CINDY SHERMAN É LEGIÃO: ARTE CONTEMPORÂNEA E PRODUÇÃO
DE SUBJETIVIDADE
Roberta Stubs Parpinelli1
Fernando Silva Teixeira Filho 2
Resumo: A partir da perspectiva pós-feminista de que é preciso inventar outras figurações para o
feminino, a proposta deste artigo é refletir sobre a produção artística de Cindy Sherman e perceber
como a obra desta artista questiona e abala as tecnologias de gênero que incidem sobre o corpo
feminino, e, ao fazer isso, produz linhas de subjetivação que lançam para outros territórios nosso
entendimento sobre o corpo, os papéis de gênero e a identidade. Numa aproximação entre arte
contemporânea e a postura inventiva de autoras pós-feministas como Rosi Braidotti, Beatriz
Preciado e Donna Haraway, apostamos na necessidade de inserir e recuperar a inventividade dentro
do feminismo, dentro da filosofia, da academia e, finalmente, dentro de nossas próprias práticas
enquanto pessoas situadas num tempo no qual inventar novos e outros modos de ser, estar e desejar
é bem mais valioso do que reproduzir valores e práticas já caducas. Em consonância com um
paradigma ético-estético-político de pensamento, numa perspectiva pós-identitária e investindo em
subjetividades estéticas, a ideia é perceber como a obra dessa artista opera uma re-significação de
práticas e pensamentos pela via da criação de outros modos de pensar, agir e significar as relações
de gênero, o feminino, o corpo e as relações sociais.
Palavras-chave: Pós-identidade. Subjetividade estética. Pós-feminismo. Arte contemporânea.
A partir da perspectiva pós-feminista3 de que é preciso inventar outras figurações para o
feminino, a proposta deste artigo é refletir sobre a produção artística de Cindy Sherman para
perceber como a obra desta artista contemporânea questiona e abala os estereótipos que temos sobre
o feminino, e, ao fazer isso, produz linhas de subjetivação que lançam para outros territórios nosso
entendimento sobre o corpo, os papéis de gênero e a identidade feminina.
Cindy Sherman é uma expressiva artista contemporânea que utiliza o próprio corpo para
desconstruir a fixidez da identidade ao explorar outras figurações para o feminino. Cindy Sherman é
uma fotógrafa e diretora de cinema americana nascida em 1954 que vive atualmente em Nova
Iorque. Sua produção tem como características auto-retratos nos quais ela questiona o papel e o
modo como as mulheres são representadas socialmente, denunciando o caráter discursivo da
produção do feminino a partir das tecnologias midiáticas, literárias, fílmicas e médicas entre outras.
1
Artista Visual, Psicóloga e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unesp-Assis. Bolsista
FAPESP. Link para portifólio - www.lixoinprocess.blogspot.com.
2
Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unesp de Assis.
3
A terminologia pós-feminismo se refere a uma espécie de re-significação do próprio feminismo a partir das reflexões,
principalmente, do pós-estruturalismo no que tange às discussões sobre a diferença e à necessária desconstrução de uma
concepção identitária e universal de sujeito. Neste sentido, o pós-feminismo significa uma reflexão acerca de
armadilhas identitárias e generalizantes que acometem o próprio feminismo e acaba por reforçar o binarismo de gênero
que classifica e separa o masculino do feminino.
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Trata-se de uma artista que inaugura o que nos anos setenta denominou-se de artistas de
performance e body-art (GROSENICK, 2005, p. 300-305). Falar sobre a produção dessa artista fazse contundente pois que junto aos estudos feministas ela tornou-se uma referência para se pensar as
questões de gênero bem para se desconstruir as representações tradicionais do feminino. Com
exposições nos museus mais importantes de arte contemporânea a artista consta entre os cem
artistas mais expressivos na atualidade (HOLZWARTH, 2010).
De acordo com Kátia Canton (2009), um dos temas da arte contemporânea é o corpo, a
identidade (não apenas a de gênero) e o erotismo. Temas consonantes com a produção dessa artista,
respeitada também por explorar diferentes suportes e formas de expressão, tais como: fotografias,
instalações, foto-instalações, vídeo-instalações e performances. Interessa-nos o fato de que, através
do trabalho de Sherman, podemos pensar as questões de gênero, de corpo e de identidade via
multiplicação da mesma. A artista utiliza o próprio corpo como território expressivo de suas obras
retirando dele suas essencializações ditas femininas para nos mostrar suas multiplicidades. Essa é
uma das estratégias desenvolvidas pelas autoras pós-feministas para desconstruir os essencialismos
acerca do gênero masculino ou feminino é fazer ver as linhas constituintes desse processo de
naturalização.
Esta estratégia é bem visível na obra “Untitled Film Stills”4 (1977-1980), na qual Sherman
explora as linhas de esteriotipia que formam o imaginário feminino e cunham um modelo ideal de
ser mulher. Se valendo das figuras femininas apresentadas no cinema no período de 1950 a 1960, a
artista performatiza inúmeras cenas que compõe o imaginário acerca da mulher, projetando-se em
personagens e desempenhando inúmeros papéis, “ atriz, namorada, estudante, dona de casa, moça
do interior na cidade grande, sedutora, esportista, desamparada, sofredora, vizinha”, imagens
marcadas por “um código gestual padronizado e geralmente trivial, das quais emerge a visão da
mulher como pura superfície, como aparência convencional e restrita a papéis socialmente
determinados.” (FABRIS, 2003). Ao perfomatizar estes vários esteriótipos femininos a artista deixa
em evidência que o "ser" é tanto uma construção imaginária quanto receptáculo de uma política de
subjetivação que acaba por definir práticas, desejos, modos de ser e estar no mundo.
Fazendo ver algumas linhas esteriotipadas que constituem uma dada política de subjetivação
feminina, a artista afronta diretamente as práticas identitárias que definem o que é ser mulher a
partir de um ponto de vista heteronormativo. À luz dos escritos de Butler (1993), podemos dizer
que, ao performatizar estas inúmeras figuras femininas, a artista nos faz ver que somos subjetivados
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http://www.moma.org/interactives/exhibitions/2012/cindysherman/gallery/2/#/64/untitled-film-still-2-
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pelo gênero, pela repetição de normas constitutivas que naturalizam os processos de construção de
identidade: “(...) o 'eu' nem precede, nem segue o processo dessa 'criação de um gênero', mas apenas
emerge no âmbito e como matriz das relações de gênero propriamente ditas” (BUTLER, p.7).
Nestas fotos-performances, Sherman desvela o modo como os “gêneros são forjados e incrustados
em uma economia semiótica da diferença sexual.” (COSTA, 1994, p.159-160), o que acaba gerando
uma abertura para uma pluralidade de feminilidades, aspecto que desenvolveremos mais a frente.
Pode-se dizer então, que os atributos de gênero são, portanto, performativos, ganhando vida
e consistência no modo como os sujeitos executam e vivem suas relações cotidianas. É na imersão
na tessitura sócio-cultural que estes atributos se in-corporam em nossos corpos e delineiam o que
somos e desejamos, sendo nossas próprias práticas de existência o meio pelo qual essas categorias
são objetivadas e naturalizadas. Uma vez que naturalizamos e objetivamos o gênero em nossas
performances existenciais, podemos, estrategicamente, desconstruir este funcionamento e inventá-lo
outro, agenciando e dando visibilidade e passagem a outras e variadas estilísticas da existência.
Assim, o mesmo “mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino são produzidas e
naturalizadas, poderia ser muito bem o dispositivo pelo qual estes termos são desconstruídos e
desnaturalizados” (BUTLER, 2006, p.59).
É no sentido da desconstrução e desnaturalização que, tal como um plano de forças
invisíveis, mas não menos atuantes por isso, há no Untitled Film Stills a suspeita de que aquelas
mulheres nada mais são do que ficções podendo portanto serem ficcionadas de outro modo. É neste
plano que a obra de Sherman opera algumas desconstruções acerca do feminino e lança a
possibilidade de outras linhas de subjetivação. Neste sentido, uma multiplicidade de mulheres são
criadas por Cindy. Em alguns trabalhos, ela não apenas sugere outros modos de ser mulher, mas
performatiza figuras femininas que se opõem radicalmente a estes esteriótipos que definem um
padrão frágil e dócil de mulher. Um dos retratos em questão, faz parte de alguns trabalhos que a
artista fez sob encomenda de grandes marcas do mundo fashion, entre elas a Vogue de Paris. Após
o sucesso de Film Stills, Sherman ganhou notoriedade como um dos grandes nomes da arte
contemporânea e foi convidada para fazer algumas campanhas publicidades para essas grandes
marcas.
Em seu primeiro editorial de moda realizado em 1984 para a Vogue-Paris, com liberdade
total de criação, Sherman performatizou mulheres completamente destoantes de qualquer padrão de
beleza. Untitled-137 retrata uma mulher vestida com um casaco vermelho, que pode até ser bonito,
porém insuficiente para tornar atraente esta mulher que aparece descabelada, descuidada e com
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feição de tristeza, abandono ou desdém. No Untitled 133, feito para a mesma campanha, o que
vemos é uma mulher sem maquiagem nenhuma, com um cabelo mal cortado e mal arrumado que
inspira mais pena ou rechaço do que admiração e desejo projetivo de ser igualmente bela e feliz.
Num olhar mais atento, percebe-se que pouco há de vida nessa mulher de olhar perdido e rosto com
linhas de expressão quase inespressivas.
Untitled 137
Untitled 133
Valendo-se de sua recém conquistada "fama" e, provavelmente, do fato das pessoas não
compreenderem completamente a verve de seu trabalho, Sherman gera, de dentro da barriga do
mostro (HARAWAY, 1995), alguns abalos no imperativo do belo, do normal e do esperado que
reina unânime na industria da moda e da beleza. Estes retratos são fundamentais para posicionar
Cindy como uma artista feminista, visto que ela se propõe visivelmente a discordar e combater a
ditadura da beleza que incide sobre o feminino e que forma subjetividades que encarnam estes
padrões e os atributos de gênero em seus próprios modos de vida.
Num plano molecular, vibra na obra de Sherman a suspeita de que vestimos esses atributos
de gênero em nossa pele, performatizando-os em nossas práticas diárias. O que nos lança a
desmistificar a idéia de que existe um corpo natural, ao pensar a materialidade deste corpo o
destituindo de mecanismos de naturalização advindos da associação entre corpo, sexo e gênero. O
que ocorre é uma abertura para a desconstrução de uma lógica heteronormativa que se sustenta
numa concepção biologizante que determina que um corpo dotado de um órgão sexual feminino
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deve, necessariamente, performatizar o gênero feminino, desejando figuras do sexo oposto e se
comportando de acordo com as prescrições ligadas a este gênero.
Para desconstruir esta ideia, as autoras feministas se propuseram a desvelar as linhas e
tecnologias que se valem dessa concepção naturalizada de corpo para naturalizar também atributos
de gênero. A estas tecnologias, técnicas e estratégias discursivas pelas quais é construído o gênero,
Teresa De Lauretis denominou tecnologias de gênero (LAURETIS, 1994). Para a autora, tais
tecnologias atuam sobre corpos e desejos visando criar, regular e normatizar expressões de
masculinidades e feminilidades num esquema heteronormativo e falocêntrico. Segundo Lauretis
(1994, p.25) a construção de gênero se faz através de varias tecnologías de gênero " (por ejemplo, el
cine) y de discursos institucionales (por ejemplo, teorías) com poder para controlar el campo de
significación social y entonces producir, promover e ‘implantar’ representaciones de género”. Num
diálogo com Lauretis, acrescenta Peres (2011, p. 100):
Trata-se de tecnologias que disciplinam os corpos, regulam os prazeres e adestram os
desejos de modo binário e sedentário, produzindo indivíduos marcados por uma
engrenagem
regulatória
e
disciplinar
que
se
orienta
pelo
sistema
sexo/gênero/desejo/práticas sexuais que determina corporalidades, figurações e discursos de
manutenção à ordem heteronormativa, promovendo processos de subjetivação
normatizadores heterocentrados.
Os corpos passam a ser compreendidos como superfícies prédiscursivas, efeitos do próprio
discurso que os produz e os naturaliza. Corpos marcados e subjetivados por regimes de verdade
(FOUCAULT, 1980). De acordo com (SWAIN, 2007, p.5) os corpos são sócio-sexuados, o
feminino por exemplo “não é um gênero imposto a corpos pré-existentes, cujas variações apenas
exprimem as roupagens culturais e históricas; o gênero feminino cria, ao contrário, corpos
adequados às limitações deste gênero”.
Absorvemos em nosso corpo as mais diferentes tecnologias para deixá-lo jovem, belo,
saudável e o mais próximo possível de um ideal normativo. Encarnamos em nossa pele diferentes
próteses de gênero que ditam como um corpo feminino deve ser para ser desejável, como devemos
expressar nosso desejo e nossos sentimentos. Ao vestir essas tecnologias de gênero e naturalizá-las
em nossas performances existenciais perdemos uma dimensão importante da relação que
estabelecemos conosco mesmas.
Na relação que cada uma de nós estabelece com o próprio corpo, desejo e práticas, as
tecnologias de gênero passam a ocupar um lugar que deveria ser concedido a um cuidado de si no
sentido dado por Foucault (2004). De acordo com o autor, o cuidado de si permite "aos indivíduos
efetuarem, sozinhos ou com a ajuda de outros, um certo número de operações sobre seus corpos e suas almas,
seus pensamentos, suas condutas, seus modos de ser,". Tal como os gregos se valiam deste cuidado de
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si para alcançar uma espécie de ascese pessoal de acordo com valores éticos, podemos operar sobre
nosso próprio corpo e experimentar uma relação de autoria com nossos territórios existências.
Porém, pelo fato dessas tecnologias de gênero procederem por naturalizações e atuarem
sinuosamente na produção de subjetividades muitas vezes já dóceis e consentidas à performatizar
estes valores sem contestação, estas tecnologias são facilmente maquiadas e vividas como cuidado
de si; uma pseudo expressão de auto-cuidado, auto-conhecimento e autoria de si.
É desfazendo essa maquiagem que Sherman desvela as tecnologias de gênero que incidem e
marcam a superfície de inscrição que é o corpo. Em quase todos seus autoretratos, a artista faz
questão de deixar visível e aparente os recursos que ela utiliza para construir cada figuração do
feminino que cria. Maquiagem, peruca, assessórios e iluminação deflagram o processo de
construção daquele corpo, processo que deve ser percebido ao invés de ocultado.
Cada uma das linhas que constroem esses corpos femininos marcam traços e elementos do
que poderíamos supor ser a personalidade dessas mulheres inventadas por Cindy. São linhas que,
num só lance, singularizam cada perfil criado por Sherman e, ao mesmo tempo, generalizam estes
corpos no escopo de um contexto social. Em cada rosto a combinação de diferentes tecnologias de
gênero e o esboço de um perfil de subjetividade de aparência única e singular. Porém, o que a artista
faz ver em seus auto-retratos, é que, pulsam na suposta singularidade de cada corpo, as linhas que
marcam esses corpos como genéricos.
Untitled 359
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A bela jovem que vemos logo acima, retrato feito em 2012 para uma campanha da marca de
cosméticos MAC, se assemelha a tantas outras belas jovens que acreditam que ser bela é fonte de
felicidade e possibilidade de inserção social. Com um cabelo impecável e uma maquiagem
harmoniosa, uma suposta felicidade emana desse retrato: ela é linda e perfeita, tem tudo para ser
feliz. Pessoas lindas e perfeitas se encaixam em harmonia na tessitura social, não sofrem, não
demonstram descontentamento e não esboçam o menor movimento de resistência social por estarem
demasiadamente adequadas ao mesmo. É no modo como essa mulher é montada, que percebemos
as tecnologias de gênero que funcionam nesse corpo e traça um perfil de subjetividade dócil e
passivo. O retrato passa a ideia de uma mulher que se sente especial e única, porem é facilmente
perceptível que se trata da objetivação de uma performance existencial pautada em clichês e
estereótipos.
No Untitled 359 podemos ver a passagem do tempo e as marcas que ele deixa ao incidir na
transformação do corpo. No entanto, neste corpo em questão há uma nítida resistência ao tempo, o
excesso de maquiagem denota o peso de uma tecnologia de gênero que inscreve em nossos corpos a
fé de que o corpo belo e jovem é o único corpo possível. Esconder a passagem do tempo sobre o
corpo é não se perceber em processo de envelhecimento, é não aceitar esse corpo que também
passa, é distanciar-se de si enquanto sujeito que experiencia o tempo em sua vida e ganha
intimidade consigo mesmo na medida em que ele passa. É como ato de resistência e possibilidade
de desconstrução que Sherman, ao criar essa figura feminina, opta por manter seu cabelo
despenteado e evidenciar o visível exagero na maquiagem. A artista nos faz ver os excessos dessas
tecnologias de gênero e o peso que estes excessos ganham em nossas vidas e corpos com o passar
do tempo.
Dando visibilidade às marcas que incidem sobre o corpo, Sherman desconstrói um suposta
unidade do "eu", e abre nosso pensamento para compreender o "eu" enquanto processo.
Deflagrando as tecnologias de gênero que, historicamente, entram em funcionamento na construção
do corpo feminino e/ou masculino, a artista, de algum modo, nos diz que estes corpos são
construídos. Ao fazer isso, Sherman traz a tona uma concepção de "sujeito" processual, mais afeito
ao devir do que à essencialismos.
Segundo Bartholomeu (2009, p.56), mesmo trabalhando essencialmente com autorretratos,
Sherman desconstrói completamente a idéia de um "eu" identitário, um "ser" único. Segundo o
pesquisador e artista plástico:
O todo dos autoretratos de Cindy Sherman não é uma grande assemblage da qual se
produza, na totalidade, um eu: cada um dos retratos admite mal os demais não porque se
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reportem ao mesmo eu, mas porque, finalmente, parecem não se reportar a eu algum,
mostrando-se genéricos.
Não se reportar a "eu algum" evidencia, de certo modo, um vazio subjetivo que marca a
categoria do feminino visto que, numa leitura feminista, o feminino é uma construção masculina.
Ao mesmo tempo, este "eu algum" aponta para qualquer eu possível, não representando somente
um vazio, mas também um campo de multiplicidade ainda a ser explorado por este eu em constante
transformação.
Num vídeo5 no qual a artista fala sobre seu processo criativo e sobre a retrospectiva de sua
obra realizada no MOMA em 2012, há uma passagem que deixa bastante evidente este "eu algum".
Tal passagem remonta à infancia de Cindy quando, ainda criança, ela pegava os retratos de família,
desenhava um circulo em seu rosto e escrevia "eu" logo abaixo do círculo. Mais do que uma
afirmação identitária, podemos compreender este ato como um estranhamento de si mesma, uma
espécie de auto-desconhecimento que se perfila como força gerativa para a construção de outros
"eus" possíveis. Utilizando a si própria como modelo de seus retratos, Sherman segue se desreconhecendo e se aproximando de si mesma na medida em que se estranha. Pode-se dizer que, este
estranhamento infinito presente no trabalho da artista lança linhas virtuais de subjetivação, abre
frestas para outros "eus" possíveis. É nesta fenda que pode ocorrer a fusão potente de pensamentos,
desejos e práticas que destoam da regra; de modos de ser mulher não necessariamente aceitas e
condizentes com a heteronormatividade.
Abrir frestas para outros "eus" possíveis é uma estratégia etica-estética-política para
ultrapassar a ênfase identitária entendida tradicionalmente como fixa, essencialista e
universalizante. Aspecto que alinha a produção de Sherman com algumas propostas pós-feministas
que lançam mão de figuras pós-identitárias6, gerando um deslocamento nos pólos masculino e
feminino e seus correlatos identitários, e lançando o corpo num território de fronteira, mais afeito à
experiência que à representação. Ao deslocar-se das demarcações que delimitam o gênero
masculino e o gênero feminino, as figurações pós-identitárias lançam o corpo e a subjetividade em
um não-lugar identitário, no qual é inviável recorrer a modelos normativos pré-existentes. Ao invés
de um modo de subjetivação fechado, as figuras pós-identitárias são afeitas à conexões e simpáticas
às dissonâncias. Aqui, o primado da alteridade é incorporado como dimensão ética relacional,
escapando do sistema de apropriação, incorporação e totalização (HARAWAY, 1994, p.254), que
reduzem o múltiplo e a diferença ao primado do mesmo e do sempre-igual.
5
http://lalulula.tv/tv/art21-cindy-sherman
Algumas figuras pós-identitárias: Cyborg (HARAWAY,1994); subjetividade nômade (BRAIDOTTI,1994); mestiço
(ANZALDUA, 1987)
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Nesta concepção, as figurações pós-identitárias se experienciam em fronteiras e não tem
como correlato o amparo de atalhos morais de ação; segue por vias de diferenciação que as abrem e
as criam. Isto é, acaba por transgredir fronteiras que viabilizam fusões potentes e a insurgência de
possibilidades de vida. Abre-se caminho para conexões não-identitárias e temporárias, uma via
ética-estética-política que prevê a negociação constante das partes envolvidas, a criação de linhas e
territórios de vida e, finalmente, a não reprodução automática dos enredos tidos moralmente como
certos e errados. Como figuras pós-identitárias, podemos dizer que, cada perfil de mulher criado por
Sherman é um ponto de multiplicidade e de multiplicação “que faz passar a singularidade de
diferentes maneiras de existir, por um só e mesmo quadro identificável” (GUATTARI, e ROLNIK,
1999, p. 80).
Segundo Rey (2002), a arte contemporânea opera atuando como “elemento ativo na
elaboração ou no deslocamento de significados já estabelecidos” (idem, p.123). É isso que a obra de
Sherman faz ao operar como ponto de multiplicação. Seu trabalho perturba o conhecimento de
mundo, até então familiar, colocando o "espectador" em processo. Segundo Rolnik (2002), fica
mais explicito que a “(...) arte é uma prática de problematização: decifração de signos, produção de
sentido, criação de mundos”, não se reduzindo ao objeto estético resultante dessa prática, mas
voltando-se à prática como um todo: “(...) prática estética que abraça a vida como potência de
criação em diferentes meios onde ela opera” (idem, p.56). Ocorre pois, uma aproximação entre arte
e vida, o que gera uma suspeita de que a criação, ou o processo criativo, não é propriedade apenas
do artista. Suspeita que opera uma horizontalização tanto entre arte e vida, quanto entre artista e
espectador. De algum modo, esta proposta anuncia a utopia de um novo tempo, no qual todos são
potencialmente artistas em suas práticas e relações mais singulares com a vida. O que fica, é que a
vida é produzida e encontra-se inacabada, ela pode e deve ser transformada e inventada por artistas
das mais variadas ordens.
Podemos, então, entender a vida como obra de arte, o que significa inventar novas
possibilidades de vida através de "regras facultativas que produzem a existência como obra de arte,
regras ao mesmo tempo éticas e estéticas que constituem modos de existência ou estilos de vida"
(Deleuze, 2006, p.123). Neste sentido, podemos dizer que inventar novas possibilidades de vida
pressupõe também inventar-se a si mesmo explorando-se outro no vasto campo relacional que
constitui a relação sujeito-mundo. Como face de uma mesma dobra, podemos dizer que a arte
contemporânea, ao estreitar os laços entre arte e vida, investe na produção de subjetividades mais
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inventivas, e, ao mesmo tempo, lança linhas de subjetivação que favorecem esse modo de
subjetivação implicada com a criação e transformação da própria existência.
Podemos pensar então em uma subjetividade estética, tal como desenvolvido por TeixeiraFilho (2003) e Rolnik (2002). Este conceito se refere à processualidade que faz vibrar a
subjetividade e a lança em movimentos de criação e de devir, favorecendo a construção de outros e
novos universos de referência, assim como a construção/desconstrução de significados e
aprendizado de novos signos. Segundo Rolnik (2002), investir em subjetividades estéticas mobiliza
o desenvolvimento de uma capacidade de reciclagem de repertório e promove a abertura para outros
modos de ser, estar, desejar e se relacionar no e com o mundo.
São estes outros modos de ser, estar e desejar que Sherman dispara em suas obras. Em sua
poética, Sherman fricciona entre o real e o imaginário e compõem suas outras figurações do
feminino. Suas, porque são todos retratos seus, seu rosto, sua cara. A mesma cara e outros rostos.
Mas quando a cara desaparece, Sherman em seu rosto também desaparece. Em cada foto um rosto
diferente olhando para nós. É neste ponto que o pronome suas se converte em outras. Todo autor,
todo artista morre um pouquinho quando uma obra nasce. A criação é sempre maior que o criador, a
obra é da ordem da multiplicidade e não da unidade. Uma legião de mulheres nascem em Cindy
Sherman, mulheres que se multiplicam infinitamente a cada encontro com o "espectador". Cada vez
que sua obra encontra um outro olhar, linhas de subjetivação são lançadas para operar aberturas
possíveis naquele que é tocado pelas múltiplas figurações do feminino que vibram na obra de
Sherman.
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Cindy Sherman is legion: contemporary art and the production of subjectivity
Abstract: From the perspective of post-feminist that need to invent other images for the feminine,
the proposal of this article is reflect about the artistic production of Cindy Sherman to understand
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how the work of this artist questions and shakes the technologies of gender that focus on the female
body, and, doing this, produces lines of subjectivation that cast for other territories our
understanding about the body, gender roles and the identity. Rapprochement between contemporary
art and the inventive posture of authors post-feminists as Rosi Braidotti, Beatriz Preciado and
Donna Haraway, we are counting on the need to insert and retrieve the inventiveness within
feminism, within the philosophy of the academy and, finally, within our own practice while people
located in a time in which invent new and other modes of being, being and wishes and well more
valuable than play values and practices have already fallen. In line with a ethical-aesthetic-political
paradigm thought, in a perspective post-identitarian and investing in subjectivities aesthetic, the
idea is to understand how the work of this artist operates a re-signification of practices and thoughts
by creating other ways of thinking, acting and signify the gender relations, the female, the body and
the social relations.
Keywords: Post-identity. Aesthetic subjectivity. Post-feminism. Contemporary art.
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
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cindy sherman é legião: arte contemporânea e