1
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
LICENCIATURA PLENA EM LETRAS
HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA
THAISA MARCULINO DA SILVA
GÊNERO E GERAÇÃO EM BISA BIA BISA BEL, DE ANA
MARIA MACHADO
JOÃO PESSOA
2013
2
THAISA MARCULINO DA SILVA
GÊNERO E GERAÇÃO EM BISA BIA BISA BEL, DE ANA
MARIA MACHADO
Trabalho
apresentado
ao
Curso
de
Licenciatura em Letras da Universidade
Federal da Paraíba, como parte dos requisitos
para obtenção do grau de Licenciado em
Letras, habilitação em Língua Portuguesa.
Orientadora: Profª. Drª Ana Cristina Marinho
Lúcio
JOÃO PESSOA
2013
3
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal da Paraíba.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
Silva,Thaisa Marculinoda.
Gênero e geração em Bisa bia bisa bel, de Ana Maria Machado/ Thaisa
Marculino da Silva. - João Pessoa, 2013.
37f.
Monografia (Graduação em Letras Português) – Universidade Federal da
Paraíba - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.
Orientadora: Profª. Drª Ana Cristina Marinho Lúcio.
.
1. Literatura infantil e juvenil. 2. Gênero. 3. Estudos feministas. I. Título.
BSE-CCHLA
CDU 82-93
4
THAISA MARCULINO DA SILVA
GÊNERO E GERAÇÃO EM BISA BIA BISA BEL, DE ANA
MARIA MACHADO
Trabalho
apresentado
ao
Curso
de
Licenciatura em Letras da Universidade
Federal da Paraíba, como parte dos requisitos
para obtenção do grau de Licenciado em
Letras, habilitação em Língua Portuguesa.
Orientadora: Profª. Drª Ana Cristina Marinho
Lúcio
Aprovado em: ___/ ___/ ___
Comissão Examinadora
____________________________________________________
Profª. Drª. Ana Cristina Marinho Lúcio
(orientadora)
_____________________________________________________
Profª. Drª. Daniela Maria Segabinazi
(examinadora)
______________________________________________________
Profª. Drª. Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne
(examinadora)
5
À minha mãe que sempre esteve presente, dando apoio e incentivo.
6
AGRADECIMENTOS
A Deus, o autor da minha vida;
À minha orientadora Ana Cristina Marinho, pela paciência e atenção;
A todos meus professores que muito contribuíram no meu processo de aprendizagem;
À minha mãe e avó que sempre estiveram presentes, dando apoio e incentivo;
À Luzitânia Teixera, por compartilhar livros e saberes durante a graduação;
Aos amigos pelas indicações bibliográficas e pelas palavras de incentivo;
Aos meus familiares, que acreditaram em mim;
A todos que acreditaram na concretização desse trabalho!
7
A liberdade da mulher
Como Marx nos dizia, da Mulher e da sua questão.
Ela tem a graça e a magia, e tem a fúria da revolução.
É o mais lindo ideal, para nossa defesa da igualdade.
É condição fundamental, pra libertar toda
humanidade [...]
Azuir Filho
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RESUMO
Este trabalho discute sobre a transformação do sujeito feminino de acordo com a
transformação das gerações, tendo como suporte a concepção de gênero, categoria dos
estudos feministas. A monografia aborda as três personagens femininas presentes na narrativa
Bisa Bia Bisa Bel, de Ana Maria Machado. A escolha do tema se deve ao fato de a obra em
análise ter surgido no período em que, efetivamente, se consolidaram no Brasil os estudos
relacionados à mulher e sua representação na literatura. As personagens femininas em
evidência representam, no enredo, os sujeitos femininos em três épocas distintas na história. A
personagem- narradora, Isabel, vive um processo de autoconhecimento, estabelecido mediante
o diálogo entre Bisa Bia, sua bisavó, e Neta Beta, sua bisneta. Tais diálogos representam
visões divergentes da mulher: uma tradicional, Bisa Bia, característica do século XIX, que
refere-se ao modelo de comportamento feminino cuja valorização restringia-se aos méritos de
mãe, esposa e rainha do lar; outra em transição, Isabel, do fim do século XX, oscilando entre
presente, passado e futuro, deixando transparecer o início de uma ruptura dos valores
tradicionais; e uma terceira, Neta Beta, contemporânea e inovadora, perfil do século XXI, que
almeja igualdade de direitos, descobrindo com o profissionalismo a valorização e a realização
do seu próprio “eu” e questionando padrões de comportamentos impostos socialmente que
acarretam na condição subjugada da mulher.
Palavras- chave: Gênero. Geração. Bisa Bia Bisa Bel. Ana Maria Machado.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................... 10
CAPÍTULO 1 – HISTÓRICO DA LITERATURA INFANTIL............................ 12
1.1. O pioneiro da literatura infantil/juvenil no Brasil ............................................13
1.2. Panorama da literatura infantil/juvenil no Brasil ..............................................14
1.3. Ana Maria Machado: um “marco” na eclosão do “boom”................................16
da literatura infantil/juvenil
1.4. Bisa Bia, Bisa Bel: Besteseller dos anos 70-80................................................18
CAPÍTULO 2 – CRÍTICA FEMINISTA ...............................................................21
2.1. Gênero: categoria dos estudos feministas.........................................................23
CAPÍTULO 3 – BISA BIA, BISA BEL: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE........26
3.1. Bisa Bia: mulher tradicional.............................................................................27
3.2. Isabel: mulher em transição..............................................................................29
3.3. Neta Beta: mulher contemporânea....................................................................33
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................35
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................37
10
INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende analisar, na obra Bisa Bia, Bisa Bel (2000) de Ana Maria
Machado, questões relacionadas às mudanças da imagem feminina, de acordo com as
transformações das gerações, tendo como base o gênero, categoria dos estudos feministas.
O interesse pela obra surgiu após algumas aulas de Literatura Infantojuvenil, nas quais
fui apresentada ao livro pela professora Socorro Pacífico. A partir desse “segundo” contato
com a obra, pois já o havia lido, o interesse aumentou. Então após a realização de alguns
trabalhos tendo como foco as personagens presentes no enredo, cresceu o interesse em
vislumbrar especificamente as personagens femininas, Bisa Bia, Isabel e Neta Beta, nesta
monografia.
No primeiro capítulo é apresentada a Literatura Infantil, que durante muito tempo foi
considerada um subgênero. Por ser direcionada ao leitor mirim, muitos a consideravam como
algo puramente infantil. A admiração e afeição pela mesma é algo bastante recente.
No referido trabalho também ressaltamos alguns publicadores dessa literatura infantil
tanto no Brasil como no exterior; enfatizando Monteiro Lobato como o precursor da mesma
no Brasil. Esse escritor preocupava-se com o problema dos livros de leituras para crianças,
devido a isso, buscou e conseguiu dar novas roupagens as produções infantis que os pequenos
leitores estavam acostumados a ler naquela época.
Para uma melhor compreensão é apresentado um breve panorama da literatura
infantil/juvenil no Brasil, especificamente da década de 1930 até 2003, discorrendo sobre os
principais fatos que ocorreram na literatura infantojuvenil nesse período. Bem como os
escritores que surgiram no “boom” da literatura, a partir de meados dos anos 1980, momento
em que a produção de literatura infantil/juvenil “explode” no mercado editorial. Devido tal
explosão criativa, cresce o número de novos escritores, dentre eles Ana Maria Machado. A
autora tem mais de cem livros publicados e ganhou inúmeros prêmios tanto no Brasil como
no exterior, alguns desses prêmios foram resultados da obra Bisa Bia, Bisa Bel, que será
abordada e analisada nesse trabalho.
Apresentamos no segundo capítulo algumas reflexões sobre o Movimento Feminista,
analisando a forma submissa que as mulheres eram tratadas no século XIX, além da condição
de seres inferiores, dominadas pelo sexo masculino em todos os sentidos. E também a busca
11
dessa superação hierárquica adquirida, a partir de 1960 do século XX, com o movimento
feminista, caracterizado pela auto-organização das mulheres. O movimento feminista, aliado à
literatura, resultou na crítica feminista, que é um dos meios que dispomos para ler e
interpretar textos literários, desconstruindo o perfil discriminatório das ideologias de gênero
que a cultura vem construindo ao longo do tempo.
O terceiro capítulo consiste na análise das três personagens femininas, Bisa Bia, Isabel
e Neta Beta. Bisa Bia, representa a mulher tradicional do século XIX, enquanto Isabel
consiste na mulher do fim do século XX, que vive em transição, dialogando com três
gerações, a passada, presente e futura, apresentando comportamentos e culturas diferenciadas
entre os sujeitos femininos. Neta Beta corresponde à mulher contemporânea do século XX,
que escolhe os rumos da sua vida e que se valoriza enquanto mulher e profissional.
12
CAPÍTULO I
HISTÓRICO DA LITERATURA INFANTIL
A literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou
melhor, é arte: fenômeno de criatividade que representa
o mundo, o homem, a vida, através da palavra.
Nelly Novaes Coelho1
A Literatura Infantil foi rotulada por muito tempo como um subgênero e não era
considerada obra de arte. Por ser destinada ao leitor mirim, a literatura era interpretada como
algo infantil, irrelevante, com finalidades moralizantes. O apreço da literatura infantil como
espaço de: conhecimento, prazer, descobertas e formação de consciência, é algo bem recente.
Segundo Cademartori (1986) as primeiras obras consagradas como clássicos infantis
surgiram no século XVII, editadas pelo francês Charles Perraut, o mesmo coletava contos e
lendas da Idade Média e adaptava-os, registrando por escrito as estórias anônimas, relatadas e
passadas oralmente de geração em geração. Esses contos populares adaptados constituíam os
contos de fadas considerados, por tanto tempo, padrão do gênero infantil. Entretanto, antes da
adaptação, a literatura popular era destinada ao público adulto e não tinha finalidades
moralizantes, porém na conversão da literatura popular em infantil, Perrault revela uma
literatura pedagógica, com caráter de advertência, valorização do pudor e com propósitos
moralizantes, direcionada às crianças daquela época que precisavam ser educadas, controladas
e ensinadas a obedecer desde a infância.
Charlles Perrault preocupava-se em fazer uma arte moralizante através de uma
literatura pedagógica e didática, que mantinha relação com o popular, mas destinava-se a
classe burguesa da qual ele fazia parte. Além de Charles Perrault apareceram outros
escritores, em épocas posteriores e em países diferentes, que publicaram estórias escritas,
entre eles La Fontaine (Francês), os irmãos Grimm (alemães), Collodi (Italiano), Lewis Carrol
(inglês) e James Barrie (escocês).
1
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil brasileira: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000.
P. 27
13
1.1 O Pioneiro da Literatura Infantil/juvenil no Brasil
“Ainda acabo fazendo livros onde nossas crianças
possam morar”
Monteiro Lobato
No Brasil, Monteiro Lobato foi o precursor da literatura infantil. Esse intelectual
preocupava-se com o problema dos livros de leitura para crianças, essa preocupação é nítida
através de uma das correspondências trocadas entre ele e seu amigo Godofredo Rangel. Na
carta de 08/09/1916, ele menciona:
Ando com várias idéias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La
Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisas para criança. Veio-me,
diante da atenção curiosa com que meus pequenos ouvem as fábulas que Purezinha
lhes conta. Guardam-nas de memória e vão recontá-las aos amigos – sem entretanto,
prestarem nenhuma atenção à moralidade, como é natural. A moralidade nos fica no
subconciente para ir se revelando mais tarde, à medida que progredimos em
compreensão. Ora, um fabulário nosso, com bichos daqui em vez dos exóticos, se
for feito com arte e talento, dará coisa preciosa...
(A Barca de Gleyre, 2º tomo, apud Coelho, 2012, p. 248-249)
Através desse discurso, Lobato nos deixa ciente de suas intenções, as quais não foram
efetivadas logo de imediato, mas após um período de maturação conseguiu colocá-las em
prática e abrir caminhos para as novas idéias que o novo século almejava. O escritor
conseguiu dar novas roupagens as produções infantis que os pequenos leitores estavam
acostumados a ler naquela época. Esse foi um dos fatores que o levou a seu grande sucesso,
pois os leitores se identificavam com as situações narradas, sentiam-se familiarizados com os
elementos nacionalistas e brasílicos, aliados à fusão entre o “Maravilhoso” e o “Real”.
(Coelho, 2010)
Fugindo do moralismo que costumava seguir a produção do livro infantil, Monteiro
Lobato criticou tais “moralidades” e “verdades absolutas” transmitidas pelos séculos, e
estimulou a valorização da inteligência e da esperteza, consideradas por alguns, como
habilidades um pouco maliciosas. Também incentivou o leitor mirim a ver, após a leitura dos
textos, uma nova experiência da realidade, fazendo-o perceber que à medida que ele conserva
as vivências já adquiridas também projeta novas possibilidades a serem experimentadas, a
partir desse universo ficcional lobatiano.
A consciência social de Lobato o fez ter um zelo especial com o leitor, atribuindo à
literatura uma importância no processo social, pois apontava o livro como um instrumento
14
capaz de modificar a percepção e a apreensão do mundo do leitor, estimulando a formação da
consciência crítica do mesmo. Apesar de fiel a alguns valores do passado, Lobato foi um
inovador, pela forma que lidou com os estereótipos presentes na sociedade da época. Sua
produção na área infantojuvenil é vasta e engloba obras originais, adaptações e traduções,
tendo como recompensa milhares de leitores.
1.2 Panorama da Literatura Infantil/Juvenil no Brasil
Segundo Coelho (2010), aproximadamente na década de 1920, é que Monteiro Lobato
consegue realmente encontrar espaço para iniciar as suas criações na área de literatura infantil
brasileira. Esse período também é marcado por alguns debates relacionados às reformas
educacionais, instigados pelos novos métodos pedagógicos da Europa e dos Estados Unidos.
A reformulação do processo pedagógico, que também repercutiu no Brasil, provocou
inúmeras reformas no ensino primário, que determinou consequentemente na área educacional
os novos rumos tomados por nossa literatura infantil brasileira.
Durante os anos 30-40 – período conturbado que levou Getúlio Vargas ao poder,
debatiam simultaneamente propostas para o novo planejamento da educação nacional. Como
percebe-se, a preocupação com a formação das novas gerações é intensificada, uma dessas
preocupações é o problema da literatura infantil nesse contexto reformista. Com a interação
da nova política educativa e a expansão da rede escolar, cresce também a produção de
literatura infantil, porém ela se transforma em um mero instrumento educativo com finalidade
pedagógica. Para intensificar essa fase conturbada, os colégios religiosos, se opõem à
“Fantasia” na literatura infantil, exigindo a substituição pela “verdade”, ou seja, tal
manifestação antifantasia incentiva a produção de uma literatura “medíocre”, oferecida às
tarefas escolares e transformada em “leitura didática”. Alegava que as “irrealidades” presentes
nas narrativas, que caracterizava a literatura infantil, poderiam provocar uma série de
alienações nos leitores mirins como: perda de sentido do real e imaginação doentia.
Nos anos 50-60 é declarado no Brasil a “crise de leitura”, tanto no âmbito da criança,
como também no do jovem e do adulto. Isso ocorreu, porque as novas gerações, conhecidas
como “gerações sem palavras”, substituíram a literatura e a leitura pelos inventos
audiovisuais, tento como consequência a perda da capacidade de expressão verbal fluente. No
15
entanto, um ponto positivo nessa década é que a produção literária infantil começa a se
desenvolver ignorando a “Verdade” que lhe foi imposta pela orientação pedagógica nos anos
30-40, e renasce a “Fantasia” através da fusão do Real com o imaginário, funcionando como
uma das espécies de terreno preparatório para o “boom” dos anos 70.
Na década de 70-80 os processos de transformações atingem a literatura infantil, um
dos fatores que contribuiu para isso foram os altos índices de analfabetismo no Brasil, fator
determinante, que levou o governo a dar mais atenção ao ensino básico, reconhecendo-o como
decisivo para a educação. A partir dessa situação é que o livro voltou a ser o elemento
primordial ao desenvolvimento intelectual e a afirmação cultural. Além disso, a literatura já
vinha sendo encarada como adjetivo, ou seja, tinha como alvo um tipo de destinatário em
particular, o que implica que já se sabia o que interessava a esse determinado público. Por
isso, a literatura infantil, através do adjetivo, tem como destinatário a criança, que se torna
nesse período, pelo mercado livresco, um dos lucrativos veículos de consumo.
Nessa década a literatura infantil apresenta-se como um novo investimento em termos
de educação brasileira. O livro como objeto de mercado, devido ao aumento do número de
leitores, passou a ser privilegiado e distribuído, por exemplo, como brinde em lojas populares
de tecido, direcionado para os filhos dos clientes. É nesse cenário que manifesta-se , no Brasil,
o “boom” da literatura infantil, conforme relata Ligia Cademartori em seu livro “O que é
literatura infantil”:
Vive-se, nesta década de 80, no Brasil, o boom da literatura infantil, manifestado
através de uma venda sem precedentes de livros para crianças, na proliferação de
associações voltadas ao incentivo da literatura infantil, no surto de encontros,
seminários e congressos a respeito do assunto e na inclusão de cursos de literatura
infantil na programação das universidades.
(CADEMARTORI, 1986,p. 11)
O objetivo nessa década era atrair o leitor mirim para o processo de descoberta do
mundo através da leitura, para reforçar essa iniciativa surgem programas culturais de estímulo
à leitura de iniciativa privada e também do Estado. Contudo, essa preocupação foi movida
principalmente por enxergar a literatura infantil como um instrumento de domínio linguístico
dos discentes, acreditando que o hábito da leitura levaria a criança a escrever melhor e a
dispor de um cabedal de conhecimento.
Segundo Nelly Novaes Coelho (2000), a nova literatura infantil/juvenil baseia-se na
criatividade, consciência da linguagem e consciência crítica. Através dessa concepção surge
uma literatura questionadora, lúdica, que tem o saber como prática de liberdade e a palavra
16
como poder nomeador do real. Dessa forma, a literatura infantil rompe com os conceitos
tradicionais e se constitui como formadora e emancipadora da sociedade.
Entre os anos 80-2003 a produção de literatura infantil/juvenil se amplia no mercado
editorial, consequentemente cresce o número de novos escritores e ilustradores. Essa
ampliação é resultado das sementes lançadas durante anos e devido à inclusão dessa “Nova
Literatura” nos currículos das Escolas de Ensino Básico e Fundamental . Entretanto, essa
inclusão ainda não atingiu todas as escolas brasileiras, por ser um processo de adaptação
muito lento, mas com recompensas incalculáveis.
1.3- Ana Maria Machado: um “marco” na eclosão do “boom” da Literatura
Infantil/Juvenil
Escrevo, porque é da minha natureza, é isso que sei
fazer direito. Se fosse árvore, dava oxigênio, fruto,
sombra para todo mundo. Mas só consigo mesmo é
fazer brotar palavra, história, idéia
Ana Maria Machado2
Dentre os escritores que surgiram nesse período do “boom” da literatura, encontra-se
Ana Maria Machado, autora do livro Bisa Bia, Bisa Bel. Ana Maria Machado nasceu em
Santa Tereza, no Rio de Janeiro, em 1941 aprendeu a ler sozinha, antes dos cinco anos de
idade, e foi nesse período que começou a despertar o prazer pela leitura. Seu pai era jornalista
e seus avós amavam contar histórias para ela, pode-se dizer que foi apresentada ao universo
da leitura e da escrita desde a infância.
Aos doze anos, Ana Maria Machado, publicou na revista Folclore seu primeiro texto,
Arrastão, que fala sobre a rede de pesca artesanal da região em Manguinhos, local em que
costuma se refugiar. A escritora, na revista “Bravo”, conta como Manguinhos, uma vila
capixaba, de pescadores, influenciou seu jeito de escrever, e afirma:
Sem manguinhos, meus livros seriam diferentes pelo simples fato de que
minha vida inteira também seria. Este recanto está ligado a minha família há
cinco gerações.
(Revista Bravo- Edição 178-Junho 2012)
2
MACHADO, Ana Maria. Texturas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
17
Essa aldeia de pescadores foi, sem dúvida, um dos meios de inspiração que contribuiu
para que a carioca se tornasse em uma das maiores escritoras brasileiras. Após ter desistido do
curso de geografia, formou-se em letras Neolatinas na Faculdade Nacional de Filosofia,
nomeada atualmente Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalhou como pintora,
escritora, jornalista, professora e escritora.
Ana Maria Machado publicou sua primeira história infantil na revista “Recreio”, da
editora Abril, em 1961. Foi através dessa proposta voltada ao leitor infantil, que grandes
oportunidades lhe foram oferecidas como escritora, pois antes dessa data a literatura infantil
no Brasil quase não existia. Tinha apenas como exemplo o escritor Monteiro Lobato, que foi o
pioneiro da literatura infantil no Brasil. A partir dos anos setenta, quando o governo resolveu
comprar livros didáticos, paradidáticos e juvenis é que começou a surgir um relevante número
de autores nessa área, dentre eles Ana Maria Machado.
Segundo a revista Veja (21/06/2000 – Edição 1 654) depois do golpe militar de 1964,
a autora se envolveu com política e ficou presa por dois dias, após seu irmão, o jornalista
Franklin Martins, comentarista da Rede Globo na época, resolver auxiliar no seqüestro do
embaixador americano no Rio de Janeiro, em 1969. O carro utilizado no seqüestro estava no
nome de Ana Maria Machado, o que levou a polícia procurá-la em sua residência,
aprisionando-a por dois dias.
Após esse episódio a escritora resolveu deixar o Brasil e se exilar voluntariamente na
Europa, mas mesmo exilada continuava escrevendo e enviando da Europa seus textos, que
foram publicados na revista Recreio. Só voltou para o Brasil em 1972, e depois de cinco anos
após sua chegada no Brasil é que publicou seu primeiro livro infantil, Bento-que-bento-é-ofrade, mas foi com a publicação do livro História Meio ao contrário que ela ganhou seu
primeiro prêmio, desencadeando uma série de convites de editoras para publicar mais textos.
Desde então seus textos tem encantado o público infantil e lhe proporcionado vários prêmios.
Outro grande marco histórico, dessa escritora brasileira, foi ter sido eleita oficialmente
para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Tomou posse dia 29 de agosto de 2003,
ocupante da cadeira nº 1, na sucessão de seu amigo Evandro Lins e Silva. Na sua posse usa o
seguinte discurso:
Talvez tenha sido essa a primeira vez que me ocorreu que podia ser interessante
alguém pertencer ao quadro da ABL e estar aqui entre tantos nomes tão
significativos de nossa cultura. Mas eu estava apenas começando e não achei que
fosse para mim. No entanto, aqui estou. Caracterizados esses fios que, como o
18
novelo de Ariadne, foram me mostrado um possível caminho, passo a examinar o
destino a que estou chegando- esta cadeira número um.
( Machado, 2003, Caderno de notas)
Ana Maria Machado é a primeira representante da literatura infantojuvenil na
Academia Brasileira de Letras, tem muitos anos de carreira, mais de cem livros publicados,
inúmeros prêmios recebidos, tanto no Brasil como no exterior, sendo o maior de todos o
prêmio “Hans Cristian Andersen”, espécie de Nobel da literatura infantil. O livro Bisa Bia,
Bisa Bel também ganhou inúmeros prêmios como: Prêmio Maioridade Crefisul (1981),
Prêmio APCA (1982), Prêmio da UNLIJ( 1982),Prêmio Bienal Noroeste ( 1983), Prêmio
Jabuti da CBL (1984)e Prêmio Bienal São Paulo (1984).
1.4- Bisa Bia, Bisa Bel: Bestseller dos anos 70-80
O romance BB3 é narrado do ponto de vista do narrador-protagonista, a préadolescente Isabel Miranda. A narrativa volta-se para a tradução dos sistemas culturais,
enfatizando que os seres humanos masculinos e femininos, representados na obra por Isabel,
Bisa Bia, Bisa Bel e Víctor, assumem diferentes papéis na sociedade, ou seja, na obra é
apresentado que desde a infância, meninos e meninas são educados para agir, se comportar e
se comunicar de forma diferenciada, seguindo as condutas e normas da comunidade e se
adequando à geração a qual estão inseridos. Nara Antunes (Jornal de Brasília – 23/11/1982)
faz o seguinte comentário a respeito da obra:
Quem lê BB entende o porquê de tantos prêmios. É um livro sobre a marcha da
História, a transformação dos costumes, o choque entre as gerações, mas é,
sobretudo, um livro sobre a dialética dinâmica do tempo, o presente contendo em si
as lições do passado e já deixando antever as conquistas do futuro.
A personagem Bisa Bia (avó de Isabel), por exemplo, não aprecia as brincadeiras “de
menino” de Isabel. Essa atitude de Bisa Bia demonstra que as gerações possuem padrões
sociais estabelecidos estruturando as diferenças que qualificam os comportamentos
pertinentes aos grupos de meninos e meninas. Já a personagem Isabel e Neta Beta
demonstram outros tipos de comportamento que entram em atrito com aqueles estabelecidos e
impostos pela personagem Bisa Bia, deixando em evidencia a transformação da imagem
3
A partir de agora a sigla BB será usada para se referir à obra Bisa Bia, Bisa Bel de Ana Maria Machado (1982).
19
feminina de acordo com a mudança das gerações. Outro personagem que aparece com
evidência na obra é Vítor, o mesmo destaca-se no romance como o menino mais corajoso por
não ter medo de chorar em público. Essa atitude de Vítor também representa uma das
mudanças do comportamento e da imagem masculina.
Segundo Ana Maria Machado (1982, p. 64) a obra BB foi escrita quando a mesma
encontrava-se com muita saudade de suas avós. A autora, quando escreveu esse romance
possuía apenas dois filhos e sentia vontade de conversar com eles sobre suas avós, mas nem
imagina que futuramente teria uma filha que deixaria mais significativa essa linhagem
feminina. Essa escritora carioca também não imaginava que esse livro seria tão prestigiado
pelo seu público leitor e que a obra ganharia tantos prêmios, sendo traduzida para diversos
países e indicada como um dos dez livros infantis brasileiros essenciais. A consequência da
publicação desse livro foi o carinho, prestigio e elogios que recebeu de seus leitores de várias
faixas etárias e a identificação que muitos deles relataram sentir ao interagir com os
personagens.
A produção literária da autora carioca é tão reconhecida que é fácil encontrar críticas
literárias sobre suas obras. No livro Trança de Histórias: a criação literária de Ana Maria
Machado, 2004, é possível ler dez estudos que analisam profundamente as obras da escritora
e seus diversos títulos. Os estudos reconhecem a importância dos seus textos na literatura
brasileira, tanto no que se refere à qualidade temática e linguística, quanto ao destaque que a
mesma oferece a formação de leitores críticos.
São inúmeras as dissertações que investigam e analisam a maneira que as personagens
femininas e masculinas são abordadas em seus textos literários, pode ser mencionado como
exemplo a dissertação de Mestrado de Cristiane Madanêlo de Oliveira (2006), “Brincando de
desconsertar o masculino: Um olhar sobre a produção para crianças de Ana Maria Machado”,
que analisa quatro livros: Bento-que-bento-é-o-frade(1977), Raul da ferrugem azul(1979),
Bisa Bia, Bisa Bel(1982) e o Príncipe que boceja(2004). Etiene Mendes Rodriguês, em sua
dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Letras/UFPB (2006), também
analisa a obra Bento-que é-bento-o-frade e Bem do seu tamanho.
Escolhemos para comentar o texto “Transição de geração em Bisa Bia, Bisa Bel, de
Ana Maria Machado: as transfigurações do feminino”, publicado no Anais do I Colóquio
Internacional Literatura e Gênero- Piauí, cuja temática se assemelha ao que iremos abordar
nesse trabalho de conclusão de curso. O texto analisa a evolução dos papéis femininos através
20
das personagens Bisa Bia, Bisa Bel e Neta Beta, presentes na narrativa analisada. Essas três
personagens representam épocas diferentes na história. Bisa Bia reproduz o conservadorismo
e o comportamento feminino do final do século XIX e início do século XX. Já Isabel busca
destacar os comportamentos da mulher contemporânea, “em transição”, da segunda metade do
século XX. E Neta Beta esboça o modelo feminino “inovador” do século XXI. O trabalho
busca apresentar os três estágios da mulher na história, os conflitos e as transições entre as
gerações do passado e a futura. Para isso, a pesquisa utilizou como pressuposto teórico a
noção de sequência de geração de Paul Ricoeur (1997).
Cabe ressaltar, que os trabalhos que analisam as obras dessa escritora não se limitam a
esses mencionados anteriormente, visto que seus textos são conhecidos e prestigiados tanto no
Brasil, quanto no exterior.
21
CAPÍTULO II
CRÍTICA FEMINISTA
“Quem bebe dessa água do feminismo na sua filosofia e
prática não fica imune as mudanças...”
Ieda Batista4
As mulheres durante muito tempo foram consideradas como seres inferiores e
submissas, destituídas de poder, tanto no seio familiar, quanto na participação política, social
e educacional. A condição de subjugada das mesmas era atribuída, pelos discursos religiosos,
à vontade divina, que destinava a elas a função de reprodutora da espécie humana, por isso,
deviam dedicar-se exclusivamente ao casamento, marido e filhos, pois eram criadas e
educadas para tornarem-se “rainhas do lar”, limitando desta forma seus horizontes do
conhecimento intelectual, já que não tinham acesso à educação e eram, consequentemente,
excluídas do mundo do pensamento.
Na busca pela superação das relações hierárquicas entre homens e mulheres, surgiu o
movimento feminista, caracterizado pela auto-organização das mulheres, que lutavam contra a
opressão, rompendo com o silêncio e almejando a ampliação dos seus direitos civis e
políticos, por tanto tempo contestados, como o direito ao voto, ao divórcio, à licença
maternidade, à igualdade de remuneração, cuja função fosse a mesma, além de uma teoria
feminista acadêmica que pudesse ler os textos literários de uma forma diferenciada. A partir
da década de 1960 do século XX é que multiplicaram-se os grupos organizados que
compunham o movimento feminista. Os referidos grupos surgiram inicialmente nos Estados
Unidos e em seguida na Europa. Apesar das organizações divergirem quanto ao enfoque
teórico do feminismo, tinham em comum algumas reivindicações básicas, que eram
independentes das variações socioeconômicas, políticas e históricas dos diferentes países
engajados nesse movimento. No livro O que é Feminismo, é mencionado de maneira clara o
objetivo do feminismo:
O feminismo busca repensar e recriar a identidade de sexo sob uma ótica em que o
indivíduo, seja ele homem ou mulher, não tenha que adaptar-se a modelos
hierarquizados, e onde as qualidades “femininas” ou “masculinas” sejam atributos
do ser humano em sua globalidade [...] Que as diferenças entre os sexos não se
traduzam em relações de poder que permeiam a vida de homens e mulheres em
todas as suas dimensões: no trabalho, na participação política, na esfera familiar [...]
(ALVES, 1985, p. 9-10)
4
Ferreira, Mary. Polis (Revista Latinoamericana), Feminismo no Nordeste, 2011.
22
Segundo Zolin (2009) o movimento feminista aliado à literatura resultou em várias
polêmicas dando origem a crítica feminista, que é um dos diversos instrumentos de que
dispomos hoje para ler e interpretar o texto literário. Isso ocorreu, porque desde a década de
1960, com o aprimoramento do pensamento feminista, a mulher vem se tornando objeto de
estudo em diversas áreas do conhecimento, como a Sociologia, a Psicanálise, a História e a
Antropologia. Também no campo da Literatura e da Crítica literária, a mulher encontra-se
entre os temas mais abordados nas atividades acadêmicas.
A crítica literária feminista procura meios de ler a literatura, desconstruindo o perfil
discriminatório das ideologias de gênero (oposição homem/mulher) que a cultura vem
construindo ao logo do tempo. Na França e nos Estados Unidos vários críticos (as) feministas,
na década de 1970, incitaram debates em relação ao espaço desprezado à mulher na
sociedade, tendo como objetivo inverter e transformar a condição subordinada da mulher. O
marco inicial da Crítica Feminista5 se efetivou em 1970, com a publicação de Sexual politicis,
de Kate Millet. O texto discute a posição secundária das heroínas nos romances de autoria
masculina, como também discute a predominância do patriarcado - o pai detentor do poder,
que oprime o sexo feminino, além de questões relacionadas à vida civil e doméstica em que a
mulher estava inserida como um ser inferior, dominada por um sistema rígido de papéis
sexuais.
Virgínia Woolf também é considerada uma precursora da CF, a escritora inglesa
escreveu vários ensaios sobre a escrita da mulher. Já a crítica norte-americana, Showalter, em
seus estudos discorreu sobre dois tipos de crítica, a crítica feminista6 e a ginocrítica7. As
francesas Helena Cixous e Julia Kristeva não se detiveram apenas ao campo literário, mas
buscaram na lingüística, semiótica e psicanálise encontrar uma possível linguagem feminina.
No Brasil, por sua vez, Nísia Floresta foi a primeira teórica do feminismo. A republicana e
abolicionista põe em discussão, no seu livro Direitos das mulheres e injustiça dos homens
(1832), os ideais da mulher, tanto no âmbito educacional quanto profissional. “Nísia Floreta
5
A partir de agora a sigla CF será usada para se referir a Crítica Feminista.
Estudo que se dedica a mulheres como leitoras, ocupando-se da análise dos esteriótipos femininos, do sexismo
subjacente à crítica literária tradicional e da pouca representatividade da mulher na história literária. (ZOLIN,
2009, p. 229)
7
Estudo que se dedica a mulheres como escritoras, constituindo-se num discurso crítico especializado na mulher,
alicerçado em modelos teóricos desenvolvidos a partir de sua experiência, conhecida por meio do estudo de
obras de sua autoria. (ZOLIN, 2009, p.229)
6
23
consistiu em uma exceção em meio às mulheres brasileiras sem voz do seu tempo”. (ZOLIN,
2009, p.221)
Enquanto nos Estados Unidos e na Europa, os estudos relacionados à mulher e sua
representação na literatura se iniciaram nos anos de 1970, no Brasil, só em meados dos anos
1980 que são desenvolvidos estudos e atividades nas instituições acadêmicas, considerando
esse tema como objeto legítimo de pesquisa. O crescimento de estudos associados ao tema
Mulher e Literatura no Brasil permite falar, neste início de século, na crítica literária feminista
como algo consolidado.
2.1 Gênero: Categoria dos Estudos Feministas
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.”
Simone de Beauvoir8
As mobilizações e as conquistas do movimento feminista atingiram e influenciaram o
mundo acadêmico, pois os estudos sobre a mulher passaram a questionar modelos de
comportamento impostos socialmente, bem como a existência da subordinação feminina,
discutindo sobre a posição inferior da mulher e o suposto caráter natural dessa subordinação:
Elas [as diversas correntes do feminismo] sustentam, ao contrário, que essa
subordinação é decorrente das maneiras como a mulher é construída socialmente.
Isto é fundamental, pois a idéia subjacente é a de que o que é construído pode ser
modificado. Portanto, alterando a maneira como as mulheres são percebidas seria
possível mudar o espaço social por elas ocupado. (Piscitelli, 2004, apud Rabay,
2008, p.68).
A partir dos anos 1960, as feministas, além das reivindicações sociais e políticas,
procuraram elaborar ferramentas teóricas que pudessem explicar as motivações provenientes
dessa subordinação. Então, criaram um sujeito político coletivo, “as mulheres”, tentando
buscar meios que anulassem tal subordinação, ampliando e legalizando a luta contra a
opressão feminina. A identificação das mulheres como sujeitos políticos coletivos origina-se
da concepção de que existe algo comum às mulheres, incluindo traços biológicos e aspectos
socialmente construídos. A suposta identidade feminina, funcionou como uma estratégia
capaz de unir as mulheres em favor da luta contra as desigualdades sociais e sexuais que as
atingiam.
8
BEAUVOIR, Simone. O Segundo sexo: A experiência vivida. São Paulo, 1967, p. 9. 2ª edição, tradução de
Sérgio Milliet.
24
Para Rabay (2008) foi no clímax das discussões acadêmicas, rejeitando e se opondo ao
determinismo biológico, ou seja, ao uso de termos como sexo ou diferença sexual, que surgiu
o conceito sexo/ gênero, elaborado na década de 1970, pela americana Gayle Rubim, que
priorizava fatores relacionais e culturais na construção social do feminino/ masculino. A partir
disso, o conceito de gênero é usado como a construção social das identidades sexuais,
tornando-se objeto de estudo das feministas. Segundo Zolin (2009):
Trata-se, portanto, de uma categoria que implica diferença sexual. O sujeito é
construído em razão de códigos lingüísticos e representações culturais que o
matizam, estabelecidos de acordo com as hierarquias sociais (p.218).
Ou seja, o conceito de gênero é alicerçado na oposição sexo/gênero; o sexo refere-se
ao aspecto biológico, natural, aliado ao sistema reprodutivo entre homens e mulheres,
enquanto gênero associa-se a um conjunto de atributos, papéis, crenças e atitudes que definem
o que significa ser homem ou ser mulher, caracterizando desta forma, através da construção
social e histórica, a masculinidade e a feminilidade, além de padrões de comportamento,
aceitáveis ou não, tanto para homens quanto para mulheres.
Segundo Gouveia (ISMAEL, CAMINO, 2008) os padrões de comportamento podem
ser compartilhados e absorvidos socialmente como crenças que, ao analisá-las em
determinadas épocas e lugares, parecem próprias da natureza humana, como por exemplo, a
crença de que a subordinação é natural da condição feminina. Esse aspecto de crença conduz
o indivíduo a considerar determinadas categorias sociais menos merecedoras dos direitos
humanos, políticos e sociais do que outras. Na categoria feminina, por exemplo, é o gênero
que marca essa condição de inferioridade. Para Franzoni (2009) os estudos de gênero
englobam um outro aspecto importante que também deve ser levado em consideração:
Outro aspecto importante abordado pelos estudos de gênero foi a inclusão da
categoria ‘geração’, neste sentido concordo plenamente com Alda Motta (1991, p.
191), ao afirmar que ‘gênero e geração’, como dimensões fundamentais de vida
social, correspondem a categorias básicas- e mutuamente articuladas- da análise das
relações sociais. (p. 29)
Nesse sentido, cada indivíduo experiencia comportamento, sexualidade e atitudes
referentes à sua época, a sua cultura e ao grupo social ao qual o mesmo está inserido,
procurando se adequar às mudanças das gerações, já que a história e a cultura são elementos
dinâmicos, em constante transformação, resultantes das relações humanas, ou seja, à medida
que as sociedades e os papéis se transformam, consequentemente a cultura na qual o indivíduo
está inserido também é transformada.
25
Teixeira de Amorim (2011), em seu artigo, “Gênero: uma construção do movimento
feminista?”, explica qual a perspectiva e a luta central do feminismo hoje, no século XXI,
tomando como categoria o gênero:
A luta central do feminismo hoje, não se limita à abolição das distinções criadas pela
cultura brasileira ao longo de sua história, destacando-se aqui a do sexo (...). Para
que cada sujeito social encontre o seu respectivo lugar, sem que haja a marca
discriminatória dos aspectos de cor, idade, sexo, dinheiro, não se pode prescindir do
reconhecimento dos atributos humanos. Portanto, a categoria gênero e sua
perspectiva de análise centrada nas relações sociais se mostra fundamental para a
sociedade do século XXI. (p.10)
Não busca-se estabelecer formas de comportamento padronizados para homens e
mulheres, mas sim almeja-se padrões de comportamentos universais, que expressem “traços”
e “características” que compõem o indivíduo em sua totalidade, implicando uma padronização
humana, desvinculada das diferenças de sexo, O feminismo, portanto, é um movimento
inclusivo, que luta por um mundo no qual ser homem ou mulher não faça a mínima diferença.
26
CAPÍTULO III
BISA BIA, BISA BEL: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE
“Vou descobrindo que dentro de mim é uma verdadeira
salada”
(Machado, 2000, p. 54)
Justamente a partir dos anos 1980, quando efetivamente se consolidaram no Brasil os
estudos relacionados à mulher e sua representação na literatura, surgiram obras em que as
personagens femininas mirins, no campo da literatura Infantojuvenil, ganharam destaque,
dentre essas obras encontra-se BB, de Ana Maria Machado, que tem como protagonista mirim
Isabel9. A personagem – narradora, Bel, vive um processo de autoconhecimento que ocorre
mediante o diálogo estabelecido entre Bisa Bia, bisavó de Bel, e a Neta Beta, bisneta de
Isabel. A garota vive um dilema entre as duas vozes, que representam visões divergentes da
mulher: uma tradicional, Bisa Bia, característica do século XIX; outra autônoma e em
transição, Bel, do fim do século xx; e uma terceira, Neta Beta, contemporânea e inovadora,
perfil do século XXI. Em relação às questões sobre o sujeito feminino, discutidas na obra BB,
Zilberman ressalta o seguinte:
Bisa Bia, Bisa Bel é o que se poderia chamar de livro feminista, não apenas porque
traduz o processo de independência da mulher ao longo da história... (...). Mas
também porque elege um ângulo feminino para traduzir essas questões, revelando
como o processo de libertação nasce de dentro para fora, não por ensinamento, mas
enquanto resultado das experiências vividas. (2005, p.85)
As três personagens que representam os sujeitos femininos em três épocas distintas na
história, deixam transparecer que a sequência das gerações não se limita apenas à uma
substituição de comportamentos e cultura, visto que a diversidade de pensamentos
compatíveis ou divergentes, se entrecruza e influencia, no período de transição. É como se
uma geração, na fase de transição, carregasse consigo a “bagagem” da anterior e, ao mesmo
tempo, estivesse disponível às “novas possibilidades”.
Escolhemos como objeto de estudo para essa monografia, a transformação do sujeito
feminino de acordo com as mudanças das gerações, tomando como foco as personagens Bisa
9
Isabel, também conhecida como Bel na obra Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado (2000).
27
Bia, Bel e Neta Beta. Para isso, teremos como pressuposto teórico a CF, especificamente a
concepção de “gênero”.
3.1 Bisa Bia: mulher tradicional
A personagem Bisa Bia refere-se ao modelo de comportamento feminino em que a
mulher era a “rainha do lar”, que encontrava no casamento sua única alternativa de existência,
mesmo que fosse na condição de subjugada, pois no século XIX as mulheres eram educadas
desde cedo a se dedicarem exclusivamente ao casamento, e eram vistas como reprodutoras da
espécie humana. A “valorização” da mulher restringia-se aos méritos na função de mãe,
esposa e rainha do lar. Caso se desvirtuassem do que era exigido, segundo a tradição religiosa,
elas estariam violando a ordem natural das coisas:
A mulher que tentasse usar seu intelecto, ao invés de explorar sua delicadeza,
compreensão, submissão, afeição ao lar, inocência de ambição, estaria violando a
ordem natural das coisas, bem como a tradição religiosa [...]. Relembra
insistentemente à esposa sua condição de dependente e submissa, recomendando-lhe
o uso constante da aliança de casamento.
(ZOLIN, 2009, p.220)
A mulher era subjugada por ser considerado um ser secundário e inferior, destinava-se
apenas à maternidade, à família e ao lar. Essas condutas são apresentadas pela personagem
Bisa Bia, quando ela diz à Isabel:
Menina de sua idade não devia estar pensando em namoros, isso não fica bem.
Menina de sua idade deve é brincar de roda, fazer comidinha, pular amarelinha,
costurar roupa de boneca [...] (MACHADO, 2000, P.39)
Isso leva a constatar que no período que Bisa Bia vivia, as meninas eram educadas e
incentivadas às brincadeiras, como “comidinha” e “costura de roupas de boneca”, assumindo
comportamentos fixos e considerados pertinentes ao sexo feminino daquela época. Em um
dos diálogos entre Isabel e sua bisavó, elas conversam sobre casamento e Bisa Bia diz que a
mulher “Casava com quem os pais resolviam” (MACHADO, 2000, p.39). O casamento
arranjado era uma das situações que representava a “mulher sem voz” do século XIX,
28
deixando em evidência a predominância do patriarcalismo10, que envolve a questão da
opressão da mulher ao longo de sua história. O pai, considerado o chefe da família e detentor
da autoridade, era o responsável por escolher o marido da filha, mesmo que fosse contra a
vontade das moças que não poderiam recusar, porque a autoridade do pai era incontestável.
Virgínia Woolf (1882-1941), importante precursora da crítica feminista, na publicação
de seu ensaio Um teto todo seu, afirma que se Shakespeare tivesse uma irmã com talentos
iguais ao dele, a mesma não teria regalias de estudar na escola e viajar pelo mundo: “ Em vez
disso, ter-lhe-iam proibido de ler e escrever e feito dela a noiva de algum negociante
importante, que a tornaria uma respeitável “rainha do lar” (ZOLIN,2009, p. 222). A partir do
discurso dessa autora é notório a posição de subordinação da mulher nesse século de
predominância da ordem masculina e do falocentrismo11.
As mulheres do século XIX, eram obrigadas a compartilhar do pensamento
tradicional, que oprimia o sexo feminino, pois tinham, por exemplo, o seu comportamento,
brincadeiras e modos de se vestir moldados e ditados pela sociedade da época em que estavam
inseridas. A personagem Bisa Bia em um dos diálogos com Isabel, deixa transparecer a não
aceitação de certos tipos de vestimentas femininas, deixando a entender, desta forma, que na
sua época existiam roupas só de meninos e outras só de meninas:
Só depois que eu fiquei conhecendo melhor Bisa Bia é que soube da verdade: ela
não gosta de ver menina usando calça comprida, short, todas essas roupas gostosas
de brincar. Acha que isso é roupa de homem, já pensou? De vez em quando ela vem
com umas idéias assim esquisitas. Por ela, menina só usava vestido, saia, avental, e
tudo daqueles bem bordados, e de babado. (MACHADO, 2000, p. 11)
Essa mentalidade tradicional, que estabelece o que é pertencente ao sexo masculino e
feminino, perdura e é construída socialmente com a ajuda dos pais que, no período de
gestação, já começam a escolher o enxoval da criança, fazendo certas distinções no que se
refere aos brinquedos e a cor das roupas, moldando e socializando desde cedo as crianças em
função dos papéis definidos quanto ao gênero. As meninas costumam usar vestidos e saias,
têm como brinquedos bonecas e panelinhas de cozinhar e têm o enxoval e pintura do quarto
nas cores rosa e lilás. Diferente dos meninos que costumam usar shorts e calças, tendo como
brinquedos carrinhos e vídeo games, e como decoração e pintura do quarto a cor azul. Cláudia
10
Termo utilizado para designar uma espécie de organização familiar originária dos povos antigos, na qual toda
instituição social concentrava-se na figura de um chefe, o patriarca, cuja autoridade era preponderante e
incontestável. ( ZOLIN,2009,p. 219)
11
Termo tomado por algumas escritoras e críticas francesas para desafiar a lógica predominante no pensamento
ocidental, bem como a predominância da ordem masculina. ( ZOLIN,2009,p.218)
29
C. Guerra menciona essa questão no seu artigo “Meninas (os) brincam de carrinhos e de
bonecas”, publicado na revista Idea:
Desde muito cedo, as crianças vão sendo socializadas e passam por um processo de
inculcação sobre os papéis definidos quanto ao gênero: na gestação, a escolha da cor
do enxoval diz simbólica e, por vezes, inconscientemente, de futuras expectativas.
Apesar de os neutros amarelo, verde e branco, ainda há a tradicional presença do
cor-de-rosa (reforçado pelo mercado, mídia e escola) para a menina que entoa
calma, fragilidade, meiguice e o azul para o menino, traduzindo a imensidão sem
limites do céu, dos oceanos, sendo apontada na cromoterapia como a cor da
intelectualidade, da força, da razão. (2009, p.6)
Segundo Guerra (2009) até na utilização e escolha das cores destinadas às mulheres, as
mesmas eram consideradas subjugadas à condição de inferioridade, pois o rosa representa a
mulher frágil, delicada, que necessita ser cuidada, protegida, dominada. Já a cor azul
representa o homem forte, viril, superior, detentor do poder e do saber. A partir disso, fica
evidente que as relações de sexo eram, antes de tudo, relações de poder.
3.2 Isabel: mulher em transição
Diferente de sua bisavó, Isabel apresenta características de uma mulher que oscila
entre o presente, passado e futuro, apresentando atitudes e comportamentos divergentes do
que era imposto pela sociedade do período em que sua Bisa vivia. Enquanto na geração de
Bisa Bia, para uma menina ser uma mocinha bem comportada tinha que ficar quieta e
sossegada, na geração de Isabel as meninas tem liberdade para brincar e se comportar da
forma que lhe proporcionasse felicidade, mesmo que tais brincadeiras fossem consideradas
tradicionalmente como masculinas, por isso, podiam pular, correr e subir em árvore, sem
serem oprimidas pela sociedade na qual estavam incluídas. Apenas Bisa Bia insistia em
impedir esses comportamentos de Bel, considerando-os esquisitos:
Ah, menina, não gosto quando você fica correndo desse jeito, pulando assim nessas
brincadeiras de menino. Acho muito melhor quando você fica quieta e sossegada
num canto, como uma mocinha bonita e bem comportada.
(MACHADO,
2000, p. 18-19)
Para Oliveira (2007) a brincadeira é um instrumento importante e responsável pelo
arraigamento e descoberta dos valores culturais da geração em que a criança está inserida,
pois essa atividade que é natural no período de infância, carrega consigo valores e crenças,
capazes de construir e moldar o indivíduo de acordo com o grupo social que o cerca:
30
O ato de brincar não representa apenas um momento de ócio da criança, ele é normal
durante a infância. Em meio a essa atividade tipicamente pueril, o infante também
descobre os valores do mundo que o cerca e, assim, constrói-se como indivíduo
pertencente a um grupo social. Dessa forma pode-se conceber a brincadeira como
um dos elementos responsáveis pelo enraizamento de valores culturais. (p.23)
É justamente isso que demonstram as brincadeiras de Isabel, deixando transparecer
certa liberdade e autonomia do sexo feminino, que não era tolerada anteriormente, mas que
poderia ser vista e revelada através dessas brincadeiras inovadoras de Bel, que denotam o
perfil e as características da geração e da mulher do final do século XX. Essas características
irão se mesclar aos comportamentos e às atitudes da mulher tradicional e contemporânea,
representadas por Bisa Bia e Neta Beta. É através do contraste das experiências vividas por
Bel (presente), por Bia (passado) e Beta (futuro), que a menina, Isabel, amadurece e rejeita
imposições quanto ao papel de dependência e fragilidade, atribuído à figura feminina. Em
uma das discussões com Bisa Bia, Isabel menciona:
Por isso, ué, se eu não puder fazer minha experiência, como é que vou aprender? –
bem que eu respondo às vezes. ( MACHADO, 2000, p. 30)
Por intermédio desse discurso, Isabel revela-se uma mulher com voz ativa, decidida,
que sabe o que quer, e que não está disposta a se render totalmente aos conselhos e vontades
de sua bisa, pois segundo ela, cada geração carrega consigo novas experiências, e cabia a ela
desfrutar dos conhecimentos e valores de sua sociedade, os quais eram divergentes dos da
sociedade de Bisa Bia. Isabel, desta forma, demonstra mais uma vez que não se enquadra
dentro dos parâmetros da sociedade brasileira do século XIX, mostrando os primeiros traços
de evolução do sujeito feminino. No livro “Mulher, Sociedade, Transição: como o feminismo,
a liberação sexual e a procura da auto- realização alteram as nossas vidas”, Bardwick afirma
que a sociedade nunca imaginou que a mulher pudesse se libertar da opressão que lhe afligia e
dos rumos que lhe eram impostos como destino:
Não passava pela cabeça de ninguém a idéia de que mulher pudesse sair das linhas
pretraçadas e seguir rumos de sua própria escolha, fora das bitolas onde a biologia e
a cultura (ou melhor: a cultura, usando a biologia como pretexto) enquadravam seu
destino. (1981, p. 1)
Isabel, apesar de se opor à mentalidade tradicional, não nega que vive numa transição,
adquirindo experiências da geração anterior e posterior. Desse entrecruzamento de
experiências surgem alguns conflitos em torno da mentalidade tradicional e inovadora,
cabendo à protagonista, Isabel, saber ponderar as idéias de uma geração passada e de uma
31
futura. Em alguns momentos da narrativa, Bel deixa notório o sentimento de dúvida e
confusão em relação às três vozes, a dela, a da sua bisavó e da sua bisneta:
Impossível saber qual o palpite melhor. Mesmo quando eu acho que minha bisneta é
que está certa, às vezes meu coração ainda quer- porque-quer fazer as coisas que
minha bisavó palpita [...] (MACHADO, 2000, p. 53)
Isabel retifica isso quando diz: “Vou descobrindo que dentro de mim é uma verdadeira
salada” (MACHADO, 2000, P.54). Ou seja, a garota percebe que é impossível um indivíduo
viver e se constituir em uma sociedade adquirido uma identidade totalmente pura, visto que a
geração presente, à medida que se projeta para o futuro, carrega em sua bagagem resquícios
da geração passada. Pode-se dizer que não ocorre uma substituição, mas sim um cruzamento
de gerações. Um dos capítulos do livro BB, tem como título “trança de gente”, que nos leva a
interpretar como um emaranhado de gerações representado pelas personagens Isabel, Bisa Bia
e Neta Beta. Em um dos trechos desse capítulo, a protagonista mirim menciona:
Eu, Bel, uma trança de gente, igualzinho a quando faço uma trança no meu cabelo,
divido em três partes e vou cruzando uma com as outras, a parte de mim mesma, a
parte de Bisa Bia, a parte de Neta Beta (MACHADO, 2000, p. 62-63)
No final do século XX a mulher, apesar de viver ainda nessa transição, já demonstrava
liberdade e autonomia para decidir os rumos de sua vida, não mais pautadas e oprimidas pelo
sexo masculino. No que se refere ao casamento, por exemplo, diferente do século XIX, que o
pai escolhia o esposo para a filha e esta tinha que aceitar sem hesitações, no fim do século XX
as “decisões” funcionam de outra forma, pois a mulher moderna escolhe seu pretendente ou se
quiser também tem a opção de não se casar. Em uma das conversar com Bisa Bia, Isabel fala
sobre essas questões:
Hoje em dia, é justamente o contrário. Menina do meu tamanho não casa, não. Mas
namora, se quiser, sabe? [...] E na hora de casar, não são mais os pais que resolvem.
É a gente mesma. Estamos inventando um jeito novo pra essas coisa [...]
(MACHADO, 2000, p. 40)
A mulher, nesse período, ganha mais independência, além disso o casamento é
colocado em segundo plano, pois o sexo feminino deixou de basear sua identidade no papel
clássico de esposa/mãe e passou a construí-la mediante realizações próprias, valorizando e
priorizando sua vida profissional. Também vale ressaltar que nessa época a mulher começa a
neutralizar a figura patriarcal. FIORIN (et al., 2011) em seu artigo “Reflexões sobre a mulher
contemporânea e a educação dos filhos” declara:
Atualmente, a mulher pode optar por casar ou não casar, casar-se e separar-se, ter
um filho sozinha ou mesmo não ter filhos, entre outras possibilidades antes
impensáveis. (p. 4)
32
Bardwick (1981) complementa essa idéia explicando que, atualmente, os homens e
mulheres não estão mais ancorados em uma relação tradicional e monogâmica, mas sim
prevalecem relacionamentos abertos, nos quais solteiros vivem juntos na mesma casa e
casados legalmente vivem em tetos diferentes, demonstrando que as leis já não apresentam as
diferenças de gênero tão marcantes como em períodos anteriores, ocorrendo uma diminuição
do preconceito e discriminação em função do sexo:
Quando percebemos o que está acontecendo entre homens e mulheres tornam-se
bastante claros os conflitos de escolha, as mudanças, os valores tradicionais e os
novos. Hoje, especialmente no casamento, a relação tradicional, engajada e
monogâmica, coexiste com sexo sem envolvimento, casamentos abertos, franco
adultério, altas taxas de divórcio e novos casamentos, um número enorme de pares
solteiros vivendo junto e muitos pares legalmente casados vivendo separados.
Formas de relacionamento progressista e revolucionárias ocorreram
simultaneamente com os vínculos tradicionais. (p. 97)
Essas modificações e transformações ocorridas nesse período, em relação à nova
posição da mulher na sociedade, deixam transparecer o início de uma ruptura dos valores
tradicionais de família e um rompimento com as formas alienadas nas quais o sexo feminino
era sujeitado. A mulher, durante muito tempo, padeceu numa situação de inferioridade e
subordinação masculina, só por volta do século XX é que essa situação começa a mudar e a
mulher passa a ser considerada como um “cidadão” e protagonista da sua história. Isabel, por
exemplo, em conversa com sua mãe, afirma que não quer mudar de sobrenome:
Não quero mudar de sobrenome [...] Já resolvi. O nome é meu. Desde que nasci.
Meu marido ainda nem me conhece. Não tem nada com isso...
(MACHADO,
2000, p.47)
A decisão de Isabel evidencia uma revolta quanto à sujeição da mulher ao marido, pois
ao perder seu sobrenome e adquirir o do seu cônjuge, é como se elas estivessem perdendo sua
identidade, independência e liberdade, ou seja, ao casar a mulher apesar de estar se libertando
do domínio do patriarca da família, acaba se aprisionando e se subordinando mais uma vez à
autoridade falocêntrica do seu esposo. Sendo assim, a rejeição ao sobrenome do marido é um
dos meios encontrados para se sentirem de certa forma “livres” de tais opressões.
As mudanças da figura feminina vão ocorrendo aos poucos na narrativa. A imagem de
Isabel, em determinado momento, é construída por Sérgio, seu paquera, que a vê como uma
menina ousada, corajosa e diferente das que ele já havia conhecido, o mesmo fica admirado e
encantado com as referidas característica da garota. Tal reação e aceitação de Sérgio deixa
claro que o sexo masculino já começa a se render e encarar de outra forma esses novos
33
comportamentos e papéis femininos, sem levar em consideração as relações binárias:
masculino e feminino12; em outras palavras: “coisas de meninos / coisas de meninas”:
-Puxa, Bel, você é a menina mais corajosa que eu já conheci!
Fiquei quieta, o coração batendo forte. Ele continuou:
- E você sobe em árvore feito menino. [...]
Você é mesmo a menina mais legal que já conheci, não é feito essas bobonas por aí,
que parecem que vão quebrar à toa. (MACHADO, 2000, P. 36-37)
Sérgio atribui a Bel a qualidade de corajosa a distingue das demais meninas, já que ela
apresentava características que eram uma exceção na sua época, além disso ele não vê em
Isabel a figura de mulher meiga, sensível e frágil. Percebe-se, portanto, que “à medida que
homens e mulheres começam a se engajar em novas funções e ampliar seu âmbito de
personalidade, novas descrições de masculinidade e feminilidade estão sendo elaboradas”
(Bardwick, 1981, p. 139).
3.3 Neta Beta: mulher contemporânea
Depois da batalha dos sexos travada no século XX, as mulheres tornaram-se mais
decididas e seguras do seu “eu” e da sua capacidade de enfrentar o mundo de igual para igual.
Antes as mulheres eram vistas apenas como provedoras do lar e atualmente são reconhecidas
também como profissionais dotadas de potencialidades, capazes de assumir atividades
profissionais e características pessoais tradicionalmente masculinas. Neta Beta, bisneta de
Isabel, menciona o seguinte:
Eu também sei consertar mil coisas, tenho banca de carpinteiro, adoro mecânica...
(MACHADO, 2000, p. 56)
O século XXI veio repleto de propostas de mudanças para as mulheres, elas foram em
busca de igualdade e, consequentemente, conseguiram uma maior sobrecarga de
responsabilidade. Entretanto, muitas mulheres descobriram com o profissionalismo a
valorização e a realização do seu próprio eu. Algumas delas desempenham as mesmas tarefas
e ocupam os mesmos cargos que os homens, como é o caso da personagem Neta Beta, que é
12
Termo empregado em dois sentidos distintos; a determinação de cada um depende do contexto em que está
inserido: na maior parte das vezes, o termo feminino aparece em oposição a masculino e faz referência às
convenções sociais, ou seja, a um conjunto de características (atribuídas à mulher) definidas culturalmente, por
tanto em constante processo de mudança. Pode referir-se, todavia, simples e despojadamente ao sexo feminino,
ao dado puramente biológico, sem nenhuma outra conotação. ( ZOLIN,2009,p. 218)
34
carpinteira. BASANELLA (2012) em seu artigo “A identidade da mulher do século XXI”
menciona:
As mudanças advindas da sociedade como: movimento feminista, as revoluções
políticas e econômicas contribuíram para que o papel desempenhado pela mulher na
sociedade fosse totalmente modificado. Antes se via a mulher apenas como dona de
casa, cuidando dos filhos, a verdadeira mulher Amélia submissa a tudo e a todos,
esquecendo-se da sua própria felicidade. Hoje em dia a mulher é oposta a tudo isso.
Galga uma carreira qualificada. A mulher moderna exige o seu reconhecimento e
valorização. Tornou-se mais ousada e autoconfiante em busca da sua própria
felicidade. (p. 5)
A mulher contemporânea começa a tomar consciência de que ser profissional também
faz parte de um processo de vida. Sendo assim, começa a se afastar do lar, não mais o
reconhecendo como condição única para sua existência, como ocorria anteriormente. Porém,
apesar da coragem e ousadia, as mulheres ainda continuam recebendo um salário inferior ao
dos homens, ainda que exercendo a mesma função. Alguns cargos, por exemplo, são
reconhecidos tradicionalmente como “lugares” próprios dos homens, refletindo aspectos
culturais de uma sociedade ainda preconceituosa. Pode-se dizer, então, que a igualdade de
direitos profissionais entre homens e mulheres não significou o fim da opressão feminina.
Neta Beta em uma das conversas com Isabel, chama a atenção da mesma a respeito de
seu “comportamento fingido” para agradar a Sérgio, o garoto mais bonito da classe, que ela
tanto gostava de conversar, admirar e agradar:
E você aí, deixe de ser boba, perdendo seu tempo, espetando agulha num pano, só
para agradar um bobalhão que ri de você, só para bancar a menina fina. Para que
fingir? Tem horas que não dá mesmo para fingir. Largue isso e vá fazer alguma
coisa útil. (MACHADO, 2000, P. 49)
A bisneta de Isabel a incentiva a não agir de acordo com o que é esperado pela
sociedade patriarcal, que atribuía ao sexo feminino apenas o papel de mãe e esposa protetora,
que tinha a sua identidade baseada no ideal estereotipado de seus papéis familiares. Neta Beta,
representando a mulher do século XXI, rejeitava alguns comportamentos de Bel
característicos da mulher “prendada”, dominada e subordinada ao homem, criadas, educadas e
incentivadas desde cedo a satisfazerem as vontades e desejos do sexo masculino, deixando de
lado seu “eu” e suas vontades. Sendo assim, Neta Beta deixa transparecer os primeiros
indícios de insatisfação e mudanças do papel da mulher dentro da família. Pois o sexo
feminino desperta uma recusa à sua condição de subordinação a uma identidade alicerçada em
vínculos familiares e começa a dar um corajoso testemunho de sua individualidade, buscando
suas realizações próprias, escolhendo os rumos de sua vida, valorizando-se e colocando o seu
“eu” em primeiro lugar.
35
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na obra Bisa Bia, Bisa Bel é notória a relação estabelecida entre a literatura, os
estudos de gênero e a inclusão da categoria geração, considerados como aspectos importantes
e mutuamente articulados na análise das relações sociais. Tal interação é de extrema
importância por estar contida em uma obra de literatura infantojuvenil deixando claro, desta
forma, que o fato da literatura ser infantil os assuntos e indagações abordados pela mesma não
são pueris e irrelevantes como muitos pensam. E embora o referido livro tenha sido publicado
na década de 1980, os questionamentos de Isabel que se entrecruzam num diálogo entre
presente, passado e futuro mostram-se bastante atuais.
Após a análise conseguimos perceber as transformações da imagem feminina de uma
forma gradativa, de acordo com a geração em que cada sexo feminino está inserido. Também
é notório que uma geração atual carrega resquícios de comportamentos, atitudes e culturas de
uma geração anterior à medida que está disposta e acessível a manter, ao mesmo tempo,
diálogos com a posterior, ou seja, no período de transição entre as gerações ocorrem
divergências e influências entre elas, mas não um rompimento ou uma substituição repentina
de uma pela outra.
Em meio às mudanças, as personagens femininas representadas na obra por Bisa Bia,
Isabel e Neta Beta, vão se modificando e rompendo com a concepção estereotipada de que
mulher é um sexo inferior por natureza, devendo obediência ao ser masculino, reconhecido
como detentor do poder. No que se refere à vida conjugal a mulher ganha mais autonomia e
liberdade para escolher seu parceiro. Em relação à vida pessoal começa a aprender a se
colocar em primeiro lugar, dando prioridade a seu “eu”, suas vontades e desejos. E no âmbito
profissional, inicia um processo de tomada de consciência, reconhecendo o profissionalismo
como um dos processos de valorização e realização do seu próprio eu, assumindo cargos
profissionais tradicionalmente masculinos.
Assim compreende-se que BB é uma obra que almeja ocupar uma posição de destaque
num ambiente político-cultural ainda machista, falocêntrico e patriarcalista. A narrativa
suscita uma crítica cultural e inúmeras discussões a respeito dos valores tradicionais do sujeito
feminino, resultando na meditação sobre a valorização do sexo feminino. BB ocupa um lugar
importante e de destaque no âmbito da literatura infantojuvenil, pois representa com seriedade
36
o novo ideal feminino, que busca, cada vez mais, uma maior autonomia e liberdade, além da
autorealização, lutando por seus direitos e também pela oportunidade de obter sucesso
profissional, tal como ocorre com os homens.
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