Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Vila Velha - ES – 22 a 24/05/2014 A construção de imagens na fotografia contemporânea: uma análise da obra de André Boto 1 Carolina Souza de Almeida 2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Resumo Este trabalho discute a construção de imagens na fotografia contemporânea e a convergência de meios na arte, relacionando essa discussão com questões muito presentes no universo fotográfico, como a relação da fotografia com a arte e o documental, os limiares entre o real e a ficção na arte fotográfica e o uso da tecnologia na criação de imagens, desde a câmera até o Photoshop. Para tal discussão, foi utilizada como objeto de estudo a obra fotográfica de André Boto, conhecida pela manipulação de imagem extrema, com o uso de tecnologias computacionais e técnicas de pintura e desenho digitais. Palavras-chave: construção de imagens; convergência de meios; fotografia contemporânea. Introdução Este trabalho discute a construção de imagens na fotografia contemporânea, criadas através do uso de programas de tratamento e de manipulação de imagens, como por exemplo, o Photoshop. Para tal, é feita uma análise da obra de André Boto, um fotógrafo português contemporâneo, pouco conhecido no Brasil, mas que vem chamando a atenção da mídia e do público na Europa, principalmente após receber o prêmio de fotógrafo europeu do ano de 2010. Seu trabalho é conhecido pela extensa manipulação de imagens na pós-produção das fotografias, com a realização de fotomontagens e a utilização de técnicas de desenho digital, o que acaba transformando suas obras em um produto híbrido entre a fotografia, o desenho e a pintura em computador. Neste artigo serão analisadas algumas de suas obras, relacionando-as com questões muito presentes na história da fotografia, como por exemplo, a relação desta 1 Trabalho apresentado no DT 4 – Comunicação Audiovisual, do XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste, realizado de 22 a 24 de maio de 2014. 2 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCOM-UERJ). Professora Substituta da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ). E-mail: [email protected] 1 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Vila Velha - ES – 22 a 24/05/2014 com a arte e com o documental, os limiares entre o real e a ficção na arte fotográfica e o uso da tecnologia na criação de imagens. André Boto, o construtor de imagens Apesar de atualmente ser reconhecido como fotógrafo, André Pina Moreira Boto (1985- ) iniciou sua formação como artista. Concluiu seus estudos no agrupamento de Artes e cursou Licenciatura em Artes Decorativas, no Instituto Politécnico de Beja (Portugal). Após a conclusão de sua formação acadêmica, frequentou os cursos de Fotografia Avançada e Fotografia Conceitual, na Oficina da Imagem (Lisboa, Portugal), mais ou menos na mesma época em que começou a desenvolver sua série de obras intitulada Surrealismo, analisada mais a frente neste trabalho. 3 Apesar de sua curta carreira, obteve uma grande projeção ao ser nomeado o Fotógrafo Europeu do Ano, pela Federation of European Photographers, em 2010. Atualmente, Boto desenvolve trabalhos de fotografia autoral e artística, assim como trabalhos mais comerciais, voltados para o mercado. A maioria de suas obras é extensamente trabalhada em computador, com softwares de tratamento e criação de imagens, como, por exemplo, o Photoshop. Muitas, inclusive, demoram horas ou mesmo dias para serem finalizadas. Por causa desse tipo de trabalho, Boto acredita que o mais correto seria se autointitular “construtor de imagens”, em vez de “fotógrafo”. 4 Nomenclatura justificada pelo fato de que, além de tirar suas fotografias como uso da câmera, ele também constrói as imagens finais com o uso do computador. Nesse sentido, seu trabalho opera a diferença entre o que filósofo canadense Patrick Maynard (1997, p.6) chamou de image-taking e image-making, sendo o primeiro o ato de tirar fotografias e o segundo o ato de criar imagens, com a utilização de técnicas diversas, como os ajustes de câmera, o tratamento de imagens, a fotomontagem, etc., até atingir o efeito visual e o conceito desejados. Curiosamente, ao ser perguntado sobre suas influências, André Boto não cita nenhum fotógrafo em especial, somente artistas. Suas principais influências são o holandês M. C. Escher (1898-1972), o belga René Magritte (1898-1967) e o espanhol 3 Informações retiradas do site de André Boto: <www.andreboto.com>. Como ele próprio diz em sua palestra no evento TEDxCoimbra (out. 2011), disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=8rM6SVw3H3w> 4 2 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Vila Velha - ES – 22 a 24/05/2014 Salvador Dalí (1904-1989), artistas que, cada um a sua maneira, trabalharam a questão do fantástico e do surreal em suas obras. Como o próprio Boto explica, em entrevista ao jornal VerPortugal, Numa fase em que eu me dedicava por inteiro ao desenho destaco três autores que ainda hoje me influenciam bastante, são eles: M. C. Escher, René Magritte e Salvador Dalí. Nenhum deles é fotógrafo mas todos têm criações muito particulares. Os três criaram os seus próprios mundos e atmosferas, muitas vezes com base na ilusão de óptica, e foi isso que me chamou a atenção e cativou, levando-me hoje a produzir “os meus próprios mundos” através das minhas criações com base na fotografia, enveredando pela produção do projecto Surrealismo e outros com semelhanças. (BOTO in VERPORTUGAL, 2013, p.1) As imagens que influenciam o trabalho de Boto são bem perceptíveis em algumas de suas obras, mesmo em seus trabalhos mais comerciais, como pode ser notado na releitura digital (fig.2) da litografia Drawing Hands (1948), de Escher (fig.1). Figura 1: M. C. Escher, Drawing Hands, 1948. Figura 2: André Boto, Sem título. Ou em algumas imagens da série Surrealismo (fig.4), que fazem referência clara à pintura Le Château de Pyrénées (1959), de Magritte (fig.3). Figura 3: René Magritte, Le Château de Pyrénées, 1959. Figura 4: André Boto, Sem título (imagem integrante da série Surrealismo), 2008. 3 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Vila Velha - ES – 22 a 24/05/2014 Boto, diferentemente dos artistas nos quais se inspira, utiliza a fotografia como base material de suas obras, o que, de certa forma, dá um aspecto realístico a suas imagens. Considerada como o “espelho do real”, em suas origens, a fotografia possui até hoje o estigma de ser a representação fiel da realidade, devido a suas características indiciais. O “isso-foi”, de Roland Barthes (1984), continua presente no imaginário dos espectadores. Como aponta Dubois, (...) a fotografia, pelo menos aos olhos da doxa e do senso comum, não pode mentir. Nela a necessidade de “ver par crer” é satisfeita. A foto é percebida como uma espécie de prova, ao mesmo tempo necessária e suficiente, que atesta indubitavelmente a existência daquilo que mostra. (DUBOIS, 1993, p.25) O Photoshop, ao contrário, possui o estigma de ser manipulador da realidade. Ao observar as imagens de Boto, fica claro que elas passaram por modificações através do Photoshop. Essa clareza, no entanto, se deve ao tema das obras, cenas surreais e fantásticas, que seriam improváveis de acontecer de fato. Se essas imagens não tivessem essa temática, porém, provavelmente não se perceberia a manipulação, já que a fusão das diversas fotografias utilizadas é feita de modo realista, sem que a ligação entre os elementos da fotomontagem seja percebida. Ou seja, ao mesmo tempo em que as imagens transmitem uma sensação de realismo, transmitem também a sensação oposta de que tais cenas sejam puramente ficcionais. Elas se encontram no limiar entre a realidade e a ficção, devido à técnica, à temática e ao material utilizados. Além disso, suas obras possuem também uma convergência de meios. Talvez justamente por sua formação em artes e por suas influências oriundas da área artística, o trabalho fotográfico de André Boto possui uma mistura entre a fotografia (material utilizados), o desenho e a pintura (conceitos utilizados). Seguindo a linha de raciocínio de Joan Fontcuberta, exemplificada abaixo, poderia-se até dizer que, em algumas de suas obras, André Boto faz desenho ou pintura com fotografia: Os meios se intoxicam uns aos outros, e o mais interessante dessa intoxicação não é a mera transfusão tecnológica, mas a conceitual. Por exemplo, Chuck Close e Antonio López fazem fotografia com pincéis; o que chega ao público é tecnicamente uma pintura, mas o conceito subjacente é fotográfico. Bill Viola faz pintura com o magnetoscópio; mesmo raciocínio: o que chega ao público é tecnicamente um vídeo, mas o conceito é pictórico. Bernd e Hilla Becher fazem escultura com a câmera. E também com a câmera Perejaume e Vik Muniz fazem, respectivamente, pintura e desenho. De forma progressiva alcançamos 4 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Vila Velha - ES – 22 a 24/05/2014 a feira da confusão semiótica onde a identidade da imagem é colocada em dúvida. Isto pode preocupar os semioticistas, mas não os curadores de museus que antepõem um interesse à obra e não à técnica. (FONTCUBERTA, 2012, p.187-188) E, de fato, aos curadores de museus – e aos espectadores de suas obras –, essa mistura de gêneros, por assim dizer, não parece incomodar, vide o sucesso da série Surrealismo perante público e crítica. A série Surrealismo e outras obras O Surrealismo é um movimento artístico surgido em 1924, com o poeta francês André Breton (1896-1966). Guillaume Apollinaire já havia criado o termo alguns anos antes, em 1917, para descrever algo que ultrapassava a realidade, porém Breton se apropriou de tal palavra para descrever sua própria visão de futuro. Segundo ele, o Surrealismo seria “o pensamento que é expresso na ausência de qualquer controle exercido pela razão e alheio a todas considerações morais e estéticas” (DEMPSEY, 2003, p.151). Inspirado nas obras de Sigmund Freud (1856-1939), León Trótski (1879-1940), conde de Lautréamont (1846-1880) e Arthur Rimbaud (1854-1891), Breton criou um movimento bastante organizado – inclusive, com teorias doutrinárias –, que se estendeu a diversas áreas artísticas, como a pintura, a escultura, a fotografia, entre outras. A psicanálise, o marxismo e as filosofias ocultistas influenciaram Breton na criação do Surrealismo, assim como influenciaram também outros artistas do movimento. Os surrealistas pretendiam nada mais, nada menos do que a total transformação do modo de pensar das pessoas. Ao derrubar as barreiras entre seus mundos interiores e exteriores, ao modificar o modo como elas percebiam a realidade, o surrealismo libertaria o inconsciente, reconciliando-o com o consciente, e também livraria a humanidade dos grilhões da lógica e da razão, que até então haviam conduzido unicamente à guerra e à dominação. (DEMPSEY, 2003, p.153) Nascido do movimento artístico Dadá, porém diferenciando-se de seu caos não doutrinado, o Surrealismo abordava, principalmente, temas relacionados ao medo, ao desejo e à erotização. Um dos artistas mais conhecidos do movimento é o espanhol Salvador Dalí, que utilizava, segundo ele próprio, “um método espontâneo de 5 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Vila Velha - ES – 22 a 24/05/2014 conhecimento irracional” (DEMPSEY, 2003, p.153), fazendo associações inesperadas em diversos meios artísticos, como a pintura e a escultura. O artista belga René Magritte também é considerado surrealista – ou realista mágico, como são conhecidos alguns dos surrealistas europeus –, apesar de rejeitar o lado psicanalítico do movimento. Segundo ele, o mundo exterior visível seria também “uma fonte válida do maravilhoso, assim como seria o mundo interno do subconsciente” (DEMPSEY, 2003, p.162). Suas obras são repletas de justaposições, enigmas e deslocamentos, com uma mistura de magia e realismo nas imagens criadas. O movimento surrealista possuiu também como integrantes diversos fotógrafos que trabalhavam a questão do fantástico em suas obras, entre eles Man Ray (18901977), Brassaï (1899-1984), Jacques-André Boiffard (1902-1961) e Raoul Ubac (19091985). Por meio da manipulação efetuada na câmara escura, close-ups e justaposições inesperadas, a fotografia revelou-se um meio adequado para isolar a imagem surreal presente no mundo. O status dual da fotografia como documento e como arte fortaleceu a visão surrealista segundo a qual o mundo é repleto de símbolos eróticos e de encontros surreais. (DEMPSEY, 2003, p.154) Man Ray, inclusive, obteve bastante sucesso nas áreas supostamente incompatíveis das vanguardas artísticas e da fotografia comercial, com alguns de seus trabalhos constando simultaneamente nos dois universos. Inspirado no movimento surrealista, principalmente nas obras dos artistas Salvador Dalí, René Magritte e M. C. Escher (que não era surrealista, mas trabalhava bastante a questão do fantástico e das imagens ambíguas), André Boto criou uma série intitulada Surrealismo, na qual, através do uso de fotomontagens, construiu universos tão surreais quanto os de seus predecessores. Curiosamente, Boto não se inspirou nos fotógrafos surrealistas, mas nos pintores, o que, já de início, confere um hibridismo conceitual em suas obras. O material utilizado é a fotografia, mas o conceito é o da pintura. E, de fato, algumas de suas imagens finais possuem certa semelhança visual com pinturas, apesar de serem tecnicamente fotográficas (fig.5). 6 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Vila Velha - ES – 22 a 24/05/2014 Figura 5: André Boto, Sem título (imagem integrante da série Surrealismo), 2008. Nos primórdios da fotografia, no século XIX, havia uma separação muito grande entre os universos da fotografia e da pintura. A fotografia era considerada a representação fiel da realidade, por uma questão meramente maquínica: acreditava-se que a imagem era obtida, através de uma máquina, sem nenhuma intervenção da mão humana, ao contrário da pintura, que seria criada totalmente pelo homem. (...) pela primeira vez a imagem não nascia no corpo (ou com o corpo), mas fora do corpo. O desenho e a pintura requeriam os impulsos da mão para guiar a configuração gráfica; em compensação, na fotografia bastava apertar um botão para que se desencadeasse uma série de operações ópticas, mecânicas e químicas cuja consequência era uma produção automatizada da imagem. (...) A fotografia não era entendida como um ato de expressão, nem como o fruto de uma interpretação pessoal, pois sua produção era tecnicamente independente de um trabalho fisiológico e ficava assim alheia às potências de um organismo regido por nossa vontade. (FONTCUBERTA, 2012, p.186-187) Dessa característica indicial nasceu o discurso realista da fotografia, que afirmava que esta seria o “espelho do real” por não passar, de forma alguma, pela subjetividade humana. Hoje sabemos que isso não é exatamente verdade. “Mesmo quando está em contato com as coisas, o fotógrafo não está mais próximo do real do que o pintor trabalhando diante de sua tela.” (ROUILLÉ, 2009, p.19). Além disso, atualmente, os universos da pintura e da fotografia estão bem mais próximos um do outro, muitas vezes misturando-se em obras híbridas, difíceis de serem classificadas em uma ou outra categoria. 7 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Vila Velha - ES – 22 a 24/05/2014 A fotografia, apesar de ser uma imagem obtida por uma máquina, é também uma forma de expressão humana, já que (...) a câmera é uma máquina, mas o fotógrafo não é um robô. O ato fotográfico submete o fotógrafo a uma sequência de decisões que mobiliza todas as esferas da subjetividade. O fotógrafo é um personagem que pensa, sente, se emociona, interpreta e toma partido. E que faz isso tudo sem perceber. (FONTCUBERTA, 2012, p.188) Dessa forma, as fotografias de André Boto, apesar de serem oriundas de imagens técnicas, são também uma forma de expressão artística. Suas imagens da série Surrealismo são construídas do início ao fim, desde a tirada das diversas fotografias que formarão a fotomontagem final, até a construção da fotomontagem propriamente dita. Ao tirar as fotos, ele exerce sua inventividade nas escolhas de composição e ajustes da câmera, às vezes mesmo sem perceber. E, ao manipular e juntar as imagens em computador, montando cuidadosamente cada elemento da imagem, ele cria uma espécie de pintura digital, que corresponde a suas intenções plásticas e conceituais. Como André Rouillé explica, (...) a fotografia, mesmo a documental, não representa automaticamente o real; e não toma o lugar de algo externo. Como o discurso e as outras imagens, o dogma de “ser rastro” mascara o que a fotografia, com seus próprios meios, faz ser: construída do início ao fim, ela fabrica e produz os mundos. Enquanto o rastro vai da coisa (preexistente) à imagem, o importante é explorar como a imagem produz o real. (ROUILLÉ, 2009, p.18) As fotografias de Boto não só representam uma determinada realidade, elas criam uma espécie de nova realidade surreal, ou um mundo imaginado no qual o espectador é convidado a entrar. Outras imagens da série Surrealismo, diferentemente da figura 5, são visualmente realistas (fig.6-7). Apesar disso, elas não são o reflexo puro da realidade, a começar pela questão da expressão artística já mencionada anteriormente: “(...) mesmo o documento reputado como o mais puro é, na realidade, inseparável de uma expressão: de uma escrita, de uma subjetividade e de um destinatário (...)” (ROUILLÉ, 2009, p.20). Mais do que isso, no entanto, a temática das fotos aponta, de certa forma, a ficção presente nas imagens. Elas poderiam perfeitamente ser uma paisagem fotografada por um mero “apertar de botão”, porém, em que paisagem haveria uma rocha flutuando alguns metros acima do mar? Muito provavelmente em uma paisagem imaginada e surreal. 8 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Vila Velha - ES – 22 a 24/05/2014 Figura 6: André Boto, Sem título (imagem integrante da série Surrealismo), 2008. Figura 7: André Boto, Sem título (imagem integrante da série Surrealismo), 2008. Ao mesmo tempo em que os elementos da fotografia estiveram na frente da câmera ao serem fotografados (não todos ao mesmo tempo, como pode-se perceber), esses elementos foram modificados a tal ponto que o “isso-foi” se descaracterizou e passou a não ser mais. Essas imagens não atestam a existência de determinada situação. A torre presente na figura 6 ou o menino da figura 7, por exemplo, provavelmente estiveram, em algum momento, na frente da câmera para serem captados em imagem, porém, não na situação em que se encontram atualmente. Não em cima de rochas flutuantes, não no atual cenário e talvez, nem mesmo, soltando pipa. Essas cenas não aconteceram de fato, ou talvez até tenham acontecido, mas no universo surrealista de André Boto. A fotografia, portanto, pode ser a criação de um documento, mas pode ser também uma expressão artística do fotógrafo, ou seja, “uma prática que é exemplarmente ambivalente, entre a arte e a não-arte” (RANCIÈRE, 2010, p.158) Nos primórdios da fotografia, como mencionado anteriormente, esta não era considerada uma forma de arte, novamente por uma questão maquínica. Duvidava-se que uma imagem técnica poderia ser arte, já que esta era produzida por uma máquina. Apesar dos questionamentos, a favor da fotografia, de alguns fotógrafos específicos, 9 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Vila Velha - ES – 22 a 24/05/2014 como Oscar Rejlander (1813-1875), e de movimentos inteiros, como o Pictorialismo, a fotografia não foi totalmente aceita no mundo da arte durante um bom tempo. O Pictorialismo, inclusive, já foi bastante criticado por ter tentado transformar a fotografia em arte ao tentar torná-la parecida estética e plasticamente com a pintura, em vez de praticar arte com a própria técnica fotográfica – como fazia Rejlander com suas fotomontagens, por exemplo. Dessa maneira, a mistura dos meios era utilizada por eles, pois acreditavam que a fotografia sozinha não poderia constituir uma forma de arte, devido ao seu automatismo mecânico (ROUILLÉ, 2009, p.256-257). “Foi somente por volta dos anos 1980 (como um eco às experimentações dos vanguardistas do início do século, mas em condições e sob formas totalmente diferentes) que a fotografia foi adotada pelos artistas como verdadeiro material artístico” (ROUILLÉ, 2009, p.21), possibilitando a existência da arte-fotografia, como a denominou Rouillé. A convergência entre arte, pintura, fotografia e outros meios, como cinema, vídeo, etc., se tornou cada vez mais comum, mas não pelo fato da fotografia não poder ser arte. Justamente o contrário; a artisticidade do meio fotográfico é trabalhada dentro dessa mistura. Atualmente, fotógrafos são aceitos como artistas, e artistas também são aceitos no universo fotográfico, sendo, muitas vezes, difícil distinguir de qual universo estamos falando. No trabalho de André Boto, por exemplo, uma forma de convergência de linguagens bem visível é proporcionada pela junção artística das tecnologias digitais da fotografia, do desenho e do vídeo, em um de seus trabalhos mais interessantes nesse quesito, intitulado Night Walking (2013). Nessa obra, Boto faz uma fotomontagem, com 156 camadas no Photoshop e grava o procedimento artístico em um vídeo 5. O processo de criação, obviamente, está documentado de forma resumida no referido vídeo, já que o tempo de trabalho durou em torno de 6 a 7 horas e o vídeo possui somente 5 minutos. Segundo ele, esse experimento tinha um simples destino didático, de ensinar a seus alunos como fazer construções de imagens, com o uso da fotografia e do computador. Porém, o vídeo acabou fazendo um relativo sucesso no YouTube e Boto transformou a atividade em um projeto, em andamento, de publicar vídeos de seu processo criativo. Como se pode perceber ao assistir o vídeo, ele inicia o processo com uma fotografia relativamente simples, sem nenhum grande apelo estético em especial (fig.8). 5 O referido vídeo pode ser encontrado na página do YouTube de André Boto, no seguinte endereço: <http://www.youtube.com/watch?v=xATORzmv2bU> 10 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Vila Velha - ES – 22 a 24/05/2014 Ao longo de suas longas horas de trabalho, ele vai construindo a imagem aos poucos, adicionando, montando e aperfeiçoando cada elemento da cena. Postes, fios e latas de lixo são apagados; outros postes, com uma estética diferenciada, são acrescentados. A calçada, que estava quebrada é “consertada”, com a colagem de outra calçada por cima dela. O céu, quase sem cor, é substituído pelo céu nublado e mais saturado de outra fotografia. Prédios são acrescentados; a saturação e o contraste modificados. A iluminação, que fornece uma atmosfera mais sombria e fantástica à imagem, é toda acrescentada artificialmente. O dia vira noite. A paisagem, que estava deserta, ganha um pedestre atravessando a rua e luzes iluminando os edifícios e as calçadas. Muitos dos elementos são cuidadosamente desenhados, com o uso de um tablet para desenho digital 6. Janelas são construídas; a chuva surge artificialmente; o reflexo da paisagem no chão, devido à chuva, também é acrescentado. Até o ambiente do interior do prédio vem de outra imagem. As gotas da chuva são milimetricamente desenhadas, caindo do guarda-chuva e dos prédios. Pode-se questionar se a imagem final (fig.9) é de fato uma fotografia ou se tornou-se um desenho ou uma pintura digital. É difícil definir os limites entre um meio e outro. A imagem possui uma base fotográfica e as manipulações foram todas feitas em um software fotográfico. No entanto, foi utilizado também um tablet para desenho digital e técnicas de desenho e de pintura. A chuva presente na imagem final, por exemplo, parece ter sido totalmente desenhada, inclusive as gotinhas que caem do guarda-chuva do senhor que atravessa a rua e dos prédios ao redor. A imagem, que era esteticamente simplória, ganha uma atmosfera mágica e fantástica, parecendo retirada de algum filme infantil ou, talvez, de alguma cena medieval. A cena foi completamente modificada e a imagem reconstruída e redesenhada. A tecnologia do computador possibilitou a construção do real e de um mundo fabricado. A expressão do artista foi responsável por tal construção. É complexo determinar se essa imagem é ainda uma fotografia ou se tornou-se outra coisa, como um desenho ou uma pintura, ou mesmo nenhum dos três. Mas uma coisa, ao menos, acredita-se ser possível afirmar: ela é um produto artístico híbrido das novas tecnologias digitais e do artista, que soube trabalhar a convergência de diversos meios. 6 Um tablet Wacom Intuos 5, como Boto informa nos créditos. 11 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Vila Velha - ES – 22 a 24/05/2014 Figura 8: André Boto, Sem título (primeira fotografia utilizada para a fotomontagem), 2013. Figura 9: André Boto, Night Walking (imagem final), 2013. Considerações finais A obra de André Boto reflete, de certa forma, muitas das características da arte e da fotografia contemporâneas, por isso, foi escolhida para essa análise. A questão da convergência e das novas tecnologias é muito rica em seu trabalho, já que ele conjuga seu procedimento artístico em diversos meios de forma integrada. Dessa forma, sua obra possibilita uma reflexão acerca de questões muito presentes no universo fotográfico, como a construção de imagens com o uso de câmeras e computadores, os limiares entre 12 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Vila Velha - ES – 22 a 24/05/2014 a realidade e a ficção nas imagens técnicas e a relação entre arte e fotografia, entre outras questões, como pode ser observado ao longo do artigo. Este trabalho é somente uma reflexão acerca do tema e, obviamente, não pretende, portanto, criar regras em relação à arte ou à fotografia. É um trabalho inicial, que será aprofundado em pesquisas futuras, sobre a obra do próprio André Boto e também sobre a obra de outros artistas que possuam trabalhos com questões correlatas, relacionando a pertinência de seus fazeres com as práticas contemporâneas da fotografia, assim como, com as práticas de outros tempos. Referências bibliográficas BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas & movimentos: guia enciclopédico da arte moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2003. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas, SP: Papirus, 1993. FONTCUBERTA, Joan. A câmera de Pandora: a fotografia depois da fotografia. São Paulo: Gustavo Gili, 2012. MAYNARD, Patrick. The engine of visualization: thinking through photography. Ithaka, London: Cornell University Press, 1997. RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010. ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo: Senac São Paulo, 2009. VERPORTUGAL. André Boto: quando as imagens são veículo de comunicação. VerPortugal, Lisboa, 27 dez. 2013. Disponível em: <http://www.verportugal.net/Lisboa/Lisboa/Entrevistas/Andre-Boto-quando-as-imagens-saoveiculo-de-comunicacao=007527/1> 13