IBASE
OPINIÃO
Eugênia Motta*
Economia solidária e
agricultura familiar,
uma integração
necessária
A agricultura familiar é um importante setor econômico e social no Brasil. É dos pequenos
agricultores que trabalham com suas famílias que vem a maior parte dos alimentos que
chega à mesa dos(as) brasileiros(as). Desde o reconhecimento da agricultura familiar como
categoria social pelo Estado brasileiro, cada vez mais esse setor ganha atenção e suas
particularidades passam a compor o campo de análise sobre a agricultura no Brasil. Em
1996, foi criado pelo governo federal o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Em 2006, o Ibase realizou uma pesquisa piloto de avaliação dos
impactos do programa no estado do Paraná. A pesquisa deu conta de diferentes aspectos,
tais como, impacto nas famílias, no estabelecimento e no âmbito local. Para isso, contamos com os seguintes instrumentos de pesquisa: questionários e trabalho de campo com
visitas a diferentes regiões do estado.
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A questão que norteou nosso esforço de avaliação do programa foi o desenvolvimento sustentável da agricultura familiar, ou seja, a capacidade de as famílias implementarem
estratégias de reprodução possíveis de se perpetuarem, oferecendo a seus componentes
condições de bem-estar e de permanência no
campo, de forma que os recursos sociais, econômicos e ambientais sejam utilizados também na perspectiva de sua preservação como
meio para gerações futuras.
Considerando-se que a sustentabilidade da agricultura familiar está baseada em diversos fatores – desde a organização da família
até as relações de poder presentes nas diversas
cadeias produtivas em que a agricultura familiar está inserida –, sua análise também se dá a
partir de arranjos complexos. Alguns fatores,
porém, destacam-se no que diz respeito à construção de uma forma de produzir que aponta
estratégias mais sustentáveis.
O centro das conclusões a que chegamos é o fato de que o acesso ao crédito já não é
um problema. Com a generalização da disponibilidade de crédito, segundo nossa pesquisa
mostrou e apontado pela totalidade dos atores
com que tivemos contato, os(as) agricultores(as)
familiares já não convivem com o problema (que
existiu por muitas décadas) da falta de recursos.
Hoje, as questões que se apresentam dizem respeito à qualidade desse crédito e a que tipo de
desenvolvimento está dirigido.
Berço de experiências
A partir de algumas conclusões a que chegamos na pesquisa realizada em 2006, apontaremos formas inovadoras que se apresentam
como possibilidades para a agricultura familiar e o desenvolvimento com mais justiça, preservação ambiental e solidariedade. Os principais obstáculos à construção desse caminho
apontam para soluções no âmbito da organização da economia em forma associativa e cooperativa. A economia solidária e a concepção
que a norteia sobre a relação das pessoas com
a produção e o consumo de produtos e serviços representam essas alternativas. A economia solidária, por meio de empreendimentos
autogestionários e direcionados ao desenvolvimento local, tem uma identidade muito forte com a forma de produção da agricultura
familiar, como veremos a seguir.
Particularmente no Paraná, a associação
entre agricultura familiar e economia solidária
é bastante forte, sendo esse estado o berço de
diversas experiências – em que pese ainda serem incipientes e marginais se comparadas à
força do agronegócio e da lógica do mercado
internacional – que já mostram a potencialidade
das alternativas cooperativadas.
No Paraná nasceu a União Nacional de
Cooperativas de Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes), primeira experiência
ampla de organização que pretende associar
os dois campos. Assim como é originário do
estado o sistema Cresol, de crédito cooperativo, que está presente também em Santa
Catarina e no Rio Grande do Sul. A Ancosol,
organização que congrega cooperativas de crédito solidário de todo o país, igualmente é
originária do estado.
Uma das questões que chamam a atenção com relação à agricultura familiar no
Paraná é a dependência de agricultores(as) das
exigências do mercado quanto ao tipo de produto. Existe uma significativa concentração da
produção no binômio soja–milho. A restrição
da produção a poucos produtos tem conseqüências em várias esferas. Uma delas, por
exemplo, é a questão ambiental. O plantio
seguido de soja é um fator de esgotamento
do solo, além de ter impacto significativo para
a diminuição da diversidade biológica, fatores
já reconhecidos por extensionistas rurais e
entidades ligadas à agricultura familiar.
Outra conseqüência preocupante é que,
com o plantio generalizado de poucos produtos, uma das características históricas da agricultura familiar, a produção para o autoconsumo fica prejudicada, tornando as famílias
altamente vulneráveis no que diz respeito a
sua subsistência e segurança alimentar.
Por fim, a dependência com relação
aos preços de produtos que também são
commodities internacionais, voltados para a
exportação (como a soja), faz com que os(as)
agricultores(as) se insiram de forma fragilizada
no mercado, além de fortalecer circuitos de
escoamento de riqueza do campo.
É necessário apontar que a própria forma com que o crédito é operacionalizado pelo
Banco do Brasil estimula o plantio de grãos
com grande aceitação no mercado exportador.
As garantias e condições exigidas para a concessão de crédito estão ligadas à suposta segurança que a soja e o milho oferecem, bem
como as formas tradicionais de produção, baseadas no que se chama de “pacote tecnológico”. O pacote é a base para uma produção
com uso intensivo de fertilizantes e defensivos químicos, altamente tecnificada.
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A possibilidade de inserir a agricultura
familiar em circuitos que não estejam dirigidos aos grandes mercados exportadores e
dominados pelas multinacionais é um vetor
na direção de maior independência dos(as)
agricultores(as) familiares. Para isso, a associação entre agricultores(as) é fundamental.
Apenas a associação de produtores(as) de um
mesmo produto já apresenta um incremento
significativo no poder da agricultura familiar
dentro de diversas cadeias produtivas, como
mostram algumas experiências com as quais
tivemos contato durante a pesquisa.
No entanto na perspectiva da economia
solidária, a cooperação se apresenta como possibilidade muito mais ampla. Por exemplo: a
possibilidade de, mais do que poder prescindir
de atravessadores ou
grandes empresas
(que, em geral, apropriam-se da maior
parte da riqueza
produzida), ter contato direto com o
público consumidor,
oferece vantagens
em vários sentidos.
Primeiramente, a produção voltada diretamente ao
público consumidor
obriga a uma variedade maior de produtos. Quanto à
apropriação de recursos, os(as) agricultores(as) têm a
possibilidade de se
apropriarem de maior proporção do preço, quem sabe até
podendo diminuir
os custos para o consumo. Não se pode
desprezar, também, a
possibilidade de
controle social da
qualidade do que chega ao(à) consumidor(a)
final. O poder desse público também cresce
quando pode exigir produtos mais saudáveis.
Além da variedade de produtos agrícolas, o envolvimento das famílias com atividades econômicas não-agrícolas pode ser um
fator de diminuição da dependência da família com relação ao mercado. O turismo rural e
o artesanato, por exemplo, são atividades que
A inserção da
agricultura familiar
nas cadeias
produtivas se dá de
forma subordinada,
tornando
agricultores(as)
dependentes de
decisões e diretrizes
sobre as quais
não possuem
qualquer poder
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se combinam à agricultura (com a valorização
da cultura camponesa e o aproveitamento de
resíduos da própria produção agrícola) e estimulam o aproveitamento de potencialidades
de todos os membros da família. As experiências no Paraná nesse sentido são muito residuais, e o modelo de concessão de crédito por
meio do Pronaf é um dos entraves a esse desenvolvimento – embora exista consenso entre as entidades e organizações de que a pluriatividade é um caminho importante.
Com a diminuição das propriedades,
por causa da sucessiva divisão das terras por
herança, a ocupação de jovens é uma questão
crítica. A fuga para as cidades na busca por
melhores condições de vida é uma preocupação constante de famílias e organizações ligadas à agricultura familiar. Um dado preocupante da pesquisa é que os estabelecimentos
rurais não são capazes de absorver toda a força de trabalho das famílias.
É importante ressaltar que o Pronaf vem
sendo uma força importante de fixação da população no campo, mas que pode e deve ser
incrementada, já que as soluções devem ser de
longo prazo e com vistas ao desenvolvimento
do país. Mais uma vez, a alternativa pela pluriatividade nos estabelecimentos é potencializada
(e possibilitada no que diz respeito à escala)
pela associação e integração com o público consumidor na cidade e no campo.
Inserção produtiva
Em geral, como concluímos na pesquisa sobre
os impactos do Pronaf, a inserção da agricultura
familiar nas cadeias produtivas se dá de forma
subordinada, tornando os(as) agricultores(as)
dependentes de decisões e diretrizes sobre as
quais não possuem qualquer poder. Devemos
considerar as cadeias produtivas não apenas
como uma seqüência de fases da produção, mas
como um lugar social onde os diversos atores
sociais dispõem de mecanismos diferenciados
de poder. Assim, cada elo da cadeia se apropria
de quantidades desiguais das riquezas geradas e conta com poder diferente de decisão. A
dependência com relação a grandes empresas, aos preços internacionais e à disponibilidade limitada do público consumidor para seus
produtos, deixam os(as) agricultores(as) em
posição dominada.
Uma das formas de aumentar o poder
dos(as) agricultores(as) é formar grupos que,
aumentando a escala de produção e incrementando os produtos com agregação de valor,
ECONOMIA SOLIDÁRIA E AGRICULTURA FAMILIAR, UMA INTEGRAÇÃO NECES SÁRIA
tornam-se mais fortalecidos dentro do mercado. Um dos exemplos com que tivemos contato no Paraná foi o Sistema de Cooperativas de
Leite da Agricultura Familiar (Sisclaf), por meio
do qual pequenos produtores de leite podem
obter maiores preços pelo produto, além de
aumentar o valor agregado da produção com
estruturas de beneficiamento do leite e produção de derivados.
As experiência de comercialização por
meio de organizações econômicas solidárias são
mais recentes no Paraná. Estão ligadas a um
diagnóstico de que a comercialização é um dos
principais gargalos para o desenvolvimento da
agricultura familiar. O Sistema de Cooperativas
da Agricultura Familiar Integrada (Coopafi) é
uma experiência bastante recente, que pretende organizar de forma cooperativada produtores(as) familiares para a comercialização de
seus produtos.
O acesso ao mercado é geralmente
mediado por setores que dispõem de grande
poder na definição política e de formas de produzir. Esses setores impõem preços, padrões
de produtos e até mesmo quais produtos serão consumidos. Na direção da criação de um
mercado mais diversificado, e que aproxime
quem produz de quem consome, está a criação de selos a partir de certificação. A
certificação solidária e participativa, como a
EcoVida, oferece a possibilidade de criação de
mercado integrando demanda e produção. Os
próprios produtores criam os parâmetros que
se adequam à demanda por produtos orgânicos e às possibilidades e inovações existentes
no campo da agricultura familiar.
A certificação participativa passa a ser
um importante instrumento de agregação de
valor, homogeneização da produção (importante para a comercialização), além de estimular práticas que visam ao respeito ao meio ambiente e à saúde do público consumidor e
dos(as) produtores(as).
Limites
Nossa pesquisa foi centrada na modalidade crédito do programa, assim, a operacionalização
do crédito foi um dos objetos da análise. Entendido como um processo que envolve o agente financeiro, diagnóstico dos extensionistas
rurais e de outras organizações, o processo de
concessão de crédito à agricultura familiar é
um processo atravessado por diversas dificuldades e muitos aspectos positivos. No entanto,
o que se destaca é que, nesse processo, estão
implícitas concepções sobre o papel e a forma
de produzir da agricultura familiar. Ou seja, a
forma de conceder o crédito (o que se chama
na região de “modelo Pronaf”) tem forte caráter normativo e indutivo.
O crédito concedido pelo Banco do Brasil, principal agente de operação do Pronaf, tem
vários limites. O primeiro deles é um limite atribuído a uma
cultura bancária que
não está preparada
para atender pobres.
Com o Pronaf, um
tipo de público que
antes não tinha acesso aos serviços bancários passou a ser
demandante. A estrutura e o corpo funcional do banco não
estariam preparados
para atender a esse
público. Com o grande aumento do crédito Pronaf, a questão se agravou. Além
disso, é comum nas
agências do interior
se dar prioridade a clientes com mais recursos, deixando as demandas do Pronaf por último – o que pode significar descompasso entre os recursos do crédito
e as necessidades da produção.
É verdade também que em algumas cidades do Paraná a relação com a agência do
banco que recebe as demandas do Pronaf é
satisfatória. O fato é que o atendimento a
agricultores(as) familiares depende muito de
sua capacidade de pressão e da sensibilidade
do gerente da agência bancária.
Outra questão bastante séria que envolve a forma como o Banco do Brasil lida com a
concessão de crédito pelo Pronaf tem a ver com
as planilhas – o sistema a partir do qual as garantias e os parâmetros para recebimento dos
recursos são registrados. Essas planilhas são a
ponta mais visível de um sistema que percebe
formas de produzir tradicionais como objetos
seguros de investimento cultural com aceitação
no mercado. Isso faz com que o sistema bancário seja um indutor da monocultura de grãos e
que alternativas mais sustentáveis, como
agroecologia e agrofloresta, encontrem barreiras no próprio sistema. O que acontece mesmo
A certificação
participativa é um
instrumento de
agregação de valor,
importante para a
comercialização,
além de estimular
práticas que
respeitam o meio
ambiente
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* Eugênia Motta
Antropóloga,
pesquisadora do Ibase
a despeito da existência de linhas de crédito específicas para essas formas de produção. Porém,
não é necessário que seja assim. A realidade do
Paraná mostra que existem alternativas eficientes à operacionalização pelo Banco do Brasil. O
sistema Cresol (no destaque) é uma das mais
exitosas experiências de crédito solidário no país.
As questões apontadas mostram que
existem caminhos e exemplos de outras formas de relação entre o campo e a cidade, entre o(a) agricultor(a) e a terra. Pensar na sustentabilidade da agricultura familiar é uma
questão inescapável, que cada vez mais, deve
fazer parte do debate de quem pretende pensar um país mais justo. A integração da agricultura familiar com a economia solidária é
uma estratégia de distribuição de recursos e
de poder, essencial para um desenvolvimento
sustentável. As opções disponíveis para a agricultura familiar submetida ao mercado do
agronegócio e subordinada a grandes empresas transnacionais são limitadas e condenam
os(as) agricultores(as) a uma posição subordinada e marginal, a despeito da grande importância econômica e social de as famílias
camponesas permanecerem no campo e usufruírem de maior bem-estar.
Não é exagero propor que a economia
solidária seja condição necessária para lidar com
os diversos problemas enfrentados por
agricultores(as) familiares. A integração da agricultura familiar com a economia solidária, mais
que soluções de pequena escala, pode ser uma
alternativa de desenvolvimento mais saudável
para o país, tanto em termos econômicos como
sociais e culturais, entre campo e cidade.
Exemplo bem-sucedido
Criado em 1996, o Cresol é um ator fundamental na universalização do crédito. O sistema é composto pelas chamadas cooperativas
singulares, nas quais sócios e sócias tomam
empréstimos do Pronaf, por exemplo, e dispõem de uma quantidade razoável de serviços bancários. Surgiu a partir de uma pequena cooperativa no sudoeste do Paraná e hoje
está presente em dezenas de cidades nos três
estados da região Sul.
O sistema absorve a demanda de um público que pouco interessa ao Banco do Brasil
por manipular recursos muito pequenos. A linha de crédito B do Pronaf, por exemplo, que
é fortemente subsidiada, só vem se expandindo na região por meio do sistema. Mas o fundamental com relação ao Cresol, e ao sistema
de crédito solidário em geral, é a relação diferente que se estabelece entre agricultores(as)
e crédito. A participação dos(as) agricultores(as)
na gestão do sistema, na tomada de decisões,
é fundamental para aumentar a autonomia na
agricultura familiar e priorizar o interesse das
pessoas beneficiárias do crédito em detrimento do interesse bancário. Como um sistema
cooperativo de crédito, pode acolher agricultores(as) com pouquíssimos recursos e também conta com maior autonomia no que diz
respeito às regras para concessão de crédito.
Uma das características importantes do
sistema é a forma como cresceu durante
seus dez anos de existência. Diferente do
sistema financeiro estabelecido, o sistema
de crédito cooperativado se expande com
descentralização e não com concentração.
Em vez de formas cooperativas cada vez
maiores e absorvendo outras, no Cresol, a
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cooperativa é desmembrada quando atinge
certo patamar, multiplicando-se em outras
cooperativas. Assim, o ganho de escala não
se traduz em concentração.
Outra característica fundamental é o reconhecimento de que o crédito tem papel
indutor e, por isso, as organizações devem
estar mobilizadas com as questões mais gerais da agricultura familiar. Ou seja, as cooperativas, como são administradas pelos(as)
agricultores(as), devem operar o crédito para
que questões como inserção menos subordinada ao mercado, preservação ambiental,
manutenção de ocupação, por exemplo, sejam contempladas.
A assistência técnica tem papel fundamental na relação entre agricultores(as) e crédito.
Da mesma forma como a assistência técnica
pode reforçar os sistemas tradicionais de produção (monocultura de grãos, altamente
tecnificada, com uso intensivo de agrotóxicos), também pode se tornar um instrumento importante para criar e reforçar alternativas sustentáveis. Assim, a associação entre o
crédito solidário e uma assistência técnica que
atue na mesma direção é um fator fundamental na direção da sustentabilidade da agricultura familiar.
Embora reconhecendo que no caso particular do Paraná ainda há muito o que avançar
nas discussões sobre o aperfeiçoamento do
crédito solidário, acreditamos que o sistema
Cresol – e seu caráter participativo e comprometido com o avanço na sustentabilidade da
agricultura familiar – é um exemplo de esforços que indicam outra opção para a agricultura e que já mostra seus resultados.
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