ARTE CONTEMPORÂNEA E A PRODUÇÃO DE PORTFÓLIOS: UMA CONEXÃO ENTRE O ENSINO DE ARTE E A PRODUÇÃO ARTÍSTICA DO PROFESSOR Sirlene Felisberto Rodrigues Universidade Estadual de Londrina [email protected] Resumo Este trabalho é um relato de experiências referentes produção de um portfólio conjunto entre o trabalho como docente em arte e a minha produção como artista, conjugando ambos em um mesmo processo criativo num estudo sobre a importância da vivência da criação artística como parte da formação continuada do professor. Palavras-chave: Formação continuada; Processos de criação; Arte Educação. INTRODUÇÃO Este trabalho surgiu como sistematização das experiências que tive a partir da participação como aluna de dois cursos do Instituto Arte na Escola oferecidos pelo departamento de Artes Visuais da Universidade Estadual de Londrina. Os dois cursos eram voltados para professores de arte. O curso Arquivo Contemporâneo ministrado pelas alunas do curso de Artes Visuais estagiárias da Casa de Cultura Cássia Pegoraro, Camila Melara e Mariana Franzin, abordou a relação entre a arte contemporânea, a memória e o uso do objeto. No curso Atelier e produção de portfólios para professores_ o fazer artístico como forma de entendimento da Arte Contemporânea ministrado pelo professor Danillo Villa a proposta foi a criação de um portfólio para o artista-professor. No curso Atelier e produção de portfólios para professores a construção do portfólio seria orientada pela produção do artista, prevendo a possibilidade de a produção artística do professor se desdobrar em propostas pedagógicas para serem trabalhadas nas aulas de arte. Aqui tentarei descrever o percurso da criação de um portfólio do meu trabalho como artista e como professora de arte. Depois que deixei a faculdade de Artes Cênicas, minha segunda formação na área de arte, passei três anos sem me envolver com algum tipo de criação artística. A proposta do curso do Instituto Arte na Escola de pensar a produção dos alunos a partir da minha própria produção como artista me trouxe o desafio de voltar a produzir arte. Como desenho e pintura sempre foram atividades de “fácil” desenvolvimento para mim, dentro das formas de expressão artística, as que eu 1171 tenho preferência, acabei por escolher essas modalidades artísticas para o desenvolvimento do trabalho. Nas tentativas de recuperação da produção artística, agora como professora, me deparei com um grande sentimento de insegurança e até mesmo um desconforto, ao realizar atividades de criação em desenho. A ideia inicial foi pensar em um trabalho que pudesse ser desenvolvido tanto por mim, professora de arte, quanto pelos alunos, que são de quatro sextas séries de uma escola pública de Londrina, o Colégio Adélia Dionísia Barbosa. O trabalho seria desenvolvido simultaneamente. O tema do auto-retrato surgiu como assunto comum, onde o material a ser explorado seria um repertório próprio de referências e memórias, bem acessível a ambos. Como fazia parte da proposta o estudo da arte contemporânea, (uso de objetos do cotidiano, memórias, abordagem vivencial do espaço) seria necessário pensar também em uma forma de abordagem e uso de materiais que fossem acessíveis aos alunos. Escolhi ter como ponto de partida desenhos pequenos que seriam montados em copinhos de café descartáveis, que seriam depois organizados em forma de uma instalação. Existe pelo que tenho observado no trabalho como professora de arte, certa resistência tanto de alguns professores, quanto de grande parte dos alunos em relação às obras de arte da contemporaneidade. Maria Helena Wagner Rossi, em seu livro Imagens que falam: leitura de arte na escola ressalta a importância da formação continuada de professores de arte, segundo a autora, as mudanças no mundo da arte devem ser discutidas no âmbito da disciplina de arte, pois afetam diretamente o trabalho em sala de aula, e o entendimento do modo como o aluno constrói o conhecimento na (e através da) arte no domínio da apreciação estética. (ROSSI, 2003 p.20) Levei a proposta aos alunos antes que eu mesma começasse a desenhar, o desafio era a produção de no mínimo 100 desenhos pequenos por aluno. Os desenhos deveriam ser pensados para serem guardados nos copinhos. 1172 Para contextualizar o trabalho inicialmente falei e passei vídeos para os alunos sobre arte contemporânea definindo o conceito e sua relação com os objetos do cotidiano, os alunos deveriam iniciar sua série de desenhos com auto-retratos. Ao passo que as propostas eram passadas aos alunos, também se tornavam pontos de reflexão para a minha produção. O desenvolvimento do trabalho junto aos alunos trouxe muitas surpresas, e a descoberta de muitas possibilidades criativas em um diálogo bastante rico: as propostas de encaminhamento pedagógico também eram desafios para os meus desenhos, e as soluções encontradas pelos alunos em seus trabalhos me apontavam novos caminhos, novas idéias para dar seqüência ao processo. Em outras vezes, inquietações surgidas em meu processo criativo e que se tornavam parte das atividades propostas, ressaltando para mim o sentido criativo do trabalho docente em arte. Já era proposto por Piaget que o professor deveria assumir o caráter criativo de seu trabalho, ele dizia que o professor deveria pensar em si como criador, não criador de grandes teorias educacionais, mas sim do que Rosa Iavelberg em seu livro Para gostar de aprender arte chamou de “oportunidades para descobrir” considerando que a verdadeira aprendizagem é um descobrimento, e todo descobrimento é uma recriação de uma realidade . (IAVELBERG,2003 p.40) A partir da idéia de auto-retrato foram escolhidos com ajuda do professor do curso arte na escola, dois artistas: Frida Kahlo (1907-1954), artista mexicana, por ser uma artista já conhecida por mim e que tem uma vasta produção de auto-retratos e Leonilson (1957 - 1993), artista brasileiro, que foi indicado para estudo devido a trabalhar com auto retratos em dimensões mínimas, pequenos objetos, e por incluir em seu trabalho um universo particular, seus afetos, suas vivências. Foi muito produtivo pesquisar a obra do artista Leonilson, que apesar de ser um artista que ficou bastante conhecido na década de 80, não fazia parte dos meus conhecimentos de história da arte, o que fez com que ao mesmo tempo que eu estudasse sua obra, buscasse meios para sensibilizar os alunos em sala de aula, evidenciando o fato de que seria o meu percurso em direção a leitura dessas obras que determinariam também a forma como elas chegariam aos meus alunos.Sob este enfoque, seria interessante ressaltar a fala de Maria Helena W. Rossi quando diz que: 1173 A atualização do professor em relação à cultura é importante, pois poderá apresentar aos alunos os conhecimentos mais avançados de sua época. Ao mesmo tempo em que seus conhecimentos prévios merecem todo o respeito o papel do professor só se completa no exercício de uma atividade constante de pesquisa, de estudo e de produção escrita e reflexiva, de modo que ele possa avançar garantindo um conteúdo substantivo e atualizado, em relação à cultura e a educação, para si e para aqueles a quem pretende educar, ampliando progressivamente seu círculo de experiência. (ROSSI, 2003 p.54) De acordo com a autora, as aulas e experiências de vida do professor não podem ser dicotômicas. Suas vivências culturais e experiências criarão a motivação para ampliar seu universo cultural co-relacionando-o com as incursões escolares (ROSSI, 2003 p.62). A autora lembra que a postura diante do mundo e uma bagagem de saberes advindos da experiência da vida prática, intelectual e sensível do educador são o leme de suas ações e interpretações. (ROSSI, 2003 p.78) No decurso da pesquisa, estabeleceu-se um contraponto sobre a questão do auto-retrato na poética dos dois artistas, surgindo duas formas de abordagem: com Frida Kahlo, o enfoque no aparecimento das características físicas de forma marcante, que seria definido como o visível e em Leonilson, os afetos, que apareceriam como o tecido que forma a identidade, o invisível. No trabalho em sala de aula no primeiro dia de aplicação da proposta, foi feita uma breve explanação sobre a biografia de Frida Kahlo e o aparecimento do autoretrato em suas obras. Foram apresentadas aos alunos uma série de imagens de obras da artista e como era esperado, os alunos logo notaram as características físicas marcantes da pintora: sombrancelhas grossas, buço, aspectos do rosto e cabelos. Foi apresentada então a imagem de uma foto da artista onde destaquei os aspectos já mencionados pelos alunos.Voltando a leitura de imagens, destaquei o fato de a artista não esconder ou disfarçar traços de sua fisionomia.Destaquei também que as imagens que Frida sobrepõe ou associa a sua imagem sugerem também estados emocionais. Nesta aula foram desenvolvidas duas atividades paralelas, uma em sala de aula e outra com alunos que saiam da sala de aula para se desenhar no espelho do banheiro do colégio. Para ambas a leitura de imagens foi o ponto de partida. 1174 Depois da leitura de imagens, destaquei o fato de que íamos trabalhar com auto-retratos, e que as obras da pintora remetem a fatos e características de sua própria vida e que por isso, os traços de dor e sofrimento visto em sua obra, são referências a sua biografia, mas que cada um, não necessariamente teria os mesmos fatos e sentimentos em sua vida. Foi feita então uma proposta de observação e uso das características do próprio rosto por meio de um exercício cênico, onde em duplas os alunos deveriam se revezar em fazer caretas para os colegas, o mais engraçadas que pudessem. Depois do exercício os alunos deveriam voltar para sua carteira e realizar o desenho de um auto-retrato destacando suas características físicas e como Frida Kahlo, criar alegorias para expressar seu estado emocional. Enquanto isso acontecia, alguns alunos iam de dois em dois ao banheiro do colégio, onde teriam que realizar rapidamente dois desenhos de observação do rosto: um do rosto com sua expressão normal e outro fazendo uma careta. A sensibilização dos alunos em relação ao trabalho com imagens de obras de arte propicia que tenham uma forma diferente de contato com imagens. É necessário lembrar que a vida das crianças e jovens na atualidade devido aos meios de comunicação é povoada de imagens diversas que falam de valores, idéias e sentimentos provenientes de variados tempos. Ana Mae Barbosa diz que a leitura de imagens na escola, prepararia os alunos para a compreensão da gramática visual de qualquer imagem, artística ou não, na aula de artes ou no cotidiano e que torná-los conscientes “da produção humana de alta qualidade” é uma forma de prepará-los para compreender e avaliar todo o tipo de imagens. ( Barbosa 1995) Entremeando o trabalho com os alunos com o resgate do trabalho artístico, eu vivenciava a retomada do desenho a partir de auto-retratos feitos também com ajuda de um espelho, inicialmente criando desenhos do rosto todo, mas ainda em busca de um sentido. Nas orientações com o professor do curso, eu relatava a sensação de certa “falta de força” no resultado obtido com a experiência em desenhos. A minha falta de contato com processos de criação poderia ser uma das causas para isso. 1175 Muito se fala na necessidade de o professor de arte ter vivência em processos de criação artística para qualificar a sua própria prática, porém o que se constata é que muitos professores de arte, aos poucos abandonam a produção artística exatamente ao se tornarem professores. Esse também é o meu caso. Para trabalhar de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais, o professor de arte precisaria vivenciar processos de criação pessoal em arte que lhe propiciem a assimilação de conhecimentos e técnicas para realizar a transposição didática nas situações de aprendizagem que envolvem o fazer, a apreciação e a reflexão sobre a arte como produto cultural e histórico. (ROSSI, 2003 p.51) Os motivos para que os docentes de arte abandonem a produção artística talvez sejam acumulo de tarefas, a “falta de tempo” a que é levado o professor que precisa ter uma carga horária elevada, a preocupação em primeiro lugar com a produção dos alunos, os prazos burocráticos relativos ao trabalho, etc. Neste, trabalho, mesmo enfrentando todos esses contratempos, foi possível constatar que a reflexão viva sobre a própria produção artística, pode indicar caminhos para tornar mais significativas as ações do professor em sala de aula. Em novo encontro com os alunos da sexta série, ainda com o enfoque nas questões ligadas ao auto-retrato, foi retomada a discussão sobre o trabalho da artista Frida Kahlo e a forma como “o visível” aparecia em suas obras por meio das características físicas.Perguntei aos alunos se seria possível que alguns elementos pudessem revelar quem a pessoa é sem mostrá-la fisicamente, e eles chegaram à conclusão de que “coisas invisíveis” como os sentimentos poderiam ser considerados retratos das pessoas citando coisas como a alma, os órgãos, os sentimentos, a fala. Perguntei a eles como seria possível tornar visíveis esses sentimentos e se já existiam símbolos para isso. Os alunos apontaram o símbolo comumente utilizado para representar o coração. Questionei então: O que é o coração? E por que as pessoas utilizam esse órgão como símbolo do lugar onde moram os sentimentos? Mostrei então aos alunos um trecho de um vídeo aula de biologia contendo informações técnicas sobre as funções, anatomia e o funcionamento do coração. Em contraponto a esse vídeo apresentei o videoclipe de uma música chamada Palavras do coração (Bruna Caran; composição de Otávio Toledo e J.C Costa Netto) e 1176 perguntei se as alegorias utilizadas no vídeo também não poderiam fazer parte do território do que chamamos coração. Antes desta leitura de imagens, cuja proposta era sobre uma obra do artista Leonilson, busquei ferramentas que pudessem diminuir o que eu previa como um possível estranhamento deles em relação à obra devido a sua forma, utilizando para isso a discussão sobre conceito de coração, o vídeo sobre a anatomia do coração, a música de Bruna Caran. Vale ainda lembrar, que esses elementos foram incluídos devido à leitura que eu mesma tive das obras. Sobre as formas de mediação de obras de arte, seria interessante destacar o que diz Rosa Iavelberg: Cabe ao professor de arte, ao ensinar conceitos e princípios, criar múltiplas oportunidades de interação dos estudantes com esses conteúdos, variando as formas de apresentá-los, utilizando meios discursivos, narrativas, imagens, meios elétricos e eletrônicos, textos, enfim, o professor pode recorrer a todos os meios para recorrer a todos os meios para informar sobre conceitos e princípios que deseja ensinar, ciente de que é o aluno quem transforma tais informações em conhecimento por intermédio de interesses sucessivos. (IAVELBERG,2003 p.27) Em seguida a esses recursos apresentei uma obra do artista Leonilson, sem o título e pedi que descrevessem e dissessem também a sua opinião sobre o que viam. (Voilà Mon Coeur,1989) Alguns adjetivos que os alunos deram a obra: Esquisita; Estranha; Feia; Escrota; Quem fez é um trouxa; Criativa; Incompreensível. Apresentei então o título da obra em francês, e perguntei qual seria o significado daquelas palavras. Informei então, depois de um tempo, a tradução: Aqui está o meu coração. Os alunos se espantaram pelo fato de aquele objeto de formato tão diferente do que já havíamos visto como coração ser “o coração” do artista. Falei sobre a característica autobiográfica no trabalho de Leonilson e a atitude corajosa de Leonilson, ao expor o seu “coração” e aquilo que para ele era precioso. Apontei os adjetivos que os alunos haviam há pouco dado as obras de Leonilson e perguntei se o artista, ao expor seu trabalho e oferecer o seu “coração” ao expectador, não previa que estava sujeito a receber como respostas adjetivos semelhantes a aqueles. 1177 Um dos alunos disse: “Professora, mas por que você não avisou que o era o coração dele?” Os alunos se sensibilizaram por ter dito “tudo aquilo” do “coração” de Leonilson Sobre essa forma de chegar à mediação da obra de arte, pelo estranhamento do aluno em relação a ela, seria interessante considerar a pesquisa de Rossi sobre a forma como os alunos lêem as imagens que lhes são apresentadas em sala de aula: Percebi que, para compreender o pensamento do aluno, era mais profícuo deixá-lo falar livremente, mesmo que ele iniciasse o diálogo com um julgamento exclamando: “Que horror!” ou “não gosto!” Por que não começar daí? O aluno pode revelar seu pensamento mais espontaneamente do que quando levado a seguir um roteiro pré estabelecido, enfatizando a análise formal, o que pode distraí-lo e fazê-lo perder-se entre “linhas, pinceladas e texturas”, levando-o por rumos que não lhe possibilitam uma interpretação. (ROSSI, 2003 p.30) Sendo assim, segundo a autora, o próprio julgamento do aluno, mesmo que baseado no senso comum seria um ponto de partida para a mediação da obra, segundo ela o papel do julgamento na leitura estética não é complementar, mas constitutivo do processo que origina a compreensão estética que, por sua vez, é constituinte da construção de nossa própria compreensão como seres humanos. (ROSSI, 2003 p.71) Depois da leitura de Voilà Mon Coeur mostrei aos alunos algumas outras obras do artista pedindo que prestassem atenção a alguns elementos que poderiam depois ser aproveitados como recursos em seus trabalhos: O uso de desenhos como símbolos. Contar segredos que podem ser apenas indicados pelos símbolos e palavras. O uso da escrita A invenção de uma escrita pessoal O bordado O pequeno e o delicado Imagens que remetem ao coração De acordo com a proposta que passei aos alunos, todo desenho deveria ter como ponto de partida o decalque da mão fechada do aluno (partindo do 1178 pressuposto que a mão fechada possui o mesmo formato e tamanho do coração de cada pessoa_ isso foi previamente informado aos alunos) Foi colocada novamente no vídeo a imagem pausada da anatomia do coração e informado aos alunos que, se quisessem, poderiam completar o decalque da mão com os detalhes da imagem do coração. Tendo como ponto de partida o coração do corpo, visível, os alunos deveriam buscar sobrepor a essa imagem o coração dos sentimentos, invisível, bordando (com barbante) escrevendo, desenhando símbolos, trabalhando com cores. Antes que começassem os desenhos, foi lido para os alunos um trecho do texto do crítico Adriano Pedrosa sobre o trabalho Voilá Mon Couer: “Talvez mais do que o corpo, o coração seja o motivo dominante e recorrente da obra. O coração como órgão muscular, bombeador de sangue através de veias e artérias; o coração como centro vital das emoções e sensibilidades do sujeito, repositório de seus sentimentos mais sinceros, profundos e íntimos. Abismos, águas, ampulhetas, âncoras, asas, átomos, crucifixos, desertos, escadas, espadas, espelhos, espirais, facas, flores, fogos, globos, homens, ilhas, labirintos, livros, mapas, matemáticos, montanhas, oceanos, olhos, órgãos, pedras, pérolas, poesias, pontes, portos, radares, relâmpagos, relógios, rios, ruínas, tempestades, templos, vulcões - tudo remete ao coração (do artista), seja atravessando-o, seja por seu intermédio, seja a partir dele.” Da resistência inicial, os alunos passaram a um envolvimento muito sensível com a temática da obra de Leonilson, aproveitando para bordar seus segredos nos desenhos. Isso pode ilustrar a forma como os alunos a partir do julgamento negativo do trabalho criaram uma nova forma de relação com ele, trazendo suas próprias referências, que ficaram evidentes nas confidências feitas no desenho do coração. Segundo as pesquisas de Rossi, as teorias do desenvolvimento cognitivo explicam que o pensamento formal sucede o pensamento concreto no início da adolescência, proporcionando um acréscimo no nível de abstração dos indivíduos. O mesmo se pode dizer do domínio da interpretação estética. Neste trabalho, foi possível observar que, pelas habilidades do pensamento abstrato, os alunos conseguiram transcender a concretude do que estava representado na imagem, 1179 para interpretá-la simbolicamente. Um indício desta habilidade, segundo a autora, seria o uso de substantivos abstratos durante a sua leitura. Quanto a minha produção, dentre os desenhos que fiz do meu rosto, alguns, que retratavam isoladamente a minha boca, se tornaram mais expressivos foram escolhidos então como um possível foco para o trabalho, como uma interferência do trabalho com os alunos em sala de aula, comecei a prestar mais atenção no caráter engraçado que assumiam os desenhos onde eu retratava a minha boca quando eu fazia caretas, algumas ganhavam aspectos que eram para mim ao mesmo tempo cômicos e assustadores. Poderia se dizer que a produção artística conjunta com o trabalho em sala de aula me fez redescobrir a expressividade em meu desenho e a essa altura o meu processo de criação começava a ganhar força e sentido, alimentado pelo estudo teórico da obra dos artistas, pelos efeitos do trabalho na sensibilidade dos alunos, pela percepção de nuances que possivelmente não seriam captados de outra forma. É possível assim concordar com Rosa Iavelberg quando diz que: O professor deve conhecer a natureza dos processos de criação dos artistas, propiciando aos estudantes oportunidades de edificar idéias próprias sobre arte, enriquecidas de informações mediadas pelo professor, conforme o fazem os pensadores que refletem sobre a produção social e histórica da arte, como críticos, historiadores ou apreciadores. (IAVELBERG,2003 p.12) Para o trabalho em sala de aula no próximo encontro, o próprio interesse dos alunos pelas características do trabalho de Leonilson como a escrita e as figuras que sugerem órgãos do corpo humano, criaram o tema para as próximas produções: _A escrita em Leonilson _O aparecimento e características da imagem do corpo em Leonilson _Os outros sentimentos. Iniciei então a aula relembrando passagens da obra de Leonilson e sua relação com os sentimentos. Perguntei aos alunos se além daqueles sentimentos citados nos trabalhos anteriores não haveria outros sentimentos que em algum momento das suas vidas poderiam sentir. Para “facilitar” a reflexão dos alunos dei 1180 um prazo de 5 minutos para pensarem em 20 sentimentos diferentes que em algum momento de sua vida todos poderiam sentir. Os alunos citaram: raiva; ódio; solidão; ciúme; segurança; brincadeira; inveja; tristeza; alegria; medo; arrependimento; fé; vazio, entre outros.Todos os sentimentos citados pelos alunos, muito mais de 20, foram anotados no quadro negro. Perguntei então aos alunos: Se o amor e sentimentos próximos a ele têm como morada o coração, em que outras partes do corpo poderiam morar todos aqueles “outros sentimentos”? Mostrei então algumas obras do artista Leonilson onde aparecem figuras semelhantes a órgãos internos do corpo humano entremeados por palavras e construções poéticas. Apontei para o uso da palavra e a forma como Leonilson utilizou as letras no trabalho. Apresentei aos alunos a possibilidade de a letra da pessoa também ser uma forma de auto-retrato. Como tentativa de contextualizar as essas conclusões mostrei aos alunos um vídeo com uma entrevista de um grafólogo que analisava letras de pessoas famosas explicava como a letra pode refletir algumas características da personalidade das pessoas. Para manter o enfoque na questão do corpo e da visceralidade em Leonilson mostrei dois novos vídeos com reportagens sobre uma exposição que ocorreu em algumas cidades do Brasil chamada “O corpo Humano, Real e fascinante” que mostrava corpos humanos reais em suas diferentes formas: sistemas sanguíneo, respiratório, nervoso, intestino. A partir disso, propus aos alunos que pensassem em um trabalho onde o desenho e a escrita aparecessem juntos como parte do outro. Também deveria aparecer o corpo e deveriam ser procurados lugares no corpo para serem moradas dos sentimentos listados no quadro. Cada aluno deveria escrever uma poesia sobre si mesmo, para colocar no trabalho, pensando em usar conscientemente as características da própria letra. Foi entregue a cada aluno uma fotocópia com um desenho da anatomia dos órgãos internos do corpo humano. Foi informado aos alunos que não deveriam 1181 copiar o desenho, em nem se preocupar em ser realistas. Deveriam aproveitar do desenho as partes que quisessem, trocar órgãos de lugar, repetí-los, inventar um órgão, inventar um corpo. Selecionando recortes e direcionando o fazer artístico, o professor pode em sala de aula propor aos seus alunos problemas, que, mais que o fazer descompromissado, podem ajudar o aluno a se aproximar criticamente do sentido da obra de arte. Ou nas palavras de Rossi: Pretende-se não só desenvolver a criatividade através do fazer da arte, mas também através das leituras e interpretar das obras de arte (...) desconstruir para reconstruir, selecionar, reelaborar, partir do conhecido e modificá-lo de acordo com o contexto e a necessidade são processos criadores desenvolvidos pelo fazer e ver arte e fundamentais para a sobrevivência no mundo cotidiano. (ROSSI, 2003 p.16) A partir dos resultados das propostas com os alunos, meu trabalho também foi ganhando a presença do visceral, do orgânico, de estruturas que surgiam a partir do auto-retrato da boca, distorcendo-a, criando novas estruturas, desenhos de órgãos, que aos poucos iam se transformando em situações, órgãos conversando entre si, em conflito ou situações cômicas. A palavra, ora aparecia, hora se tornava uma inevitável sugestão, estando de alguma forma presente. Incluir a prática artística como parte vivificadora do processo do ensino da arte, talvez não seja realmente uma tarefa fácil, mas mostrou-se nesta experiência bastante gratificante na medida em que uma instância conferiu sentido à outra de forma muito estimulante, resignificando tanto a minha prática como professora em sala de aula quanto como artista no desenvolvimento do meu trabalho e levando a novos modos de pensar o trabalho pedagógico. O fazer artístico, possibilita a quem ensina arte um ponto de vista muito particular de onde pode compreender por sua própria vivência os conceitos que ensina: Por que educar com arte? Por que o artista proporciona, com os objetos que cria e disponibiliza para o outro, um desfrute que só é concretizado se há a criação na recepção pelo outro, uma troca entre sujeitos, mediada por significados poéticos. Quem recebe a obra conecta seus sentidos com os do objeto criado e interage com as proposições poéticas dos artistas, em um momento de vertigem e trabalho intenso, de natureza análoga ao trabalho de criação dos artistas. (ROSSI, 2003 p.77) 1182 Como encerramento do trabalho em sala de aula, propus aos alunos a criação de uma instalação, e como falávamos de auto-retrato, haveria a possibilidade da criação de ações autobiográficas a partir do ambiente criado na instalação. Para preparação dessas ações, no novo encontro com os alunos seriam trabalhados os temas: Instalação Objeto Performance autobiográfica Iniciei a aula falando sobre o começo do trabalho em que a proposta foi apresentada aos alunos. Lembrei-os que sobre a ideia de montar uma instalação, explicando que uma instalação é uma obra de arte que é pensada para um ambiente específico e deve modificar a relação das pessoas com este ambiente. Mostrei então como exemplo um vídeo com uma instalação. Em seguida expliquei aos alunos que cada um deveria escolher em casa entre seus pertences, um objeto, que trouxesse memórias, sentimentos e que pudesse também servir como auto-retrato. Apresentei aos alunos o conceito de performance autobiográfica, como uma ação consciente, com intenção artística, sobre si mesmo, um auto retrato por meio de uma ação. Mostrei então aos alunos um vídeo do registro de uma performance auto biográfica do aluno do curso de Arte Cênicas da Universidade Estadual de Londrina, Jeferson Torres intitulada “Semente” Pedi aos alunos que durante o vídeo prestassem atenção em tópicos para discussão posterior: Que ações o performer realizou? Que palavras utilizou? Que sentimentos eram sugeridos? Inicialmente, enquanto assistiam o vídeo os alunos expressaram grande estranhamento, alguns perguntavam se o performer “é louco”, ou satirizavam seu comportamento em cena, questionavam porque realizava aquela série de ações desordenadas. 1183 Montei no quadro um esquema visual para que os alunos dissessem sobre as ações, palavras e sentimentos na performance: Ações citadas pelos alunos: Correr; pular; se esfregar na terra; brincar; andar; falar. Palavras: Pai; “Vem brincar de esconde-esconde comigo?”, “Vamos brincar de pega-pega”, “Pode me pegar”. Sentimentos: Tristeza, saudade, desespero, “brincadeira”, solidão. Os alunos interpretaram que a performance sugeria um relato de memórias da infância pelo fato de o performer vivenciar brincadeiras em sua ação, perceberam também a figura do pai, que aparece como objeto de saudade, tristeza, ausência. Os alunos também falaram da solidão, pois o performer brinca só. Foi então proposto aos alunos que tentassem realizar para a próxima aula, uma ação intencionalmente artística autobiográfica de um minuto, apresentando como possibilidade: Utilizar somente movimentos Construir um boneco para representar a si mesmo (Pois no inicio do ano os alunos já realizaram encenações com bonecos, e a atividade foi muito proveitosa, poderiam aproveitar a familiaridade com o uso dos bonecos, também pelo fato de que isso reduz a possível vergonha de se apresentar aos colegas) Utilizar o objeto em sua ação Misturar falas e movimentos Ainda como preparação da montagem da instalação, os alunos montaram os copinhos com um desenho, e colaram em um pedaço de 2m por 1.50 m de TNT branco. No dia da montagem da instalação foram feitas intervenções no ambiente da sala utilizando TNT, trabalhos produzidos anteriormente, cadernos, copinhos. Na segunda aula com cada turma ocorreram as apresentações dos alunos do que haviam preparado sobre a proposta de performance. Os alunos desde o início da primeira aula já estavam muito apreensivos quanto a isso, vários estavam nervosos, e com medo de se apresentar. 1184 Na hora das apresentações pedi aos alunos que organizassem um circulo com banquinhos para o início das apresentações. Expliquei aos alunos que não deveriam ficar preocupados quanto à apresentação, afinal todos passariam pelas mesmas dificuldades. Salientei que a apresentação poderia ser comparada a uma conversa, e que, como estávamos em círculo, ninguém ia se apresentar “lá na frente”, todos já estavam “lá na frente” de todos. Ressaltei que a sala deveria ter respeito com o trabalho das pessoas que iam se apresentar, e que os que escolheram se apresentar já estavam de parabéns pela coragem. O uso objetos, embora tenha sido sugerido como apenas uma das opções de trabalho, foi de grande importância, as apresentações acabaram ficando muito parecidas com uma dinâmica feita no curso do Instituto Arte na Escola (Arquivo Contemporâneo) onde cada pessoa deveria levar um objeto que carregasse alguma memória, e falar sobre ele. Embora a proposta envolvesse ações de todos os tipos, praticamente todos os alunos escolheram falar e não prepararam nada gestual, cada um levou seus objetos e contou suas memórias sobre ele, alguns escolheram um objeto na hora e inventaram uma história sobre ele, o que não minha opinião, não deixa de ser válido. Como todas as salas apresentaram o mesmo perfil de ações, utilizando predominantemente a fala, fiz uma segunda proposta com enfoque nas ações, agora em grupos de três alunos, todos poderiam participar. Este trabalho também permitiu que eu refletisse sobre o sentido da avaliação no processo de ensino da arte, pois o constante avaliar dos processos desenvolvidos em sala de aula é que apontava caminhos para novas ações. Iavelberg, falando sobre a avaliação no contexto das aulas de arte diz: A avaliação deixa de ser um instrumento de controle ou sanção expiatória na mão do professor e passa a ser mais uma oportunidade de aprendizagem para os alunos. Aliás, uma boa situação de avaliação costuma configurar-se como boa situação de aprendizagem. (...) A avaliação é um excelente recurso para o professor planejar suas atividades e refletir sobre sua prática. Ele pode avaliar antes, durante e depois de uma ou mais seqüências de atividades ou projetos de trabalho a fim de ter mais elementos a guiar suas ações. (IAVELBERG,2003 p.29) 1185 Percebendo a timidez dos alunos em terem preparado ações com maior envolvimento do corpo todo e não só da fala, resolvi tentar uma intervenção: lembrei aos alunos sobre a performance de Jeferson Torres, e da forma que ele se expressou muito mais por ações corporais do que pela fala. Foi proposto então aos alunos que conversassem com os colegas sobre os objetos que trouxeram, falando sobre suas memórias e a partir disso, deveriam encontrar gestos e ações físicas que representassem as memórias contidas nos objetos. Novamente os alunos se apresentaram, improvisando algumas ações. Os alunos gostaram bastante da proposta com ações, alguns já comentaram possibilidades para uma próxima apresentação. O desenvolvimento das ações tomando os relatos dos objetos como ponto de partida pareceu promissor. O encerramento do curso Atelier e produção de portfólios para professores seria a produção de um portfólio com relatos das experiências nas aulas e no processo de criação artística. Foi possível perceber que o fato de sistematizar e refletir sobre o trabalho em sala de aula pode ser um grande aprendizado, tanto no que diz respeito à própria prática em sala de aula quanto dos conhecimentos necessários para formular o portfólio como diagramação, escolha das imagens, transformação do diário de anotações em um texto. Iavelberg ressalta a importância de o professor de arte buscar conhecimentos complementares à sua prática: Portanto, é necessário que o professor conheça diversos procedimentos em arte para poder ensiná-los aos alunos. Procedimentos de pintura, desenho, gravura, utilização de softwares e modelagem são alguns exemplos de conteúdos procedimentais que devem ser dominados por professores de artes visuais. (IAVELBERG,2003 p.28) A formação continuada é necessária aos professores de todas as áreas do conhecimento. No caso do professor de arte, os processos de criação artística podem garantir muito mais que uma atualização em conhecimentos teóricos, mas uma vivência prática e envolvente que torna esses conhecimentos muito mais presentes e reais. Rossi, em seus relatos sobre o trabalho de formação de professores afirma que: 1186 Além dos cursos de magistério, licenciatura, bacharelado, especialização e pós-graduação, nossa prática em formação de professores de arte aponta a necessidade de um processo de formação contínua. (ROSSI, 2003 p.50) A possibilidade da criação aproxima o professor pesquisador em arte das inquietações por que passaram todos aqueles que são seu objeto de estudo: os artistas, suas práticas, seu pensamento, suas formas de presentificar as inquietações referentes ao seu entorno. Mais que isso, a prática artística possibilita com que este professor-artista e sua arte sejam seu próprio objeto de estudo, o que certamente enriquecerá sua prática com os alunos, revelando o caráter criador de seu trabalho: Tal realidade de inserção criadora na prática educativa precisa vir a ser realidade para a maioria dos professores de arte com os quais trabalhamos. A percepção de si mesmo como mediador de culturas e promotor de conhecimentos transforma a relação que o professor tem com a produção seu meio e de outros meios culturais, torna o professor menos dependente para selecionar conteúdos e desenvolver seus planejamentos, pois o fará como quem conhece os assuntos a serem ensinados e, quando não tiver domínio, sentir-se-á seguro para pesquisar e planejar. (ROSSI, 2003 p.55) Nas atividades propostas pelo curso Arte na Escola, enfrentei contratempos típicos da modalidade de trabalho que exerço: tive que encontrar, ou talvez reencontrar, o espaço da produção artística em meu cotidiano de professora de arte. Das dificuldades iniciais com o desenho pude perceber com o desenvolvimento do trabalho que, à medida que a minha compreensão sobre os artistas era repassada em forma de propostas poéticas aos alunos e retornava para mim em forma de possibilidades para novos trabalhos, fui ganhando mais segurança no desenho, mais ideias para seguir o trabalho, mudar os suportes, mais confiança em me dizer artista, sem medo de não colocar aspas na palavra. É possível então parafrasear as palavras de Iavelberg quando diz que é necessário que o professor seja um “estudante” fascinado por arte, pois só assim terá entusiasmo para ensinar e transmitir a seus alunos a vontade de aprender. Nesse sentido, um professor mobilizado para aprendizagem contínua, em sua vida pessoal e profissional, saberá ensinar a postura a seus estudantes. (IAVELBERG,2003 p.12) 1187 A presença da prática artística no cotidiano do professor de arte reforça a ideia da necessidade de um profissional com formação específica em arte na escola, em contraponto ao pensamento que ainda circula entre os meios escolares de que qualquer professor com formação em áreas humanas poderia ministrar aulas de arte. O conhecimento artístico, mais que um conhecimento teórico, é um conhecimento que nasce do fazer e não existe sem ele: criar possibilita que o professor descubra caminhos mais vivos para ensinar também para aprender. REFERÊNCIAS BARBOSA, A. M. T. B. A imagem no ensino da arte: anos oitenta e novos tempos. São Paulo: Perspectiva, 1991. BARBOSA, A. M. T. B. Arte Educação no Brasil. São Paulo: Série Debates, 1995. BURRUS, CHRISTIANA. Frida Kahlo. Editora Objetiva. 2010 FUSARI, M. F. R.; FERRAZ, M. H. C. Arte na educação escolar. São Paulo: Cortez, 1992 IAVELBERG, Rosa. Para gostar de aprender arte: sala de aula e formação de professores, Porto Alegre, Art Med 2003 LAGNADO, Lisette. São tantas as verdades. Leonilson. São Paulo: Melhoramentos, 1998. ROSSI, Maria Helena Wagner. Imagens que falam: leitura da arte na escola. Porto Alegre: Mediação, 2003. 1188