamos, não suportamos e, quando isso se produz, leva a uma relação paranóica em direção a esse que, nesse momento, em vez de ser Pai se torna perseguidor.
Correio – O Sr. colocou que há duas conseqüências dessa relação
com o Pai enquanto perseguidor: o surgimento dos integralismos e das seitas, enquanto posições paranóicas. Isso é também resultado do amor ao
Pai?
Melman – Sim, eu quero dizer que nosso amor pelo Pai induz muito
facilmente a posições paranóicas, muito facilmente!
Correio – É nesse sentido que se pode compreender o enunciado de
Lacan de se servir do Pai com a condição de dispensá-lo?
Melman – O enunciado de Lacan é talvez um pouco diferente. Lacan
não diz tudo o que eu falo. Lacan, sobre isso, é talvez bem mais prudente
que eu, porque eu digo coisas que são como esse livro de Freud, não são
aceitáveis. O que mostra que se pode aceitar perfeitamente o complexo de
Édipo, quer dizer: o objeto com o qual lidamos, não é senão um semblante
de objeto, ah! De acordo! Isso se aceita, mas aceitar que o si-mesmo é um
semblante, isso não se pode. Isso é recusado e, contudo, parece que poderia ser um grande fator de civilização, porque há toda uma série de reações
integristas, nacionalistas, sectárias ou mesmo na vida cotidiana, como a
xenofobia, que poderiam se acalmar se, subjetivamente, aceitássemos não
ser aquilo que não é possível ser.
Correio – A questão da diferença entre o Pai em nossa cultura e nos
gregos, que o Sr. vem falando em seu Seminário...
Melman – Sim, para os gregos, o Pai não tem posição no funcionamento social. Não há nada que dê a essa função um caráter sagrado nos
gregos. É nos romanos que vai haver uma religião do Deus Lar, mas onde
também a mãe ocupa um lugar importante no culto dos deuses do Lar. Mas,
nos gregos, não há nada de sagrado que se ligue à função paterna e como
se sabia e como sabemos, quando um Pai não queria um nascimento, ele
expunha a criança diante de sua porta e se nenhuma pessoa a levasse, ela
morria, como um animal. Não importa.
Então, é um mundo completa e subjetivamente diferente. Em nenhum
grego havia a idéia que é preciso ser belo e forte para agradar aos deuses,
por exemplo. É preciso ser belo e é preciso ser forte para agradar aos outros,
não a Deus. Deus se ocupa de suas coisas, quer dizer, que os deuses não
fazem nenhuma exigência aos gregos, nenhum olhar no Outro e nenhuma
palavra vinda do Outro.
Correio – Então isso significa que para os gregos não havia a idéia da
providência de Deus sobre os homens?
Melman – Em todo o caso, eles absolutamente não pensavam que
os deuses estão lá para proteger os homens, mas os deuses se ocupam de
seus próprios interesses, de seu próprio desejo.
Correio – Então, se eu compreendi bem, o texto de Freud sobre o
homem Moisés coloca um ponto sobre a questão do narcisismo?
Melman – É essa a questão. Eu creio que é no fim de sua vida que
por sua vez, pelos problemas ligados ao tratamento e aos problemas políticos que se passavam no mundo, Freud percebeu que havia qualquer coisa
de essencial e que ele não havia abordado a questão do narcisismo. Quer
dizer que o primeiro objeto que nos interessa explicitamente é nosso ser e
contamos com que ninguém nos apontará isso. E isso não é vendável. Ninguém quer saber disso...
5
Trata-se dos habitantes da Martinica, departamento francês e antiga colônia, que falam um
dialeto do francês também denominado de creole.
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RESENHA
RESENHA
FREUD E O LEGADO DE MOISÉS
RICHARD J. BERNSTEIN
BERNSTEIN, Richard J. Freud e o legado de Moisés. Rio
de Janeiro : Imago, 2000. 180 p.
judaísmo e sua sobrevivência ainda não haviam sido redigidas e confrontadas em sua realidade”.
Comecemos com o resumo do enredo manifesto do Moisés de Freud
feito por Yerushalmi3, que Bernstein expõe:
“O monoteísmo não é de origem judaica, mas uma descoberta egípcia. O
faraó Amenófis IV estabeleceu-o como religião de estado sob a forma de
uma adoração exclusiva do deus – sol, ou Aton, chamando-se a si próprio
a partir de então de Aquenáton4.A religião de Aton, segundo Freud, caracterizava-se pela crença exclusiva em um Deus, pela rejeição do
antropomorfismo, da magia e da bruxaria, e pela negação absoluta de
uma vida após a morte. Com a morte de Aquenáton, porém, sua extraordinária heresia foi rapidamente desfeita, e os egípcios voltaram a seus
antigos deuses. Moisés era um sacerdote ou nobre egípcio, e não hebreu,
e um ardoroso monoteísta. A fim de salvar a religião de Aton da extinção,
ele se pôs à frente de uma tribo semita oprimida que então vivia no Egito,
libertou-a da servidão e criou uma nova nação. Deu-lhe uma forma de
religião monoteísta ainda mais espiritualizada, desprovida de imagens,
e, para mantê-la à parte, introduziu o costume egípcio da circuncisão. Mas
a rude massa de antigos escravos não podia suportar as severas exigências da nova fé. Em uma revolta da multidão, Moisés foi morto e a lembrança do assassinato foi recalcada. Os israelitas formariam uma aliança de compromisso com tribos semitas em Madiã cuja divindade
impiedosa e vulcânica, chamada Iahweh, se tornou então seu deus nacional. Em conseqüência, o deus de Moisés fundiu-se com Iahweh e os
feitos de Moisés foram atribuídos a um sacerdote medianita também
chamado Moisés. Todavia, ao longo de um período de séculos, a tradição
submersa da verdadeira fé e seu fundador reuniu força suficiente para se
reafirmar e emergir vitoriosa. Iahweh, daí em diante, foi dotado com as
características universais e espirituais do deus de Moisés, embora a lem-
E
ste livro inicia com o autor lembrandonos do prefácio para a edição de Totem
e tabu – dezembro de 1930 – em que
Freud escreve: “Nenhum leitor deste livro achará
fácil colocar-se na posição emocional de um
autor que ignora a língua da Sagrada Escritura
(...) que está afastado da religião de seus pais –
bem como de qualquer outra religião – (...) mas
que nunca repudiou seu povo, sente que é em sua natureza essencial um
judeu (...) Se lhe fosse feita esta pergunta: “Já que o senhor abandonou
todas essas características comuns de seus compatriotas, o que lhe sobrou
de judeu?”, ele responderia; “Muita coisa, e provavelmente a própria essência. (...) Algum dia, sem dúvida, ela se tornará acessível para o espírito científico”...
A partir daí, Bernstein começa a questionar-nos: será possível distinguir tão nítida e rigorosamente a religião judaica da natureza essencial do
judaísmo? Será que Freud conseguiu ou tentou responder esta questão?
Afirma que a tese que pretende explorar e defender neste livro é a de que
Freud tentou, sim, respondê-la, e essa tentativa se encontra no livro “O homem Moisés e a religião monoteísta”2.
Diz-nos, também, que seu estudo desenvolveu-se por estar persuadido de que “a importância das afirmações de Freud sobre religião, tradição,
3
Professor de filosofia na cadeira Vera List do curso de pós-graduação na New School for
Social Research, N. York. Outro livro de sua autoria, Hannah Arendt e a questão judaica.
2
Bernstein utiliza como base para sua tese, os estudos de Yoset Yerushalmi, Jan Assman
e Jacques Derrida.
Yosef Hayim Yerushalmi-Historiador do povo judeu. Sugerimos um de seus livros O Moisés
de Freud: Judaísmo terminável e interminável. Rio de Janeiro:Imago Ed.
4
Freud preferia Ikhnaton para o faraó egípcio que introduziu o monoteísmo, e Yerushalmi o
acompanha. A transliteração mais comumente aceita (usada por Strachey) é Akhenaten em
português, Aquenáton.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 79, maio 2000
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RESENHA
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brança do assassinato de Moisés permanecesse recalcada entre os judeus, reemergindo apenas em uma forma disfarçada com a ascensão
do cristianismo.”
Bernstein salienta que, embora este seja o enredo manifesto da história que Freud nos conta, não é a forma como ele conta. No primeiro ensaio
“Moisés, um egípcio”, Freud aborda a questão de Moisés ser, ou não, egípcio. Na narrativa bíblica – fonte primária de nosso conhecimento sobre Moisés
-, onde é a princesa egípcia que descobre o menino e o cria, Freud aponta a
sua argumentação sobre isto, considerando “O mito do nascimento do herói”, publicado em 1909 por Otto Rank. Entretanto, segundo Bernstein, não
fica claro o que tudo isso tem a ver com a questão de Moisés ser ou não
egípcio. O autor diz que Freud mostra a contradição entre a estrutura do
“mito do abandono” e o relato bíblico do nascimento de Moisés. Ou seja, que
nas narrativas de abandono em geral, os verdadeiros pais do herói são aristocráticos, e os que o salvam da morte são bastante humildes. Moisés,
porém, o filho de pais judeus que eram escravos no Egito, é salvo pela princesa real e educado como membro de uma família aristocrática egípcia.
Vejam aí que há uma contradição, mas segundo Bernstein, o próprio Freud
reconhece o quanto é inconsistente toda essa argumentação e tenta vários
tipos de suposições especulativas e injustificadas nesse ensaio. Talvez, “a
circunspeção seria uma forma de sentir a repercussão à conjetura de que
Moisés era egípcio, sem, contudo, fornecer qualquer indicação clara das
inferências que ele haveria de tirar dessa conjetura”, complementa Bernstein.
SE MOISÉS FOSSE EGÍPCIO
O historiador lembra-nos que somente no seu segundo ensaio “Se
Moisés fosse egípcio” é que todo enredo histórico é revelado. E que Freud se
refere de forma seletiva às obras de historiadores e estudiosos da Bíblia,
escolhendo as fontes que lhe servem para apoiar sua tese de que Moisés
seria egípcio. Enfim... Já sabemos que para Freud, o Moisés egípcio, além
de ter sido uma pessoa real, adotou o monoteísmo do faraó egípcio Aquenáton
e a fim de salvar a religião de Aton, a impôs aos semitas que viviam no Egito.
Ou melhor, que Moisés nivelou-se aos judeus e deles fez “o seu povo esco-
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lhido”. Bernstein afirma que sem estabelecer esses fatos históricos, Freud
não teria base para as interpretações psicanalíticas que posteriormente apresenta para explicar esses fatos. Continuemos...
No decorrer de nossas leituras, logo percebemos, então, que não foi
Deus, ou mesmo Abraão, ou Isaac ou Jacó, o fundador da religião do povo
judeu. Não foi Deus (seja o deus monoteísta de Moisés, seja o deus demônio dos madianitas Iahweh) quem escolheu o povo judeu. Foi Moisés que o
fez.
A TRADIÇÃO DA CIRCUNCISÃO
Yerushalmi nos diz que Moisés deu aos semitas uma forma ainda
mais espiritualizada da religião monoteísta, desprovida de imagens, e a fim
de assegurar que os semitas escolhidos não se sentissem inferiores aos
egípcios, e sim iguais, ou mantidos separados dos povos estrangeiros, introduziu o costume egípcio da circuncisão. Em relação à interpretação mais
tradicional da circuncisão – como sinal da aliança entre Deus e Abraão,
como uma marca física do pacto entre Deus e o povo judeu – sabemos que
Freud a rejeita. Para Bernstein, talvez essa explicação bastante inventiva de
Freud sobre a circuncisão fosse para mostrar que esse costume nos proporcionaria uma prova adicional de que Moisés era egípcio. Por isso, o autor
destaca a questão da circuncisão segundo Heródoto5argumentado por Freud...
POR QUE OS JUDEUS ASSASSINARAM MOISÉS
Retomando... As medidas tomadas por Aquenáton para destruir o tradicional politeísmo egípcio e substituí-lo por um monoteísmo rígido, exclusivo e intolerante, com o tempo, transformaram-se em um estado de vingança
5
Heródoto aponta que o costume da circuncisão, por muito tempo, fora indígena no Egito suas afirmações são confirmadas pelas descobertas em múmias e até mesmo por pinturas
nas paredes dos túmulos - e pode-se supor que os semitas e os babilônios não eram
circuncidados (...). A possibilidade de que os judeus tenham adquirido o costume da circuncisão por outra maneira que não seja pelos ensinamentos religiosos de Moisés pode ser
rejeitada e despida de fundamento...
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RESENHA
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fanática entre a classe sacerdotal suprimida e o povo comum insatisfeito.
Após a morte de Aquenáton, seguiu-se uma violenta reação e um período de
anarquia. O politeísmo egípcio foi restabelecido e houve então uma tentativa
de apagar os traços da religião de Aton – o monoteísmo de Aquenáton. Essa
tentativa poderia ter tido êxito, se não fosse Moisés, um seguidor daquela
religião. Assim, como ele não podia esperar sobreviver no Egito, precisou
escolher um novo povo e conduzi-lo para fora do país, a fim de assegurar a
sobrevivência da religião de Aton. Como os sacerdotes de Amon executaram
sua vingança contra Aquenáton, os judeus que haviam sido forçados a deixar
o Egito e adotar um novo, estrito, duro e exclusivo monoteísmo, com rigorosos padrões éticos, procuraram vingar-se de Moisés. Com uma diferença, no
Egito a reação ocorreu após a morte de Aquenáton, enquanto os judeus não
esperaram até Moisés morrer, eles o assassinaram.
O HOMEM MOISÉS E A RELIGIÃO MONOTEÍSTA
Bernstein volta a questionar-nos:”A aceitação de todo esse relato histórico que vimos acima nos capacitaria a tirar quaisquer conclusões sobre o
caráter do povo judeu, caráter que provavelmente tornou possível sua sobrevivência, suas tradições até os dias presentes?”
E mais,”O que Freud quer dizer com tradição? Qual é a dinâmica
desta? Como pode explicar o poder da tradição religiosa e, em particular, da
tradição judaica?” As respostas de Freud são complexas e sutis, complementa
o historiador. Aponta que Freud começa dizendo-nos que o trauma do assassinato da importante figura paterna de Moisés foi recalcado e praticamente todos os traços desse ato foram apagados. Mas, algum tipo de lembrança manteve-se viva. “O retorno do recalcado”, ou seja, o retorno da religião do Moisés egípcio, após um longo hiato, propiciou ao povo judeu “uma
acentuação de sua auto - estima, devido à sua consciência de ter sido escolhido”, utilizando as palavras de Freud. Sem esquecermos que a
desmaterialização de Deus também trouxe uma nova e valiosa contribuição
para o secreto tesouro desse povo...
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O RETORNO DO RECALCADO
O assassinato do pai primevo e o de Moisés estão intimamente ligados. Explicando melhor, após um longo período de latência, ocorre um retorno do recalcado, o assassinato do pai se repete. Freud faz uma analogia
entre a gênese de uma neurose traumática e o trauma experimentado como
resultado do assassinato de Moisés, em que a latência (envolvendo simultaneamente o esquecimento e a lembrança inconsciente) representa um estágio crucial. De acordo com Freud, ainda segundo Bernstein, o que acontece
na gênese de uma neurose traumática no indivíduo é o mesmo que aconteceu no decorrer da história judaica. Sem o recurso a essa compreensão
psicanalítica da latência, não seria possível explicar o fato marcante do hiato
em uma tradição religiosa - como uma tradição que em vez de se tornar mais
fraca com o tempo, se tornou cada vez mais forte no decorrer dos séculos. O
que fica recalcado na memória de um povo nunca é totalmente recalcado,
por esse motivo pode haver um retorno do recalcado, um retorno que pode
irromper com grande força psíquica em um indivíduo ou na história de um
povo, complementa o historiador.
A TRADIÇÃO
O autor nos diz que há dois motivos para esse conceito de tradição
não ser suficiente para explicar o que aconteceu no curso da história judaica. O primeiro é que ele não justifica o “hiato” - o longo período de latência durante o qual o monoteísmo mosaico foi suprimido e recalcado, antes de
afinal sair triunfante. “Como podemos justificar o fato de uma tradição parecer morrer e então, ‘de repente’, reafirmar-se?” O autor afirma, ainda, que
tradições não são simplesmente contínuas; elas envolvem rupturas e reversões. O segundo motivo de os estudos ”tradicionais” sobre a tradição serem
inadequados é que eles deixam de explicar a força e a intensidade com que
uma tradição religiosa, há muito dormente, se reafirma. E essa intensidade
renovada de elementos dormentes, segundo os estudos de Bernstein, é um
fenômeno característico de muitas tradições. Entretanto, já vimos que Freud
não afirma que a religião monoteísta de Moisés foi totalmente obliterada, foi
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RESENHA
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uma “tradição semi-extinta” que deixou seus traços... Enfim, Freud argumenta que os profetas mantiveram vivos os ideais mosaicos. E Bernstein
nos lembra também que Freud está perfeitamente a par das complexas
modalidades através das quais uma tradição é transmitida de forma consciente – exemplos, histórias, preceitos, rituais, mandamentos, etc. E que não
podemos esquecer que, ao considerarmos essas modalidades conscientes,
devemos também ter em mente o que é inconscientemente comunicado e
recalcado.
Então, ao fazer uma analogia entre a dinâmica da neurose traumática
no indivíduo e o papel do trauma na história de um povo, Freud direciona
nossa atenção para essa interação de traços de memória, conscientes e
inconscientes, na transmissão de uma tradição. E aponta que, na tradição
religiosa patriarcal judaica, existem não apenas traços mnêmicos do assassinato de Moisés, mas também traços de memória do homicídio do pai
primevo. E para salientar cita Freud: “não hesito em declarar que os homens
sempre souberam (dessa maneira especial) que um dia possuíram um pai
primevo e o assassinaram” 6 Essa memória esquecida assim afirma Freud
foi de novo reativada pelo dramático evento da morte de Moisés, assassinato
praticado pelos judeus.
A ESSÊNCIA DO POVO JUDEU
Entretanto, todas essas afirmações ou argumentações que Freud faz
sobre o passado não explicam o que ele quer explicar, o caráter do povo
judeu, nos diz Bernstein. “No nível manifesto, trata-se de um livro sobre as
origens egípcias do monoteísmo judaico e as vicissitudes históricas dos
ideais mosaicos na formação do caráter do povo judeu”. Mas Bernstein afirma que não podemos ignorar o conteúdo latente da narrativa de Freud.
Vejamos...
O segmento da parte III, é uma breve seção na qual Freud apresenta
6
FREUD apud BERNSTEIN, op.cit. , p.77
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um sumário de sua análise do significado cultural da religião monoteísta
mosaica e seu profundo efeito sobre o caráter do povo judeu. É onde ele
insiste que não há preceito mais importante na religião mosaica do que “a
proibição de fabricar uma imagem de Deus”. É aqui que ele conta a história
da fundação da “primeira escola de Torá7”, servindo de parábola sobre o que
permitiu a sobrevivência do povo judeu durante sua longa história de perseguições.
Freud tentou exprimir claramente essa essência que ele resume na
expressão “Der Fortschritt in der Geistigkeit”8. Este é o duradouro legado do
monoteísmo judaico - e legado que, segundo Freud, manteve o povo judeu
unido e lhe permitiu sobreviver ao longo de séculos de perseguição.
Trata-se de um legado ao mesmo tempo intelectual, espiritual e ético;
um legado que sobrevive aos ensinamentos religiosos do judaísmo. E o mais
importante é a tentativa de Freud de colocar em palavras o que ele sentia
como tão forte convicção emocional. Então, “a proibição mosaica de fabricar
imagens - advertência profética para não retroceder à idolatria - não é simplesmente um imperativo negativo. No sentido positivo, é a expressão de Der
Fortschritt in der Geistigkeit, ou seja, “o imperativo ético para se viver uma
vida de verdade e justiça” complementa Bernstein. Dito de outro modo, se
essa proibição (de fabricar imagens) fosse aceita, deveria ter um efeito profundo, pois implica que a percepção sensória passe a um lugar secundário
com relação ao que poderia ser chamado de idéia abstrata - um triunfo da
intelectualidade (Geistigkeit) sobre a sensualidade (Sinnlichkeit) ou, estritamente falando, uma renúncia instintual, com todas as suas conseqüências
psicológicas necessárias.
Luzimar Stricher
7
Fundada pelo rabino Jochanan Ben Zakkai.
Strachey utilizou como tradução, a pesada expressão “intelectualidade e espiritualidade”.
Em inglês (e em português, embora não em sua etimologia latina), “intelectualidade” não
consegue transmitir a força e a qualidade dinâmica da palavra alemã “Geist”. Em alguns de
seus empregos em inglês(e em português) , “espiritualidade”, além de não ter o significado
intelectual e racional do alemão “Geist”, por vezes é até usada como o oposto do que é
verdadeiramente “intelectual”.
8
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AGENDA
Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events
in the last decade. London, Hogarth, 1992.)
Criação da capa: Flávio Wild - Macchina
MAIO – 2000
Dia
03,10,17
24 e 31
04
04 e 11
04 e 25
08, 15
22 e 29
08 e 22
Hora
Local
20h30min Sede da APPOA
21h
Sede da APPOA
20h30min Sede da APPOA
Sede da APPOA
20h
20h30min Sede da APPOA
21h
Sede da APPOA
09 e 23
11 e 24
20h
Sede da APPOA
20h30min Sede da APPOA
12
18h30min Sede da APPOA
13
09-14h
Sede da APPOA
15 e 29
25
20h
21h
Sede da APPOA
Sede da APPOA
19 - 21 - - - - - - 21
18h45min
22
20h
30
21hn
A combinar
Gr. Hotel Canela
Gr. Hotel Canela
Sede da APPOA
Sede da APPOA
Sede da APPOA
Atividade
Seminário “O método psicanalítico”- Responsável: José Luiz Caon
Reunião da Mesa Diretiva
Cartel Preparatório do Relendo Freud e Conversando sobre a APPOA
Reunião da Comissão de Biblioteca
Seminário “A técnica psicanalítica”- Responsável: José Luiz Caon
Seminário “O trabalho das passagens...” Responsáveis: Ana Maria da Costa, Edson
de Sousa e Lucia Serrano Pereira
Reunião da Comissão de Aperiódicos
Congresso Brasil: descoberta V invenção
Temas psicanalíticos fundamentais
Seminário “A topologia fundamental de
Jacques Lacan” - Responsável: Ligia Víctora
Seminário “Teoria e clínica psicanalítica da
adolescência” - Resp.: Rodolpho Ruffino
Reunião da Comissão do Correio da APPOA
Reunião da Mesa Diretiva aberta aos membros da APPOA
Relendo Freud e conversando sobre a APPOA
Cartel do Interior
Reunião da Comissão da Home Page
Relendo Freud - Análise Finita e Infinita
Reunião do Serviço de Atendimento Clínico
PRÓXIMO NÚMERO
UM PAÍS CHAMADO BRASIL
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ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
GESTÃO 1999/2000
Presidência - Alfredo Néstor Jerusalinsky
a
1 . Vice-Presidência - Lucia Serrano Pereira
2a. Vice-Presidência - Maria Ângela Brasil
1o. Tesoureiro - Carlos Henrique Kessler
2a. Tesoureira - Simone Moschen Rickes
1o. Secretário - Jaime Alberto Betts
2a.Secretária - Marta Pedó
MESA DIRETIVA
Ana Maria Gageiro, Ana Maria Medeiros da Costa, Ana Marta Goelzer Meira,
Cristian Giles, Edson Luiz André de Sousa,Gladys Wechsler Carnos,
Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora, Liz Nunes Ramos,
Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Mario Fleig, Robson de Freitas Pereira,
e Valéria Machado Rilho.
EXPEDIENTE
Órgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre
Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RS
Tel: (51) 333 2140 - Fax: (51) 333 7922
e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.br
Jornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956
Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.
Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (051) 318 6355
Comissão do Correio
Coordenação: Maria Ângela Brasil e Robson de Freitas Pereira
Integrantes: Ana Laura Giongo Viccaro, Francisco Settineri, Gerson Smiech Pinho,
Henriete Karam, Liz Nunes Ramos, Luzimar Stricher,
Marcia Helena Ribeiro e Maria Lúcia Müller Stein
S U M Á R I O
EDITORIAL
1
NOTÍCIAS
2
SEÇÃO TEMÁTICA
MOISÉS É UM PLURAL?
Maria Auxiliadora P. Sudbrack
O HOMEM MOISÉS E A
RELIGIÃO MONOTEÍSTA
Ana Irma Callegari
O DESEJO PATERNO
Alfredo Jerusalinsky
O MOISÉS DE MICHELANGELO
OU O MOISÉS DE FREUD
Maria Elisabeth da S. Tubino
ÀS MARGENS DO
“MOISÉS”DE FREUD
Rodolpho Ruffino
19
SEÇÃO DEBATES
ENTREVISTA COM
CHARLES MELMAN:
“O Complexo de Moisés”
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RESENHA
“FREUD E O LEGADO
DE MOISÉS”
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AGENDA
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N° 79 – A N O I X
MAIO – 2 0 0 0
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EDITORIAL Novamente a questão do pai nos ocupa e preocupa