Relato de uma reunião de formação: a ampliação de critérios de escolha dos livros literários
que professores de Educação Infantil leem para as crianças
Maria Beatriz Telles
Comunidade Educativa - Cedac
[email protected]
EIXO 3: Identidades, Formações e Desenvolvimento das/os profissionais de Educação Infantil
Resumo: Esse texto apresenta o relato de uma estratégia formativa no contexto da educação pública
municipal e de um programa de formação continuada com um grupo de professores de crianças de
quatro e de cinco anos em um município no interior do Pará. Inicialmente se propõe uma breve análise
de resultados de pesquisas sobre a situação dos leitores no Brasil e do papel da escola na formação dos
leitores. Enfatiza-se a importância da leitura em voz alta realizada pelo professor como porta de
entrada de crianças no universo literário e se introduz uma reflexão sobre qualidade literária. O relato
da ação de formação parte dos critérios que os professores declararam utilizar na escolha dos livros
literários que leem para as crianças e detalha a estratégia formativa utilizada pela formadora com o
objetivo de ajudá-los a ampliar esses critérios.
Palavras-chave: estratégia formativa, qualidade literária, critérios de escolha de livros literários,
leitura pelo professor.
1. A leitura no Brasil
De acordo com o Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF, 2009) somente um
quarto dos brasileiros adultos possui habilidades plenas de leitura.
Outra pesquisa que pode ajudar a compreender o panorama da leitura é a investigação
realizada sobre “Retratos da Leitura no Brasil” (2011), desenvolvida pelo Instituto Pró-Livro, que
aponta que entre 2007 a 2011 houve uma redução de 55% para 50% no número de pessoas
consideradas leitoras (segundo a pesquisa, pessoas que leram ao menos 1 livro inteiro nos últimos 3
meses).
Sem pretender, por ora, aprofundar esse aspecto, interessa ressaltar que somente para 4%
dos entrevistados a dificuldade do acesso aos livros justifica a redução da leitura. No entanto, é
relevante considerar que para 78%, a falta de interesse é o principal motivo para estarem lendo
menos do que já leram.
A análise comparativa da mesma pesquisa revela que a influência dos professores para que
as pessoas leiam, cresceu de 33% para 45%. Finalmente, assim como nas edições anteriores, a
pesquisa confirma as principais correlações com a leitura: escolaridade, classe social e ambiente
familiar. Ou seja, quanto menos escolarizado ou mais pobre é o entrevistado, menor é a penetração
da leitura e a média de livros lidos nos últimos três meses.
2. O papel da escola na formação de leitores
Os dados apresentados anteriormente, como a redução de leitores, a falta de interesse para ler e
a maior influência dos professores no hábito da leitura remetem à responsabilidade da escola na
formação de leitores, principalmente das escolas públicas que atendem, em sua maioria, à
população que tem menos acesso e faz um uso menor das práticas de leitura.
Yolanda Reyes (2010) propõe uma questão que serve de base para parte do questionamento
seguido neste relato: “Quando começa então a história do leitor?” Parte da resposta a essa questão
pode estar no acesso da criança à imaginação e à possibilidade de criação que o contato com uma
literatura infantil de qualidade pode lhe oferecer. Se a criança puder participar de práticas
significativas, em que irá ouvir a leitura feita por outra pessoa, certamente descobrirá o prazer de
ler.
Nas escolas de Educação Infantil, a entrada para o mundo da literatura, da imaginação, da
criação infantil pode ser influenciado pela mediação do professor nas situações de leitura em que
ele empresta a sua voz para possibilitar que as crianças construam sentido sobre o texto escrito. As
histórias que as crianças conhecem por meio da leitura que ouvem dos professores podem funcionar
como alimento para a sua fantasia, pois possibilitam uma pluralidade de sentidos e cada criança
pode construir o seu próprio sentido.
Ao ouvir as histórias lidas pelo professor, as crianças participam de práticas de leitura e podem
começar a aprender alguns dos comportamentos do leitor, para que, nas palavras de Delia Lerner
(2002), possam “pô-los em prática como praticantes da leitura”.
Entretanto, para que a leitura pelo professor cumpra esse papel de possibilitar que as crianças
entrem em contato com a literatura e possam construir seus sentidos para as histórias que ouvem, é
preciso que os livros escolhidos contenham alguns atributos formais que garantam a sua qualidade
enquanto legítimos representantes do que possa ser considerado como produção literária de
qualidade. Chega-se a um ponto um polêmico: como classificar uma obra como literária? Quais
critérios devem ser utilizados? Como ajudar os professores de educação infantil a terem critérios
que apoiem a escolha de bons livros para ler aos pequenos?
No texto em que apresentam o instrumento de avaliação utilizado pelos pareceristas que
selecionaram o acervo do PNBE
(2005), Andrade e Corsino (2007) fazem referência à
complexidade que envolve esta classificação do ponto de vista da produção das obras literárias:
A classificação de uma obra como literária implica um juízo que, por sua vez, se
insere numa rede de categorias de valores partilhados e historicamente variáveis que
têm uma estreita relação com as ideologias sociais, ou seja, os valores se relacionam
aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais mantêm o poder sobre outro
(ANDRADE, CORSINO, 2007)
Panorama este que revela-se ainda mais complexo quando afirmam que:
Optar por valores tendo como horizonte a multiplicidade da sociedade brasileira, com
todas as inúmeras possibilidades de releituras e reescritas, e como pano de fundo a
amplitude, horizontalidade e até mesmo a ruptura de valores na cultura
contemporânea, não é tarefa simples. (Ibid, )
Em se tratando da recepção da literatura infantil entre os professores e as crianças, a
complexidade dessa classificação parece ainda maior em função da própria história desse gênero
que, desde o início, foi marcado por preconceitos (como se não fosse literatura) e pelas
características pragmáticas de ensinar valores morais ou informar apenas sobre temas considerados
adequados às crianças (ZILBERMAN, 2003).
Essas considerações apresentadas até o momento contextualizam e justificam o relato de uma
ação formativa motivada pela seguinte pergunta feita aos professores num contexto de formação
continuada1: quais critérios vocês, professores de crianças de 4 e de 5 anos, costumam utilizar na
escolha dos livros que leem para as crianças?
Algumas de suas respostas foram:
- O livro precisa ter muitas imagens para as crianças se interessarem.
- A linguagem tem que ser simples para elas entenderem.
- Precisa ensinar algo...
- As crianças que escolhem.
1
O encontro de formação relatado nesse texto aconteceu em um município do interior do Pará que investe na formação
continuada profissional dos professores desde 2003. Inicialmente, o trabalho ocorreu com professores do Ensino
Fundamental I, no programa Escola que Vale, iniciativa da Fundação Vale, da Prefeitura Municipal de Paragominas e
da Comunidade Educativa Cedac. Atualmente, com o foco na formação continuada dos professores de Educação
Infantil, o programa de formação desenvolvido ocorre pela iniciativa e financiamento realizados pela própria prefeitura.
- Tem que ser curtinho para prender a atenção.
- Não pode ter palavras difíceis...2
Estas respostas motivaram a produção do relato que se segue, porque indicaram a necessidade
da formadora pensar em estratégias formativas que ajudassem os professores a ampliar os critérios
que declararam utilizar para escolher os livros que leriam às suas crianças.
3. Relato de uma estratégia formativa3
Como sempre, iniciei a formação realizando uma leitura literária e, para esse encontro, escolhi
um conto de Mia Couto, autor que os professores ainda não conheciam. Antecipei que esse autor faz
uso de expressões belíssimas e surpreendentes, muitas delas inclusive inventadas por ele. Combinei
que eles fariam um esforço construir sentido sem se deixar paralisar pelas palavras que não
compreendessem. Adoraram o “Enterro televisivo”! Alguns comentaram que não acharam simples
compreendê-lo, mas que pelo contexto foram conseguindo.
Depois, como faz parte dos nossos princípios, sempre que possível garantir que as
aprendizagens das crianças sejam a maior referência nas ações de formação que realizamos com
professores, iniciei o encontro projetando um slide produzido no encontro anterior a partir do que os
próprios professores mencionaram como resposta à pergunta: O que as crianças podem aprender
quando o professor realiza leituras literárias em voz alta para elas?
A leitura literária realizada pelo professor possibilita que as crianças aprendam:
 A ouvir uma história lida;
 A ter prazer ao ouvir a história;
 A conhecer a linguagem usada nos livros.
Projetei novamente os critérios que haviam declarado que utilizam na escolha dos livros que
leem para as crianças e perguntei o que achavam, se os livros escolhidos a partir desses critérios
poderiam garantir aprendizagens como, conhecer a linguagem utilizada nos livros, ou aprender a
2
Seria possível fixar a análise dessas falas quanto aos critérios explicitados pelos professores no que parecem indicar
em relação à concepção de criança ou em relação às suas próprias condições como leitores. Contudo, este não é o objeto
deste texto, embora as concepções de criança e de formação do professor como leitor tenham sido tratadas em vários
momentos e de diferentes formas no contexto do programa de formação.
3
O trecho do texto a seguir traz o relato (em 1ª pessoa) de uma estratégia formativa realizada pela própria autora deste
artigo.
ouvir uma história lida. Ficaram pensando e depois vários comentaram que “os textos fáceis” dos
livros que costumam ler “não representam a linguagem usada nos livros”.
Anunciei então que leria dois trechos de versões diferentes da mesma história: Branca de
Neve4. Informei que os dois trechos introduzem as histórias nos respectivos livros (portanto,
referem-se ao mesmo tema). Combinei que tentariam construir sentido a partir da escuta da leitura
que seria feita.
Os comentários que fizeram após a leitura indicaram que a minha intenção foi bem sucedida:
colocaram-se no lugar de leitores e começaram a olhar para o impacto que cada um dos textos lhe
causou.
Depois, projetei os dois textos (um de cada vez) e os convidei para uma análise mais
criteriosa: quais recursos o texto 1 têm que possibilitam as experiências estéticas que vocês
constataram? E o texto 2, por que vocês o acharam tão “sem graça” ou “sem emoção”?
Texto 1
Era uma vez, foi em pleno inverno, quando flocos de neve caíam do céu como
plumas, uma rainha costurava ao pé da janela cujos caixilhos eram de ébano. Como
prestasse mais atenção aos flocos de neve do que à costura, espetou o dedo na agulha, e três
gotas de sangue pingaram na neve. Foi tão bonito o efeito do vermelho se desmanchando na
brancura da neve, que ela pensou: “Ah! Se eu tivesse uma criança branca como a neve,
corada como o sangue e de cabelos negros como o ébano...”.
Pouco tempo depois, a rainha deu à luz uma menina de pele alva como a neve,
corada como sangue e de cabelos negros como ébano. Por isso, ela se chamou Branca de
Neve. Infelizmente, a rainha morreu logo depois que a criança nasceu.
Um ano depois o rei resolveu casar de novo. A nova rainha era linda, mas a tal
ponto vaidosa e arrogante, que não podia suportar a ideia de que existisse alguém mais bela
do que ela. Possuía um espelho mágico e todos os dias, ao olhar-se nele, perguntava:
- Espelho, espelho meu, existe alguém mais lindo do que eu?
(Trecho de Branca de Neve. In: Contos de Grimm; Companhia das Letrinhas)
Texto 2
Era uma vez uma linda princesa chamada Branca de Neve. Seus cabelos eram
negros e sua pele era branca como a neve.
A madrasta da Branca de Neve era muito vaidosa e orgulhosa, não aceitava a ideia
de alguém ser mais bela do que ela. Por isso sempre consultava seu espelho mágico:
Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?
4
Texto 1: Branca de Neve. In: Contos de Grimm: Tradução/edição. São Paulo: Companhia das Letrinhas
ano; Texto 2: Branca de Neve. In: Contos clássicos: Ciranda Cultural.
(Trecho do livro “Branca de Neve” de Contos clássicos: Ciranda Cultural)
Os professores não mostraram nenhuma dificuldade para identificar no primeiro texto: a
riqueza dos detalhes da descrição; o vocabulário “mais cuidadoso, bonito!”; “Uma forma bonita de
escrever!”. Em relação ao texto 2 eles comentaram que o acharam sem graça, com uma linguagem
“seca”; empobrecida”.
Depois, retomei a importância das ilustrações como critério de escolha dos livros que haviam
mencionado e combinei que faríamos uma análise das ilustrações de dois livros. Para isso, projetei o
livro “O rei bigodeira e sua banheira” 5 que eu havia copiado e realizei intervenções para que
refletissem sobre a complementaridade entre o texto e as ilustrações. Os professores mostraram-se
fascinados! Divertiram-se com a riqueza dos detalhes que “tornam o texto engraçado”, como
mencionaram. Vários reconheceram que, apesar de conhecerem este livro, nunca haviam feito tal
relação.
Quando perguntei depois, qual consideram ser o papel das ilustrações nesse tipo de livro, as
respostas que deram indicaram o quanto ficou evidente para eles que todas a linguagens desse livro
– palavra, ilustração e diagramação – confluem numa construção conjunta.
Finalmente, projetei o livro - do texto 2 (a versão da Branca de Neve) agora completo, e fui
problematizando: será que estas ilustrações que ocupam as páginas inteiras enriquecem o texto?
Elas são ricas em detalhes? Elas complementam o texto? Trazem informações que não estão no
texto? E depois de lermos de forma compartilhada o livro projetado, perguntei qual é o papel das
ilustrações nesse livro. Vários professores, inevitavelmente, compararam os dois livros projetados e
concluíram que as ilustrações do segundo têm um papel “somente decorativo”.
Convidei-os a refletir mais: depois dessa análise que realizamos, vocês consideram importante
retomar os critérios que utilizam para escolher os livros que leem para suas crianças? Todos
concordaram e assim fizemos.
Propus que se juntassem em duplas para analisarem os três livros que haviam levado a pedido
meu - por serem os que mais comumente liam para seus alunos - mas agora a partir dos critérios
revistos por eles:
Para escolher o livro que lerá para seus alunos, perguntar:
- A linguagem escrita é rica ou empobrecida (“seca”)?
- A linguagem escrita e as ilustrações se complementam?
- A linguagem escrita tem recursos linguísticos que a enriquece?
- As Ilustrações têm cuidado estético? São ricas em detalhes?
5
WOOD, A. O rei bigodeira e sua banheira. Trad. Ilustrações: John Wood. São Paulo: editora, ano.
Como última atividade dessa formação, e ainda em duplas, os professores realizaram o
planejamento de leitura de um dos livros que haviam considerado adequados a partir dos critérios
revisados. Combinamos que planejariam a apresentação do livro, incluindo as intervenções para
possibilitar que as crianças antecipem alguns elementos da história. É importante esclarecer que as
estratégias de apresentação do livro foram tematizadas na formação anterior.
Combinamos que leriam esse livro escolhido para as crianças, e fariam o registro dessa leitura
contando como elas interagiram com o livro a partir das intervenções realizadas. Depois, na
avaliação da formação que sempre realizamos ao final dos encontros, provoquei perguntando qual
relação poderiam estabelecer entre o esforço que fizeram para interpretar o conto de Mia Couto e os
critérios que utilizavam até então para escolher os livros que leriam para as crianças: “o livro
precisa ter muitas imagens para as crianças se interessarem; a linguagem tem que ser simples para
elas entenderem; tem que ser curtinho para prender a atenção; não pode ter palavras difíceis...”
Vários professores comentaram que as crianças também são capazes de fazer o que eles
fizeram: construir sentido pelo contexto. Aproveitei para conversarmos um pouco sobre isso; o
quanto, às vezes, subestimamos a capacidade que as crianças têm para aprender!
Uma professora comentou: “Eu descobri que os livros que eu lia para meus alunos nem exigem
que eles pensem...”. Outra professora corrigiu: “Não é que eles não precisam pensar, porque criança
pensa o tempo todo, mas com a leitura daqueles livrinhos as crianças não precisam fazer nenhum
esforço para recriar o sentido do texto!”.
4. Desdobramentos da ação de formação relatada
O que se sabe depois da realização dessa reunião de formação, foi que os professores passaram
a recorrer mais ao acervo disponível na Casa do Professor - espaço do município que dispõe de um
vasto e rico acervo de livros de literatura infanto-juvenil – para escolherem os livros de literatura
que leem para as crianças. Entretanto, sabe-se que a qualificação da leitura literária pelo professor
necessita de um investimento maior nos espaços de formação continuada, para que possa garantir
condições necessárias para as crianças construírem seus próprios sentidos às histórias lidas.
Desta forma, tendo garantida a continuidade da formação, esses professores poderão continuar
ampliando seus critérios de análise sobre as obras literárias com que terão contato, o que
consequentemente fará com que fiquem cada vez mais criteriosos nas escolhas dos livros que lerão
para seus alunos... um processo que se retroalimenta sempre...
Referências bibliográficas:
ANDRADE, L.; CORSINO, P. Critérios para a constituição de um acervo literário para as séries
iniciais do ensino fundamental: o instrumento de avaliação do PNBE 2005. In: PAIVA, A. (org.)
Literatura – saberes em movimento. Belo Horizonte: Ceale, Autêntica, 2007.
INDICADOR DE ANALFABETISMO FUNCIONAL. Instituto Paulo Montenegro e Ação
Educativa. INAF – Brasil, 2009. Retirado do site:
http://www.ipm.org.br/download/inaf_brasil_2009_relatorio_divulgacao_revisto_fev-11_vFinal.pdf
em 28/05/2012.
INSTITUTO PRÓ-LIVRO. Pesquisa: Retratos da leitura no Brasil. 3ª edição. São Paulo: Instituto
Pró-Livro, 2012.
[17:16:39] debora perillo samori: www.prolivro.org.br
KLEIMAN, Angela. Texto e leitor. 9ª ed. Campinas: Pontes, 2004.
LERNER, Delia. Ler e escrever na escola. O real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed
Editora, 2002.
REYES, Yolanda. A casa imaginária. Leitura e literatura na primeira infância. São Paulo:
Global, 2010.
ROSA, Cipa Capo de. Um país com fome de leitura. In: Pátio. Nº 33. Porto Alegre: Artmed
Editora, 2005.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 11ª ed. São Paulo: Global, 2003.
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