Faculdade Santa Marcelina Thiago Branquilho Schiefer Vigília: Diário da composição de uma canção surrealista Trabalho apresentado como requisito parcial para a conclusão da pós-graduação lato sensu Canção Popular: criação, produção musical e performance sob orientação do Prof. Dr. CACÁ MACHADO. São Paulo 2014 Vigília: diário da composição de uma canção surrealista Thiago Branquilho Schiefer (Faculdade Santa Marcelina) Resumo: O presente texto relata o processo de criação da canção Vigília, obra do autor deste, criada sob a premissa de descobrir-se uma possibilidade de composição/arranjo/produção contemporânea que se identifique com o Surrealismo, movimento surgido na França na década de 1920. Foram utilizadas como principais referências as obras de pintores surrealistas como René Magritte e Salvador Dalí, aliadas a elementos do primeiro Manifesto Surrealista de André Breton e de textos e filmes relacionados ao movimento. Dentro de uma proposta de canção popular, atingiu-se o resultado esperado, com diversas pontes possíveis entre a estética cancional popular contemporânea e o universo tomado como base. Palavras-chave: Surrealismo. Canção. Composição. Estética. 1 - Introdução O presente trabalho é o relato do processo composicional da canção Vigília, do mesmo autor deste, criada sob a luz da estética surrealista. Foram utilizados como base conceitos apontados por André Breton em seu Manifesto Surrealista, bem como elementos inferidos das obras dos artistas plásticos René Magritte e Salvador Dalí, do poeta e dramaturgo Antonin Artaud e do cineasta Luis Buñuel. A canção pode ser ouvida em http://soundcloud.com/tschiefer/vigilia. 2 – Sob o signo do Surrealismo O movimento surrealista surgiu em Paris no início da década de 20 na forma de um grupo de poetas de vanguarda. O primeiro documento teórico do movimento é o Manifesto Surrealista (1924), de André Breton, um de seus líderes. Ainda que os surrealistas franceses fossem hostis à música, e que o próprio Breton lhe tivesse horror1 e desdenhasse Schopenhauer 2, havia compositores vinculados ao movimento. Na França mesmo, na década de 20, formou-se em Paris o grupo de compositores franceses 1 MOTHERWELL: “Apesar de remotamente musical, encontrou a aberta hostilidade de André Breton, que tinha horror à música e sofria por ter sido reduzido ao papel de intérprete”, diz Georges Ribemont-Dessaignes a respeito do Festival Dadaísta de 1920 em que Tristan Tzara tentava sem sucesso fazer sua “Vaseline symphonique” funcionar. MOTHERWELL, Robert (ed.). The Dada Painters and Poets: An Anthology. Cambridge/London: The Belknap Press of Harvard University Press, 1982. Citado por COMENAS, Gary. André Breton: Surrealism, Dada and the Abstract Expressionists. Disponível em http://www.warholstars.org/abstractexpressionism/artists/andrebreton/andrebreton.html. Acesso em 18 jun. 2014. 2 BOTSTEIN, Leon. Surrealism and music?: the musical world around René Magritte. Disponível em: http://americansymphony.org/surrealism-and-music-the-musical-world-around-rene-magritte/. Acesso em 27 mai. 2014. Les Six, cujo porta-voz autoproclamado era Jean Cocteau, constituído por Darius Milhaud, Germaine Tailleferre, Arthur Honegger, Louis Durey, Francis Poulenc e Georges Auric3. Tailleferre compôs canções, as “Chansons françaises para voz e piano” (1930), em que fez uso de técnicas modernistas4. Cocteau foi um dos primeiros surrealistas, tendo criado o libreto de Parade, obra para a qual o poeta Guillaume Apollinaire cunhou o termo “surrealismo” 5. Além deles, o compositor belga André Souris foi muito ativo no movimento 6, tendo sido inclusive amigo de René Magritte7. “Experimentou com colagem e simplicidade para construir uma narrativa quase surrealista (...) Em Souris, Poulenc e [Charles] Koechlin, contrastes bizarros rasgam a superfície da tão chamada ‘realidade’ para trazer uma experiência mais próxima do sonho”8. O compositor Bohuslav Martinů também chegou a assimilar aspectos do surrealismo, somando-os ao jazz e ao neoclassicismo que influenciavam suas obras mais experimentais – majoritariamente balés9. No entanto, a sonoridade das obras de Tailleferre, Souris e dos outros compositores do período, remotamente ou não ligados ao movimento surrealista, aproxima-se muito mais daquilo que se entende hoje por música erudita. Desta forma, portanto, diferem do objetivo deste trabalho: buscar uma possível sonoridade surrealista na música popular contemporânea. O mais próximo que encontrei desta premissa foi um trabalho do compositor maranhense Zé de Riba sobre o pintor Marc Chagall, cujos “’híbridos humano/animal e fantasmas flutuantes’ viriam a ser uma influência formativa do Surrealismo” 10. O trabalho do maranhense faz uso exclusivo de sonoridades acústicas para atingir seus propósitos; minha intenção, no entanto, é de utilizar uma linguagem sonora com maior presença de elementos eletrônicos, especialmente em efeitos que sugiram uma atmosfera onírica. Vamos, portanto, ao desenvolvimento da canção. 2 - Da metodologia (ou Diário de uma composição) 3 ROSS, Alex. O resto é ruído : escutando o século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 114 JOHNSTON, Blair. Artist Biography (Germaine Tailleferre). Disponível em http://www.allmusic.com/artist/germaine-tailleferre-mn0001866250/biography. Acesso em 18 jun. 2014. 5 ROSS, p. 113 6 s.a. “Andre Souris”. Centre Belge de Documentation Musicale. Disponível em http://www.cebedem.be/en/composers/s/134-souris-andre. Acesso em 27 mai. 2014. 7 BOTSTEIN 8 Idem. 9 s.a. “Bohuslav Martinů” (verbete). Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Bohuslav_Martinů. Acesso em 27 mai. 2014. 10 s.a. “Marc Chagall” (verbete). Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Marc_Chagall. Acesso em 18 jun. 2014. 4 Parti da seguinte proposição inicial: criar uma canção inspirada na obra de alguns dos mais conceituados artistas do movimento surrealista. O objetivo seria conhecer a base comum a todos os artistas do movimento e buscar uma forma de aplicá-la a letra, melodia, harmonia e paleta timbrística de uma composição/arranjo contemporânea. 1ª Etapa Minha ideia original era procurar muitas referências teóricas sobre o movimento surrealista, entender suas regras e seus elementos recorrentes de forma racional e, de posse de tal conhecimento, partir para a composição da peça. No entanto, instigado por meu orientador a buscar uma abordagem menos pragmática e mais sensorial (e, porque não, mais surrealista) no processo criativo, planejamos um início ritualístico: apanhei uma taça de vinho e li, do começo ao fim, o 1º Manifesto de Breton (1924). O vinho serviria como uma forma de tentar abrir minha mente a uma percepção diferente do texto, já que “em seu afã de descobrir novos estados mentais, os surrealistas realizavam experiências com hipnose, drogas, álcool, sessões espíritas e transes” 11. Tal processo se mostrou bastante coerente com a proposta, dado que “os artistas surrealistas celebravam a transcendência da contradição aparente e buscavam vencer a tirania da razão, para liberar a dinâmica automática e inconsciente da criatividade” 12. No entanto, a obra mostrou-se, ela mesma, bastante pragmática e são raros os momentos em que o autor faz uso da estética mesma que propõe. Serviu-me mais como manual, apontando elementos importantes para o movimento - em especial a questão do sonho. Para Breton, o estado de sono é demasiadamente desvalorizado pela sociedade, em detrimento do estado de vigília; por que aquele não pode ser o estado "real", o mais importante, e não este? Em vigília, busca-se a concretização daquilo que efetivamente se possui no sonho; sonhando, não há escolhas, faz-se o que se quer. Ideal, portanto, seria a confluência dos estados de sonho e realidade numa realidade absoluta: sur-réalisme, superrealidade, surrealismo. 2ª Etapa Buscando seguir a mesma organização da noite anterior, porém com outro estímulo, servi-me novamente de uma taça de vinho e folheei atentamente o pequeno “A Arte dos 11 McGINITY, Larry. Surrealismo. In: FARTHING, Stephen (Ed.). Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2010, p.427 12 BOTSTEIN. Tradução do autor para o original: “Surrealist artists celebrated the transcendence of apparent contradiction and sought to overcome the tyranny of reason, to unleash the atomatic and un-self-conscious dynamic of creativity.” Surrealistas”13, atendo-me mais às reproduções dos quadros de René Magritte, Salvador Dalí, Giorgio de Chirico e outros autores-chave do movimento do que aos comentários textuais do autor. Dormi em seguida. Desta vez o efeito foi mais interessante. Ao final de meu sono, aconteceu um sonho envolvendo um híbrido barata/lacraia de tamanho avantajado e um homem visivelmente perturbado clamando ser “o elemento surrealista que vai desonrar e destruir seu sonho”. Vale aqui um parêntese sobre Salvador Dalí: “Essenciais para sua prática, Dalí fabricava em si mesmo estados extremos de ansiedade e aflição – muitas vezes aterrorizandose com cadáveres de insetos e porcos-espinhos – nos quais tentava turvar a distinção entre sua imaginação e a realidade” 14. Baratas me provocam profundo nojo e aflição (possivelmente mais do que qualquer outro inseto), de modo que meu sonho pareceu aproximar-me de certa forma do processo criativo do artista plástico. A proposta de meu orientador era, então, deixar que essas referências “decantassem” em minha mente por alguns dias e, depois, pegar meu principal instrumento de composição – o violão – e criar algo. Assim fiz. 3ª Etapa Várias ideias musicais e literárias surgiram ao longo dos 10 dias seguintes, porém sempre dissociadas. Escrevi algumas letras de uma só vez, em fluxo, deixando auto-críticas e correções estilísticas para um momento posterior; e criei uma série de pequenos motivos harmônicos ao violão, sempre gravados no momento imediatamente após sua concepção. Mas nenhuma combinação letra-música fazia sentido. Comecei a me nutrir de mais e mais referências imagéticas, sempre buscando novas pinturas dos artistas já mencionados, acrescidos de outros (Paul Devaux, Max Ernst, Joan Miró) e fazendo com que suas obras fizessem parte do meu dia-a-dia, como plano de fundo na tela de meu computador. Tocava em frente a essas imagens, tentando musicá-las, mas nenhuma letra cantarolada simultaneamente soava interessante. Busquei, concomitantemente, referências musicais que de alguma forma se associam a uma certa sonoridade que estava em minha mente: Lenine, Leo Cavalcanti, Projeto Axial, Pink Floyd. Música popular com certo caráter onírico, ritualístico, cíclico. Pluguei minha guitarra e apliquei uma boa dose de delay (eco digital) e chorus (duplicação da frequência original, porém levemente desafinada, o que provoca uma defasagem da onda sonora, criando 13 14 SWINGLEHURST, Edmund. A arte dos surrealistas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. McGINITY, p.430 um som “molhado), pois essa sonoridade de alguma forma me remetia ao universo dos sonhos. Pink Floyd me interessava muito como referência neste projeto em particular por ter sido considerada uma banda de rock psicodélico. Ainda que a premissa seja diferente do surrealismo (este trata dos sonhos, aquele, de efeitos causados majoritariamente pelo uso de drogas), vejo uma relação entre os dois movimentos por tratarem de estados de consciência que não a vigília, e que em geral trazem uma visão “distorcida” da realidade. Tocando Us And Them, do álbum Dark Side of the Moon (1973), fui “lembrado” da existência dos acordes aumentados, não tão comuns no cancioneiro popular. Em uma sessão posterior musicando quadros surrealistas, surgiram os tais acordes e, graças ao estranhamento causado não apenas pela dissonância da quinta aumentada, mas também por sua relativa raridade, trouxeram precisamente a sonoridade que eu buscava. Porém, ainda não conseguira criar nada que se relacionasse diretamente a alguma das letras anteriores (ou, ao menos, não ao que elas me sugeriam musicalmente). 4ª Etapa Foi então que, prestes a entrar em contato com meu orientador para informar que ainda não havia conseguido nada que soasse “coerente”, me dei conta: uma das características primordiais do Surrealismo é a recontextualização ou justaposição de duas realidades diferentes: A imagem é uma criação pura da mente. Ela não pode nascer da comparação, mas da justaposição de duas realidades mais ou menos remotas. Quanto mais remota e verdadeira for a relação entre duas realidades justapostas, tanto mais forte a imagem – maior sua força emotiva e realidade poética (...)15 Uma nova coerência é criada a partir da obra, e muitas vezes pertencente apenas a ela – diversos exemplos poderiam ser citados; ilustro com Invenção Coletiva, de Magritte, imagem sobre a qual os acordes aumentados soaram tão bem (figura 1). Peguei novamente a guitarra e apliquei uma das letras pré-concebidas a um motivo também anterior, os quais me pareciam completamente incompatíveis; acrescentei um acorde aumentado à progressão, e comecei a criar minha canção surrealista. 15 REVERDY, Pierre. In BRETON, André. First Manifesto of Surrealism – 1924. Tradução para o inglês: A. S. Kline. Disponível em http://www.poetryintranslation.com/PITBR/French/Manifesto.htm. Acesso em 18 jun. 2014, p. 15. Traduzido do inglês “The image is a pure creation of the mind. It cannot be born from a comparison but from a juxtaposition of two more or less remote realities. / The more the relationship between the two juxtaposed realities is remote and true, the stronger the image – the greater its emotive power and poetic reality” Figura 1 Letra Esta era sua letra neste estágio: Sonho é o flash dos olhos Sonho é o subconsciente Sonho é o que se esconde na mente Sonho é quando se abrem seus fólios Sonho é um medo inconsciente Sonho é um homem que ataca Sonho é moeda pataca Sonho é o que te faz descrente Sonho é despertar a libido Sonho é a crença inerente Sonho é o fruto-serpente Sonho é tudo que é proibido Sonho é a fuga frequente Sonho é o abismo infinito Sonho é quando o feio é bonito Sonho é a morte carente Sonho é barata-lacraia Sonho é o monstro demente Sonho é o bicho da gente Sonho é o pico da vaia Sonho é a verdade que mente Sonho é navalha no olho Sonho é quando o corpo recolho No umbigo pra virar semente A letra bebe estruturalmente na fonte de Miedo, de Lenine, que também aborda seu objeto (o medo) por meio de diversas descrições. A minha, portanto, descreve sonhos por vários vieses: a) Pragmáticos: “subconsciente”; “o flash dos olhos”, remetendo ao R.E.M. – Rapid Eye Movement, ou movimento rápido dos olhos, estágio do sono em que acontecem os sonhos; b) Clichês: "abismo infinito", "fuga frequente"; c) Pessoais: “homem que ataca”, "barata-lacraia", associados diretamente ao sonho relatado acima. Boa parte das imagens evocadas remete claramente à produção dos surrealistas, seja pela justaposição de imagens aparentemente contraditórias (“morte carente”, “é o que te faz descrente / é a crença inerente”), seja por uma referência direta às suas obras (“navalha no olho”, aludindo a Um cão andaluz, de Buñuel). Aparecem, também, os três fundamentos da existência, segundo o grupo de Breton: sexo, violência e morte16. Esse primeiro material foi então retrabalhado, preservando sempre a ideia inicial de letra e música, para que o resultado final fosse uma peça bem acabada e interessante, e se possível não-hermética. Notei, ao buscar a melodia vocal para a peça, que a repetição do elemento “Sonho é” parecia bastante interessante no texto enquanto poesia, mas soava enfadonha quando colocada em canção. “Enxuguei” então a repetição e criei um refrão, “um dispositivo de gramática melódica, fundamental para a retenção da memória e para as faculdades de previsão que esse tipo de linguagem temporal [a canção] exige” 17. Esta foi a letra gravada: 16 McGINITY, p.426 TATIT, Luiz. Elementos para a análise da canção popular. Cadernos de semiótica aplicada, São Paulo, vol. 1, nº 2, pp. 7-24, dezembro de 2003, p. 7 17 Flash dos olhos Subconsciente O que se esconde na mente Quando se abrem seus fólios Um medo inconsciente Um homem que ataca Moeda pataca O que te faz descrente Despertar a libido Fruto-serpente Crença inerente Tudo o que é proibido E se o sonho for Mais real que a vigília? Durmo pra viver minha vida real Traço minha paisagem surrealista Sonho que sonho um sonho natural Verdade que mente Navalha no olho Quando o corpo recolho No umbigo pra virar semente Fuga frequente Abismo infinito Feio bonito Morte carente Barata-lacraia Monstro demente O bicho da gente O pico da vaia E se o sonho for Mais real que a vigília? Durmo pra viver minha vida real Traço minha paisagem surrealista Sonho que sonho um sonho natural O nome de trabalho da canção era “Paisagem Surrealista”, porém meu orientador a rebatizou com uma ótima sugestão: “Vigília”. Nada tão surrealista quanto um título diametralmente oposto ao assunto da letra, mas ainda assim tão diretamente relacionado: se Breton propõe que o sonho é mais “real” que a vigília, há de fato uma barreira entre os dois estados? Composição a) Harmonia A harmonia essencial já estava criada desde a primeira versão da letra: a b c || E | F#/E | E | E5+ :||: A | B/A | A | A5+ :||: Bm11/D | F#5/6/9 | Bm11/D | D5+ :|| Sua essência é modal, em torno do modo Lídio, do qual se desprende apenas no surgimento do acorde aumentado. A parte b nada mais é do que uma modulação para A Lídio, preservando integralmente o vamp original. Em c temos uma variação harmônica, com a entrada de outras dissonâncias. Uma preparação foi acrescentada ao final de c para introduzir o refrão: preparação refrão ¹------------¬ ²--¬ || D5+ G5+ | C5+ E5+ ||: A | B | C | % | A | B | C#m | C#m B :|| B || O uso de vários acordes aumentados em sequência gera um estranhamento bastante interessante para o caráter da canção, contribuindo para a atmosfera ao mesmo tempo onírica e perturbadora. O refrão, tonal, em Mi maior, tem também seu intruso: o acorde de Dó maior, que contribui para causar certa instabilidade neste trecho. b) Ritmo A textura rítmica, em compasso composto, sugere, junto à harmonia, um caráter cíclico. O início, com o ostinato rítmico em grupos de três colcheias cria, até sua interrupção no refrão, uma sonoridade de certa forma etérea, como se o tempo andasse devagar e sem grandes surpresas. Como um relaxamento para trazer o sono. O refrão traz uma batida mais vigorosa no violão, que permanece para a segunda repetição das partes a, b e c, buscando criar interesse no arranjo. c) Arranjo Compõem também o arranjo um piano Rhodes sintetizado, alguns sintetizadores virtuais (inclusive na função de baixo), guitarras altamente processadas, um piano e um violão. Escolhi não usar instrumentos de percussão porque estes costumam dar uma espécie de “chão” para nossos ouvidos, algo que não me interessava numa canção conceitualmente onírica. Para criar mais interesse, no entanto, criei uma percussão vocal subjacente ao refrão a partir de respirações intensas e outros sons similares, buscando texturas coerentes com o universo onírico do arranjo – mas com ataques menos pronunciados e valorizando a região aguda do espectro de frequências, para continuar evitando o “chão” dos instrumentos tradicionais de percussão. Interpretação Busquei, a partir de algumas observações de meu orientador sobre a primeira “demo” da canção, uma interpretação mais teatralizada da letra, adequando também a melodia a sua prosódia. Luiz Tatit, reconhecido teórico da canção, aborda esse assunto de forma bastante didática no ensaio “Elementos para a análise da canção popular”, aqui utilizado, e aplica termos úteis a determinadas formas de interpretação vocal. Minha tendência como intérprete, observada à luz de sua metodologia, é a de um canto passionalizante – ou seja, com notas muito longas: “o prolongamento das durações torna a canção necessariamente mais lenta e adequada à introspecção. Afinal, a valorização das vogais neutraliza parcialmente os estímulos somáticos produzidos pelos ataques das consoantes.” No entanto, para trazer à letra uma sonoridade concreta (jogando aqui com a justaposição de elementos remotos – o sonho é íntimo, visto como etéreo durante a vigília, mas concreto e aberto quando o vivenciamos), a referida teatralização levou também à figurativização – ou seja, a um canto mais próximo da fala, que aproxima o ouvinte daquilo que é dito: “ao ouvirmos vocativos, imperativos, demonstrativos, etc., temos a impressão mais acentuada de que a melodia é também uma entoação linguística e que a canção relata algo cujas circunstâncias são revividas a cada execução.”18 Em determinados trechos, a gravação conta inclusive com a letra sendo falada, ao fundo, com intenções imperativa, explicativa e outras, como que alguém gritando no fundo da mente do sonhador. Em relação ao sentido dado por determinadas inflexões vocais, os Beatles também me ensinaram algo que contribuiria para o caráter surrealista do arranjo vocal. Em canções como “Paperback Writer” e a psicodélica “Lucy in the Sky with Diamonds”, são realizados glissandos na voz (a mudança de uma nota para outra de forma lenta e gradual), o que pode transmitir uma sensação de morosidade, cansaço ou alteração do estado de consciência – já que esse efeito vocal frequentemente ocorre com uma pessoa ébria, sob efeito de drogas, ou com sono. Pequenos glissandos harmonizados foram colocados como comentários melódicos no último refrão para trazer este caráter à canção. E assim foi criada “Vigília”. 3 - Conclusão Dentro de uma proposta de criação de uma canção popular contemporânea, atingiu-se o resultado esperado. Diversas relações foram apontadas entre a canção-objeto deste trabalho e o universo tomado como base. Elementos acústicos e eletrônicos, líricos e musicais foram utilizados para trazer à luz uma nova canção, se não inteiramente original (já que nada o é), ao menos triunfante na justaposição de elementos diversos – recurso tão caro ao movimento que a inspirou. 4 - Referências bibliográficas BOTSTEIN, Leon. Surrealism and music?: the musical world around René Magritte. Disponível em: http://americansymphony.org/surrealism-and-music-the-musical-worldaround-rene-magritte/. Acesso em 27 mai. 2014. BRETON, André. First Manifesto of Surrealism – 1924. Tradução para o inglês: A. S. Kline. Disponível em http://www.poetryintranslation.com/PITBR/French/Manifesto.htm. Acesso em 18 jun. 2014. JOHNSTON, Blair. Artist Biography (Germaine Tailleferre). Disponível em http://www.allmusic.com/artist/germaine-tailleferre-mn0001866250/biography. Acesso em 18 jun. 2014. McGINITY, Larry. Surrealismo. In: FARTHING, Stephen (Ed.). Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2010. 18 TATIT MOTHERWELL, Robert (ed.). The Dada Painters and Poets: An Anthology. Cambridge/London: The Belknap Press of Harvard University Press, 1982. Citado por COMENAS, Gary. André Breton: Surrealism, Dada and the Abstract Expressionists. Disponível em http://www.warholstars.org/abstractexpressionism/artists/andrebreton/andrebreton.html. Acesso em 18 jun. 2014. ROSS, Alex. O resto é ruído : escutando o século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. s.a. “Andre Souris”. Disponível em http://www.cebedem.be/en/composers/s/134-souris-andre. Acesso em 27 mai. 2014. s.a. “Bohuslav Martinů” (verbete). Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Bohuslav_Martinů. Acesso em 27 mai. 2014. s.a. “Marc Chagall” (verbete). Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Marc_Chagall. Acesso em 18 jun. 2014. SWINGLEHURST, Edmund. A arte dos surrealistas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. TATIT, Luiz. Elementos para a análise da canção popular. Cadernos de semiótica aplicada, São Paulo, vol. 1, nº 2, pp. 7-24, dezembro de 2003.