Dissertações
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SANTO AGOSTINHO: VONTADE, SER E RELAÇÃO
EM DE LIBERO ARBITRIO
por Paula Oliveira e Silva
Dissertação de Mestrado em Filosofia, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1993.
De Libero Arbitrio integra-se no conjunto dos diálogos tidos em Roma por
St.° Agostinho. Ainda que surjam algumas divergências entre os críticos, parece
ser possível balizar fidedignamente a composição de De Libero Arbitrio entre os
anos 388 e 391. De acordo com o próprio autor, o primeiro livro da série que
compõe esta obra teria sido escrito em Roma e os dois últimos em África, depois
da sua ordenação sacerdotal1. Não se trata, portanto, de um texto de maturidade,
mas afasta-se, também, da insegurança c da condição aporética que se pode
verificar nos primeiros diálogos de Cassicíaco, quando o espírito agostiniano se
manifesta ainda profundamente imbuído dos padrões da cultura antiga. De
Libero Arbitrio surge, no conjunto da produção agostiniana, como um diálogo
de charneira, brotando de uma razão filosófica que germinara no terreno fértil
do universo cultural greco-romano e que se integra, agora, numa outra tradição,
da qual progressivamente se alimenta e que constitui o contexto do cristianismo
ainda nascente.
Esta exigência de racionalidade que percorre todo o diálogo está em perfeita
consonância com a ocasião da disputa, cuja intenção antimaniqueísta é explicitamente afirmada pelo próprio autor: este texto escreve-se por causa daqueles
que negam que o livre arbítrio seja a origem do mal e, por conferirem ao mal a
condição de natureza, afirmam ser Deus a sua causa, uma vez que Deus é origem de toda a natureza2. Escreve-se, portanto, para elucidar a relação entre
Deus e o mal, razão pela qual a argumentação se articula em torno de duas
questões centrais - se Deus é o autor do mal3 e o que é fazer o mal4.
Pela riqueza do seu conteúdo e pela amplitude da sua temática, o texto surge
como uma encruzilhada no interior da qual é possível traçar uma infinitude de
caminhos. A sua natureza dialógica dificulta também a delimitação de uma trajectória de análise linear, que surge sempre como empobrecedora. Numa
primeira análise, o texto convida quase irresistivelmente à captação dos
elementos que esclarecem a solução agostiniana para o problema do mal,
desvendando a ambivalência desta noção no pensamento do filósofo de Hipona.
1 Retract., I, 9,1: "[...] tres libri quos eadem disputado peperít, appcllati sunt De libero
arbitrio. Quorum secundum et tertium in Africa, iam ctiam Hippone Regio presbyter
ordinatus, sicut tune potui, terminavi".
2 Retract., I, 9,2: "Propter eos quippe disputarlo illa suscepta est, qui negant ex libero
voluntatis arbitrio mali originem duci, etDeum, si ita est, creatorem omnium naturarum culpandum esse contendunt: eo modo volentes secundum suae impietatis
errorem - Manichei enim sunt - immutabilem quandam et Deo coaeternam introducere mali naturam".
3 Cf. LA, I, 1,1.
4 Cf. LA, I, 3,6.
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Porém o percurso traçado nesta dissertação obedece à convicção de que tanto a
originalidade do texto em causa como a intuição mais radical do autor se
deixam entrever através da compreensão das relações que o filósofo estabelece
entre as noções de ser e de vontade uma vez que ambas surgem como pilares do
edifício a que corresponde a mundividência agostiniana. Nesta medida, De
Libero Arbítrio parece confrontar-nos essencialmente com um conjunto de
elementos favorável à constituição de uma antropologia, já que é em termos de
uma analítica de propriedades das acções humanas que se afirma ser possível
responder à questão inicial: unde malum. Porém, ao investigar sobre a etiologia
do mal verificamos que a sua génese se encontra no confronto entre uma lei de
ordem, maximamente universal (aeterna lex), e um princípio operativo de
máxima singularidade (liberam arbitrium)5. Deste modo a questão sobre o mal
integra-se numa outra, mais ampla c englobante, que se interroga acerca da
natureza do real e que, tendo em conta a condição desnecessária de tudo o que é,
atribui a causa eficiente da realidade a um princípio que age por pura
gratuidade6. Toda a manifestação de ser, ordenada segundo a estrutura
esse/vivere/inteüigere, de tradição platónica, é efeito de uma vontade cuja
decisão fundamental é fazer que o ser se manifeste no mundo. Por isso a lei
essencial que subjaz à ordem do real é o princípio segundo o qual o ser é melhor
do que o nada1. E como nenhum ser contém em si razão da sua precária
subsistência, então a categoria ontológica essencial que permite compreender os
entes é a relação que cada um estabelece, de modo actual e permanente, com
esse Principio quod summe est8. O que surge como paradoxal é o facto de tal
relação ser necessária e, simultaneamente, se estabelecer com uma Vontade
primordial cuja decisão, por ser eterna, se concretiza em querer sempre que o
ser seja. Deste modo explica Agostinho a relativa subsistência dos seres, suporte
de toda a mutação que caracteriza o seu existir temporal.
O objectivo da trajectória de análise seguida na dissertação é apontar vias de
compreensão para o alcance desta proposta agostiniana sobre a condição dos
entes e sobre a especificidade do ser humano, verificando até que ponto pode a
natureza arbitrária da vontade humana afectar a estrutura do real.
Para tal é necessário seguir a ordem meticulosa da exposição agostiniana, de
modo particular ao longo do Livro II onde, através de uma analítica da actividade interior, possibilitada pela condição reflexa das três funções da mens
(memoria, intelligentia, voluntas), se nos revela a natureza do ser humano como
afectada por uma inquietação essencial: sendo a especificidade da mens definida
pela indigência própria das suas funções, o termo da relação que a sustenta no
ser é com ela incomensurável, Ao nível da actividade cognitiva, especificamente
humana, esse termo identifica-se com a noção de Verdade e a relação com ela
estabelecida dá conta da especificidade da doutrina agostiniana da iluminação.
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Cf. LA,
Cf. LA,
Cf. LA,
Cf. LA,
I, 5, 13; I, 6, 15; I, 15, 32-33.
II, 17,45-46.
III, 6 , ! 8; III, 7, 20.
III, 7, 20; II, 6, 14.
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Mas ainda que a intelligentia seja a função que determina o lugar do ser
humano na hierarquia dos entes, ela não é seguramente a função decisiva no
interior da mens humana.
O ideal de sabedoria agostiniana não reside na pura contemplação extática
de uma verdade suprema. Veritas in qua cernitur et tenetur summum bonum9:
esta definição de sabedoria permite avançar na análise agostiniana na natureza
da vontade. Por um lado, a sabedoria é a Verdade, que se identifica com o Bem
Supremo na medida em que é condição de possibilidade da apreensão racional
de tudo o que existe: Veritas qua ostendit omnia bonalQ. Por outro, a sabedoria é
a Verdade não apenas enquanto contemplada mas somente quando possuída. E
a função que torna possível esta união entre a Verdade c a mens é precisamente
a vontade". O efeito deste movimento é a posse desse bem a que necessariamente se tende, por meio dc uma força unitiva que se define como amorn.
Quando, depois dc um processo moroso de análise interior, a intelligentia
descobre a Verdade como o melhor dos bens e o apresenta à vontade, compreende-se uma vez mais em que consiste essa tensão que constitui a própria natureza do ser humano. Com efeito, o melhor dos bens é, pela sua natureza eterna c
imutável, incomensurável com a vontade humana, afectada pela temporalidade.
Mas esta tensão permite-nos igualmente compreender o alcance da afirmação
agostiniana segundo a qual a vontade, sendo um bem médio, está vocacionada à
posse dc um Bem Supremo13. Por um lado, a vontade padece de uma certa indeterminação: há nela uma dimensão arbitrária, um relativo espaço de indefinição,
que se evidencia quando damos conta da distinção entre os actos de querer e
poder14. A este domínio da vontade chamamos liberum arbitrium. Por outro,
fundando-se nesta primeira apreciação, c necessário afirmar que a vontade
humana está, de algum modo, por realizar. Se o facto de existir está afectado
pela necessidade15, a construção da existência está integralmente disponível à
opção dc cada um. Porém esta liberdade não significa uma pura arbitrariedade:
uma vontade dc poder, dissociada da necessidade do querer é, no universo
agostiniano, um nada de vontade, a total negação desta função da mens, insustentável por negar a evidência16.
Afirmou-se que a acção instauradora de todos os seres é, precisamente, gratuidade, dom de ser, expressão de uma vontade soberanamente livre. Porém,
esta liberdade é ela mesma expressão de uma ordem. Para o ser humano, a natureza da ordem reconhece-se e realiza-se sob forma de um mandato: aderir ao ser
e manifestá-lo na maior amplitude possível. Esta é a determinação que decorre
da especificidade da natureza humana: querer necessariamente o ser, tender
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C f . M , II, 9,26.
Cf. LA, II, 13, 36.
Cf. L/t, II, 19,52.
Cf. LA, I, 15, 33.
Cf. LA, II, 19, 52.
Cf. LA, III, 3, 8.
Cf. LA, III, 6, 18; 111,7,21.
Cf. LA, III, 1,3.
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necessariamente à sabedoria, cuja definição mais elementar se constitui
precisamente no binómio esse veüep.
Desta afirmação decorre imediatamente uma outra perplexidade que se pode
enunciar do seguinte modo: o ser humano deve realizar livremente o ser que
necessariamente quer. Deve buscar incessantemente essa Sabedoria que é, ela
própria, princípio dc todo o ser. O saber não terá exclusivamente relação com
um ideal enciclopédico de cultura, com a aquisição de um conjunto de conhecimentos disponíveis e acumulados com o decurso do tempo. Acima de tudo, a
sabedoria é a realização e a assimilação do Universal, da Verdade, do Ser quod
semper estls na dimensão mais individual e própria do ser humano - o livre
arbítrio da vontade 19 . Por esse facto, é algo que se conquista pela liberdade e que
sc dirige a uma expressão mais universal do Ser e da Verdade. Assim, também
pela liberdade o ser humano colabora, de algum modo na realização da ordem.
Como o faz optando numa hierarquia de bens disponíveis, usufruindo, portanto,
da própria disposição dos seres, colabora, simultaneamente, na direcção de toda
a realidade (e, antes de mais, do seu próprio ser) para a sua expressão mais
plena.
O universo agostiniano não está dado: está, de certo modo, por construir.
Está incompleto, inacabado, mas o projecto de construção não é, por definição,
meramente arbitrário. A sua finalidade é clara e patente: dirige-se à máxima
expressão de ser, que é a própria eternidade, contemplada no interior da mens
como o Bem que sc quer possuir. A ratio ordinis está determinada. Mas a
ordem está por realizar, na vontade livre de cada ser humano, em cada uma das
suas decisões, ao longo do tempo. E em cada acto livre que o ser humano
corresponde à sua vocação de eternidade e manifesta, portanto, em maior ou
menor grau, a essência do próprio Ser. Por isso se pode afirmar que a maior ou
menor expressão de ser é, ao limite, o resultado de um compromisso de vontades. Depende da correspondência da vontade humana, submetida ao tempo, à
vontade de Ser (isto é, à vontade de Deus) que, pela sua natureza eterna, sempre
se realiza como doação gratuita. Quando estas duas vontades coincidem, instaura-se, de algum modo, a eternidade no tempo. Quando descoincidem, o ser
manifesta-se em menor grau - degrada-se 20 - mas sempre se manifesta. Num
caso e noutro, a decisão depende, no tempo, do livre arbítrio da vontade.
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Cf. LA, II, 9, 27.
Cf. LA, 111,7,21.
Cf. LA, m, 3,8.
Cf. LA, II, 20, 54. O mal surge como uma omissão de uma manifestação devida do
ser: resulta do facto de que há algo de ser que ficou por fazer. Por isso é entendido
como ausência de bem, retenção do ser, defecção (defectus).
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