//67 D. Jorge Ferreira da Costa Ortiga Arcebispo de Braga e Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa A beleza da glória de Deus na criação Exposição de Ilda David’ sobre São Paulo Celebramos hoje a conversão de S. Paulo, figura ímpar do cristianismo, Apóstolo dos gentios, anunciador incansável da fé, da esperança e da caridade. Ao abrir os horizontes da fé, no diálogo com a cultura do seu tempo (recordamos as passagens na sinagoga judaica, no areópago grego ou no fórum romano), Paulo revolucionou o mundo ao pregar com ardor e paixão o hino da caridade, da liberdade dos filhos de Deus. Para Paulo, artífice da palavra, Deus «não habita em santuários construídos pela mão do homem […] não devemos pensar que a Divindade seja semelhante ao ouro, à prata ou à pedra, trabalhados pela arte e engenho do homem» (Act 17, 24.29). Deus ao habitar na história humana suscita a conversão, abertura de coração, o desinstalarmo-nos para ir ao encontro do rosto do Outro, do próximo na sua indigência. Como diz Urs von Balthasar a «palavra de Deus suscita a resposta do homem, tornan- do-se ela própria o amor que responde e que deixa ao mundo a iniciativa» de representar algo em tons humanos. Homem apaixonado por Cristo, «espírito ao contrário», um «vulcão», «umas das personagens mais fascinantes da Bíblia», segundo as palavras da pintora Ilda David’, Paulo revela-nos o esplendor da glória de Deus, na revelação suprema da cruz de Cristo, beleza que salva o mundo, por um acto de amor total, gratuito, num «excesso de dom» (João Duque). Se Paulo nos legou a palavra de Deus na sua Ilda David’ Actos dos Apóstolos, 9,1-25 Seminário Conciliar de S. Pedro e S. Paulo, Braga //67 D. Jorge Ferreira da Costa Ortiga Arcebispo de Braga e Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa verdade, hoje inauguramos uma nova gramática do olhar que une a visão à Palavra que nos convoca para «escuta atenta do ser», no «Dasein» da nossa história (Heiddeger). João Paulo II na Carta aos Artistas dizia: «Vivendo e agindo é que o homem estabelece a sua relação com o ser, a verdade e o bem. O artista vive numa relação peculiar com a beleza. Pode-se dizer, com profunda verdade, que a beleza é a vocação a que o Criador o chamou com o dom do talento artístico». É a Palavra, na sua máxima densidade e relção imagética, que nos compromete com o ver, desvela o sentido do olhar face à imagem, e nos leva a desprender dos nossos ângulos e perspectivas, para entrarmos na textura visual (relação texto-imagem), na dinâmica silenciosa e inquiridora da palavra e na glória infinita de Deus. Vislumbramos nessa visão uma revelação, uma poiesis, um conteúdo que nos transforma, tal como foi a intensa luz que invadiu os olhos de Paulo, para daí em diante deixar de se ver a si mesmo para ver apaixonadamente com olhos de Deus, pelas mãos de Ananias. Neste desejo de alcançar o ser da eternidade numa bela liturgia coloquial entre Deus e o Homem, a Igreja desde sempre valorizou a arte humana na sua relação com a contemplação do esplendor do mistério pascal de Cristo (alguns exemplos: a arte paleocristã com os belos frescos a representar as diversas cenas bíblicas, a arte renascentista, a talha barroca, as formas de arte contemporânea que procuram recuperar os espaços, os silêncios inquiridores das palavras até à exaustão das suas possibilidades, apelando para uma memória que convoque a presença urgente de um rosto, do amor infinito de Deus na vida humana). Como escreve o papa Bento XVI na exortação Sacramentum Caritatis (Sacramento da Caridade) «a beleza não é uma simples harmonia de formas; “o mais belo dos filhos do homem» (Sl 45[44], 3) misteriosamente é também um individuo sem distinção nem beleza que atraia o nosso olhar” (Is 53, 2). Curioso é que essa atracção do olhar revelanos o amor cruciforme que transfigura a morte pela luz suave e radiante da ressurreição. A propósito desta epifania permiti que cite Duarte Melo acerca da pintura de Ilda David’: tem um modo próprio de interrogar e de avizinhar-se à beleza: identifica uma epifania, uma página, um assombro e estabelece com eles um pacto, como quem escolhe uma morada. A sua obra tem o vislumbre e o segredo de uma poética» que nos arrebata e nos atrai para a verdadeira vocação: amar. «Se queremos aprender a amar temos de fazer o que faríamos se quiséssemos aprender qualquer arte, como a música, a pintura, arte da medicina ou engenharia» (Erich Fromm). O valor universal da arte humaniza as relações humanas, torna-nos próximos na descoberta de uma nova evangelização que coloque em diálogo o património artístico religioso e as diversas culturas existentes e emergentes. Assim, a beleza artística, presença do Espírito de Deus no humano, é um «convite a buscar o rosto de Deus que se tornou visível em Jesus de Nazaré” (João Paulo II, Ecclesia in Europa, 60). A arte, na sua autonomia e criatividade fecunda, (re)liga-nos poeticamente à beleza da criação, por linhas e formas que nos apontam o sentido Outro da vida. Na acção litúrgica, na relação com a Palavra //67 D. Jorge Ferreira da Costa Ortiga Arcebispo de Braga e Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa divina, a beleza não decora simplesmente mas transcende-nos para uma graça sacramental, onde Deus se manifesta e nos torna participantes da sua epifania, do seu vislumbre e do seu «resplendor extraordinário» (Teixeira de Pascoaes). Recorrendo ao tempo, verificamos que o Homem procurou desde sempre através da arte exprimir o belo, a transcendência, o toque do dedo de Deus na vida humana e a nossa participação dessa divindade, presente, por exemplo, na imponência da pintura de Miguel Ângelo na Capela Sistina. Nesta tentativa de revelar o indizível, por meio de cores, traços e linhas, aproximamo-nos da densidade Kenótica do amor de Deus, do mistério inefável e indizível de Cristo, que só a simbólica operante faz resplandecer a beleza do rosto misericordioso de Deus. Como diz João Paulo II na Carta já citada: «A verdade é que o cristianismo, em virtude do dogma central da encarnação do Verbo de Deus, oferece ao artista um horizonte particularmente rico de motivos de inspiração. Que grande empobrecimento seria para a arte o abandono desse manancial inexaurível que é o Evangelho!», e eu digo, das Cartas autênticas de Paulo. Cristo é manifestação dessa beleza, porque é revelação de um Deus amor, faz com que ela atinja o seu máximo esplendor na cruz do ressuscitado, pois «beleza que salva o mundo é amor o cruciforme» de Cristo (D. Manuel Clemente), ou ainda como diz o Cardeal Maria Martini parafraseando Dostoïevski: «A beleza que salva o mundo é o amor que partilha a dor», presente na imagem cruciforme (na cruz) de Cristo ressuscitado, nossa esperança e esperança da humanidade, revelação de um Deus solidário com a sua criação. Agradeço a Ilda David’, em nome da Arquidiocese de Braga, e do Seminário em particular, a magnífica exposição de pintura com que nos privilegia. Estou certo de que, do ponto de vista da pastoral vocacional, da cultura e da evangelização, os frutos serão imensos, de modo a intuirmos a visão da glória de Deus para a humanidade nas Cartas de Paulo e a assumirmos a nossa vocação ao serviço do amor. Ilda David’ Actos dos Apóstolos, 17,16-32 Seminário Conciliar de S. Pedro e S. Paulo, Braga