O USO DAS MÍDIAS DIGITAIS NA CONSTITUIÇÃO DE CONHECIMENTOS
E VALORES
Wânia Clemente de Castro
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
[email protected]
INTRODUÇÃO
É difícil negar que uma educação que transcende os muros da sala de aula e se
abre para as linguagens e as práticas do mundo contemporâneo se torne,
necessariamente, mais complexa e ainda menos transparente. Para essa complexidade
contribuem, em grande medida, as novas ferramentas tecnológicas que se fazem cada
vez mais presentes no processo de ensinar e aprender.
A ONU, em seu último Relatório Anual de Desenvolvimento Humano, não só
priorizou as mídias digitais como as destacou como impulsionadora de avanços
sociais. Para melhor compreender a questão, estabeleceu um novo indicador do
Desenvolvimento Humano: o Índice de Avanço Tecnológico (IAT), criado para avaliar
a produção e disseminação das novas tecnologias e, acima disso, seu aproveitamento
pela população.
Em seu tempo, a educação também tem evoluído, buscando melhores formas de
oferecer as condições necessárias ao desenvolvimento de aprendizagens significativas.
Com o crescimento social da internet, instituições de ensino dos mais diversos
segmentos e lugares do planeta passaram a experimentar o uso das redes telemáticas em
apoio aos processos pedagógicos, tanto como complemento a aulas presenciais, quanto
como ambientes auto-sustentáveis de ensino. “As redes telemáticas, em especial a
internet, conquistaram espaço dentro do ambiente educacional, abrindo um leque de
novas possibilidades nos processos de construção de conhecimento”. (FIORITO, 1995
apud NEVES & BARROS, 2000, p.34).
De fato, a educação está sendo marcada pela presença das novas mídias digitais
portáteis e móveis. O processo de interação entre aluno/professor e aluno/aluno é o
marco da tecnologia instrucional voltada ao aprender e ao buscar. A ênfase à
construção do conhecimento novo e original é o que difere dessa nova fase, baseada nas
possibilidades de fortalecimento da interação e do coletivo. Ainda nesta ótica, a
educação recupera a clássica noção da maiêutica, esquecida pelo tradicional espaço
escolar, onde a elaboração e explicitação de ideias novas seriam a grande meta das
interações pedagógicas, utilizando novas mídias e descobrindo suas linguagens.
O potencial das mídias digitais com o trabalho colaborativo apoiado pelo
computador, os ambientes de aprendizagem interativa e as ferramentas cognitivas online permitem novos enfoques pedagógicos a serem considerados no processo de
ensino-aprendizagem.
As mídias, esses meios digitais, também têm o potencial de afastar a educação
dos métodos instrucionais tradicionais, tanto em sala de aula quanto a distância, em
direção a uma aproximação da instrução centrada no aluno, que não mais enfatiza o
professor como a fonte e o árbitro de todo o conhecimento, mas como um articulador e
mediador do processo de ensino-aprendizagem.
Em síntese, a presença das novas tecnologias de informação e comunicação tem
introduzido mudanças profundas no nosso modo de conceber e viver a realidade,
principalmente, no das crianças e adolescentes. Hoje, “(...) na sociedade contemporânea,
estabelece-se um processo em que as novas tecnologias são, na realidade, vetores e
agregadores de novas formas sociais”. (LEMOS, 2000, p.79). Compreender o papel das
novas mídias, a partir do ponto de vista de crianças e adolescentes, buscando identificar
as motivações, os interesses e os usos com as tecnologias digitais, sem dúvida, é um dos
nossos desafios.
Acreditando no potencial tecnológico das mídias digitais, do computador e da
Tecnologia da Informação e da Comunicação (TIC) na educação e visando o
desenvolvimento local no que se refere à apropriação da tecnologia e, principalmente,
no aumento do Índice de Avanço Tecnológico (IAT) da comunidade de Vila Dois Rios,
o Centro Multimídia do Programa Ecomuseu Ilha Grande/SR3/UERJ em parceria com
o Centro de Tecnologia Educacional/SR3/UERJ
implantou em 2011 o Espaço
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Multimídia Ecovila Digital e dá o primeiro passo em direção à disseminação de
pesquisas e à produção de mídias, bem como da ações relacionadas ao desenvolvimento
social, econômico, político e cultural dessa comunidade.
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Espaço de convívio, criação e produção multimídia (cinema, rádio, animação, HQ, TIC etc.) com crianças, jovens e adultos, bem
como de pesquisas e práticas educativas desenvolvidas com a comunidade local sobre o processo de aprendizagem por meio das
novas mídias digitais em ambientes informais e não-institucionalizados como espaço de ensino.
A implantação de um projeto voltado para a promoção da inclusão digital em
uma comunidade afastada do continente, com o intuito de integrá-la ao desenvolvimento
sustentável da cidade, se justificou para além da possibilidade de melhorias concretas na
educação local. Mas, também, pela existência do Programa EcoMuseu Ilha Grande2
sediado no Campus avançado da UERJ, em Vila Dois Rios, Ilha Grande3/Angra dos
Reis/RJ.
BREVE REFERENCIAL TEÓRICO
Há cinco décadas o intercâmbio cultural dependia, basicamente, do cruzamento
de fronteiras geográficas ou do acesso aos produtos que os meios de comunicação nos
propiciavam, em especial, o rádio, o cinema, a mídia impressa e a televisão. Contudo,
em curto espaço de tempo, os processos de globalização, aliados ao desenvolvimento
dos recursos tecnológicos, transformaram rapidamente esse cenário, configurando a
hegemonia midiática.
A cultura das mídias – narrativas e imagens veiculadas pelos meios de
comunicação – alimenta os símbolos, os valores, os mitos e as visões de mundo de
maneira homogeneizada, fragmentada, quando não, estereotipada, daquilo que passa a
ser constitutivo e incorporado culturalmente.
A partir da década de 90, a mídia digital, ao transpor as barreiras de tempo e
espaço, e ao incorporar os recursos multimídia, promovendo a convergência de todas as
mídias em um único meio de comunicação e informação – a internet - detém um lugar
especial na cultura midiática, sendo sinônimo de democratização do acesso à
informação. A concepção clássica de recepção, cujo termo remete a uma atitude de
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O Ecomuseu Ilha Grande caracteriza-se como um centro pioneiro de estudo e pesquisa com uma proposta inédita: a de associar
a preservação ambiental à preservação da história e da cultura da Ilha Grande. Diferentemente do museu tradicional, ou de práticas
ambientalistas ortodoxas, o Ecomuseu Ilha Grande desenvolve suas atividades com o intuito de valorizar e enfatizar a relação do
homem com o patrimônio. É, portanto, um centro articulador de serviços para grupos sociais, voltando-se para o desenvolvimento
regional sustentável. O Ecomuseu Ilha Grande é composto por quatro núcleos, capazes de garantir a consecução dos objetivos
propostos: Museu do Cárcere, Museu do Meio Ambiente, Parque Botânico e Centro Multimídia.
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A Ilha Grande tornou-se um pólo turístico a partir da implosão das instalações carcerárias de Vila Dois Rios, em 1994. As
atividades de turismo desenvolveram-se de forma acelerada, trazendo alguns problemas como a circulação inadequada de visitantes
pelas matas e a introdução de culturas de espécies vegetais e animais estranhas à ilha. Em 1996, a UERJ obteve o direito de cessão
das áreas e benfeitorias localizadas na Vila de Dois Rios (Ilha Grande), anteriormente ocupadas pelo Instituto Penal Cândido
Mendes, desativado em 1994. Em cumprimento às obrigações dos termos de cessão a UERJ inaugurou o Centro de Estudos
Ambientais e Desenvolvimento Sustentável (CEADS), que vem desenvolvendo investigações acadêmicas em diversas áreas do
conhecimento e o Programa Ecomuseu Ilha Grande,
passividade frente aos meios, passa por um processo de revisão a partir dos Estudos
Culturais e das análises de recepção realizadas, sobretudo, com as redes sociais.
Ao assumir que as mídias desempenham um importante papel nas dinâmicas de
transformação cultural e identitária, esta pesquisa também trabalhou com a premissa de
que as culturas demarcam lugares, valores, conformam interesses que direcionam as
escolhas e preferências do grupo, incluindo nessa dinâmica os usos e apropriações do
universo da mídia digital (Reis, 2003). Por essa via, transitam diferentes conhecimentos,
dos quais as pessoas se apropriam com os mais variados interesses e, também, por onde
se afirmam e se recriam as identidades, já que os usos estão relacionados aos processos
de significação coletivos e subjetivos. Às práticas sociais agregam-se valores e
comportamentos que, por sua vez, refletem condições socioeconômicas e culturais.
SÍNTESE DOS PRIMEIROS RESULTADOS
O projeto surgiu com a proposta de investigar o impacto dos novos meios de
comunicação, os princípios de aprendizagem que emergem decorrentes do uso dessas
tecnologias e as possíveis transformações na forma como crianças e adolescentes
constituem conhecimento, cultura, valores e vida social.
O Centro Multimídia do Projeto Ecomuseu Ilha Grande, por meio deste projeto
de pesquisa, criou o Espaço Multimídia Ecovila Digital, visando o desenvolvimento da
comunidade local, principalmente as crianças e os adolescentes, no que se refere à
apropriação da tecnologia – antigo anseio dos moradores – e à criação do primeiro
programa de inclusão digital na Vila Dois Rios - Ilha Grande.
Afinal, o que o mundo digital e em rede tem a oferecer à comunidade de Vila
Dois Rios? Como o conhecimento produzido na universidade pode contribuir para a
inclusão social? Quais são os usos recorrentes e as significações presentes no uso e
apropriação das mídias digitais por essa comunidade? A busca por respostas indica a
complexidade do problema e o desafio que temos pela frente. Essas são algumas
questões que estão sendo investigadas, objetivando compreender o potencial desses
novos espaços midiáticos - informais - de aprendizagem e, ainda, a maneira pela qual a
produção de conhecimento da universidade pode estar associada à inclusão digital e,
consequentemente, social.
Estimular a criação de produções de mídia (vídeo, fotografia, rádio, animação,
cinema, web), visando à formação das crianças e adolescentes à expansão dos
horizontes para as mídias digitais e contextualizar o fenômeno - das mídias digitais como forma de apreendê-lo mais significativamente, configurou um dos principais
objetivos do projeto.
Objetivando, ainda, compreender como crianças e adolescentes utilizam as
novas mídias digitais em ambiente informal de aprendizagem e, considerando que
crianças e jovens da Vila Dois Rios (Ilha Grande) nunca estiveram em uma sala de
cinema, optou-se por promover a 1ª oficina de cinema nesta comunidade.
Ao invés de seguir a tendência dominante de tratar o cinema como mais um
recurso didático partiu-se do entendimento de que a educação e o cinema são formas de
socialização dos indivíduos e de constituição de instâncias culturais que produzem
saberes, identidades, visões de mundo e subjetividades (Duarte, 2002).
A pesquisa realizada junto à comunidade da Vila Dois Rios, nesta primeira fase,
incentivou-nos a apresentar os resultados, ainda que parciais, sobre os interesses que
mobilizam essa comunidade ao uso da mídia digital (Reis, 2003).
Participaram da oficina 03 crianças (06 a 10 anos), 04 adolescentes (12 a 16
anos) e 01 adulto (62 anos).
O abismo cultural entre as gerações torna-se ainda mais evidente quando as
atenções se voltam para as relações destas com a tecnologia. A cultura digital tem como
grande aliado a aprendizagem instantânea. Com isso, a brecha entre gerações com
relação ao domínio da tecnologia tem aumentado.
A criança e o adolescente aprendem quando se vêem instigados, interessados e
curiosos pelo assunto. Assim, eles desenvolvem habilidades que antes não tinham a
oportunidade de desenvolver, devido ao ambiente escolar restrito à convencional sala de
aula.
Bourdieu (1997), diz que a experiência das pessoas com o cinema contribui para
desenvolver o que se pode chamar de "competência para ver". Porém, o
desenvolvimento de tal competência não se restringe ao simples ato de assistir a filmes;
tal competência tem ligação com o universo social e cultural dos indivíduos.
Afirma Duarte (2002), que em sociedades audiovisuais como a nossa, o domínio
dessa linguagem é requisito fundamental para que possamos transitar em diferentes
campos sociais. A imagem em movimento tem relação com aquilo que somos, com
nossas identidades, o que nos remete a uma reflexão sobre a importância da linguagem
audiovisual na nossa sociedade. Valoriza-se muito, em nossa cultura, a linguagem
escrita e a importância de conhecermos uma série de obras literárias, bem como as
escolas; mas a leitura de imagens e a prática de ver e analisar filmes é de extrema
relevância e importância no nosso cotidiano.
Essa questão da linguagem audiovisual tem especial importância para nós,
educadores, se pensarmos a educação com um processo de socialização. Sem dúvida, a
relação entre a comunicação e a educação estimula crianças, adolescentes e educadores
a utilizarem a mídia como instrumento de exposição de ideias e crítica social. Ao
proporcionar um ambiente em que crianças e adolescentes estão à frente dos processos
de pensar e produzir comunicação, estes são sensibilizados a tomarem consciência de
sua realidade social e a agirem como cidadãos pensantes e ativos, capazes de dialogar
com sua própria realidade - além de aguçar a crítica aos
meios de comunicação.
Síntese da oficina de audiovisual, relato da Professora
Maira:
A oficina abordou cada um dos elementos das narrativas fílmicas - câmera,
iluminação, som, fala, música e montagem ou edição - e demonstrou o quanto tais
elementos adquirem significados à medida em que se unem formando um todo.
Primeira aula
Tentei estabelecer um diálogo perguntando sobre a relação dos alunos com filmes, se
gostavam de assistir, se já tinham ido ao cinema. Não gostavam muito e nunca tinham
ido ao cinema. Perguntei como a gente poderia explicar o que era um filme? Tiveram
vergonha e dificuldade de responder. Depois falaram que um filme tem herói, tem
personagens, tem comédia. Confirmei e perguntei: o que só tem no filme e não tem em
outras artes como teatro, dança, literatura? Ficaram pensando e o Gabriel respondeu,
tecnologia. Depois o Vinícius falou: câmera, luz, equipamentos, etc.
A minha ideia era falar sobre a imagem e sobre a vontade humana de
reproduzir o mundo, fazendo um breve histórico sobre a busca por aproximar cada vez
mais a imagem da realidade e as evoluções técnicas que foram obtidas nesta busca.
Senti muita dificuldade em fazer com que se interessassem pela discussão, ficavam
olhando para outro lado, não escutavam o que estava falando. Na hora pensei que
talvez tudo isso fosse muito abstrato para eles e resolvi parar e começar logo a fazer a
câmera escura. Dividimos o material (cartolina preta, tesoura, lupa, cola e fita
isolante) e cada um ia fazendo a sua câmera conforme as instruções que eu dava. Foi
ótimo, eles se soltaram e começaram a achar divertido estar ali. Conquistei o interesse
e a curiosidade deles. (Segundo Bergala: “não dá para passar nada para quem não
quer aprender
- tem que existir interesse.”) Na verdade, tem que despertar a
curiosidade para que as questões trabalhadas toquem eles.
Quebramos o gelo e agora partíamos de algo concreto,
construído por eles. O interesse em entender como aquilo
acontece (como a imagem entra na câmera escura, porque
está invertida e etc.) seria natural, espontâneo, partiria
deles. Logo falar sobre a evolução dessas descobertas já
não seria algo tão distante da experiência dos alunos, não seria mais tão abstrato.
Quando o primeiro aluno terminou sua câmera colocou o rosto e disse que não
via nada. Verifiquei então que havia comprado uma lupa com distância focal maior e
que precisaríamos na próxima aula acrescentar a cada câmera uma extensão. Foi
então que Vinícius perguntou por que a imagem ficava de cabeça para baixo, se isso
também era defeito da lupa. Como o horário da aula já
tinha acabado, disse apenas que não era um defeito da
lupa, a imagem fica mesmo de cabeça para baixo e que
explicaria os motivos na aula seguinte.
Segunda aula
Depois que os outros alunos chegaram começamos a concertar a caixa escura
fazendo uma extensão na caixa da lupa. Dessa forma dava para distanciar mais o
anteparo de papel vegetal da lupa e conseguir o foco. Os alunos ficaram super
empolgados com suas câmeras escuras. Era engraçado os ver rodando a câmera para
ver se a imagem não ficava de cabeça para baixo. Depois que terminamos expliquei
como ela funcionava que nós nos vemos porque refletimos a luz que incide na gente. Os
feixes de luz vão para toda parte, mas apenas um feixe de
luz de cada pedacinho do que estamos olhando passa pelo
buraco pequeno do furo de agulha na caixa escura.
Expliquei porque a imagem era invertida.
Mostrei o trecho do filme "a moça com o brinca
de pérola" em que Velasquez explica o funcionamento da câmera escura e comentei o
susto da faxineira ao ver a imagem e não compreender se é real ou não. Aproveitei
para falar um pouco de como estamos acostumados com a imagem e que conseguimos
geralmente entender sem grandes dificuldades o que é real e o que é imagem do real.
Mostrei depois o trabalho do Abelardo Morel que fez câmeras escuras com
quartos vedados, projetando as imagens das cidades dentro do ambiente mobiliado.
Eles acharam bem legais. Falei da busca a partir da câmera escura por um material
que fixasse a imagem chegando assim a fotografia. Falei do filme (película) e expliquei
rapidamente os sais de prata e a sensibilidade a luz.
Depois falei da busca por representar o movimento. A aposta para ver se o
cavalo tira as 4 patas do chão, a retenção retilínea... apresentei alguns vídeos de flip
book e eles fizeram um taumatropio da gaiola e do passarinho.
Em seguida, fizemos uma animação com fotos.
Coloquei a câmera no tripé e eles se juntaram na frente do
centro de convivência. A cada sinal meu eles mudavam
lentamente a posição, todos abaixando, vindo em direção
da câmera e etc. Eles se divertiram fazendo essa
brincadeira.
Na turma da noite foi uma aluna, a Marilda. Fiz com ela a câmera escura e
conversei um pouco sobre o que tinha feito nas duas aulas, A Bruna e a Manuela
quiseram fazer de novo. Daí elas me ajudaram com a câmera da Marilda.
Terceira aula
Comecei falando do nascimento da forma cinema com a primeira exibição
publica dos irmãos Lumière. Falei que Thomas fazia exibições individuais. Retomei a
pergunta sobre já terem ido ao cinema. Mostrei a primeira cena da Lisbela e o
prisioneiro. Lisbela chega ao cinema e tenta escolher o melhor lugar, diz que tem que
falar baixo e conta a história do filme mesmo sem ter visto, pois são todos iguais, o que
é legal é assistir para ver quando e como as coisas vão acontecer. Perguntei o que eles
tinham entendido da cena e disseram: nada. Então fui fazendo uma pergunta de cada
vez: onde a Lisbela estava? Ela gosta de cinema? Ela já viu
o filme? Como ela sabe a história?... Eles responderam
sozinhos.
Mostrei o vídeo dos irmãos Lumière, com foto,
cena da réplica do cinematógrafo e outras filmadas por
eles, entre elas a do trem. Comentei o susto do espectador
diante das imagens. Falei que neste início as cenas eram
curtas e documentais sobre o cotidiano.
Falei do Melies e da busca por contar histórias a
partir do cinema. Do teatro filmado e como com o tempo o
cinema foi construindo uma linguagem própria de cortes e
enquadramentos. No teatro acabamos vendo tudo de um
único ângulo e que no cinema com a câmera podemos experimentar vários outros
olhares para além do nosso olho.
Apresentei alguns trechos selecionados do filme À Deriva que tem
enquadramentos bem diferentes. Em uma cena destaquei que uma menina olhava para
a outra e que compreendíamos essa seqüência, mas antes as pessoas não conseguiam
fazer essa ligação. Falei do explicador que ficava com bastão ao lado da tela. Mostrei
duas cenas de brigas familiares: uma de Machuca em que o pai bêbado tenta roubar
dinheiro da mãe e a outra de Mutum. Eles disseram que a de Mutum era bem mais
violenta, que um matava o outro. Então, perguntei: como sabiam disso se não entramos
na briga, ficamos do lado de fora da porta? Falei que como não vemos, achamos que é
pior porque nossa imaginação é muito mais potente que a imagem propriamente dita.
Que às vezes os diretores usam esse recurso de ocultar uma ação. Vinicius comentou
que um curta que havia passado no cineclube também era assim. Julinha assim que
terminou a cena de Mutum pediu para passar de novo e Manuela pediu o filme
emprestado.
Falei da proposta de filmar um minuto Lumière. Mostrei cenas de Lumière e
Compani onde Kiarostami fez um minuto Lumière. Mostrei Minutos da Mostra mirim e
saímos para fazer os nossos. Vinícius decidiu logo que queria fazer na praia. Ficou
todo envolvido com o zoom e logo percebi seu interesse maior do que os outros. Ele se
tornou o ajudante de todos, dava sugestão e depois que todos gravaram ficou um
tempão com a câmera gravando a chegada do barco dos pescadores.
O segundo a fazer foi Gabriel. Também fez bem confiante. A terceira foi a
Manuela. Viviane e Bruna ficaram mais inseguras, não queriam fazer e tampouco
gostavam das sugestões dadas. No final fizeram direitinho.
Marilda já tinha decidido logo que chegamos na praia, mas
acabou que ficou por última e quando íamos fazer no lugar
que ela queria a luz já estava fraca. Ela então mudou numa
boa a escolha da cena e gravou rapidamente.
Emprestei o filme Mutun para Marilda, achei bom,
pois assim ela indicava se poderia emprestar para Manuela por causa da censura.
Quarta Aula
A Vila amanheceu sem luz por conta de um fio que arrebentou na estrada. Por
causa da falta de luz adiei o plano de aula, pois não teria como projetar os trechos que
havia selecionado. Decidi fazer um exercício que antes seria feito extraclasse. A
proposta é que o aluno fotografasse algum objeto experimentando vários ângulos, luzes
e enquadramentos diferentes sem mover o objeto. Vinicius compreendeu logo a
proposta do exercício e fotografou em vários ângulos, sem que eu desse qualquer
instrução, mas o resultado não estético. Já os outros alunos não tinham muita
iniciativa, estavam tirando as fotos nos ângulos mais
comuns. Daí eu intervinha e falava para experimentarem de
baixo para cima, encostando a câmera no objeto e etc.
Emprestei Mutum para Manuela
Quinta aula
(falar do inicio da aula: o que acharam de fazer o minuto Lumiere? O que
gostaram mais? Do zoom. Zoom óptico e digital.)
Esta aula ficou bem densa por ter acumulado a matéria de duas aulas em uma.
Acho que poderia ter aberto mão de algum conteúdo para não deixá-la tão cansativa.
Senti que eles têm dificuldades em se concentrarem. Quando fizemos a câmera escura
eles ficaram intrigados por que a imagem aparecia de cabeça para baixo. A dúvida
partiu deles, era verdadeira. Como provocar dúvidas neles? Pensar em exercícios que
provoquem questionamentos.
Falei sobre a importância do som. Comecei mostrando um trecho do Chaplin e
expliquei que o cinema inicialmente era mudo. Eles gostaram do vídeo. Comecei
fazendo uma brincadeira de mostra o áudio sem a imagem e pedir que identificassem o
que estava acontecendo. Depois mostrava a cena com a imagem e som. Usei os
seguintes trechos: som do sinal de escola e ruído dos alunos saindo (O Pequeno
Nicolau), bebida, gelo e cadeiras arrastando (La Cienega- primeira cena), parque de
diversão e trem fantasma (Amelie Poulain), guiando o cego pela rua e narrando o que
via (Amelie Poulain).
Mostrei também dois trechos de O Silêncio, o trecho em que o menino se perde
na feira e outro que ele brinca de tampar o ouvido no ônibus. Exibi uma cena do curta
Rota de colisão, que já tinha sido passado pela Sabrina no cineclube. O filme não tem
diálogo e tem uma trilha ótima. Vários efeitos sonoros criam suspense e etc.
Esse filme me deu idéia de que poderíamos fazer um curta sem diálogos. Isso
obrigaria a eles trabalharem mais com a imagem e com o som.
Exibi ainda o trecho selecionado por Bergala de M o Vampiro Maldito e
conversamos sobre as cenas. Eles compreenderam tudo inclusive que quando
apareciam os espaços vazios era onde a menina deveria estar.
Finalizei mostrando só um trecho de documentário, pois alguns nunca tinham
visto um documentário antes. Exibi uma cena de janela da alma em que discutiam a
vergonha de usar óculos. Como Marilda disse que a diferença entre documentário e
ficção é que um tem narrado e outro não, aproveitei para exibir uma cena curtinha de
Amelie Poulain, que o narrador enumera os pequenos prazeres da personagem. Por
último pedi que escrevessem o que sentiam em morar na ilha e sorteamos dois
sentimentos para filmarmos no dia seguinte. Os sorteados fora, felicidade e solidão.
Embora tenha sido uma aula difícil, percebo a atenção deles para vários temas
que são abordados nos trechos de filmes: violência familiar, usar óculos e ter
vergonha, gostar de uma pessoa e etc. Seria bom fazer exibições de filmes toda noite.
Emprestei Amelie Poulain para Viviane e Pequeno Nicolau para Marilda.
Sexta aula
Gravamos o sentimento solidão. As três alunas demoraram bastante para
decidir como gravariam o tema. Dei várias sugestões até que resolveram gravar o
balanço na praia. Todas pegaram na câmera, mas principalmente a Marilda, já que
Viviane e Bruna apareciam em cena. Os enquadramentos ficaram bons. Várias idéias
surgiram no momento da gravação e é interessante pensar como nessas situações,
diferente da maioria de produção de filmes, se está bem mais livre para criar no ato.
Editei à noite o vídeo.
Sétima aula
Exibi a edição do curta Solidão. Eles ficaram
muito empolgados com o vídeo pronto.
Começamos a gravar o curta. Pensamos no
roteiro. A idéia era gravar Julinha correndo nas ruas da
vila indo para praia ver o barco saindo para o cerco.
Ela chegava lá e eles já tinham saindo. Ficava esperando
no balanço. Quando voltava ela pegava um peixe e
carregava na mão até em casa. Hoje não teria cerco então
gravaríamos a Julinha nesta aula e deixaríamos o cerco
para a aula seguinte. Alternaríamos planos da Julinha
correndo com o barco saindo, depois ela chegando na
praia vendo o mar do balanço com cenas de dentro do barco retirando os peixes do
cerco, mostrando a simultaneidade das ações.
Oitava aula
Mudamos roteiro do curta, pois a rede do cerco havia sido retirada de manhã
para fazer remendas. Demoramos um tempo pensando em outra história que desse para
aproveitar as cenas gravadas da Julinha correndo. Marilda foi à casa de Ubiratan e o
chamou para atuar no filme. O novo roteiro seria uma brincadeira de pique- esconde.
Julinha ia até a praia e ficava brincando no balanço (já estava gravado), Ubiratan
chegava ao balanço e pergunta se ela quer brincar de pique-esconde (em off). Ela se
esconde e ele a procura em alguns lugares até que a encontra, os dois correm para
bater. O filme termina com eles voltando para casa.
Fizemos vários enquadramentos bonitos, o tempo estava bem nublado,
ameaçando chover a qualquer momento. Todos pegaram na câmera e deu para
perceber como já estavam com mais intimidade, já faziam os enquadramentos menos
óbvios. Conseguimos gravar tudo antes da chuva chegar.
Mostrei novamente o vídeo Solidão já que Gabriel e Ubiratan não tinham
visto. Ubiratan logo que vi ficou impressionado como tinha sumido da imagem a Bruna
e a Viviane e me pediu que fizesse sumir também nas cenas que gravamos. Editei a
noite uma cena do Ubiratan e da Julia sumindo
Nona, última aula
Falei de edição mostrando trechos de filmes do Almodóvar. Expliquei as fases
de produção de um filme com suas respectivas equipes. Vimos as cenas do nosso curta
e conversei com eles como estava pensando em montar. Mostrei o Ubiratan e a Julia
sumindo, eles ficaram fascinados. Perguntei qual seria o nome do filme e decidiram por
Brincadeira de Criança.
Perguntei o que tinham achado da oficina e todos disseram que tinham
gostado. Eu disse a eles que também tinha gostado muito. Expliquei que retornaríamos
quando o curta estivesse editado para mostrar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A oficina poderia ter sido ainda mais proveitosa se houvesse maior participação
de adultos, o que possibilitaria olhares diferenciados diante de uma mesma atividade,
bem como a edição do vídeo, que poderia ser feita pelo grupo, e não somente pela
responsável pela oficina, isto faria com que talvez a participação se tornasse maior
diante de uma atividade mais prática e significativa, já que o acompanhamento da
construção de um vídeo de forma “mais completa” também gera maior fomento para a
busca de outras informações a respeito da atividade.
Esse primeiro momento necessitaria de maior ajuda e mediação na execução da
oficina, já que era a primeira vez que o grupo tivera contato com esse tipo de curso, pois
apesar da firmeza que apresentaram no decorrer da atividade, ainda possuíam dúvidas,
gerando incertezas no momento de gravar.
Todos gostaram da oficina oferecida, pois para eles é uma atividade diferente, já
que em Dois Rios não se tem opção de lazer (a não ser os rios e a praia) e nem de
cursos/oficinas. Acharam que o curso foi bom e não cansativo, apesar de ter sido
realizado em dez dias seguidos – incluindo os finais de semana – segundo informações
colhidas, porém, cabe ressaltar que por muitas vezes quase todos demonstraram cansaço
e em alguns momentos falta de atenção, principalmente Júlia, por ser bem nova e
distrair-se com facilidade.
Entretanto, todo o grupo - crianças, adolescentes e adulto - relatou que faria o
curso novamente, se o mesmo fosse oferecido, como segunda parte da oficina de
cinema. As crianças adoraram a participação na oficina de cinema, mostrando
entusiasmo.
Para os participantes, essa oficina trará benefícios para todos e para a Vila, pois
como a maioria possui câmeras digitais poderá realizar pequenos vídeos caseiros nos
rios, na praia e no entorno da Vila, exercendo a prática obtida na realização do curso.
O curso foi muito bem mediado, com muita dedicação da professora Maíra em
relação à oficina e seus participantes, fazendo com que todos participassem de alguma
forma nas gravações. A prática utilizada na realização da oficina foi muito bem
elaborada, primeiro com bases teóricas e depois a participação de todos na prática de
manuseio e também, no fotografar, no gravar e também nas confecções de objetos
propostos no curso.
As crianças levaram o curso a sério, mas em alguns momentos aparentavam
mais estarem brincando com tudo que estavam fazendo. Entretanto, quando viram as
imagens mostradas pela professora, ficaram emocionados com as cenas, com brilho nos
olhos de alegria, principalmente quando o personagem some no curta. O mesmo ocorreu
com os demais participantes, que demonstravam a sensação de trabalho realizado ao
assistirem a produção.
A oficina apresentou muitos pontos positivos evidenciados através das
observações realizadas. Desta forma, sugere-se que essa oficina seja realizada
novamente em Vila Dois Rios, já que os participantes expressaram gosto em fazê-la
novamente, porém, com tempos intercalados (ex.: duração de um mês, com encontros
aos sábados e domingos).
Em síntese, a linguagem do cinema está ao alcance de todos nós que vivemos em
sociedades audiovisuais e, à medida em que conhecemos tal linguagem, aprimoramos
nossa competência de ver. O significado cultural de um filme depende do contexto em
que é visto ou produzido. Neste sentido, os filmes apresentados e produzidos pelos
participantes trouxeram uma série de convenções, de representações - de masculinidade,
de feminilidade, de infância, de sentimentos etc. - e de padrões sociais.
Destaca-se a necessidade de utilizar filmes nas escolas, mas não somente como
recurso de apoio didático, de segunda ordem. Pode-se contribuir no processo de
"ensinar a ver". O cinema é uma rica fonte de conhecimentos, apesar de termos certa
dificuldade em percebê-lo desta maneira; e é, também, uma forma de arte. Para Duarte
(2002), os filmes podem ser lidos e analisados enquanto textos, o que implica uma
análise descritiva de filmes, tendo um sentido bem mais abrangente. Por isso, reitera
propostas de trabalhos com filmes nas escolas, por compreender o caráter pedagógico e
a importância da análise das imagens e das narrativas fílmicas. “Ver e interpretar filmes
implica, acima de tudo, perceber o significado que eles têm no contexto social do qual
participam" (DUARTE, 2002, p. 107).
REFERÊNCIAS
BORDIE, P. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
DUARTE, Rosália. Cinema & educação: refletindo sobre cinema e educação. Belo
Horizonte: Autêntica, 2002.
FIORITO, M. I. apud NEVES, A.; BARROS, F. A. Uma Arquitetura Consensual
para Ambientes Virtuais de Estudo. In: NEVES, André; F. e Paulo C. C. F. Projeto
Virtus: educação e interdisciplinaridade no ciberespaço. Recife: Editora Universitária
UFPE; São Paulo: Editora Anhembi Morumbi, 2000.
LOPES, Maria Immacolata Vassalo de; Borelli, Silvia H.S.; Resende, Vera da Rocha.
Vivendo com a telenovela: mediações, recepção e teleficcionalidade. São Paulo:
Summus, 2002.
REIS, Hiliana. Projeto de Pesquisa “Migrações, interculturalidade e universo
acadêmico: usos sociais da mídia digital”. São Leopoldo: Unisinos, 2003.
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O USO DAS MÍDIAS DIGITAIS NA CONSTITUIÇÃO DE