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18 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, domingo, 6 de setembro de 2015
Câncer,um
inimigo pré-histórico
O primeiro caso de tumor maligno em humanos
data de 35 mil anos. De múmias e fósseis, cientistas
buscam pistas sobre a origem e os mecanismos de
um mal ainda não totalmente desvendado
Natural History Museum, London/Reprodução
Pistas vêm de
lesões ósseas
» PALOMA OLIVETO
i n d a hoje, há quem chame de
“doença nova”. Mas essa é uma enfermidade que aflige o homem
desde quando sequer havia palavras para descrevê-la, e feitiços e encantamentos eram as armas que se tinha para
lutar contra ela. O câncer, uma série de
moléstias caracterizadas pela multiplicação anormal de células, acompanha a vida
na Terra — a mais antiga evidência de um
tumor maligno data de 350 milhões de
anos e foi detectada no fóssil de um peixe.
Em seres humanos, um neandertal de 35
mil anos, encontrado em Stetten, na Alemanha, é, até agora, o primeiro paciente
oncológico diagnosticado.
A área da paleoncologia é recente. Foi
criada na década de 1980 por um grupo de
médicos egípcios e gregos, nacionalidades
com tradição milenar no tratamento de
câncer. Papiros dos tempos dos faraós e textos da época dos grandes filósofos traziam
indicações de como lidar com a doença (veja quadro nesta página). O interesse dos
oncologistas nas pesquisas históricas sobre
tumores malignos vai além da curiosidade.
A ideia é de que, do passado, surjam pistas a
respeito do desenvolvimento de um mal
que ainda espera para ser decifrado.
Nos últimos anos, técnicas de imagem
mais sofisticadas têm permitido detectar
diversos tipos de câncer em múmias e humanos fossilizados. Há uma semana, cientistas do Centro Senckenberg de Evolução
Humana e Paleoambiente da Universidade
de Tübingen, na Alemanha, anunciaram a
descoberta do mais antigo caso de leucemia que se tem notícia. Usando tomografia
computadorizada de alta resolução, eles
detectaram indícios da doença em um esqueleto de 7 mil anos pertencente a uma
mulher que morreu com 30 a 40 anos.
“Nós examinamos muitos ossos do esqueleto e constatamos uma perda incomum no interior do tecido ósseo, no úmero superior direito e no esterno”, contou,
em nota, Heike Scherf, cientista que integra a equipe do Centro Senckenberg. De
acordo com Scherf, esses ossos contêm células-tronco hematopoiéticas, aquelas que
darão origem às células sanguíneas; e, neles, a leucemia pode surgir. Ao comparar o
úmero da paciente do neolítico ao de 11
indivíduos escavados no mesmo sítio arqueológico, os cientistas observaram que
apenas o esqueleto da mulher apresentava
a deformidade. Após descartar outras moléstias, concluíram que estavam diante de
um caso de leucemia, embora não possam
afirmar se a paciente morreu em decorrência do câncer.
A
Britânicos acham, em esqueleto medieval, indícios de câncer na perna do tamanho de uma bola de basquete
Na maioria dos casos, os diagnósticos da paleoncologia são feitos por meio da análise de lesões ósseas que podem sugerir metástase. Alguns tumores — mama, pulmão e próstata,
principalmente — costumam se disseminar para o esqueleto, deixando marcas bem características nos ossos. Foi assim que uma equipe de
cientistas portugueses e egípcios descobriu, há
quatro anos, o segundo mais antigo caso de
câncer de próstata já identificado. Eles fizeram
tomografias em três múmias em exposição no
Museu Arqueológico Nacional de Lisboa e encontraram lesões dentro e ao redor da pélvis de
um homem que morreu há 2.250 anos, com idade entre 50 e 60 anos. A localização primária do
câncer foi estimada como sendo a próstata.
Da mesma forma, pesquisadores da Universidade de Jaén, na Espanha, detectaram tumor
maligno de mama em um esqueleto de 4,2 mil
anos que viveu no Egito, durante a sexta dinastia. “O estudo dos restos mortais mostram os típicos padrões de destruição provocados pela
extensão metastática do câncer de mama”, disse, em nota, o ministro de antiguidades do Egito, Mamdouh el-Damaty.
A pequena quantidade de fósseis e múmias
em que é possível identificar as marcas do câncer fez com que, no passado, alguns cientistas
acreditassem que a doença era provocada exclusivamente pela ação humana — seja pela
dieta inadequada, seja pela exposição a poluentes industriais. Contudo, a tese não se sustenta,
principalmente porque já se conhece diversos
genes associados ao câncer. “O aumento da incidência hoje pode estar relacionado a hábitos
do dia a dia, provavelmente pela poluição e pela
alimentação. Mas o fato de que as múmias tinham câncer mostra que a doença é uma coisa
antiga”, observa o oncologista Oren Smaletz, do
Hospital Albert Einstein.
Smaletz também lembra que uma das possíveis causas da falta de fósseis e múmias com evidência do tumor é a baixa expectativa de vida no
passado. “Realmente, hoje, o câncer aumentou
muito. Acredito que isso é porque as pessoas estão se cuidando mais. O câncer, em geral, surge
nos mais idosos. Conforme vai envelhecendo, as
chances de ter a doença aumentam. Os quatro tipos mais frequentes — mama, próstata, pulmão
e intestino — costumam aparecer na meia-idade
porque a imunidade vai caindo e as pessoas ficam expostas aos cancerígenos por mais tempo”,
diz. Antigamente, lembra o médico, problemas
como doenças cardiovasculares matavam antes
que o câncer aparecesse. Agora, como os cuidados com a saúde se intensificaram, vive-se mais,
dando oportunidade para o tumor crescer. (PO)
Dificuldades
Instituto dos Museus e da Conservação de Lisboa/Divulgação
Em cerca de três décadas de estudos nessa área, ainda há poucos achados consistentes, apesar de já terem sido encontradas
evidências de tipos variados da doença, como próstata e mama. Uma limitação é o
próprio processo de decomposição do organismo. “Quando você tem uma lesão óssea, ela é conservada. Mas as partes moles
se degeneram. Nas múmias e nos fósseis,
podem se conservar vestígios de fraturas,
calos ósseos e neoplasias ligadas aos ossos.
Já os tumores de órgãos se desfazem”, esclarece o doutor em patologia anatômica Carlos Alberto Basilio de Oliveira, acadêmico
da Academia Nacional de Medicina.
O diretor da Sociedade Brasileira de Patologia, Ricardo Artigiani, lembra que, no
caso das múmias, os produtos químicos
utilizados no embalsamamento também
atrapalham a busca por tumores. “Mesmo
as que não tinham os órgãos retirados ficaram muito alteradas pelos processos de
conservação e pelo tempo. Em princípio,
seria possível tentar analisar o DNA do tumor de uma múmia para chegar a algum
diagnóstico de câncer, mas isso dependeria
muito do estado de preservação dos tecidos”, observa.
De fato, até hoje, foram feitos apenas
três relatos científicos de cânceres diagnosticados a partir da análise das células
de múmias. Um na década de 1990, encontrado nos restos mortais de uma criança peruana que sofreu um raro tipo de
câncer do sistema musculoesquelético. Os
outros dois eram de carcinomas do reto
que atingiram um cidadão egípcio do século 3 ou 4 a.C., e Ferrante I de Aragão, rei
de Nápoles no século 13.
Tomografia da região lombar de múmia com 2.150
anos mostra lesões de um câncer de próstata
O aumento da incidência
hoje pode estar relacionado
a hábitos do dia a dia,
provavelmente pela poluição
e pela alimentação. Mas o
fato de que as múmias tinham
câncer mostra que a doença
é uma coisa antiga”
Oren Smaletz,
oncologista do Hospital Albert Einstein.
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