Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora
ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 33 – Gramática e construção discursiva: estudos da Língua Portuguesa e uso.
A SEMÂNTICA DOS VERBOS MODAIS E SUAS FUNÇÕES DISCURSIVAS
NUMA PERSPECTIVA DE PRAGMÁTICA FUNCIONAL
Thomas JOHNEN1
RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar elementos para uma descrição semântica dos verbos
modais do português no âmbito de uma teoria de ação capaz de captar até nuances de
verbos quase sinônimos e evidenciando sua função discursiva, i.e. designar objetivos
acionais (p.ex. querer, desejar, pretender, ir), para caracterizar alternativas acionais
elegíveis (p.ex. poder, saber, ser capaz de), para ponderar alternativas acionais (p.ex.
dever, ter de, ter que, precisar, convir, urgir) ou avaliá-las (p.ex. valer, importar) ou, no
uso epistêmico, para marcar inferências ou especificar a categoria da fonte da
informação. Mostrar-se-á no exemplo do uso de verbos modais em manchetes de jornal
e textos argumentativos que os verbos modais - devido à sua semântica abstrata implicam um maior envolvimento mental do ouvinte/ leitor e são assim um meio
lingüístico para criar interesse em ler o artigo em questão, ou no caso de textos
argumentativos, para argumentar de maneira nuançada, sem que o autor apareça
explicitamente no texto como instância de avaliação, mas permitindo envolver o leitor
mentalmente no raciocínio do autor.
PALAVRAS-CHAVE: verbos modais; semântica; pragmática funcional; teoria de ação;
funções discursivas
Introdução
Saber falar sobre seus objetivos acionais, qualificar, ponderar e avaliar as alternativas
acionais em vista de um objetivo acional, marcar inferências ou indicar a fonte da
informação faz parte do núcleo das competências comunicativas. A língua portuguesa
possui como muitas outras línguas verbos especializados para estas funções: os verbos
modais (doravante: vm). Estes podem ser divididos em três sub-grupos: os vm de
1
Professor Visitante (Gästprofessor i Portugisiska), Stockholms Universitet, Institutionen för spanska,
portugisiska och latinamerikastudier, Universitetsvägen 10 B, SE-10691 Stockholm, Suécia,
[email protected]
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orientação acional, 2 os vm epistêmicos e os vm avaliativos.3 O objetivo deste artigo é
apresentar elementos para uma descrição semântica dos vm no âmbito de uma teoria de
ação, capazes de captar nuances de verbos quase sinônimos e de dar conta do seu
potencial pragmático. Na base dos nossos estudos sobre os vm4 está um amplo corpus
sincrônico tanto do Português do Brasil quanto do Português Europeu (cf. a descrição
do nosso corpus de referência em JOHNEN, 2003a, pp. 522-524) acrescentando umas
provas do português angolano, moçambicano, guineênse e cabo-verdiano (cf. nosso
corpus complementar descrito em JOHNEN, 2003a, pp. 524-537).
Começaremos com uma síntese dos problemas que uma descrição semântica dos
vm enfrenta (para uma análise mais detalhada cf. JOHNEN, 2003a, pp. 183-262), para
apresentar depois os elementos de uma descrição acional dos vm. Em seguida,
exemplificaremos essa descrição acional apresentando descrições concretas de alguns
verbos (para uma descrição detalhada de todos os vm do português cf. JOHNEN, 2003a,
pp. 265-481). Concluiremos com umas análises exemplares de usos de vm em
manchetes de jornal e argumentações acadêmicas visando a demonstrar o potencial
explicativo desta abordagem acional.
2
Assim referimo-nos aos verbos modais que, na pesquisa luso-brasileira, em geral são chamados de
deônticos. Optamos desde Johnen (1999 e 2000) por esta denominação pois julgamos que o uso destes
verbos modais é mais amplo do que o campo da deôntica, pois abrange todos os usos que implicam a ação
de um agente, entre outros os usos dinâmico, deôntico e anancástico. Se o agente não estiver mencionado
no enunciado em regra geral pode ser induzido pelo contexto. Portanto, a orientação acional é o uso
protípico da maioria dos verbos modais. Referimo-nos com esta escolha terminológica à denominação em
língua inglesa agent-oriented introduzida por Bybee (1988). Hattnher et al. (2001: 135) optaram pela
tradução deste termo com ’orientado para o agente’.
3
Denominamos assim os verbos como valer que avaliam alternativas de ação. Também é comum a
denominação de axiológico para estes verbos.
4
Cf. JOHNEN, 1992, 1999, 2000, 2003a, 2003b, 2003c, 2005, 2006a, 2006b, 2006c, 2007.
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Problemas de uma descrição semântica dos verbos modais
A descrição semântica dos vm tem-se mostrado um campo bastante complexo, pois o
que caracteriza os vm é uma extrema variabilidade semântica, de maneira que se pode
dizer que só recebem uma significação concreta no nível dos enunciados, como ilustra a
enumeração de empregos pragmáticos de poder em Koch (1981). A lógica modal,
portanto, não podendo dar conta desta variabilidade semântica, não apresenta um quadro
teórico adequado de descrição semântica (cf. também KOCH, 1984). Na pesquisa
internacional sobre a semântica dos vm nas diversas línguas, Kronning (1996: 15-16)
distingue três grandes linhas de aproximações que se refletem também na pesquisa
sobre os vm do português (cf. JOHNEN, 2000, pp. 116-117): uma aproximação
considera os diferentes empregos dos vm como homônimos, outros consideram os vm
como polissêmicos, um terceiro grupo prefere uma aproximação monossêmica
procurando descrever um sentido básico e explicar os diferentes empregos em
enunciados concretos como devidos a variações do contexto. A análise semântica dos
vm do português mais convincente é a análise monossêmica de poder e dever de
Oliveira (1988) em que a autora mostra que (pelo menos) estes dois vm são
semânticamente vagos, isto é, que apresentam um potencial significativo de
interpretações ilimitadas como, aliás Bech (1949) também constatou para os vm do
alemão, determinadas somente pelos contextos selecionados, sendo o contexto
selecionado o único critério para decidir se o vm em questão é epistêmico ou não. A
autora mostrou também que a operação mental subjacente a estes dois empregos é a
mesma e que apenas difere o domínio de aplicação: ou a ação ou o raciocínio. A função
dos vm é, portanto, marcar o resultado duma operação mental do falante sobre ações ou
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estados de coisas fornecendo ao mesmo tempo uma instrução ao ouvinte de reconstruir
os contextos selecionados.
Kronning (1996), em seu estudo sobre o vm francês devoir no quadro teórico da
semântica prototípica, favoriza, porém, uma análise polissêmica, argumentando que os
diferentes empregos dos vm representam sub-esquemas mentais ativados pelos
contextos selecionados. Esta hipótese de Kronning (1996) sobre a organização cognitiva
do potencial semântico dos vm, nos parece explicar bem os fatos de mudança semântica
partindo de certos empregos pragmáticos que se verificam diacrônicamente em várias
línguas (cf. JOHNEN, 2000, p. 117). Do outro lado, supõe Kronning (1996) na sua
análise cognitiva, que estes sub-esquemas são mentalmente organizados por esquemas
em níveis mais abstratos, passando dos níveis de distinção entre os empregos deôntico
(considerado o emprego prototípico) e epistêmico até um nível ainda mais abstrato que
corresponde às análises de Oliveira (1988). Em resumo, pode se constatar que a análise
de Kronning (1996) mostra que as aproximações polissêmicas e monossêmicas não se
excluem, mas que são, ao contrário, duas análises que enfocam níveis diferentes de
abstração na organização semântica cognitiva. Parece, então, oportuno basear uma
descrição semântica abrangente no nível do esquema prototípico, quer dizer, procurar
descrever um sentido básico tanto para o emprego de orientação acional quanto para o
emprego epistêmico. Partindo desta descrição, será possível analisar como estes dois
esquemas são cognitivamente relacionados num nível mais abstrato e também explicar
os sub-esquemas e efeitos pragmáticos. A questão que se impõe agora é qual o método
descritivo apto a captar as diferenças semânticas de vm semânticamente próximos (e
que não são oposições privativas) permitindo ao mesmo tempo explicar os efeitos
pragmáticos e as funções discursivas do vm em questão. Considerando o fato que os vm
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no seu emprego prototípico são orientados pelo domínio de ações, é de se admirar que
até hoje existam poucas tentativas de descrição semântica de vm no quadro teórico de
uma teoria de ação. Uma tal descrição foi elaborada para os vm do alemão por Brünner;
Redder (1983) e esta é bem aplicável aos vm portugueses, já que se pode verificar uma
grande convergência com as descrições semânticas elaboradas por Oliveira (1988).
Descrição acional dos vm
Numa perspectiva acional os vm, no uso de orientação acional, são usados para designar
objetivos acionais (p.ex. querer, desejar, pretender, ir), para qualificar alternativas
acionais elegíveis (p.ex. poder, saber, ser capaz de), e para ponderar alternativas
acionais (p.ex. dever, ter de, ter que, precisar, convir, urgir). Outras funções dos vm
são, no caso dos vm avaliativos (como valer ou importar) a avaliação de alternativas
acionais, ou, no uso epistêmico, a função de marcar inferências (vm epistêmicoinferenciais) ou especificar a categoria da fonte da informação (vm epistêmicoevidenciais). A questão que se apresenta agora é em quê se distinguem os vm de cada
categoria. Os vm que designam um objetivo acional se distinguem entre si quanto à:
-
posição nas fases do processo acional;
-
(não-)identidade entre agente formador do objetivo acional e agente realizador de
objetivo acional;
-
motivação e/ou gênese do objetivo acional;
-
certeza do objetivo acional;
-
questão se o objetivo acional está situado dentro ou fora do espaço controlado
pelo agente.
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Os vm que qualificam e ponderam alternativas de ação distinguem-se na tematização de
três questões:
-
a questão em que se baseia a existência da alternativa de ação em questão;
-
a questão qual é o peso atribuído à alternativa de ação em questão em relação as
outras alternativas possíveis, presentes no estoque de conhecimentos dos parceiros
de comunicação;
-
a questão, do que resulta o peso atribuído à alternativa de ação em questão.
Os vm epistêmicos diferenciam-se:
-
quanto à gênese da qualificação epistêmica, se é evidencial (p.ex. pretender,
parecer, aparentar) ou inferencial;
-
quanto ao tipo da inferência respectivamente da fonte da evidência;
-
quanto à probabilidade do estado de coisas tematizado (apenas os vm epistêmicosinferenciais).
Os vm avaliativos distinguem-se quanto a escala de avaliação (importante-não
importante, merecendo esforço - não merecendo esforço etc.).
É analisando o processo de ação que se torna óbvio o inter-relacionamento dos vm de
orientação acional de ambos sub-grupos e os vm epistêmicos. É possível, seguindo as
propostas de Rehbein (1977) e de Wunderlich (1981), distinguir sete fases dentro do
processo de ação:
I avaliação e orientação: percepção identificação e avaliação do contexto em que se
baseia a ação;
II motivação: julgamento prima-facie que a ação tematizada é desejável por ter certas
propriedades (sem considerar efeitos ou implicações negativas, e a questão se a ação é
realizável);
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III. determinação do objetivo acional com as sub-fases formação do objetivo acional
e formação da intenção;
IV. decisão;
V. planificação;
VI. execução com as sub-fases decisão, planificação e início da execução;
VII. resultado: tematização do objetivo acional a partir do resultado visado (p.ex.
querer ter/ receber).
A primeira fase é de avaliação e de orientação. É a fase de percepção, de
identificação e de avaliação do contexto em que se baseia a ação. São relacionados a
esta fase os vm epistêmicos por servirem para marcar julgamentos sobre os estados de
coisas relevantes, é relacionado a esta fase também o vm gostar de que se refere ao
sistema de preferências acionais latentes do agente. Estas preferências fazem parte das
coordenadas do contexto inicial.
A segunda fase é a fase de motivação. Esta fase pode ser entendida, segundo
Davidson (1990:146), como julgamento prima-facie que a ação tematizada é desejável
por ter certas propriedades (sem considerar efeitos ou implicações negativas, e a questão
se a ação é realizável). Fica em aberto, então, se o agente formará a intenção de
realização do objetivo. Relacionado a esta fase é o vm desejar que não é marcado
quanto à realizabilidade da ação. Outros verbos que são relacionados a esta fase são
almejar e sonhar. Estes dois verbos marcam, porém, que o objetivo acional está fora do
espaço controlado do agente.
A terceira fase é a fase da definição do objetivo acional dividindo-se em duas
sub-fases: a da formação do objetivo acional (pensar, pensar em, cogitar de) e a da
formação da intenção (tencionar, propor-se a).
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Conforme as reflexões de Hare (1985:264), não basta a formação da intenção,
mas é preciso também uma decisão de realização da intenção. É interessante que para
esta fase haja somente verbos que descrevam o ato da decisão como resolver e decidir.
Depois da decisão de realização segue a fase da planificação. O vm pretender
localiza o objetivo acional posterior à formação da intenção, mas anterior à planificação.
Para se referir a um objetivo acional localizado na fase de planificação é possível usar
planejar. Nesta fase são também importantes os vm de orientação acional que
qualificam e ponderam alternativas acionais como: saber, poder, ser capaz de, dar para,
dever, precisar (de), ter de/ ter que, pois o que importa nesta fase é decidir quais as
alternativas a eleger em vista do objetivo acional.
Depois da fase de planificação segue a fase da execução iniciada pela sub-fase
de decisão de execução. A esta fase se pode referir com ir. Este vm marca que a decisão
de execução já foi feita. O vm haver de, no entanto, marca que o objetivo acional
tematizado é situado entre a formação da intenção e antes da decisão da execução5. Os
verbos buscar e procurar localizam o objetivo acional também na fase de execução,
mas depois da sub-fase de decisão da execução. Esta fase é caracterizada pela replanificação e adaptação permanentes das ações necessárias para realizar o objetivo
acional.
A última fase é a fase do resultado. A esta fase se pode referir com um vm
designando um objetivo acional em combinação com um verbo de estado ou um verbo
resultativo como p.ex. querer ter, querer achar, querer receber. Neste caso o objetivo
acional é tematizado desde a perspectiva do resultado a alcançar acionalmente.
5
Com ir e haver de o agente formador de objetivo acional e o agente realizador do
objetivo acional não são necessariamente idênticos.
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Querer é o único vm designando um objetivo acional não-marcado quanto à fase dentro
do processo acional.
A localização dos vm dentro do processo acional deixa claro que os verbos que
designam um objetivo acional e os vm que qualificam e ponderam alternativas acionais
são intrinsecamente inter-relacionados, pois é em vista de um objetivo acional que se
torna necessário eleger sub-ações que levam a realização do objetivo.
Um outro aspecto é que esta análise torna evidente também os efeitos
pragmáticos dos vm designando objetivos acionais, ou seja, designando um objetivo
acional com verbos como desejar ou gostar de no condicional (no PE também no
Pretérito imperfeito) e localizando-o assim na fase de motivação, o falante evita impor o
seu objetivo acional ao seu parceiro de comunicação como algo definitivo. Vejamos uns
exemplos. Em muitas conversações de venda em comércios como em (2) (que foi
gravado numa agência de viagem em Florianópolis) o cliente introduz o seu objetivo
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primeiro com gostaria de para depois, uma vez a relação estabelecida, passar para
queria.
Desejar em (4) é formulaico em conversas telefônicas não-particulares
(exemplo (3) com gostaria de é de uma conversa telefônica particular) para pedir para a
pessoa que ligou se identificar.
(1)
«F.A.: ó doutor Mário Soares - ó s' o'tor Mário Soares - devia M.:
(2)
(3)
(4)
não tragam coacção p'ra este debate - eu acho - que nó/ss/ temos terminado o
nosso tempo o doutor Mário Soares devia conter ...
eu gostava de responder aqui
na segunda parte» (TRIGO, 1989, pp. 83-184).
F.A.:
M.:
«S: sim
C: eu gostaria de ver preços de passagem para o Rio.
S: você quer passagem aérea./ ou de ônibus mesmo?
C: eu queria ver as duas./ prá ver a diferença.
S: ah tá./ tudo bem [...]» (LUNA, 1990, p. 171).
«L1 - alô
L2 - alô... o E. está?
L1 - não.... quem gostaria de falar
L2 - é Sandra
L1- oi bem... eu acabei de chegar agora [...]» (A. da SILVA, 1997, p. 220).
«- Candelária, por favor.
- Quer dizer a Ministra, a Rainha das Águas?
- Quero dizer Candelária, a minha amiga. Está?
- Quem deseja falar?
- Max» (BRANDÃO, 1987, p. 143)
Vemos agora ao exemplo de poder e saber de um lado e dever, ter de, ter que e precisar
doutro lado, o potencial explicativo desta abordagem para analisar as diferenças
semânticas entre vm que designam a existência de uma alternativa acional e tais que
ponderam uma alternativa acional.
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A oposição entre poder e saber
O sistema do português é caracterizado pela oposição privativa entre saber e poder. Ora,
explicações usuais como aquela que saber designaria uma capacidade corporal ou
mental necessitando um processo de aprendizagem (cf. HUNDERTMARK-SANTOS
MARTINS, 1982, p. 371), "capacidades adquiridas ou aprendidas" (OLIVEIRA, 1988,
p. 360) só abrangem uma parte da semântica de saber. Pois, como mostramos em
Johnen (2003a: 352-358) e Johnen (2003b: 138-141), saber combina-se também com
verbos que não exigem um processo de aprendizagem como dormir, espirrar, fazer
nada mal. O que é então que opõe saber e poder semanticamente em português?
Parecem-nos ser dois elementos decisivos :
a) quanto ao tipo da possibilidade acional
'possibilidade acional subsistindo de maneira latente e atualizável' (saber) versus
'possibilidade acional atual' (poder).
b) quanto às condições da existência da possibilidade acional tematizada 'mental' (saber)
versus 'não-mental' (poder).
Vejamos um exemplo simples:
(5) Você sabe ler?
vs.
(6) Você pode ler?
Enquanto (5) é uma pergunta sobre a posse mental do ouvinte, se há na sua posse mental
os pré-requisitos mentais para realizar o ato de ler a qualquer momento, (6) questiona as
condições atuais de realização do ato de ler (p. ex. tempo, estado dos olhos ou da voz)
ou, dependo do contexto, pode tratar-se também de um ato de fala indireto pedindo o
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ouvinte para ler, i.e. atualizar a possibilidade latente na sua posse mental. Trata-se, no
caso de saber e poder, portanto, de uma oposição privativa, mas ao mesmo tempo de
uma relação de pressuposição mútua, pois sem um saber-fazer um poder-fazer é
irrealizável e um saber-fazer sem um poder-fazer não é atualizável.
A incompatibilidade de saber com o aspecto ingressivo e a mudança de não saber ler
para estar começando a poder ler como resultado de um processo de aprendizagem em
(7) mostra de maneira nítida que saber tematiza que a alternativa acional subsiste de
maneira latente e é atualizável num dado momento.
(7)
-D. Gilete - disse ele [...] este rapaz já está um homem e ainda não sabe ler. Aplique as
regras. [...] Felizmente D. Gilete nunca precisou me aplicar as regras, mesmo porque eu
de fato já conhecia a maior parte das letras e juntá-las me pareceu facílimo, de maneira
que, quando voltei para casa nesse mesmo dia, já estava começando a poder ler
(RIBEIRO, 1995, p. 143).
Esta diferença entre poder e saber também torna-se evidente ao analisar os usos
negativos. Assim, o que é tematizado em (8) no exemplo com não saber é a falta de
controle mental sobre a ação designada no infinitivo, no exemplo (8’) com não poder
trata-se de razões circunstanciais :
(8)
Não sei dormir sem ler (JESUS, 1960, p. 26).
(8’)
Não posso dormir sem ler.
Resumindo, saber tematiza, então, uma possibilidade decorrente de uma posse mental
do sujeito, enquanto poder admite todas as razões para a existência da possibilidade
tematizada, excluindo a tematização da razão designada por saber. Para entender melhor
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ainda a semântica de saber, vale fazer a prova de comutação entre não saber e não
conseguir:
(8)
Não sei dormir sem ler (JESUS, 1960, p. 26).
(8’’)
Não consigo dormir sem ler.
Enquanto (8) é uma auto-caracterização do falante que coincide aqui com o agente por
causa do uso da primeira pessoa, (8’’) dá a entender que o falante já tentou dormir sem
ler, mas sem sucesso, trata-se então de um relato de experiência e não de uma
caracterização da personalidade. Estes dois exemplos evidenciam bem que saber marca
que a possibilidade para realizar a ação em questão faz parte da posse mental do sujeito,
pois o que faz parte da posse mental, faz parte da personalidade, os relatos de
experiência tematizam apenas o fato ocorrido sem caracterizar a personalidade do
agente como tal.
Tematização das razões para a ponderação das alternativas acionais em questão: o
caso de ter de, ter que, dever e precisar (de)
Um outro exemplo no qual vale mostrarmos o potencial explicativo da aproximação
acional são os vm dos vm dever (de), ter de, ter que e precisar (de). Nossa hipótese
referente ao significado destes vm é possível esquematizar da maneira seguinte:
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Quadro 2: Sinopse dos significados de dever (de), ter de, ter que e precisar (de)
vm
tipo de ponderação
razão para a ponderação
dever (de)
designação como, se não
única, pelo menos uma das
poucas
possibilidades
acionais elegíveis
não há outra possibilidade
aberta a eleger
condicionada pela realidade acional: ou
fazendo um esboço de maneira prospectiva,
ou ponderação em vista de um objetivo ou de
normas/ modelos acionais vigentes
a) os agentes ou participantes da ação em
questão ou b) a opção feita em relação a um
objetivo acional superior
razões fora do controle do agente que são
determinadas pela situação
precisar
(de)
ter de
ter que
não há outra possibilidade
aberta a eleger
é óbvio que não há outra
possibilidade aberta a eleger
A hipótese é portanto que há diferenças quanto ao tipo de ponderação e nas razões para
a ponderação. Enquanto a ponderação marcada por ter de, ter que e precisar (de) é tal
que não há outra possibilidade aberta a eleger, dever marca apenas uma ponderação
tendencial, i.e. que a alternativa em questão é uma das poucas abertas, se não é a única,
será a mais indicada (cf. também OLIVEIRA, 1988, p. 245). Quanto às razões para a
ponderação ter de e ter que tematizam razões fora do controle do agente determinadas
pela situação, precisar (de) para razões relacionados aos agentes ou participantes da
ação ou o objetivo que se pretende realizar. Dever tematiza uma perspectiva bastante
diferente, pois concebe a realidade como uma realidade acional. A ponderação
tematizada por dever é então motivada pelas normas (ou modelos acionais) vigentes ou
fazendo um esboço prospectivo, criando um modelo acional (p.ex. dever em leis).
Assim quando o falante em (9)-(14) descreve um modelo a seguir em geral (aquilo que
se espera de um ator) ele usa dever, quando se refere à situação que impõe a redução do
leque das alternativas a uma só alternativa, ele usa ter que, quando a redução é motivada
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pelos próprios participantes ou pelos objetivos, ele usa precisar (para mais exemplos cf.
JOHNEN, 2003a, pp. 379-400).
(9)
(10)
(11)
(12)
(13)
(14)
(15)
«quem faz teatro qualquer papel... que lhe seja conferido ele deve saber interpretar...
deve gostar uhn:: na peça do:: deve gostar se entrosar com o personagem» (PRETI;
URBANO, 1988, pp. 40).
«Doc.: no seu entender o que é o imprescindível pruma:: peça de teatro obter sucesso?
Inf.: o que eu falei... é atingir diretamente ao público... A:: ao qual ela foi destinada...
então:: uma peça infantil.. deve ser apresentada a um público infantil... uma peça séria
deve ser apresentada a um público adulto a um público culto...senão ela não vai fazer
sucesso nenhum» (PRETI; URBANO, 1988, pp. 45).
«então todo artista deve sabe::r... ah:: o conteúdo da peça o que vai acontê/ e conhecer
bem a peça... e... com seu talento... não estou queren::do com isso dizer que sou um
grande artista porque quando eu fui artista longe disso... fui o pior possível... ma::s acho
que o camarada deve eh:: valorizar...o espetáculo que está do qual ele está
participando...» (PRETI; URBANO, 1988, pp. 46).
«[...] nós éramos um grupo amaDOR então tínhamos que escolher algo bom pra
apresentar... porque uma feita que:: quando é teatro profissional... é uma coisa... teatro
amador é outra... teatro profissional se apresenta um abacaxi às vezes e o abacaxi faz
sucesso» (PRETI; URBANO, 1988, pp. 40).
«o trabalho do artista é MUIto maior... no:: teatro do que no cinema... no cinema se:: o
artista tem que fazer um papel de velho... a maquiagem encobre o artista
perfeitamente... e se ele não tem a voz adequada pra ele apresentar aquê/ aquele papel...
um um outro artista faz a sua dublagem na hora da dublagem do filme [...]... entende?
então tem mil e um recursos que no teatro ele não tem... o teatro ele tem que caprichar
na:: no timbre de voz... ele tem que saber... éh:: ele tem que educar a sua voz
primeiramente... tem que saber o texto da peça... tem que compreender o personagem
para ele saber interpretar e ter uma boa interpretação... no cinema e na televisão já
não...» (PRETI; URBANO, 1988, pp. 53-54).
«teatro profissional se apresenta um abacaxi às vezes e o abacaxi faz sucesso... o teatro
amador já ENtra... na hora que abre levanta o pano... já está com aquela difamação é
teatro amador... então o pessoal já está esperando mancada... dos artistas e:: uma coisa
de baixa qualidade... então você precisa apresentar o MÁximo...para que o povo
POssa realmente sentir» (PRETI; URBANO, 1988, pp. 40).
«Inf.: o gado de leite é pra produção de leite... e o gado de corte é pra carne...
Doc.: e tem diferença isso na criação?
Inf.: tem...tem uma diferença vamos dizer grande... porque o o gado de leite ele é muito
mais delicado... como::... o animal é um animal mais sensível vamos dizer... e precisa
ser tratado... ele é:: praticamente estabulado todos os dias ... quer dizer todos os... todos
os dias... se tira o leite» (PRETI; URBANO, 1988, pp. 28).
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Envolvimento mental do ouvinte ou leitor pelo uso de vm: o exemplo de manchetes
de jornais e da argumentação acadêmica
Até agora consideramos as características semânticas dos vm, i.e. quais os elementos da
sua semântica que dirigem a interpretação do ouvinte ou leitor. Assim, o que dirige a
semântica de precisar é a interpretação do leitor da manchete (16) no sentido que este
entende que há razões relacionadas a um fato circunstancial para a alternativa ponderada
(=desenterrar os falecidos). O que está excluído é uma leitura boulomaica, i.e. que a
razão para ponderação esteja relacionada com os desejos dos actantes (= especialistas).
(16)
Especialistas afirmam: Mamonas precisam ser desenterrados (Notícias Populares [São
Paulo] (08/03/1996), 9).
Ao mesmo tempo o vm precisar funciona como uma instrução de reconstruir as razões
concretas que levaram os especialistas ao julgamento em (16). A semântica específica
de precisar apenas orienta este processo de reconstituição. O uso de um vm numa
manchete de jornal, porém, envolve o leitor num grau muito maior do que uma
informação explícita que já tematizasse certas razões. Desta maneira o vm cria o
interesse do leitor que para entender a manchete automaticamente começa um processo
de reconstrução das razões para a ponderação. Isso fica ainda mais evidente no uso de
poder em manchetes de jornais.
(17)
(18)
(19)
(20)
Escolas particulares podem fechar
Medida Provisória 524/94 estabelece valores diferentes para receitas e despesas
(Estado de Minas [Belo Horizonte] (15/06/1994), 17).
Xokleng podem ser despejados de barragem (O São Paulo 12/09/1991), 9).
Pindamonhangaba pode se tornar centro do poder político no Brasil
(Diário de S. Paulo [São Paulo] (14/07/2002), A12).
Missão em Lisboa pode fechar (Público [Lisboa] (25/08/1993), 7).
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Para poder entender a manchete o leitor precisa ativar seus conhecimentos para formar
hipóteses sobre aquilo que pode levar ao evento anunciado. No caso de (19) por
exemplo o leitor paulista vai ativar seus conhecimentos sobre a cidade interiorana de
Pindamonhangaba, um leitor estrangeiro provavelmente nem conhece a cidade. Em
ambos os casos os leitores não vão conseguir, apenas pela leitura da manchete,
reconstruir as razões, pelas quais uma cidade de tão pouca importância poderia virar o
centro político do país. Este envolvimento mental do leitor não só cria a curiosidade de
ler a notícia, mas também prepara a absorção de novas informações.
Uma função parecida exercem os vm em textos argumentativos. E aqui torna-se
relevante um sub-grupo de vm sem sujeito sintático que despertou até agora pouco
interesse na pesquisa. Trata-se de verbos como haver que, caber, convir, cumprir, urgir,
impor-se, relevar. Estes vm são, com exceção de haver que pouco freqüentes fora de
textos argumentativos. Revisando a literatura sobre modalidade em textos científicos
(cf. p.ex. VENTOLA, 1997 e ROCCI, 2005), poder-se-ia supor que seriam os vm
epistêmicos, de longe, os mais importantes. O interessante é porém, que os verbos de
orientação acional também são importantes (cf. também KREUTZ; HARRES 1997),
particularmente em combinação com verba dicendi, como ilustram (21)-(23).
(21)
Já as normas formais, segundo a doutrina corrente, só são constitucionais em razão do
documento ao que aderem. É necessário acrescentar que não basta que a norma esteja
num documento constitucional escrito para que se transmude em constitucional, se ela
já não tiver essa natureza em razão do seu objeto [...]. Importa, pois, apenas o conceito
de normas constitucionais formais, consideradas todas que integram a Constituição
rígida, pouco importando o seu conteúdo efetivo, porque só elas constituem fundamento
de validade do ordenamento jurídico do Estado. Mas é preciso notar que as normas
constitucionais materiais que integram tal documento também são normas
constitucionais, evidentemente, até porque se tornam formais na medida em que nele
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(22)
(23)
foram inseridas, coincidindo aqui o material e o formal (J.A. da SILVA, 1980, pp. 3940).
Esta produtividade, convém mencionar, está em constante crescimento, como se observa
nos exemplos abaixo colhidos em periódicos brasileiros (CUNHA-HENCKEL, 2002, p.
98).
Postula Fillmore (1969:365-375) que os constituintes principais de uma oração (O) são
a Modalidade (Mod), Auxiliar (Aux) e Proposição (Prop). Assim a primeira regra de
estrutura sintagmática seria:
O → Mod - Aux - Prop
Releva notar que, nessa fórmula o Auxiliar é entendido como constituinte imediato da
oração e não como subconstituinte da proposição (C. Silva, 1978, p. 88).
Em todos estes exemplos a função do vm não se limita a marcar a ponderação do autor,
mas também de levar o leitor a buscar e reconstruir as razões para julgamento em
questão. O autor, pois, não só marca o resultado da sua própria operação mental
subjacente, mas prepara também a mente do ouvinte para o processamento e a absorção
das informações a seguir, criando no leitor ou uma tensão ou uma expectativa sobre
hipóteses possíveis.
Estes exemplos mostram o grande potencial explicativo que a abordagem acional possui
para a análise das funções discursivas dos verbos modais.
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