Boletim Informativo do Grupo de Trabalho de Igualdade Racial – MPSP nº 2 | São Paulo, 13 de maio de 2015
CONVITE À REFLEXÃO
A segunda edição do Boletim Informativo do GT Igualdade Racial traz artigo escrito pela integrante
do Grupo Amanda Alves Darienzo, que contém importante reflexão sobre a questão do racismo no
Brasil. Boa leitura!
ARTIGO: ESCRAVIDÃO E RACISMO NO BRASIL OU
POR QUE É NECESSÁRIO JOGAR LUZ SOBRE O TEMA?
por Amanda Alves Darienzo *
Navio negreiro – por Marc Ferrez
A foto acima é atribuída ao fotógrafo francês Marc Ferrez. Diz-se que se trata da
única foto de um navio negreiro, e que ela só pôde ser tirada de maneira clandestina.
Talvez uma descrição mais sincera, no entanto, fosse dizer que os acima fotografados eram
os sobreviventes de uma viagem a bordo de um navio negreiro, em um tempo colonial em
que chegar ao destino, no caso, a colônia Brasil, era a primeira de uma sucessão de vitórias
contra a morte que teriam que ser enfrentadas. Talvez, também, fosse mais sincero dizer
que, mesmo quando a escravidão era, mais do que legalizada, prática do Estado, não se
queria projetar luz sobre ela e, portanto, nunca foi fenômeno histórico moralmente
aceitável; era apenas um método capitalista tolerado cruelmente pelas sociedades
coloniais.
Lançar luz, portanto, sobre tudo que envolva e decorra da escravidão é um desafio
desde que a escravidão era oficialmente reconhecida e fomentada. Permaneceu um
desafio no Brasil Império, que precisou das leis do sexagenário, do ventre-livre, da abolição
e da hipócrita (porém importante) pressão internacional, para deixar de aceitar
formalmente a escravidão como forma de trabalho humano (já que dificilmente,
considerando a pouca preocupação estatal com os libertos da escravidão, se pode dizer
que efetivamente objetivou-se o fim do trabalho escravo). E, finalmente, saltando anos de
história, lançar luz sobre os problemas institucionais, sociais e políticos decorrentes da
escravidão permanece um desafio no Brasil contemporâneo.
O Estado e as Instituições reconheceram constitucional e formalmente a imoralidade
da escravidão, mas criaram poucos cenários em que efetivamente buscou-se mexer na
pirâmide sócio-racial do país. Ainda hoje é tabu falar sobre ações afirmativas (conhecidas
por sua plataforma mais polêmica, que são as cotas raciais). Ainda hoje a suprema Corte
do país é acionada para tentar barrar a constitucionalidade do reconhecimento das terras
quilombolas. Ainda hoje se fala mais sobre a exploração do trabalho como consequência
de uma necessidade econômica do que se discute a adequação, moralidade e
humanidade da forma de se trabalhar no mundo.
Igualmente permanente, no entanto, é a luta contra a escravidão ilegal ainda
enfrentada, é a luta contra o racismo, que oprime, que reduz oportunidades e estigmatiza a
população negra; é a luta, enfim, contra toda a sorte de problemas sociais, legais,
institucionais, políticos, econômicos enfrentados por uma sociedade que foi escravagista. E,
portanto, no mínimo, faz-se importante relembrar esta história como forma de resistência e
de reflexão sobre como nos portamos e o que esperamos de uma sociedade minimamente
justa e democrática.
O Grupo de Trabalho da Igualdade Racial tem justamente a finalidade de gerar uma
reflexão tanto pessoal, com aprofundamento do auto-conhecimento e revisão de
comportamento diante do racismo, como produzir uma proposta institucional que
materialmente coloque em prática o que a Constituição Federal formalmente reconheceu
quanto à necessidade de se construir uma sociedade mais justa e equânime.
*Amanda Alves Darienzo é Analista de Promotoria da Promotoria de Direitos Humanos-Área de Saúde Pública.
REUNIÃO EXTRAORDINÁRIA
GT IGUALDADE RACIAL DISCUTE ‘BRANQUITUDE’ EM EVENTO
No último dia 8 de maio, no Auditório Tilene Almeida de Morais,
situado no Edifício-sede do Ministério Público do Estado de São
Paulo, o Grupo de Trabalho de Promoção da Igualdade
Racial, criado pela Procuradoria-Geral de Justiça, recebeu a
Professora Lia Vainer Shucman para sua segunda reunião
extraordinária.
Tais reuniões prestam-se à formação dos integrantes do GT,
permitindo o aprofundamento teórico dos temas racismo e
preconceito racial.
A Professora Lia Shucman é psicóloga e doutora em psicologia
social pela Universidade de São Paulo, com estágio de doutoramento como pesquisadora
no Center for New Racial Studies Institute for Social, Behavioral and Economic Research, da
Universidade da Califórnia.
Ao abrir a reunião, o Procurador-Geral de Justiça Márcio Fernando Elias Rosa disse que
apoia esse tipo de iniciativa e o MP-SP tarda em iniciar um processo de revisão de suas
práticas, porque não haverá nenhum resultado positivo, se as instituições não estiverem
inseridas neste debate. A sociedade não é autossuficiente a ponto de romper esse tipo de
barreira e os homens não são capazes de romper os fatores e barreiras de discriminação e
desigualdades injustificadas isoladamente. Márcio Elias Rosa acredita que as instituições,
sobretudo o Ministério Público, precisam exercer o seu papel para que possam depois cobrar
a atuação do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, das Universidades. Mas, destacou a
primeira obrigação é do Ministério Público.
Para o Procurador-Geral de Justiça, o que muda a vida das pessoas é o seu cotidiano. É a
sociedade que deve mudar as leis, já que leis não mudam as pessoas. O homem caminha
por onde caminham as instituições e a mudança só será possível se as instituições, ditas
democráticas, cumprirem seu papel junto à vida coletiva e daí extraírem exercícios práticos.
A conduta virtuosa não é suficiente para garantir respeito às diferenças e refrear a
intolerância; e concluiu: “a conduta adequada das pessoas não dá segurança para que
tenhamos uma sociedade no mínimo mais justa”.
O evento ocorreu ao tempo em que a Professora Lia estava lançando o livro “Entre o
‘encardido’, o ‘branco’ e o ‘branquíssimo’: Branquitude, hierarquia e poder na cidade de
São Paulo”, fruto de sua tese de doutorado. Em sua exposição, a pesquisadora apresentou
uma rica e interessante síntese de seu trabalho, que se amolda com perfeição ao teor das
discussões havidas no âmbito deste Grupo de Trabalho.
Ao iniciar sua palestra, a Professora lembrou que “o Brasil é um País em que as pessoas
podem ser contra o racismo, achar que o racismo é um mal que deve ser combatido, casar
com negros, ter amigos negros e mesmo assim continuarem sendo racistas, ou seja, o
racismo está nas práticas culturais do sujeito, mesmo daqueles que têm uma consciência
que o racismo é algo maléfico”.
Ao discorrer sobre a denominada branquitude, a Professora lembra que sua base é a
percepção, pelos brancos, dos privilégios que desfrutam por serem brancos. Afinal, em
todos os países em que a ‘branquitude’ permeia as relações sociais, a brancura se
apresenta como um lugar de vantagem dentro da sociedade.
Ao constatar que tal percepção de privilégio é recorrente no cotidiano das pessoas tidas
por brancas, pretende-se que elas assumam uma posição crítica quanto ao racismo
estabelecido na sociedade brasileira.
Sobre a pesquisa, a Professora Lia afirmou que branquitude é o nome dado àquilo que é
chamado de identidade racial branca: há uma diferença entre identidade e
identificações. No conceito da psicologia, as identificações têm a ver com o que o sujeito
ao longo de sua vida vai se identificando como, por exemplo, práticas culturais, religiosas
etc.. Esses fatores não retiram dele a identidade, já que identidade não é o sujeito que
escolhe. Branquitude é diferente de brancura: a brancura tem a ver com a cor da pele da
cada um. A branquitude é a transformação do significado de brancura numa identidade
racial de poder, o que ocorre em sociedades estruturadas pelo racismo. O Brasil é uma
dessas sociedades que tem uma estrutura racista, ou seja, brancura é referente à cor da
pele e branquitude refere-se às relações de poder na sociedade.
A pesquisa foi realizada a partir de entrevistas que a pesquisadora fez com pessoas que se
autodeclaram brancas e que vivem na cidade de São Paulo. Tais entrevistas, que estão
transcritas no mencionado livro, foram trazidas pela palestrante, que leu e comentou
trechos, a partir dos quais se tornou possível perceber o quanto as pessoas têm integral
clareza de seus privilégios e o quanto alimentam, em seus íntimos, estereótipos relativos aos
negros (quanto a estética, acesso a bens e serviços, juízos de valor etc.).
Um branco jamais se preocupa, ao levantar-se pela manhã, com as situações daquele que
dia que nasce nas quais ele será alvo de preconceito racial; um branco que tome a
direção de seu veículo numa estrada jamais cogita de quantas vezes será fiscalizado por
policiais rodoviários até que chegue ao seu destino; uma mãe branca jamais se preocupará
com a reação de seu filho ao ser reiteradamente submetido a revista pessoal por policiais,
ao ir ao voltar para seu trabalho. Todas estas ansiedades e preocupações são recorrentes
dentre os negros brasileiros.
Lembrou, ainda, a Professora, que o conceito de raça não tem qualquer fundamento
biológico, sendo resultado de mera construção sociológica, que leva à distinção entre as
pessoas por força exclusivamente do fenótipo. Por isso, a própria percepção subjetiva do
racismo varia conforme a tez seja mais ou menos escura; conforme o cabelo seja mais ou
menos crespo; conforme apresente a pessoa traços característicos (nariz, lábios) mais ou
menos pronunciados.
Em consequência, pode-se concluir que o racismo não é uma escolha, mas, sim, algo que a
criança aprende desde o nascimento, já que todas as suas vivências são marcadas pelas
diferentes oportunidades na garantia de direitos havidas entre brancos e negros. E é este
aprendizado que naturaliza o racismo no Brasil.
A lição maior que se pode tirar da ótima pesquisa e da exposição da brilhante
pesquisadora é que o racismo é estado de espírito que todos temos que perscrutar em
nossos íntimos, como forma de se evitar as manifestações de preconceito racial, que
tendem a se naturalizar se não forem enfrentados em sua raiz, isto é, no psiquismo formado
sob o pálio da “branquitude”.
Assista aqui a íntegra da palestra da Professora Lia publicada no canal do MP-SP no
youtube.
Veja também a palestra do Professor Silvio Luiz de Almeida, presidente do Instituto Luiz
Gama (ILG), que aconteceu durante a primeira reunião extraordinária do GT-Igualdade
Racial, no dia 09 de março na sede do MP-SP.
AVANÇOS DO GRUPO
Desde a sua criação por Ato da Procuradoria-Geral de Justiça de 24 de agosto de 2014, o
Grupo de Trabalho de Promoção da Igualdade Racial realizou quatro reuniões ordinárias e
já registra avanços, dentre eles: a já autorizada alteração do SIS-MP Integrado para
identificação precisa dos casos de injúria racial; o estudo do Centro de Apoio Operacional
das Promotorias de Justiça Criminais (CAO-Crim) sobre os casos de racismo e injúria racial;
os trabalhos desenvolvidos pelo Núcleo de Políticas Públicas para viabilizar o censo racial de
servidores e membros da Instituição e a continuidade das propostas de capacitação dos
integrantes do GT-Igualdade Racial.
NOVOS PARTICIPANTES
Qualquer Membro ou Servidor interessado pode, a qualquer tempo, integrar o GT Igualdade
Racial.
OBJETIVO DO GT-IGUALDADE RACIAL
O GT Igualdade Racial, integrado por Membros e Servidores do MPSP, tem por objetivo a
formação e a uniformização de entendimentos e proposição de estratégias de
enfrentamento ao racismo por meio de discussões, sensibilização e capacitação dos
interessados, a partir do conceito de Racismo Institucional e suas consequências na
reprodução das desigualdades históricas que atingem a população negra no Brasil.
O trabalho do GT Igualdade Racial pode ser acompanhado por meio do link:
http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Nucleo_Politicas_Publicas/GT_Igualdade_Racial
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Boletim Informativo n. 2