Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Vila Velha - ES – 22 a 24/05/2014
A construção de imagens na fotografia contemporânea:
uma análise da obra de André Boto 1
Carolina Souza de Almeida 2
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Resumo
Este trabalho discute a construção de imagens na fotografia contemporânea e a
convergência de meios na arte, relacionando essa discussão com questões muito
presentes no universo fotográfico, como a relação da fotografia com a arte e o
documental, os limiares entre o real e a ficção na arte fotográfica e o uso da tecnologia
na criação de imagens, desde a câmera até o Photoshop. Para tal discussão, foi utilizada
como objeto de estudo a obra fotográfica de André Boto, conhecida pela manipulação
de imagem extrema, com o uso de tecnologias computacionais e técnicas de pintura e
desenho digitais.
Palavras-chave: construção de imagens; convergência de meios; fotografia
contemporânea.
Introdução
Este trabalho discute a construção de imagens na fotografia contemporânea,
criadas através do uso de programas de tratamento e de manipulação de imagens, como
por exemplo, o Photoshop. Para tal, é feita uma análise da obra de André Boto, um
fotógrafo português contemporâneo, pouco conhecido no Brasil, mas que vem
chamando a atenção da mídia e do público na Europa, principalmente após receber o
prêmio de fotógrafo europeu do ano de 2010.
Seu trabalho é conhecido pela extensa manipulação de imagens na pós-produção
das fotografias, com a realização de fotomontagens e a utilização de técnicas de desenho
digital, o que acaba transformando suas obras em um produto híbrido entre a fotografia,
o desenho e a pintura em computador.
Neste artigo serão analisadas algumas de suas obras, relacionando-as com
questões muito presentes na história da fotografia, como por exemplo, a relação desta
1
Trabalho apresentado no DT 4 – Comunicação Audiovisual, do XIX Congresso de Ciências da Comunicação na
Região Sudeste, realizado de 22 a 24 de maio de 2014.
2
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(PPGCOM-UERJ). Professora Substituta da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(ECO-UFRJ). E-mail: [email protected]
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com a arte e com o documental, os limiares entre o real e a ficção na arte fotográfica e o
uso da tecnologia na criação de imagens.
André Boto, o construtor de imagens
Apesar de atualmente ser reconhecido como fotógrafo, André Pina Moreira Boto
(1985- ) iniciou sua formação como artista. Concluiu seus estudos no agrupamento de
Artes e cursou Licenciatura em Artes Decorativas, no Instituto Politécnico de Beja
(Portugal). Após a conclusão de sua formação acadêmica, frequentou os cursos de
Fotografia Avançada e Fotografia Conceitual, na Oficina da Imagem (Lisboa, Portugal),
mais ou menos na mesma época em que começou a desenvolver sua série de obras
intitulada Surrealismo, analisada mais a frente neste trabalho. 3
Apesar de sua curta carreira, obteve uma grande projeção ao ser nomeado o
Fotógrafo Europeu do Ano, pela Federation of European Photographers, em 2010.
Atualmente, Boto desenvolve trabalhos de fotografia autoral e artística, assim como
trabalhos mais comerciais, voltados para o mercado. A maioria de suas obras é
extensamente trabalhada em computador, com softwares de tratamento e criação de
imagens, como, por exemplo, o Photoshop. Muitas, inclusive, demoram horas ou
mesmo dias para serem finalizadas.
Por causa desse tipo de trabalho, Boto acredita que o mais correto seria se
autointitular “construtor de imagens”, em vez de “fotógrafo”. 4 Nomenclatura justificada
pelo fato de que, além de tirar suas fotografias como uso da câmera, ele também
constrói as imagens finais com o uso do computador. Nesse sentido, seu trabalho opera
a diferença entre o que filósofo canadense Patrick Maynard (1997, p.6) chamou de
image-taking e image-making, sendo o primeiro o ato de tirar fotografias e o segundo o
ato de criar imagens, com a utilização de técnicas diversas, como os ajustes de câmera,
o tratamento de imagens, a fotomontagem, etc., até atingir o efeito visual e o conceito
desejados.
Curiosamente, ao ser perguntado sobre suas influências, André Boto não cita
nenhum fotógrafo em especial, somente artistas. Suas principais influências são o
holandês M. C. Escher (1898-1972), o belga René Magritte (1898-1967) e o espanhol
3
Informações retiradas do site de André Boto: <www.andreboto.com>.
Como ele próprio diz em sua palestra no evento TEDxCoimbra (out. 2011), disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=8rM6SVw3H3w>
4
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Salvador Dalí (1904-1989), artistas que, cada um a sua maneira, trabalharam a questão
do fantástico e do surreal em suas obras. Como o próprio Boto explica, em entrevista ao
jornal VerPortugal,
Numa fase em que eu me dedicava por inteiro ao desenho destaco três
autores que ainda hoje me influenciam bastante, são eles: M. C.
Escher, René Magritte e Salvador Dalí. Nenhum deles é fotógrafo mas
todos têm criações muito particulares. Os três criaram os seus próprios
mundos e atmosferas, muitas vezes com base na ilusão de óptica, e foi
isso que me chamou a atenção e cativou, levando-me hoje a produzir
“os meus próprios mundos” através das minhas criações com base
na fotografia, enveredando pela produção do projecto Surrealismo e
outros com semelhanças. (BOTO in VERPORTUGAL, 2013, p.1)
As imagens que influenciam o trabalho de Boto são bem perceptíveis em
algumas de suas obras, mesmo em seus trabalhos mais comerciais, como pode ser
notado na releitura digital (fig.2) da litografia Drawing Hands (1948), de Escher (fig.1).
Figura 1: M. C. Escher, Drawing Hands, 1948.
Figura 2: André Boto, Sem título.
Ou em algumas imagens da série Surrealismo (fig.4), que fazem referência clara
à pintura Le Château de Pyrénées (1959), de Magritte (fig.3).
Figura 3: René Magritte, Le Château de
Pyrénées, 1959.
Figura 4: André Boto, Sem título (imagem integrante
da série Surrealismo), 2008.
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Boto, diferentemente dos artistas nos quais se inspira, utiliza a fotografia como
base material de suas obras, o que, de certa forma, dá um aspecto realístico a suas
imagens. Considerada como o “espelho do real”, em suas origens, a fotografia possui
até hoje o estigma de ser a representação fiel da realidade, devido a suas características
indiciais. O “isso-foi”, de Roland Barthes (1984), continua presente no imaginário dos
espectadores. Como aponta Dubois,
(...) a fotografia, pelo menos aos olhos da doxa e do senso comum,
não pode mentir. Nela a necessidade de “ver par crer” é satisfeita. A
foto é percebida como uma espécie de prova, ao mesmo tempo
necessária e suficiente, que atesta indubitavelmente a existência
daquilo que mostra. (DUBOIS, 1993, p.25)
O Photoshop, ao contrário, possui o estigma de ser manipulador da realidade. Ao
observar as imagens de Boto, fica claro que elas passaram por modificações através do
Photoshop. Essa clareza, no entanto, se deve ao tema das obras, cenas surreais e
fantásticas, que seriam improváveis de acontecer de fato. Se essas imagens não tivessem
essa temática, porém, provavelmente não se perceberia a manipulação, já que a fusão
das diversas fotografias utilizadas é feita de modo realista, sem que a ligação entre os
elementos da fotomontagem seja percebida. Ou seja, ao mesmo tempo em que as
imagens transmitem uma sensação de realismo, transmitem também a sensação oposta
de que tais cenas sejam puramente ficcionais. Elas se encontram no limiar entre a
realidade e a ficção, devido à técnica, à temática e ao material utilizados.
Além disso, suas obras possuem também uma convergência de meios. Talvez
justamente por sua formação em artes e por suas influências oriundas da área artística, o
trabalho fotográfico de André Boto possui uma mistura entre a fotografia (material
utilizados), o desenho e a pintura (conceitos utilizados). Seguindo a linha de raciocínio
de Joan Fontcuberta, exemplificada abaixo, poderia-se até dizer que, em algumas de
suas obras, André Boto faz desenho ou pintura com fotografia:
Os meios se intoxicam uns aos outros, e o mais interessante dessa
intoxicação não é a mera transfusão tecnológica, mas a conceitual. Por
exemplo, Chuck Close e Antonio López fazem fotografia com pincéis;
o que chega ao público é tecnicamente uma pintura, mas o conceito
subjacente é fotográfico. Bill Viola faz pintura com o magnetoscópio;
mesmo raciocínio: o que chega ao público é tecnicamente um vídeo,
mas o conceito é pictórico. Bernd e Hilla Becher fazem escultura com
a câmera. E também com a câmera Perejaume e Vik Muniz fazem,
respectivamente, pintura e desenho. De forma progressiva alcançamos
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a feira da confusão semiótica onde a identidade da imagem é colocada
em dúvida. Isto pode preocupar os semioticistas, mas não os curadores
de museus que antepõem um interesse à obra e não à técnica.
(FONTCUBERTA, 2012, p.187-188)
E, de fato, aos curadores de museus – e aos espectadores de suas obras –, essa
mistura de gêneros, por assim dizer, não parece incomodar, vide o sucesso da série
Surrealismo perante público e crítica.
A série Surrealismo e outras obras
O Surrealismo é um movimento artístico surgido em 1924, com o poeta francês
André Breton (1896-1966). Guillaume Apollinaire já havia criado o termo alguns anos
antes, em 1917, para descrever algo que ultrapassava a realidade, porém Breton se
apropriou de tal palavra para descrever sua própria visão de futuro. Segundo ele, o
Surrealismo seria “o pensamento que é expresso na ausência de qualquer controle
exercido pela razão e alheio a todas considerações morais e estéticas” (DEMPSEY,
2003, p.151).
Inspirado nas obras de Sigmund Freud (1856-1939), León Trótski (1879-1940),
conde de Lautréamont (1846-1880) e Arthur Rimbaud (1854-1891), Breton criou um
movimento bastante organizado – inclusive, com teorias doutrinárias –, que se estendeu
a diversas áreas artísticas, como a pintura, a escultura, a fotografia, entre outras. A
psicanálise, o marxismo e as filosofias ocultistas influenciaram Breton na criação do
Surrealismo, assim como influenciaram também outros artistas do movimento.
Os surrealistas pretendiam nada mais, nada menos do que a total
transformação do modo de pensar das pessoas. Ao derrubar as
barreiras entre seus mundos interiores e exteriores, ao modificar o
modo como elas percebiam a realidade, o surrealismo libertaria o
inconsciente, reconciliando-o com o consciente, e também livraria a
humanidade dos grilhões da lógica e da razão, que até então haviam
conduzido unicamente à guerra e à dominação. (DEMPSEY, 2003,
p.153)
Nascido do movimento artístico Dadá, porém diferenciando-se de seu caos não
doutrinado, o Surrealismo abordava, principalmente, temas relacionados ao medo, ao
desejo e à erotização. Um dos artistas mais conhecidos do movimento é o espanhol
Salvador Dalí, que utilizava, segundo ele próprio, “um método espontâneo de
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conhecimento irracional” (DEMPSEY, 2003, p.153), fazendo associações inesperadas
em diversos meios artísticos, como a pintura e a escultura.
O artista belga René Magritte também é considerado surrealista – ou realista
mágico, como são conhecidos alguns dos surrealistas europeus –, apesar de rejeitar o
lado psicanalítico do movimento. Segundo ele, o mundo exterior visível seria também
“uma fonte válida do maravilhoso, assim como seria o mundo interno do subconsciente”
(DEMPSEY, 2003, p.162). Suas obras são repletas de justaposições, enigmas e
deslocamentos, com uma mistura de magia e realismo nas imagens criadas.
O movimento surrealista possuiu também como integrantes diversos fotógrafos
que trabalhavam a questão do fantástico em suas obras, entre eles Man Ray (18901977), Brassaï (1899-1984), Jacques-André Boiffard (1902-1961) e Raoul Ubac (19091985).
Por meio da manipulação efetuada na câmara escura, close-ups e
justaposições inesperadas, a fotografia revelou-se um meio adequado
para isolar a imagem surreal presente no mundo. O status dual da
fotografia como documento e como arte fortaleceu a visão surrealista
segundo a qual o mundo é repleto de símbolos eróticos e de encontros
surreais. (DEMPSEY, 2003, p.154)
Man Ray, inclusive, obteve bastante sucesso nas áreas supostamente
incompatíveis das vanguardas artísticas e da fotografia comercial, com alguns de seus
trabalhos constando simultaneamente nos dois universos.
Inspirado no movimento surrealista, principalmente nas obras dos artistas
Salvador Dalí, René Magritte e M. C. Escher (que não era surrealista, mas trabalhava
bastante a questão do fantástico e das imagens ambíguas), André Boto criou uma série
intitulada Surrealismo, na qual, através do uso de fotomontagens, construiu universos
tão surreais quanto os de seus predecessores.
Curiosamente, Boto não se inspirou nos fotógrafos surrealistas, mas nos
pintores, o que, já de início, confere um hibridismo conceitual em suas obras. O material
utilizado é a fotografia, mas o conceito é o da pintura. E, de fato, algumas de suas
imagens finais possuem certa semelhança visual com pinturas, apesar de serem
tecnicamente fotográficas (fig.5).
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Figura 5: André Boto, Sem título (imagem integrante da série Surrealismo), 2008.
Nos primórdios da fotografia, no século XIX, havia uma separação muito grande
entre os universos da fotografia e da pintura. A fotografia era considerada a
representação fiel da realidade, por uma questão meramente maquínica: acreditava-se
que a imagem era obtida, através de uma máquina, sem nenhuma intervenção da mão
humana, ao contrário da pintura, que seria criada totalmente pelo homem.
(...) pela primeira vez a imagem não nascia no corpo (ou com o
corpo), mas fora do corpo. O desenho e a pintura requeriam os
impulsos da mão para guiar a configuração gráfica; em compensação,
na fotografia bastava apertar um botão para que se desencadeasse uma
série de operações ópticas, mecânicas e químicas cuja consequência
era uma produção automatizada da imagem. (...) A fotografia não era
entendida como um ato de expressão, nem como o fruto de uma
interpretação pessoal, pois sua produção era tecnicamente
independente de um trabalho fisiológico e ficava assim alheia às
potências de um organismo regido por nossa vontade.
(FONTCUBERTA, 2012, p.186-187)
Dessa característica indicial nasceu o discurso realista da fotografia, que
afirmava que esta seria o “espelho do real” por não passar, de forma alguma, pela
subjetividade humana. Hoje sabemos que isso não é exatamente verdade. “Mesmo
quando está em contato com as coisas, o fotógrafo não está mais próximo do real do que
o pintor trabalhando diante de sua tela.” (ROUILLÉ, 2009, p.19). Além disso,
atualmente, os universos da pintura e da fotografia estão bem mais próximos um do
outro, muitas vezes misturando-se em obras híbridas, difíceis de serem classificadas em
uma ou outra categoria.
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A fotografia, apesar de ser uma imagem obtida por uma máquina, é também uma
forma de expressão humana, já que
(...) a câmera é uma máquina, mas o fotógrafo não é um robô. O ato
fotográfico submete o fotógrafo a uma sequência de decisões que
mobiliza todas as esferas da subjetividade. O fotógrafo é um
personagem que pensa, sente, se emociona, interpreta e toma partido.
E que faz isso tudo sem perceber. (FONTCUBERTA, 2012, p.188)
Dessa forma, as fotografias de André Boto, apesar de serem oriundas de imagens
técnicas, são também uma forma de expressão artística. Suas imagens da série
Surrealismo são construídas do início ao fim, desde a tirada das diversas fotografias que
formarão a fotomontagem final, até a construção da fotomontagem propriamente dita.
Ao tirar as fotos, ele exerce sua inventividade nas escolhas de composição e ajustes da
câmera, às vezes mesmo sem perceber. E, ao manipular e juntar as imagens em
computador, montando cuidadosamente cada elemento da imagem, ele cria uma espécie
de pintura digital, que corresponde a suas intenções plásticas e conceituais.
Como André Rouillé explica,
(...) a fotografia, mesmo a documental, não representa
automaticamente o real; e não toma o lugar de algo externo. Como o
discurso e as outras imagens, o dogma de “ser rastro” mascara o que a
fotografia, com seus próprios meios, faz ser: construída do início ao
fim, ela fabrica e produz os mundos. Enquanto o rastro vai da coisa
(preexistente) à imagem, o importante é explorar como a imagem
produz o real. (ROUILLÉ, 2009, p.18)
As fotografias de Boto não só representam uma determinada realidade, elas
criam uma espécie de nova realidade surreal, ou um mundo imaginado no qual o
espectador é convidado a entrar.
Outras imagens da série Surrealismo, diferentemente da figura 5, são
visualmente realistas (fig.6-7). Apesar disso, elas não são o reflexo puro da realidade, a
começar pela questão da expressão artística já mencionada anteriormente: “(...) mesmo
o documento reputado como o mais puro é, na realidade, inseparável de uma expressão:
de uma escrita, de uma subjetividade e de um destinatário (...)” (ROUILLÉ, 2009, p.20).
Mais do que isso, no entanto, a temática das fotos aponta, de certa forma, a ficção
presente nas imagens. Elas poderiam perfeitamente ser uma paisagem fotografada por
um mero “apertar de botão”, porém, em que paisagem haveria uma rocha flutuando
alguns metros acima do mar? Muito provavelmente em uma paisagem imaginada e
surreal.
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Figura 6: André Boto, Sem título (imagem integrante
da série Surrealismo), 2008.
Figura 7: André Boto, Sem título (imagem integrante
da série Surrealismo), 2008.
Ao mesmo tempo em que os elementos da fotografia estiveram na frente da
câmera ao serem fotografados (não todos ao mesmo tempo, como pode-se perceber),
esses elementos foram modificados a tal ponto que o “isso-foi” se descaracterizou e
passou a não ser mais. Essas imagens não atestam a existência de determinada situação.
A torre presente na figura 6 ou o menino da figura 7, por exemplo, provavelmente
estiveram, em algum momento, na frente da câmera para serem captados em imagem,
porém, não na situação em que se encontram atualmente. Não em cima de rochas
flutuantes, não no atual cenário e talvez, nem mesmo, soltando pipa. Essas cenas não
aconteceram de fato, ou talvez até tenham acontecido, mas no universo surrealista de
André Boto.
A fotografia, portanto, pode ser a criação de um documento, mas pode ser
também uma expressão artística do fotógrafo, ou seja, “uma prática que é
exemplarmente ambivalente, entre a arte e a não-arte” (RANCIÈRE, 2010, p.158)
Nos primórdios da fotografia, como mencionado anteriormente, esta não era
considerada uma forma de arte, novamente por uma questão maquínica. Duvidava-se
que uma imagem técnica poderia ser arte, já que esta era produzida por uma máquina.
Apesar dos questionamentos, a favor da fotografia, de alguns fotógrafos específicos,
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como Oscar Rejlander (1813-1875), e de movimentos inteiros, como o Pictorialismo, a
fotografia não foi totalmente aceita no mundo da arte durante um bom tempo. O
Pictorialismo, inclusive, já foi bastante criticado por ter tentado transformar a fotografia
em arte ao tentar torná-la parecida estética e plasticamente com a pintura, em vez de
praticar arte com a própria técnica fotográfica – como fazia Rejlander com suas
fotomontagens, por exemplo. Dessa maneira, a mistura dos meios era utilizada por eles,
pois acreditavam que a fotografia sozinha não poderia constituir uma forma de arte,
devido ao seu automatismo mecânico (ROUILLÉ, 2009, p.256-257).
“Foi somente por volta dos anos 1980 (como um eco às experimentações dos
vanguardistas do início do século, mas em condições e sob formas totalmente
diferentes) que a fotografia foi adotada pelos artistas como verdadeiro material
artístico” (ROUILLÉ, 2009, p.21), possibilitando a existência da arte-fotografia, como a
denominou Rouillé. A convergência entre arte, pintura, fotografia e outros meios, como
cinema, vídeo, etc., se tornou cada vez mais comum, mas não pelo fato da fotografia
não poder ser arte. Justamente o contrário; a artisticidade do meio fotográfico é
trabalhada dentro dessa mistura. Atualmente, fotógrafos são aceitos como artistas, e
artistas também são aceitos no universo fotográfico, sendo, muitas vezes, difícil
distinguir de qual universo estamos falando.
No trabalho de André Boto, por exemplo, uma forma de convergência de
linguagens bem visível é proporcionada pela junção artística das tecnologias digitais da
fotografia, do desenho e do vídeo, em um de seus trabalhos mais interessantes nesse
quesito, intitulado Night Walking (2013). Nessa obra, Boto faz uma fotomontagem, com
156 camadas no Photoshop e grava o procedimento artístico em um vídeo 5. O processo
de criação, obviamente, está documentado de forma resumida no referido vídeo, já que
o tempo de trabalho durou em torno de 6 a 7 horas e o vídeo possui somente 5 minutos.
Segundo ele, esse experimento tinha um simples destino didático, de ensinar a
seus alunos como fazer construções de imagens, com o uso da fotografia e do
computador. Porém, o vídeo acabou fazendo um relativo sucesso no YouTube e Boto
transformou a atividade em um projeto, em andamento, de publicar vídeos de seu
processo criativo.
Como se pode perceber ao assistir o vídeo, ele inicia o processo com uma
fotografia relativamente simples, sem nenhum grande apelo estético em especial (fig.8).
5
O referido vídeo pode ser encontrado na página do YouTube de André Boto, no seguinte endereço:
<http://www.youtube.com/watch?v=xATORzmv2bU>
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Ao longo de suas longas horas de trabalho, ele vai construindo a imagem aos poucos,
adicionando, montando e aperfeiçoando cada elemento da cena. Postes, fios e latas de
lixo são apagados; outros postes, com uma estética diferenciada, são acrescentados. A
calçada, que estava quebrada é “consertada”, com a colagem de outra calçada por cima
dela. O céu, quase sem cor, é substituído pelo céu nublado e mais saturado de outra
fotografia. Prédios são acrescentados; a saturação e o contraste modificados. A
iluminação, que fornece uma atmosfera mais sombria e fantástica à imagem, é toda
acrescentada artificialmente. O dia vira noite. A paisagem, que estava deserta, ganha um
pedestre atravessando a rua e luzes iluminando os edifícios e as calçadas. Muitos dos
elementos são cuidadosamente desenhados, com o uso de um tablet para desenho
digital 6. Janelas são construídas; a chuva surge artificialmente; o reflexo da paisagem no
chão, devido à chuva, também é acrescentado. Até o ambiente do interior do prédio vem
de outra imagem. As gotas da chuva são milimetricamente desenhadas, caindo do
guarda-chuva e dos prédios.
Pode-se questionar se a imagem final (fig.9) é de fato uma fotografia ou se
tornou-se um desenho ou uma pintura digital. É difícil definir os limites entre um meio e
outro. A imagem possui uma base fotográfica e as manipulações foram todas feitas em
um software fotográfico. No entanto, foi utilizado também um tablet para desenho
digital e técnicas de desenho e de pintura. A chuva presente na imagem final, por
exemplo, parece ter sido totalmente desenhada, inclusive as gotinhas que caem do
guarda-chuva do senhor que atravessa a rua e dos prédios ao redor. A imagem, que era
esteticamente simplória, ganha uma atmosfera mágica e fantástica, parecendo retirada
de algum filme infantil ou, talvez, de alguma cena medieval. A cena foi completamente
modificada e a imagem reconstruída e redesenhada. A tecnologia do computador
possibilitou a construção do real e de um mundo fabricado. A expressão do artista foi
responsável por tal construção.
É complexo determinar se essa imagem é ainda uma fotografia ou se tornou-se
outra coisa, como um desenho ou uma pintura, ou mesmo nenhum dos três. Mas uma
coisa, ao menos, acredita-se ser possível afirmar: ela é um produto artístico híbrido das
novas tecnologias digitais e do artista, que soube trabalhar a convergência de diversos
meios.
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Um tablet Wacom Intuos 5, como Boto informa nos créditos.
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Figura 8: André Boto, Sem título (primeira fotografia utilizada para a fotomontagem), 2013.
Figura 9: André Boto, Night Walking (imagem final), 2013.
Considerações finais
A obra de André Boto reflete, de certa forma, muitas das características da arte e
da fotografia contemporâneas, por isso, foi escolhida para essa análise. A questão da
convergência e das novas tecnologias é muito rica em seu trabalho, já que ele conjuga
seu procedimento artístico em diversos meios de forma integrada. Dessa forma, sua obra
possibilita uma reflexão acerca de questões muito presentes no universo fotográfico,
como a construção de imagens com o uso de câmeras e computadores, os limiares entre
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a realidade e a ficção nas imagens técnicas e a relação entre arte e fotografia, entre
outras questões, como pode ser observado ao longo do artigo.
Este trabalho é somente uma reflexão acerca do tema e, obviamente, não
pretende, portanto, criar regras em relação à arte ou à fotografia. É um trabalho inicial,
que será aprofundado em pesquisas futuras, sobre a obra do próprio André Boto e
também sobre a obra de outros artistas que possuam trabalhos com questões correlatas,
relacionando a pertinência de seus fazeres com as práticas contemporâneas da
fotografia, assim como, com as práticas de outros tempos.
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1984.
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ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo: Senac
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VERPORTUGAL. André Boto: quando as imagens são veículo de comunicação. VerPortugal,
Lisboa, 27 dez. 2013. Disponível em:
<http://www.verportugal.net/Lisboa/Lisboa/Entrevistas/Andre-Boto-quando-as-imagens-saoveiculo-de-comunicacao=007527/1>
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