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D. Jorge Ferreira da Costa Ortiga
Arcebispo de Braga e Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa
A beleza da glória de
Deus na criação
Exposição de Ilda David’ sobre São Paulo
Celebramos hoje a conversão
de S. Paulo, figura ímpar do
cristianismo, Apóstolo dos
gentios, anunciador incansável da fé, da esperança e da
caridade.
Ao abrir os horizontes da fé,
no diálogo com a cultura do
seu tempo (recordamos as
passagens na sinagoga judaica, no areópago grego ou no
fórum romano), Paulo revolucionou o mundo ao pregar
com ardor e paixão o hino da
caridade, da liberdade dos filhos de Deus.
Para Paulo, artífice da palavra, Deus «não habita em santuários construídos pela mão do
homem […] não devemos pensar que a Divindade seja semelhante ao ouro, à prata ou à
pedra, trabalhados pela arte e engenho do
homem» (Act 17, 24.29).
Deus ao habitar na história humana suscita
a conversão, abertura de coração, o desinstalarmo-nos para ir ao encontro do rosto do
Outro, do próximo na sua indigência.
Como diz Urs von Balthasar a «palavra de
Deus suscita a resposta do homem, tornan-
do-se ela própria o amor que responde e que
deixa ao mundo a iniciativa» de representar
algo em tons humanos.
Homem apaixonado por Cristo, «espírito ao
contrário», um «vulcão», «umas das personagens mais fascinantes da Bíblia», segundo as palavras da pintora Ilda David’, Paulo
revela-nos o esplendor da glória de Deus, na
revelação suprema da cruz de Cristo, beleza
que salva o mundo, por um acto de amor
total, gratuito, num «excesso de dom» (João
Duque).
Se Paulo nos legou a palavra de Deus na sua
Ilda David’
Actos dos Apóstolos, 9,1-25
Seminário Conciliar de S. Pedro e
S. Paulo, Braga
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D. Jorge Ferreira da Costa Ortiga
Arcebispo de Braga e Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa
verdade, hoje inauguramos uma nova gramática do olhar que une a visão à Palavra que
nos convoca para «escuta atenta do ser», no
«Dasein» da nossa história (Heiddeger).
João Paulo II na Carta aos Artistas dizia: «Vivendo e agindo é que o homem estabelece a
sua relação com o ser, a verdade e o bem.
O artista vive numa relação peculiar com a
beleza.
Pode-se dizer, com profunda verdade, que a
beleza é a vocação a que o Criador o chamou
com o dom do talento artístico».
É a Palavra, na sua máxima densidade e relção imagética, que nos compromete com o
ver, desvela o sentido do olhar face à imagem, e nos leva a desprender dos nossos
ângulos e perspectivas, para entrarmos na
textura visual (relação texto-imagem), na dinâmica silenciosa e inquiridora da palavra e
na glória infinita de Deus.
Vislumbramos nessa visão uma revelação,
uma poiesis, um conteúdo que nos transforma, tal como foi a intensa luz que invadiu os
olhos de Paulo, para daí em diante deixar de
se ver a si mesmo para ver apaixonadamente
com olhos de Deus, pelas mãos de Ananias.
Neste desejo de alcançar o ser da eternidade
numa bela liturgia coloquial entre Deus e o
Homem, a Igreja desde sempre valorizou a
arte humana na sua relação com a contemplação do esplendor do mistério pascal de
Cristo (alguns exemplos: a arte paleocristã
com os belos frescos a representar as diversas cenas bíblicas, a arte renascentista, a
talha barroca, as formas de arte contemporânea que procuram recuperar os espaços,
os silêncios inquiridores das palavras até à
exaustão das suas possibilidades, apelando
para uma memória que convoque a presença urgente de um rosto, do amor infinito de
Deus na vida humana).
Como escreve o papa Bento XVI na exortação
Sacramentum Caritatis (Sacramento da Caridade) «a beleza não é uma simples harmonia
de formas; “o mais belo dos filhos do homem» (Sl 45[44], 3) misteriosamente é também um individuo sem distinção nem beleza
que atraia o nosso olhar” (Is 53, 2).
Curioso é que essa atracção do olhar revelanos o amor cruciforme que transfigura a morte pela luz suave e radiante da ressurreição.
A propósito desta epifania permiti que cite
Duarte Melo acerca da pintura de Ilda David’: tem um modo próprio de interrogar e de
avizinhar-se à beleza: identifica uma epifania,
uma página, um assombro e estabelece com
eles um pacto, como quem escolhe uma morada.
A sua obra tem o vislumbre e o segredo de
uma poética» que nos arrebata e nos atrai
para a verdadeira vocação: amar. «Se queremos aprender a amar temos de fazer o que
faríamos se quiséssemos aprender qualquer
arte, como a música, a pintura, arte da medicina ou engenharia» (Erich Fromm).
O valor universal da arte humaniza as relações
humanas, torna-nos próximos na descoberta
de uma nova evangelização que coloque em
diálogo o património artístico religioso e as
diversas culturas existentes e emergentes.
Assim, a beleza artística, presença do Espírito
de Deus no humano, é um «convite a buscar
o rosto de Deus que se tornou visível em Jesus de Nazaré” (João Paulo II, Ecclesia in Europa, 60).
A arte, na sua autonomia e criatividade fecunda, (re)liga-nos poeticamente à beleza da
criação, por linhas e formas que nos apontam
o sentido Outro da vida.
Na acção litúrgica, na relação com a Palavra
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D. Jorge Ferreira da Costa Ortiga
Arcebispo de Braga e Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa
divina, a beleza não decora
simplesmente mas transcende-nos para uma graça
sacramental, onde Deus se
manifesta e nos torna participantes da sua epifania, do
seu vislumbre e do seu «resplendor extraordinário» (Teixeira de Pascoaes).
Recorrendo ao tempo, verificamos que o Homem procurou desde sempre através da
arte exprimir o belo, a transcendência, o toque do dedo
de Deus na vida humana e a
nossa participação dessa divindade, presente, por exemplo, na imponência da pintura
de Miguel Ângelo na Capela
Sistina.
Nesta tentativa de revelar o
indizível, por meio de cores,
traços e linhas, aproximamo-nos da densidade Kenótica do amor de Deus,
do mistério inefável e indizível de Cristo, que
só a simbólica operante faz resplandecer a
beleza do rosto misericordioso de Deus.
Como diz João Paulo II na Carta já citada: «A
verdade é que o cristianismo, em virtude do
dogma central da encarnação do Verbo de
Deus, oferece ao artista um horizonte particularmente rico de motivos de inspiração.
Que grande empobrecimento seria para a
arte o abandono desse manancial inexaurível
que é o Evangelho!», e eu digo, das Cartas autênticas de Paulo.
Cristo é manifestação dessa beleza, porque
é revelação de um Deus amor, faz com que
ela atinja o seu máximo esplendor na cruz do
ressuscitado, pois «beleza que salva o mundo
é amor o cruciforme» de Cristo (D. Manuel
Clemente), ou ainda como diz o Cardeal Maria Martini parafraseando Dostoïevski: «A beleza que salva o mundo é o amor que partilha
a dor», presente na imagem cruciforme (na
cruz) de Cristo ressuscitado, nossa esperança e esperança da humanidade, revelação de
um Deus solidário com a sua criação.
Agradeço a Ilda David’, em nome da Arquidiocese de Braga, e do Seminário em particular,
a magnífica exposição de pintura com que
nos privilegia.
Estou certo de que, do ponto de vista da
pastoral vocacional, da cultura e da evangelização, os frutos serão imensos, de modo a
intuirmos a visão da glória de Deus para a
humanidade nas Cartas de Paulo e a assumirmos a nossa vocação ao serviço do amor.
Ilda David’
Actos dos Apóstolos, 17,16-32
Seminário Conciliar de S. Pedro e
S. Paulo, Braga
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