RODRIGO CESAR DE ARAÚJO SANTOS O CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO NO PENSAMENTO DE CAIO PRADO JÚNIOR (1964-1968) Guarulhos, maio de 2013 2 RODRIGO CESAR DE ARAÚJO SANTOS O CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO NO PENSAMENTO DE CAIO PRADO JÚNIOR (1964-1968) Relatório final de pesquisa do Programa Institucional de Voluntários de Iniciação Científica (PIVIC) do Departamento de História da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLFCH), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob orientação da Prof.ª Dr.ª Marcia Barbosa Mansor D’Aléssio. Guarulhos, maio de 2013 3 Em rigor, numa investigação histórica, é estudado um desenvolvimento (ou um declínio), desenvolvimento ou declínio de um grupo definido, entre duas datas definidas. Aquilo que se procura no estudo metodológico é o instrumento de análise que torne possível a edificação racional de cada estudo particular. Em suma, para que a ciência histórica progrida, o que conta é a aplicação do instrumento ao caso, e não o instrumento em si; este não deve transformar-se em objeto de contemplação. Pierre Vilar Desenvolvimento econômico e análise histórica 4 SUMÁRIO AGRADECIMENTOS ............................................................................................................... 5 APRESENTAÇÃO..................................................................................................................... 6 PARTE I INTERPRETAÇÕES SOBRE CAIO PRADO JÚNIOR: TEMAS E DEBATES ................... 13 1. Sentido da colonização e totalidade .............................................................................. 14 2. Circulação, produção e modo de produção ................................................................... 22 3. Consumo, demanda e mercado interno ......................................................................... 31 4. Dualismo e desenvolvimento desigual e combinado .................................................... 38 5. Vias de desenvolvimento capitalista no Brasil ............................................................. 43 6. Caio Prado Jr. e o marxismo no pensamento econômico brasileiro ............................. 49 7. Historiografia e economia política................................................................................ 56 PARTE II DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO ................. 62 8. A “amputação do espírito”............................................................................................ 63 9. A teoria da revolução em debate .................................................................................. 70 10. Controle ideológico e o concurso na USP .................................................................... 79 11. Crítica aos economistas ortodoxos ............................................................................... 86 12. Investimentos e industrialização ................................................................................... 92 13. Estado, mercado e consumo ......................................................................................... 99 14. Desenvolvimento desigual e combinado e dualismo .................................................. 103 15. Continuidade e mudança: de colônia a nação ............................................................. 108 16. O desenvolvimento como tema .................................................................................. 115 17. Lições do “livro da vida” ............................................................................................ 121 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 125 BIBLIOGRAFIA E FONTES ................................................................................................ 128 ANEXOS ................................................................................................................................ 133 5 AGRADECIMENTOS À Deise e Ricardo, pela vida e pelo exemplo. À Carolina e Daniel, pela companhia e amizade. À Márcia D’Aléssio, pela sabedoria e orientação atenta e cuidadosa. À Janes Jorge, pelo incentivo, apoio e comentários. À Dainis Karepovs, pela confiança depositada. À Valter Pomar e Maximiliano McMenz, pelas sugestões ao projeto de pesquisa. À Bruno Elias, pelo companheirismo. À Carlos H. M. Menegozzo, pelas conversas estimulantes. À Elisabete Marin Ribas e à equipe do Arquivo do IEB/USP, pelo trabalho realizado. Aos estudantes, professores e funcionários da Unifesp, pelo aprendizado. Aos colegas de trabalho da Fundação Perseu Abramo, pela convivência cotidiana. Aos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras, por suas lutas e conquistas. 6 APRESENTAÇÃO Atualmente, no plano internacional, enquanto a estagnação e a perspectiva de um longo período recessivo ameaçam as economias dos países centrais, os chamados emergentes enfrentam a crise capitalista com menos desequilíbrios. Em virtude da instabilidade mundial e das disputas imperialistas decorrentes, porém, não é possível realizar projeções precisas, de médio e longo prazos, sobre os possíveis desdobramentos da presente situação internacional. De qualquer modo, as economias que nos últimos anos reduziram medidas de austeridade fiscal e aumentaram investimentos produtivos – ainda que não tenham promovido a regulamentação do mercado financeiro – vem demonstrando mais preparo para enfrentar a tormenta. A própria transferência, durante o período de hegemonia neoliberal, dos parques produtivos das grandes multinacionais para os países pouco industrializados contribuiu para fazer pender a balança da geopolítica internacional. Há uma tendência ao deslocamento do centro político e econômico mundial em direção ao sul e ao oriente. Com o fracasso do mercado desregulado, o terreno é fértil para o ressurgimento de reflexões sobre a viabilidade do neoliberalismo, bem como as possíveis vias de desenvolvimento econômico. Mas com uma crise capitalista, o terreno também abre espaço para debater alternativas ao próprio capitalismo. No Brasil, tornaram-se mais evidentes, assim, as controvérsias sobre o tipo de desenvolvimento a adotar, inclusive a manutenção ou transformação do padrão monopolista, dependente e latifundiário de desenvolvimento capitalista do Brasil no século XX. Recentemente, os debates envolvendo o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), o papel do Estado na economia, as taxas de investimento e a larga escala de inserção de setores sociais marginalizados ao mercado de consumo de massas reanimam os debates sobre a questão do desenvolvimento. Com base em diferentes teorias econômicas e modelos de desenvolvimento, forças sociais de variados matizes do espectro político e inseridas em diversas instituições – tanto da sociedade civil, quanto do Estado – participam da discussão, opinando sobre temas que dizem respeito à economia política do desenvolvimento. Entre os debatedores, muitos seguem inspirando-se em formulações produzidas pela intelectualidade nacional e internacional entre as décadas de 1950 e 1970, que tratou de assuntos semelhantes, mas em contextos históricos bem diferentes, obviamente. É vasta, causou forte impacto político e acadêmico e segue exercendo influência a literatura produzida neste período a respeito das teorias do 7 desenvolvimento econômico, da economia política do desenvolvimento, do subdesenvolvimento, da teoria da dependência, do capitalismo tardio etc. Entre estas formulações encontram-se as de Caio Prado Júnior, que foi não apenas um historiador proeminente de seu próprio tempo como segue sendo referência obrigatória para quem deseja conhecer a formação histórica brasileira. Mas foi também um homem de ação, militante político, membro ativo do PCB, marxista declarado. Neste sentido, compreender o modo como encarava a “questão do desenvolvimento”, como ele mesmo se refere, pode contribuir para aprofundar o conhecimento sobre sua análise historiográfica e levantar questões sobre as relações estabelecidas entre o pensamento econômico desenvolvimentista e o autor, bem como estimular a reflexão sobre as influências do desenvolvimentismo sobre uma parcela da esquerda brasileira nos conturbados anos de 1960. Em uma primeira aproximação, estudar Caio Prado Júnior hoje, depois de tantas pesquisas realizadas e polêmicas travadas, pode parecer pouco promissor se o que se pretende é trazer alguma contribuição minimamente relevante para o conhecimento histórico. Mas se a construção da realidade histórica tem por base a solução de problemas elaborados com questões do tempo presente, cada momento histórico lançará questões próprias sobre um objeto que já foi estudado em períodos anteriores. Assim, considerando que no período em que mais se produziu textos que analisam o pensamento de Caio Prado Júnior a “questão do desenvolvimento” não esteve tão presente quanto atualmente, estudar o conceito de desenvolvimento deste autor pode contribuir para levantar novas questões e abrir algumas sendas interessantes, seja no debate sobre a historiografia brasileira, sobre o pensamento econômico brasileiro ou sobre uma das principais referências intelectuais de setores da esquerda que discutem o desenvolvimento hoje. Na presente pesquisa, analisamos o conceito de desenvolvimento em Caio Prado Júnior entre 1964 e 1968. Neste sentido, cabe observar que nosso objeto não é o conceito de desenvolvimento presente no conjunto da obra de Caio Prado Júnior, mas particularmente de um período específico, principalmente a partir de duas obras: A revolução brasileira (1966) e História e desenvolvimento (1968). Afinal, para estudar o conceito de Caio Prado Júnior ao longo de todo o tempo em que manteve sua produção intelectual, seria necessário tanto um estudo mais amplo e profundo do conjunto de sua obra e de sua trajetória biográfica e formação intelectual, quanto da história do pensamento econômico desenvolvimentista e da teoria do desenvolvimento por um período que se estende dos anos 1930 aos anos 1970. Um projeto com esta envergadura ultrapassaria os limites de uma iniciação científica. 8 Portanto, nossa pesquisa abordará, especificamente, o conceito de desenvolvimento de Caio Prado Júnior quando ocorre uma importante reconfiguração na esquerda brasileira e no pensamento desenvolvimentista (1964-1968). Neste período são produzidos os dois textos citados, que consideramos particularmente representativos de um momento específico da trajetória intelectual do autor, um momento de síntese. Consideramos que o estudo do conceito de desenvolvimento utilizado por um historiador do século XX pode contribuir na compreensão de sua produção historiográfica. Contudo, prosseguir neste caminho exige enfrentar algumas questões importantes: qual a influência que os compromissos políticos do historiador exercem sobre a leitura que faz do processo histórico? Em que medida as discussões políticas de seu tempo sobre o modelo de desenvolvimento a ser implementado participa da construção de seu conhecimento histórico? De que maneira a ideia do desenvolvimento como passaporte para o futuro pode interferir na sua interpretação do passado? Se admitirmos que a construção da realidade histórica tem por base problemas elaborados com questões contemporâneas, podemos considerar a posição do historiador diante do desenvolvimento um fator importante no momento de sua produção historiográfica? No caso particular de Caio Prado Júnior, é possível identificar a influência de alguma corrente do desenvolvimentismo? Em que termos ocorreu o diálogo entre ele e as doutrinas econômicas que formularam conceitos de desenvolvimento nos anos 1950 e 1960? Em que medida as divergências internas no PCB nos anos 1960 condicionou suas posições a respeito do desenvolvimento brasileiro? Quais as teorias e interpretações a respeito do desenvolvimento que Caio Prado Júnior pretende desconstruir? Com quem estabelece relações de concordância e de divergência quando se trata de compreender processos de desenvolvimento e propor ações para realizá-los conscientemente? Como se relacionam desenvolvimento histórico e desenvolvimento econômico nos referidos textos? Quais as influências exercidas pelos conflitos e contradições vividas por Caio Prado Júnior durante o processo de concepção e redação destas obras? Nem todas estas perguntas terão respostas objetivas e conclusivas no âmbito desta pesquisa. Afinal, elas serviram mais para nos orientar na investigação do que como questões que precisam ser encerradas. Portanto, ao contrário de querer formular as respostas certas, a preocupação maior consistiu em fazer as perguntas que nos permitissem percorrer os caminhos mais promissores. 9 *** A primeira etapa de nosso relatório de pesquisa se ocupa da análise dos intérpretes de Caio Prado Júnior. Neste relatório, apresentamos e colocamos em contraste aquelas que parecem constituir as principais contribuições nesta discussão. Com isso, utilizamos essas interpretações, por um lado, como registro do diálogo suscitado pela obra de Caio Prado Jr. no que tange à questão do desenvolvimento e, de outro, como recurso para balizar a segunda etapa de nossa pesquisa: uma leitura própria deste nosso objeto a partir da análise das fontes. Caio Prado tornou-se um clássico e, como tal, gerou muitas discussões. Seus primeiros debatedores se depararam com uma produção intelectual inovadora. Obviamente, não tinham como saber que sua obra viria a influenciar tanto e tão decisivamente sucessivas gerações no Brasil. Porém, a própria atenção que deram aos seus principais textos, quando publicados, foi um fator para sua difusão. As polêmicas travadas contribuíram para que suas ideias fossem conhecidas. Como toda obra que promove rupturas, encontrou resistências diversas para se afirmar. Apesar disso, foi capaz de produzir uma matriz interpretativa da realidade brasileira, inclusive porque, por outro lado, também encontrou calorosa acolhida. Nesta tensão, a obra de Caio Prado Júnior sobressaiu principalmente por sua coerência interna de conjunto e pela força de suas teses. Mas em sua vasta e diversificada produção, foram principalmente os textos de história que conferiram ao conjunto da obra a posição de referência. Não por acaso, é comum (mas não é consenso) que Caio Prado Júnior seja considerado um historiador. Apesar de suas ideias não terem se limitado a um campo do conhecimento, foi neste em particular que foi mais bem sucedido. Sua interpretação da história brasileira tornou-se um paradigma historiográfico, a partir do qual novos estudos se desenvolveram, seja para aprofundá-lo, contestá-lo ou simplesmente compreendê-lo melhor. Entre eles estão os que tomaram a obra e seu autor como objetos de análise ou investigaram sua contribuição para a discussão de temas específicos, os mais variados. Desta ampla gama de trabalhos, reunimos e analisamos não apenas aqueles que tratam especificamente da questão do desenvolvimento no pensamento de Caio Prado Jr. – um conjunto que nossa pesquisa demonstrou ser significativo. Outros textos sobre o autor precisaram ser consultados, por dois motivos principais: primeiro, porque alguns trabalhos que tomam outros temas e questões em Caio Prado como objeto abordam a questão do desenvolvimento de forma secundária e tangencial; em segundo lugar, porque precisamos 10 compreender uma série de questões relevantes sobre seu pensamento se quisermos uma maior aproximação de sua concepção de desenvolvimento. Portanto, selecionamos uma bibliografia que, analisando ou não este tema específico, traz elementos importantes para subsidiar nossa própria interpretação. O principal critério que seguimos para a seleção da bibliografia analisada foi, por um lado, a contribuição que traria para uma compreensão ampla do pensamento do autor, no qual seu método de interpretação da realidade e o manejo das categorias marxistas são parte importante. Por outro, procuramos aproveitar a bibliografia que mais poderia contribuir para o levantamento de temas e questões direta ou indiretamente relacionadas com o nosso objeto de estudo: o conceito de desenvolvimento de Caio Prado Júnior. A leitora e o leitor especializados sentirão falta, nesta primeira parte do trabalho, das obras de Paulo Teixeira Iumatti, Paulo Henrique Martinez e Dainis Karepovs. Elas foram aproveitadas na segunda parte do texto, sobretudo por não apresentarem diferenças fundamentais a se destacar em relação à bibliografia coligida e analisada na primeira parte de nosso trabalho. Farão falta, igualmente, as importantes contribuições de Rubem Murilo Leão Rego, Raimundo Santos, Igor Zanoni C. Carneiro Leão e Renato Perim Colistete. Neste caso, suas ausências decorrem mais dos limites de tempo e disponibilidade para lhes dar um tratamento adequado, uma vez que foram obtidas e estudadas em um momento no qual a pesquisa se encontrava em estágio mais avançado. Esperamos que os estudos que pretendemos empreender futuramente possam redimir nossa falha neste sentido. Realizamos nosso diálogo com os intérpretes de Caio Prado Júnior com o olhar voltado para questões que a própria bibliografia ressaltou, ou seja, para os principais focos de debate: 1) sentido da colonização e totalidade; 2) circulação, produção e modo de produção; 3) consumo, demanda e mercado interno; 4) dualismo e desenvolvimento desigual e combinado; 5) vias de desenvolvimento capitalista; 6) Caio Prado Jr. e o marxismo no pensamento econômico brasileiro; e por fim, 7) história e economia política. Na segunda parte do presente relatório, apresentamos nossa própria interpretação do conceito de desenvolvimento do autor com base na análise das fontes de nossa pesquisa. Interpretando a concepção de Caio Prado Júnior sobre o marxismo e a dialética, Lincoln Secco afirma que “sua teoria está toda entranhada na narrativa histórica”. Note-se que entre o artigo homônimo publicado em 2010 e o texto de onde extraímos esta citação, de 2011, Secco adiciona a palavra “toda” na mesma formulação, reforçando a indissociabilidade entre teoria e 11 historiografia no pensamento do autor. 1 Não se trata de afirmar que toda a concepção teóricometodológica de Caio Prado encontra-se em sua narrativa histórica, uma vez que em diversos artigos e até mesmo livros inteiros – como as obras filosóficas que escreveu nos anos 1950 ou a crítica que teceu ao estruturalismo francês no início dos anos 1970 – o autor discorre sobre as questões epistemológicas, conceituais, teóricas e metodológicas que balizam seu pensamento. Trata-se, na verdade, de indicar que é na tensa e dinâmica relação entre teoria e historiografia que poderemos encontrar o caminho para a compreensão do pensamento caiopradiano em sua unidade e totalidade. Neste sentido, é possível sugerir a hipótese de que a relação entre a economia política do desenvolvimento e a análise da história em seu processo de permanente desenvolvimento constitui elemento central do conceito de desenvolvimento de Caio Prado Júnior. É importante considerar, porém, que a formulação conceitual de Caio Prado Júnior está vinculada com as experiências por ele vividas no momento de sua elaboração. Com isso, não pretendemos dizer que se trata de buscar explicações para os conceitos caiopradianos onde eles não foram formulados, ou seja, fora de seu pensamento. Mas não se pode compreendê-los isolando-os da realidade diante da qual o pensamento humano se processou. É neste sentido que buscamos relacionar, no breve período analisado, a trajetória de vida do autor no contexto político, social e cultural pelo qual circulou, por um lado, com o pensamento expresso nas obras que então produziu, por outro. Reiteramos: nosso trabalho visa realizar uma análise circunscrita ao arcabouço conceitual que orienta o pensamento do autor diante da questão do desenvolvimento. Neste sentido, ainda que nosso objeto esteja mais vinculado ao pensamento do autor que às experiências concretas que viveu, sua biografia será abordada como elemento constituinte e, portanto, indispensável para compreender as reflexões que realizou. O autor confrontou diretamente algumas forças políticas e sociais e correntes de pensamento na medida em apresentou suas teses em tom abertamente conflitante. Em diversas ocasiões nos anos 1960 e 1970 houve uma relação de oposição entre Caio Prado Júnior e os órgãos de repressão da ditadura militar, as elites conservadoras e parcela da esquerda brasileira. Ele considerava que a apreciação dos processos históricos serviria de fundamento para formular as orientações rumo ao equacionamento da questão do desenvolvimento brasileiro. A compreensão da história contribuiria na definição do sentido do desenvolvimento 1 Cf. SECCO, Lincoln. Tradução do marxismo no Brasil: Caio Prado Júnior. Mouro: Revista Marxista – Núcleo de Estudos d’O Capital. São Paulo, ano 1, n. 2, jan. 2010. Idem, Tradução do marxismo no Brasil: Caio Prado Júnior. In: PINHEIRO, Milton (org.) Caio Prado Júnior: história e sociedade. Salvador, Quarteto, 2011, p. 61. 12 econômico. E para ser alcançada esta síntese, seria necessária uma colaboração entre teoria e prática que fosse capaz de dar respostas aos problemas criados pela própria ação humana na história. Não por acaso, portanto, as discussões a respeito do método mais adequado para a apreensão da realidade e a formulação de interpretações históricas, modelos teóricos e orientações políticas são elementos cruciais em História e desenvolvimento (1968) e A revolução brasileira (1966). A análise destas obras visando a compreensão do conceito de desenvolvimento de Caio Prado Jr. passou, portanto, pelas considerações metodológicas nelas presentes. Por fim, com nossa pesquisa pretendemos contribuir para aprofundar a compreensão sobre a historiografia caiopradiana, levantar questões sobre as relações estabelecidas entre o pensamento econômico desenvolvimentista e o autor, bem como estimular a reflexão sobre a influência do pensamento político e econômico na produção historiográfica. Neste sentido, nos propusemos a trazer ao debate algumas impressões que possam servir como estímulo para a realização de debates e outras pesquisas. Se conseguirmos gerar inquietações, indagações e questionamentos nos leitores, e se formos capazes de estimulá-los a demandar mais conhecimento sobre o tema, nossos objetivos terão sido cumpridos. 13 PARTE I INTERPRETAÇÕES SOBRE CAIO PRADO JÚNIOR: TEMAS E DEBATES 14 1. Sentido da colonização e totalidade É amplamente reconhecido o mérito de Caio Prado Jr. em inserir o moderno processo de colonização nos quadros da expansão marítima e comercial européia. Ele teria inovado a abordagem da realidade brasileira porque primeiro a situou no quadro mais geral do comércio europeu.2 Não por acaso, é amplamente citada, a seguinte passagem do capítulo “O sentido da colonização”, de Formação do Brasil contemporâneo: Se vamos à essência de nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isso. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura bem como as atividades do país. 3 Tal é a aceitação e a difusão desta tese que seria tarefa exaustiva, enfadonha e desnecessária tentar mapear as obras em que este trecho aparece. Com tamanha repercussão, para o leitor contemporâneo, a noção de sentido da colonização soa hoje como uma obviedade, parece mesmo o ar que respiramos: imprescindível, mas nem o notamos, já que se tornou senso comum.4 Repisar este assunto, aparentemente, serviria como mero recurso didático para guiar o leitor rumo à explicação de algum outro conceito presente na obra do autor, uma vez que subordina toda sua compreensão da formação brasileira a esta categoria explicativa. Mas um olhar atento à bibliografia nos permite identificar interpretações que extraem desta categoria alguns aspectos relevantes para nossa investigação. Escrevendo no início dos anos 1980, Fernando Novais indica que apesar do referido livro ter sido compreendido pelo público, sua utilização teria sido tópica, limitando-se ao aprofundamento de temas laterais por ele suscitado ou incorporando elementos de sua exposição. Ainda não teria sido destacada a articulação mais geral que caracteriza a obra na qual se formula a categoria de sentido da colonização, ou seja, a visão de conjunto na qual se tem em vista a integração das várias partes e sua relação com o todo: “o ‘sentido’, isto é, a essência do fenômeno, explica as suas manifestações, e ao mesmo tempo explica-se por elas (...), a análise dos vários segmentos vai enriquecendo e comprovando a categoria 2 Cf. SECCO, Lincoln. Caio Prado Jr.: o sentido da revolução. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 178. 3 PRADO JÚNIOR. Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 29. 4 Cf. SECCO, Lincoln. Caio Prado Jr.: o sentido da revolução, p. 181. 15 fundamental”, permitindo que a análise se realize “em dois movimentos: da aparência para a essência, e da essência para a realidade”. Ao não ter sido tomada como tema a discussão e o aprofundamento de seu método de análise, tal negligência teria empobrecido o aproveitamento da obra. 5 Uma leitura mais profunda deveria considerar que, “o ‘sentido da colonização’, categoria analítica básica, é apreendido através da inserção do objeto (colonização européia na América) num todo maior, ou seja, os mecanismos comerciais da expansão marítima européia”, sendo que esta “localização do fenômeno na totalidade de que faz parte, situando seus nexos, permitiria a apreensão das categorias a partir das quais a reconstrução inteligível se torna uma possibilidade”. Contudo, tendo em vista que “quando é o próprio contexto mais amplo que está em questão, a dificuldade reaparece em toda sua força”, pois faz-se necessário “definir com precisão o que deve ser inserido, e em quê”.6 Diante deste problema, segundo Fernando Novais, a análise de Caio Prado Júnior “se deteve ao meio do caminho”. Afinal, sendo a expansão comercial européia “a face mercantil de um processo mais profundo, a formação do capitalismo moderno”, seria necessário “procurar as articulações da exploração colonial com esse processo de transição feudalcapitalista”. Deste modo, o processo de colonização “não apareceria apenas na sua feição comercial, mas como um canal de acumulação primitiva do capital mercantil no centro do sistema”, com o que “se reformularia e aprofundaria a visão de conjunto”. 7 Tal percepção metodológica permitiu a Fernando Novais se notabilizar como o autor que, partindo da análise de Caio Prado Jr. e a incorporando, demonstrou os vínculos entre a colonização e a acumulação primitiva de capital nos quadros da transição do feudalismo para o capitalismo na Europa, aprofundando o conhecimento sobre o mercantilismo e o Antigo Sistema Colonial: “É esse sentido profundo que articula todas as peças do sistema”. 8 Inúmeros autores seguiram, em linhas gerais, o percurso legado por Novais. Isto é claramente perceptível em Bernardo Ricupero. Segundo ele, para que “a análise de Caio Prado Jr. sobre a colônia brasileira fosse realmente completa, ela não deveria se ater apenas ao 5 Cf. NOVAIS, Fernando. Caio Prado Jr. na historiografia brasileira. In: MORAES, Reginaldo; ANTUNES, Ricardo; FERRANTE, Vera B. (orgs.). Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 15-6. 6 Ibidem, p. 19. 7 Ibidem, p. 19-20. 8 NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 2006, p. 97. 16 Brasil, mas mostrar como o funcionamento de nosso sistema colonial se articula no movimento mais geral do capital, particularmente no momento da passagem do feudalismo para o capitalismo”.9 Este autor também ressalta que Caio Prado Jr. “traça um retrato da grande exploração, base da colônia, como sistema, em que suas partes constitutivas – a grande propriedade, o trabalho escravo e a produção voltada para o mercado externo – se articulam organicamente”. Desse modo, “num processo de síntese, vai reconstruindo o concreto colonial, até entendê-lo como totalidade”, ou seja, “trata a colônia como uma totalidade, dotada de um certo sentido, e não um mero amontoado de tendências díspares”. 10 Com perspectiva semelhante, Lincoln Secco diz que “Caio Prado Jr. tinha em vista a totalidade de relações sociais e econômicas do capitalismo mundial” e, portanto, “só pode entender a lógica de funcionamento da economia colonial submetida à lógica da acumulação mundial e, nesta, as formas de produção da colônia são dominadas pela esfera do capital comercial europeu”. Com isso, conclui que o “estudo do capitalismo precisa passar pela ‘história’ das economias ‘regionais’ do sistema sem olvidar que, na verdade, não há uma história de uma economia regional ou nacional, somente a história do capitalismo como sistema mundial” 11. Mas, logo se coloca um problema: existem diferenças entre Fernando Novais, Bernardo Ricupero e Lincoln Secco a respeito do uso que Caio Prado Jr. faz da categoria de totalidade? Analisemos mais detidamente esta questão. Novais afirma que Caio Prado Jr. utiliza o procedimento metodológico que parte da aparência para a essência e desta para a realidade – o que permite a construção das categorias analíticas, no caso, o sentido da colonização. A categoria, por sua vez, pode ser compreendida por meio da inserção da colonização européia na América nos mecanismos comerciais da expansão marítima. Assim, a reconstrução inteligível da realidade torna-se uma possibilidade permitida pela categoria analítica quando se localiza o fenômeno “na totalidade de que faz parte, situando seus nexos”. Portanto, a crítica a Caio Prado Jr. de que “sua análise se deteve 9 RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr.: o primeiro marxista brasileiro. Revista USP. São Paulo, n. 38, junhoagosto, 1998, p.76. 10 11 RICUPERO, Bernardo, Sete lições sobre as interpretações do Brasil, p.147-50. SECCO, Lincoln. Caio Prado Jr.: o sentido da revolução, p. 178-80. Aparentemente, Secco dialoga com uma idéia sintetizada na seguinte passagem: “Não há mais, verdadeiramente, no mundo contemporâneo, história econômica deste ou daquele país, mas unicamente a de toda a Humanidade”. PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1969, p. 275. Note-se, porém, que este trecho se encontra no capítulo intitulado “Imperialismo” e que o autor restringe tal afirmação para o “mundo contemporâneo”, ou seja, o momento posterior à II Guerra Mundial. 17 no meio do caminho” decorre da compreensão de Novais de que inserir o Brasil “na expansão marítima européia seja um recorte que apanhe apenas algumas dimensões da realidade, não levando o olhar até a linha do horizonte” – no caso, “o conjunto do mundo colonial”. Fazia-se necessário extrapolar “a face mercantil de um processo mais profundo, a formação do capitalismo moderno”, e passar a “procurar as articulações da exploração colonial com esse processo de transição feudal-capitalista”. Percebe-se, assim, que na interpretação de Fernando Novais, a totalidade pensada por Caio Prado Júnior – expansão marítima mercantil no contexto de formação do capitalismo – não é capaz de apreender as articulações do conjunto do mundo colonial, pois não aprofunda nem o estudo do processo histórico metropolitano, nem a relação entre as partes do sistema colonial. Diferente é o enfoque de Bernardo Ricupero, que chega a falar que o autor “reconstitui a totalidade do passado brasileiro”12: (...) Caio Prado, com o marxismo possivelmente limitado que conhecia, foi capaz de fazer uma obra monumental, precisamente por ter sabido reter do marxismo o que nele é mais importante: a abordagem. Abordagem esta que lhe permitiu elevarse do abstrato ao concreto, reconstruindo, nesse ínterim, a totalidade da experiência brasileira. 13 Mais adiante, Ricupero reitera a noção de totalidade que atribui a Prado Jr. ao dizer que “Enquanto outros autores privilegiaram um aspecto ou outro de nossa realidade, Caio Prado, particularmente ao considerar a Colônia brasileira e a grande exploração agrária como totalidades, abre caminho para se entender como seus diferentes elementos se combinam de forma original.”14 Ademais, diferentemente de Fernando Novais, que concebe o sistema colonial em sua dimensão mundial, Ricupero utiliza a expressão “sistema colonial brasileiro”, considerado como o “todo” no qual se inserem e se articulam seus elementos. Interpretando Caio Prado Jr., este autor considera que a partir do objetivo mercantil e em função dele teria se criado “uma totalidade, a colônia, espécie de corpo social subordinado a outro corpo social, a metrópole.” Contudo, o mais interessante da leitura de Ricupero é que logo depois de considerar a colônia uma totalidade na qual se encontra o mais importante de seus elementos, a grande unidade produtora, diz que esta “grande exploração seria, portanto, a exemplo do sistema colonial, uma totalidade”, que por sua vez seria constituída por três elementos: 1) a 12 RICUPERO, Bernardo. “Caio Prado, cem anos depois”. Comunicação em seminário do Instituto de Estudos Brasileiros, outubro de 2007. http://www.acessa.com/gramsci/?id=797&page=visualizar (acessado em 01/06/2012, grifos nossos) 13 RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr.: o primeiro marxista brasileiro, p.71. (grifos nossos) 14 Ibidem, p. 71 18 produção de bens de alto valor no mercado externo; 2) em grandes unidades produtivas; 3) trabalhadas pelo braço escravo.15 Com isso, se para Fernando Novais seria necessário ir além do mero aspecto mercantil da expansão colonial e considerar a acumulação primitiva de capital nos marcos da transição do feudalismo para o capitalismo em processo na Europa para uma abordagem totalizante da colonização, é possível fazer a seguinte suposição: ele consideraria que a interpretação de Ricupero sobre a totalidade em Caio Prado Jr. afasta ainda mais o nosso autor da “linha do horizonte” por atribuir-lhe uma visão demasiadamente concentrada nos aspectos internos da colônia, negligenciando seus nexos com a formação do capitalismo em escala global. Lincoln Secco, por sua vez, apesar de não fazer referência a Fernando Novais, concorda com sua tese, segundo a qual Caio Prado Jr. “ficou ao meio do caminho”, pois ao invés de ampliar os quadros narrativos para a compreensão mais ampla do contexto de formação do capitalismo mundial – ou ao menos para a economia atlântica como um todo, como comentou Fernand Braudel – teria deslocado seu “olhar geográfico para as áreas de povoamento internas.”16 Mas, se isso é verdade, como é possível dizer que o autor “tinha em vista a totalidade de relações sociais e econômicas do capitalismo mundial”? Não seriam estas análises excludentes entre si? Para saber como essas interpretações se relacionam com a questão da totalidade, devemos analisar a leitura que o autor faz da questão do método em Caio Prado Jr. Segundo Secco, o percurso que ele realizou para compreender a economia colonial deduz do sentido da colonização tudo que a compõe (suas partes, podemos dizer) e “suas articulações externas, incluindo aspectos demográficos, povoamento, alimentação, formas de produção, crises etc.” O fundamento da obra está na inserção dessa totalidade num quadro geral, que é o capitalismo mundial. Esse é o ponto de partida (oculto) e o ponto de chegada, sendo a economia colonial um concreto empírico que perfaz a mediação entre o abstrato (capitalismo mundial destituído de concretude) e o concreto pensado (a economia mundial capitalista concreta no seu todo, incluindo a dinâmica européia e seu “complemento” colonial).17 Esta ideia de que a economia colonial é uma totalidade, composta por elementos deduzidos do sentido da colonização, aproxima Secco da análise de Ricupero. Ao mesmo tempo, vemos que também se considera a economia colonial como um concreto empírico 15 Cf. idem. Sete lições sobre as interpretações do Brasil, p.140-41 16 SECCO, Lincoln. Caio Prado Jr.: o sentido da revolução, p.180. 17 Ibidem, p. 179-80. 19 complementar à dinâmica européia, ou seja, ambas seriam elementos de outra totalidade, “a economia mundial capitalista concreta no seu todo”, com a diferença de que a segunda seria o centro dinâmico em função do qual se organizaria seu “‘complemento’ colonial”. Assim, podemos sugerir que, para Lincoln Secco, Caio Pardo Jr. ficou “no meio do caminho” não apenas por deixar de ampliar o quadro narrativo em escala mundial, não alcançando o horizonte da acumulação primitiva do capital no contexto da transição do feudalismo para o capitalismo como uma totalidade (como pretende Novais), como também, em consequência do deslocamento de seu “olhar geográfico” para dentro, por considerar a própria colônia como uma totalidade (conforme Ricupero). Com isso, entre Fernando Novais, Bernardo Ricupero e Lincoln Secco, ao menos aparentemente, existe uma divergência irreconciliável no que se refere à utilização da categoria de totalidade por Caio Prado Jr.: o primeiro, considerando a totalidade como a relação entre os diferentes elementos em escala mundial, afirma que Caio Prado Júnior não a alcançou; o segundo, considerando o Brasil como uma totalidade que, por sua vez, é parte do capitalismo mundial18, afirma que Prado Jr. faz boa utilização da categoria de totalidade e que está aí o melhor do materialismo histórico de nosso autor19; e o terceiro, ora considerando que o autor tem em vista a totalidade do capitalismo mundial, ora afirmando que desloca o olhar geográfico para o meio interno, ficou ele mesmo a meio caminho. Contudo, em nossa opinião, aquela divergência só é irreconciliável se ao critério espacial geográfico for atribuída a preponderância para a utilização da categoria de totalidade. Lincoln Secco parece sugerir isso quando chega ao extremo de afirmar que “não há uma história de uma economia regional ou nacional, somente a história do capitalismo como sistema mundial”. Fernando Novais e Bernardo Ricupero, a partir de nossa discussão, parecem sugerir semelhante preponderância à questão geográfica para se definir uma abordagem totalizante. Contudo, todos os autores destacam que, na verdade, é a devida atenção dada por Caio Prado Jr. para a relação entre as partes que permite a compreensão do todo em sua complexidade. Assim as diferenças de interpretação entre Novais, Ricupero e Secco, podem ser decorrentes: a) da posição em que cada um insere a dimensão geográfica no manuseio da categoria de totalidade; b) do tratamento ambíguo ou das margens de interpretação legadas 18 Cf. RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo: Departamento de Ciência Política da USP. Fapesp, Editora 34, 2000, p. 41. 19 Cf. RICUPERO, Bernardo. “Caio Prado, cem anos depois”. 20 por Caio Prado Jr. ao utilizar a totalidade como instrumento de análise histórica; ou c) do fato de que Caio Prado realmente soube utilizar criativamente a categoria de totalidade no processo de tradução ou nacionalização do marxismo para a realidade brasileira, aplicando-a a objetos de estudos inseridos em diferentes dimensões geográficas e temporais. Para saber se este todo se define pelo espaço geográfico para o qual se volta a análise histórica cabe considerar que, segundo a lógica dialética, uma parte contém contradições internas que exigem uma abordagem de sua totalidade para compreendê-las, o que implica analisar também as contradições que esta parte estabelece com as outras partes constitutivas de um todo maior no qual estão inseridas. Portanto, apesar de estabelecer o recorte espacial no qual se insere o objeto estudado, a escala geográfica não define, por si só, se uma análise histórica é totalizante: independente do espaço analisado, a categoria de totalidade pode ser utilizada na medida em que se buscar compreender as inúmeras e complexas relações contraditórias encerradas no interior das partes constitutivas do todo e nelas entre si. De qualquer modo, é no método de investigação e na narrativa histórica que se manifestam concretamente a lógica dialética. Para Caio Prado Jr., afirma Jorge Grespan, a interpretação da história não é arbitrária, ela deve traduzir o sentido real no movimento próprio do pensamento – um autodinamismo dialético –, deve expressar não apenas o predomínio de uma das forças em luta, mas a luta mesma das forças opostas, da qual resulta um sentido sempre mutável.20 Maria Odila Leite da Silva Dias nos dá uma pista de como Caio Prado desenvolve sua análise, que considera uma “manifestação magistral da tão propugnada história global, que desafia as forças dos historiadores, dedicados a reconstruir totalidades expressivas do passado”. Para ela, o autor (...) persegue a diversidade das formas sociais específicas como princípio norteador de conceituação de seu trabalho: remontar ao passado, devassar o vir a ser das formações sociais do Brasil tanto nas relações de dependência internacional, quanto e sobretudo, no seu contexto nacional, interiorizadas nas subordinações regionais.21 Ao buscar a compreensão dialética do processo histórico brasileiro, Caio Prado Jr. demonstrou que o marxismo, como teoria aberta, desenvolve e um método capaz de permitir a 20 Cf. GRESPAN, Jorge. A teoria da história de Caio Prado Júnior: dialética e sentido. Revista do IEB, São Paulo, n.47, setembro de 2008, p. 71. 21 LEITE DIAS, Maria Odila Silva da. Impasses do inorgânico. In: D’INCAO, Maria Angela (org.). História e Ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior. São Paulo: Editora UNESP; Brasiliense; Secretaria de Estado da Cultura, 1989, p. 382. (grifos nossos) 21 compreensão de diferentes contextos históricos como totalidades, desde que não se subordine a realidade às formulas da teoria ou a teoria ao mero empirismo. Mas o que nos interessa mais especificamente no presente trabalho é saber em que medida a totalidade (ou as totalidades) considerada(s) por Caio Prado Jr. condicionou sua visão sobre o processo de desenvolvimento brasileiro. Conscientemente ou não, a questão da totalidade anima a polêmica em relação à esfera que, segundo Caio Prado Jr., é prioritária na definição dos processos econômicos na história: seria a da produção ou da circulação? 22 2. Circulação, produção e modo de produção As interpretações mais recorrentes e influentes são aquelas que conferem à esfera da circulação a principal chave explicativa para a formação histórica do Brasil na obra de Caio Prado Jr., sendo praticamente inexistentes as teses que defendem que na produção se encontraria o dinamismo que condiciona os processos econômicos. Afinal, em diferentes momentos, o próprio autor deixou explicita sua compreensão sobre o assunto, sem ambigüidades, deixando pouca ou nenhuma margem para interpretações distintas. Por isso, é também muito recorrente a citação de outra passagem de Formação do Brasil contemporâneo quando se debate criticamente a abordagem caiopradiana a respeito da prioridade dada à esfera da circulação: “A análise da estrutura comercial de um país revela sempre, melhor que a de qualquer um dos setores particulares da produção, o caráter de uma economia, sua natureza e organização. Encontramos aí uma síntese que a resume e explica.”22 Esta compreensão, como muitas outras do autor, perduram ao longo de sua obra, que atravessa um período de mais de cinco décadas. Como indica Florestan Fernandes em 1988, Caio Prado Júnior “não se impôs uma revisão crítica”, uma vez que “estava convicto da veracidade de suas descobertas e do seu retrato da evolução histórica do Brasil e de outras sociedades periféricas e marginais (...)”.23Ao menos no que se refere à primazia dada ao mercado e à circulação na dinâmica econômica, esta tese se confirma com uma passagem pouco citada da tese para concorrer à Cadeira de História da Civilização Brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, escrita 26 anos depois de Formação do Brasil Contemporâneo, na qual o autor polemiza com a chamada teoria ortodoxa sobre a explicação do processo de crescimento econômico: O simples fato da inversão, como pretende a teoria ortodoxa, ou mesmo o fato mais geral e amplo da origem e formação do capital e sua acumulação, pouco ou nada explica acerca dos fatos originários que impulsionam o crescimento. O que deve ser considerado e que dá conta desse crescimento é o que se encontra na base e por detrás das inversões (e que são, em si apenas, unicamente um momento e aspecto no processo global de produção). A saber, e essencialmente, as circunstâncias gerais e os fatores originários que condicionam, promovem e impulsionam a 22 23 PRADO JÚNIOR. Caio. Formação do Brasil contemporâneo, p. 241. (grifo nosso) FERNANDES, Florestan. Os enigmas do círculo vicioso. In: PRADO JR. Caio. História e desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 7. 23 produção; é em primeiro e principal lugar, a conjuntura mercantil, isto é, as características da demanda.24 Portanto, apesar de levar em conta as condições em que a produção se organiza e as relações de produção se estabelecem, Caio Prado considera o mercado – esfera da circulação e realização de capital – como o motor do desenvolvimento econômico. Segundo Marcos Antônio M. da Rocha, esta sobredeterminação que a estrutura econômica mercantil exerce nos diagnósticos de Caio Prado prejudica o sentido prático de sua obra: A desconsideração sobre a diferenciação do capital mercantil e daí a diferenciação no interior da burguesia, com a formação de novas frações de classe, resultam em outro aspecto problemático na obra do autor. Ao considerar a superestrutura política como formada por um bloco homogêneo controlado hegemonicamente pelo capital mercantil, Caio Prado ignora a articulação das diversas frações de classe em torno do aparelho de Estado, levando-o portanto a considerar o aparelho de Estado como facilmente adaptável às exigências do capital mercantil. 25 Mas Rocha não é preciso na identificação do problema, que não reside em uma suposta visão homogênea do capital e da burguesia. Afinal, o que Caio Prado enfatiza é a relação mais de colaboração do que de conflito entre as frações de classe e seus capitais, não uma homogeneidade. O problema, na verdade, é que ele subestimou a profundidade da transformação na estrutura produtiva brasileira e, portanto, no padrão de acumulação, promovida pelo capital monopolista estrangeiro, sobretudo a partir dos anos 1950. Reconhecendo as posições de Prado Jr. a respeito da preponderância no momento da circulação e do capital mercantil, Marcia R. Victoriano afirma, inclusive, que esta ênfase analítica “pode ser compreendida no âmbito de uma tendência que ocupou o pensamento marxista não só nacional, mas principalmente internacional, sobre a questão do subdesenvolvimento e da dependência externa”. 26 Situando o importante papel atribuído por Caio Prado Jr. ao capital mercantil metropolitano no sentido da colonização, boa parte de seus intérpretes concluiu que o autor 24 PRADO JÚNIOR. Caio. História e desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 26. “Para Caio Prado Jr., a emergência da modernidade não está somente dificultada pela precária acumulação de capital (...), mas também pela inexistência de mecanismos do mercado, como a concorrência, a concentração da produção e o progresso tecnológico como fator de produtividade”. VICTORIANO, Marcia R. A questão nacional em Caio Prado Jr.: uma interpretação original do Brasil. São Paulo: Edições Pulsar, 2001, p. 56. Analisaremos a discussão sobre a categoria demanda em Caio Prado Júnior mais adiante, quando tratarmos do consumo. 25 ROCHA, Marcos Antônio M. da. Desenvolvimento Nacional, estrutura e superestrutura na obra de Caio Prado Júnior. Oikos. Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, 2009, p. 275-77. 26 VICTORIANO, Marcia R. A questão nacional em Caio Prado Jr.: uma interpretação original do Brasil, p. 34. 24 pensa o Brasil como uma formação social altamente determinada pela dinâmica externa. Escrevendo nos anos 1960 e 1970, os formuladores da teoria da dependência (André Gunder Frank, Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto etc.), foram aqueles que mais se valeram deste pensamento caiopradeano para fundamentar sua interpretação da realidade brasileira. Por outro lado, alguns autores não deixam de registrar que Caio Prado Jr. não pensa unilateralmente a presença marcante da esfera da circulação e do mercado externo no desenvolvimento histórico brasileiro. Para Fonseca, Caio Prado Jr. teria sido “precursor da Teoria da Dependência ao afirmar que são os processos sociais internos os responsáveis pela dinâmica histórica, e que, primordialmente, configuram seu sentido.” 27 De modo análogo, para Antonio Carlos Mazzeo, (...) ainda que reconheçamos a presença, na visão caiopradeana, de certo superdimensionamento do papel da esfera da circulação (...), lembramos que o fundamental da análise caiopradeana não é apresentar a esfera da circulação desconectada da esfera produtiva.28 Em sentido semelhante, Leandro Konder considera que (...) a situação lá fora era, para ele, a situação do mercado mundial, que deveria ser avaliada em função de nossa situação interna, isto é, das vicissitudes do nosso modo de produção. Nossos problemas eram os problemas da nossa sociedade e da nossa articulação com o mercado mundial.29 Para Konder, o “reconhecimento da centralidade das contradições sociais criadas em torno do modo de produção e a percepção aguda luta da luta de classes” teria feito com que a atenção dada aos “mecanismos que punham a nossa economia numa situação de dependência direta de movimentos comandados por forças instaladas no exterior” lhe permitissem, ao mesmo tempo, “recolher subsídios que elucidavam, no essencial, como se realizou a formação da sociedade brasileira”.30 27 FONSECA, Pedro Cezar Dutra da. Homenagem a Caio Prado Jr. Análise Econômica, ano 8, n. 14, nov. 1990, p. 151-55 (grifo nosso). 28 MAZZEO, Antonio Carlos. O Partido Comunista na raiz da teoria da Via Colonial do desenvolvimento do capitalismo. In: MAZZEO, Antonio Carlos; LAGOA, Maria Izabel (orgs.). Corações Vermelhos: os comunistas brasileiros no século XX. São Paulo: Cortez, 2003, p. 164. 29 KONDER, Leandro. A façanha de uma estréia. In: D’INCAO, Maria Angela (org.). História e Ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior, p. 136. 30 Idem, Caio Prado Jr.: nadador e aviador. Revista USP. São Paulo, n. 38, junho-agosto, 1998, p. 62. Para Marcia R. Victoriano, “A importância dada pelo autor não só às determinações abrangentes e externas, mas às especificidades do desenvolvimento econômico brasileiro está sustentada pelo renitente e indispensável uso de um instrumental teórico que é a própria perspectiva histórica ou dialética”. VICTORIANO, Marcia R. A questão nacional em Caio Prado Jr.: uma interpretação original do Brasil, p. 42. 25 Para ambos, o autor não tem uma visão unilateral das influências do mercado externo e da esfera da circulação no direcionamento da formação econômica brasileira. Mas, aqui surge um problema crucial para se pensar a questão do desenvolvimento em Caio Prado Jr.: qual é o lugar da categoria de modo de produção em sua análise da realidade brasileira? Não se encontra com facilidade definições categóricas a respeito da economia brasileira na obra de Caio Prado Jr., afirma Lincoln Secco. Ele não se preocupava em desenvolver conceitualmente sua matéria ou classificar a realidade histórica, sua teoria estava entranhada na narrativa histórica. Em seus textos, portanto, havia o uso escasso de categorias marxistas.31 Isso levou alguns analistas, como Carlos Nelson Coutinho, a considerarem que “o estoque de categorias marxistas de que se vale Caio Prado não é muito rico” e que, em seus trabalhos de história, (...) tem pouco peso o conceito de “modo de produção”, o que o leva por vezes a confundir, na análise da Colônia e do Império, o predomínio inequívoco de relações mercantis com a existência de um sistema capitalista (ainda que “incompleto”), o que deriva da prioridade metodológica que ele conscientemente atribui à esfera da circulação em detrimento da esfera da produção.32 Mazzeo polemiza direta e abertamente com Coutinho: (...) longe de “confundir” o capital comercial com o capitalismo complexo resultante da era industrial, Prado Jr. evidencia explicitamente que o caráter capitalista da colonização desde sua origem insere-se no amplo processo que irá desaguar no imperialismo, análise que de per se demarca, ontologicamente – e rente à visão marxiana sobre a construção do capitalismo –, a noção de processualidade genética do próprio capital em seu momento de afirmação, a partir do século XVI, visto por Marx como o momento mesmo do nascimento da era capitalista.33 Podemos perceber que esta divergência entre Coutinho e Mazzeo acerca da concepção de Caio Prado sobre a participação do capital mercantil na formação social brasileira é, na verdade, parte de um debate mais geral a respeito da formação do capitalismo brasileiro, do qual participam outros autores. Neste particular, é interessante notar que quando elabora o prefácio à terceira edição de História e desenvolvimento, Florestan Fernandes identifica o 31 Cf. SECCO, Lincoln, Caio Prado Jr.: o sentido da revolução, p. 176. Idem. Tradução do marxismo no Brasil: Caio Prado Júnior. Mouro: Revista Marxista. São Paulo, ano 1, n. 2, jan. 2010, p. 11. 32 O autor reconhece, porém, que “a prioridade atribuída à esfera da circulação não o impediu de definir de modo substancialmente adequado a formação econômico-social da era colonial, identificada por ele como um escravismo mercantil fundado na grande exploração rural, produtora de valores de troca para o mercado internacional.” COUTINHO, Carlos Nelson. Uma via “não-classica” para o capitalismo. In: D’INCAO, Maria Angela (org.). História e Ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior, p. 116-7. 33 MAZZEO, Antonio Carlos, O Partido Comunista na raiz da teoria da Via Colonial do desenvolvimento do capitalismo, p. 163-4. 26 grande peso que tem o capital mercantil na obra e tece críticas ao autor que, em linhas gerais, são pertinentes. Para ele, “Caio Prado Jr. se prende demais ao conceitual, à lógica dos conceitos que são essenciais em seu esquema descritivo e interpretativo”, fazendo-o focalizar de modo insuficiente as relações do capital mercantil com o capital industrial, e, após a II Grande Guerra e a ditadura militar, com o capital financeiro típico do capitalismo monopolista e da espécie de imperialismo que ele engendra, em nossos dias. Há deslocamento na economia. O capital mercantil não desaparece. Mas perde sua função hegemônica e determinante. O circulo vicioso persiste, mas não por sua conta. A investigação histórica deverá ir mais longe e aprofundar-se para explicá-lo.34 Evidente que, de acordo com Fernandes, Caio Prado Júnior não perseguiu este caminho na pesquisa. Ele teria razão “indiscutível” ao reter “os vínculos mais ostensivos procedentes do impacto do capital mercantil”, mas o elemento decisivo não seria este. A questão central (...) consiste no nexo estabelecido com a forma histórica da dominação externa e com as alterações do cenário mundial, que obrigaram as nações capitalistas centrais e sua superpotência a praticarem uma contra-revolução defensiva em escala mundial, que se alicerça sobre a internacionalização do modo de produção capitalista, do mercado moderno e das operações financeiras complexas.35 Assim, Caio Prado Jr. consegue captar muito bem as continuidades históricas do sentido da colonização, a ausência de momentos de profunda ruptura na história brasileira e a capacidade de incidência das oscilações conjunturais dos mercados externos e do capital mercantil na dinâmica interna da economia brasileira. Por isso mesmo, porém, parece subestimar as mudanças no desenvolvimento do capitalismo em escala mundial e seus impactos nacionais, que não se deram de modo abrupto. Ao captar essa peculiaridade do pensamento caiopradeano, Florestan antecipa, em certa medida, o debate que posteriormente travariam Coutinho e Mazzeo. Ressalte-se, portanto, que está em jogo nesta discussão não apenas uma interpretação desinteressada da obra de um autor, mas a própria noção de capital e capitalismo, seu surgimento, desenvolvimento e consolidação em escala global, regional e nacional. Em outras palavras, a divergência não é pontual, não se refere apenas à dicotomia circulação-produção, mas envolve diferentes enfoques teóricos no interior do marxismo, inclusive quanto à caracterização de capitalista a uma determinada formação histórica e ao entendimento que se 34 FERNANDES, Florestan. Os enigmas do círculo vicioso, p. 9-10. Fica evidente que Florestan não se afasta da ideia de determinação externa. Pelo contrário, a mantém e reforça quando afirma que ela é distinta e assumiu novas feições. 35 Ibidem, p. 10-11. 27 tem da categoria modo de produção: se engloba unitariamente produção, distribuição e consumo; se é uma totalidade que articula as estruturas econômica, jurídico-política e ideológica; se é o conceito de formação social que abrange o modo de produção e a superestrutura da sociedade; se numa formação social concreta podem estar presentes vários modos de produção; se, neste caso, haveria um como dominante etc.36 Porém, avançar nestas polêmicas nos faria desviar da análise pretendida neste momento da discussão bibliográfica. Em função da referida preponderância à estrutura comercial, aos mercados e ao capital mercantil, cunhou-se o epíteto de circulacionismo, conferido a Caio Prado Jr. e demais autores que se apoiaram na perspectiva por ele desenvolvida. Foi utilizado por diversos críticos, sendo Jacob Gorender o mais proeminente, sobretudo a partir clássico O escravismo colonial, em que afirma: Esta vinculação do escravismo colonial ao mercado mundial fez nascer as chamadas teorias circulacionistas, cuja análise se concentra no modo de circulação e por meio deste pretende explicar o modo de produção (quando simplesmente não o omite). (...) A partir desse enfoque teórico hoje chamado de circulacionista, não se vai mais longe do que foi o próprio Caio, ou seja, até a demonstração de que a produção escravista era orientada para a exportação e subordinada à espoliação colonialista. (...) Em última análise não é a circulação que desvenda a organização da produção, mas o contrário.37 Neste sentido, Gorender aumenta o tom da crítica e considera uma “extremação do enfoque circulacionista” a tese de Fernando Novais, segundo a qual “é a partir do tráfico negreiro que se pode entender a escravidão africana colonial”. Para ele, colocadas as coisas em seus devidos termos, “verifica-se que o tráfico negreiro existiu por causa da escravidão, por causa do modo de produção escravista colonial, e não o inverso” 38 . Aparentemente, porém, Gorender não compreendeu que, em Novais, o tráfico negreiro está para a explicação da escravidão africana colonial, assim como, em Marx, a posição da anatomia do homem está para a explicação da anatomia do macaco. Não se trata, portanto, de uma relação de causa e efeito, como parece sugerir, mas do método de investigação mais adequado para entender a realidade. Com base em sua crítica à linha de interpretação “que se concentrou no mercado e dele fez a chave explicativa da economia colonial”, resultando na “sobreposição da esfera da circulação às relações de produção”, Jacob Gorender propõe “a inversão radical do enfoque: 36 Cf. SANDRONI, Paulo et. al. Dicionário de economia. São Paulo: Abril Cultural, 1985, p. 283. 37 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2010, pp. 201-2 e 542. 38 Ibidem, p. 562. 28 as relações de produção da economia colonial precisam ser estudadas de dentro para fora, ao contrário do que tem sido feito, isto é, de fora para dentro”. Deste modo, seria possível “correlacionar as relações de produção às forças produtivas em presença e elaborar a categoria modo de produção escravista colonial na sua determinação específica.” Para ele, haveria a carência de “uma teoria geral do escravismo colonial que proporcione a reconstrução sistemática do modo de produção como totalidade orgânica, como totalidade unificadora de categorias cujas conexões necessárias, decorrentes de determinações essenciais, sejam formuladas em leis específicas.” 39 Mas Bernardo Ricupero considera que seria uma tolice “caracterizar um modo de produção específico o que é simplesmente uma situação particular no interior do capitalismo” e, portanto, o “circulacionismo de Caio Prado, pelo menos no que se refere à Colônia, não é inteiramente equivocado”. Afinal, como “o mais importante eram as relações econômicas exteriores à sociedade brasileira”, como “o que realmente contava eram as relações da Colônia com a Metrópole no quadro da economia mundial capitalista em constituição”, Caio Prado Jr. teria mantido “o rigor ao se abster diante de um impasse teórico, a conceituação do modo de produção colonial”.40 Em defesa de Caio Prado Jr. também se levanta Lincoln Secco, para quem seus críticos (...) não atentaram para o fato de que, na periferia, o estudo da esfera da distribuição é que conduz à totalidade. Isso porque o dinamismo do modo de produção está no centro do sistema e é este que dita a lógica de reprodução global sistêmica ou, nas palavras de Caio Prado Júnior, dá o “sentido da colonização”. As áreas colonizadas, por definição, não são nacionais (mesmo no colonialismo indireto a partir do fim do pacto colonial) e não possuem um modo de produção autônomo; logo, porque partir da estrutura produtiva delas para explicar o todo? (...) [Caio Prado Júnior] Não podia e não devia, portanto, dar atenção às formas de produção escravistas como se elas fossem o alfa e o ômega do processo de acumulação, pois esse processo se dá em escala mundial, e não nacional ou local. 41 Neste texto de 2008, Secco não deixa dúvidas de que adota para si o pensamento de Caio Prado quanto ao estudo da esfera de circulação como o mais capaz de conduzir à totalidade. Em 2010, porém, publica um artigo que parece dizer o contrário, ao afirmar que Prado Jr. 39 Ibidem, p. 53-5. Não pretendemos aprofundar uma análise crítica a respeito da pertinência ou não de buscar a reconstrução de um modo de produção historicamente novo como totalidade orgânica da economia colonial, pois isto escaparia em muito dos objetivos deste trabalho. Para uma abordagem favorável à análise caiopradeana, vide: FERRARI, Andrés; FONSECA, Pedro Cezar Dutra. A escravidão colonial brasileira na visão de Caio Prado Júnior e Jacob Gorender: uma apreciação crítica. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 32, n.1, p. 161-196, jun. 2011. Para uma síntese dos debates em torno das teses de Jacob Gorender, ver: MAESTRI, Mario. O escravismo colonial: a revolução copernicana de Jacob Gorender. In: GORENDER, Jacob. O escravismo colonial, p. 13-44. 40 RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 154-5. 41 SECCO, Lincoln. Caio Prado Jr.: o sentido da revolução, p. 177-8. 29 “rejeita a determinação simples, o economicismo (esta forma de idealismo), sem perder de vista o primado ontológico do modo de produção na explicação da formação social.” 42 Infelizmente, carecemos de um maior desenvolvimento da questão, pois o autor do artigo não explica nem fundamenta esta tese. Permanece a seguinte questão: se a explicação de uma dada formação social em sua totalidade é obtida se for considerado “o primado ontológico do modo de produção”, não seria necessário, para apreender as relações entre as partes desta formação, investigar o modo de produção predominante na própria formação social periférica – mesmo que ele não seja autônomo e que o pólo dinâmico da acumulação de capital esteja no centro do sistema? Mesmo se admitirmos que as relações externas às da colônia são, de fato, as mais importantes (o que por si só é polêmico), ao realizar deixar de lado o referido “impasse teórico”, o autor não perde de vista elementos importantes para a explicação da formação econômico-social da colônia? Afinal, é correto pensar que as formações econômicas coloniais não teriam um modo de produção hegemônico no sentido clássico de Marx, porque em última instância o domínio do sistema é exterior ao espaço dominado? 43 Ou, na verdade, o capital comercial (expressão desse domínio), por estar enquadrado na esfera da circulação e apenas servindo de veículos à troca de mercadorias, existiria em qualquer formação social que produzisse mercadorias, exigindo o deslocamento do estudo teórico do processo de circulação ao processo de produção? 44 Certamente, considerar a esfera da circulação como predominante no sistema colonial não significa, necessariamente, negar a existência real de um modo de produção específico na colônia; e a não realização de uma reflexão teórica e conceitual a respeito deste modo de produção não implica, de imediato, negligenciar suas implicações no processo histórico, que podem ser identificadas, observadas e descritas em uma formação social concreta. Contudo, isso não nos impede de considerar que o emprego da abstração como instrumental 42 SECCO, Lincoln. Tradução do Marxismo no Brasil: Caio Prado Júnior. Mouro: Revista Marxista – Núcleo de Estudos d’O Capital. São Paulo, ano 1, n. 2, jan. 2010, p. 8-22 (grifo nosso). Guido Mantega apresenta posição análoga: “A correta apropriação do marxismo por parte de Caio Prado Jr começou pela utilização de categorias que não são exclusivamente econômicas nem políticas, como a de modo de produção”. MANTEGA, Guido. Marxismo na economia brasileira”. In: SZMRECSÁNYI, Tamás; SUZIGAN, Wilson (orgs.). História Econômica do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Hucitec, Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica, Editora da USP, Imprensa Oficial, 2002. 43 CARAVAGLIA, Juan Carlos. Modos de Produción em America Latina. México D.F.: Ediciones Pasado y Presente, 1986, p. 14. Apud: RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p.155. 44 ASSADOURIAN, Carlos Sempat. “Modos de producción, capitalismo y subdesarrollo em America Latina”. In: ASSADOURIAN, Carlos Sempat et. al. Modos de producción em America Latina. Córdoba, Cuadernos Pasado y Presente, 1973, p. 68. Apud: FERRARI, Andrés; FONSECA, Pedro Cezar Dutra. A escravidão colonial brasileira na visão de Caio Prado Júnior e Jacob Gorender: uma apreciação crítica, p. 165. 30 metodológico para se pensar a produção colonial em sua essência poderia enriquecer ainda mais a análise da dinâmica interna da colônia como realidade concreta e, consequentemente, suas conexões com o capitalismo mundial em formação.45 Ainda assim, de toda esta discussão, o que mais nos interessa, por enquanto, não é assumir uma posição definitiva na polêmica. Esta tarefa exigiria não apenas o prosseguimento e aprofundamento de nossa pesquisa como, principalmente novos estudos com um enfoque específico em tais questões, diverso ao que nos propusemos para a compreensão do conceito de desenvolvimento no pensamento de Caio Prado Jr. Mais importante neste momento é, com base nos elementos proporcionados pela discussão bibliográfica até agora desenvolvida, poder nos aproximar de outra questão crucial para o pensamento econômico e histórico sobre o desenvolvimento e que animou intensos debates internacionalmente e no interior da sociedade brasileira nos anos 1950 e 1960: considerando-se a relação entre circulação e produção na economia, qual a inserção do consumo, da demanda e do mercado interno no processo de desenvolvimento? 45 Note-se, porém, que somente a partir de 1965, com a publicação de The poltical economy of slavery [A economia política da escravidão], de Eugene Genovese, esta preocupação passa a ocupar os estudiosos do escravismo moderno. Seria, portanto, anacrônico repreender as gerações anteriores e Caio Prado Jr. em particular por não abordar a questão quando formulou sua interpretação histórica do Brasil nas décadas de 1930, 1940 e 1950. 31 3. Consumo, demanda e mercado interno Como vimos, o conceito de sentido da colonização exerceu forte influência no pensamento social brasileiro. Por certo período, predominaram os estudos que analisavam a realidade brasileira a partir de suas relações de subordinação e dependência no contexto atlântico e mundial. Segundo José Roberto do Amaral Lapa, somente no último quartel do século XX a questão do mercado interno colonial passa a ganhar a devida atenção dos estudiosos: Antes, preferia-se cientificamente não o considerar. Era como se não existisse. Como se tivéssemos apenas uma economia de autoconsumo, desvaliosa sequer como objeto de estudo, enquanto que a produção chamada nobre, inteiramente voltada para o exterior, recebia e recebe todas as atenções e estímulos institucionais, científicos e econômico-sociais. (...) Conhecer a organização do comércio interno, a articulação ou simples desdobramentos entre produtores e comerciantes, o financiamento e lucros, as firmas comerciais e manufatureiras, as unidades de produção agrícola, o transporte e os atravessadores, a estocagem e perecimento dos produtos, as crises e reações do mercado, a distribuição e equilíbrio, a especulação e os preços, é o que nos falta. 46 Lapa explica que em todo o seu texto, publicado em 1982, permeia “um esforço no sentido de rever a visão unívoca que o nosso conhecimento produziu até época recente”, segundo a qual, o antigo sistema colonial “comportava um núcleo nervoso que chamava a si todo o poder de decisão”, de onde “partiam as irradiações de imposição ou estímulo, às quais competia às colônias apenas responder como se fossem uma massa amorfa, sem qualquer sentido próprio, uma vez que o sentido só lhe era conferido pelo núcleo do qual e para qual viviam”.47 O autor não cita Caio Prado Jr. mas é evidente que dialoga criticamente com a matriz historiográfica que ele fundou e já tinha forte projeção à época, inclusive porque havia recebido a pouco tempo um de seus aportes mais significativos com a publicação em 1979 do livro Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1977-1808), de Fernando Novais.48 Contudo, Maria Odila Leite da Silva Dias revela que Prado Júnior foi um precursor dos estudos relativos ao mercado interno impulsionado pelo setor considerado inorgânico. Uma tensão estrutural básica inspirou o plano do livro Formação do Brasil Contemporâneo, onde o autor descreveu dois núcleos opostos da sociedade 46 LAPA, José Roberto do Amaral. O antigo sistema colonial. São Paulo: Brasiliense, 1982, pp. 39 e 44. 47 Ibidem, p. 8. 48 Com acréscimos, correções e revisões, trata-se de sua tese de doutoramento, defendida na USP em 1973. 32 colonial: o núcleo orgânico do sistema colonial de produção propriamente dito, localizado na grande lavoura escravista do litoral e sua periferia inorgânica, continuamente engrossada em número pelo crescimento vegetativo da população, que se espalhava pelo imenso território, propiciando o povoamento interior do país e garantindo a sua articulação sempre na dependência da grande lavoura. 49 Ela nos lembra, ademais, que este autor (...) descerrou o tema dos marginalizados da História do Brasil, abrindo caminho para futuras pesquisas sobre as relações sociais e as condições de vida destes amplos setores marginalizados da sociedade colonial. Em sua obra, apontou o método e os temas de pesquisa para o estudo das possibilidades de organização de sobrevivência, que ainda não podia detectar na documentação de que dispunha. Sugeriu as diretrizes para a elaboração das especificidades de sobrevivência e de articulação social dos grupos marginalizados, dadas as condições de vida mais soltas ou distanciadas da vizinhança avassaladora da grande lavoura. (...) Embora no conjunto o historiador manifeste certo ceticismo quanto às formas de organização possíveis do setor inorgânico, lançou o tema com uma multiplicidade de implicações para estudos posteriores. 50 Tal procedimento impactou na compreensão de Caio Prado não somente sobre o passado colonial brasileiro em sua totalidade, mas também na relação que mantém com seu devir. Sem perder de vista as ligações com o sistema capitalista internacional em formação, ele observava a relação de complementaridade e subordinação com o mercado interno, visto como virtualidade de uma futura integração nacional. O nacional assumiria uma conotação econômica, a eventual satisfação das necessidades básicas do povo, e se referiria a uma organização da produção que, opostamente à Colônia, teria por finalidade o bem-estar da população brasileira.51 A construção da nação, como expressão do tempo histórico no qual seu significado foi concebido e utilizado, seria a construção do Estado-nação, uma delimitação de espaço e uma integração de regiões em função do triplo movimento “produção-circulaçãoconsumo”, que institui e é instituído pela industrialização moderna. Isso teria significado a primazia do mercado na esfera econômica, sendo o espaço econômico da nação moderna construído internamente. 52 49 SILVA DIAS, Maria Odila Leita da. Impasses do inorgânico, p. 380. 50 Ibidem, p. 404. 51 Cf. Ibidem, p. 385 e 390. “Economia colonial e economia integrada nacionalmente, eis o binômio que define os limites (passado e futuro) do capitalismo periférico”. SILVA, Sérgio. A crítica ao capitalismo real. In: D’INCAO, Maria Angela. História e Ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior, p. 304. 52 Cf. D’ALESSIO, Marcia Mansor. História e Historiografia: inquietações em torno do conhecimento histórico. 2011, Tese (Livre Docência em História) Departamento de História da EFLCH da Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, p. 83. 33 Neste sentido, e reconhecendo que para Prado Júnior um mercado interno integrado seria a base de qualquer economia nacional, Francisco Luiz Corsi nos apresenta uma interessante síntese da questão: O problema da integração do mercado não é apenas de integração regional, mas sobretudo de integração do grosso da população, que vive à margem da vida nacional em termos sociais, econômicos e políticos. É essa incapacidade de integração do conjunto da população que estaria obstando a constituição de um sistema nacionalmente integrado e manteria vivo o passado colonial.53 Segundo Bernardo Ricupero, se há no sistema colonial brasileiro uma articulação entre seus elementos constitutivos, que cria um todo social orgânico, existe também uma desarticulação entre a produção, voltada para fora, e o consumo da maior parte da população, elemento inorgânico do sistema. Em contraste com os países capitalistas centrais, onde a produção, de forma geral, criou o consumo, no Brasil e em países como o nosso, havia uma desarticulação entre produção e mercado interno, por ter sido o externo o mercado principal. Para ele, Caio Prado Júnior pensa a relação entre Colônia e Nação em uma perspectiva dialética, ou seja, não apenas de oposição. Reconhece, portanto, que apesar de todos os seus problemas e gostando disso ou não, foi no passado colonial brasileiro que se inscreveram os fundamentos da nacionalidade e seria a partir dele que se poderia seguir em direção contrária.54 Com isso, Caio Prado Jr. identificaria justamente no grupo menos afetado pela grande exploração os fundamentos para a constituição de uma nação: Em linhas gerais, Caio sugere que o que é defeito na Colônia pode converter-se em qualidade na Nação. Até porque a segunda situação deve ser a negação da primeira. Portanto, é naquilo que não pertence inteiramente ao corpo da colônia, seu setor inorgânico, que deve-se procurar as bases para a futura nacionalidade brasileira. Se o que caracterizou a vida da colônia foi estar toda ela voltada para fora, para o mercado externo, a Nação deve justamente ter como fundamento produzir para dentro, para o mercado interno. Ora, os grupos ativos nos setor inorgânico, por escolha ou por falta dela, agem direcionados para o mercado interno. 55 53 CORSI, Francisco Luiz. Caio Prado Júnior e a questão do desenvolvimento. In: MAZZEO, Antonio Carlos; LAGOA, Maria Izabel (orgs.). Corações Vermelhos: os comunistas brasileiros no século XX. São Paulo: Cortez, 2003, p. 140. 54 Cf. RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 140, 155 e 133-4. Ao assumir a Colônia como um pressuposto para a construção da Nação, Prado Jr. nos mostra que assimilou uma célebre passagem de Marx: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.” MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: idem, O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 21. 55 RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 142. 34 Lincoln Secco não apenas corrobora com essa leitura em suas linhas gerais como considera que “a aporia do inorgânico que precisa fazer-se portador de uma nova economia (voltada ao interior e não ao exterior)” é um dos principais problemas legados pela obra de Caio Prado. 56 Sendo assim, podemos supor que a importância dada ao setor inorgânico na construção da nação no processo histórico corresponde, em grande medida, à importância dada ao mercado no desenvolvimento econômico. De acordo com Marcia R. Victoriano, Caio Prado Júnior considera que a imobilização do capital na sua forma-mercadoria quando não é vendida compromete a inversão do ciclo produtivo do capitalismo, o que se explica pelo subconsumo latente no funcionamento do sistema capitalista. A autora considera que, ao inserir a questão do subconsumo das massas trabalhadoras como principal entrave para o desenvolvimento, o autor polemiza com os economistas keynesianos, que propugnam a transformação do Estado no grande consumidor capaz de compensar com seus gastos o subconsumo das coletividades que vivem em regime capitalista. Para Prado Jr., o consumo produtivo estatal não seria capaz de compatibilizar de forma duradoura e equilibrada a potencialidade da produção moderna com o consumo, pois o subconsumo das massas trabalhadoras é que estaria na raiz da desarticulação entre produção e consumo. 57 Todavia, nota João Antônio de Paula, o marxismo de Caio Prado tem uma explícita vocação eclética, pois não hesitava em reconhecer certa validade – limitada, é certo – às teses keynesianas e estaria adotando o ponto de vista da centralidade do mercado interno no processo de desenvolvimento econômico. Isso teria significado inserir certas teses keynesianas na interpretação marxista da realidade econômica brasileira, como a do predomínio da categoria da demanda.58 Para fundamentar sua interpretação, João Antônio de Paula apresenta uma passagem significativa de Diretrizes para uma Política Econômica Brasileira: 56 SECCO, Lincoln. Tradução do marxismo no Brasil: Caio Prado Júnior. Mouro: Revista Marxista – Núcleo de Estudos d’O Capital. São Paulo, ano 1, n. 2, jan. 2010, p. 20. 57 Cf. VICTORIANO, Marcia R. A questão nacional em Caio Prado Jr.: uma interpretação original do Brasil, p. 29-30. Cf. PRADO JÚNIOR. Caio. Esboço dos fundamentos da teoria econômica. São Paulo, Brasiliense, 1961, p. 109-38. Não podemos deixar de questionar se nas colocações de Caio Prado sobre o subconsumo presentes no Esboço dos fundamentos da teoria econômica haveria realmente uma “nítida referência às teses de Ruy Mauro Marini”, como pretende Victoriano. A hipótese plausível não seria justamente a inversa, tendo em vista que enquanto Prado Jr. publica em 1957, Ruy Mauro Marini estava apenas concluindo seus estudos de Ciências Sociais na Escola Brasileira de Administração Pública (Ebap), da Fundação Getúlio Vargas (FGV)? Cf. TRASPADINI, Roberta; STÉDILE, João Pedro (orgs.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005, p. 53. 58 DE PAULA, João Antônio. Op. cit., p.6-7. 35 Embora as condições do Brasil sejam tão profundamente distintas daquelas para as quais teorizaram e indicaram os economistas da “revolução keynesiana”, essa “revolução” e a autoridade que traz no seu bojo podem servir entre nós pelo menos para facilitarem o deslocamento do ponto de vista de muitos economistas e orientadores da política econômica do país, da questão da produção para o consumo; o que no Brasil, e nas condições atuais é particularmente importante (...).” 59 Por sua vez, Cesar Mangolim de Barros, apesar de não traçar a mesma identificação de Prado Jr. com algumas teses keynesianas, considera que ele teria uma “fixação mercadocêntrica”. Isto o impediria de perceber que não é a demanda do consumidor que impulsiona o desenvolvimento do capitalismo. O autor não teria se dado conta de que mesmo mantendo vastas parcelas da população em gritantes níveis de pobreza e miséria, o capitalismo no Brasil desenvolve-se criando tanto um mercado interno para as camadas altas e médias da população como um mercado intercapital que propiciavam as condições para a acumulação e reprodução de capital. Neste diálogo crítico, Barros chega a dizer que a integração do grosso da população não se daria apenas pelo desenvolvimento puro e simples do capitalismo60, mas consideramos descabido imputar a Caio Prado Jr. uma visão que remonta aos primeiros textos da CEPAL, pois ele foi um dos pioneiros e principais críticos dos que costumavam depositar grandes expectativas na industrialização para a superação do subdesenvolvimento. Ademais, Barros parece sugerir que Caio Prado Jr. era adepto das teses estagnacionistas, muito em voga no pensamento econômico brasileiro a partir da crise monetário-financeira em 1961-62 e da recessão iniciada em 1963, que consideravam o Brasil condenado a permanecer em um longo período de estagnação econômica caso não resolvesse seus problemas de elevada concentração de renda que restringia o mercado interno de massas, o que exigiria a realização das aclamadas reformas de base, com destaque para a reforma agrária. Guido Mantega e Maria Moraes consideram que a quase unanimidade entre os setores de oposição ao “estabilishment” quanto às graves consequências econômicas que trariam o permanente estrangulamento do mercado interno deixa entrever a aceitação geral das teses subconsumistas, desenvolvidas na virada do século por Rosa Luxemburgo e por vários reformistas que, de ângulos variados, procuraram fazer a crítica aos esquemas marxistas de reprodução do capital: 59 PRADO JÚNIOR, Caio. Diretrizes para uma Política Econômica Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1954, p. 197. Apud: DE PAULA, João Antônio. Caio Prado Júnior e o desenvolvimento econômico brasileiro, p. 6. 60 Cf. BARROS, Cesar Mangolim. Desenvolvimento e revolução no pensamento de Caio Prado Júinor. Ipech Digital, n. 1, 2007. 36 A grosso modo, as teses subconsumistas afirmam que a produção capitalista estaria fadada a enredar-se numa contradição fundamental: à medida em que se expande às custas da pauperização da classe operária, a produção capitalista, mesmo tendo lucros crescentes, priva-se do principal mercado consumidor de seus produtos. (...) [No caso do] subconsumismo no Brasil, essa tese baseava-se na falsa premissa de que as classes populares constituíam o grosso do mercado consumidor, quando na verdade este era formado, em grande parte, pela própria classe capitalista (seja sob a forma de demanda de bens de capital, seja sob a forma de demanda de consumo duráveis) e pela parcela mais abastada da classe média. 61 Fica visível que, além da discussão sobre o lugar ocupado pelo consumo e a demanda (sobretudo a demanda efetiva, também chamada de demanda solvente62) no processo de desenvolvimento econômico, questionava-se a caracterização que Caio Prado e outros autores faziam do mercado consumidor. Mas cabe lembrar que, escrevendo no final dos anos 1970, Mantega e Moraes tinham a seu favor a possibilidade de analisar empiricamente o período que ficou conhecido como o “milagre brasileiro”, entre 1968 e 1973, no qual o país vivenciou uma forte retomada no crescimento, com o predomínio da acumulação industrial, ao mesmo tempo em que promoveu o achatamento do poder de compra do salário mínimo. No livro Dependência e desenvolvimento na América Latina, escrito entre 1966 e 1967, quando a economia brasileira ainda se encontrava em recessão, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto defenderam a ideia de que era possível o capitalismo se desenvolver no Brasil mesmo sem a realização das reformas de base e mantidos a concentração de renda e um restrito mercado interno de massas, pois a realização do capital dependeria, em grande medida, do consumo produtivo das próprias empresas. 63 Porém, a crítica aos pressupostos do estagnacionismo já era feita antes mesmo da crise monetário-financeira de 1961. Na “Tribuna de Debates” do V Congresso do PCB, publicada no Jornal Novos Rumos, João Amazonas dizia que “a burguesia no Brasil está vinculada direta ou indiretamente com o latifúndio, sendo difícil encontrar o industrial ‘puro’, livre dos laços com a terra ou com os bancos ligados ao monopólio da terra.” Por este motivo, a burguesia mais poderosa “vai conciliando com o imperialismo, se unindo a ele, progredindo à custa da inflação que recai penosamente sobre o povo”. As modificações recentes da economia, ou seja, a industrialização dos anos imediatamente anteriores, não afeta “no domínio do capital 61 MANTEGA, Guido; MORAES, Maria . A economia política brasileira em questão (1964-1975). São Paulo: Editora Aparte, s/d, p. 16. 62 “Demanda de bens e serviços para a qual existe capacidade de pagamento. Na economia de mercado, a demanda solvente é a única que conta, embora seja inferior à demanda corrente das necessidades do conjunto da população.” SANDRONI, Paulo et. al. Dicionário de economia, p. 105. 63 Cf. CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973. 37 monopolista norteamericano que, ao contrário, tem conseguido aumentar a exploração do povo brasileiro”. Daí ser equivocado “pensar que as contradições entre o desenvolvimento do capitalismo e o monopólio da terra são antagônicas, como afirmam as Teses”. Para ele, “o capitalismo, seguindo o caminho prussiano, pode se desenvolver no campo, conservando o latifúndio”.64 De qualquer maneira, nesta discussão sobre como Caio Prado pensava o desenvolvimento e vislumbrava suas perspectivas no Brasil, é preciso considerar também a influência das idéias dualistas e a noção de desenvolvimento desigual e combinado. 64 AMAZONAS, João. Uma Linha Confusa e de Direita. Novos Rumos, Rio de Janeiro, n. 66, 03 a 09 de jun. 1960, Tribuna de Debates, p. 06. Mais adiante abordaremos a questão do “caminho prussiano”. 38 4. Dualismo e desenvolvimento desigual e combinado Segundo Lincolns Secco, Caio Prado Jr. não foi o primeiro a perceber a convivência de diferentes tempos históricos no Brasil, a coexistência do arcaico e do moderno, pois foi antecedido por Oliveira Viana, Euclides da Cunha e outros. Porém, foi ele que, por refletir de modo original a respeito esta imbricação do presente com o passado, tirou daí consequências fecundas para se pensar a sociedade brasileira e, especificamente, seu desenvolvimento. Secco chega a dizer que, para Prado Júnior, o Brasil sempre foi pobre e rico, desenvolvido e atrasado dependendo do ciclo econômico que observamos no tempo. Em seguida faz a seguinte citação: “(...) infância, juventude, adolescência, maturidade, velhice e senilidade encontram-se presentes em nosso país e em sua economia, hoje como em qualquer outra época do passado”.65 Como decorrência desta sua compreensão da realidade brasileira, concebeu inclusive uma orientação metodológica muito peculiar para pesquisar a história do país, ressaltada em diversos textos sobre Caio Prado Jr., e a seguiu na prática ao longo de sua vida: como o passado poderia ser visto no presente com os próprios olhos, para ele, seria “muitas vezes preferível uma viagem pelas diferentes regiões, à compulsa de documentos e textos”66. Tal originalidade também seria perceptível nas críticas que fez às ideias que figuravam o arcaico em oposição ao moderno – muito presente em um dos clássicos do dualismo, Os Dois Brasis, de Gustave Dalembert –, uma vez que destacava desta relação a sua complementaridade. 67 Semelhante leitura tem Bernardo Ricupero, que, assim como Márcia R. Victoriano, cita passagens de Diretrizes para uma Política Econômica Brasileira, reconhecendo em Caio Prado a noção de que há, no Brasil, o convívio entre situações características de tempos históricos variados, acumulando-se lado a lado formas econômicas de contraste chocante que pertenceriam a épocas muito afastadas entre si e fazendo com que nossa história fosse, em muitos casos, uma atualidade: em não havendo processos de ruptura com as formas sociais e econômicas básicas, o tempo se projetaria no espaço. 65 PRADO JUNIOR, Caio. Diretrizes para uma Política Econômica Brasileira. São Paulo: Gráfica Urupês, 1954, p. 68. Apud: SECCO, Lincoln. Tradução do marxismo no Brasil: Caio Prado Júnior. Mouro: Revista Marxista – Núcleo de Estudos d’O Capital, p.11. 66 Ibidem, p. 30. Apud: IGLÉSIAS, Francisco. Um historiador revolucionário. In: IGLÉSIAS, Francisco (org.). Caio Prado Júnior – História. São Paulo: Ática, 1982, p. 35. 67 Cf. SILVA DIAS, Maria Odila Leite da. Impasses do inorgânico, p. 403-4. 39 Mas ao invés de extrair daí a ideia de que os diferentes setores e grupos necessariamente se opõem, como pensavam os dualistas e comunistas latinoamericanos, Prado Júnior veria a relação entre os setores que produzem para o mercado interno e os voltados para o mercado externo não apenas como de oposição, mas também como de complementaridade. Assim, apesar de falar em “dualidade de setores ou sistemas econômicos”, o autor não seria dualista, pois, considerando-os “imbricados um no outro”, ele trabalharia com a noção de pares opostos dialeticamente unidos, não simplesmente excludentes entre si como pressupunham os dualistas. 68 Por outro lado, Marcos Antônio M. da Rocha, apoiando-se em Plínio de Arruda Sampaio Jr., atribui ao autor uma noção de dualidade que, diferentemente da utilização usual do conceito no debate econômico, se define como a articulação interna da economia colonial em transição, ou seja, a existência de um setor que se forma para o fornecimento de gêneros ao centro capitalista e um segundo setor estruturado a partir das necessidades do setor exportador, isto é, voltado para dentro.69 Em seguida, Rocha apresenta uma passagem de História e desenvolvimento que atua como forte contraponto à leitura de Bernardo Ricupero: Em síntese, a presente fase do processo histórico brasileiro se caracteriza, vimo-lo no correr do presente trabalho, pelas contradições que resultam fundamentalmente de uma dualidade de setores ou sistemas econômicos imbricados um no outro: um, o tradicional, centrado na produção de gêneros primários destinados à exportação; o outro, emergente desse e constituído em seu seio, mas que se volta para o mercado interno, e tem por base essencial a indústria. Trata-se de um dualismo, porque essencialmente ambos os setores se caracterizam a parte um do outro e não se recobrem. Isto é, cada um deles tem sua orientação comercial própria e exclusiva – um para o mercado externo, outro para o interno –, e somente se confundem e sobrepõem secundária e subsidiariamente; e até mesmo, muitas vezes, apenas excepcionalmente.70 Na concepção dialética de unidade dos contrários, neste caso, Caio Prado parece privilegiar a relação de conflito em detrimento da colaboração. Em relação a esta questão, Carlos Nelson Coutinho apresenta, pelo menos em uma primeira aproximação, uma posição dúbia. Por um lado, afirma ter Caio Prado combatido com acerto a ideia presente no dualismo cepalino e naquele implícito nas propostas do PCB, de 68 Cf. RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 173-8. 69 ROCHA, Marcos Antônio M. da. Desenvolvimento nacional, estrutura e superestrutura na obra de Caio Prado Júnior, p. 270. 70 PRADO JÚNIOR, Caio. História e desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e prática do desenvolvimento brasileiro. São Paulo, Brasiliense, 1999, p. 131. Apud: ROCHA, Marcos Antônio M. da. Desenvolvimento nacional, estrutura e superestrutura na obra de Caio Prado Júnior, p. 271 (grifos nossos). 40 que supostos “restos servis” constituíam óbices ao desenvolvimento do modo de produção capitalista no país. Por outro, identifica o autor com o paradigma segundo o qual a passagem definitiva do Brasil para a “modernidade”, seu desenvolvimento, estaria bloqueado pelo “atraso”.71 Contudo, ao destacar uma significativa passagem de A Revolução Brasileira, Coutinho pende a balança para o lado da crítica ao dualismo: (...) as sobrevivências capitalistas nas relações de trabalho da agropecuária brasileira, longe de gerarem obstáculos e contradições opostas ao desenvolvimento capitalista, têm pelo contrário contribuído com ele. O “negócio” da agricultura – e é nessa base que se estrutura a maior e principal parte da economia rural brasileira – não se mantém muitas vezes senão graças precisamente aos baixos padrões de vida dos trabalhadores, e pois ao reduzido custo da mão-de-obra que emprega. 72 Aqui, porém, o autor privilegia a relação de colaboração em detrimento do conflito73. Assim, por perceber que a agricultura brasileira era capitalista e, portanto, não se constituía como um entrave ao desenvolvimento econômico74, e por ressaltar que os baixos custos de reprodução da força de trabalho favorecem o desenvolvimento capitalista, Caio Prado Júnior antecipa a crítica de Francisco de Oliveira ao pensamento dualista75 e as teses de superexploração dos trabalhadores de Rui Mauro Marini. Em 1984, Guido Mantega tinha perspectiva diferente, pois considerava que “Marini procurou dar maior consistência teórica a uma questão apenas sugerida por [André Gunder] Frank, qual seja, a da superexploração da força de trabalho”. 76 Ora, Gunder Frank, em “A agricultura brasileira: capitalismo e mito do feudalismo”, publicado na Revista Brasiliense, edição 51, janeiro/fevereiro de 1964, ainda não sugeria nada que pudesse nos remeter à tese da superexploração da força de trabalho. Ela passa a ser fazer presente somente a partir de sua principal obra, Capitalismo e subdesenvolvimento na América Latina, originalmente publicada pela Monthly Review Press, em 1967, em Nova Iorque. Portanto, Caio Prado Jr. pode ser considerado precursor desta “sugestão”. Mas, tempos depois, em um trabalho 71 COUTINHO, Carlos Nelson. Uma via “não-classica” para o capitalismo. p. 121 e 128. 72 PRADO JÚNIOR, Caio. A Revolução Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 97-8. Apud: COUTINHO, Carlos Nelson. Uma via “não-classica” para o capitalismo, p. 121. No parágrafo anterior Prado Jr. desenvolve mais o problema, mas isto será objeto de análise na segunda parte de nosso trabalho. 73 Para Ricupero, a aparente ambigüidade na discussão de Caio Prado Jr. a respeito do capitalismo brasileiro refletem as próprias ambigüidades do capitalismo brasileiro. Cf. RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p.181. 74 Cf. BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p. 203. brasileiro: o 75 ciclo ideológico do Cf. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica á razão dualista. O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2011. O ensaio “A economia brasileira: crítica à razão dualista”, foi publicado pela primeira vez em Estudos Cebrap, n. 2, 1972. 76 MANTEGA, Guido. A economia política brasileira. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 261. 41 apresentado ao I Congresso Brasileiro de História Econômica, realizado na USP em setembro de 1993, Mantega parece reconhecer isso: atribui a Prado Júnior a hipótese de que as “formas mais primitivas de exploração do trabalho” e o decorrente “barateamento da mão-de-obra” contribuíam para o avanço do desenvolvimento capitalista ao reduzir custos e alavancar a acumulação. Ademais, considera que essa idéia seria “generalizada e aprofundada na década de 1960 por Rui Mauro Marini e Theotônio dos Santos”.77 Com base no entendimento de que Caio Prado não vê antagonismo, mas sim colaboração entre os diferentes setores da economia brasileira, alguns autores passaram a considerar que ele é próximo ou faz uso da lei do desenvolvimento desigual e combinado, formulada por León Trotsky a partir de suas observações dos países considerados atrasados. Neste particular, é curioso que Ricupero desenvolva sua reflexão a respeito da relação de complementaridade entre os setores econômicos ao longo de seu livro sem debater se Prado Jr. utiliza ou se aproxima da categoria de desenvolvimento desigual e combinado, mas afirme, no penúltimo parágrafo da obra: “Assim, dentro do desenvolvimento desigual e combinado que caracteriza o capitalismo, Caio Prado notou que o que marca países como o nosso que estão entre a ‘civilização e a barbárie’ e que não são, portanto, nem Oriente nem bem Ocidente, é esse convívio promíscuo entre moderno e arcaico, que se explica pela forma como o moderno se utiliza aqui do arcaico.”78 Considerando que a questão tem implicações teóricas e políticas importantes, que nos remete à relação de nosso autor com o trotskismo, Ricupero poderia ter deixado mais claro se adota a categoria para si ou se a atribui ao pensamento caiopradiano. Felipe Demier, por outro lado, considera que “de certa maneira, o historiador brasileiro, ainda que sem fazer uso explícito da lei do desenvolvimento desigual e combinado, confirmou empiricamente em suas pesquisas sobre o Brasil a validade de uma teoria que o revolucionário russo propusera em suas reflexões sobre a historicidade de outros países atrasados”. Demier nota que “Michael Löwy, ao trabalhar com as produções teóricas de Caio Prado Jr. e desses intelectuais latino-americanos [que atribuíam uma particularidade ao processo histórico no continente] alocou-as ao lado das de notórios adeptos da IV Internacional”.79 Por sua vez, Victoriano explica a questão da seguinte maneira: 77 Idem. Marxismo na economia brasileira, p. 159. 78 RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 235. 79 DEMIER, Felipe. A lei do desenvolvimento desigual e combinado de León Trotsky e a intelectualidade brasileira: breves comentários sobre uma relação pouco conhecida. Outubro, São Paulo, n . 16, 2º semestre 2007, 42 (...) à falta de uma sofisticação conceitual, o autor utiliza o recurso da ênfase no nível descritivo do problema, que acaba transbordando para um patamar explicativo; é assim que se pode abstrair de suas repetidas menções e descrições da desintegração, desconcexão, descontinuidade do desenvolvimento econômico colonial e nacional a colocação da categoria analítica do desenvolvimento desigual e combinado, como o que articula e sintetiza toda sua reflexão sobre a questão. 80 Nesta passagem, a socióloga considera a descrição do processo histórico como uma alternativa para suprir uma suposta “falta de sofisticação conceitual”, não levando em conta que, para Caio Prado, o fundamental é, na verdade, submeter os conceitos à realidade concreta observada e descrita. Para ela, os nexos constitutivos do problema do desenvolvimento econômico em termos amplos não tem em Trotsky qualquer referência explícita ou implícita feita por Caio Prado Jr. Neste campo, sua interlocução se deu com os chamados teóricos anticíclicos, keynesianos, e com os teóricos do desenvolvimento e da dependência (marxistas e cepalinos). Contudo, mesmo não nomeando explicitamente a categoria do desenvolvimento desigual e combinado, todo o seu conteúdo lógico e histórico estaria presente na abordagem caiopradiana. Assim, Caio Prado Jr. encararia o problema das relações entre passado e presente como caracterizadas por um trânsito do país pela unidade e pela dispersão, integração de desintegração, totalidade e fragmentação. Seu pensamento estaria cimentado pelo signo da desigualdade, com o resgate minucioso e criativo das especificidades do dilema do desenvolvimento brasileiro, de caráter cíclico e desconexo.81 Percebe-se que parte dos intérpretes de Prado Júnior tem dificuldades em lidar com a ausência de expressão textual dos conceitos e categorias de que o autor se utiliza para analisar a realidade histórica, decorrendo daí abordagens variadas e mesmo antagônicas. No presente tópico, elas vão desde as que o consideram inserido no dualismo hegemônico no período até aquelas que o identificam com as análises de correntes trotskistas. De qualquer maneira, ainda fica em aberto a seguinte questão: como Caio Prado Jr. compreende os caminhos tomados pelo capitalismo no Brasil em seu processo de desenvolvimento? p. 94 e 103-4. Ver também LÖWY, Michael (org.). O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006, p. 40-43. 80 VICTORIANO, Marcia R. A questão nacional em Caio Prado Jr.: uma interpretação original do Brasil, p. 40. 81 Cf. Ibidem. p. 40 43 5. Vias de desenvolvimento capitalista no Brasil É relativamente influente a interpretação de que Caio Prado Jr. considera o Brasil como capitalista desde o início da exploração colonial. Isso apesar da opinião de que ele não costumava fazer definições categóricas, como já vimos. O enfoque do capitalismo desde as origens encontra-se, por exemplo, em Guido Mantega. Em sua opinião, Caio Prado e Gunder Frank tendiam a qualificar o modo de produção predominante no Brasil colonial “como modo de produção capitalista desde praticamente o descobrimento”. Daí extrai a tese de que para Caio Prado existiria na colônia um “primitivo capitalismo comercial”. Segundo Mantega, o autor considera que “capitalismo colonial”, por não ter encontrado aqui “modos de produção estabelecidos como na Ásia”, teria implantado no Brasil (...) um sistema colonial mercantil, que só não seria exatamente capitalista por causa da utilização da mão-de-obra escrava. Note-se que para ele desde o escravismo já estariam dadas praticamente todas as condições do capitalismo ou o conjunto de seus elementos estruturais, excluindo, assim, a possibilidade de existência de modos de produção pré-capitalistas.82 Para demonstrar a validade de suas teses, Mantega cita Prado Júnior: O fato é que com a substituição definitiva e integral do trabalho escravo pelo livre, acharam-se presentes no Brasil, o conjunto de elementos estruturais componentes do capitalismo. Esse sistema não representa, em última instância, mais do que o termo final do processo de mercantilização de bens e das relações econômicas, o que se completa precisamente quando esse processo atinge e engloba a força de trabalho transformada em simples mercadoria que se compra e vende. É isso, justamente, que se verifica no Brasil com a abolição, pois os demais elementos estruturais da economia brasileira já eram de início de natureza essencialmente mercantil.83 Sua conclusão é de que a natureza estrutural da grande exploração, segundo Caio Prado, não foi afetada pela substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre, uma vez que já seria capitalista em sua essência, mesmo quando baseada em relações de produção escravistas. Mantega diverge de tal perspectiva caiopradeana, pois “sugere similitude entre trabalho escravo, com remuneração in natura, e trabalho livre, cuja remuneração também se dá, segundo ele, muitas vezes, em formas não-monetárias”. Assim, Caio Prado dispensaria um 82 83 MANTEGUA, Guido. A economia política brasileira. p. 240-1. PRADO JÚNIOR, Caio. A Revolução Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966, p. 148. Apud: MANTEGA, Guido, A economia política brasileira, p. 242. 44 tratamento genérico ao “trabalhador da grande exploração rural, pouco importando se for escravo ou livre.”84 Assim como Guido Mantega, Cesar Mangolim de Barros se coloca como um crítico de tal abordagem: “dar à formação da Colônia um caráter capitalista é forçar um pouco a história”. Se apóia em João Quartim de Moraes para demonstrá-lo: (...) o equívoco, do ponto de vista do marxismo, fica patente na identificação de ‘sistema mercantil internacional’ a ‘sistema internacional do capitalismo’. O caráter mercantil da produção, isto é, o predomínio da produção para a troca não se confunde com o caráter capitalista das relações de produção, que se baseiam no intercâmbio do trabalho vivo com o salário. Ao confundi-los, para sustentar que a economia brasileira é capitalista desde as origens, o ‘mercadocêntricos’ privaramse da possibilidade de explicar a desigualdade de desenvolvimento entre os países que permaneceram submetidos ao jugo colonial e os que dele se emanciparam.85 Quem talvez apresente esta interpretação do pensamento de Caio Prado de modo mais enfático é Luiz Carlos Bresses Pereira. Para ele, a análise do autor deu origem ao que denominou de “interpretação funcional capitalista” da sociedade brasileira: “Era uma interpretação claramente ressentida. O Brasil passava a ser agora capitalista desde Martim Afonso de Sousa. E o capitalismo era um só, sem fraturas, sem descontinuidades.” 86 Mas é Sedi Hirano que busca desconstruir de maneira sistemática a tese do capitalismo na formação colonial brasileira. Escrevendo em 1986, diz que esta idéia de um “Brasil colonial já capitalista (desde a sua origem) foi esboçada por Caio Prado Júnior, há mais de quarenta anos”. Para ele, este tipo de análise faz deslocar o conflito teórico para o espaço da realização peculiar do modo de produção capitalista no Brasil colonial. Ele se utiliza de uma citação dos Grundrisse, de Marx, para dizer que em tal interpretação é “incluída no termo capital muita coisa” que, “aparentemente, não pertence ao conceito”. E prossegue: Na medida em que extrai seus argumentos da esfera da circulação simples de “capital”, acaba embutindo, sem mais, as determinações da esfera da circulação ampliada do capital. Elide-se, desta maneira, do modo de produção considerado capitalista a discussão referente à produção de mais valia, a qual só pode ser gerada 84 MANTEGA, Guido. A economia política brasileira, p. 244. 85 MORAES, João Quartim de. O programa nacional-democrático: fundamentos e permanência. In: MORAES, João Quartim de; DEL ROIO, Marcos (org.). História do Marxismo no Brasil. Vol. 4. Campinas: Editora Unicamp, 2000, p. 151-209. Apud: BARROS, Cesar Mangolim. Desenvolvimento e revolução no pensamento de Caio Prado Júnior, p. 9-10. 86 BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. De volta ao capital mercantil. In: D’INCAO, Maria Angela (org.). História e Ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior, p. 287-8. 45 no processo de produção capitalista resultante da utilização do trabalho livre assalariado, contratado, na esfera da circulação, pelo capitalista. 87 Segundo Hirano, uma das variantes da referida tese, assumida por Fernando Novais, privilegia a produção para o mercado mundial, deslocando o lócus teórico para a esfera da circulação, que seria classicamente conhecida como capitalismo mercantilista e assumida como uma etapa já capitalista. Porém, compreende que “optar por essa colocação teórica equivale a aceitar a etapa de acumulação primitiva originária de capital como sendo, embora não o seja, capitalista”. Baseando-se agora em O Capital, afirma que na concepção marxista a acumulação capitalista é o resultado da produção e da reprodução ampliada do capital, centrado na esfera da produção, onde se produz valor por meio da exploração do trabalho livre e assalariado, que resulta na acumulação capitalista ao se realizar na esfera da circulação. Para ele, “o capital-dinheiro acumulado na esfera da circulação, por ser originário/primitivo, é uma acumulação não-capitalista de capital, portanto, pré-capitalista.” 88 Por sua vez, Lincoln Secco nos mostra que os contemporâneos interlocutores comunistas de Caio Prado, adeptos da tese feudal, também polemizavam com sua concepção de que não existiria uma formação pré-capitalista no Brasil colonial. Contudo, sempre tratavam de incluir o autor de História Econômica do Brasil (1500-1820), Roberto Simonsen, no alvo das críticas, indicando que ambos seriam defensores da idéia de um capitalismo colonial. Porém, Secco busca demonstrar como a perspectiva caiopradeana se justifica. Diz ele que a influência da crise de 1929 e dos impasses do capitalismo financeiro quando Caio Prado Jr. escreveu sua obra teriam lhe permitido “dar ênfase ao capital como fluxo de riqueza que se reproduz e se realimenta de diferentes formas de produção em diversas partes do globo. Para ele, o capital poderia ser ‘tranquilamente escravista’.” 89 Contudo, a perspectiva de Bernardo Ricupero nesta questão é diferente. Para ele, Caio Prado Jr. evita equívocos como o de considerar o Brasil como capitalista desde sempre, pois nunca disse que a colônia era “capitalista desde Martim Afonso de Souza”, nem que era uma “economia colonial capitalista”, justamente por saber que o que caracteriza um modo de produção é o tipo de relações de produção que prevalecem em uma formação econômicosocial concreta.90 Podemos observar, aqui, uma clara oposição à interpretação de Mantega, em 87 HIRANO, Sedi. Formação do Brasil Colonial: Pré-Capitalismo e Capitalismo. São Paulo: Editora da USP, 2008, p. 20. 88 Ibidem, p. 24-5. 89 SECCO, Lincoln. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 183-6. 90 Cf. RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 154 e 182. 46 especial, pois é quem mais problematiza o lugar das relações de produção no pensamento de Caio Prado. Enquanto, Ricupero nega que Prado Jr. considerava a colônia como capitalista, a leitura que Mantega desenvolve contribui, inclusive, para se atribuir a Prado Jr. a idéia de que existia no Brasil um “capitalismo incompleto”. Virgínia Fontes fundamental tal opinião da seguinte maneira: O capitalismo, desde sempre presente na sociedade brasileira (...), seria incompleto por ser incapaz de oferecer o volume de bens de consumo necessários e por não assegurar uma sociabilidade civilizada. (...) Caio Prado Jr., exatamente o autor que apontou, antes de muitos outros, não apenas a existência do capitalismo no Brasil, como para sua precocidade, retomava, por outro viés, a concepção de um capitalismo ainda a completar-se, quer por sua autonomização frente aos países centrais, quer pela interiorização do cosumo e sua extensão às massas populares, quer, ainda, pela generalização de uma condição de vida mais próxima dos países centrais. A própria existência precoce, no caso brasileiro, se traduziria em sua permanente impossibilidade de concretizar-se. 91 Assim, as dificuldades para o desenvolvimento ao longo do século XX “não residiriam na existência de restos feudais ou pré-capitalistas, posto que o caráter capitalista derivaria dos primórdios da colonização, mas adviriam de um capitalismo colonizado, incompleto.”92 Por sua vez, Bresser Pereira chamou tal perspectiva de capitalismo “sem fraturas” e “sem descontinuidades”, enquanto Hirano disse se tratar de uma constituição do capitalismo “sem transição”. Tais colocações tornam relevante discutir as vias pelas quais o capitalismo no Brasil se desenvolveu segundo Prado Júnior. Citando expressões utilizadas por Caio Prado Jr. em Diretrizes para uma Política Econômica Brasileira, Lincoln Secco considera que para o autor “nosso capitalismo não evoluiu de um desenvolvimento espontâneo e endógeno, pois ele veio ‘de fora’ e ‘por cima’.” 93 Para Carlos Nelson Coutinho, o tratamento dado aos “traços extremamente peculiares em nosso capitalismo” permitiu ao autor contribuir para a compreensão dos processos e modalidades de modernização conservadora ocorridos no Brasil e o enriquecimento do próprio conceito de vias “não clássicas” para o capitalismo.94 Em sua opinião: O leitor atento de Caio Prado não tardaria em reconhecer a proximidade de suas análises da questão agrária brasileira com a descrição lenineana da “via prussiana”. Para o historiador paulista, a modernização de nossa estrutura agrária não se deu segundo uma “via clássica”; não se pode falar, aqui, da supressão radical da grande 91 FONTES, Virgínia. “Autores clássicos e questões clássicas – O Capitalismo no Brasil e Caio Prado Jr.” In: Revista Espaço Acadêmico, n. 70, mar. 2007. 92 Ibidem. 93 SECCO. Lincoln. Tradução do marxismo no Brasil: Caio Prado Júnior, p. 11. 94 COUTINHO, Carlos N. Uma via “não-classica” para o capitalismo, p. 116-7. 47 propriedade pré-capitalista e de sua substituição pela pequena propriedade camponesa.95 Coutinho toma o cuidado de dizer que o autor aponta os traços singulares e específicos do processo de “modernização conservadora” no Brasil, o que permitiria “distingui-lo de outros casos igualmente ‘não clássicos’, como o da própria Alemanha dos Junkers, ao qual se referia Lenin.” Observe-se, contudo, que para atribuir tal leitura a Caio Prado, deve-se primeiro admitir como pressuposto que ele considerava existir previamente uma “propriedade précapitalista”. Aparentemente, Coutinho tem esta perspectiva, o que seria contrariar as teses de que Caio Prado Jr. pensa o Brasil como capitalista desde a colônia: (...) o que no Brasil se adaptou “conservadoramente” ao capitalismo não foi um domínio rural de tipo feudal, mas sim uma forma de latifúndio peculiar: uma exploração rural de tipo colonial (ou seja, voltada desde as origens para a produção de valores de troca para o mercado externo) e fundada em relações escravistas de trabalho.96 Para Antônio Carlos Mazzeo, a introdução do conceito de via prussiana na análise do Brasil deu maior dimensão e profundidade ao que já vinha sendo formulado por Caio Prado, o que insere no corpo conceitual “marxiano” para a interpretação da realidade brasileira um “valioso instrumental que revela as especificidades históricas das formações sociais capitalistas”. Contudo, apesar de adepto da noção de vias “não clássicas” para se pensar o desenvolvimento capitalista no Brasil, Mazzeo prefere fazer uso daquilo que chama de “teoria da via colonial”, uma vez que “eleva e possibilita apreender, em sua dimensão ontológica, o elemento morfológico de gênese colonial – preoconizado por Caio Prado Jr.(...)”. Note-se, portanto, que é ao paradigma caiopradeano que Mazzeo se vincula para atribuir superioridade ao conceito de via colonial para o capitalismo. Para ele, afinal, “o maior mérito de Prado Jr. está na percepção de que é próprio da processualidade histórica brasileira, sua característica de essencialidade, quer dizer, o elemento colonial-escravista do capitalismo brasileiro.” Afinal, de acordo com esta interpretação, o Brasil, para Caio Prado, seria uma “forma capitalista não-clássica, já que a transição da economia mercantil para o processo de 95 Ibidem, p. 119. Bernardo Ricupero tem acordo com a proximidade entre a análise de Caio Prado a respeito da transição brasileira para o capitalismo e a caracterização de Lênin da “via prussiana”. Contudo, destaca que José Chasin, (em O Integralismo de Plínio Salgado. São Paulo: Ciências Humanas, 1978, p. 628), tem “inteira razão em apontar que o grande interesse da ‘via prussiana’ para nós brasileiros, que também passamos para uma via não-classica de desenvolvimento capitalista, está em ambos os casos serem ‘singularidades distintas (...) que antes os separam dos casos clássicos, do que os identificam entre si’.” RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 185. 96 Ibidem, p. 119. 48 industrialização ocorre sem a eclosão de uma ruptura revolucionária com sua morfogênese colonial”. 97 Por também compreender que há em Caio Prado Júnior uma leitura da história brasileira, presente sobretudo em Evolução Política do Brasil, na qual seria ausente qualquer processo revolucionário de ruptura, Coutinho o aproxima de Antônio Gramsci. As analogias entre o Risorgimento italiano e os eventos que constituem o processo da Independência e da consolidação do Estado imperial no Brasil são significativas. Assim, não é casual que Caio Prado Júnior, escrevendo sobre esses eventos em 1933 – no mesmo momento, portanto, em que Gramsci elaborava seu conceito de “revolução passiva” –, tivesse chegado a resultados muito semelhantes aos do pensador italiano.98 Afinal, ambos consideram que, embora tivessem sido conduzidos “pelo alto”, os processos em questão levaram a mudanças efetivas ao mesmo tempo em que isso ocorre no quadro geral da conservação de importantes elementos políticos, econômicos e sociais da velha ordem. Entretanto, para analisar o Brasil contemporâneo, Caio Prado (...) captou com acuidade o momento “conservador de nossos processos de transição, [mas] tendeu a minimizar e subestimar os elementos de “modernização” que eles também trouxeram consigo. (...) Embora Caio Prado certamente reconheça que o caminho “não clássico” para o capitalismo brasileiro gerou mudanças em nossa estrutura social, tende a pôr uma ênfase maior no momento da conservação, da reprodução do velho.99 Nesta discussão sobre a concepção de Caio Prado Jr. quanto ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil, verificam-se duas grandes posições. De um lado, aqueles que atribuem ao autor a idéia de existência do capitalismo no Brasil desde o período colonial, que faria das mudanças verificadas aqui entre os séculos XIX e XX a expressão de uma transição do capitalismo mercantil para o capitalismo industrial, e não uma transição rumo ao capitalismo. De outro lado, encontram-se quem considera que Caio Prado analisa o capitalismo brasileiro como advindo de um processo de transição de uma formação pré-capitalista para uma formação capitalista, aproximando-o dos marxistas que formularam conceitos sobre vias “não clássicas” de desenvolvimento capitalista. 97 MAZZEO, Antônio Carlos. O Partido Comunista na raiz da teoria da Via Colonial do desenvolvimento do capitalismo, p. 165-9. Contudo, devemos registrar que, como bem nota Cesar Mangolim de Barros, o conceito de “via prussiana” foi explicitamente utilizado por Nelson Werneck Sodré (1958), em Formação Histórica do Brasil, e por João Amazonas (1960), no já referido artigo na Tribuna de Debates ao V Congresso do PCB. BARROS, Desenvolvimento e revolução no pensamento de Caio Prado Júnior. 98 COUTINHO, Carlos Nelson. Uma via “não-classica” para o capitalismo, p. 123. 99 Ibidem, p. 126-7. 49 6. Caio Prado Jr. e o marxismo no pensamento econômico brasileiro Se para analisar uma obra é necessário compreendê-la como uma totalidade concreta, observando sua coerência interna e a relação entre as partes; se nas divergências que existiam entre Caio e seus ambientes encontram-se boa parte da importância de sua obra100; portanto, devemos nos questionar: qual é o lugar de Caio Prado Jr. na contribuição do marxismo para o pensamento econômico brasileiro? De que modo sua tradução do marxismo influenciou a economia política no Brasil? O debate exposto acima, por si só, nos permite ter certa noção de seu lugar no pensamento econômico brasileiro. Todavia, investigar mais detidamente as relações que esta totalidade (o pensamento de Caio Prado Júnior) tem com o contexto no qual está inserida nos aproximará ainda mais de sua compreensão e portanto, de nosso objeto, que é uma das partes deste todo: o conceito de desenvolvimento em Caio Prado Jr. Tal procedimento poderá trazer importante suporte para a formulação de nossa interpretação na segunda parte da pesquisa. Sobre a contribuição do marxismo para o pensamento econômico brasileiro, dois autores em especial representarão posições opostas. Maurício Chalfin Coutinho afirma ser “possível sustentar que a economia política marxista não exerceu um impacto decisivo no pensamento econômico brasileiro”, uma vez que, “com raras exceções, a obra dos economistas assumidamente marxistas permaneceu imersa no caudal do desenvolvimentismo, raramente se distinguindo e/ou estabelecendo argumentos originais”. O principal argumento mobilizado para justificar tal afirmação é de que não haveria distinção marcante entre os autores marxistas e os demais. Segundo Chalfin Coutinho, pelo fato do marxismo ser uma doutrina orientada para a ação e caracterizada, sobretudo, pela “existência de uma moldura partidária”, seus adeptos não se desvencilhariam das contingências da luta política e das propostas de transformação social, mantendo-se pautados pelas vicissitudes do movimento comunista e disputas internas na esquerda. Em certa medida, isso os aproximaria dos “mais proeminentes economistas brasileiros”, cujas principais características seriam a atenção dada aos problemas do desenvolvimento nacional e um certo pragmatismo na reflexão, ou seja, pela importância dada às circunstâncias políticas.101 100 101 Cf. RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 39-42. Cf. COUTINHO, Maurício Chalfin. Incursões marxistas. Estudos Avançados, São Paulo, v. 15, n. 41, jan.abr. 2001, p. 35. 50 Porém, com isso ainda não está elucidada a declarada imersão dos marxistas no interior do pensamento desenvolvimentista. Basta dizer que os chamados monetaristas eram tão ou mais pragmáticos que os desenvolvimentistas, mas nem por isso podemos considerar que se assemelhassem. A explicação deve se deslocar, portanto, ao conteúdo das propostas. Neste quesito, o autor afirma que, com poucas exceções, tanto os economistas de esquerda quanto os desenvolvimentistas assumiam o programa de “reformas estruturais” e as explicações estruturalistas da inflação. Ademais, marxistas e socialistas também teriam adotado “sem maiores problemas” as análises da CEPAL por considerarem que estas trariam substância a um programa de esquerda por defenderem os capitais nacionais e lutarem contra um arcaísmo no meio rural. Contudo, estas são características peculiares do marxismo brasileiro predominante entre os anos 1930 e meados dos anos 1960. Nas décadas seguintes, entre as principais críticas ao pensamento desenvolvimentista e cepalino estariam aquelas formuladas por marxistas, mas para Chalfin Coutinho elas não passam de “raras exceções relevantes” 102. Quanto à contribuição do marxismo no pensamento econômico brasileiro, há uma evidente aproximação entre Mauricio Chalfin Coutinho e Ricardo Bielschowsky. Enquanto o primeiro afirma que a participação do marxismo no pensamento social brasileiro “não chegou a se estender ao território da Economia” e pouco teria penetrado nos ramos da Economia Geral e Aplicada103, o segundo considera que até mesmo entre os membros da corrente de pensamento que ele denominou como socialista, “o uso da própria economia marxista foi limitado”. Para Bielschowsky, mesmo quando faziam uso de conceitos marxistas, “o contexto em que são usados tinha, porém, uma remota relação com o âmbito analítico próprio da teoria econômica marxista”. Aliás, a rigor, seria mesmo “difícil, no caso dos socialistas, falar em teoria econômica subjacente às análises”, pois toda sua reflexão se fazia a partir da perspectiva revolucionária discutida e definida pelo Partido Comunista Brasileiro (...), toda a reflexão econômica da corrente socialista está subordinada e mesmo sobredeterminada pela discussão interna no partido a respeito de sua tática revolucionária e de sua plataforma de lutas sociais.104 102 Ibidem., p. 35-6. 103 Ibidem, p. 36. 104 BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo, Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p.182-3 (grifos nossos). 51 A princípio, Bielschowsky parece não abrir margem nem para a existência de exceções no período de 1930 e 1964, em que estudou o chamado ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Na verdade, porém, reconhece que as obras História Econômica do Brasil (1945), de Caio Prado Jr., Capitais estrangeiros no Brasil (1959), de Aristóteles Moura, e Inflação e monopólio no Brasil (1963), de Alberto Passos Guimarães, significaram momentos de destaque do pensamento econômico dos marxistas brasileiros.105 Portanto, seria mais correto dizer que ele as reconhece, mas as subestima. Essa tendência a diminuir a contribuição do marxismo no pensamento econômico brasileiro talvez decorra de uma hipótese levantada por Mantega. Segundo ele, o marxismo nunca foi aplicado de forma pura, mas mesclou-se com outras doutrinas e correntes de interpretação mais próximas, para dar conta de um objeto de análise – a realidade brasileira – que não se enquadrava imediatamente no figurino dessa teoria, formulada para analisar o capitalismo pioneiro da Inglaterra, Franca e Alemanha.106 Somadas às lacunas deixadas pelos fundadores e os primeiros adeptos do materialismo histórico dialético, esta suposta inadequação teria obrigado os marxistas brasileiros e latinoamericanos a “recorrer a autores como Keynes, Schumpeter, Kalecki e outros expoentes da Economia política para esmiuçar a dinâmica dos países de capitalismo retardatário.” Assim, o pensamento materialista da esquerda brasileira teria sido forjado em um contexto de assimilação recíproca, abrangendo o marxismo, o keynesianismo, passando pela CEPAL e por vários autores não alinhados com a ortodoxia liberal.107 Esta hipótese parece plausível, mas se equivoca em um aspecto: tal ecletismo decorre não de uma inadequação da teoria marxista para analisar realidades diferentes daquelas para as quais Marx olhava, mas era produto das leituras dessa teoria que tentavam dela extrair modelos, ao invés de assimilar seu método de análise da realidade, indissociável da prática e, portanto, da própria realidade que se pretende compreender e transformar. Ainda assim, porém, Guido Mantega é quem afirma categoricamente que a “economia política marxista exerceu uma influência decisiva na constituição do pensamento econômico brasileiro”, uma vez que entre “os pensadores que mais contribuíram para a formação de uma 105 Ibidem, p. 185-200. 106 MANTEGA, Guido. Marxismo na economia brasileira, p. 147-8 107 Cf. Ibidem, p. 147-8. 52 economia política crítica no Brasil destacam-se os representantes da esquerda marxista brasileira” 108: Se quisermos estabelecer um marco inicial para assinalar o advento da análise marxista da economia brasileira, adotaríamos, sem muita controvérsia, os três trabalhos publicados por Caio Prado Jr. entre 1933 e 1945, os quais representaram a primeira tentativa bem sucedida de aplicação do materialismo histórico ao caso 109 brasileiro. Para este autor, das “três principais correntes do pensamento econômico brasileiro em sua primeira fase”, que compreenderia o período entre os anos 1950 e início da década de 1970, duas são de inspiração marxista: o Modelo Democrático-Burguês, representado principalmente pelas opiniões do PCB e seus intelectuais, e o Modelo do Subdesenvolvimento Capitalista, na qual estariam inseridos Rui Mauro Marini, André Gunder Frank e Caio Prado Jr. A terceira corrente é a que Mantega denominou como representante do Modelo de Substituição de Importações, na qual se inserem Celso Furtado, Ignácio Rangel e seus “herdeiros” (Maria da Conceição Tavares, Paul Singer e Luiz Carlos Bresser Pereira), que estariam sob influência direta das idéias da CEPAL.110 Apesar de também relacionar o pensamento de marxistas com sua filiação à correntes políticas e suas respectivas organizações – a III Internacional, vinculada ao pensamento de Lênin, e a IV Internacional, associada à Trotsky –, Mantega dá destaque ao que existe de original nas formulações que os afastam tanto do desenvolvimentismo de inspiração cepalina quanto da orientação difundida pelo PCB. Não por acaso, na análise deste autor e de Maria Moraes, pensadores marxistas aparecem como protagonistas de uma discussão realizada entre 1964 e 1975, na qual se buscava novas interpretações para explicar a realidade econômica em rápida transformação e, portanto, travavam-se duras polêmicas entre os representantes de diferentes correntes do pensamento econômico. 111 Trabalhamos aqui com a hipótese de que as conclusões distintas sobre a contribuição do marxismo no pensamento econômico brasileiro se relacionam com três fatores. O primeiro deles é a falta de parâmetros precisos e compartilhados entre os autores para definir o grau da influência exercida pela economia política marxista no Brasil. Para uns, o critério mais 108 Ibidem, p. 147 109 Idem, A economia política brasileira, p. 134. 110 Cf. MANTEGA, Guido. A economia política brasileira, p. 20. 111 Cf. MANTEGA, Guido; MORAES, Maria. A economia política brasileira em questão. 53 adequado é a contribuição dada em termos de ciência econômica. Para outros, trata-se de saber a influência concreta que o pensamento econômico exercera na economia. O segundo diz respeito ao recorte temporal adotado, uma vez que a presença de marxistas com contribuições marcantes se concentra, sobretudo, a partir dos anos 1960. Assim, quando a ênfase é dada ao período entre 1930 e 1964, em geral predominam as avaliações sobre o pequeno peso do marxismo no pensamento econômico brasileiro. Quando, porém, a ênfase recai no período iniciado nos anos 1960, as análises ressaltam maior participação do marxismo na economia política. Note-se, ademais, que para Guido Mantega, a organização do atualmente famoso grupo de intelectuais em São Paulo, em 1958, para o estudo sistemático de O Capital e obras correlatas, constitui um passo decisivo para a consolidação do marxismo no Brasil em direção a uma análise materialista e dialética da sociedade brasileira. Segundo Ricupero, é com o marxismo uspiano que passa a existir um marxismo brasileiro, pois os intelectuais marxistas vinculados a esta universidade teriam capazes de formular, nas décadas de 1950 e 1960, uma explicação do Brasil. 112 Já Fernando Novais diz: A discussão e a crítica das formulações da CEPAL parece ter levado a uma revitalização do marxismo, passando-se de uma concepção um tanto tosca para uma visão mais aberta e refinada. Nesse sentido, poder-se-ia sugerir que o ‘pensamento cepalino’ se situa em face do marxismo latino-americano como, mutatis mutandis, a economia política clássica estava para a gênese do marxismo. 113 O terceiro fator é o lugar ocupado por Caio Prado nas análises que estes autores empreendem sobre o assunto. Como Prado Júnior tem expressiva produção intelectual anterior ao período de concentração de trabalhos marxistas mais significativos e como se trata de uma importante referência para aqueles que, entre os marxistas, reformularam as problemáticas, análises e propostas para a realidade econômica e social do país, a posição que Prado Jr. ocupa no pensamento econômico brasileiro segundo cada autor pode indicar a maior ou menor importância que atribuem ao marxismo. Assim, apesar de Mantega e Bielchoswky sugerirem que o agrupamento dos marxistas em correntes de pensamento econômico está vinculado à filiação de cada autor às correntes políticas do marxismo, extraem daí conclusões diferentes em relação à posição ocupada por 112 Cf. MANTEGA, Guido. Marxismo na Economia Brasileira, p. 160; Cf. RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 10. 113 NOVAIS, Fernando. Sobre Caio Prado Júnior. In: Aproximações: estudos de história e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 293. 54 Prado Jr. Enquanto Bielschowsky o inclui na corrente que denominou de socialista, junto com os pensadores alinhados com a política oficial do PCB, Mantega o afastará do correspondente Modelo Democrático-Burguês, inserindo-o, como já foi dito, entre os partidários do Modelo de Subdesenvolvimento Capitalista, que teria operado uma ruptura com a interpretação pecebista. Chalfim Coutinho, por sua vez, apesar de inserir Caio Prado Júnior entre as “raras exceções” de pensamento original no marxismo, considerando sua iniciativa como “exemplar”, afirma que “os estudos marxistas sobre o desenvolvimento econômico sofreram pouca influência da pesquisa histórica inspirada no marxismo”. Para ele, teria sido “somente ao final da década de 70, e por meio de uma nova onda de estudos sobre a escravidão, que houve uma penetração marcante da perspectiva marxista na investigação histórica”, referindose aos trabalhos de C. F. Cardoso, A. B. Castro, F. Novais, J. Gorender, e, mais tarde, J. Fragoso e M. Florentino. Ademais, os “estudos que abordam o desenvolvimento econômico brasileiro a partir de uma perspectiva marxista surgiram, rigorosamente, em contraposição ao modelo estruturalista de desenvolvimento econômico”. Esta consideração o leva a afirmar que o livro Formação Econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado, influenciou “decisivamente a reflexão marxista dos anos 70”, enquanto silencia a respeito da influência de Caio Prado Júnior no florescimento da crítica ao estruturalismo cepalino e ao modelo de substituição de importações, além de negligenciar a presença de sua obra na formação dos pensadores que ele mesmo considera como responsáveis pelos novos “estudos de desenvolvimento econômico influenciados pelo marxismo”: Sérgio Silva, João Manuel Cardoso de Mello, Chico de Oliveira, Paul Singer, entre outros114. Visto isso, consideramos que Mantega é quem dá mais ênfase à contribuição do marxismo à economia política brasileira, justamente por ter visualizado exatamente o que existe de original no pensamento de Caio Prado Jr., bem como seus vínculos com a geração posterior de marxistas que assimilou e promoveu a superação dialética de suas teses sobre a relação entre as particularidades da formação histórica brasileira com o tipo de desenvolvimento capitalista que aqui se processou. No entanto, não corroboramos com a inserção de Prado Jr. no chamado Modelo do Subdesenvolvimento Capitalista por considerar que as diferenças que o próprio Mantega ressaltou serem suficientes para afastá-lo do grupo: 114 Quando dá algum destaque a Caio Prado Jr. o autor limita-se ao tema da questão agrária, desconsiderando a questão do desenvolvimento. Cf. COUTINHO, Maurício Chalfin, Incursões marxistas, p. 37-45. 55 A contribuição de Caio Prado Jr. para o Modelo de Subdesenvolvimento Capitalista foi decisiva por ter fornecido uma extensa e minuciosa análise das relações de produção na agricultura brasileira desde os tempos da colônia até a época contemporânea, fundamentando a concepção de capitalismo colonial subdesenvolvido de Frank e Marini. Porém, a despeito disso, Prado Jr., manteve profundas divergências quanto ao rumo das transformações político-econômicas professadas por esses autores. Assim, embora crítico ardoroso da tese feudal e pioneiro na caracterização de um Brasil mercantil e capitalista desde os tempo de colônia, discordava de que o próximo passo da sociedade brasileira fosse uma revolução socialista, como supunham Frank e Marini. 115 É justo registrar, porém, que tal procedimento, se não permitiu destacar o pensamento caiopradiano como dotado de uma particularidade e especificidade próprias, pelo menos contribuiu para evitar que ele seja imerso acriticamente seja no desenvolvimentismo, seja na matriz clássica do PCB. 115 MANTEGA, Guido. A economia política brasileira, p. 236. 56 7. Historiografia e economia política Como vimos acima, visando traçar um quadro do pensamento econômico brasileiro entre 1930-1964, ao estudar a corrente que denomina socialista, Ricardo Bielschowsky, escrevendo na primeira metade dos anos 1980, afirmou que é difícil falar em uma teoria econômica subjacente às análises. Possivelmente, tal dificuldade decorra de sua orientação metodológica: por considerar que “toda reflexão econômica da corrente socialista está subordinada e mesmo sobredeterminada pela discussão interna no partido a respeito de sua tática revolucionária e de sua plataforma de lutas políticas”, o autor é levado a concluir que “a caracterização do pensamento econômico da corrente socialista deve partir de uma apreciação dos traços gerais da evolução do PCB no período”, o que envolveria, inclusive, “o conhecimento do conteúdo econômico das diferentes formulações políticas correspondentes aos diversos estágios dessa evolução”. Assim, o autor se atém mais às dimensões políticas e ideológicas das diretrizes econômicas que defenderam do que às suas implicações em termos de teoria econômica propriamente. Para Bielschowsky, parte das análises econômicas dos socialistas “tinha inspiração não na economia marxista propriamente dita, mas no método do materialismo histórico”; o âmbito analítico desta corrente não seria o mesmo da teoria econômica marxista, “isto é, o âmbito da análise econômica da acumulação de capital e das contradições que a acumulação engendra”.116 Ao tomar a evolução política do PCB como fio condutor de sua análise, o autor perde de vista outras dimensões do pensamento econômico dos socialistas e toma o todo pela parte. A teoria econômica pode ser um instrumental que, a rigor, é mesmo difícil de ser identificado nos programas e resoluções de um partido. Mas isso não significa nem que seja ausente, nem que os intelectuais marxistas identificados com o PCB desconhecessem ou ignorassem a teoria econômica. As Diretrizes para uma política econômica brasileira (1954) e o Esboço dos fundamentos de teoria econômica (1957), de Caio Prado Jr., se inserem como exceções, às quais iria se juntar posteriormente História e desenvolvimento (1968). Nestas obras, o autor reiteradamente defende a necessidade de reconhecimento das particularidades históricas de países como o Brasil, que está inscrito na história moderna de expansão do capital a partir dos séculos XV e XVI sob a condição colonial e, portanto, suscetível às oscilações da dinâmica econômica metropolitana e, posteriormente, imperialista. 116 BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo, p. 182-3. 57 Francisco Iglesias parece ter este entendimento ao destacar uma citação de Caio Prado Jr. onde se diz que seria a partir do reconhecimento do que existe de singular no desenvolvimento histórico das diferentes formações sociais que seria possível formular “não uma pseudociência econômica abstrata e absoluta que seria um pobre e inútil substituto do velho direito natural; e sim uma teoria econômica que nesse momento e para o Brasil em que vivemos deverá ser a expressão de uma economia em germinação no âmago do nosso país e nacionalidade de seu longo passado colonial”117. Com isso, Iglesias indica que se evidencia “a necessidade para os periféricos de uma teoria econômica que seja expressão autêntica de suas experiências, fundada pois em seu processo histórico”118. Para João Antônio de Paula, porém, seria preciso inserir as contribuições de Caio Prado Júnior neste sentido como manifestações de uma época na qual foi redescoberto que não eram leis naturais e inexoráveis que promoviam a desigualdade econômica política e social entre os países, mas assimetrias e desigualdades construídas historicamente a partir de relações econômico sociais. Nas palavras do autor, Esse tempo, marcado pela urgência e pelo compromisso, foi tanto o da eclosão de várias perspectivas críticas – que buscaram apontar os limites do pensamento econômico convencional, a tradição liberal-neoclássica, em dar conta do fenômeno assim batizado de subdesenvolvimento – quanto da busca de instrumentos teóricos e práticos, técnicos e políticos, capazes de superá-lo mediante a construção do desenvolvimento econômico-social como processo de universalização dos frutos do progresso científico e tecnológico.119 Trata-se, portanto, de formulações em comum com as obras de Gunnar Myrdal, Albert Hirschman, W. Arthur Lewis, Raul Prebisch e Celso Furtado, todas elas divergentes em relação à ortodoxia do pensamento econômico de então, que desconsideravam as peculiaridades dos diferentes desenvolvimentos históricos de países e regiões periféricas e subdesenvolvidas120. Reconhecidamente influenciado pela obra de Keynes, que teria trazido de volta à teoria econômica o elemento tempo, atravessando a barreira artificial e juntando história e teoria, Celso Furtado considera que o desenvolvimento econômico entende-se como processo histórico, que não se esgota pela capacidade explicativa das categorias puramente 117 PRADO Jr. Diretrizes para uma economia política brasileira. São Paulo, Gráfica Urupês, 1954, p. 239-40. Apud IGLÉSIAS, Francisco. Um historiador revolucionário, p. 36. 118 IGLÉSIAS, Francisco. Um historiador revolucionário, p. 37. 119 DE PAULA, João Antônio. Caio Prado Júnior e o desenvolvimento econômico brasileiro, p. 3. 120 Cf. Ibidem, p. 3. 58 econômicas. Assim evidencia-se por que suas primeiras obras privilegiam a história: L’Economie Coloniale Brasiliene (1948), A economia brasileira (1954) e, a mais conhecida, Formação econômica do Brasil (1959). Este economista afirmou, inclusive, que se uma teoria do desenvolvimento deve ser explicada pelo processo de acumulação de capital, deve-se identificar os elementos específicos do processo histórico que estabeleceram as formas de distribuição e utilização da renda, os sistemas de organização da produção, enfim, e não por meio de categorias abstratas com pretensões à universalidade. 121 No livro História e desenvolvimento (1968), de Caio Prado Júnior, verifica-se que, realmente, no que se refere ao estatuto da história na concepção de desenvolvimento econômico, há forte relação entre essas matrizes teóricas: É na história, nos fatos concretos da formação e evolução de nossa nacionalidade que se encontra o material básico e essencial necessário para a compreensão da realidade brasileira atual e sua interpretação com vistas à elaboração de uma política destinada a promover e estimular o desenvolvimento. E não as puras abstrações da análise econômica onde aqueles fatos aparecem fatalmente distorcidos e desfigurados, uma vez que tais abstrações, mesmo quando são até certo ponto justificáveis em outras situações para as quais e na base das quais foram elaboradas, não se ajustam a situações tão distintas como as nossas. Mais ainda que em países e povos que já atingiram um elevado nível de desenvolvimento, e que por assim dizer, e de certa forma, já romperam suas amarras com aquele passado (pelo menos para os fins da análise econômica), é sobretudo em nosso passado que se há de buscar a informação necessária para a proposição adequada e a solução acertada dos problemas atuais. O tema do desenvolvimento penetra assim em cheio na historiografia. E esta lhe ocupa mesmo a maior e principal parte. 122 Seja para a análise econômica, seja para a definição de políticas econômicas, percebe-se claramente que, para ambas as abordagens, o desenvolvimento histórico de cada formação social específica constitui chave explicativa e orientadora mais eficaz do que teorias que se pretendem aplicáveis à quaisquer situações. Mas nem tudo são semelhanças. Segundo Lincoln Secco, Prado Jr. discordava de muitas teses de Furtado; apesar de reconhecê-lo como um grande economista, reduziu a obra de Furtado a uma interpretação “sobretudo monetária” da história econômica brasileira; escreveu 121 Cf. GONÇALVES, José Sérgio Rocha de Castro. Celso Furtado: pensamento e ação. In: FURTADO, Celso. Teoria e política do desenvolvimento econômico. São Paulo, Abril Cultural, 1983, p. IX e XVIII. (publicada originalmente em 1967). Bielschowsky (2000) e Mantega (1984; 2002) também destacaram a relação entre Celso Furtado e a história. Observe-se, ademais, a semelhança entre os títulos das obras de Celso Furtado (1967) e de Caio Prado Jr. (1968), ambas destacando a relação entre reflexão teórica e atuação prático-política. 122 PRADO JR. História e desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e prática do desenvolvimento brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 18-9. Apresentamos aqui esta passagem apenas para demonstrar o lugar da relação entre a historiografia e a teoria econômica no pensamento de Caio Prado Jr. Analisaremos melhor o conjunto de questões envolvidas no trecho citado na segunda parte de nossa pesquisa. 59 sobre uma cópia de um artigo de Furtado, ao lado de uma frase grifada: “é a única afirmação deste artigo que tem sentido concreto”; além de tudo, sentiu-se desprestigiado por não ter sido citado em Formação econômica do Brasil (1959). 123 Curioso, porém, é o fato de que, apesar da reflexão sobre a relação entre história e economia em Caio Prado Jr. ser relativamente farta – levando inclusive à polêmicas sobre um suposto economicismo presente em seu pensamento –, não encontramos nenhuma bibliografia que se concentrasse especificamente sobre uma relação entre teoria da história e economia política em Caio Prado Jr., ou seja, a maneira como a economia política participa de sua historiografia e, simultaneamente, como a história se insere nas suas análises econômicas. Podemos dizer que Francisco Iglesias perdeu a oportunidade de fazê-lo quando, ao comentar o livro História e desenvolvimento, disse em tom de menosprezo: Concluir da tese que a história tem seu elemento esclarecedor no processo econômico ou que o estudo do desenvolvimento é fruto do processo histórico é muito pouco. O certo é que o pequeno texto não chega a produzir entusiasmo: de quanto fez o autor em história é o livro menos expressivo.124 Escrito em 1982, o texto de Iglesias é pioneiro. Dificilmente seria possível inferir se esta opinião influenciou os demais estudiosos de Caio Prado Jr. a ponto de, igualmente, considerarem menos importante o referido livro. Segue aberto um campo de investigação no qual a análise minuciosa de História e desenvolvimento, em conjunto com suas obras de 1954 e 1957, citadas acima, e da significativa bibliografia a respeito da teoria da história em Caio Prado Jr.125 podem trazer interessantes leituras sobre as relações que nosso autor estabelece entre teoria da história e economia política. Tal enfoque enriqueceria sobremaneira nossa percepção a respeito de sua concepção de desenvolvimento, além de aprofundar nossos conhecimentos no que se refere à relação entre historiografia e teoria econômica, entre a escrita da história e a economia política, entre história e desenvolvimento, entre historiadores e economistas. Não poderemos desenvolver esta questão ao longo de nossa pesquisa, tarefa para a qual seria indispensável uma reflexão 123 SECCO, Lincoln. Caio Prado Jr.: o sentido da revolução, p. 167-8 124 IGLÉSIAS, Francisco, Um historiador revolucionário, p. 30. 125 Sobre a teoria da história no pensamento do autor, ver principalmente: GRESPAN, J. A teoria da história de Caio Prado Júnior: dialética e sentido. Revista do IEB, São Paulo, n.47, set. 2008; NOVAIS, Fernando. Caio Prado Júnior, Historiador. Novos Estudos Cebrap, n. 2, 1983; Idem, Caio Prado Jr. na historiografia brasileira. In: MORAES, Reginaldo; ANTUNES, Ricardo; FERRANTE, Vera B. (orgs.). Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986. 60 teórico-metodológica baseada em literatura especializada, o que nos afastaria de nossos objetivos. Vale a pena, porém, levantar a hipótese de que Caio Prado Jr. encontra-se de alguma maneira tensionado entre a crítica da economia política e a economia política clássica. Dialogando com as principais correntes de pensamento econômico e pensamento histórico face aos problemas do desenvolvimento, em 1960, Pierre Vilar afirma que Adam Smith “se mantém um historiador e que, apesar de sua declaração de guerra aos mercantilistas, ainda pensa em termos de wealth of nations; simultaneamente riqueza e poder que, no século seguinte, se afirmará como o quadro histórico por excelência: a ‘nação’ moderna.” Por outro lado, “Marx – porque leu Ricardo – encontra-se em certo sentido mais próximo da teoria abstrata moderna do desenvolvimento do que o estiveram Smith e os mercantilistas, porque não examina o desenvolvimento das ‘nações’ mas sim o processo de acumulação e de reprodução alargada no seu aspecto mais geral, aplicável tanto à empresa isolada quanto à economia global. (...) Pondo o acento sobre o processo puramente econômico e ‘endógeno’ da reprodução capitalista, Marx coloca-se, ao fazê-lo, à cabeça dos teóricos do desenvolvimento.” Contudo, Vilar toma o cuidado de lembrar que “este autor nunca confunde o procedimento metodológico que é a abstração com o fim real da investigação, que é a explicação da realidade histórica.” Assim, como Marx compreende que os modelos que extraiu da observação do capitalismo de sua época não seriam aplicáveis de maneira absoluta a realidades passadas ou futuras “a análise se torna histórica, pois os modelos por ela propostas não são nem eternos nem universais, e modificam-se no interior de uma realidade mais ampla da economia ‘pura’: a totalidade das relações humanas.” 126 Considerando o peso que tem o conceito de nação no pensamento de Caio Prado Júnior e sua ênfase na esfera da circulação, como veremos mais adiante, encontramos pontos de contato com a perspectiva de Smith. Por outro lado, sua crítica à transposições mecânicas de modelos de desenvolvimento e sua compreensão do sentido da colonização, que analisaremos a seguir, o coloca em proximidade com a economia política marxista. Trata-se de um interessante foco de tensão na relação de Caio Prado Jr. com a economia política, o que mereceria atenção de pesquisadores. 126 VILAR, Pierre. Desenvolvimento econômico e análise histórica. Lisboa: Editorial Presença, 1982, p. 16-7. 61 De qualquer modo, mesmo impedidos de prosseguir neste caminho de investigação, esperamos que os resultados de nosso estudo venham a contribuir de alguma maneira com novas pesquisas que queiram abordar esta questão. 62 PARTE II DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO 8. A “amputação do espírito” A biografia intelectual de Caio Prado Júnior escrita por Paulo Teixeira Iumatti abre com uma epígrafe, de autoria do próprio biografado, elaborada em 1948, ano em foi encarcerado depois que teve seu mandato de deputado estadual pelo PCB em São Paulo cassado: Nem é sem riscos, e tão pouco sem consequências graves, que um homem de pensamento malbarata o que de mais precioso ele tem, e que é precisamente esse pensamento; que lhe retira o fio cortante, que o embota com concessões de toda ordem. Cada transigência, toda acomodação de ordem financeira, social ou outra qualquer, representa uma amputação do espírito; não há talento, não há inteligência por mais vigorosa que seja, capaz de resistir muito tempo a uma tal mutilação continuada e sistemática das fontes vivas da inspiração e da produção intelectual.127 É pouco provável que o próprio autor tenha sido capaz de passar incólume, sem nenhuma “amputação do espírito”, pelas tribulações impostas tanto por suas convicções políticas e pessoais quanto pelos infortúnios da vida. Ao longo de sua trajetória pública e privada experimentou momentos de tensão e tristeza que certamente lhe moldaram a personalidade e o pensamento: duas separações (1939 e 1969), o suicídio do filho (1970), o fechamento da Revista Brasiliense (1964), o exílio no Chile (1969-70), a apreensão da tipografia do PCB que havia financiado (1932), os permanentes conflitos internos do partido, a constante vigilância dos órgãos de repressão e as mortes, prisões e desaparecimentos de amigos e companheiros de militância128. As prisões também acompanharam sua história: antes de abril de 1964 Caio Prado Júnior já havia sido detido pelas forças policiais algumas vezes. A primeira ocorreu durante a campanha presidencial de Getúlio Vargas. O então jovem membro do Partido Democrático, que havia aderido à campanha da Aliança Liberal em agosto de 1929, integrava a comissão de recepção organizada pelo partido para a chegada de seu candidato à capital paulista agendada para o dia 2 de janeiro de 1930. Durante o corso do candidato Júlio Prestes na Avenida Paulista em 31 de dezembro de 1929, Caio Prado Júnior bradou “Viva Getúlio Vargas”. Horas 127 PRADO JR. apud IUMATTI, Paulo Teixeira. Caio Prado Júnior: uma trajetória intelectual. São Paulo, Brasiliense, 2007, p. 5. 128 Em telegrama não datado, Caio Prado escreve a Benedito Camargo, que se encontrava em Pindamonhangaba: “Queira aceitar expressão meus profundos sentimentos lamentavel desaparecimento grande amigo muitos anos cuja memoria conservarei grande carinho”. (Código: CPJ-CA065, Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros, doravante AIEB). Não sabemos a quem o autor se refere. 64 depois, quando deixava o baile de réveillon do Automóvel Club Paulista129 na madrugada do dia 1º de janeiro de 1930, a polícia o deteve sob a alegação de “desacatar” o candidato governista. O jovem militante foi libertado naquele dia: a punição esperava-se exemplar130. Porém, quando Vargas chegou a São Paulo para sua campanha, Caio Prado prosseguiu cumprindo suas funções na comissão de recepção: dirigiu o veículo que conduzia o candidato e esteve com ele na casa de José Carlos Macedo Soares, que se tornaria o ministro das Relações Exteriores do novo governo131. A segunda detenção veio no contexto das mobilizações da Aliança Nacional Libertadora – ANL durante o ano de 1935, das quais Caio Prado Jr. participava ativamente, fazendo discursos em comícios, publicando folhetos, organizando reuniões e concedendo entrevistas à imprensa. Então com 28 anos de idade, era vice-presidente, em São Paulo, da ANL132. Em suas memórias não publicadas, Catullo Branco afirma que viu Caio Prado Júnior ser preso quando falava em um comício no dia 5 de setembro de 1935, realizado em um salão de patinação numa travessa da Avenida Nove de Julho. Além de intelectuais, artistas e militantes, assistiam ao comício alguns militares afetos ao General Miguel Costa. 133 A terceira prisão veio pouco depois, no contexto de seguidas “quedas” em função do fracasso do episódio que ficou conhecido como a “intentona comunista de 1935”. Foi detido no Rio Grande do Sul em 27 de novembro daquele ano, acusado de ter se reunido na sede do jornal A Platéa com o médico José Maria Gomes e o advogado Danton Vampré e de ser portador de ideias extremistas. Segundo o correspondente em Porto Alegre do periódico O Jornal, havia sido preso, “a pedido da polícia paulista, o sr. Caio Prado, membro da Ação Libertadora de São Paulo e que aqui se encontrava a passeio”.134 Caio Prado Júnior ficou preso até meados de 1937, primeiro no presídio Maria Zélia e depois no Paraíso.135 129 Segundo Maria Célia Wider, Caio Prado foi detido ao sair do Club Athlético Paulistano. Cf. WIDER, Maria Célia. Caio Prado Júnior: um intelectual irresistível. São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 38. 130 Cf. MARTINEZ, Paulo Henrique. A dinâmica de um pensamento crítico: Caio Prado Jr. (1928-1935). São Paulo: Edusp, Fapesp, 2008, p. 70-1. 131 Cf. SECCO, Lincoln. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 29. 132 O documento de sua detenção assinalava que Caio era presidente do Diretório Estadual da ANL. Ibidem, p. 51. 133 Ibidem, p. 51. 134 Prisões efectuadas em Porto Alegre, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 nov. 1935, p. 7. Disponível em: http://bndigital.bn.br/expo/caioprado/index.htm. Acessado em fevereiro de 2013. 135 Cf. IUMATTI, Paulo Teixeira. Caio Prado Júnior: uma trajetória intelectual, p. 31-2; SECCO, Lincoln. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 50-1. Sobre a militância de Caio Prado Júnior na ANL, indicamos a análise de MARTINEZ, A dinâmica de um pensamento crítico: Caio Prado Jr. (1928-1935), p.238-51. 65 A quarta prisão veio em 1948. Depois de ter publicado um manifesto com outros parlamentares pecebistas que tiveram cassados seus mandatos, Caio Prado Jr. foi detido. Depois de aproximadamente dois meses de reclusão, prestou depoimento na 2ª vara criminal ao juiz Elias Cruz Martins. De acordo com reportagem da Folha da Manhã, depois de declarar “ser o seu próprio advogado no processo” alegou que desde que foi preso “não teve nenhuma informação segura sobre a autoridade que ordenou a prisão e os motivos dela”. Depois, evocou artigos da Constituição para responsabilizar a autoridade policial “pela ação ilegal praticada contra o depoente, não apenas prendendo-o o mantendo-o preso sem ordem legal, como deixando de comunicar ao juiz competente a prisão efetuada”. Para Caio Prado, a denúncia não passava de “mera perseguição política” e seria obscura, “pois o promotor tirou conclusões em desacordo com o texto do manifesto”.136 O habeas-corpus foi concedido no dia 17 de junho daquele ano e o recurso contra a prisão preventiva decretada por Martins foi considerado procedente. Tomada a decisão, na noite do mesmo dia, os advogados João Bernardes da Silva e Rio Branco Paranhos foram ao quartel da 1ª Companhia Independente da Força Pública acompanhados do escrivão do Tribunal de Justiça e restituíram a liberdade dos detidos. 137 Durante o intervalo relativamente democrático de quase 16 anos que separou a quarta e a quinta detenções, os órgãos de repressão não deixaram de investigar sua vida e as perseguições aos comunistas não cessaram. Em abril de 1964, porém, já nos primeiros dias que se seguiram à deposição de João Goulart da presidência da república iniciou-se uma nova sequência de prisões de militantes e de repressão às organizações e instituições progressistas e de esquerda, da qual Prado Júnior e a Revista Brasiliense não escaparam. No dia seguinte ao golpe, Caio Prado foi passear pelos bairros operários de São Paulo para verificar que a classe operária estava indiferente à nova situação política do país e não dava sinais de interesse em oferecer resistência. Em um primeiro momento, ele teve atitude bem distinta. Procurado por Paulo Alves Pinto em sua própria casa, decidiu pegar a estrada no jipe de seu amigo em direção à região sul do país, onde participariam do movimento de resistência que estaria sendo organizado. Quando estavam próximos da divisa de São Paulo com o estado do Paraná, Caio Prado Júnior teria se dado conta de que seria inútil seguir a 136 Concluído o interrogatório dos signatários do manifesto comunista, Folha da Manhã, São Paulo, 1 jun. 1948, p. 5. Disponível em: http://bndigital.bn.br/expo/caioprado/index.htm. Acessado em fevereiro de 2013. 137 Na ocasião, foram libertados: Caio Prado Júnior, Celestino dos Santos, Mario de Souza Sanches, Milton Caires de Brito, Roque Trevisan e João Talbo Cadorniga, Mario Schemberg, Armando Mazzo e Nestor Veras. Cf. Postos em liberdade os ex-parlamentares comunistas, Folha da Manhã, São Paulo, 8 jun. 1948, p. 5. Disponível em: http://bndigital.bn.br/expo/caioprado/index.htm. Acessado em fevereiro de 2013. 66 empreitada: “Paulo, eu vou esperar esse negócio em casa mesmo, se houver resistência a gente adere”, teria dito. Maria Célia Wider apresenta o depoimento de Alves Pinto: “Não tínhamos para onde ir e começamos a rir: só se fossemos para a rua, armados, resistir. A fronteira estava fechada. Não tinha para onde escapar para organizar uma resistência. Isso contado numa revolução européia é deboche.” O amigo de Caio Prado disse, inclusive, que nas vésperas do golpe esteve com Luís Carlos Prestes, que lhe teria assegurado que estariam prontos a sair às ruas a qualquer momento, não havendo motivos para preocupação. Como se sabe, não foi assim que se passou. “O clima em que se vivia era meio incompreensível”, analisou Paulo. 138 Aos olhos de Caio Prado Júnior, as massas operárias pareciam alheias e não se incomodaram com a nova situação instaurada. O próprio, porém, foi diretamente atingido pelas circunstâncias desfavoráveis: na tarde de 24 de abril, depois de interditar e lacrar a Gráfica Urupês “sob a acusação de que imprimia livros subversivos e de tendências esquerdistas”, o DEOPS-SP o deteve ao lado de Caio Graco da Silva Prado, seu filho, e Agenor Parente por serem dirigentes da Editora Brasiliense.139 Os originais da edição número 52 da publicação que editava, a Revista Brasiliense, que já se encontrava na gráfica pronta para ser impressa, foi confiscado e teve sua composição destruída. A revista foi extinta pelo regime militar e não voltaria a circular. Mesmo após os pedidos de militantes como Marco Antônio Tavares Coelho, Roberto Schwartz e outros, que foram até a casa de Caio Prado solicitar que insistisse com a publicação, o editor chefe da revista preferiu não mais se envolver com a publicação de um periódico140. Ainda que nos anos 1960 fosse um militante marginal no interior de seu partido 141, Caio Prado circulava em ambientes artísticos, políticos e intelectuais de prestígio. Não foi apenas 138 Cf. WIDER, Maria Célia. Caio Prado Júnior: um intelectual irresistível, p. 94. 139 DOPS fecha gráfica e prende Caio Prado Jr., Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 7, 25 abr. 1964. Disponível em: http://bndigital.bn.br/expo/caioprado/index.htm. Acessado em fevereiro de 2013. 140 Cf. IUMATTI, Paulo Teixeira. Caio Prado Júnior: uma trajetória intelectual, p, 163; SECCO, Lincoln. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 109; KAREPOVS, Dainis; GIANCRISTOFARO, Christiani Marques Menusier. Caio da Silva Prado Júnior: um perfil biográfico. In: KAREPOVS, Dainis (coord.). Caio Prado Júnior: parlamentar paulista. São Paulo: Alesp, 2003, p. 23. 141 Esta condição tem raízes no fracasso da tentativa de reorganizar o PCB em 1945 sob o predomínio do Comitê de Ação em detrimento a Comissão Nacional de Organização Política (CNOP) e com base na proposta de uma “Aliança Democrática e Popular” com a União Democrática Nacional (UDN). Sobre a conjuntura de 1945 e a participação política de Caio Prado Jr. na reorganização do PCB e no rearranjo de forças políticas no país, recomendamos os estudos de Paulo Teixeira Iumatti, Diários políticos de Caio Prado Júnior: 1945. São Paulo: Brasiliense, 1998; e Raimundo Santos, Caio Prado Júnior na cultura política brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, Faperj, 2001, principalmente o capítulo 4: “A transição de 1945 como emblema da ciência política”. 67 uma parcela da esquerda militante que reconheceu a importância de A revolução brasileira. Parte expressiva da intelectualidade considerou relevante a contribuição do livro para o pensamento social brasileiro, o que rendeu a Caio Prado Júnior o troféu Juca Pato de intelectual do ano em 1966, prêmio concedido pela União Brasileira de Escritores – UBE. Assim, o autor foi projetado a uma condição de ainda maior evidência e notoriedade. Entre outros, Antônio Cândido, que então já era um renomado intelectual, foi um dos que o parabenizou pela premiação, obtendo resposta de caloroso agradecimento.142 Daí em diante, o autor viveria uma nova situação: passou a chamar muito mais atenção tanto de seus admiradores quanto de seus inimigos. Apesar do prestígio, ou justamente por causa dele, os caminhos nublados e espinhosos de Caio Prado ficavam mais estreitos. As correspondências que trocou entre 1967 e 1968 nos mostra que recebeu inúmeros convites para participar da colação de grau de formandos na condição de paraninfo em diversas universidades, integrar comissões julgadoras e bancas de avaliação de concursos acadêmicos, proferir palestras e conferências sobre temas variados em diferentes instituições, bem como escrever artigos em periódicos e capítulos de livros. Porém, teve que declinar boa parte deles, seja em função de compromissos previamente agendados e viagens planejadas, por estar ocupado com outros afazeres, ou mesmo por impedimento legal de se ausentar de São Paulo, como foi o caso da colação de grau na Universidade Federal da Paraíba: Instaurou-se na Justiça Militar um processo contra mim, na base de entrevista que concedi a uma revista de estudantes da Universidade de São Paulo. Nestas condições, não poderei me ausentar enquanto não se resolver o assunto. Estou com um pedido de habeas corpus pendente no Supremo Tribunal Federal. Se esse recurso me for concedido como espero, estarei livre. 143 Caio Prado se referia à edição número 4 da revista Revisão, publicada pelo grêmio dos alunos da Faculdade de Filosofia da USP. Apesar de ter deixado evidente sua opinião de que não havia oportunidade histórica para a luta armada no Brasil, a ditadura militar utilizou o material como “prova” de que ele estaria “incitando o público à Guerra e à subversão da ordem político-social” e instaurou um Inquérito Policial-Militar (IPM) perante o Conselho Permanente de Justiça da 2ª Auditoria da 2ª Região Militar. 144 142 Cf. Carta a Antônio Cândido, de 7 de abril de 1967 (Código: CPJ-CA149, AIEB). 143 Carta às formandas da Universidade Federal da Paraíba, de 18 de novembro de 1968 (Código: CPJ-CA031, Arquivo do IEB). 144 Cf. KAREPOVS & GIANCRISTÓFARO, Caio da Silva Prado Júnior: um perfil biográfico, p. 25; SECCO, Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 116. 68 Confirmando suas expectativas, a viagem à João Pessoa foi impedida, uma vez que até o dia 4 de dezembro, quando tornou a escrever às organizadoras da formatura para atualizá-las de sua situação, o recurso ao Supremo ainda não havia entrado em pauta e não poderia, portanto, ser julgado a tempo. “Continuo assim respondendo ao processo na Justiça Militar, o que impossibilita minha ausência”. Como alternativa, pensou em remeter-lhes um discurso, de modo semelhante ao que fez um ano antes quando não pode se fazer presente, em função de viagem ao exterior, para paraninfar na colação de grau da turma de 1967 do Curso de Sociologia e Política do Instituto de Ciências Políticas e Sociais da Universidade de Pernambuco. Na ocasião, a seu pedido, Manoel Correia foi incumbido de representá-lo e ler seu discurso. Contudo, a formatura em João Pessoa ocorria em um contexto distinto e Caio Prado Júnior negou a ideia de remeter um discurso, que ele mesmo havia vislumbrado: “(...) além do pouco interesse que isso teria, que poderia eu dizer?”, questionou. Sua opção de não repetir o gesto de enviar um texto anexo à carta foi justificada: Na situação em que me encontro, e processado precisamente por ter dado uma entrevista a estudantes, encontro-me naturalmente coagido e impossibilitado de exprimir meu pensamento. Infelizmente é esta a situação em que nos encontramos, e somente nos resta esperar que ela se modifique. E nisto o papel de vocês é naturalmente muito grande. Só me resta solicitar-lhes que transmitam à turma de formandos que tanto me honraram com a escolha de meu nome para paraninfo, os meus agradecimentos. E com ele meu apelo para que, louvando-se no ocorrido e que tão lamentavelmente perturbou o programa de festejos de formatura, ele se compenetrem da triste situação política em que o país se encontra, e não poupem esforços, mesmo depois de formados, para lutarem por um Brasil melhor.145 Logo se percebe que a conjuntura instaurada pela ditadura militar foi responsável por imputar a Caio Prado Júnior restrições e condicionamentos de diversas ordens. Obviamente, porém, em virtude da visibilidade que tinha como escritor consagrado e de renome internacional entre intelectuais, estudiosos e militantes, a repressão se abateu sobre ele com intensidade muito menor quando comparada à onda de perseguições, prisões, desaparecimentos e assassinatos que se abateu sobre sindicalistas, militantes e dirigentes de organizações que se articulavam para a resistência ao novo regime. De qualquer modo, é certo que a etapa histórica aberta pelo golpe de 1964 exerceu influência decisiva para que Caio Prado sistematizasse em livro teses que já vinha desenvolvendo pelo menos desde o final dos anos 1950, sempre enquadradas na sua interpretação historiográfica do Brasil, elaborada nos 145 Carta às formandas da Universidade Federal da Paraíba, de 4 de dezembro de 1968 (Código: CPJ-CA032, AIEB). 69 anos 1930 e 1940. Como veremos, a nova situação, direta ou indiretamente, contribuiu para que escrevesse tanto o livro A revolução brasileira quanto a tese com a qual concorreria, em 1968, a vaga para a cátedra de História do Brasil da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL/USP), História e Desenvolvimento. 70 9. A teoria da revolução em debate Apesar do fim da Revista Brasiliense em 1964, a linha de publicações da Editora Brasiliense foi mantida até 1968. A produção de livros foi facilitada por algumas medidas do governo Castelo Branco e o crescimento do mercado editorial foi uma marca da segunda metade dos anos 1960. Contudo, a partir de 1968 – depois da adoção de medidas como o Ato Institucional nº 5 (AI-5), a censura e a proibição de publicação que se opunham ao governo – a editora passou a enfrentar dificuldades financeiras, sendo levada a queimar parte de seus estoques. 146 Ainda assim, as editoras que publicavam livros de autores socialistas e marxistas continuaram funcionando por algum tempo. De qualquer modo, a continuidade na edição de livros não contemplava de todo as aspirações da esquerda brasileira em realizar o diálogo político e teórico possibilitado por publicações periódicas como a Revista Brasiliense, principalmente em um momento que exigia um profundo balanço. Em certa medida, o órgão que preencheu a lacuna deixada foi a Revista Civilização Brasileira (RCB), que existiu entre 1965 e 1968. Tendo M. Cavalcanti Proença como diretor responsável e Ênio Silveira como secretário do Conselho de Redação (posteriormente substituído por Moacyr Félix), a RCB tornou-se a revista política e cultural de maior difusão na história deste tipo de imprensa periódica no país e foi considerada um dos marcos fundamentais na história da cultura e do pensamento político progressista no Brasil no século XX.147 Não por acaso, portanto, foi justamente por meio deste periódico que o debate a respeito da revolução brasileira ganhou corpo. Nela se encontram diversos artigos sobre o assunto, publicados antes e depois do lançamento do livro A revolução brasileira em meados de 1966 pela editora Brasiliense – bem como a resposta de Caio Prado Júnior a um destes escritos, que posteriormente foi incorporada às novas edições da obra como um complemento148. 146 Cf. IUMATTI, Paulo Teixeira. Caio Prado Júnior: uma trajetória intelectual, p. 163. 147 Cf. MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974): pontos de partida para uma revisão histórica. São Paulo: Ática, 1977, p. 205-7. 148 Ver MARTINS, Luciano. Aspectos políticos da revolução brasileira. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 2, mai., 1965, p. 15-37; GUEDES, Fausto. Revolução brasileira: nova fase de um debate antigo. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 3, jul., 1965, p. 13-25; TAVARES, Assis. Causa da derrocada de 1º de abril de 1964. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 8, jul., 1966, p. 9-33; SILVEIRA, Cid. Teoria marxista da revolução brasileira. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 8, jul., 1966, p. 127-45; TAVARES, Assis. Caio Prado e a teoria da revolução brasileira. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 11-12, mar., 1967, p. 48-80; MALTA, Cesar. ‘A revolução brasileira’, de 71 Mas outros órgãos também passaram a veicular artigos analisando a obra de Caio Prado: a revista Teoria e Prática, em sua segunda edição, publicou artigo de Ruy Fausto intitulado “A Revolução Brasileira de Caio Prado Jr.”, de agosto de 1967; a revista Argumentos, em edição não datada, publicou o artigo “Os equívocos de Caio Prado Júnior”, de Paulo Cavalcanti; até mesmo a Revista Mexicana de Sociologia, em 1967, publicou texto sobre o tema, de autoria do brasileiro Ruy Mauro Marini, intitulado “Crítica a A revolução brasileira, de Caio Prado Júnior”. Marini havia lido a edição do livro em português, mas o público de língua castelhana não tardaria a ter acesso ao texto caiopradiano: em carta de 15 de fevereiro de 1967, o argentino A. Peña Lillo entrou em contato com Caio Prado Júnior demonstrando interesse em traduzir e publicar seu livro. No mesmo mês o autor responde, remetendo um exemplar, impondo suas condições de direitos autorais e aceitando a sugestão de que Rodolfo Puiggrós traduzisse a obra. A esse respeito, disse Caio Prado que a escolha do tradutor “muito me satisfaz e honra, pois há muito conheço sua grande obra de interpretação histórica.” 149 Em carta do dia 19 de março, o editor sugere a inclusão de um prefácio do tradutor. Em resposta do dia 31 do mesmo mês, Caio Prado Jr., editor experiente, apresenta sua concordância e solicita a fixação de prazos para a publicação: Rogo-lhes todavia fixarem um prazo, que sugiro seja de um mês para a decisão sobre a publicação, e em seguida, seis meses para a publicação. Os srs. compreenderão certamente meu interesse em ver o assunto logo resolvido, tanto mais que tenho recebido outras ofertas de edição.150 A edição em castelhano é publicada com o prefácio assinado por Rodolfo Puiggrós, mas a tradução leva a assinatura de Alfredo Cepeda. O livro não apresenta data de lançamento151, mas independentemente de haver sido cumprido o prazo sugerido pelo autor o importante é que em pouco tempo os leitores latinoamericanos tiveram acesso ao “best-seller con dos edicciones agotadas de inmediato”, ainda que os “sectários” preferissem “no leerlo para mantener incólume su fe y no hacerse sospechosos ante la autoridad de sus respectivas y Caio Prado Jr. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 9-10, set-nov., 1966; PRADO JÚNIOR., Caio. Adendo a ‘A revolução brasileira’. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, ano II, n. 14, jul., 1967. 149 Carta a A. Peña Lillo, de 28 de fevereiro de 1967 (Código: CPJ-CA152, AIEB). 150 Carta a A. Peña Lillo, de 31 de março de 1967 (Código: CPJ-CA150, AIEB). 151 Cf. PRADO JÚNIOR. Caio. La revolucion brasileña. Buenos Aires: A. Peña Lillo editor, s/d. De acordo com Lincoln Secco, “Céspedes” é um pseudônimo utilizado por Puiggrós. Fica a questão, porém, sobre os motivos que levariam o argentino a assumir a autoria do prefácio, mas não da tradução, bem como sobre a diferença entre as assinaturas presentes na edição de A. Peña Lillo, “Cepeda”, e aquela atribuída por Secco. Cf. SECCO, Lincoln. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 113. 72 estériles sectas.”152 O livro teve uma segunda edição ainda em 1966, e outras em 1968, 1972, 1977 e 1978. Em 1987 chegou à sua sétima edição. Em janeiro de 1970, dava-se início aos contatos para o processo de tradução do livro para a língua japonesa.153 A sorte das edições do livro e das publicações que veicularam artigos comentando-o ilustra bem o impacto que causou na intelectualidade e na militância de esquerda brasileira e latinoamericana, sobretudo por se integrar a um movimento mais amplo de balanço e revisão das formulações no campo de esquerda como expressão “de um momento em que as consciências progressistas se viram obrigadas a debruçar sobre si mesmas para autoavaliação”: No torvelinho que se seguiu a 1964, não será arriscado afirmar que duas análises provocaram intenso debate e revisão ideológica nas searas progressistas: a primeira, no plano mais geral, de autoria de R. Stavenhagen, as Sete Teses Equivocadas Sobre a América Latina (1965), contestando as interpretações dualistas que embebiam os estudos sociais, econômicos, políticos, antropológicos (e que iam de Furtado a Lambert, de W. Sodré a Bastide); e a segunda, de Caio Prado Júnior, A Revolução Brasileira (1966), no plano interno, e mais especificamente dirigida ao pensamento de esquerda, apontava os desvios das interpretações ditas marxistas, que produziram diagnósticos pouco eficazes e que ajudaram a levar à derrocada dos setores progressistas em 1964. 154 Vivia-se uma grave crise na esquerda brasileira como consequência da derrota de 1964. Como era de se esperar, por desconstruir teses então hegemônicas neste campo político, Caio Prado Júnior recebeu duras críticas tanto de quadros do Partido Comunista Brasileiro (PCB), vide os artigos publicados na Revista Civilização Brasileira, como de seus dissidentes, vide o folheto intitulado A questão agrária no Brasil e a contra-revolução do Sr. Caio Prado, de autoria de Wladimir Pomar, que à época militava no Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e considerava o livro “um verdadeiro requisitório contra o movimento revolucionário”.155 Os militantes de esquerda cobravam explicações para a derrota de 1964 e o PCB era identificado como o principal responsável pelo fracasso e desmoralização no enfrentamento 152 PUIGGRÓS, Rodolfo. Prologo. In: PRADO JÚNIOR. La revolucion brasileña. Buenos Aires: A. Peña Lillo editor, s/d, p.12-3. 153 Cf. SECCO, Lincoln. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 113. Neste período, também os leitores de língua inglesa teriam contato com a produção intelectual de Caio Prado Júnior. Em 31 de novembro de 1968, o autor recebeu carta de Berkeley, Califórnia, da University of California Press, informando a publicação de The Colonial Backgorund of Modern Brazil, a tradução de Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. Cf. Carta de Caio Prado Júnior a Hartan Kessel, de 11 de dezembro de 1968 (Código: CPJ-CA130, AIEB). 154 MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974): pontos de partida para uma revisão histórica, p. 203. 155 POMAR, Valter. A questão agrária no Brasil e a contra-revolução do Sr. Caio Prado. Rio de Janeiro: Edições Alvorada, 1969, p. 1. A assinatura do folheto por “Valter Pomar” correspondia ao pseudônimo utilizado pelo autor. 73 aos golpistas. Entre os membros da Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (ORM-Polop) e demais organizações sob influência do pensamento de Leon Trotsky e Rosa Luxemburgo, A revolução Brasileira teve especial aceitação. Segundo Jacob Gorender, o livro de Caio Prado “abriu as cabeças”. Naquele momento de intensos debates, era “uma voz no tom que a esquerda queria ouvir” 156 . Mas se suas críticas às teses defendidas pelo PCB eram compartilhadas por novos setores da esquerda, suas propostas de ação e reformas iam de encontro com a convicção de algumas dissidências comunistas, para as quais a revolução brasileira teria um caráter socialista, como sugeriam as análises de Che Guevara para a América Latina, o crescimento do trotskismo no Brasil e o próprio prestígio que as posições e a influência orgânica da Polop passariam a ter.157 Segundo Denise Rollemberg: Algumas organizações, seguindo as análises da Polop, sustentaram que a revolução seria socialista; outras continuaram, como na tradição pecebista, a ver a revolução em duas etapas, de libertação nacional e, em seguida, socialista. A reatualização do marxismo acontecia num contexto de revalorização da revolução no cenário internacional, com o foquismo e o maoismo. O foquismo “adaptava” a revolução para a realidade latino-americana, respaldada numa certa leitura da significativa vitória cubana; o maoismo, legitimado igualmente por outra revolução vitoriosa, a chinesa, “adaptava” a revolução num país com forte tradição rural. 158 Em um cenário como este, no qual o balanço e as perspectivas para a revolução no Brasil e na América latina era pautas prioritárias nos diferentes setores da esquerda, o livro de Caio Prado Júnior foi reconhecido como leitura obrigatória para quem quer que estivesse envolvido nestas discussões e independentemente das posições que assumissem diante dele. Significativo, de qualquer modo, é o depoimento do editor e militante comunista Antônio Roberto Bertelli a Lincon Secco em maio de 2007: Quanto ao livro de Caio Prado, penso que não me causou nenhuma comoção. Sabíamos e acompanhávamos suas posições por meio da Revista Brasiliense. Talvez o que tenha causado algum espanto foi o fato de ter sido lançado depois do golpe. Mas, quanto à sua posição teórica, não era novidade. Lembre-se que Alberto Passos e Rui Facó já tinham escrito sobre isso, como Fragmont Borges e outros. 159 156 GORENDER, Jacob. Do pecado original ao desastre de 1964. In: D’INCAO, Maria Angela (org.). História e ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior, p. 263. 157 Cf. GARCIA, Marco Aurélio. Um ajuste de contas com a tradição. In: D’INCAO, Maria Angela (org.). História e ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior, p. 271-8. 158 ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas revolucionárias e luta armada. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (org.). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 (O Brasil Republicano, v. 4), p. 59. 159 BERTELI, Antônio Roberto. apud SECCO, Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 114. 74 Certamente, o contexto de crise na esquerda contribuiu para que as posições de Caio Prado Jr. – uma vez reunidas, sistematizadas e publicadas em um único volume – tivessem grande repercussão entre os militantes. Mas, afinal, a qual “posição teórica” Bertelli se refere? Caio Prado Júnior parte do princípio de que a elaboração de uma teoria da revolução adequada às especificidades brasileiras dependeria da compreensão das contradições particulares do país. Afinal, não se deveria buscar “a solução dos pendentes problemas econômicos, sociais e políticos” senão “nas mesmas circunstâncias em que tais problemas se propõem”. Portanto, “as respostas a essa problemática e as diretrizes que se hão de adotar e seguir” teriam origem “no mesmo processo histórico” em que se configuram o próprio problema.160 Caio Prado Júnior rejeitava a interpretação daqueles que chamou de “pseudomarxistas”, segundo a qual a humanidade em geral e cada país em particular deveria passar por etapas sucessivas em uma evolução histórica que se processaria invariavelmente até dar afinal no socialismo.161 Portanto, quando trata da propalada existência de “restos feudais” no Brasil dos anos 1960 ou a presença de feudalismo em algum momento de nossa história, sai em busca dos problemas metodológicos que levaram a tais conclusões equivocadas. Para ele, não teriam sido questionadas as formulações do Programa da Internacional Comunista adotado pelo IV Congresso Mundial, realizado em setembro de 1928, em Moscou, para os países “coloniais”, “semicoloniais” e “dependentes”, enquadrados em bloco no mesmo esquema decalcado do modelo europeu. Com isso, ao ignorar as particularidades daqueles países e do Brasil em particular, aquelas formulações defendiam a noção de que nestas regiões o capitalismo teria sido precedido pelo feudalismo, cujas reminiscências supostamente teriam se estendido no tempo. Sua conclusão é de que buscou-se a coincidência entre o “esquema presumido” e os “fatos observados”, forçando a adequação da realidade no “molde prefixado”. As evidências que não pudessem servir às “tentativas de deformação e enquadramento” foram postas de lado e não foram consideradas. As bases de tal interpretação equivocada seriam encontradas na negligência em relação ao método dialético de análise e interpretação históricas, que, segundo o autor, teria como principal contribuição “a explicação dos fatos e das situações históricas pela emergência progressiva destes dentro de um processo 160 Cf. PRADO JÚNIOR. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 14. Doravante RB. 161 Cf. RB, p. 32. 75 em permanente devenir”. Ao se projetar “para o futuro numa perpétua renovação”, não permitindo que o passado pudesse se repetir, a evolução da história, sob tal ponto de vista, não poderia ser fixada em esquemas preestabelecidos. 162 Portanto, o equívoco mais agudo foi o de (...) partir como se fez no caso da interpretação da evolução brasileira , da presunção, admitida a priori, de que os fatos históricos ocorridos na Europa constituíam um modelo universal que necessariamente haveria de se reproduzir em quaisquer outros lugares e, portanto, no Brasil também. Essa maneira de abordar a consideração dos fatos históricos, escusado dizê-lo, é inteiramente descabida. 163 Realizava-se a elaboração de teorias “sob o signo de abstrações, isso é, de conceitos formulados a priori e sem consideração adequada dos fatos” e “procurando-se posteriormente (...) encaixar nesses conceitos a realidade concreta”; os chamados “fatos reais” sofriam um processo mais ou menos forçado de adaptação “aos conceitos aprioristicamente estabelecidos”. A teoria da revolução brasileira, em função da “longa fase de acentuado dogmatismo que imperou em todo pensamento marxista” contribuiu para consolidar “concepções falsas e em inteira discordância, muitas vezes, com os fatos reais” e ainda “impôs uma certa maneira de considerar os fatos econômicos, sociais e políticos”: ao invés de partir da “análise daqueles fatos como realmente eles se apresentam, a fim de os interpretar e determinar a sua dialética”, realiza-se operação oposta, ou seja, “admite-se a priori essa teoria, e procura-se nela encaixar os fatos, por mais que eles se deformem nessa arbitrária e singular manipulação”.164 Assim, “as graves distorções observadas na interpretação da realidade política, econômica e social brasileira contribuíram para os erros que vinham sendo cometidos desde longa data na ação política da esquerda, e que levaram afinal ao desastre de 1º de abril”. Segundo o autor, estes erros (...) se agravaram consideravelmente depois da renuncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, degenerando então nesse elementar e grosseiro oportunismo a que fizemos referência, e que caracterizou a situação deposta em abril de 1964. Não é de admirar que as esquerdas brasileiras, privadas de uma teoria satisfatória e capaz de as conduzir com segurança a seus objetivos, se tivessem deixado levar pelas seduções de demagogos instalados no poder.165 162 Cf. RB, p. 34-7. 163 RB, p. 33. 164 RB, p. 29-30. 165 RB, p. 23. 76 Caio Prado Júnior considerava que o conceito de “revolução” deveria ser compreendido como um processo histórico marcado por “reformas e modificações econômicas, sociais e políticas sucessivas, que, concentradas em período histórico relativamente curto, vão dar em transformações estruturais da sociedade”. A resultante de tal processo seria, consequentemente, mudanças “das relações econômicas e do equilíbrio recíproco das diferentes classes e categorias sociais”. Assim, analisava a conjuntura vivida pelo país como potencialmente revolucionária, pois se encontraria em face ou na iminência de um momento “em que se impõem de pronto reformas e transformações capazes de reestruturarem a vida do país de maneira consentânea com suas necessidades mais gerais e profundas”. Portanto, o Brasil finalmente estaria em condições de solucionar “as aspirações da grande massa de sua população que, no estado atual, não são devidamente atendidas”. 166 Contudo, se por um lado identificava a possibilidade de mudanças estruturais, por outro lado não fazia uma avaliação otimista da realidade: O Brasil se encontra num desses instantes decisivos da evolução das sociedades humanas em que se faz patente, e sobretudo sensível e suficientemente consciente a todos, o desajustamento de suas instituições básicas. Donde as tensões que se observam, tão vivamente manifestadas em descontentamento e insatisfações generalizados e profundos; em atritos e conflitos, tanto efetivos e muitos outros potenciais, que dilaceram a vida brasileira e sobre ela pesam em permanência e sem perspectivas apreciáveis de solução efetiva e permanente. 167 De acordo com Caio Prado Júnior, a situação do país era “efeito e causa ao mesmo tempo” da inconsistência política e da ineficiência da administração pública em seus diversos setores e escalões, de desequilíbrios sociais e da crise econômica e financeira que vinha se arrastando de longa data e também da insuficiência e precariedade das bases estruturais do país. “É isso que caracteriza o Brasil de nossos dias”. 168 Sua proposta programática e estratégica para uma adequada orientação da revolução brasileira depositava um papel decisivo na melhoria das condições de trabalho e remuneração dos trabalhadores rurais, a partir do impulso e organização do sindicalismo agrário e de sua aliança com o proletariado urbano169. Por este motivo, criticava o fato do PCB negligenciar o Estatuto do Trabalhador Rural em seu programa170. 166 RB, p. 11-12. 167 RB, p. 12. 168 RB, 12-3. 169 Cf. RB, p. 173-5. 170 Cf. RB, p. 54. Portanto, se carregava consigo o 77 pessimismo da razão ao analisar a situação do país, isso parecia não ser motivo para deixar de lado o otimismo da vontade, no que se refere às perspectivas para a transformação profunda desta mesma realidade a partir do fortalecimento das lutas no campo: Essa luta, embora ainda incipiente e em geral esporádica e sem continuidade vem se intensificando. A sua potencialidade se revela muito bem, entre outros, nos grandes movimentos de massa verificados nas usinas e engenhos do Nordeste, particularmente em Pernambuco. Além disso, embora ainda pese sobre a generalidade dos trabalhadores rurais brasileiros uma intensa ação repressiva policial que depois do golpe de 1º de abril de 1964 ainda se ampliou muito, a mobilização daqueles trabalhadores vem ganhando força e impulso, desde a organização sindical até o desencadeamento de greves. 171 Sua avaliação parecia não admitir um eventual cenário no qual a ditadura poderia recrudescer a repressão, como de fato veio a acontecer a partir de 1968. Segundo Caio Prado, não havia dúvidas de que “superada a situação política atual derivada do golpe reacionário e repressivo de 1º de abril, o movimento ascensional das massas rurais se reatará em ritmo acelerado”.172 A organização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em 1984 talvez tenha confirmado esta previsão, mas apenas em parte: a mobilização das massas rurais se realizou, mas em desacordo com a proposta política do autor, ou seja, em torno da reivindicação pela terra e não por melhores condições de trabalho e salário. 173 De qualquer modo, a preocupação maior de Caio Prado Júnior era com as condições de vida e os interesses imediatos e estratégicos do povo brasileiro, com especial atenção para a massa de trabalhadores rurais. Neste sentido, no discurso proferido ao receber o troféu Juca Pato demonstrou preocupação com aquela conjuntura, na qual pareciam coincidir, por um lado, “um máximo de necessidades e aspirações do povo brasileiro, a exigirem amplos horizontes e perspectivas”, e por outro lado, “o projeto, bem marcado e abertamente proclamado pelas atuais forças 171 RB, p. 138. 172 RB, p. 138. 173 Em relação à luta pela terra, afirma o autor: “Os movimentos e agitações que tem por base a reivindicação da terra são de pequena expressão, e assim mesmo se relacionam em regra com situações muito particulares e específicas (...) a reivindicação e a luta pela terra não tem no Brasil a significação revolucionária que se lhe pretende atribuir com base na simples teoria. Não é suficiente o simples fato do elevado índice de concentração da propriedade fundiária rural, como se verifica no Brasil, e de a grande maioria dos trabalhadores rurais não disporem dessa propriedade, para daí se concluir, sem mais (como tão frequentemente se faz), que a questão da terra se propõe de forma generalizada, e muito menos ainda que se propõe em termos revolucionários”. RB, p. 138-9. A discussão sobre a questão agrária brasileira em Caio Prado Júnior nos afastaria demasiadamente de nossos objetivos. Para a análise da questão, ver REGO, Rubem Murilo Leão. Sentimento do Brasil: Caio Prado Júnior – continuidades e mudanças no desenvolvimento da sociedade brasileira. Campinas: Editora da Unicamp, 2000 (principalmente o capítulo “A pertinácia do atraso: a questão agrária”, p. 175-204); SECCO, Lincoln. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução (principalmente o capítulo “A questão agrária”, p. 203-26); D’INCAO, Maria Angela (org.) História e ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior (principalmente os capítulos da parte “A questão agrária”, p. 141-205); SANTOS, Raimundo. Caio Prado Júnior: valorização do trabalho e sindicalismo rural. In: idem. Agraristas políticos brasileiros. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2007, p. 15-51. 78 dominantes do país, de limitar aquelas perspectivas e encerrá-las na tutela de um estreito horizonte”.174 Por este motivo questionou contundentemente a “formula político-filosófica que orienta a presente situação brasileira”, que faz o país caminhar para em direção ao referido “estreito horizonte”: Pois não põe ela a sua grande e principal ênfase na segurança nacional, erigidas em princípio diretor da política e administração pública? O que pode significar esta “segurança nacional” elevada do simples nível de procedimentos policiais, para o plano da filosofia política, senão a consagração do imobilismo econômico, social e político?175 Para ele, não seria permissível “reduzir as diretrizes da vida brasileira à luta contra a corrupção, a subversão e a instabilidade da moeda; e pautá-la por reformas ditadas por tecnocratas, ou que se julgam tais, encerrados em seus gabinetes ministeriais e Escolas privilegiadas”. Prosseguiu o discurso criticando isto que chamou de “tecnocracia economicista”, que tentava “resolver os problemas brasileiros por modelos econômicos e outras fórmulas misteriosas somente acessíveis, no fundo e na forma, aos iniciados”, e ademais não considerava que “estão em jogo, no caso, fatos sociais, humanos”. Inserida, portanto, “neste terreno que é o do comportamento de seres racionais, e não de objetos físicos”, a solução dos problemas prementes da realidade brasileira “implica a determinação de indivíduos livres, e não se consegue portanto sem o consenso destes mesmos indivíduos”.176 Mas, como hoje sabemos, não foi na busca de consenso que o regime alicerçou a principal base da indispensável estabilidade política que garantiria um ambiente propício à implementação seu projeto econômico de desenvolvimento, que ficaria conhecido como o “milagre brasileiro”: o destaque seria dado à coerção, como o próprio Caio Prado Júnior teve a oportunidade de verificar pessoalmente em mais de uma ocasião. 174 Discurso de Caio Prado Júnior na premiação do Troféu Juca Pato de Intelectual do ano de 1966, em 28 de março de 1967. Disponível em: http://bndigital.bn.br/expo/caioprado/index.htm. Acessado em fevereiro de 2013. 175 Ibidem. 176 Ibidem. 79 10. Controle ideológico e o concurso na USP Segundo Nilson Borges, a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) criada pela Escola Superior de Guerra (ESG) serviu como base ideológica do regime e contribuiu para a formação do aparato de informações da nova ordem institucional. Foi o mecanismo utilizado pelas Forças Armadas para legitimar sua ação, definindo os chamados inimigos internos que deveriam ser contidos e traçando fronteiras ideológicas que separavam uma parte do povo de outra no interior da nação – uma noção geopolítica que encontra sua origem na situação de guerra fria. As lutas políticas que se processavam no interior do Estado-nação eram, assim, “decompostas em função de elementos reais ou potenciais de subversão que eles, militares, poderiam conter e das medidas contra-revolucionárias que aí corresponderiam”.177 Com isso, a política passou a se submeter à geopolítica e à estratégia militar: Toda a política nacional, portanto, é reorientada em função da segurança, sendo que as esferas militar e política são indissoluvelmente ligadas, de maneira que a política deixa de ser uma arte civil para se transformar em arte militar. A guerra interna ou a eliminação do inimigo interno passa a ser uma estratégia imposta pelos imperativos da segurança nacional. A estreita ligação entre a Doutrina de Segurança Nacional e o quadro global das novas estratégias de guerra interna e da luta anti-subversiva explica a concepção que esta doutrina faz da luta política como forma de guerra interna. 178 Entre os diversos papéis exercidos pelo aparato militar, o aparelho repressivo organizado e implementado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) foi o que mais se sobressaiu na tarefa de garantir os princípios fundamentais da Doutrina. O SNI foi criado com o apoio de consultoria norteamericana três meses após o golpe militar e inicialmente chefiado por Golbery do Couto e Silva. Nos primeiros anos de existência, o órgão buscava estruturar-se e atuava como fornecedor de informações para o presidente Castelo Branco. Depois, com a vitória da chamada linha dura das Forças Armadas consolidada na posse de Costa e Silva, o Serviço, como era chamado, teve suas atribuições ampliadas pelo Conselho de Segurança Nacional, passou a ser dirigido pelo ministro-chefe da Casa Militar, o general Jayme Portella 177 BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA & DELGADO, O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX, p. 28. 178 Ibidem, p. 28. 80 de Mello e transformou-se no “monstro”, epíteto criado posteriormente por Golbery, seu criador. 179 Foi amparada nestes dispositivos que a ditadura militar pôde exercer o controle ideológico nas universidades brasileiras em geral, e na USP em particular. Na edição de 15 de maio de 1964 do jornal O Estado de São Paulo, publicou-se carta de Paulo Duarte endereçada ao editor Júlio de Mesquita Filho relatando o que se passava na USP a partir do golpe. Nela é descrita o modo como se deu a prisão de Mário Schemberg; a invasão da Faculdade de Filosofia, na rua Maria Antônia; a invasão de sala de aula da Faculdade de Filosofia com professor estrangeiro lecionando; a prisão motivada por aposta; a invasão do campus de Ribeirão Preto; as prisões e perseguições em São José do Rio Preto; bem como o abaixo-assinado à Câmara dos Deputados solicitando a exclusão das Ciências Sociais do currículo.180 Não se tratava, contudo, de ações que contrariavam a administração central da instituição. Antes pelo contrário, a repressão policial contou não com sua conivência, mas com sua colaboração. O reitor da universidade estabeleceu um mecanismo interno de “caça às bruxas” reunindo um grupo ligado diretamente aos órgãos de segurança que visava promover expurgos com base em critérios pessoais e ideológicos, um artifício produzido sob medida para o objetivo de permitir aos setores conservadores o monopólio de poder na universidade.181 A existência de uma comissão especial secreta instituída e nomeada pelo reitor Gama e Silva foi denunciada pela imprensa em artigo na Folha de São Paulo do dia 26 de julho de 1964: Há indícios, infelizmente fortes, de que pelo menos em certos núcleos da Universidade de São Paulo a política do 'dedo-duro' se esteja implantando, visando de maneira particular a alguns elementos mais brilhantes daquela corporação. Há indícios de que, alegadamente em nome de ideais identificados com os da revolução, se procura atingir a própria carreira de elementos de valor que naturalmente buscam a cátedra. Na decisão de concursos já estaria pesando a suposta ideologia dos candidatos. 182 179 Cf. Ibidem, p. 23. FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda; os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA & DELGADO, O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX, p. 175-6. 180 Cf. ASSOCIAÇÃO dos docentes da USP, O controle ideológico na USP (1964-1978). São Paulo, Adusp, 2004, p. 13-6. Doravante ADUSP. 181 Cf. Ibidem, p. 13-6. 182 Ibidem, p. 17. 81 Tal postura de restrições ideológicas em relação aos concursos para a admissão de novos docentes, porém, não era uma completa novidade, pois já havia atingido o próprio Caio Prado Júnior ainda em 1963, quando foi convidado a dar aulas na Faculdade Estadual de Araraquara – na época, um dos institutos isolados que posteriormente passariam a fazer parte da Universidade Estadual Paulista, a Unesp. O governo do estado vetou sua contratação por razões políticas, mesmo depois de seu nome ter sido aprovado pela Congregação da instituição. 183 No dia 9 de outubro de 1964, o jornal Correio da Manhã publicou o fac-simile das duas últimas páginas do relatório final da referida comissão, contendo, inclusive, a assintaura de seus membros. Ao final do relatório a comissão concluía “serem realmente impressionantes as infiltrações de ideias marxistas nos vários setores universitários, cumprindo sejam afastados daí os seus doutrinadores e os agentes dos processos subversivos”. Ao final, sugeria-se a suspensão dos direitos políticos de 52 membros da comunidade universitária: 44 professores e 8 alunos e funcionários184. A elaboração de tal relatório ocorreu no contexto da realização de IPMs no segundo semestre daquele ano. Na Faculdade de Filosofia um IPM foi instalado sob um “clima de grande hostilidade por parte de alunos e professores”: Foram ouvidos Mário Schenberg, Cruz Costa e Florestan Fernandes. Fernando Henrique Cardoso, também acusado, já havia então aceito o convite para lecionar no exterior e deixado o país. Durante o inquérito, foi preso o professor Florestan, em virtude da carta protesto [de 9 de setembro de 1964] que entregou ao coronel responsável e que constituía apenas uma defesa da dignidade da função de professor. A onda de protestos provocada por esta prisão parece ter contribuído para o encerramento do IPM185. Em fins de 1966 os acusados foram absolvidos e o clima na universidade parecia melhorar. A Universidade de São Paulo como um todo passava por momentos conturbados, mas na opinião de Fernando Novais o Departamento de História tinha uma peculiaridade: Ao contrário de outros departamentos, na História havia colegas denunciando colegas, pessoas que torciam pelo golpe. Creio que em outros departamentos não havia esse tipo de atitude. De certa forma, a História era mais conservadora. Não é que seja mais conservadora como domínio do conhecimento, mas a História é diferente desses outros campos. 186 183 Cf. SECCO, Lincoln. Caio Prado Jr.: o sentido da revolução, p. 107. 184 Cf. ADUSP, p. 18 185 ADUSP, p. 29. 186 NOVAIS, Fernando. apud MORAES, José Geraldo Vinei; REGO, José Marcio (dir.). Conversas com historiadores brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 122. 82 Não nos parece que a patrulha ideológica, o apoio aos militares e as denúncias a colegas de trabalho se restringia ao departamento de História, mas é possível que naquele setor o conservadorismo fosse mais pronunciado. Avaliação semelhante à de Novais pode ter sido feita por Sérgio Buarque de Holanda e, somada ao contexto geral da USP, contribuído para que começasse a pensar em se aposentar ainda em 1965. Maria Odila da Silva Dias relata que logo depois de defender seu mestrado naquele ano sob orientação de Sérgio Buarque, ele teria começado a falar em se aposentar na USP. Entre 1965 e 1968, o historiador esteve envolvido com um comitê de estudos das culturas latino-americanas da UNESCO, com a realização de conferências em universidades no exterior, como as de Columbia, em Harvard e na Califórnia, e com a atividade de docência nas universidades de Indiana e do Estado de Nova Iorque, em Stony Brook.187 Em certo sentido, portanto, a intenção de se aposentar não significava, necessariamente, interromper sua atividade intelectual. Mas uma vez tomada a decisão, teria afirmado que gostaria que Caio Prado Júnior o sucedesse. Eram muito amigos, respeitavam muito um ao outro. (...) Eram duas personalidades muito diferentes, tinham enorme prazer de conversar e um grande respeito um pelo outro. Eram amigos, se admiravam, cada um tinha o seu espaço, não se percebia entre eles nenhuma sombra188. Segundo a historiadora, Sérgio considerava Caio Prado o grande historiador que o Brasil havia produzido no século XX. Ademais, era um dos poucos intelectuais que, além de envergadura suficiente para substituir um historiador do porte de Sérgio Buarque, tinha o título de livre-docente, pré-requisito que lhe autorizava a concorrer à cátedra na USP. Obteveo em 1954 com a tese Diretrizes para uma economia política brasileira, com a qual concorreu para docente da cadeira de Economia Política da Faculdade de Direito, a mesma na qual tornou-se bacharel em 1928. De acordo com Iumatti, talvez o desejo do professor da cátedra de História do Brasil da FFCL, com o convite para que ocupasse seu lugar na cadeira, fosse motivá-lo a retomar os estudos históricos. Afinal, as últimas pesquisas historiográficas de Caio Prado Júnior remontam aos anos 1940, ou seja, haviam se encerrado vinte anos antes, aproximadamente. 189 Foi assim que, estimulado por amigos, em especial Sérgio Buarque de Holanda, Prado Jr. aceitou o desafio, inscreveu-se no concurso e pôs-se a escrever a tese com a qual 187 Cf. SILVA DIAS, Maria Odila Leite da. Sergio Buarque de Holanda na USP. Estudos Avançados, v. 8, n. 22, set-dez, 1994, p. 269-71. 188 SILVA DIAS, Maria Odila Leite da. apud MORAES & REGO, Conversas com historiadores brasileiros, p. 190-1. 189 Cf. IUMATTI, Paulo Teixeira. Caio Prado Júnior: uma trajetória intelectual, p. 177. 83 concorreria ao cargo de professor titular do Departamento de História, intitulada História e Desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e prática do desenvolvimento brasileiro. Ao que tudo indica, o concurso foi aberto antes que Sérgio Buarque consumasse sua aposentadoria, que se efetivou somente em abril de 1969, revoltado com afastamento compulsório dos professores da USP. Novas pesquisas nos arquivos da universidade poderão elucidar esta questão com mais precisão. No final de 1971, poucos meses depois de ser libertado de seu quinto aprisionamento, Caio Prado Jr. redige as primeiras versões da apresentação do livro que visava levar ao público a tese. Sua versão definitiva data de março de 1972 e tem início com um breve relato sobre o surgimento e o destino dado ao seu texto: O presente livro reproduz a tese com que pretendi um momento concorrer para a livre-docência de História do Brasil na Universidade de São Paulo. Isto foi em 1968. Os notórios acontecimentos da época – em que se destaca, no meu caso pessoal, o decreto que me “aposentou” no título de livre-docente da Faculdade de Direito da U.S.P. – frustraram minha pretensão, e a tese foi arquivada. 190 Cabe registrar que a escola de história da USP naquele momento vinha sofrendo uma influência cada vez mais pronunciada do marxismo, contando com três fatores para este fenômeno: a recepção dos trabalhos de Albert Soboul e Pierre Vilar, que traziam novas propostas no interior da escola dos Annales e vieram ao encontro das preocupações presentes na sociedade brasileira, como a questão do desenvolvimento, da inserção no capitalismo e da mudança social; as reflexões proporcionadas pela leitura das obras de Maurice Dobb, Paul Sweezy, Paul Baran, Cristopher Hill e Heckerscher, centradas, principalmente, na transição do feudalismo para o capitalismo, essencial para a compreensão da natureza da colonização, da sociedade por ela gerada e das formas de inserção do Brasil no capitalismo; e a reverberação destas influências, cujas questões levantadas ganhavam fôlego na escola de sociologia da USP com as reflexões de Octávio Ianni, Florestan Fernandes e outros, que se articulavam com as pesquisas de historiadores como Emília Viotti da Costa e Fernando Novais, que vinham participando de grupos de estudos sobre o marxismo. Neste contexto, as análises de Caio Prado Júnior constituíram um importante referencial para a historiografia da escola uspiana. 191 190 PRADO JÚNIOR. História e desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e a prática do desenvolvimento brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1978 (2ª Ed.), p. 7. A versão preliminar e a definitiva da apresentação do livro encontram-se no Fundo Caio Prado Júnior do Arquivo do IEB. 191 Cf. CAPELATO, Maria Helena Rolim; GLEZER, Raquel; FERLINI, Vera Lucia Amaral. Escola uspiana de história. Estudos Avançados, v. 8, n. 22, set-dez, 1994, p. 353 e 357. Registre-se que as autoras não estabelecem, em seu estudo, uma divisão de tais influências em três fatores, sendo esta formulação de nossa responsabilidade. 84 Ainda assim, porém, o autor não se tornou docente da Universidade de São Paulo. Em seu prefácio, não usa aspas por acaso ao falar do decreto que o “aposentou”. No dia 28 de abril de 1969, Gama e Silva, como ministro da Justiça, assinava com Costa e Silva e Tarso Dutra, ministro da Educação, um decreto que aposentava compulsoriamente servidores de órgão da Administração Pública Federal, mas incluíam na lista três professores de uma universidade estadual. Hélio Lourenço de Oliveira, Vice-Reitor em exercício substituindo Gama e Silva, protestou. Em resposta, no dia seguinte (29 de abril) novo decreto foi assinado, desta vez dirigido especificamente contra a USP, no qual se aposentava, ou demitia quando fosse o caso, o Reitor e mais 23 professores. Caio Prado Júnior constava na lista, mas se tratava novamente de uma grave incorreção no próprio texto do Decreto, pois entre os 24 professores da USP, seis não eram da instituição. Caio Prado Júnior não tinha cargo na universidade, possuía apenas o título de livre-docente, que, como dissemos, lhe dava o direito de poder vir a disputar um concurso de cátedra, tornando-o uma ameaça latente e constante aos olhos dos professores conservadores da USP. Em função do equívoco, os atos foram republicados “por terem saído com incorreções". Neste sentido, O Diário Oficial da União de 20 de maio de 1969 republicou o texto do decreto de 29 de abril com um adendo: "determinar a cessação de quaisquer outros vínculos com a mesma Administração, ainda que não tenham caráter empregatício". Entre os nomes listados estão Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Paul Singer, Mário Schenberg, Octávio Ianni, Emília Viotti da Costa, Paula Bieguelman, Maria Yedda Leite Linhares, entre outros192. Maria Odila lembra-se que no dia seguinte à promulgação do decreto193 ela foi com Sérgio Buarque de Holanda e Maria Amélia a uma assembleia no prédio da antiga reitoria da universidade. Lembro também de Fernando Henrique Cardoso escrevendo o nome dos cassados na lousa – que a 'Voz do Brasil' noticiava. Dentre eles, Octávio Ianni, Florestan Fernandes, Emilia Viotti da Costa, Paula Bieguelman, Paul Singer e do próprio Fernando Henrique Cardoso, cuja mão tremia ao segurar o giz. Na saída, a polícia cercou o campus e nós tivemos que passar a noite no Crusp, e só nos soltaram por volta das seis horas da manhã. No dia seguinte, professor Sérgio se aposentou num De qualquer modo, suas análises estão de acordo com as opiniões de Mantega, Ricupero e Novais sobre o marxismo uspiano e o grupo de estudos marxistas que se reuniu a partir do final dos anos 1950 em São Paulo, que abordamos no capítulo “Caio Prado Jr. e o marxismo no pensamento econômico brasileiro” deste trabalho. 192 193 Cf. ADUSP, p. 45-59 Apesar de afirmar em sua entrevista que o ano era 1968, é provável que se referisse à primeira versão do decreto, de 28 de abril de 1969. 85 gesto de solidariedade para com os professores compulsoriamente aposentados da Universidade. O clima era pesadíssimo. 194 A essa altura, depois de decretado o AI-5 e cancelado o concurso, Caio Prado Júnior, a contragosto, já considerava o exílio uma possibilidade real diante do fechamento do cerco pela ditadura militar. A viagem a Santiago do Chile, uma verdadeira operação de fuga, foi organizada por Danda Prado, sua filha, e contou com a colaboração de seu neto, Nelson, e Roberto, seu filho. Pouco tempo depois ele resolveu voltar ao Brasil e, em março de 1970, se apresentou à Justiça Militar. Ciente de que seria condenado, teria levado ao tribunal uma maleta de roupa. O Marechal Stenio Caio de Albuquerque e Lima afirmou a Danda Prado que a prisão de seu pai tinha por objetivo dar um exemplo aos intelectuais e assustá-los. 195 A imprensa noticiava: “Caio Prado Jr. e Antonio Padua Prado Júnior, responsáveis pela Editora Brasiliense, serão julgados hoje na 2ª Auditoria de Guerra por crime contra a Lei de Segurança Nacional”.196 O Conselho Permanente de Justiça o condenou a quatro anos e seis meses de prisão por considerar que mesmo não se podendo afirmar que “o acusado e outros intelectuais de grande prestígio tenham sido provocadores diretos dessa criminalidade” – ou seja, a luta armada – eles a admitiam “desde que os elementos conjunturais a aconselhem”.197 194 SILVA DIAS, Maria Odila Leite da. Apud MORAES & REGO, Conversas com historiadores brasileiros, p. 188. 195 Cf. WIDER, Maria Célia. Caio Prado Júnior: um intelectual irresistível, p. 18-19 e 100-2. 196 Julgamento na 2ª auditoria, Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 3, 25 mar. 1970. Disponível em: http://bndigital.bn.br/expo/caioprado/index.htm. Acessado em fevereiro de 2013. Na verdade, como indica a exposição na exposição digital organizada pela Biblioteca Nacional, Antônio nunca trabalhou na Editora Brasiliense, e sim na revista Revisão, onde foi publicada a entrevista que rendeu a Caio Prado Júnior a acusação. 197 2ª Auditoria: condenado Caio Prado Júnior, Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 4, 25 mar. 1970. Disponível em: http://bndigital.bn.br/expo/caioprado/index.htm. Acessado em fevereiro de 2013. 86 11. Crítica aos economistas ortodoxos Ao apresentar sua tese para a obtenção da cátedra de História do Brasil na USP, Caio Prado Júnior tinha diversos objetivos. O principal era “pesquisar na evolução social histórica brasileira e na formação econômica e social do país algumas das premissas essenciais da problemática atual”, centralizada “em torno do ‘desenvolvimento’.” 198 Além disso, visava também: demonstrar que é na história do país “que se encontrará a interpretação do atual processo em curso do desenvolvimento brasileiro”; “destacar, no conjunto dos fatos que constituem a nossa história, os traços fundamentais em que se articula aquele conjunto, e onde se marca a direção geral e a dinâmica do processo histórico brasileiro”; proporcionar “a visão precisa e apreciação segura do desenrolar daquele processo e dos fatores que em sua fase ora em curso atuam no sentido do nosso desenvolvimento, bem como em sentido contrário”; “mostrar o grande papel da historiografia e daqueles que a cultivam, na tarefa de encaminhar a solução dos problemas brasileiros da atualidade”; e orientar convenientemente o desenvolvimento, mas como este último objetivo seria matéria da política econômica e da política, considerou-as “além dos limites” daquele trabalho. 199 Pouco antes de escrever a tese e na sequência das críticas que desferiu contra “pseudomarxistas” que hegemonizaram a esquerda brasileira antes de 1964, Prado Jr. insistiu em suas considerações sobre método. No discurso que proferiu na formatura da turma de 1967 do Curso de Sociologia e Política do Instituto de Ciências Políticas e Sociais da Universidade de Pernambuco, confrontou a prática recorrente de se buscar modelos exógenos para pensar a realidade brasileira. Nós brasileiros somos por tradição já muito antiga, e diria mesmo original, eternos buscadores de modelos estranhos, sempre desconfiados de nossas forças e temerosos de nos afastarmos do já consagrado em outras plagas por autoridades incontestes que submissamente respeitamos. (...) Penso que o temor e fuga de nossas realidade verdadeira, esta nossa alienação do que constitui a experiência vivida por nós como coletividade com seus caracteres específicos, em proveito de padrões estranhos que nos são propostos com o selo de autoridades consagradas, penso que isso decorre em última instância de nossa formação filosófica. Somos ainda, no âmago de nossa racionalidade, escolásticos inconscientes. 200 198 PRADO JÚNIOR. História e desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e prática do desenvolvimento brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 1. Doravante HD. 199 200 HD, p. 31-2. Discurso de paraninfo da turma de 1967 do Curso de Sociologia e Política, de novembro de 1967 (Código: CPJ-CA040, AIEB). 87 Logo na sequência, esboçou algumas explicações para a predominância deste tipo de pensamento e apontou uma alternativa que confere ao método o elemento essencial da ciência e do conhecimento: Herdamos isso de nossa mãe-pátria portuguesa, esse país que ao contrário do restante da Europa, não teve Renascimento, e prolongou pelos tempos modernos afora o respeito aristotélico dos textos consagrados. Ao livro da vida, temos a tendência de preferirmos sempre o livro da letra de forma. E esquecemos que “ciência” é essencialmente método; que “conhecimento” não é mais que instrumental necessário para a interpretação de nossa experiência própria e sua utilização com vistas à ação prática. E é isso somente, e não a exibição de rígidas Verdades eruditas a serem decoradas e indefinidamente repetidas, ou receituário de fórmulas a serem religiosamente e respeitosamente aplicadas e cumpridas. 201 No que é fundamental, como veremos, à exceção das considerações sobre as origens do problema, é semelhante o caminho traçado pelo autor quando critica a orientação metodológica dos comunistas do PCB e dos chamados economistas ortodoxos. A negligência quanto àquilo que chamou de “nossa experiência própria” seria, para Caio Prado Júnior, o principal equívoco de ambos os setores, uma vez que relegaram a história a um plano secundário e marginal, “como simples ilustração, ou antes, como elementos a serem ‘encaixados’ dentro do modelo proposto” 202 . Neste sentido, “a teoria do desenvolvimento se faz em capítulo da economia, e a história se relega no assunto a um subsidiário e apagado plano”. Com isso, a análise econômica, “como decorrência de sua própria natureza e estilo de trabalho, e privada de uma suficiente perspectiva histórica, irá ocupar-se do assunto com métodos específicos e exclusivos, e por isso altamente insuficientes para a abordagem e consideração dele em seu conjunto e totalidade” 203. É com base nestes fundamentos que lança sua critica ao economista norte-americano W. W. Rostow, para quem o ponto de partida em direção às suas conhecidas “etapas do desenvolvimento econômico” era “aquilo que se denominaria a ‘sociedade tradicional’, que compreenderia genericamente todas as formas econômico-sociais que precederam o capitalismo industrial”.204 A negligência da história consistia no tratamento universalista dado a diferentes sociedades pré-capitalistas: Não se tratará de caracterizar essa “sociedade tradicional”, determinar suas relações de produção e trabalho; defini-la como momento ou fase de um processo 201 Ibidem. 202 HD, p. 21 203 HD, p. 20. 204 HD, p. 27 88 evolutivo, e sim unicamente marcar com ela um ponto de partida cômodo onde fosse possível situar o modelo de crescimento econômico de antemão preparado. Em suma, a “sociedade tradicional” não se caracteriza por si e em si; e sim apenas em contraste com o que vem depois dela, com o desenvolvimento que ela antecede (...). 205 Desconsiderando-se a “natureza própria daquela sociedade” não se revelam “as circunstâncias e fatores nela imanentes e que constituem as premissas do desenvolvimento”, tornando-o “inexplicável a não ser pela intervenção de fatores estranhos e exteriores ao processo analisado que ficam por isso sem explicação”. Com isso, “nem Rostow, nem os demais que o acompanham na sua maneira de interpretar o desenvolvimento explicam ou procuram explicar, no contexto histórico que estão considerando” as razões da ocorrência dos fatores que consideram “estimuladores do processo cumulativo das inversões e do consequente desenvolvimento” – como a ciência moderna e o progresso tecnológico, as ideias e esperanças de progresso econômico ou a intervenção de uma nova classe de indivíduos empreendedores e dinâmicos, os “novos tipos de homens de empresa”. 206 Caio Prado Júnior, aqui, parece se aproximar, se não mesmo incorporar, uma formulação apresentada por Pierre Vilar alguns anos antes, que questiona a validade da proposta de Rostow: Mas, na imagem que nos é proposta da “sociedade tradicional”, existirá verdadeiramente um “modelo”, ou um simples cliché negativo? O desenvolvimento define-se com base na produção forte, na indústria dominante, na atitude científica. A sociedade tradicional, partindo da debilidade da produção, da subordinação da indústria, da atitude a-científica. É-nos dito o que ela não é, mas não o que ela é. E não sabemos, portanto, o que pode nascer dela. 207 Segundo Caio Prado Júnior, a incapacidade dos “teóricos ortodoxos do desenvolvimento” em interpretar precisamente as condições históricas que permitiam o desprendimento da “sociedade tradicional” a partir do que Rostow denominava “arranco” – gerador de um processo auto-impulsionado de acumulação capitalista e inversão progressiva que condicionam o desenvolvimento econômico – assentava suas bases no fato de que tal teoria ortodoxa do desenvolvimento não se propunha a questão do surgimento dos fatores que 205 HD, p. 27-8 206 HD, p. 28-30 207 VILAR, Pierre. Desenvolvimento histórico e progresso social. Etapas e critérios. In: Idem. Desenvolvimento econômico e análise histórica. Lisboa: Editorial Presença, 1982, p. 143. O texto de Vilar foi publicado originalmente no periódico La Pensée, em 1961. 89 propiciavam o desenvolvimento “com as condições próprias e específicas da situação e com a conjuntura do momento em que aquele surgimento se verifica”. 208 Ora é precisamente isso o que mais importa. A saber, o processo histórico global e de conjunto que liga o passado ao presente; que se forja naquele passado e que abre perspectivas para o futuro. Essa continuidade se encontra, e somente aí nos é dado descobri-la, nos fatos específicos e sua interligação que vai dar naquele processo histórico e o configura. Processo que é sobretudo histórico, e não se ajusta a modelos construídos a priori na base de ocorrências que caracterizaram (aliás parcialmente apenas) a institucionalização das relações capitalistas de produção nos países que foram seus pioneiros. 209 A elaboração de uma teoria do desenvolvimento econômico adequada às especificidades de uma sociedade subdesenvolvida dependeria, portanto, da análise dos processos específicos e contraditórios de desenvolvimento histórico pelos quais ela passou e que ela acumulou ao longo do tempo. Este seria “o ponto de partida necessário da investigação da questão do desenvolvimento”. Assim, no caso brasileiro tal perspectiva se reforça, uma vez que em suas instituições não estariam presentes nem as “formas amadurecidas do capitalismo” nem, em suas origens, “as formas clássicas” a partir das quais tal capitalismo evoluiu. Isso seria importante assinalar, segundo Caio Prado, pois são justamente essas formas que condicionaram “os padrões segundo os quais se conduz a análise econômica que se pretende agora substituir à análise historiográfica própria e específica do país subdesenvolvido” em questão. 210 Em nenhum dos casos, contudo, a prioridade dada à análise historiográfica ou à análise da realidade conjuntural do tempo presente significa a negação da teoria ou dos modelos teóricos. Para Caio Prado Júnior, seria “perfeitamente lícito” que os modelos teóricos de análise econômica constituíssem “possíveis hipóteses de trabalho a serem testadas no confronto com a observação dos fatos, e convenientemente modificadas para nele se ajustarem”, uma vez que “são tão somente instrumentos teóricos já em definitivo preparados para o fim de orientarem, e isto apenas, a análise econômica”. O problema reside quando ocorre justamente o inverso; ou seja, quando, “no caso de o confronto revelar discrepância entre a realidade histórica e o modelo”, são procurados os “eventuais obstáculos” que teriam 208 HD, p. 30 209 HD, p. 30-1 210 HD, p. 16 90 afetado o funcionamento “logicamente previsto” do modelo e seu sistema para serem rejeitados, ao invés de incriminar o próprio esquema. 211 Mais uma vez, é perceptível a semelhança entre Caio Prado e Vilar, uma vez que, para o historiador francês, se não é tarefa dos historiadores “intervir na elaboração de fórmulas e dos cálculos planificadores que presidem ao desenvolvimento harmonioso de um mundo cada vez mai amplo” eles teriam papel fundamental na consideração das “condições preliminares à aplicação, à realização daquelas fórmulas e daqueles cálculos, pois essas condições entram no campo da análise histórica e não da economia pura.” 212 Desta maneira, compreende-se o confronto empreendido pelo autor brasileiro às expressões matemáticas, sejam elas algébricas ou geométrico-figurativas, pois elas representam o “nível da alta abstração” dos “modelos empregados na análise econômica ortodoxa”, cujo “assunto específico” é o funcionamento do sistema capitalista em sua “mais pura e essencial expressão”. E como o “passado histórico” dos países não identificados com o que se passa “nas sociedades de alto amadurecimento capitalista” legou ao presente “uma estrutura, um comportamento econômico e mesmo relações de produção” muito distintos, seria simplesmente inviável assimilar “as relações econômicas incluídas nos modelos teóricos consagrados” a essas diferentes trajetórias históricas. 213 Não por acaso, portanto, Caio Prado Júnior lançou severa crítica aos economistas que trabalhavam para o regime. Apesar de não citá-los, provavelmente fazia menção a figuras como Octávio Gouvêa de Bulhões e Roberto Campos, respectivamente ministro da Fazenda e do Planejamento de Castelo Branco, bem como Delfim Netto e Hélio Beltrão, que respectivamente substituíram aqueles no ministério montado por Costa e Silva, que havia tomado posse em 15 de março de 1967,214 poucos dias antes da solenidade de entrega do troféu Juca Pato: Quanto ao setor mais “humanista” dessa política tecnocrática, ela se exprime muito bem na afirmação do Sr. Presidente da República, quando ainda candidato e dirigindo-se em discurso às classes produtoras do Rio de Janeiro: do que se trata é fazer que “os ricos sejam mais ricos, para que os pobres sejam menos pobres”. Fórmula esta que lembra um outro pensamento muito difundido na geração que 211 HD, p. 22 212 VILAR, Pierre. Desenvolvimento histórico e progresso social. Etapas e critérios, p. 140. 213 HD, p. 22-3 214 PRADO, Luiz Carlos Delorme; EARP, Fábio Sá. O “milagre” brasileiro; crescimento acelerado, integração internacional e concentração de renda (1967-1973). In: FERREIRA & DELGADO. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX, p. 213-19 91 chegava a seu ocaso em princípios do século, e que assim se expressava: “Que seriam dos pobres se não fossem os ricos que lhes proporcionam empregos?” A teoria em que se inspiram nossos economistas ortodoxos de maior projeção, e que faz consistir o desenvolvimento, o progresso e as soluções sociais no ritmo dos investimentos privados, traduz em termos técnicos aquele pensamento de nossos avós. É isso em suma que impera no Brasil oficial de hoje. 215 Estaria enganado quem, a partir de um olhar precipitado de seu discurso, pensasse que a divergência do autor em relação aos “economistas ortodoxos” é somente política e ideológica. Seu ceticismo quanto à capacidade dos investimentos privados em promover o desenvolvimento brasileiro se explica também do ponto de vista econômico e histórico. 215 Discurso de Caio Prado Júnior na premiação do Troféu Juca Pato de Intelectual do ano de 1966, em 28 de março de 1967. Disponível em: http://bndigital.bn.br/expo/caioprado/index.htm. Acessado em fevereiro de 2013. 92 12. Investimentos e industrialização Demarcando com o pensamento econômico tradicional, Caio Prado afirmava que desenvolvimento e crescimento econômico não são o mesmo conceito, apesar de estarem relacionados. Com frequência, o que se vê compreendido no conceito [de desenvolvimento] é tão somente o crescimento quantitativo que se exprime nas estatísticas da renda nacional do país, seja global ou per capita; ou nos dados relativos à produção, movimento comercial, giro financeiro etc. Mas tudo isso, e o mais da mesma natureza, por importante e expressivo que seja, informa, por si apenas, muito pouco relativamente à verdadeira situação do país e de seus habitantes; diz muito pouco de seus reais padrões de vida e dos bem estar que usufruem. 216 Assim, avaliar os níveis de desenvolvimento de uma coletividade a partir de índices como a renda per capita não seria desejável. Uma vez que este índice “exprime apenas uma média aritmética, e quase nada nos diz acerca da situação particular dos indivíduos que entram nos cálculos, e mesmo, eventualmente, da massa da população”, deixaria de registrar a concentração de riqueza. Sendo as condições de vida o que “verdadeiramente importa, e que o índice de renda per capita não revela”, não se pode considerar desenvolvido um país que produz muita riqueza mas a mantém concentrada em pequenos estratos da população. Isto seria verdadeiro para o Brasil, na medida em que era possível observar extremos de abundância e privações agudas e onde se apresentavam índices que indicariam luxo e modernidade, mas que na maior parte do país existia, na verdade um primitivismo estarrecedor, no qual nem mesmo as necessidades vitais eram plenamente atendidas. Por aqui, portanto “a questão do desenvolvimento toma um sentido bem diferente daquele que se encontra nos textos ordinários da literatura econômica ortodoxa e nas análises financeiras de rotina.” 217 Com essa premissa, que coloca a realidade social do conjunto da população como prioridade para se avaliar o nível de desenvolvimento de uma nação, Caio Prado Júnior busca desconstruir a “tese inversionista”, na qual os investimentos e suas vicissitudes aparecem em posição central da teoria do desenvolvimento econômico elaborada por importantes correntes da chamada economia ortodoxa. Identificada com a Teoria Geral do Emprego do Juro e da Moeda, de John Maynard Keynes, e partindo da análise dos ciclos econômicos, tal teoria teria destacado particularmente “o papel representado pela flutuação das inversões”. Seu erro mais 216 Discurso de paraninfo na formatura da turma de 1967 dos alunos da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas (FCEA/USP), em 7 de março de 1967 (CPJ-CA012, AIEB). 217 Ibidem. 93 sério e grave, no que se refere a interpretação e ação prática em países subdesenvolvidos como o Brasil teria sido a tendência de aproximar “o subdesenvolvimento à situação verificada na fase de recessão do ciclo econômico”. Logo, sendo a insuficiência das inversões o problema básico de tais economias, a política econômica recomendada “seria o estímulo e incremento às inversões”. 218 A transposição de soluções de uma realidade característica de país capitalista maduro para economias subdesenvolvidas demonstraria “o anacronismo de tal aproximação”. Afinal, segundo Caio Prado, (...) se no equacionamento da problemática das flutuações econômicas a questão das inversões se propõe com relevo incontestável, já no plano mais geral e amplo do desenvolvimento e sua interpretação, as inversões, e mesmo a circunstância geral que as condiciona e que vem a ser o processo de acumulação capitalista, muito pouco ou quase nada informa relativamente à dinâmica do desenvolvimento que se insere no conjunto e complexo, tomado na sua integralidade, dos fatos históricos que configuram aquele desenvolvimento.219 Portanto, não apenas o processo geral de acumulação capitalista, caracterizado pela formação do capital e sua progressiva valorização a partir dos investimentos, mas principalmente a situação geral da produção e da atividade econômica deveria ser considerada, com especial atenção para as relações de produção vigentes. As inversões viriam apenas em último lugar e “como incidente apenas”, uma vez que deveria se observar, prioritariamente, a conjuntura mercantil, as características da demanda, as condições de produção e as relações de produção estabelecidas, que condicionariam, pois, o afluxo de capital, sua formação e acumulação e, só então, em último lugar, a inversão produtiva deste mesmo capital. 220 As teorias que voltam centralmente seu olhar para a renda nacional e os ciclos econômicos caracterizados pelo ritmo das inversões acabam por sugerir o incremento dos investimentos desconsiderando os custos sociais que podem trazer. O a-historicismo e subestimação da especificidade histórica dos países subdesenvolvidos torna a teoria ortodoxa incapaz de avaliar as circunstâncias peculiares que em cada lugar ou categoria sócio-econômica condicionam as inversões e dão a medida de sua fecundidade e capacidade de determinar um processo auto-estimulante de crescimento que é o que se procura realizar. 221 218 HD, p. 24-5. 219 HD, p. 25-6. 220 HD, p. 26. 221 HD, p. 134-5. 94 Sem ignorar a importância do crescimento econômico para a promoção do desenvolvimento, Caio Prado Júnior chama a atenção, especificamente, para o fato de que a formação, acumulação e reinversão do capital nas atividades produtivas são elos de um mesmo processo cíclico não apartado do mercado. São elos de um mesmo processo, porque o capital investido proporciona atividade produtiva e, inversamente, a atividade produtiva gera o capital. E são condicionados e proporcionados pelo mercado porque, sendo o capital tanto o ponto de partida como o momento final do processo produtivo, depende de sua circulação e retorno acrescido do lucro realizado no mercado, dando ensejo a um novo ciclo. 222 Nesta perspectiva, Caio Prado considera que foram as conjunturas comerciais favoráveis, ou seja, a existência de mercado para os produtos produzidos no Brasil, que constituíram o fator e impulsos decisivos nas fases de progresso econômico verificadas na história do país: “A própria formação e existência de nosso país tem aí suas raízes, como a história fartamente o comprova”. As vicissitudes da nossa economia e da própria sociedade brasileira, no seu conjunto e em todas as partes de que geograficamente se compõe, acompanharam sempre, muito estreitamente, as flutuações da conjuntura comercial dos respectivos produtos de exportação, tanto nos seus altos quanto nos baixos. O capital, as inversões, as atividades produtivas e tudo mais, até mesmo os índices demográficos, se condicionaram direta e imediatamente àquela conjuntura. São seu reflexo e sua consequência. 223 A partir deste diagnóstico – que identifica a economia brasileira em situação de subordinação a situações alheias à sua realidade interna e fora do alcance de suas decisões e iniciativas de política econômica – o autor formulou sua crítica ao processo brasileiro de industrialização. É verdade que ainda nos anos 1950, quando aprofundou seus estudos em economia para escrever Diretrizes para uma política econômica brasileira (1954) e Esboço dos fundamentos da teoria econômica (1957), Caio Prado já havia elaborado as bases de sua crítica à industrialização por substituição de importações. Então, afirmava que tendo resultado de “uma insuficiência das exportações para cobrirem as necessidades da economia brasileira” a débil indústria brasileira naquele momento não passava de “solução eventual de um problema proposto pelo sistema colonial”, ou seja, a “impossibilidade de balancear com as exportações, os nossos débitos no exterior.” 224 222 HD, p. 136. No capítulo que segue, abordaremos a questão do mercado mais detidamente. 223 HD, p. 137-8. 224 PRADO JÚNIOR, Caio. Diretrizes para uma política econômica brasileira. São Paulo: Gráfica Urupês, 1954, p. 132. 95 Posteriormente, dialogando direta ou indiretamente com Maria da Conceição Tavares – que em 1963 havia publicado o ensaio que em pouco tempo já seria considerado um clássico na literatura sobre o desenvolvimento econômico brasileiro, Auge e declínio do processo de substituição de importações no Brasil – Prado Júnior, em A revolução brasileira, também apresentou suas considerações a respeito da industrialização por substituição de importações. O surto relativamente vigoroso observado no pós-guerra, gerador de tantas ilusões “desenvolvimentistas”, e que se alimentou sobretudo da industrialização na base da produção substitutiva de artigos antes importados, alcançou seu limite muito cedo. Já em 1962 começou a esmorecer, para dar lugar, em seguida, à estagnação e às sérias dificuldades que o pais atravessa no momento (1966). 225 Ao fim e ao cabo, com um desenvolvimento industrial nesta base, o progresso obtido teria sido mínimo, sendo seu sentido precário e insatisfatório. Sua produção, sendo orientada prioritariamente para o atendimento de “um consumo que, nas condições do Brasil pode ser considerado suntuário e conspícuo”, atingia reduzidas parcelas da população. A lista de bens que ocupavam “o centro das atividades produtivas de maior significação e para onde, inclusive as básicas, elas em última instância convergem”, atestava a situação. Assegurava-se, assim, o conforto de minorias muito pequenas com “o maior requinte e refinamento modernos” ao passo que os padrões gerais da população eram de um “primitivismo generalizado que basicamente caracteriza o país”. 226 Desarticulada das condições próprias de demanda e consumo da população brasileira e dependendo de empreendimentos e iniciativas estrangeiras de investimento produtivo, a industrialização brasileira não guardava relação com a conjuntura econômica interna do país e, portanto, ao invés de contribuir para a superação da dependência, mantinha a subordinação da economia às circunstâncias e contingências estranhas ao país.227 Os empreendimentos estrangeiros instalados no Brasil tinham por objetivo tão somente produzir em condições mais vantajosas os produtos que antes eram remetidos. As perspectivas desta industrialização não seriam apreciáveis, pois em relação à situação anterior não teria havido modificação fundamental: continuaríamos uma economia basicamente exportadora de produtos primários.228 225 RB, p. 160. 226 RB, p. 160-1. 227 Cf. RB, p. 157. 228 Cf. RB, p. 188. 96 Mas quais seriam circunstâncias que impunham as limitações da indústria montada sobre tais bases? Segundo o autor, elas eram de duas ordens. Em primeiro lugar, por depender dos investimentos de capitais estrangeiros, não poderiam ultrapassar as disponibilidades de divisas proporcionadas pelas contas externas, o que colocava no valor das exportações a determinação da capacidade de investimento e, pois, o ritmo do desenvolvimento industrial. Em segundo lugar, por não modificar a amplitude do mercado consumidor antes abastecido pelas importações, a indústria no Brasil se limitava a seguir o ritmo das unidades produtivas estrangeiras aqui instaladas e que se destinavam a especial e essencialmente produzir aqui o que antes precisariam exportar. 229 Em 1968, Caio Prado Júnior mantém sua avaliação crítica da industrialização por substituição de importações. Contudo, aprofunda significativamente sua interpretação da emergência e evolução deste processo. Se dois anos antes ele não deixava de mencionar a influência das contas externas no desenvolvimento industrial brasileiro,230 agora tratava-se principalmente do detalhar suas relações com a balança de pagamentos, os investimentos do capital estrangeiro, a desvalorização cambial e o consequente processo inflacionário, a demanda por equipamentos e recursos tecnológicos e as perspectivas de mercado para seus produtos. Apresentaremos, a seguir, uma breve síntese da formulação apresentada pelo autor a respeito da questão. 231 Vinha de longa data o desequilíbrio das contas externas do país. Como o tradicional sistema econômico do país se assentava nas exportações de gêneros primários, o abastecimento do mercado interno demandava crescentes importações. Enquanto as exportações geravam divisas suficientes, a balança comercial mantinha-se equilibrada, mas bastava que novos produtos entrassem em concorrência com os brasileiros no mercado internacional ou conjunturas externas desfavoráveis restringissem as perspectivas de exportação para o desequilíbrio se abatesse. Ademais, intensificando-se a integração da economia brasileira na ordem internacional do capitalismo, o pagamento de serviços de empréstimos públicos e financiamentos privados, a remuneração das inversões estrangeiras realizadas no país e demais compromissos financeiros que se avolumavam só poderiam ser quitados com os recursos oriundos das exportações, aumentando a dependência da economia interna às vicissitudes de circunstâncias a elas alheias. 229 Cf. RB, p. 188. 230 Cf. RB, p. 88-91. 231 A síntese que se segue baseia-se em HD, p. 106-18. 97 O crescente endividamento externo do país, assim, reflete o funcionamento deficitário da economia brasileira ao mesmo tempo em que ele próprio reforça continuamente este déficit, por resultar em aumento dos gastos com juros e amortizações de novos débitos contraídos para saldar débitos anteriores. Somado a esses fatores, as inversões de capitais estrangeiros e as operações de empresas internacionais aqui instaladas reforçam o desequilíbrio ao mesmo tempo em que resultam dele. Seu agravamento, pois, evidencia crescentemente o enfraquecimento da função exportadora que impulsiona a economia brasileira. O crescimento econômico do país, proporcionado pela ampliação de tais investimentos, por sua vez possibilitada pelo impulso das exportações nas conjunturas favoráveis, ampliava desproporcionalmente os compromissos com o capitalismo internacional, agravando o desequilíbrio. Como resultado, para compensar a nova situação, novas perspectivas de diversificação produtiva se abriram para o país. Assim, a desvalorização cambial da moeda decorrente do crescente déficit nas contas externas e agravada depois da crise internacional de 1930 em função da queda das exportações brasileiras, ao encarecer os produtos importados, atuou como incentivo à produção nacional de artigos substitutivos. Os momentos de maior prosperidade da indústria foram, sobretudo, portanto, aqueles em que a moeda se desvalorizava e a substituição de importações pela produção interna funcionava em benefício da indústria brasileira. Em função da II Guerra Mundial, perspectivas ordinárias da indústria não eram as do mercado externo, mas apenas do interno. Por outro lado, aumentaram os saldos do comércio exterior em função do aumento de preços de matérias primas e gêneros alimentares. Com o aumento das exportações e a queda nas importações, o aumento da emissão de moeda para absorver o excesso de divisas promoveu aumento de preços e inflação generalizada dos produtos nacionais, o que resultou em pressão da demanda de importações. O desafio seria afastar a concorrência dos produtos importados ao mesmo tempo em que se favorecia a aquisição no exterior de equipamentos e insumos industriais. Tal exigência contraditória, não podendo ser resolvida pela desvalorização cambial, pois esta aumentaria os preços dos produtos importados em geral, foi resolvida com a instituição de licença prévia para importação, permitindo o controle das disponibilidades cambiais. Tratava-se de um prolongamento da substituição de importações, mas agora com expressa orientação de favorecer os empreendimentos industriais na compra de equipamentos e com uma ação 98 deliberada de política econômica naquilo que antes se realizava com base nas forças de mercado. Em suma, o crônico desequilíbrio das contas externas e a dependência de capitais estrangeiros resultaram em uma debilitada estrutura produtiva industrial. A industrialização brasileira seguiria uma marcha sem um processo autopropulsor e “por impulsos descontínuos e desordenados, ao sabor das vicissitudes que lhes são estranhas, como em particular a caprichosa conjuntura das finanças externas.” 232 Tratar-se-á de uma indústria desordenadamente implantada, sem outro critério que as excepcionais e tão artificiais facilidades oferecidas, o estímulo imediatista de um lucro fácil e rápido. Uma indústria que não terá passado pelo crivo da seleção pela concorrência, nem mesmo potencial, ou de um planejamento integrado e de conjunto. Uma indústria em suma formada de caótico aglomerado de atividades implantadas no geral, sem atenção alguma à sua viabilidade, a longo prazo (...). E incentivada unicamente pelo vácuo deixado com a exclusão de alguns produtos antes importados e cujo preenchimento se promovera tão artificialmente. 233 Nota-se que Caio Prado Júnior, apesar de considerar que é na perspectiva do mercado que as atividades produtivas devam ser consideradas e que a concorrência tem o aspecto positivo de contribuir para a seleção da indústria, contrapõe o estímulo imediatista à viabilidade de longo prazo e as forças de mercado ao planejamento integrado e de conjunto. Precisamos, portanto, compreender melhor o lugar do Estado, do mercado, da circulação, da distribuição e do consumo em seu conceito de desenvolvimento. Sobretudo porque, para o autor, se por um lado a medida do mercado interno brasileiro e da demanda dos consumidores não foi suficiente para se constituírem como força propulsora eficaz do desenvolvimento industrial, por outro lado, esta industrialização e seu aparelhamento produtivo não significou nem objetivou um melhor atendimento do consumo do conjunto da sociedade, mas tão somente de um setor reduzido, especializado e excepcional da demanda. O Brasil, assim, conservou-se antes um produtor que um consumidor, tendo suas atividades produtivas orientadas para um consumo estranho. 234 232 HD, p. 122. 233 HD, p. 116. 234 Cf. HD, p. 119-21. 99 13. Estado, mercado e consumo Uma das principais queixas de Caio Prado quando analisava o desenvolvimento econômico do país era a liberdade permitida à iniciativa privada, tema que abordou nos pronunciamentos que fez em 1967. A transformação do Brasil para equipará-lo ou ao menos aproximá-lo da mesma ordem de grandeza dos países dos grandes centros modernos – e seria esse, afinal, o grande objetivo a ser almejado – não se poderia conservar intacto o interesse dos negócios privados e pelo lucro como único impulso da sociedade. O desafio colocado seria demasiado grande para que “uma linha de desenvolvimento traçada unicamente pelo choque de interesses privados e afirmações individualistas logre superar o retardo em que ficamos relativamente aos níveis e padrões do mundo moderno.” 235 Afinal, o cumprimento deste objetivo exigia que se desvencilhasse do sistema internacional do capitalismo afim de assegurar uma existência nacional própria e autônoma para conseguir se organizar “em função das necessidades e aspirações próprias e dos conjunto da nossa população”: E para isto também se exige uma ativa e vigorosa política voltada para a remodelação de nossas instituições econômicas e sociais. Não podemos relegarnos, para a realização de objetivos tão amplos, no livre jogo das forças econômicas, na liberdade dos negócios e na livre iniciativa privada. Trata-se mais que tudo de um problema político, que politicamente há de ser equacionado e resolvido. 236 Por este motivo, o autor não tem dúvidas em afirmar que “é no campo do intervencionismo e em oposição à liberdade econômico que se colocam e efetivamente se devem colocar as forças progressistas da política brasileira”.237 Afinal, era necessário reestruturas e reorientar a economia brasileiro no sentido do atendimento daquelas aspirações, sendo condição indispensável a direção e controle das atividades econômicas: Deixados á livre iniciativa privada e aos estímulos espontâneos do mercado, as atividades econômicas tenderão sempre ao atendimento dos reduzidos setores efetivamente presentes naquele mercado, e não haverá assim modificação apreciável da situação. 238 Portanto, por não se tratar de simplesmente garantir o aumento da “renda nacional” – que seria a preocupação insistente dos chamados economistas ortodoxos com quem Caio 235 Discurso de agradecimento na premiação do Troféu Juca Pato de Intelectual do ano de 1966, em 28 de março de 1967. 236 Discurso de paraninfo na formatura da turma de 1967 dos alunos da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas (FCEA/USP), em 7 de março de 1967 (CPJ-CA012, AIEB). 237 RB, p. 126. 238 RB, p. 159. 100 Prado polemizava – mas sim da distribuição e repartição efetiva e não meramente estatística daquela renda, visando em primeiro e principal lugar a elevação dos padrões materiais e culturais da grande massa da população brasileira, o problema deveria ser tratado “dentro da planificação e direção gerais das atividades econômicas em que se combinarão as iniciativas e empreendimentos públicos com a iniciativa privada devidamente controlada e orientada”. Tornava-se necessário, portanto, “a intervenção decisiva do poder público na condução dos fatos econômicos e na orientação deles para objetivos prefixados”, ou seja, “uma distribuição mais equitativa de recursos financeiros e dos proventos e benefícios derivados das atividades econômicas”.239 Em síntese, o objetivo seria organizar as atividades produtivas para que se colocasse em primeiro plano a produção para o mercado interno no nível do consumo final, dando prioridade aos bens e serviços básicos, essenciais e acessíveis à massa da população. 240 Como as contingências da formação histórica brasileira e as permanências do sentido da colonização teriam promovido uma desarticulação entre produção e consumo, que não se entrosariam nem se completariam estimulando-se mutuamente, seria necessário superar os vícios orgânicos da estrutura econômica e social brasileiras. Neste sentido, se “o sentido processo de desenvolvimento econômico do desenvolvimento capitalista originário, tal como ele se apresentou na Europa no século passado, foi essencialmente o da produção”, no caso brasileiro, fundamentalmente distinto, “ele deve ser essencialmente o da distribuição”: E assim o papel que o lucro capitalista (que provê muito bem à produção, pois dela se alimenta e com ela se mantém) desempenha no capitalismo originário, não está em condições de desempenhar numa situação em que é a distribuição que sobreleva. E a iniciativa privada, que tem no lucro e somente nele a sua razão de ser, não é suficiente assim para assegurar um desenvolvimento adequado. 241 Na esfera da circulação, portanto, para o caso brasileiro em particular, encontra-se parte indispensável do problema do desenvolvimento. A contribuição da historiografia para a teoria e a prática do desenvolvimento – subtítulo do texto de 1968 – seria, portanto, o de comprovar que foram invariavelmente as conjunturas comerciais favoráveis e, portanto, a ocorrência de mercados aos produtos brasileiros que se constituíram como fatores e impulsos realmente decisivos nos momentos e fases de desenvolvimento econômico na história do Brasil, cuja própria formação e existência teria aí suas raízes.242 Uma teoria que se propusesse a promover 239 RB, p. 167-8. 240 Cf. RB, p. 169. 241 RB, p. 164. 242 Cf. HD, p. 137. 101 o desenvolvimento em tal formação econômica e social deveria, necessariamente, levar isso em conta, sendo essa uma de suas críticas à chamada teoria ortodoxa: É assim na perspectiva do mercado, em última instância, ou pelo menos também dele, e no caso brasileiro diremos mesmo sobretudo, que a capitalização e o conjunto das atividades produtivas hão de ser consideradas. E pois também o desenvolvimento. Isto não é para dizer que a teoria ortodoxa deixa de lado o mercado, que se inclui em seus esquemas como uma das variáveis. Mas é uma variável dependente das inversões.243 Ou seja, seria na localização e enquadramento dos mercados interno e externo no processo de desenvolvimento econômico, nos vínculos e articulações existentes entre si e, pois, nas relações que manteriam com os investimentos produtivos que deveriam ser considerada uma teoria econômica adequada à realidade brasileira. Portanto, sendo a questão do mercado aquela que ocupa o centro da problemática do desenvolvimento no caso do Brasil, seria indispensável caracterizá-la adequadamente. E é somente na história e na especificidade própria das diferentes situações históricas brasileiras que o mercado para os artigos de nossa produção, a natureza dele, sua estrutura e vicissitudes, podem ser compreendidas e devidamente avaliadas. A começar pelo característico dualismo daquele mercado rigidamente discriminado e dividido em dois setores bem apartados um do outro e inconfundíveis: respectivamente o externo e o interno.244 Assim, enquanto na teoria ortodoxa haveria uma equiparação entre os mercados externo e interno, sendo somente uma subdivisão do mercado em geral e equivalendo-se ainda que sofram variantes e circunstâncias distintas, o assunto não poderia ser considerado desta forma no caso brasileiro, pois uma análise em perspectiva histórica demonstraria que “a significação e papel do mercado externo avultam de tal maneira que esse mercado se singulariza e individualiza inteiramente à parte”. Com isso, o mercado interno se caracteriza e individualiza em contraste com o externo, como mera decorrência das circunstâncias impostas pela presença dele. Ao invés de se situar paralelamente e em plano semelhante ao mercado externo, como pensa a teoria econômica tradicional, o mercado interno é uma função deste último, podendo-se dizer, inclusive, que dele deriva. 245 Segundo Caio Prado Júnior, pois, se por um lado existe na economia brasileira um descompasso entre produção e consumo – ou, em outras palavras, entre oferta e demanda – como permanência da estrutura colonial, por outro lado, a mesma herança teria como 243 HD, p. 137. 244 HD, p. 138. 245 Cf. HD, p. 138-9. 102 resultado a manutenção de uma relação de subordinação do mercado interno ao externo. Os fatores constitutivos do desenvolvimento brasileiro se definiriam, assim, pela sua posição na ordem internacional por força da preeminência do seu mercado externo, ou seja, pela “posição dependente e subsidiária de uma economia satélite que se dispõe e organiza precipuamente para servir objetivos e necessidades econômicas alheias.” 246 Mas se a relação entre os mercados interno e externo se caracterizava por um dualismo, cabe analisar de que maneira isso se articulava com a produção e com a economia brasileira em geral se pretendemos compreender como o autor não apenas analisa o desenvolvimento brasileiro na história como também o conceito que tem de desenvolvimento – elementos que não se dissociam em seu pensamento, como fica cada vez mais evidente na medida em que avança nosso estudo. 246 HD, p 139. 103 14. Desenvolvimento desigual e combinado e dualismo A partir da discussão apresentadas pelos intérpretes de Caio Prado Júnior no capítulo 4 de nosso trabalho, pode-se considerar que uma questão crucial que se coloca sobre o conceito de desenvolvimento do autor diz respeito à definição dos setores da economia brasileira e suas articulações (ou a falta delas) no desenvolvimento brasileiro ao longo de sua história. Como vimos, ora ressaltando a colaboração entre diferentes setores, ora a posição entre um e outro, Caio Prado Júnior parece transitar entre o pensamento dualista tão característico de sua geração, e a sua superação que se processou e consolidou nos anos 1970. A partir da análise das fontes que selecionamos para compreender seu conceito de desenvolvimento, pretendemos verificar se nos anos 1960 como o autor se situa nesta tensão entre ambas as maneiras de conceber a formação econômico-social brasileira. Neste sentido, cabe notar que quando fala de dualismo, o autor se refere a diferentes relações de oposição e contradição presentes na realidade. No capítulo anterior, foi possível notar que Caio Prado considerava dualista a relação entre mercado interno e mercado externo. Mas a contradição existente entre estas esferas da circulação e troca de produtos se resolve com a subordinação do primeiro sob os impulsos e circunstâncias do segundo. Isto seria uma característica da formação histórica brasileira que teria acompanhado toda sua trajetória, desde a organização da produção no período colonial até o momento em que estava escrevendo, ou seja, ao anos 1960. Este dualismo teria passado incólume por todas as transformações que ocorreram na economia brasileira. Esta dualidade no âmbito do mercado estaria relacionada, porém, a uma relação de oposição entre dois tipos diferentes de exploração agrária que se constituíram no período colonial: conjugando áreas imensas e numerosos trabalhadores, a exploração em larga escala “opõe-se assim à pequena exploração parcelaria realizada diretamente por proprietários ou arrendatários”. 247 Assim, a prioridade dada à exportação de gêneros primários produzidos em larga escala teria como consequência “o papel secundário a que sempre se relegaram as atividades destinadas à produção do sustento de base da população: a sua alimentação.” 248 O modo como se processou a industrialização brasileira, com a negligência da produção voltada 247 HD, p. 59. 248 HD, p. 63. 104 ao atendimento das necessidades básicas da população atestariam, portanto, a permanência desta oposição tanto no âmbito da produção quanto da circulação e distribuição de bens. Em síntese, portanto – e aqui repetimos parte da citação feita por Marcos Antônio M. da Rocha destacada no capítulo 4 –, haveria ainda “uma dualidade de setores ou sistemas econômicos imbricados um no outro”, um tradicional voltado à exportação de gêneros primários e outro, emergente deste e que tem por base a indústria, voltado ao mercado interno. E o dualismo se justificaria uma vez que “ambos os setores se caracterizam à parte um do outro e não se recobrem”, cada qual tendo uma “orientação comercial própria e exclusiva”. Sua sobreposição seria meramente secundária, subsidiária e, muitas vezes, excepcional apenas. Uma análise lastreada em perspectiva histórica colocaria “em nítido relevo a característica da divisão da nossa economia em dois setores distintos que se orientam respectivamente para o mercado externo e o interno”. 249 Em outra esfera, porém, seria possível considerar dual a sociedade brasileira colonial, a saber, a sua divisão social, na qual se encontrariam (...) de um lado os dirigentes da empresa mercantil aqui montada e destinada a suprir com sua produção o comércio exterior, e de outro, os trabalhadores que dariam a essa empresa o esforço físico necessário à realização de seus fins, e que não passavam e não deviam passar disso: simples fornecedores de energia produtiva, nada mais que instrumentos de trabalho.250 A abolição da escravidão em 1888 significaria, assim, “o início da integração da massa trabalhadora no conjunto da sociedade brasileira”, o que permitiria “a amalgamação desta num todo homogêneo, eliminando o dualismo, irredutível por outra forma, do sistema implantado pela colonização”. 251 A abolição, porém, apesar de possibilitar tal integração, não teria eliminado acentuados traços escravistas, que se mantiveram à margem do regime legal de trabalho livre. E aqui retomamos a questão ressaltada por Carlos Nelson Coutinho com uma citação de A revolução brasileira, a partir da qual conclui que significava a “recusa de uma visão dualista – para a qual o lado ‘atrasado’ seria um empecilho, e não algo funcional, ao desenvolvimento do lado ‘moderno’”. 252 Trata-se da seguinte passagem, que repetimos aqui: “as sobrevivências pré- capitalistas nas relações de trabalho da agropecuária brasileira longe de gerarem obstáculo e contradições opostas ao desenvolvimento capitalista, tem pelo contrário contribuído para 249 HD, p. 131-3 250 RB, p. 84-5 251 RB, p. 84. 252 COUTINHO, Carlos Nelson, Uma via “não-classica” para o capitalismo, p. 121. 105 ele.”253 Esta afirmação se apoia em consideração feita em um parágrafo imediatamente anterior, no qual desenvolve a questão com mais elementos: Mas essas sobrevivências escravistas (que são frequentemente apontadas pelos teóricos do feudalismo brasileiro como ‘restos semifeudais’) longe de constituírem obstáculos ao progresso e desenvolvimento do capitalismo, lhe tem sido altamente favoráveis, pois contribuem para a compressão da remuneração do trabalho, ampliando com isso a parte da mais-valia, e favorecendo por conseguinte a acumulação capitalista. O que sobra do escravismo representa assim um elemento de que o capitalismo se prevalece, e em que frequentemente se apóia, uma vez que o baixo custo da mão-de-obra torna possível em muitos casos a sobrevivência de empreendimentos de outra forma deficitários. É assim errado, e da maior gravidade para os efeitos da revolução brasileira, supor que tais remanescentes escravistas poderão ser eliminados, e eliminados com isso algumas formas mais brutais de exploração do trabalho, pelo simples progresso e maior difusão das relações capitalistas de trabalho e produção. 254 Afinal, esses remanescentes anacrônicos oriundos da escravidão, além de não desfigurar o caráter capitalista das relações de produção e o tipo de organização econômica na agropecuária brasileira, acabam reforçando a exploração comercial e capitalista no campo, “pois tendem a reduzir a remuneração do trabalhador e, em consequência, acrescer a maisvalia e a rentabilidade da empresa”. 255 Assim, pensando os desafios da revolução brasileira, Caio Prado Júnior ressalta que seria no interior do próprio capitalismo e nas suas contradições próprias – e não na ideia de que as contradições principais da economia brasileira se encontram na persistência de um “semifeudalismo” – que estariam presentes os fatores capazes de superar as reminiscências do colonialismo nas relações de trabalho e produção da economia brasileira. 256 Atualmente, é atribuído a Francisco de Oliveira o justo reconhecimento pela contribuição dada na superação do dualismo com seu ensaio Crítica à razão dualista, publicado originalmente no segundo número dos cadernos Estudos Cebrap, em 1972. É interessante notar que, o próprio autor agradece a contribuição de Caio Prado Jr., que teria participado de seminários sobre o texto257 – certamente não antes de ter retornado do exílio no Chile em 1970 e libertado da prisão em 1971. Ademais, certas semelhanças com algumas formulações caiopradianas são notáveis, como se pode ver na seguinte passagem: 253 RB, p. 97. 254 RB, p. 97. 255 RB, p. 106. Esta passagem só faz reforçar nossa hipótese de ser mais provável que Rui Mauro Marini tenha se referenciado em Caio Prado Júnior para formular sua tese da superexploração do trabalho nos países dependentes, e não o inverso. 256 RB, p. 100-1. 257 Cf. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista, p. 28. 106 (...) do ponto de vista das relações internas à agricultura, o modelo [descrito anteriormente] permite a diferenciação produtiva e de produtividade, viabilizada pela manutenção de baixíssimos padrões do custo de reprodução da forma de trabalho e portanto do nível de vida da massa trabalhadora rural. Esta é a natureza da conciliação existente entre o crescimento industrial e o crescimento agrícola: se é verdade que a criação do “novo mercado urbano-industrial” exigiu um tratamento discriminatório e até confiscatório sobre a agricultura, de outro lado é também verdade que isso foi compensado até certo ponto pelo fato de que esse crescimento industrial permitiu às atividades agropecuárias manterem seu padrão “primitivo”, baseado numa alta taxa de exploração da força de trabalho. (...) Assim, não é simplesmente o fato de que, em termos de produtividade, os dois setores – agricultura e industria – estejam distanciando-se, que autoriza a construção do modelo dual; por detrás dessa aparente dualidade existe uma integração dialética.258 E não por acaso, mais adiante Francisco de Oliveira faz menção à teoria elaborada por Marx e sistematizada por Leon Trotsky no conceito de desenvolvimento desigual e combinado, indicando o referencial teórico utilizado em seu estudo: A evidente desigualdade de que se reveste que, para usar a expressão famosa de Trotsky, é não somente desigual mas combinada, é produto antes de uma base capitalística de acumulação razoavelmente pobre para sustentar a expansão industrial e a conversão da economia pós-anos 1930, que da existência de setores “atrasado” e “moderno”. 259 Uma vez que há também, ainda que em graus diferentes e sem menção explícita, alguma relação entre o conceito de desenvolvimento desigual e combinado e certas passagens da formulação de Caio Prado Júnior, recoloca-se, assim, o debate sobre as relações do autor com o trotskismo. Bernardo Ricupero apresenta o texto de Mario Pedrosa e Lívio Xavier, Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil, de 1930, no qual os autores negam a existência de oposição entre imperialismo e burguesia nacional, bem como antagonismo entre burguesia urbana e proprietários rurais. 260 Formulações estas que estão no centro da crítica que Caio Prado faz, em A revolução brasileira, à caracterização de burguesia nacional elaborada pelo PCB. Paulo Henrique Martinez, por seu turno, indica que Caio Prado Júnior não apenas mantinha contato e convivência política e intelectual com membros da Liga Comunista Internacionalista (LCI), uma autoproclamada fração do PCB reunia trotskistas no Brasil, como afirmou em correspondência ao jornalista Lívio Xavier, que havia publicado uma resenha de Evolução Política do Brasil: “Conheço as opiniões, neste terreno [da economia 258 Ibidem, p. 45-7. 259 Ibidem, p, 59-60. 260 RICUPERO, Bernardo. A aventura brasileira do marxista Caio Prado Jr. In: PINHEIRO, Milton (org.). Caio Prado Júnior: história e sociedade. Salvador: Quarteto, 2011, p. 83-4. 107 colonial], do agrupamento político a que v. pertence.” Ademais, no livro URSS, um Novo Mundo, de 1934, Caio Prado Júnior, segundo Martinez, teria filiado abertamente sua avaliação das diferenciações de classe no regime soviético às opiniões públicas de Leon Trotsky. 261 Com isso, para o que nos interessa especificamente no presente trabalho, queremos menos saber o tipo de vínculo que Caio Prado Júnior manteve ou mantinha com os trotskistas brasileiros e com a orientação política de Trotsky no interior do marxismo, do que chamar a atenção para a possibilidade de investigar mais profundamente os impactos do conceito de desenvolvimento desigual e combinado em seu conceito de desenvolvimento. Certamente, existe uma tensão no pensamento caiopradiano, uma vez que nem antecipa integralmente a crítica ao pensamento dualista, nem se mantém formalmente inserido nos quadros de interpretação dual da realidade brasileira. Se por um lado isso pode atestar ambiguidades, por outro significa que certamente representou um exemplo único de originalidade no pensamento econômico e social de sua geração. 261 MARTINEZ, Paulo Henrique, A dinâmica de um pensamento crítico: Caio Prado Jr. (1928-1935), p. 101-2 e 233. A correspondência de Caio Prado Júnior, bem como as resenhas de Lívio Xavier a Evolução política do Brasil e URSS, um Novo Mundo, encontram-se nos anexos do livro de Martinez, (respectivamente, p. 277-80, 305-7, 309-12). 108 15. Continuidade e mudança: de colônia a nação Como vimos no capítulo 13, para Caio Prado Júnior o processo de desenvolvimento brasileiro deveria servir para equipará-lo ou ao menos aproximá-lo da mesma ordem de grandeza dos países dos grandes centros modernos. Estes países e povos que já atingiram um elevado nível de desenvolvimento de certa forma já romperam mais radicalmente suas amarras com o passado, enquanto no Brasil as circunstâncias históricas se projetavam mais vivamente no tempo presente em seu desdobramento.262 Assim, tratava-se de promover transformações econômicas e sociais para “emparelhar-se aos padrões do mundo moderno”.263 Reiteradamente o autor explicita a ideia de que o desenvolvimento seria “condição precípua para assegurar ao país e à generalidade de seu povo o conforto e o bem-estar material e moral que a civilização e a cultura modernas são capazes de proporcionar.”264 Logo, o problema que o desenvolvimento deveria solucionar consistiria em fazer com que os benefícios e o conforto que o progresso material do mundo moderno viabiliza – dos quais se aproveitam verdadeiramente somente insignificantes minorias no Brasil – fossem proporcionados ao conjunto da população. Afinal, com a miséria física e moral da grande massa do povo não seria possível construir uma grande nação moderna que oferecesse a todos segurança, bemestar e prosperidade em um futuro previsível. 265 Mas esta é uma questão que se coloca no terreno da ação dos indivíduos na história, transformando-a consciente ou inconscientemente. São os próprios indivíduos humanos que fazem a sua história. Mas se a fazem visando cada um deles a seus objetivos próprios e particulares, ignoram no mais das vezes, e não têm presente a resultante final de cada ato ou comportamento individual, depois e quando, em perspectiva mais ampla, esse comportamento se projeta coletivamente e se entrosa e compõe com o comportamento paralelo de outros homens. E com isso configura ou contribui para configurar a ação coletiva e o acontecimento ou fato social. 266 Para Caio Prado, ao mesmo tempo em que os indivíduos humanos são artífices de sua própria história, tais decorrências escapam cada vez mais do alcance, do controle e da previsão destes mesmos indivíduos na medida em que suas ações se integram em conjuntos progressivamente 262 Cf. HD, 18-9. 263 HD, p. 31. 264 HD, p. 15. 265 Cf. RB, p. 182. 266 RB, p. 134-5. 109 maiores de ações de outros indivíduos. Mas se os fatos sociais independem, assim, das vontades dos indivíduos, por outro lado seria possível a previsão e o controle da sucessão de fatos sociais na medida do conhecimento que se tenha do dinamismo próprio de tais fatos e do intra-relacionamento entre eles.267 Talvez seja com base nesta compreensão que o autor busque, segundo as interpretações analisadas no primeiro capítulo de nosso trabalho, uma interpretação do Brasil em sua totalidade. Quando esses conhecimentos relativos a fatos sociais, pelo seu vulto, referência a fatos mais expressivos e complexos, e pela sua sistematização em amplos conjuntos teóricos, adquirem propriamente foros de ciência (...), e essa ciência assim elaborada se desenvolve suficientemente, tornam-se possíveis previsões e controle de fatos sociais de larga envergadura e complexidade, como é o caso, ou pode e deve ser o caso da teoria revolucionária. 268 É neste sentido que Caio Prado Júnior procura mobilizar o método dialético de interpretação da realidade para investigar os processos históricos, que, segundo ele, se desenrolam através de contradições “que se caracterizam pela eclosão, no interior de qualquer situação, e em função dela mesmo e como seu contrário, de uma situação distinta que tende a eliminá-la”. Assim, as forças que impelem o curso dos acontecimentos que fazem a trama da história e, portanto, o dinamismo dos processos histórico-sociais situa-se “na superação dessas contradições, isto é, pela eliminação dos contrários e conflitantes que nela ocorrem, e sua síntese”. No caso do Brasil, sua evolução histórica indica uma progressiva transformação que tende a conduzi-lo àquele objetivo de atender as necessidades da generalidade de seu povo por meio da superação da sua condição de “colônia que vem do passado e se constitui do complexo de situações, estruturas e instituições em que deu a colonização brasileira”. 269 Transformação e superação essas que, impelidas pelo jogo das contradições que se configuram nas mesmas situações, estruturas e instituições , as vão levando a uma nova e diferente feição que significa e significará cada vez mais a integração nacional do Brasil. Isto é, a configuração de um país e sua população voltados essencialmente para si mesmos, e organizados econômica, social e politicamente em função de suas próprias necessidades, interesses e aspirações. 270 Essa linha evolutiva que caracteriza a história brasileira se desenvolvia desde o século XIX, a partir da crise do sistema que se assentava sobre o exclusivismo do comércio das colônias para as respectivas metrópoles. A nova ordem internacional que se consolida com a transição do que Caio Prado Júnior chamava de “capitalismo comercial” para o “capitalismo 267 Cf. RB, p. 135. 268 RB, p. 135-6. 269 RB, p. 134. 270 RB, p. 134. 110 industrial”271, que assinalou a complementação do processo de mercantilização dos bens econômicos em geral e da força de trabalho em particular, impactou diretamente no Brasil. A desagregação do sistema colonial teria evoluído para a crise da própria formação colonial brasileira.272 É na base das contradições geradas por esse sistema, e que se precipitam por efeito da nova ordem econômica e política em que o país se integra, que resultará a sua progressiva transformação em todos os seus aspectos, de colônia em nação livre e autônoma. O que, no plano econômico que particularmente nos interessa aqui, significa uma organização voltada essencialmente para o atendimento das necessidades próprias da coletividade que a compõe. 273 Contudo, além de lento e incompleto, tal desenvolvimento histórico não é linear e contínuo, possui intermitências, arrancos bruscos, interrupções mesmo recuos momentâneos. Mas ainda que se mantenha em posição periférica como simples fornecedor de gêneros primários ao mercado externo, essa função passa a ser exercida em circunstâncias distintas. Em função do impulso proporcionado pelo intenso desenvolvimento capitalista dos centros do sistema internacional, novas perspectivas teriam sido abertas para o Brasil, pois os ciclos econômicos deste novo período terão caráter distinto ao daqueles verificados no passado colonial. O considerável crescimento e modificação quantitativa que a nova ordem internacional proporciona à função exportadora do país tendem a levar à sua gradual transformação qualitativa. Paradoxalmente, porém, estas mesmas circunstâncias que estimulam o crescimento econômico do país, contribuindo para sua transformação qualitativa, invertem o sinal de sua intervenção. Ou seja, se antes serviam de impulso, agora aqueles fatores passariam a obstáculo ao crescimento e desenvolvimento brasileiros. 274 Mas antes de prosseguir na análise desta contradição cabe indagar: quais seriam, exatamente os elementos de mudança verificados então no Brasil? Expandindo-se a demanda de produtos primários e gêneros alimentícios para abastecer as economias industriais em pleno crescimento, não apenas se estimula a produção como também são proporcionadas as condições para fazê-lo: o indispensável aparelhamento técnico, comercial e financeiro para a organização da produção e do transporte das mercadorias, como 271 São questionáveis as definições conceituais de capitalismo feitas por Caio Prado Júnior, distinguindo um de tipo “comercial” de outro de tipo “industrial”. Mas não vamos tratar aqui deste problema, pois demandaria investigações que extrapolariam os limites do presente trabalho. 272 Cf. HD, p. 73-7. 273 HD, p. 77. 274 Cf. HD, p. 77-81. 111 as estradas de ferro, as instalações portuárias, a navegação marítima. As novas dimensões adquiridas com tais modificações representam não somente um progresso quantitativo da mesma função exportadora de mesquinhas perspectivas anteriores, como também desencadeiam, por força das repercussões diretas e indiretas desse progresso, um processo de desenvolvimento que se reflete no conjunto da vida econômica e social do país. A expansão cafeeira e ferroviária, acompanhados da formação de capitais locais, seriam expressões de tais mudanças. 275 Soma-se a isso as transformações advindas da abolição da escravidão e da imigração, trazendo impulsos para a ampliação do consumo de bens econômicos e, assim, o crescimento do mercado interno.276 Do ponto de vista econômico, a elevação do estatuto social do trabalhador determinará a ascensão paralela dos padrões materiais de grande massa demográfica, ou pelo menos perspectivas para essa ascensão. E ao mesmo tempo, como consequência, impulsiona o giro comercial e financeiro. Tudo isso contribui, como é facilmente compreensível, para a ativação da economia e do desenvolvimento do mercado interno. 277 Mas o sentido econômico profundo que teve a abolição, bem como os efeitos que dela decorreram, não se restringem à ampliação da demanda e seu estímulo à produção. O fim da escravidão, na verdade, representou a derrubada do principal obstáculo anteposto ao definitivo estabelecimento, à generalização e ao progresso das relações capitalistas de produção no Brasil. O fato é que, com substituição definitiva e integral do trabalho escravo pelo livre, achou-se presente no Brasil o conjunto dos elementos estruturais componentes do capitalismo. Esse sistema não representa, em última instância, mais que o termo final do processo de mercantilização dos bens e das relações econômicas, o que se completa precisamente quando este processo atinge e engloba a força de trabalho transformada em simples mercadoria que se compra e se vende. É isso justamente que se verifica no Brasil com a abolição, pois os demais elementos estruturais da economia brasileira já eram de início de natureza essencialmente mercantil. 278 Com tal mudança, segundo Caio Prado Júnior, os mecanismos capitalistas já incluídos potencialmente na estrutura eminentemente mercantil da produção cafeeira terão livre jogo. 275 Cf. HD, p. 83-91. 276 Cf. HD, p. 102 277 RB, p. 85. 278 RB, p. 95-6. 112 Não sendo mais imobilizados na aquisição de escravos, os capitais estariam liberados para a acumulação e rápida circulação.279 É interessante notar como o autor estabelece uma relação de quase equivalência entre natureza mercantil e natureza capitalista dos elementos estruturais da economia brasileira. O desenvolvimento do capitalismo dependeria, assim, do estabelecimento de relações mercantis nas instituições econômicas em seu conjunto e no fundamental, e não apenas nas relações jurídicas de trabalho – fator essencial de distinção entre economia feudal e capitalista, por exemplo. Assim, de tais circunstâncias deriva “o fato de o capitalismo encontrar no Brasil franqueado o terreno, no que se refere às relações de produção, logo que se aboliu o trabalho servil.”280 Pode-se dizer, portanto, que para Caio Prado Júnior o Brasil antes da abolição da escravidão não era propriamente capitalista porque a força de trabalho ainda não havia sido plenamente mercantilizada. Neste sentido, por um lado, a diferença entre a subsunção real e a subsunção formal do trabalho ao capital é minimizada pelo autor, uma vez que os elementos mercantis da economia colonial brasileira já incluíam em si mecanismos potencialmente capitalistas. Por outro lado, porém, esta diferença é enfatizada na medida em que reconhece na abolição da escravidão um elemento fundamental para que o desenvolvimento do capitalismo se processasse. Com isso, ao mesmo tempo em que a abolição representa grande mudança é também fator que não impede a permanência e o reforçamento de características já presentes no período anterior: transformação sem ruptura. Tratava-se em suma, no caso do Brasil, de uma economia e sociedade já estruturadas e inteiramente condicionadas para a realização de objetivos mercantis idênticos àqueles que a nova ordem capitalista iria delas exigir. Daí a sua predisposição para se integrarem naquela ordem sem atritos e sem necessidade de rompimentos ou remanejamentos de instituições econômicas e sociais mais ou menos inajustáveis à nova ordem, como ocorreu naqueles citados países da Ásia e África. (...) Aqui não somente não houve resistência, mas ainda os impulsos e estímulos partidos de ambas as esferas, a externa, que é o sistema, e a interna que são as condições específicas do Brasil, se somam harmonicamente, ou antes, se integram em conjunto para impelirem o crescimento da função exportadora, em 279 280 Cf. RB, p. 96. RB, p. 96. “A abolição da escravidão, como vimos, trará o último complemento a essa consolidação das relações capitalistas de produção que se difundem assim uniformemente por toda a economia brasileira, conservando, embora em muitos casos e lugares, acentuados traços escravistas. Mas traços apenas, tivemos ocasião de notá-lo, que não somente não desnaturam o tipo de relações econômicas, como ainda, longe de porem obstáculo ao desenvolvimento capitalista, que tem como principal motor a acumulação de capital, pelo contrário, favorece essa acumulação e, pois, aquele desenvolvimento.” RB, p. 115. 113 consequência as forças produtivas e a economia em geral do país assentes naquela função. 281 Portanto, ainda que se verifique o desenvolvimento das forças produtivas e o crescimento econômico, ao fim e ao cabo, no desenvolvimento histórico do Brasil prevalece a continuidade em detrimento da mudança. Efetivamente a história brasileira apresenta, no curso de seu desenvolvimento, desde os primórdios até os nossos dias, acentuada continuidade. Não ocorre nela nenhuma solução apreciável dessa continuidade, e o caráter e sentido desta coletividade que constitui o Brasil tal como ele ainda se apresenta no essencial e fundamental, se marcou (...) desde os primeiros passos da colonização. 282 Aqui retomamos aquela contradição a que nos referimos anteriormente, na qual os mesmos elementos que estimulam a mudança qualitativa do país lhes servem de empecilho. Isto porque a própria industria, que representa a abertura para um novo sistema econômico, depende da função exportadora para lhe proporcionar os capitais necessários aos investimentos. Ademais, fortemente constituída pelos empreendimentos do capital estrangeiro, é com os recursos financeiros auferidos pela exportação de produtos primários que são devidamente remuneradas a participação da empresas internacionais no processo de industrialização brasileiro. Reforçam-se, assim, tanto sua dependência externa quanto sua estrutura produtiva interna voltada ao fornecimento de gêneros primários. Por isso, na conjuntura da economia brasileira nos anos 1960, de acordo com Caio Prado Júnior, se insinuam contradições que se configuram principalmente na permanência de um sistema que, embora anacrônico e obsoleto, persiste e impõe obstáculos ao desenvolvimento. Afinal, as mesmas circunstâncias que impulsionam sua substituição por um novo sistema se apresentam também como impedimento para esta mesma renovação. 283 Originalidade e ambiguidade são, muito provavelmente, as características mais marcantes da interpretação de Caio Prado Júnior a respeito do desenvolvimento histórico brasileiro. E foi justamente o sentido da colonização, como categoria de análise, que lhe proporcionou a condição de autor ao mesmo tempo original e ambíguo. Afinal, se ela lhe permitiu compreender a formação brasileira em sua totalidade ao inserir seu desenvolvimento histórico nos quadros do capitalismo mundial e, com isso, identificar os fortes elementos internos e externos de continuidade no tempo e no espaço, em certa medida ela também, por 281 HD, p. 93-4. 282 HD, p. 33-4. 283 Cf. HD, p. 141-2. 114 conseguinte, o levou a subestimar as mudanças pelas quais a formação econômico-social do Brasil passou. Como nos indica Rubem Murilo Leão Rego, Caio Prado Júnior identificou agudamente a especificidade brasileira, que “constituiu justamente na ausência de processos de ruptura com as formas econômicas e sociais básicas” e se traduziu na “eternização de elementos de atraso e de traços nunca inteiramente superados”. Assim, esta “ideia de permanência dos traços coloniais pode ter induzido, em Caio Prado, a uma certa subestimação da mudança no movimento histórico da experiência brasileira.”284 Dois fatores teriam contribuído para isso: A subestimação encontra-se no fato de não ter precisamente reconhecido as consequências do engendramento, internamente à sociedade brasileira, do processo endógeno de acumulação de capital que, assentado historicamente no dinamismo do complexo agroexportador cafeeiro, instaurou um novo padrão à conformação do capitalismo brasileiro. Por outro lado, também no fato de não ter inteiramente superado a compreensão de que a força da ação imperialista do capitalismo internacionalizado impunha uma absoluta impossibilidade de autodefinição dos rumos de nosso desenvolvimento. Em ambos os aspectos, é como não se desse conta de todos os contornos e implicações dos novos momentos da acumulação capitalista no Brasil. 285 A estes fatores poderíamos acrescentar a ênfase dada à esfera da circulação. Se neste nível é realmente a continuidade que mais se destaca, a análise pormenorizada e de conjunto da formação econômico-social brasileira de meados do século XX, no qual as relações de produção tem grande relevância, revelariam traços importantes de mudança, ainda que tenham se processado gradual e lentamente, sem rupturas. 284 RÊGO, Rubem Murilo Leão. Sentimento do Brasil: Caio Prado Júnior – continuidades e mudanças no desenvolvimento da sociedade brasileira. Campinas: Editora da Unicamp, 2000, p. 223-4. 285 Ibidem, p. 224. 115 16. O desenvolvimento como tema Conhecemos minimamente o encadeamento dos fatos que levaram Caio Prado Júnior a escrever uma tese para o concurso de professor da USP em 1968. Pouco se sabe, porém, porque escolheu o desenvolvimento como tema. Para compreender a questão, ainda que possa contribuir para a construção de um quadro amplo, não consideramos suficiente analisar o contexto geral do pensamento econômico nacional e internacional nos anos 1960 ou as formulações dos desenvolvimentistas brasileiros, que visavam atualizar suas interpretações e propostas para lidar com a nova conjuntura instaurada com a crise econômica de 1962 e o golpe militar. Caio Prado era um intelectual que acompanhava os mais recentes debates historiográficos, econômicos e filosóficos, era assinante de diversos jornais e revistas científicas nacionais e internacionais. E como nos atesta a própria tese que escreveu, tinha conhecimento sobre as teorias econômicas de seu tempo. Mas se isso indica que estava inteirado das discussões dos anos 1960 sobre o desenvolvimento, não necessariamente explica sua escolha como tema de tese. Neste sentido, para tentar compreender a questão analisaremos um elemento mais pontual e circunscrito, mas nem por isso menos importante: a Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade de São Paulo – FCEA/USP. Criada pelo Decreto-lei Estadual nº 15.60, de 26/01/1946, teve sua denominação alterada em 1969 para Faculdade de Economia e Administração – FEA. Em sua primeira década de funcionamento, os cursos de graduação em Economia nas recém-criada unidade da USP acabou evidenciando uma forte influência humanista no seu ensino. Possivelmente, isto se deu um função da origem de seus primeiros professores: a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (com forte presença de economistas franceses); Faculdade de Ciências Econômicas de São Paulo; Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado; Escola Técnica do Instituto Mackenzie; Escola Livre de Sociologia e Política. Os professores pioneiros do período da implantação da Faculdade não eram economistas, mas contribuíram muito ao pensamento econômico brasileiro, com especial menção aos franceses Paulo Hugon, Françoise Perroux e à Alice Piffer Canabrava, licenciada em Geografia e História, primeira catedrática da FCEA/USP. Além desse caráter humanista, o ensino na Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas manteve igualmente um matiz especulativo e institucional de 116 complementação cultural típica dos cursos de Economia nas Faculdades de Direito, Ciências Sociais e Engenharia. 286 Observando essa característica da formação dos economistas, alguns docentes buscaram, com êxito, efetivar algumas mudanças curriculares com o objetivo de contemplar paulatinamente disciplinas capazes de municiarem os alunos com o instrumental matemático e estatístico necessário à construção de modelos de análise dos problemas micro e macroeconômicos. Com isso, os alunos da FCEA passaram a ter uma postura cada vez mais diferente daquela dos alunos de Ciências Sociais que priorizaram os debates em Economia para poderem entender a realidade nacional sob uma ótica mais política. Além dessas mudanças instituídas ainda pelos primeiros professores, novas transformações ocorreram no ensino de economia quando passaram a fazer parte do quadro docente muitos ex-alunos graduados pela instituição no início dos anos de 1960. Com a reestruturação didática, administrativa e de conteúdo programático que ajudaram a promover, consolidou-se definitivamente o deslocamento do eixo do ensino de Economia das Faculdades de Direito, FFCL e Engenharia para os cursos específicos da FCEA, na qual se valorizava a Econometria – um híbrido de matemática, de estatística e de teoria econômica – e disciplinas afins de caráter obrigatório. A formulação da teoria econômica passou a se fundamentar em linguagem matemática, realização de testes com dados empíricos e demais recursos voltados a cálculos de probabilidade. 287 Iniciou-se, também, uma ebulição metodológica ligada a uma concepção de economia que não mais se contentava em interpretar o mundo econômico, mas que desejava transformá-lo e, para tanto, deveria dispor de complexo instrumental analítico, especialmente matemático e estatístico. Então, a FCEA passou a se reestruturar em torno da Teoria Econômica como área fundamental dos cursos de economia, predominando a concepção de estudos teóricos voltados para a ação, ou seja, para explicar, compreender e prever a atividade econômica e, principalmente, agir no mundo real. 288 Nesta análise, percebe-se uma nítida alusão à décima primeira das teses de Marx sobre Feuerbach, que citamos anteriormente. Contudo, como veremos mais adiante, Caio Prado Júnior polemizou justamente com a maneira pela qual, no Brasil e na FCEA em particular, se 286 Cf. GARÓFALO, Gilson Lima; RIZZIERI, Juarez Alexandre Baldini. O Departamento de Economia da FEA/USP e o pensamento econômico brasileiro. In: SZMRECSÁNYI, Tamás; COELHO, Francisco da Silva. São Paulo: Atlas, 2007, p. 179-88. 287 288 Cf. Ibidem, p. 179-88. PINHO, Diva Benevides. Economia política e a história das doutrinas econômicas. Estudos Avançados, São Paulo, v. 8, n. 22, set.-dez., 1994, p. 327. 117 formularam as teorias do desenvolvimento que deveriam orientar a prática da gestão econômica, na qual o referido “mundo real” seria objeto de intervenção, mas não servia como substrato para a formulação da própria teoria. Neste sentido, podemos dizer, a FCEA se aproximaria mais da economia política clássica, que não se furtava a “agir no mundo real”, que da crítica da economia política, que tinha como pressuposto não apenas a transformação da realidade como horizonte para o pensamento, mas a concepção de que teoria e ação devem se orientar pela práxis, sem o que a discussão sobre a realidade ou irrealidade do pensamento seria puramente escolástica. Contudo, isso não impediu a Faculdade de se tornar um centro de demanda de economistas para trabalharem em assessorias governamentais. Pelo contrário, a nova orientação metodológica serviu de estímulo para isso. Ao longo dos anos 1960, professores novos e antigos passaram a formar equipes de trabalho que contribuíram na viabilização das experiências de planejamento econômico nacional e regional e na orientação de políticas econômicas nos níveis municipais, estaduais e federal. Exemplos disso são, no período posterior a 1964, o PLADI – Plano de Desenvolvimento Integrado, do governo Adhemar de Barros (1964-1966); o PAEG – Programa de Ação Econômica do Governo (1964-1966), do Governo Castello Branco; o PED – Programa Estratégico de Desenvolvimento (1968 a 1970), do período presidencial de Costa e Silva; e o I PND – Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (1972 a 1974), do Governo Médici. A FCEA (depois nomeada FEA), chegou aos anos 1970 com diversos docentes ocupando posições de destaque nas esferas executivas governamentais federal, estaduais (não apenas de São Paulo) e da capital paulista, manifestando-se a influência da nova orientação da Escola no pensamento econômico brasileiro. Com as transformações ocorridas nos anos 1960, cada vez mais os egressos da Faculdade que apresentavam formação técnica e profissional condizente com a nova orientação passaram a ser requisitados por órgãos governamentais nas três esferas da federação, empresas públicas e privadas, bem como outras instituições de ensino superior de economia no país. 289 O representante mais característico deste fenômeno é Antônio Delfim Netto, primeiro ex-aluno (formado em 1951) a ocupar uma cátedra da FEA/USP. Além de contribuir para as alterações na estrutura curricular de economia da Faculdade, liderou o grupo que participou 289 Cf. Ibidem; GARÓFALO & RIZZIERI, O Departamento de Economia da FEA/USP e o pensamento econômico brasileiro, p. 179-88. 118 ativamente da formação da Associação Nacional de Programação Econômica e Social – ANPES, que publicou seu primeiro estudo em 1965, Alguns aspectos da inflação brasileira, escrito por Delfim Netto, Affonso Celso Pastore, Eduardo Pereira de Carvalho e Pedro Cipollari, todos docentes da FCEA/USP. O trabalho contraria o argumento do pensamento cepalino de deterioração dos preços relativos de troca, atribuindo ao déficit público e seu respectivo financiamento monetário a origem do processo inflacionário, e não a causas estruturais. Além da produção acadêmica e atuação docente, Delfim Netto assumiu a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, foi Ministro da Agricultura, da Fazenda e do Planejamento nos governos militares, em baixados brasileiro na França e deputado federal por várias legislaturas. Sua influência, contudo, não se restringe à sua intervenção individual nos debates econômicos. Alguns alunos descontentes com as disciplinas prevalecentes na estrutura curricular anterior tiveram aulas com Delfim Netto em um curso ministrado em separado formaram um grupo que ficou conhecido como os Delfim’s boys. Muitos de seus integrantes auxiliaram o professor na Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo a partir de 1966 e ocuparam cargos públicos importantes da esfera governamental. 290 Interessante notar, ademais, que entre os professores denunciados no relatório da comissão montada para averiguar atividades “subversivas” na USP, em 1964, dos 44 apontados, apenas três eram da FCEA: Mário Wagner Vieira da Cunha, Paulo Israel Singer e Lenina Pomeranz. A maioria dos indicados eram da FFCL e da Faculdade de Medicina. Entre os professores aposentados compulsoriamente pelo decreto de 1969, Paulo Singer era praticamente o único da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas. 291 Neste sentido, a julgar pela projeção dos quadros formados na FCEA/USP nas instituições governamentais no período ditatorial, pela orientação curricular que passava a ser implementada e pela escassa presença de economistas progressistas e de esquerda, as forças conservadoras exerciam hegemonia no departamento. Foi nesse contexto de crescente afastamento das teorias econômicas do pensamento humanístico no âmbito da FCEA e de forte hegemonia do conservadorismo, expresso na colaboração com os planos e programas econômicos dos governos militares, que Caio Prado Júnior foi escolhido – provavelmente sem unanimidade, porém – como paraninfo da turma de formandos de 1967. Sua notoriedade no período atingiu tamanha repercussão que foi capaz de 290 Cf. GARÓFALO & RIZZIERI, O Departamento de Economia da FEA/USP e o pensamento econômico brasileiro, p. 179-88. 291 Cf. ADUSP, p. 45-59 119 romper a influência do anticomunismo entre os alunos da Faculdade. Seu discurso, datado de 7 de março de 1968, foi ouvido pelos jovens economistas da turma. Entre os formandos, estavam Roberto Brás Matos Macedo, que viria a ser articulista de vários periódicos, consultor internacional, secretário especial de política econômica do Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento na gestão de Marcílio Marques Moreira; Denisard Cneio de Oliveira Alves, ligado à área de econometria, se tornaria secretário de Finanças da Prefeitura do Município de São Paulo e diretor do Banco do Estado de São Paulo; Celso Luiz Martone, se tornaria especialista em economia monetária, análise conjuntural e sistemas econômicos, e vice diretor da FEARP/USP; e João Sayad, que seria ministro de Economia e Planejamento, secretário da Fazenda do Governo do Estado de São Paulo, diretor do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e secretário de Cultura do Governo do Estado de São Paulo. 292 Como se pode notar pelo tom de seu discurso, Caio Prado Júnior não estava alheio ao momento vivido pela FCEA, que vinha formando economistas que atuariam em postos de destaque na orientação da política econômica do Estado em diversos níveis: Assim sendo, e por se tratar de economistas e de homens que se destinam a gerir os órgãos propulsores da economia brasileira, penso que nada é mais indicado como tema, ou pelo menos como ponto de partida desta nossa palestra, que aquilo que se encontra, nos dias de hoje, presente no espírito de todos nós, e que tão direta e indiretamente diz respeito à nossa sorte individual e de brasileiros. E que, além de tudo é algo em que a responsabilidade de vocês, na profissão e atividade que escolheram, se mostra diretamente envolvida. Refiro-me à questão do “desenvolvimento”. 293 É, pois, visível que, de modo semelhante à crítica que fez aos tecnocratas “encerrados em seus gabinetes ministeriais e Escolas privilegiadas” ao receber o Troféu Juca Pato, seu discurso de paraninfo e sua tese para o concurso do Departamento de História significavam também um confronto direto com a orientação curricular que passava a vigorar nos cursos de economia da FCEA: A economia política que ordinariamente se estuda e apreende entre nós, é em grande parte, infelizmente, um simples decalque do que se elaborou em outros lugares e na perspectivas de situações bem distintas daquelas em que nos encontramos. Não é possível, e chega às vezes até grotesco, considerar e analisar o nosso país à luz de noções e modelos que pressupõem e postulam um certo modo 292 Cf. GARÓFALO & RIZZIERI, O Departamento de Economia da FEA/USP e o pensamento econômico brasileiro, p. 179-88. 293 Discurso de paraninfo da turma de 1967 dos alunos da FCEA, de 7 de março de 1968 (Código CPJ-CA012, AIEB) 120 de ser e um comportamento coletivo que se encontram em países cujo passado e sobretudo o presente se distinguem profundamente do Brasil. 294 Em seu discurso à turma de formandos de 1967 da FCEA/USP, Caio Prado Jr. antecipou e sintetizou boa parte da tese central do texto com qual concorreria à cadeira de História do Brasil no ano seguinte. Tendo em vista que “são graves e profundos os vícios da economia brasileira”, cujas raízes são “profundas e longínquas” e remontam às “próprias origens da formação histórica do Brasil”, a solução da questão do desenvolvimento brasileiro exige “acomodar” os “conhecimentos adquiridos em fontes estranhas às coisas próprias do Brasil” às questões “que são particulares do nosso país e das situações que nele se encontram”. 295 Sendo Caio Prado um sujeito voltado à ação política, ocupar a cadeira de História da Civilização Brasileira significaria contribuir para que o Departamento de História da USP representasse na prática um foco de resistência ao crescente predomínio da econometria, do quantitativismo e da linguagem matemática abstrata diante da questão do desenvolvimento econômico. Neste sentido, ao defender no concurso a ideia de que “o desenvolvimento e crescimento econômico constituem tema essencialmente histórico”, não devendo, portanto “ser incluído em modelos analíticos de alto nível de abstração”, mas, pelo contrário, “ser tratado na base da especificidade própria e das peculiaridades de cada país ou povo a ser considerado” 296 , o autor buscava não apenas realizar um contraponto teórico com a corrente da economia política que vinha ganhando espaço na FCEA. Havia uma dimensão prática e política em sua tese, sintetizada nas últimas linhas do livro, segundo a qual o “equacionamento do problema do desenvolvimento brasileiro (...) resulta e somente pode resultar de uma apreciação do processo histórico que é onde a questão do desenvolvimento se propõe”. Mas tal apreciação envolvia análises tanto da longa duração quanto do tempo presente, uma vez que, segundo o autor, seria na base das circunstâncias da “atual conjuntura econômica em que se encontra o país” que se faria possível “formular as premissas necessárias para o equacionamento do problema”. 297 294 Ibidem. 295 Ibidem. 296 HD, p. 15-6 297 HD, p. 142. 121 17. Lições do “livro da vida” Em seu discurso de agradecimento ao troféu Juca Pato, Caio Prado Júnior parabeniza o princípio que orienta a homenagem concedida aos laureados pela premiação que então recebia, discorrendo sobre as características que julgava essenciais aos intelectuais: Refiro-me ao intelectual atuante, ao homem de pensamento que não se encerra em torre de marfim, e daí contempla sobranceiro o mundo. E sim daquele que procura colocar o seu pensamento a serviço da coletividade em que vive e da qual efetivamente participa. E é justo o critério que norteia a concessão do prêmio Juca Pato, pois é sobretudo de homens de pensamento, que sejam também homens de ação, que o Brasil necessita. E necessita hoje mais que nunca, neste momento que vivemos (...). 298 Caio Prado trata da relação entre pensamento e ação, entre teoria e prática, elemento fundamental de sua obra e de sua própria trajetória. Este trecho de seu discurso – assim como do último que proferiu na Assembleia Legislativa de São Paulo quando teve seu mandato de deputado cassado e afirmou que “É por ação que os homens se definem” 299 – assemelha-se a outros pronunciamentos que fez na condição de paraninfo em formaturas. No discurso que enviou para ser lido na formatura da turma de 1967 do Curso de Sociologia e Política da UPE, Caio Prado Júnior explicava que sua trajetória intelectual foi sempre marcada pela preocupação em orientar-se pela realidade concreta tanto para a formulação de seu pensamento quanto para a ação política: A escolha de meu nome para paraninfo (...) é testemunho, para mim altamente precioso que minha já longa carreira de escritor dedicado às causas de nosso Brasil e de seu povo, encontrou ressonância na mocidade de meu país. E que o caminho por mim escolhido desde meus primeiros passos na vida intelectual, merece a aprovação de uma parcela altamente representativa da nossa nacionalidade. Qual caminho foi esse, caminho no qual persisto e pretendo seguir até o último momento? É centralmente e essencialmente o de buscar na realidade brasileira tal como ela se apresenta, com toda naturalidade e sem os artifícios de esquemas teóricos sobrepostos, toda a inspiração para o pensamento e ação. 300 298 Ibidem. 299 Discurso de Caio Prado Júnior na 139ª Sessão Ordinária, em 12 de janeiro de 1948. Anais da Assembléia Legislativa – 1 Sessão da 1 Legislatura – 1947, v. IX, p. 760. In: KAREPOVS, Dainis (coord.). Caio Prado Júnior: parlamentar paulista, p. 206. 300 Discurso de paraninfo da turma de 1967 do Curso de Sociologia e Política da UPE, de novembro de 1967 (CPJ-CA040, AIEB). 122 E não foi outro o sentido que deu aos últimos trechos de seu discurso de março de 1967 aos formandos da FCEA, no qual Caio Prado Júnior aconselha os estudantes a seguirem este caminho que orientou sua própria trajetória como intelectual e militante: Em suma, o que proponho é que este diploma que estão recebendo e que lhes abre as portas para a vida prática, não lhes sirva apenas para assegurar uma profissão, prosperidade material e bem estar doméstico e privado. Uma vida restrita ao círculo de tais ambições apenas, é para quem quer que tenha alguma elevação de espírito, uma frustração que se irá acentuando a medida que avançam os anos, e por maiores que sejam os sucessos alcançados. A ninguém se poderia desejar tão triste sorte. Vocês aliás pertencem a uma geração de estudantes que já se destacaram na vida política, e deram a medida de seu espírito público e consciência cívica. Estou seguro que deixando de estudar nos livros, para estudarem no grande livro da vida, vocês continuarão voltados para o ideal de um Brasil melhor, habitado por um povo mais feliz. 301 Em grande medida, é por ter estudado no “grande livro da vida” que foi capaz de formular teses de tanto impacto, repercussão e perenidade, tanto na historiografia como na cultura política e no pensamento econômico brasileiro. Isso indica que soube relacionar, talvez como nenhum outro intelectual de sua geração, a interpretação do mundo com base na análise do desenvolvimento histórico e a sua necessária transformação com base na análise das forças que atuam no devir histórico. O que nos remete a passagens de Karl Marx, muito difundidas depois da publicação póstuma das Teses sobre Feuerbach, com as quais o autor provavelmente teve contato: 302 A questão de atribuir ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas sim uma questão prática. É na práxis que o homem precisa provar a verdade, isto é, a realidade e a força, a terrenalidade do seu pensamento. A discussão sobre a realidade ou a irrealidade do pensamento – isolado da práxis – é 301 Discurso de paraninfo para a formatura da turma de 1967 dos alunos da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas (FCEA/USP), em 7 de março de 1967 (CPJ-CA012). 302 Lincoln Secco, Paulo Teixeira Iumatti e Paulo Henrique Martinez nos apresentam uma boa indicação das leituras de Caio Prado Júnior, sobretudo nos anos 1930 e 1940, listando as obras da literatura marxista que encomendava do exterior, os periódicos que assinava e uma descrição do ambiente literário e cultural marxista do período. Em nenhuma destes autores, porém, há informações sobre o contato de Caio Prado Júnior com as Teses. Segundo Jacob Gorender, elas vieram a público pela primeira vez como apêndice de Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, de Friedrich Engels, em 1888. Edgard Carone nos informa que esta obra de Engels teve sua primeira publicação no Brasil pela editora Unitas em 1932 – no mesmo ano em que, segundo Hobsbawm, foi lançada, no idioma original, a primeira edição de A ideologia alemã. Cf. SECCO, Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 34-5; IUMATTI, Caio Prado Jr.: uma trajetória intelectual, p. 81; MARTINEZ, A dinâmica de um pensamento crítico: Caio Prado Jr. (1928-1935), p. 82; GORENDER, Jacob. Introdução: o nascimento do materialismo histórico. In: MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. XX. CARONE, Edgard. O marxismo no Brasil: das origens a 1964. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986, p. 189; HOBSBAWM, Eric J. A fortuna das edições de Marx e Engels. In: HOBSBAWM, Eric J. (et. al.). História do marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979 (v. 1, O marxismo no tempo de Marx), p. 433-9. 123 puramente escolástica. (...) Os filósofos só interpretaram o mundo de diferentes maneiras; do que se trata é de transformá-lo. 303 Esta característica de Caio Prado Júnior é objeto de análise e discussão nas contribuições de autores que estudam o pensamento político de Caio Prado Júnior, como é o caso de Raimundo Santos e Claudinei Magno Magre Mendes. Para este último, nos textos do autor “história e política se entrelaçam de tal forma que tornam impossível ao pesquisador compreender uma sem levar em conta a outra”. Mas Mendes não se limita a registrar a relação de ambos os elementos e tenta estabelecer uma hierarquia entre eles: Mais do que isso, esses dois aspectos encontram-se mesclados de uma maneira que, à primeira vista, sua proposições políticas parecem derivar de sua interpretação da história do Brasil. No entanto, a correlação não ocorre nesta ordem: sua interpretação da história do Brasil constitui o resultado de seu modo particular de compreender a história que, por seu turno, encontra-se condicionado por sua posição política. Ou seja, ainda que se encontrem entrelaçados, é a posição do autor diante das questões de sua época que explica sua interpretação, e não o contrário.304 Para este intérprete, portanto, Caio Prado “elaborou sua interpretação da história do Brasil com a finalidade de fundamentar a proposta política pela qual sempre se bateu”, fazendo com que tratasse seu programa político de formação de uma economia nacional, voltada aos interesses internos, se fizesse “subordinando sua proposta à sua interpretação, fazendo com que a constituição de uma economia nacional não apareça como proposta política, mas, antes, como a tendência da história do Brasil”. Assim, a posição do autor na historiografia brasileira “não é suficiente para apreender a dimensão política de Caio Prado (...) pelo fato de sua crítica à historiografia ser explicada por sua posição política”, sendo esta, portanto, “uma faceta que se encontra subordinada à sua posição política”. Em síntese: “o historiador encontra-se subordinado ao político, se é que podemos fazer esta distinção”. 305 Interessante notar que Mendes permite um questionamento sobre a possibilidade de distinguir o historiador do político, mas não faz o mesmo em relação à distinção entre historiografia e política, que são apresentadas não apenas como elementos distintos, mas principalmente relacionados um ao outro de maneira hierarquicamente subordinada. Ou seja, ao invés de buscar a compreensão do pensamento caiopradiano em sua totalidade dialética, na qual diferentes elementos constituem uma unidade em constante processo de negação e 303 MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã, p. 99-103. 304 MENDES, Claudinei Magno Magre. Política e história em Caio Prado Júnior. São Luís: UEMA, 2008, p. 23. 305 Idem, p. 24, 30 e 37 (grifos nossos). 124 afirmação, de colaboração e conflito, prefere elevar a ideologia a uma condição suprema que praticamente anula as dimensões científica, teórica e metodológica da obra do autor. De nossa parte, consideramos que a relação de Caio Prado Júnior com a realidade concreta não se limita nem se subordina a uma leitura ideológica do “livro da vida”, mas da incorporação de um método eficaz na tarefa de extrair dele o material necessário para a elaboração teórica capaz de orientar rigorosamente ação política. Portanto, entre uma interpretação isenta do desenvolvimento histórico que subsidia sua ação política, por um lado, e uma orientação político-ideológica que subordina a concepção teórico-metodológica que orienta sua escrita da história, por outro, consideramos que o autor opta por um caminho peculiar que não se enquadra em nenhum destes modelos. Nem a ciência subordina a política, nem a política subordina a ciência: Caio Prado Júnior, sem deixar de ser um sujeito de seu próprio tempo, deu um passo significativo tanto na tradução ou nacionalização do marxismo no Brasil como no estreitamento dos laços entre a história que se pensa e história que se faz. Neste sentido, se é verdade que a “amputação do espírito” e a “mutilação continuada e sistemática das fontes vivas da inspiração” pelas quais Caio Prado Júnior passou ao longo de sua trajetória funcionaram como um obstáculo para sua produção intelectual, é preciso reconhecer que foram suas experiências de vida como “homem de ação” – muitas delas dramáticas, amargas, duras e violentas – que lhe permitiram ter uma demonstração objetiva do “livro da vida”, cujas linhas são escritas com uma tinta composta por grandes proporções de suor e sangue. 125 CONSIDERAÇÕES FINAIS Caio Prado Júnior manteve sua produção intelectual por cinco décadas. Ao longo deste período, pensamento e ação caminharam lado a lado. Já no Primeiro Congresso Brasileiro dos Estudantes de Direito, realizado em Belo Horizonte em setembro de 1926, aos 19 anos, demonstrou conhecimentos de economia ao defender em plenário a quebra do padrão monetário e a fixação do câmbio, posição que foi adotada por unanimidade.306 Em fins de 1983, com 76 anos, apareceu em público ao lado de Maria Cecília Naclério Homem, Florestan Fernandes e Carlito Maia para apoiar as manifestações no primeiro ato de lançamento da campanha das “Diretas Já”, diante do Estádio do Pacaembu, em São Paulo.307 Neste intervalo preocupou-se sobretudo com os rumos do Brasil, colocando a serviço da ação política consciente seus conhecimentos nos diversos campos do saber. Na diversidade de questões que tratou, o desenvolvimento mereceu atenção particular, recebendo análises sob diferentes aspectos: econômico, histórico, filosófico, político, sociológico. Como não era afeito a categorizações definitivas e enrijecidas, buscava nos processos particulares que se desenrolavam no tempo e no espaço o material necessário para compreender a realidade e sistematizar o conhecimento. Seus conceitos, por isso, raramente são encontrados em formulações sintéticas em suas obras, o que lhe valeu críticas e elogios. Estudar um aspecto conceitual de seu pensamento, portanto, é tarefa que exige cuidado. Ainda mais quando se trata de seu conceito de desenvolvimento, posto que, além da mediação entre a experiência concretamente vivida e o pensamento processado com certo nível de abstração, envolve também a íntima interação entre historiografia e economia política. Assim, a noção que Caio Prado Júnior tem da práxis revolucionária, por um lado, exerce influência decisiva de sua trajetória política e intelectual. Portanto, compreender os percursos que percorreu entre 1964 e 1968 contribuiu decisivamente não para situar o autor no contexto de seu tempo histórico, o que seria demasiado estático, mas para elucidar a dinâmica, o processo, o devir das relações de concordância e divergência, de aproximação e afastamento, de negação e afirmação que estabeleceu com seus contemporâneos. Desenvolvimento, então, deixa de ser um conceito a ser analisado em sua dimensão de abstração do pensamento e 306 307 Cf. MARTINEZ, Paulo Henrique. A dinâmica de um pensamento crítico: Caio Prado Jr. (1928-1935), p. 53. Cf. SECCO, Lincoln. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 126; KAREPOVS, Dainis (coord.). Caio Prado Júnior: parlamentar paulista, p. 243. 126 passa a ganhar forma concreta na medida em que participa dos embates políticos e sociais que definiam os rumos do mundo objetivamente. Caio Prado Júnior, pois, participou ativamente da própria história do conceito de desenvolvimento. Por outro lado, sua noção de totalidade lhe permitiu evitar a armadilha de abordar o problema do desenvolvimento a partir de sua faceta puramente econômica ao inseri-lo no processo histórico em sua complexidade. Mas não o fazendo mecanicamente, evitou tanto o economicismo vulgar que exclui a ação humana da história quanto o idealismo voluntarista que negligencia ou subestima as condições objetivas e subjetivas. O desenvolvimento econômico seria, portanto, parte do desenvolvimento histórico e ambos se explicariam na medida em que fossem paulatinamente compreendidos como um mesmo processo em sua totalidade. Obviamente, como qualquer conhecimento produzido pela mente humana, permanecem lacunas na representação da realidade como um todo. Contudo, ao buscar refletir sobre as múltiplas relações entre variados processos interdependentes, mesmo que não tenha conseguido comprovar algumas de suas teses ou se equivocado em outras, lançou-se ao desafio de compreender a formação histórica do Brasil e, com isso, lançou um desafio aos demais que tentaram e tentam prosseguir a mesma empreitada. Por fim, não pretendemos aqui recapitular as hipóteses que levantamos e as ideias que defendemos ao longo de nosso trabalho. Preferimos um breve comentário sobre a escolha do período que analisamos (1964-1968), pois, a nosso ver, ela foi decisiva para os resultados obtidos. Neste sentido, vale apenas ressaltar que nosso posto de observação tem ao menos uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem é que sendo um momento crítico da história brasileira, no qual se redefinem paradigmas tanto na esquerda brasileira quanto na intelectualidade que pensava o desenvolvimento brasileiro, Caio Prado Júnior teve a oportunidade de sistematizar o conjunto de teses que formulou ao longo de toda sua obra precedente. Isto tornou possível apreender dimensões amplas e complexas de seu pensamento a partir de um conjunto relativamente reduzido de fontes. A desvantagem decorre, paradoxalmente, das próprias circunstâncias que nos trouxeram uma relativa vantagem. Ou seja, como neste curto período Caio Prado elaborou uma síntese de sua interpretação da formação e evolução histórica brasileira, não dispusemos do conjunto de elementos que lhe permitiu formular, no período precedente, sua concepção de desenvolvimento. Assim, ficamos sem condições de saber se há continuidades ou descontinuidades em seu pensamento nesta questão em particular depois do conturbado e de intenso debate que se instaurou a partir de 1964. 127 Um estudo detalhado de sua produção historiográfica dos anos 1930 e 1940, de suas obras de economia e filosofia nos anos 1950, bem como de seus textos produzidos em forma de artigo com vistas ao debate político, certamente contribuiriam para aprofundar nossos conhecimentos sobre o conceito de desenvolvimento presente no conjunto de sua obra e, assim, contribuir para compreender as tensões existentes entre historiografia e economia política no pensamento de Caio Prado Júnior. BIBLIOGRAFIA E FONTES Referências bibliográficas ASSOCIAÇÃO dos docentes da USP. O controle ideológico na USP (1964-1978). São Paulo: Adusp, 2004. BARROS, Cesar Mangolim. Desenvolvimento e revolução no pensamento de Caio Prado Júinor. Ipech Digital, n. 1, 2007. BIELSCHOWSKY, Ricardo. 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São Paulo, Adusp, 2004, p. 18-9. 133 ANEXOS Discurso de paraninfo para a formatura da turma de 1967 dos alunos da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas (FCEA/USP), em 7 de março de 1967 Muito lhes agradeço a honrosa indicação de meu nome para Paraninfo. Bem sei que assumo, com esta incumbência, uma grande responsabilidade, pois deste nosso encontro, embora tão breve, não é apenas um formal discurso de saudação que vocês tem o direito de esperar. E sim algo mais que vocês possam levar daqui, e que lhes sirva de estímulo na vida profissional, e sobretudo na vida prática e de cidadãos que vocês vão encetar. Não sei se alcançarei esse objetivo, mas esforcei-me por dar o melhor de mim para lhes oferecer pelo menos uma perspectiva. Assim sendo, e sobretudo por se tratar de economistas e de homens que se destinam a gerir os órgãos propulsores da economia brasileira, penso que nada é mais indicado como tema, ou pelo menos como ponto de partida desta nossa palestra, que aquilo que se encontra, nos dias de hoje, presente no espírito de todos nós, e que tão direta e intimamente diz respeito à nossa sorte individual e de brasileiros. E que, além de tudo, é algo em que a responsabilidade de vocês, na profissão e atividade que escolheram, se mostra tão diretamente envolvida. Refiro-me à questão do “desenvolvimento”. Antes de entrarmos na matéria, não seria descabido precisar um pouco esse conceito de “desenvolvimento”, que pode dar e efetivamente tem dado margem a não poucos mal entendidos. Que se entende por “desenvolvimento”? Com frequência, o que se vê compreendido no conceito é tão somente o crescimento quantitativo que se exprime nas estatísticas da renda nacional do país, seja global ou per capita; ou nos dados relativos à produção, movimento comercial, giro financeiro etc. Mas tudo isso, e o mais da mesma natureza, por importante e expressivo que seja, informa, por si apenas, muito pouco relativamente à verdadeira situação do país e de seus habitantes; diz muito pouco de seus reais padrões de vida e dos bem estar que usufruem. Por exemplo, o índice mais importante e decisivo com que se costuma medir desenvolvimento, é, como se sabe, a renda per capita. Mas a renda per capita exprime apenas uma média aritmética, e quase nada nos diz acerca da situação particular dos indivíduos que entram nos cálculos, e mesmo, eventualmente, da massa da população. E é isto, me parece, que verdadeiramente importa, e que o índice de renda per capita não revela. Um país de grandes riquezas concentradas nas categorias da população de elevado nível financeiro, e onde a massa da população é miserável, pode apresentar uma renda per capita relativamente elevada. Mas não seria justo, parece-me, concluir daí que se trata de um país desenvolvido. Tanto mais pode ocorrer, como de fato ocorre em muitos lugares, que parcelas importantes da renda computada nas estatísticas, se escoa 134 para o exterior e vai dar nas mãos, ou antes nos bolsos dos capitalistas ou empresas estrangeiras que operam no país. É o caso, entre outros, e bem próximo de nós, da Venezuela, que embora seja um país mais ou menos da nossa categoria, senão pior, e onde a massa da população tem padrões de vida tão miseráveis como no Brasil, a Venezuela, graças à produção do petróleo cujos proventos favorecem sobretudo os grandes trusts internacionais que o dominam o negócio, apresenta uma renda per capita que se aproxima da de países já razoavelmente desenvolvidos. Mas seja como for, índices puramente quantitativos, e sobretudo quando exprimem apenas fluxos monetários cujos meandros as estatísticas não revelam, nem podem revelar, dizem muito pouco acerca da realidade social de uma coletividade. E em todo caso, são de valor que podemos reputar secundário e simplesmente subsidiário, quando se trata de indagar da maneira como promover o progresso e bem estar geral de uma população. Isto diz respeito, especialmente, a países como o Brasil, onde os extremos que se observam, entre larga e ilusória abundância, de um lado, e de outro, uma grande, uma imensa maioria que sofre privações agudas das mais elementares necessidades vitais; e onde, a par de índices os mais salientes, e direi mesmo escandalosos de luxo e modernidade, se observa, e infelizmente na maior parte dos aspectos de nosso país, um primitivismo de estarrecer; em países assim, a questão do desenvolvimento toma um sentido bem diferente daquele que se encontra nos textos ordinários da literatura econômica ortodoxa e nas análises financeiras de rotina. O problema assume outras dimensões e natureza qualitativa diferente; e não pode ser equacionado unicamente em termos de forças e estímulos presentes e já naturalmente atuantes. Muito mais que de simples impulsos de ordem financeira, do ajustamento de desequilíbrios ocasionais, aquilo de que o Brasil necessita, são novos rumos que signifiquem a reconstrução de nossa economia e sociedade sobre novas bases e em novos moldes que não os atuais, e que efetivamente contribuam para assegurar à generalidade e conjunto da população brasileira, pelo menos e para começar, condições simplesmente humanas de vida que ainda não existem para uma grande maioria. É esta a condição indispensável e tarefa preliminar para fazer do Brasil, num futuro previsível, um país moderno, de fato integrado nos padrões materiais e culturais do mundo de nossos dias. Não é evidentemente possível construir, e nem mesmo iniciar a construção de uma nação moderna e digna desse nome, sobre os fundamentos de uma população constituída, em grande parte, de desnutridos, doentes e analfabetos que vegetam, mais que vivem, em níveis que a Humanidade realmente civilizada já há muito não conhece mais. Ora, a superação desse estado de coisas, que todos quantos verdadeiramente conhecem a realidade brasileira não põem em dúvida, não é certamente possível com o concurso unicamente das mesmas forças econômicas e impulsos que vêm atuando, e que, considerados de perto e atentamente, se têm mostrado e continuam mostrando incapazes, na conjuntura atual da vida brasileira, de efetivamente promoverem as transformações em profundidade que se fazem imperativas. 135 Destaquemos entre aquelas forças e impulsos, em primeiro e principal lugar, pela importância no atual sistema econômico em que vivemos, destaquemos a chamada livre iniciativa privada e as forças espontâneas do mercado. A análise atenta deste nosso mercado interno nos mostra como ele é defeituoso na perspectiva do desenvolvimento. E da forma como ele se apresenta, por efeito de sua constituição e estrutura, ele é incapaz de oferecer à livre iniciativa privada, os estímulos necessários a uma produção e atividade econômica de vulto e em moldes modernos, de alto nível e com larga projeção futura. A isto se opõe a própria composição do mercado interno do país, e a natureza da demanda solvável que nele se apresenta. Demanda solvável esta, de uma parte, de uma pequena faixa de consumidores efetivos e de poder aquisitivo ponderável; e constituída, de outra parte, da grande massa da população que vive nos limites da subsistência biológica; e mesmo, a rigor, com muita frequência, abaixo desses limites. E que é por isso, em termos de demanda efetiva de produtos de uma economia industrial moderna, praticamente nula, ou pelo menos inexpressiva. Resulta dais, em regime como o nosso, da livre iniciativa, em que o estímulo é unicamente o lucro comercial, resulta dais a tendência à concentração das atividades produtivas de padrões mais elevados, no atendimento daquela pequena faixa de consumidores de maior poder aquisitivo. Isto em detrimento do restante da população que constitui a grande maioria. Em prejuízo também dos setores da produção e da atividade comercial voltados a esta maioria, e que se verão relegados a padrões de nível muito baixo. A economia, naquilo que tem de expressivo e qualificado, funcionará, como de fato ocorre entre nós, para satisfazer a demanda de uma pequena parcela da população. O restante será marginal e de expressão econômica mínima. Situação esta que tende a se consolidar cada vez mais e se perpetuar, porque é em vantagem do primeiro setor, e com desprezo do outro, que naturalmente se aplicará de preferência a livre iniciativa privada estimulada pelos atrativos de um, e desinteressada em face da marginalidade e pobreza do outro. Para ilustração dessa disparidade de situações extremas que encontramos na distribuição das atividades produtivas brasileiras, confronte-se, por exemplo, num ramo importante como o de produtos alimentícios, o alto nível financeiro e tecnológico da produção, entre outros, das conservas alimentícias, com o primarismo e primitivismo, desleixo, e portanto ineficiência, da maior parte da fabricação da farinha de mandioca que constitui o alimento básico, e muitas vezes quase único, de uma grande parcela da população brasileira. A livre iniciativa privada, orientada unicamente pelo estímulo do lucro comercial, como se dá, e não pode ser de outra forma, porque é o lucro comercial, e somente ele que visa a iniciativa privada, irá naturalmente e fatalmente aplicar-se, de preferência, lá onde se oferecem maiores e melhores perspectivas de lucro. Tenderá por isso a desenvolver tão somente aqueles setores da economia que atendem às necessidades de uma parcela relativamente pequena da população. Ora uma tal situação, se em si e na perspectiva do país em conjunto, já é grandemente defeituosa, porque o deixa na sua maior parte desatendido e desservido pelas principais forças produtivas e pelas atividades econômicas de 136 expressão apreciável, aquela situação que descrevemos e que corresponde rigorosamente aos fatos reais, comporta ainda outra e muito séria consequência, e que vem a ser as limitadas perspectivas de expansão e crescimento mesmo daquelas atividades de maior expressão tecnológica, financeira e comercial. É que, por força da própria estrutura do mercado que analisamos, tais atividades se acham restritas a uma faixa largamente minoritária, e por isso muito pequena, de consumidores de poder aquisitivo apreciável. Circunstância esta que fecha, à indústria brasileira em geral, a perspectiva da produção em massa, que é, como não se ignora, condição essencial de uma indústria moderna, de alto nível tecnológico e baixos custos unitários. É por isso, entre outros efeitos negativos, que os produtos industriais brasileiros são em regra caros e de preços muito superiores aos concorrentes do mercado internacional. Lembro a este respeito, e tão somente para exemplificação, que entre outros, os bens de consumo duráveis nacionais, como automóveis, aparelhos eletrodomésticos e demais, custam cerca do dobro de seus congêneres de outras procedências. Verifica-se por aí como são graves e profundos os vícios da economia brasileira. E é por isso que não podemos esperar a solução deles do simples livre jogo das forças econômicas naturais do mercado e da livre iniciativa privada, uma vez que, segundo vimos, é precisamente dessa liberdade econômica que deriva a situação tão inconveniente em que nos encontramos. E é tanto mais assim que as raízes de uma tal situação são profundas e longínquas, e já há muito se consolidaram. Ela resulta, em última instância, das próprias origens da formação histórica do Brasil. De fato, o que a colonização nos legou, e que até hoje não conseguimos superar de todo, é uma economia voltada essencialmente para o exterior, e fundamentalmente organizada para fornecer produtos primários ao comércio internacional. A economia brasileira se constituiu e evoluiu sempre com essa finalidade. Praticamente, tudo quanto se realizou no passado e até muito recentemente, inclusive mesmo a nossa organização socioeconômica, foi tudo condicionado, em última instância, por essa função exportadora que o Brasil assumiu desde suas origens mais remotas. Mesmo este caso de desenvolvimento excepcional, quando confrontado com o conjunto brasileiro, e que é o verificado em São Paulo e regiões próximas nestes últimos três quartos de século, decorre em última análise, e essencialmente, do fato de São Paulo se ter constituído em principal, e até mesmo, durante algum tempo, quase único fornecedor internacional de um produto de grande expressão comercial, como o café. O nosso progresso e desenvolvimento foi sempre condicionado, ao longo de toda a história, por conjunturas favoráveis do mercado exterior a gêneros primários de nossa produção. Era natural, portanto, e até mesmo fatal, que a uma tal situação se amoldassem a economia brasileira, e até mesmo o conjunto de nossa organização socioeconômica. Assim sendo, quando novas circunstâncias, de data muito recente, reduziram relativamente as perspectivas oferecidas pelo mercado exterior a nossos produtos, e a economia e produção brasileiras se viram cada vez mais restritas ao mercado interno, manifestaram-se em toda sua gravidade os vícios profundos de uma estrutura socioeconômica organizada essencialmente em função de uma finalidade exportadora de produtos primários, e mal aparelhada por isso, e inadequada para funcionar na base do 137 mercado interno. O país, no correr de sua formação e evolução históricas, se constituíra sobretudo, e fundamentalmente, de um lado, de uma minoria de dirigentes de verdadeira empresa comercial destinada a fornecer produtos primários ao comércio internacional; e de outro lado, da grande massa trabalhadora dedicada unicamente a dar o esforço físico necessário à produção daquelas mercadorias exportáveis. Uma organização social e econômica de tal natureza era evidentemente inadequada para funcionar e se desenvolver normalmente quando a função para a qual se organizara e aparelhara ia perdendo sua importância e significação anteriores. É precisamente numa situação destas que nos encontramos, a saber, em transição do nosso passado colonial de simples produtores de gêneros primários exportáveis, para uma economia e organização social voltadas para dentro do país e para atenderem às necessidades e aspirações próprias de sua população. Para realizarmos e completarmos essa transição, a tarefa é, como logo se vê, imensa, porque os obstáculos que se lhe antepõem mergulham num passado longínquo e tem nele fortes e profundas raízes. Não podemos por isso contar unicamente, nem mesmo essencialmente com as forças espontâneas de um mercado que por efeito de contingências tão sérias, não oferecem à livre iniciativa privada os estímulos convenientes para conduzir o país na direção de tais objetivos. A tarefa a realizar, e que consiste em nada menos que remodelar a vida econômica e mesmo social em bases novas, esta tarefa é grande demais para ser levada a cabo unicamente pela concorrência e choque de interesses privados e afirmações individualistas que são a lei no sistema e regime de liberdade econômica e livre iniciativa privada em que vivemos. Esta é uma ilusão de muitos que embora de boa fé, se informam unicamente no grande progresso realizado pelo capitalismo nos Estados Unidos e na Europa ocidental no correr de século passado e primeira parte do atual. Ilusão que consiste em julgar que poderemos, de hoje para o futuro, reproduzir a façanha. Mas a situação e as circunstâncias históricas gerais do Brasil, tanto as econômicas como as sociais, são bem distintas das que encontramos naqueles países quando eles iniciaram seu grande surto moderno de desenvolvimento. Acabamos de vê-lo na breve síntese que fizemos, e em que procurei mostrar as origens brasileiras que tão profundamente marcaram toda a nossa formação e evolução até os nossos dias. A saber, as de uma colônia tropical fornecedora de produtos primários ao comércio internacional. Mas não é somente nestas origens e características próprias que o Brasil se distingue daqueles pioneiros e vanguarda do capitalismo. Precisamos lembrar também que a situação e posição relativa que nosso país ocupa no sistema internacional de conjunto do capitalismo de hoje, onde nos encontramos relegados para um lugar dependente e marginal que nos tolhe os movimentos e embarga a liberdade de ação. Não seria possível desenvolver aqui e agora um assunto complexo e largamente controvertido como este do nosso enquadramento dentro do sistema internacional do capitalismo, isto é, a nossa participação nele e a situação de dependência em que ele nos coloca. Apontarei apenas uma circunstância do maior relevo, para mostrar como dentro desse sistema e sofrendo-lhe as contingências, o crescimento da economia brasileira se acha tolhido. E escolho precisamente, para 138 ilustrar essa situação desfavorável, o fato que de ordinário é mais destacado, pelos apologistas do imperialismo, como justificação dele. Refiro-me à aplicação de capitais estrangeiros em empreendimentos destinados a operarem aqui no Brasil. Alega-se que essa aplicação vem suprir a insuficiência de capitais brasileiros. E não há dúvida que num primeiro momento, o capital e os empreendimentos estrangeiros trazem estímulo à economia brasileira. Mas isto é apenas num primeiro momento, porque a prazo mais longo – e é isto que realmente interessa a operação dos empreendimentos em países da nossa categoria, tolhe o processo de capitalização e a formação de capitais próprios e nacionais. Afim de verificá-lo, é suficiente lembrar o fato notório a quem quer que conheça o mecanismo dos negócios capitalistas, seja ele economista profissional ou simples observador e participante das atividades econômicas, o fato que a fonte geradora principal de capitais, e quase única em países como o Brasil, país de baixos padrões financeiros, e onde por isso a poupança individual e particular é relativamente mínima, a fonte geradora de capitais realmente importante se encontra nas empresas e naquilo que em linguagem contábil se denomina “lucros não distribuídos” que se reivertem no negócio. A parte substancial do capital brasileiro se constituiu e continua se constituindo com os lucros auferidos nos negócios, e que são capitalizados e reivertidos. É essa a história da maior parte, senão de todas as empresas brasileiras e homens de negócio, que aumentam seus haveres e crescem financeiramente, isto é, formam e acumulam capital, graças naturalmente a seus esforços e tino comercial, não há dúvida, mas basicamente porque tiveram em mãos bons negócios que lhe propiciaram os lucros com que constituíram e forma aumentando seus capitais. O capital se forma e acumula no giro do negócio, na própria atividade da empresa. Isto é da essência do mecanismo capitalista. Ora, sendo assim, como é, evidentemente, está claro que se ficam a disposição dos empreendimentos estrangeiros, como de fato tem acontecido, porque é isto que eles procuram, se ficam à disposição deles as melhores oportunidade e negócios, é em seu benefício e nas suas mãos que se fará a maior e melhor parte da acumulação capitalista no Brasil. Dir-se-á, como de fato se costuma alegar, que estes capitais, brasileiros em sua origem, mas que se concentram em mãos estrangeiras, permanecem no Brasil. Mas nem sempre é assim, e a tendência mais pronunciada desses capitais é retirarem-se do país em proporção apreciável. É aliás o que vem acontecendo ultimamente, como revelam bem claramente os dados estatísticos relativos ao movimento externo de capitais. E é natural que assim seja. O capital procura sempre as melhores aplicações. E estas aplicações, no que se refere aos grandes trusts internacionais, não serão certamente, daqui para um futuro previsível, no Brasil, com sua moeda instável, o estado precário de nossa balança de contas externas e os poucos atrativos de nosso reduzido mercado interno. As perspectivas, por isso, na escalada que interessa os grandes trusts internacionais, e em confronto com a situação em outros lugares, são muito limitadas. Tivemos nos últimos 20 a 30 anos um grande surto industrial, graças ao processo de substituição de importações. Mas esgotadas as possibilidades dessa substituição, o que é amplamente reconhecido, as 139 perspectivas de novos empreendimentos de vulto e interessantes para empresas internacionais, se restringiram muito. Nada faz prever um progresso apreciável do mercado interno brasileiro, que é extremamente reduzido, pelas razões que já vimos, e que sem as grandes reformas a que me referi, não poderá crescer substancialmente. Assim sendo, não há que esperar um novo surto, em futuro previsível, de oportunidades de negócio do tipo e categoria que interessam os grandes trusts internacionais. Eles serão levados assim a transferirem, na medida do possível, para fora do país e para aplicações financeiras mais interessantes, os lucros capitalizados que aqui auferem, prejudicando com isto o processo brasileiro de acumulação capitalista. Em suma, a infiltração de empreendimento internacionais na economia brasileira, e a sua implantação nos melhores e mais lucrativos negócios, como vem acontecendo, canaliza para eles, isto é, para o estrangeiro, o melhor da acumulação capitalista que se realiza no país. Esta situação, além dos inconvenientes que apresenta do ponto de vista de nossa integridade nacional e segurança política, representa sério embaraço oposto a um real e efetivo desenvolvimento, pois significa um empobrecimento relativo do setor nacional em benefício do estrangeiro. Este é aliás apenas um aspecto, embora de grande importância e significação, da situação desfavorável do Brasil no conjunto do sistema internacional do capitalismo. Para a promoção de nosso desenvolvimento, torna-se assim essencial desvencilharmos-nos desse sistema, livrar-nos dele afim de assegurar ema existência nacional própria e autônoma, e capaz de mobilizar os recursos e atividades do país, bem como estruturar a sua economia, em função das necessidades e aspirações próprias e do conjunto da nossa população. E para isto também se exige uma ativa e vigorosa política voltada para a remodelação de nossas instituições econômicas e sociais. Não podemos relegar-nos, para a realização de objetivos tão amplos, no livre jogo das forças econômicas, na liberdade dos negócios e na livre iniciativa privada. Trata-se mais que tudo de um problema político, que politicamente há de ser equacionado e resolvido. E é a este ponto de minha breve análise da questão do desenvolvimento brasileiro que eu desejava chegar, porque nele se insere a parte essencial da tarefa que me propus da presente saudação, e que é de oferecer a vocês formandos, uma perspectiva e sugerir um caminho. Nenhum caminho haverá por certo, de maior relevo e fecundidade, que este de contribuir para a grande tarefa de remodelação das instituições econômicas e sociais que, segundo vimos, o progresso de nosso país e de seu povo está a exigir. Contribuição esta que será tanto da teoria como da prática, uma iluminando a outra, e contribuindo para ela; tanto a teoria para a prática, como a prática para a teoria. Nas condições do Brasil de hoje, mais talvez que em qualquer outra situação, não vejo como separar os dois planos de atividade: o teórico e o prático. A economia política que ordinariamente se estuda e apreende entre nós, é em grande parte, infelizmente, um simples decalque do que se elaborou em outros lugares e na perspectiva de situações 140 bem distintas daquelas em que nos encontramos. Não é possível, e chega às vezes até grotesco, considerar e analisar o nosso país à luz de noções e modelos que pressupõem e postulam um certo modo de ser e um comportamento coletivo que se encontram em países cujo passado e sobretudo o presente se distinguem profundamente do Brasil. Não somos a Europa, e não somos os Estados Unidos, apesar de certos paralelos e coincidências muito superficiais. E simples confrontos quantitativos, como se costuma fazer (renda nacional, atividade comercial, etc.) são largamente insuficientes, porque aí a quantidade já se converteu em qualidade. E são situações qualitativamente diversas que enfrentamos. Necessitamos assim, mais que simplesmente aplicar conhecimentos adquiridos em fontes estranhas às coisas próprias do Brasil, necessitamos acomodar estes conhecimentos, e sobretudo nosso pensamento, àquelas coisas que são particulares do nosso país e das situações que nele se encontram. As ciências humanas, como aliás, a rigor, qualquer ciência, não se constituem de formulações absolutas, universais, eternas e transcendentes das contingências humanas de cada época e cada lugar. E são, sim, apenas respostas contingentes a questões e perguntas propostas pelo homem em situações concretas e específicas. E assim, antes de vocês responderem com o que aprenderam em livros e tratados inspirados, e na maior parte das vezes, até mesmo redigidos em outros lugares, antes disso, indaguem das questões que de fato se propõem mais agudamente no Brasil de hoje, e que direta ou indiretamente condicionam tudo mais. Questões estas que tem suas raízes mais profundas na pobreza, e quando muito, mediocridade da generalidade dos aspectos da vida brasileira, quando confrontados com os padrões modernos. Mas como descobrir essas questões e formulá-las explicitamente afim de as submeter à análise? Aqui também, não é em livros e conhecimentos já elaborados que se encontrará a maior parte delas. E sobretudo não se encontrarão as mais compreensivas, significativas e profundas. Estas questões se acharão na própria vida prática, se vocês procurarem nela o contato direto com o nosso povo. A maior parte da realidade brasileira, aquela que diz respeito às verdadeiras relações sociais e econômicas, bem como ao comportamento coletivo do nosso povo, isto não se acha ainda, infelizmente m grande parte, compendiada em textos escritos, porque aqueles que sofrem mais agudamente as contingências daquela nossa realidade, não são inda suficientemente considerados, a não ser para servirem de motivos literários e artísticos. E por isso os seus problemas, que são de fato os verdadeiros e mais profundos problemas brasileiros, se escamoteiam, e o que aparece à tona é sobretudo uma pseudorealidade que diz respeito unicamente a aspectos e situações muito restritos e superficiais que não alcançam o que está por debaixo e que efetivamente condiciona o conjunto da nossa existência e personalidade nacionais. Não quero com isto subestimar o vosso aprendizado universitário. Muito pelo contrário, ele foi e é essencial e insubstituível para vossa formação teórica. Mas precisa ser bem interpretado e 141 adequadamente aproveitado. Deve ser sobretudo empregado como instrumento do pensamento, como aparelhagem intelectual e propedêutica mental necessários à adequada condução da observação e marcha da reflexão. Mas não mais que isto, e sobretudo não como coleção de fórmulas, receitas ou modelos a serem mecanicamente e por decalque transferidos para os fatos e as situações que se apresentam na realidade brasileira. Esta realidade, que é o material sobre o qual incidirá a vossa reflexão de economistas e administradores adestrados pela aprendizagem universitária, esta realidade vocês a captarão, e somente assim lograrão fazê-lo, em contato direto e íntimo com a vida, os anseios, as aspirações e as inquietudes que perpassam pelos diferentes setores e camadas da população brasileira, e particularmente daquelas camadas que estão na sua base, que formam a grande maioria do país, e que são por isso os maiores condicionadores do conjunto da nossa existência como nação. Este contato será a prática de vocês, e lhes será proporcionada sobretudo pela ação política. Não evidentemente esta política de bastidores, alienada e distante da grande massa do povo brasileiro, e não ser para conseguir votos à causa de improvisadas promessas, que é o que usualmente se entende por política entre nós. Política que é antes politicagem, sem objetivos programáticos, sem ideal em que ideias e programas, quando existem são apenas pretexto para discursos hipócritas ou dissertações pernósticas destinados a disfarçar miúdas ambições de pigmeus, ou pequeninas vaidades e interesses particularistas; politicagem de cabos eleitorais que querem ser vereadores, de vereadores que querem ser deputados, deputados que aspiram a senadores ou prefeitos, prefeitos governadores, governadores a presidentes, e presidente a ditador. Não é esta, evidentemente, a política a que me refiro, e sim aquela que objetiva, de um lado, conscientizar o nosso povo, dar forma ideológica a suas necessidades, aspirações e inquietudes, e transmitir esta ideologia assim constituída, como ideal a ser atingido pela luta política. Trata-se, de outro lado, de organizar o povo para esta luta, mobiliza-lo para a ação dirigida no sentido da solução de seus problemas definidos e concretizados pela maneira [que] vimos. Solução esta que afinal constitui a solução dos reais problemas brasileiros. É esta a ação política que proponho a vocês, e que lhes permitirá entrar em verdadeiro contato e comunhão com o país, conhecê-lo, interpreta-lo e ir elaborando na base desta prática e da experiência assim adquirida, a legítima ciência econômica e social de que necessitamos para o encaminhamento de um real progresso para o Brasil e para o bem estar e a felicidade do conjunto de seus habitantes. Em suma, o que proponho é que este diploma que estão recebendo e que lhes abre as portas para a vida prática, não lhes sirva apenas para assegurar uma profissão, prosperidade material e bem estar doméstico e privado. Uma vida restrita ao círculo de tais ambições apenas, é para quem quer que tenha alguma elevação de espírito, uma frustração que se irá acentuando a medida que avançam os anos, e por maiores que sejam os sucessos alcançados. A ninguém se poderia desejar tão triste sorte. Vocês aliás pertencem a uma geração de estudantes que já se destacaram na vida política, e deram a medida 142 de seu espírito público e consciência cívica. Estou seguro que deixando de estudar nos livros, para estudarem no grande livro da vida, vocês continuarão voltados para o ideal de um Brasil melhor, habitado por um povo mais feliz. Faço os meus melhores votos para que assim seja, e que a par de sucesso na carreira profissional que escolheram, vocês prossigam servindo dedicadamente a dignamente o Brasil e seu povo, que são a nossa pátria e a nossa gente. Muito obrigado. 143 Discurso de agradecimento na premiação do Troféu Juca Pato de Intelectual do ano de 1966, em 28 de março de 1967 Meus amigos: Muito agradeço a honra que me foi concedida com a láurea de Intelectual do Ano de 1966. Agradecimento este, bem entendido, e faço a restrição, no que me toca a mim pessoalmente, porque bem sei que não é unicamente, nem mesmo principalmente à minha pessoa que se dirige a homenagem. E sim ao princípio que por circunstâncias ocasionais eu neste momento represento. Princípio este que se destaca no traço comum que os une os laureados em anos anteriores: Santiago Dantas, Afonso Schmidt, Tristão de Athaíde, Cassiano Ricardo, tão divergentes entre si em opiniões, posições filosóficas e obra realizada, mas igualados num característico comum que os une e que constitui sem dúvida o princípio que a honrosa láurea do Intelectual do Ano tem por objetivo distinguir. Refiro-me ao intelectual atuante, ao homem de pensamento que não se encerra em torre de marfim, e daí contempla sobranceiro o mundo. E sim aquele que procura colocar a serviço da coletividade em que vive e da qual efetivamente participa. E é justo o critério que norteia a concessão do prêmio Juca Pato, pois é sobretudo de homens de pensamento, que sejam também homens de ação, que o Brasil necessita. E necessita hoje mais do que nunca, neste momento que vivemos, quando parecem coincidir um máximo de necessidades e aspirações do povo brasileiro, a exigirem amplos horizontes e perspectivas, com o projeto, bem marcado e abertamente proclamado pelas atuais forças dominantes no país, de limitar aquelas perspectivas e encerrá-las na tutela de um estreito horizonte. Realmente, não é outra, e não pode ter outro sentido, a fórmula político-filosófica que orienta a presente situação brasileira. Pois não põe ela a sua grande e principal ênfase na segurança nacional, erigidas em princípio diretor da política e administração pública? O que pode significar esta “segurança nacional” elevada do simples nível de procedimentos policiais, para o plano da filosofia política, senão a consagração do imobilismo econômico, social e político? E isso se propõe precisamente quando, à vista de todos e tão claramente, se apresenta a necessidade, e necessidade premente e inadiável, de reformas, e reformas profundas. Esta é a evidência e somente não vê o pior dos cegos, aquele que não quer ver. Eu diria mesmo que, mais do que reformas apenas, é de novos rumos que precisa o Brasil, novos rumos que façam dele, num futuro previsível, um país moderno efetivamente integrado no nível material e cultural de nossos dias. Na verdade, e infelizmente, estamos muito longe disso. Não somos apenas subdesenvolvidos”, ou se preferirem, e como querem alguns economistas e sociólogos que procuram disfarçar com palavras a realidade, não somos apenas um país “em desenvolvimento”. Não é só quantitativamente que nos 144 distinguimos dos países e povos que se acham na vanguarda do mundo contemporâneo. A diferença é também, e sobretudo, “qualitativa”. E tanto isso é verdade que, relativamente, e em termos comparativos, não estamos avançando, mas antes recuando. Há cinqüenta anos ainda poderíamos figurar, muito modestamente embora, no concerto das nações civilizadas, isto é, vivendo no nível da cultura então atingida. Hoje é difícil afirmá-lo. Já não nos enquadramos mais nesse mundo da cibernética, da automação, da libertação progressiva do homem de todo esforço físico e mesmo de boa parte do mental. Temos uma fachada, não há dúvida, que apresenta certo brilhantismo. Mas é uma tênue fachada apenas, que disfarça muito mal, para quem procura verdadeiramente enxergar, e não tenta iludir-se, o que vai por detrás dela neste imenso país de desnutridos, doentes e analfabetos. E, quando muito, semi-analfabetos que vegetam, mais que vivem, em padrões materiais e culturais que a parcela da Humanidade realmente civilizada já há muito não conhece mais. Todos aqueles que não ignoram o Brasil, o verdadeiro Brasil da grande, da imensa maioria, que não é este dos principais centros urbanos, e direi mesmo, de alguns setores apenas destes grandes centros, todos estes sabem que não exagero. E não preciso insistir em dados estatísticos e outros índices bastante conhecidos, para situar o Brasil naquela parte da humanidade que tão longinquamente se aparta do que constitui os verdadeiros padrões de civilização contemporânea. Não serão por certo esses pobres arremedos de indústria moderna, das comunicações – correios, telégrafos e telefones que não funcionam –, estas nossas metrópoles que são inundadas e se desmancham com a chuva de todos os anos; e no terreno da cultura, estes espectros que são as Universidades e nosso pobre aparelhamento de ensino e de pesquisa em geral, não é isso certamente que nos concederá foros de país no nível dos grandes centros modernos ou deles se aproximando. Para nos considerarmos da mesma ordem de grandeza, e tão somente “mais atrasados e menos desenvolvidos”, mas não qualitativamente diferentes, para isso precisamos de muito mais e, essencialmente, de uma sólida base sobre que assentar nossa nacionalidade, e que vem a ser uma população liberta da miséria física e cultural, e capacitada, no seu conjunto, para usufruir alguma coisa do conforto e bem-estar que a ciência moderna proporciona. Como chegar a isso? Eis nosso grande e realmente único problema fundamental e essencial. Podemos divergir com relação à maneira de resolvê-lo, e mesmo de o abordar. Mas num ponto concordarão certamente todos aqueles que estejam de boa-fé e sejam capazes de superar interesses e vaidades particularistas e imediatistas. E essa convergência de opiniões vem a ser, assim penso, que não é conservando o “status quo”, a saber, uma sociedade impulsionada unicamente pelo interesse privado e pelo lucro nos negócios, e estruturada na base da riqueza e da habilidade no manejo dos mesmos negócios, não é conservando isso intacto que se transformará o Brasil. A tarefa é grande demais para que uma linha de desenvolvimento traçada unicamente pelo choque de interesses privados e afirmações individualistas logre superar o retardo em que ficamos relativamente 145 aos níveis e padrões do mundo moderno. Essa é a ilusão de muitos que, embora de boa fé, se informam unicamente no grande progresso realizado pela livre iniciativa privada na Europa Ocidental e sobretudo nos Estados Unidos no correr do século passado e primeira parte do atual. Ilusão que consiste em julgar que poderemos, de hoje para o futuro, reproduzir aquela façanha. Mas os tempos, tanto como as situações, são outros. Os métodos também devem ser outros. Quais são eles? Não é agora o momento para discutir um ponto como este, altamente polêmico, e onde opiniões divergem largamente. Mas aquilo em que todos estarão de acordo, todos aqueles pelo menos que desejam procurar e encontrar novas perspectivas para o Brasil, é que não é permissível interromper e eliminar aquela discussão e reduzir as diretrizes da vida brasileira à luta contra a corrupção, a subversão e a instabilidade da moeda; e pautá-la por reformas ditadas por tecnocratas, ou que se julgam tais, encerrados em seus gabinetes ministeriais e Escolas privilegiadas. A corrupção e a subversão são sintomas do mal-estar geral que vai pelo país. E sintomas se combatem pelas causas profundas que os ocasionam. A corrupção, em especial, é da essência do nosso regime. Quando, como se dá entre nós, a riqueza é elevada ao plano do mais alto e prezado valor social, e que tudo justifica, como impedir que a aquisição dessa riqueza se faça por todos os meios e modos possíveis, sejam eles quais forem, e inclusive pela corrupção? Numa sociedade como a nossa em que a corrupção e a ausência de princípios éticos se acham institucionalizadas e entronizadas nas relações privadas, porque elas são, podemos dizer, da essência do “negócio” que regula essas relações, como impedir, pergunto, que elas contaminem também as relações públicas? Entre negócio e negociata não há nenhuma separação absoluta; e sim, entre os extremos, um terreno indefinido e neutro onde se faz muitas vezes extremamente difícil, e frequentemente impossível, distinguir entre lícito e ilícito. No que se refere à subversão, em cujo combate se inspira outra das normas fundamentais da presente situação política, há que preliminarmente introduzir clareza nos termos. Não é por certo subversão que implica a derrubada do governo que se trata, porque de outra forma, como bem disse um dos próceres da situação atual, o General Mourão, “subversivos” seriam todos os atuais detentores de poder e os demais que os acompanharam e secundaram nos dias idos de 1964. Não se trata pois de subversão, e sim do descontentamento e não-conformismo daqueles que aspiram introduzir modificações na ordem atual. Mas esse descontentamento e não-conformismo que tem hoje no Brasil, como todos sabem e sobretudo sentem muito bem, raízes profundas, não se eliminam com simples medidas policiais, sob pena de se abafarem pelo terror todas as aspirações e inquietudes que constituem o fermento natural e necessário de toda renovação e de todo progresso social e humano. Sobra, como último elemento da atual filosofia política dominante em nosso país, aquilo que, na falta de outra designação mais expressiva, eu chamaria de “tecnocracia economicista”. Todos que me ouvem já sabem aquilo a que me refiro. Trata-se de resolver os problemas brasileiros por modelos econômicos e outras fórmulas misteriosas somente acessíveis, no fundo e na forma, aos iniciados. Mas 146 esquece-se aí que estão em jogo, no caso, fatos sociais, humanos, e que neste terreno que é o do comportamento de seres racionais, e não de objetos físicos, a solução de problemas que se hão de traduzir em ações conscientes implica a determinação de indivíduos livres, e não se consegue portanto sem o consenso destes mesmos indivíduos. Quanto ao setor mais “humanista” dessa política tecnocrática, ela se exprime muito bem na afirmação do Sr. Presidente da República, quando ainda candidato e dirigindo-se em discurso às classes produtoras do Rio de Janeiro: do que se trata é fazer que “os ricos sejam mais ricos, para que os pobres sejam menos pobres”. Fórmula esta que lembra um outro pensamento muito difundido na geração que chegava a seu ocaso em princípios do século, e que assim se expressava: “Que seriam dos pobres se não fossem os ricos que lhes proporcionam empregos?” A teoria em que se inspiram nossos economistas ortodoxos de maior projeção, e que faz consistir o desenvolvimento, o progresso e as soluções sociais no ritmo dos investimentos privados, traduz em termos técnicos aquele pensamento de nossos avós. É isso em suma que impera no Brasil oficial de hoje. E é contra tudo isso, que significa o imobilismo do passado, que se há de acender a fagulha de um pensamento vivo e renovador capaz de abrir aquelas perspectivas e horizontes a que eu me referia no início destas minhas palavras. Este papel dos homens de pensamento, daqueles que tiveram o privilégio de encontrar na sua formação as circunstâncias favoráveis necessárias para o manejo das ideias, para a apreensão dos sentimentos e da consciência difusos na coletividade, a fim de os expressarem em pensamento sistematizado e em normas adequadas de ação coletiva. E é isso, estou seguro, é esse tipo de homem de pensamento e intelectual que se homenageia com o Prêmio Juca Pato. E é por isso que tanto mais me sinto honrado e me confesso grato, por me considerarem, com o prêmio que ora recebo, representativo desse tipo de intelectual. Muito obrigado.