Mesa: Feminismos transnacionales, hermenéutica y políticas de identidad
Título: Uma reflexão sobre as mulheres atingidas por barragens: teoria feminista e pós-colonial,
uma possibilidade de enfrentamento.
Autoria: Fernanda Pereira de Araújo; João Paulo Araújo Silva (graduandos, respectivamente,
dos cursos de Ciências Sociais e Antropologia Social)
Filiação Institucional: Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte/Brasil
Contato: [email protected] - [email protected]
Introdução
Este artigo pretende lançar um olhar sobre o impacto de grandes projetos hidrelétricos na vida de
mulheres atingidas. Muito se tem discutido acerca dos impactos sociais e ambientais causados
por estas obras. O assunto tem sido abordado com certa frequência no âmbito da academia e
começa a ser debatido na sociedade, de forma mais ampla, especialmente pelo momento de
incertezas e discussões acaloradas sobre a crise ambiental que se aprofunda em todo planeta. No
entanto, no que tange às especificidades dos impactos sofridos pelas mulheres, ainda há pouca
informação. Procurou-se, neste trabalho, abordar a questão das mulheres atingidas por barragens
sob uma perspectiva pós-colonial e feminista. O tema é abordado, inicialmente, de forma mais
geral, a partir de autores(as) que têm pesquisado os impactos socioambientais dos
empreendimentos hidrelétricos. Dado um panorama geral do problema, procurou-se voltar a
atenção para como as mulheres são atingidas de forma especialmente severa por estes projetos.
Considerando que a teoria pós-colonial pode ser de grande utilidade epistemológica para avaliar
a verdadeira dimensão desses impactos, procuramos direcionar nossos esforços no sentido de
articular a questão das mulheres atingidas por barragens com a teoria feminista e pós-colonial
como forma de evidenciar as especificidades destas violações.
Vidas inundadas: quando a agua deixa de ser rio
Uma das características mais marcantes do terrítório brasileiro são seus grandes rios, suas
águas. São tantas e tão impressionantes que se fizeram notar aos primeiros europeus que aqui
chegaram. Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada de Pedro Alvares Cabral, se impressiona
com o que vê: “Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a
aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”. (CAMINHA, 1999)
Ao longo das últimas décadas, porém, a noção inconsequente de que as águas são
infindas tem sido repensada por parcelas cada vez mais amplas da sociedade brasileira. Este
movimento parte mais da constatação empírica de grupos que passam a conviver de forma mais
frequente com a falta de água do que da preocupação de nossos governantes em preservar
recurso tão precioso e cada dia mais escasso.
O ano corrente se tornou um marco histórico da questão do acesso à agua no Brasil. Pela
primeira vez, São Paulo, a cidade que simboliza o progresso e o desenvolvimento brasileiros,
enfrenta um problema que até então estava associado, principalmente, ao nordeste do país. Levas
e mais levas de nordestinos migram compulsoriamente há décadas para as cidades do sudeste,
em especial para São Paulo, fugindo exatamente da seca e da fome.1
Entendemos que esta crise coloca em evidência as contradições das retóricas predatórias
daqueles que ainda insistem em defender o uso das águas como se estivéssemos tratando de um
recurso renovável por si mesmo:
“O Brasil assiste à desqualificação de suas fontes de energia mais competitivas e
abundatemente renováveis (grifo nosso). Essa distorção já contaminou a legislação
ambiental brasileira e, mais recentemente, comprometeu o planejamento energético. O
Brasil está desperdiçando importantes potenciais hídricos ao limitar, emocionalmente, o
dimensionamento dos reservatórios das barragens” (COMITE BRASILEIRO DE
BARRAGENS, 2011, p.13)
A noção de que as águas são “abundantemente renováveis”, como quisemos mostrar com
a carta de Pero Vaz, não é nova e foi cunhada ainda no seio do empreendimento colonial.
Operando agora articulada com interesses de grandes corporações privadas nacionais e
internacionais, tenta desqualificar a insatisfação popular contra esses empreendimentos, apesar
das inúmeras evidências dos profundos impactos sofridos pelas populações atingidas e pelos
danos causados ao meio ambiente.
As nascentes, as matas ciliares, os mananciais, as populações ribeirinhas, as aldeias
indígenas, os quilombos, a fauna, a flora, os brejos, as lagoas, as cachoeiras, são, a partir desta
lógica do desenvolvimento, vistos como entraves para o avanço predatório do capital. A floresta
amazônica é a nova fronteira de expansão da soja, da pecuária, da exploração mineral e na esteira
destes empreendimentos vemos proliferar os projetos hidrelétricos para a região Norte, como é o
caso da polêmica usina de Belo Monte.
1
Oliveira e Januzzi (2005) discutem os fatores que podem esclarecer algo sobre a tendência dos fluxos
populacionais mais recentes para uma migração de retorno ao nordeste, principalmente a partir da década de 80.
Indicam, dentre outros fatores, para as mudanças na estrutura produtiva brasileira desencadeadas por um processo de
desconcentração econômica idealizado ainda na década de 70. Para os autores, estas mudanças se deram por meio de
políticas de incentivo ao investimento industrial no nordeste.
O que vale para as noções equivocadas do potencial hídrico brasileiro, vale para a
amazônia; a floresta também é uma grande desconhecida. A falta de interesse pela complexidade
da floresta reforça noções equivocadas sobre a realidade de seus recursos, sobre a fragilidade de
seu bioma e principalmente sobre os modos de vida das populações que nela habitam. Estas
ideias projetam no senso comum a noção de um grande vazio demográfico, ideia a partir da qual
se sustentaram mega projetos de “ocupação” da floresta durante o regime militar. Nesse sentido,
a construção da Transamazônica é emblemática. A idéia equivocada do regime era “ocupar uma
terra sem homens” com o intuito de “ocupar para não entregar”. No momento em que a floresta
se encontra perigosamente ameaçada, mais um mito forjado a partir da matriz colonial acaba
ruindo.(SANTANA, 2009)
A construção da Usina de Belo Monte, projeto elaborado no período da ditadura militar
brasileira, tem gerado inúmeros debates e argumentos contrários a sua implementação devido aos
grandes impactos sociais e ambientais que são paulatinamente minimizados pela retórica
desenvolvimentista que procura alardear as “benesses” da chegada de um pretenso progresso que
historicamente vem beneficiando muito poucos em detrimento de muitos.
Nesse sentido é interessante observar as conclusões do estudo crítico elaborado por um
grupo de cientistas de diversas áreas do conhecimento sobre o processo administrativo (EIA) que
deveria servir para mensurar os prováveis impactos ambientais causados pela construção da
usina hidrelétrica de Belo Monte:
“Não há quantificação, por exemplo, sobre o número de postos de vigilância, o
reavivamento de picos demarcatórios, a construção de postos de saúde e de infraestrutura, etc. Não há impactos quantificados. Não há qualquer menção aos custos de
todos esses procedimentos!
Por fim, é lamentável que os estudos não desenvolvam argumentos sobre as perdas
sociais e culturais que este empreendimento pressupõe em uma região que se distingue
por sua diversidade étnica, social e histórica.” (MAGALHÃES & HERNANDEZ, 2009,
p.69)
Os impactos sociais e ambientais causados pela implementação de barragens tem um
longo histórico no Brasil. A usina hidrelétrica Tucuruí, no Pará, é um caso notório de desrespeito
para com as populações atingidas e para com o meio ambiente. Tucuruí começou a ser construída
em 1975 e iniciou a operação parcial em 1984. Alagou 2.430Km², afetou diversos povos
indígenas, além de ter causado um enorme desequilíbrio ambiental na região. (MENDES, 2005,
p.47)
Já na página eletrônica da Eletrobras Eletronorte a história da usina é contada a partir de
outra perspectiva:
“21 de novembro de 1975 é uma data especial. Nesse dia, começaram no Rio Tocantins
as obras de infra-estrutura da Usina Hidrelétrica Tucuruí, no sudeste do Pará. A Empresa
começou a atuar no Estado do Pará com a missão de preparar a infra-estrutura energética
necessária para atender o pólo minerometalúrgico que seria instalado no oeste do Pará.
Em 30 anos, construiu a maior usina genuinamente nacional, um símbolo da engenharia
brasileira.”2
A complexidade do fato é mitigada por retóricas simplistas que estão focadas, no caso de
hidrelétricas, na falácia da energia limpa e na lógica dos beneficios do progresso. Ocorre que se
por um lado saem ganhando as construtoras, os investidores e a indústria, por outro a
desagregação social e o sofrimento são marcas indeléveis provocadas por esses
empreendimentos. De forma geral, esta alteração brusca no curso do modo de reprodução da vida
provoca danos irreparáveis a estas populações, porque os reassentamentos são incapazes de
substituir toda a complexidade de seus territórios tradicionalmente ocupados.
A usina de Tucuruí, considerada por alguns como um “símbolo da engenharia
brasileira”, foi construída violando direitos fundamentais dos povos e comunidades tradicionais
além de ter provocado um grande desastre ecológico na região advindo de “erros” na execução
da obra. O país atravessava os anos de chumbo da ditadura militar, a ordem era expandir o
desenvolvimento para o norte e “o Brasil começou a perseguir a implantação de projetos
macroeconômicos com vistas a sua afirmação como potência. Era a ideologia do "Brasil Grande"
“(SANTOS & NACKE, 1988).
É nesse contexto que grandes projetos como Tucuruí, Balbina, Itaipú, entre outros, foram
levados a cabo e apontados como projetos modelos de desenvolvimento para o Brasil:
“Os impactos dessas construções sobre diversos povos indígenas foram e serão enormes.
A imprevidência oficial chegou ao extremo de se proceder o fechamento das comportas
(adufas), sem que as questões relativas ao reassentamento das populações atingidas
(índios e não-índios) tivessem sido resolvidas. Tucuruí e Balbina são exemplos trágicos
dessas práticas. Mas, essas duas usinas hidrelétricas são apenas as primeiras de uma
centena de barragens projetadas para aproveitar o potencial energético das bacias
hidráulicas da Amazônia, nos próximos anos. Uma verdadeira tragédia para os povos
indígenas”“(SANTOS & NACKE, 1988)
2
Disponível em http://www.eln.gov.br/opencms/opencms/aEmpresa/regionais/tucurui/. Acesso em 11 de Novembro
de 2014.
Quatro décadas se passaram da construção de Tucuruí e as práticas se cristalizam e se
repetem para outros grandes empreendimentos, seja no meio urbano ou rural. Belo Monte é
apenas um dos muitos projetos de barragens a serem implementados no Brasil.
A energia elétrica se transformou em insumo básico para a produção nas sociedades
modernas, assim como meio de promoção de bem-estar das pessoas. Portanto, a oferta de
eletricidade deveria ser suficiente também, para suprir as necessidades da população. O grande
problema é que a maior parte de toda a energia elétrica produzida no Brasil está,
prioritariamente, voltada para suprir a demanda de grandes complexos industriais. De acordo
com o Balanço Energético Nacional - BEN 20143, todas as residências e o setor de serviços
consumiram somente 13,7% de toda a energia usada no Brasil durante o ano de 2013.
O potencial hídrico para geração de energia elétrica é preconizado anulando todas as
demais potencialidades dos cursos d´agua como o “pesqueiro; irrigação; turístico; cultural; de
biodiversidade”(BERMANN, 2007). Sob a égide da energia limpa e do desenvolvimento
sustentável, a defesa destes empreendimentos invisibiliza as mais de 200.000 famílias
diretamente atingidas por barragens, constituídas em grande parte por populações que se
sustentam a partir da produção familiar de hortas, de criação de pequenos animais, de criação de
gado na solta e da exploração dos recursos do mato, atividades que garantem sua reprodução
social.4
Esses casos dão a entender que parece não haver sequer um impasse quando o que está
em jogo é construir uma usina hidrelérica ou preservar os direitos das populações que serão
atingidas.
“No relacionamento das empresas do setor elétrico brasileiro com esssa populações,
prevaleceu a estratégia do “fato consumado” praticamente em todos os empreendimentos.
Enquanto a alternativa hidrelétrica era sempre apresentada como uma fonte energética
“limpa, renovável e barata”, e cada projeto era justificado em nome do interesse público e
do progresso, o fato é que as populações ribeirinhas tiveram violentadas as suas bases
materias e culturais de existência. (BERMANN, 2007, p.142)
Diante de um quadro social como esse que apresenta problemas tão graves para um
número enorme de famílias, acreditamos na necessidade de um olhar mais cuidadoso para as
especificidades do sofrimento gerado para a vida das mulheres. Entendermos que a forte
3
As informações foram retiradas do Balanço Energético Nacional 2014 ano base 2013, disponível no link
https://ben.epe.gov.br/downloads/S%C3%ADntese%20do%20Relat%C3%B3rio%20Final_2014_Web.pdf .
4
Disponível em http://www.eln.gov.br/opencms/opencms/aEmpresa/regionais/tucurui/. Acessado em 10 de
novembro de 2014.
desagregação social provocada por estes empreendimentos potencializam as já marcadas
desigualdades de gênero presentes na sociedade como um todo.
Atingida, um conceito em disputa
As populações atingidas por barragens são, em sua grande maioria, comunidades
camponesas, indígenas, ribeirinhas e quando em áreas urbanas, normalmente vivem em pequenas
cidades interioranas, estreitamente articuladas com o meio rural (SILVA, 2008). Por estarem
articulados diretamente com a exploração de recursos naturais para uma produção de
subsistência, os modos de vida destas pessoas sofrem severas alterações com os processos de
planejamento, implantação e operação de barragens.
Nestes contextos de grandes mudanças, a desagregação social sofrida por estes grupos
pesa de forma particular sobre os ombros das mulheres:
“Em áreas rurais e em áreas do interior com processos rápidos de urbanização, há lacunas
muito grandes tanto de informação quanto de ação. Isto é particulartamente preocupante
quando se toma em conta que são áreas onde os efeitos das mudanças de relações de
gênero apresentam contradições muito fortes com ordens morais patriarcais hegemônicas
que, simultaneamente, evidenciam papéis fundamentais das mulheres na construção dos
novos ambientes. Áreas de irrigação e de construção de barragens se proliferam no
Brasil, e as mulheres nestas áreas estão levantando suas vozes sobre as mudanças em
andamento ” ( SCOTT, 2012. p,183)
Para tratar das especificidades dos impactos sofridos pelas mulheres, entendemos que se
faz necessário nos reportarmos às discussões geradas entorno do alargamento do conceito de
atingido. Esta questão vem sendo trabalhada no meio acadêmico e também vem sendo discutida
pelos movimentos sociais e mostra sua força diante da constatação empírica de que os grupos
humanos se constituem mais pela diferença do que propriamente pela homogeneidade dos atores
sociais que os compõem.5
As pessoas atingidas por barragens não se limitam àquelas que tem suas casas inundadas
pelos reservatórios das represas. Um dos grandes problemas enfrentados pelas populações
atingidas diz respeito ao reconhecimento de seus direitos mais básicos, este reconhecimento
passa, essencialmente, pelo sentido que este conceito carrega. Trata-se de um conceito em
5
A interceccionalidade entre classe, raça e gênero é peça fundamenteal para entendermos as
desigualdades no contexto brasileiro. Não foi possível aprofundar na questão no presente trabalho,
indicamos olhar María Lugones, Colonialidad y Género como referencial para esta discussão.
disputa e a legitimação do ressarcimento ou indenização pelas perdas sofridas estão,
necessariamente, ligados aos significados que lhes são atribuídos.
A partir dos debates correntes chega-se a algumas conclusões importantes: a definição de
atingido deve ser clara e abrangente; deve tentar prevenir os impactos ao máximo, da fase de
planejamento até a operação; o acesso às informações sobre o empreendimento deve ser
irrestrito; as pessoas atingidas pela obra devem ter participação efetiva nos processos de decisão
desde o momento de sua concepção. O conceito, de fato, vem passando por um alargamento nos
últimos 30 anos e muitas destas mudanças se devem à evolução da própria noção de Direitos
Humanos. (VAINER, 2003)
Neste trabalho a referência de Carlos Vainer é fundamental para se compreender o debate
em torno da necessidade de alargamento do conceito de atingido a fim de minimizar as injustiças
e exclusões de pessoas dos processos indenizatórios e de reassentamento:
“Ainda hoje, porém, em várias circunstâncias, assiste-se à permanências das
concepções e estratégias territoriais-patrimonialistas, que buscam circunscrever o
problema a duas e exclusivas dimensões: o território atingido é concebido como
sendo a área a ser inundada e a população atingida é constituída pelos
proprietários fundiários da área a ser inundada. Nestas circunstâncias, a ação do
empreendedor resume-se a avaliar e negociar as desapropriações.”(VAINER,
2003)
A forte concepção territorial patrimonialista do conceito de atingido nos coloca algumas
questões para a reflexão sobre as mulheres inseridas nestes contextos em que as relações
costumam ser altamente marcadas por valores patriarcais. (SCOTT, 2012),
Segundo relatório elaborado pelo Grupo de Estudos em temáticas Ambientais - GESTA sobre os impactos causados pela usina hidrelétrica de Irapé, um dos problemas mais graves
enfrentados pelas 51 comunidades atingidas é “o rompimento dos laços com o desmembramento
dos grupos familiares através das múltiplas divisões dos grupos de reassentamento”. (GESTA,
2012)
Cabe perguntarmos, diante de tal quadro, quais os impactos vividos pelas mulheres. A
divisão sexual do trabalho, a participação das mulheres nos espaços público e privado e as
questões relativas aos direitos sexuais e reprodutivos, que são temas recorrentes na teoria
feminista, podem ser importantes guias para um campo caracterizado por fortes tensões.
Durante o processo de implantação de uma usina hidrelétrica aspectos marcados das
desigualdades de gênero podem ser acentuados pelas rupturas provocadas por mudanças
profundas nas relações sociais.
O deslocamento compulsório exige uma adaptação que muitas vezes não é simplesmente
possível de existir. O domínio do saber tradicional está completamente relacionado com uma
temporalidade específica, a partir da qual o saber local acumulado gravita. Num contexto de vida
camponesa, a manutenção da vida depende de um saber que se articula com as possibilidades do
lugar. Num sistema como esse que opera a partir de uma complementaridade dos papéis para a
manutenção da vida, a desarticulação destes meios força a mulher a se adaptar a um ambiente
muito mais hostil a ela.
Se durante um certo período as localidades são balançadas pelo canteiro de obras, depois
da implantação ficam em evidência as modificações sofridas por todos. Aqueles que se foram
precisam se reorganizar a partir de um novo espaço, são agora os reassentados. Os que estão à
juzante do empreendimento também sofrem consequências gravíssimas porque, por exemplo, a
vazão do rio agora não é mais ditada pelo ciclo das chuvas. Importantes atividades de
subsistência como a plantação nas várzeas não são mais possíveis porque a vazão do rio oscila
agora em conformidade com as necessidades ditadas pelo processo de geração de energia. Se
antes era a articulação entre o trabalho do homem e o trabalho da mulher que garantiam o
sustento da família, não sendo mais possível a continuidade destas atividades, não raro estes
contextos apresentam altos índices de migração rumo às cidades. Quem fica sozinha com os
filhos menores esperando o dinheiro para sustento da família é a mulher. Para muitas, na falta do
lugar de onde tiravam parte de seu sustento, restará uma condição ainda mais precarizada de seu
trabalho. Esse tipo de constatação, infelizmente acaba não entrando na conta do
empreendimento. A ideia da existência de bens imensuráveis, que não podem ser avaliados pela
lógica do dinheiro não é considerada.
Em casos nos quais a terra é indenizada pelos empreendedores surgem problemas que
dizem respeito aos sistemas de herança tradicionais e à falta de titularidade dos territórios. Esta
situação é um legado do tempo do império. A lei de terras de 1850 obrigou a todos que
registrassem suas terras. As milhares de pessoas que viviam pelos sertões e pelos gerais a fora
nunca se encontraram em condições de promover estes registros. Há um número enorme de
populações tradicionais brasileiras que possuem apenas a posse da terra e o sistema de
transmissão deste bem não se coaduna com o sistema convencional cartorial, vide exemplo dos
processos de regularização fundiária das comunidades quilombolas brasileiras.
“Aproximadamente 5.000 pessoas que viviam da agricultura de subsistência e do
garimpo foram deslocadas pela represa da Usina Hidrelétrica de Irapé, da Companhia
Energética de Minas Gerais (Cemig), no Vale do Jequitinhonha, e, atualmente, após
terem sido desestruturadas suas relações sociais comunitárias, enfrentam dificuldades
para restabelecerem seus sistemas produtivos. A jusante da barragem, a água do Rio
Jequitinhonha ficou contaminada, provocando diversos agravos à saúde, especialmente às
comunidades rurais.”6
Numa situação de desequilíbrio destas forças locais, como se expressa o
patrimonialismo? A partir dos procedimentos indenizatórios e de reassentamentos cabe imaginar
como são pensadas estas lógicas de mitigação.
É importante deixar claro que o fato de as mulheres não possuírem o título da terra não
implica, necessariamente, em um problema a priori. Os maiores problemas, de modo geral,
passam a existir a partir do momento em que há uma reviravolta na vida destas pessoas e o
conjunto de relações, antes assentados a partir de lógicas próprias são modificados, precisam ser
reorganizados em condições adversas.
Em meio a tantas mudanças, as regiões onde hidrelétricas são construídas recebem um
grande contingente de trabalhadores de diversos lugares que mudam a composição populacional
destas localidades. Acreditamos que a chegada de tantas pessoas pode causar problemas graves
para as atingidas como: assédio, violência, aumento da prostituição, entre muitos outros. O tema
da prostituição, do cárcere privado, da pedofilia e do abuso sexual tem aparecido em algumas
produções cinematográficas brasileiras que procuraram retratar o cenário dos locais onde há
exploração minerária e de garimpo. O longa Anjos do sol (Brasil, 2006) levou para as telas
denúncias de tráfico de meninas e mulheres que, em meio a mata amazônica, viviam de forma
precária e desumana em um contexto de exploração sexual. Serra Pelada (Brasil, 2013) não dá
tanta ênfase a situação das mulheres que se prostituem em torno do garimpo mais conhecido do
Brasil, mas também mostra o fato. Acreditamos que, assim como nas áreas de garimpo e de
mineração, a fase de construção de barragens traz consigo o aumento de violência contra as
mulheres no que diz respeito à sexualidade. Procuraremos dar especial atenção a este aspecto
durante a pesquisa de campo, já que o tema tratado aqui é fruto de um trabalho em andamento.
6
Disponível em http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php?pag=ficha&cod=216. Acesso em 10 nov.
de 2014.
A desestruturação dos laços comunitários costuma impor também uma distância
geográfica entre mulheres que moraram próximas durante toda sua vida e que constituíam uma
rede de apoio entre elas. É possível imaginar que a ajuda mútua com o trabalho de cuidados seja
um dos aspectos presentes nas relações entre estas mulheres. Quando deslocadas de suas casas
estes laços não são considerados. Os consórcios de empresas construtoras aderem a uma lógica
de indenizações que está centralizada no plano do problema patrimonial imobiliário ( VAINER,
2003) e o direito indenizatório dos atingidos não inclui a manutenção dos laços, por exemplo,
das famílias extensas que estão fundados em uma outra ordem, uma ordem imaterial que só pode
ser mensurada a partir de estudos aprofundados sobre a realidade social destes grupos.
Cabe entender como o distanciamento causado pelo deslocamento destas mulheres em
função das construções de barragens pode impactar suas vidas no que se refere a ajuda mútua no
trabalho de cuidados. O cuidado com os filhos, idosos, doentes e o trabalho doméstico é,
historicamente, imposto às mulheres e naturalizado como obrigação, responsabilidade ou opção
destas. Partimos do entendimento de que a imposição do trabalho de cuidados, tido como
naturalmente feminino, é um esteriótipo que reforça as desigualdades de gênero. Neste sentido,
as mulheres, possivelmente, sentem este rompimento quando não podem mais contar com os
laços anteriormente estabelecidos.
Com as questões levantadas é possível desenhar um cenário onde parece muito clara a
necessidade de se aprofundar o debate sobre políticas que considerem os impactos específicos
vividos pelas mulheres . Desvelar as especificidades das violações sofridas por elas é urgente e a
história deve ser contada a partir de suas vozes.
O que é possível dizer até o momento é que as mulheres atingidas por estes grandes
empreendimentos, apesar de serem vitimadas de inúmeras formas, não tem uma postura passiva
em relação a tais fatos.
Atingida: sinonimo de luta
Como já acentuamos, as construções das grandes barragens ganharam força no período
da ditadura militar associadas à ideia de progresso e de desenvolvimento. O longo período de
autoritarismo e repressão não foi vivido apenas em território brasileiro, praticamente toda a
América Latina esteve amordaçada por longas regimes totalitários. Este período foi marcado
pela repressão das organizações e dos movimentos sociais que tentaram fazer frente às violações
de Direitos Humanos deflagradas pelas forças das ditaduras latino-americanas.
Para o Movimento Feminista e a luta das mulheres por igualdade não foi diferente:
enquanto as mulheres norte americanas e européias estavam começando a vivenciar experiências
de liberdade sexual, por exemplo, as latinoamericanas estavam
privadas de exercer suas
liberdades mais básicas, muitas estavam presas e sendo torturadas nos porões da ditadura.
Durante muito tempo a luta das pessoas atingidas por grandes projetos de desenvolvimento
esteve escondida. O processo de redemocratização que culmina na promulgação da Constituição
de 1988 são importantes conquistas no âmbito destes processos de luta pela garantia de direitos .
Com a desestruturação de seus meios de sobrevivência, causada pela construção de
barragens, as mulheres tiveram que reconstruir suas vidas e tomaram frente em vários processos
de resistência e de luta por direitos, se organizando nos movimentos sociais, sindicatos e
organizações não governamentais. Mesmo com todas as violações sofridas por estas mulheres é
importante destacar o papel de agentes ativas frente a estes acontecimentos. (SILVA, 2008)
Em 2006, no dia 8 de março , Dia Internacional de Luta das Mulheres, cerca de duas mil
Mulheres da Via Campesina, entre elas mulheres do Movimento de Atingidos por Barragens,
entraram no viveiro de mudas de eucalipto da empresa Aracruz Celulose, em Barra do Ribeiro
(RS), destruíram estufas, centenas de mudas de eucalipto, sementes, entre outros materiais.
Ações como a que as Mulheres da Via Campesina realizaram demonstram o poder de articulação
e resistência que estas mulheres podem representar frente a imposição de um modelo de
desenvolvimento que em nada tem melhorado suas vidas, antes pelo contrário;
“Uma ecnomia desregrada pela liberalização - uma economia de desregulamentação do
comércio, da privatização e da mercantilização de sementes, de alimentos, da terra, água,
mulheres e crianças, degrada os valores sociais, aprofunda o patriarcado e intensifica a
violência contras as mulheres. Sistemas econômicos influenciam calores culturais e
sociais. Uma economia de mercatilização cria uma cultura de mercantilização, onde tudo
tem um preço e nada tem um valor”.(SHIVA, 2013)
Alba Carosio aponta que na América Latina e Caribe as lutas por uma sociedade mais
justa tem sido construídas em espaços diversos através de práticas contra hegemônicas, anti
neoliberais, fazendo reflexões sobre suas condições históricas e apontando para uma
transformação radical e construção de alternativas. Alba define o feminismo como:
“(...) teoría, praxis e proyecto ético político que reivindica la diferencia y la igualdad de
la mitad de la humanidad, ha venido pensando desde una periferia cotidiana, común y
naturalizada, y ha venido aportando análisis desveladores de la invisible discriminación y
opresión sexual, junto con potencia subversiva, utopías radicales y propuestas
emancipatorias. Hay una vitalidad feminista renovada que no deja de protagonizar luchas
por la profundización de la igualdad y la emancipación. (CAROSIO, 2012, p.9-10.)
Acreditamos, portanto, que em campos tão acirrados de luta a teoria feminista e pós
colonial ajudam a compreender como as formas de poder se articulam a fim de deflagrarem
processos violentos de violação de direitos das mulheres atingidas pela construção de barragens.
Partindo das reflexões, inquietações e questionamentos levantados neste artigo
pretendemos realizar trabalho de campo para tentar compreender até que ponto as mulheres
atingidas por barragens tem seus direitos violados, como suas vidas foram modificadas e como
enfrentaram e ainda enfrentam os problemas causados por estes empreendimentos. A barragem
de Irapé, no Vale do Jequitinhonha, atingiu sete municípios e gerou graves conflitos
socioambientais. O distrito de Lelivéldia abrigou o canteiro de obras da barragem de Irapé. O
que as mulheres de Lelivéldia tem a dizer sobre os impactos deste empreendimento? É o que
pretendemos descobrir.
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