ACADÊMICA
Aqui o mundo já não é mais cinza
Edição inaugural
ANO I - número 01
Julho 2015
Academia de Letras dos Estudantes da
Universidade Mackenzie
Ad Immortalitatem
SUMÁRIO
Membros da Academia de Letras..... 04
Descrição da Academia..................... 06
Carta de dois acadêmicos.................. 07
Edital.................................................. 11
Prefácio.............................................. 12
Poesia................................................. 14
Conto................................................. 30
Matéria.............................................. 46
Membros da academia de letras - 1º semestre/2015
Cadeira
patrono
Titular da cadeira
1
Dante Alighieri
2
Gregório de Matos
3
Luis Gama
4
Álvares de Azevedo
5
Machado de Assis
6
Anton Tchekchov
7
Monteiro Lobato
Cadeira Vaga
8
Fernando Pessoa
Cadeira Vaga
10
Mario Quintana
11
Evandro Lins e Silva
12
Jorge Amado
13
Nelson Rodrigues
14
Clarice Lispector
15
Lygia Fagundes Telles
16
Antonio Carlos Jobim
17
Ferreira Gular
18
Roberto Piva
Aurélio Tadeu Luiz Barbato
(Direito - 10º sem)
Danilo Souza Costa
(Direito - 5ºsem)
Cadeira Vaga
Arthur Fernandes Guimarães Rodrigues
(Direito - 8º sem)
Gabriel Possamai Boneto
(Direito - 9º sem)
Ana Paula Ricco Terra
(Direito - 3º sem)
Marco Antônio Ferreira Lima Filho
(Jornalismo - 4º sem)
Bruna Bianca Brandalise Piva
(Direito - 4º sem)
Larissa Martinez Arten
(Letras - 7º sem)
Leonardo Mariuzzo Plens
(Direito - 4º sem)
Aidil Prado
(Direito 3º sem)
Helena Roldan Antunes
(Direito - 4º sem)
Wilson Victorio Rodrigues
(Direito - 9º sem)
João Carlos Lopes da Silva
(Direito - 5º sem)
Vanessa Ferreira de Almeida
(Direito - 5º sem)
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Membros eméritos (conselho de veteranos)
Felipe Righetti Ganança (Direito - Formado)
Karina Azevedo Simões de Abreu (Direito - Formada)
Leonardo Ribeiro (Direito - Formado)
Membros honorários
Guilherme Ramalho
Presidente da ABAMACK
Desde 2014
Armando Iazzetta
Antigo membro da Academia (1956) - Direito Mackenzie
Desde 2014
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DESCRIÇÃO DA ACADEMIA
A
Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie nasceu em 1956 por
iniciativa dos estudantes da Faculdade de
Direito que, unidos pela alma exploradora dos primeiros anos da Universidade, resolveram fundar
uma entidade capaz de desenvolver o espírito literário dentro dos diversos cursos da instituição. Após
as primeiras décadas, a Academia perdeu adeptos e
acabou se tornando uma instituição sem membros
ativos. Nesses anos, diversas ações foram executadas com o objetivo de reerguê-la, mas, em 2012,
por iniciativa do Centro Acadêmico João Mendes
Jr., órgão de representação estudantil da Faculdade
de Direito do Mackenzie, finalmente, a Academia
de Letras foi refundada. Atualmente, a Academia
conta com 40 cadeiras, ocupadas exclusivamente
por estudantes dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade. Após a formação, os membros compõem o Conselho de Veteranos, em número infinito. A finalidade da Academia de Letras dos
Estudantes da Universidade Mackenzie é fomentar
a produção e o debate literário dentro da Universidade, contribuindo para o desenvolvimento pleno
dos estudantes e da literatura nacional.
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| CARTA DE DOIS ACADEMICOS |
Caro leitor, eis agora, em suas mãos, o primeiro volume da
revista da Academia de Letras dos Estudantes Mackenzistas.
Desfrute! Aprecie os textos! Esses são nossos pedidos nem tão
humildes assim a você, leitor. Esperamos que, acima de tudo,
essa primeira edição da revista possa tirar você, nobre e tão importante figura anônima, da passividade e lhe transforme, por
pelo menos um momento, em um sujeito ativo. Estar em atividade. Eis o que é literatura.
Mas afinal, o que é essa tal literatura?
Literatura é um dos entes mais antigos do mundo, que acompanha o homem desde os tempos das cavernas, considerando-se
que, desde o nascimento da simbologia, nasceu também a nossa amada literatura. O homem sempre sentiu a necessidade de
relatar para os outros a sua rotina. Por isso, interferiu artisticamente nas rochas cavernosas, com pinturas rupestres, que relatassem o seu cotidiano. Este fora, sem dúvida, o primeiro jeito
de comunicar algo, de passar uma mensagem sem a necessidade
de falar ou expressar sinais corporais. É nesse período que o homem passou a relatar a sua extraordinária (ou banal, há quem
diga) vida em pinturas.
E poderia ter parado por aí, mas evoluímos. Milhares de anos
após o surgimento das pinturas rupestres, surgira a linguagem
escrita, a partir de um precioso trabalho imaginativo. Escrita:
um símbolo imaginado, a priori, cuneiforme. Em vários países
ganhou diferentes formatos: no Egito antigo, era representado pelos hieróglifos, no Japão, por ideogramas, como ainda o
é. Além de inventar essa forma de linguagem, inovando na comunicação, e podendo relegar e propiciar ao mundo o avanço
da tecnologia, o ser humano descobriu, concomitantemente,
seu poder de imaginar. Com ele, anos após, veio, finalmente, a
literatura (dessa vez, a literatura propriamente dita). Os escritores clássicos da Grécia antiga e suas epopeias homéricas. Sendo
tais epopeias, nada mais que um fato verdadeiro projetado em
uma história imaginada, o ser humano escritor passou a imaginar a sociedade enquanto fazia literatura. Desse trabalho, veio
a Utopia, um jeito novo de pensar a realidade, um jeito, como
o próprio nome diz, utópico. Nada além de um sonho. Então, o
ser humano passou a imaginar a sociedade de forma diferente.
Hoje, um dos prismas da literatura é justamente esse: imaginar a
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sociedade diferentemente do que ela é no plano atual. Boa parte
desses escritores, sonhadores alados, percebeu que o seu trabalho podia mudar o mundo, mudar a realidade, mudar a sociedade e, quem sabe, satisfazer uma antiga utopia. Porém, como
a sociedade sempre foge de ter seu status quo alterado, aqueles
que quiseram mudar, foram logo tachados de loucos. Autores de
livros que ainda são considerados polêmicos pagaram um preço caro por sua imaginação, por sua sede de mudança: muitos
acabaram morrendo loucos ou isolados em manicômios e outros
tantos, pagaram o preço com a vida. Mas, graças ao trabalho
desses bravos homens e mulheres, que se tem o acesso livre e irrestrito às suas obras que restaram, percebemos que elas propiciaram e propiciam cada vez mais a alteração da sociedade, uma
verdadeira evolução e revolução, colimando um mundo melhor.
Vivemos um dos melhores momentos literários da história,
no sentido de termos maior liberdade para escrever. À custa de
movimentos literários que revolucionaram a literatura em toda
a sua amplitude, ela tornou-se, de fato, universal (será que existem extraterrestres escritores?). Toda e qualquer pessoa pode
escrever. Tudo é literatura. Todos são literatos. Todos são escritores, mesmo que alguns não se deem conta. Algumas pessoas contam vivências que, para o homo urbanus, bicho criado e
vivido sempre no seio da sociedade, parecem verdadeiramente
incríveis. O extraordinário da vida comum. Que dizer daquele
pescador ribeirinho, de seus 80 anos, sempre em contato com a
natureza bruta e com pouquíssimo contato com a vida urbana,
analfabeto, que tem tantas histórias de vida que dariam livros
recheados daquilo que Rolando Boldrin, grande nacionalista,
chama de causos. O que são causos? Literatura pura de pessoas
não instruídas. As formas livres, a ausência de rigorismos e os
novos movimentos puderam transformar todos em escritores.
Todos são poetas. Atualmente, tudo é poesia. Viva a liberdade
literária, em detrimento do elitismo literário de outrora!
Apesar de todos os inegáveis avanços, a literatura hoje também vive um momento tenso, algo quase que paradoxal. O fascínio da humanidade pelo que é escrito está desaparecendo. Ao
termos um mundo totalmente desenhado, infestado por televisões e cinemas, o que, per si, são coisas boas, porém, com o uso
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abusivo que tem ganhado ao longo dos anos, acabam destruindo o impacto que a literatura tivera outrora. O proletário, tão
explorado no seu trabalho, em troca de algum mísero dinheiro,
não mais que necessário para garantir a sua desgraçada subsistência, quase sempre perde o tempo destinado à nossa querida literatura. Pior. Chaplin, em Tempos Modernos, demonstrou
perfeitamente a alienação causada pelo trabalho. O trabalhador
massificado, hoje, quase nunca tem uma cabeça aberta e disposta à literatura. Ler tornou-se um fardo, pesado e cansativo,
sem recompensas. As pessoas, (não só trabalhadores, inclusive,
pasmem, estudantes), alienadas, não conseguem mais imaginar.
Ironicamente, mais do que nunca, a indústria cinematográfica
tem sobrevivido graças às adaptações literárias. Isso porque encontrar roteiros inéditos e criativos se tornou uma dificuldade, o
que nos faz cair em um mundo de readaptações literárias, onde,
muitas vezes, filmes adaptados apresentam discrepâncias astronômicas com a obra que os precedem. O que é indiferente para a
massa que não conhece o trabalho que o antecedeu. Porém, para
um grande fã de literatura e conhecedor da obra, é uma afronta.
Esta falta de imaginação cria uma situação perigosa: uma
verdadeira armadilha. Muitos best-sellers não passam de cópias
descaradas de livros pretéritos. Ontem e quase que ontem mesmo, a moda fora a literatura erótica. Primeiro surgiu uma autora,
que fez sucesso com uma dita trilogia picante. Logo após, inúmeros títulos, que seguiam esta linha, começaram a ser vendidos
e a ganharem lugares de destaques nas prateleiras das livrarias.
Inclusive, quem escrevia esses livros conquistou um lugar, quase
que roubado, em feiras literárias, que, infelizmente, tornaram-se um evento elitista, aberto a escritores vendedores em massa,
e sempre a mesma patacoada já vista anteriormente. Agora, a
moda é a literatura distópica de adolescentes: um quase plágio
a um mangá, depois inúmeros livros sobre a mesma temática e
o pior, sem um aprofundamento maior e sem diferenciais para
com o “original”. A literatura, pode-se dizer, tornou-se, como a
agricultura, a espera da safra. Parece que os autores, em busca
do que dá mais dinheiro, escrevem livros sintéticos e sem profundidade sobre o tema da moda. Esta tão vil estagnação criativa tem só gerado problemas, não só no mundo literário, mas na
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própria indústria cinematográfica, no mundo tecnológico, nos
quadrinhos (que, desafiando os puristas, são sim literatura e,
muitas vezes, duma literatura mais densa, profunda, impacta e
pesada que muitos livros escritos), dentre outros muitos ramos
da invencionice humana. Falta sensibilidade aos escritores de
ver o mundo que os cerca e mostrá-lo em todas as suas nuances e
entranhas, ou lhes falta à sensibilidade de captar um imaginário
repleto de poesia, em que se revelaria o que queremos ser ou o
que poderíamos ter sido. Falta o fantástico. Falta o novo, aquilo
que nunca se viu, ou que há muito não se via. A literatura é a
primeira a ver o mundo e a reproduzi-lo. Como algumas figuras,
ilustres ou não, dizem, “literatura é um soco no estômago”.
É isto que nós, escritores, aqueles que tentam enxergar o
mundo e a sociedade, em todos os seus prismas e os traduzem
de maneira escrita ao papel, temos de fazer. Afinal, se ficarmos
silentes, o que se encontra lá fora continuará o mesmo. Chocar.
Provocar mudanças. Tirar a literatura da inércia, tirar o leitor de
sua zona de conforto e colocá-lo no meio do furacão para que
saiba o que acontece aqui e agora. Para que ele aprove ou reprove.
Para que ele seja mais uma peça importante na mudança, afinal,
literatura não é perfumaria, literatura é a representação gráfica
escrita da realidade. Um bom observador, como deve ser um escritor, sabe que a realidade é feia e que tem de ser mudada. Por
fim, é isto que esta revista pretende: trazer o novo ou inspirar
e convidar a batalhar com a gente por esse novo, recuperar o
pretérito que é de qualidade e necessita ser revisitado, instigar o
leitor, tirá-lo da sua inércia e da sua segurança, provocar reações,
propiciar a mudança social.
Este primeiro volume contém o que se deve esperar da literatura. Por isso, encarecido leitor, eis os nossos votos. Boa leitura!
P.S. Se quiser um cantinho ao nosso lado, não se esqueça de
participar da próxima seleção para a Academia de Letras dos Estudantes do Mackenzie. É convidado a batalhar conosco!
Ana Ricco Terra e Gabriel P. Boneto
Membros da Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 10
EDITAL
A Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie comunica a todo o corpo discente da
Universidade que foi publicado o Edital para composição das 10 vagas abertas na Academia.
Art. 1º O processo seletivo para seleção dos 10 (dez)
membros da Academia de Letras dos Estudantes da
Universidade Mackenzie será conduzido por Comissão Eleitoral indicada pelos atuais membros.
Art. 2º. Estão aptos para participar do processo seletivo os estudantes dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Art. 3º. Os candidatos deverão entregar, entre os dias
10/08/2015 a 24/08/2015, na Secretaria do Centro
Acadêmico João Mendes Júnior, envelope lacrado,
endereçado para a Academia, contendo:
I – Folha com nome completo, idade, curso, semestre,
turma, número de matrícula, e-mail, telefone.
II – Carta de motivação.
III – 3 (três) textos de sua autoria, de qualquer natureza, com limite de 10 (dez) páginas cada.
IV – 1 (uma) crítica sobre qualquer livro de literatura,
com limite de 5 (cinco) páginas.
Art. 4º. A Comissão de Eleição divulgará o resultado
até o dia 01/10/2015.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 11
Prefácio
Por quê ?
Por Armando Iazzetta Filho - Fundador da Academia de Letras do Mackenzia em 1956
O termo ACADEMIA é por demais conhecido no linguajar
moderno como indicativo de cultura física. Quando ouvimos
“hoje vou à academia” ou ainda “hoje tenho academia”, entendemos “ hoje vou fazer ginástica”. Temos um corpo e precisamos mantê-lo sempre hígido e saudável.
O nosso vernáculo, através do qual nos comunicamos e nos
fazemos entender, também precisa de exercícios e aprimoramentos. O nosso idioma, como todos os demais, é um elemento
vivo e dinâmico. Não basta aprendê-lo nos bancos escolares, é
preciso cultuá-lo.
Em que lugar? Nas escolas aprendemos a usá-lo. Nas Academias de Letras vamos exercitá-lo e aprimorá-lo. É nelas que
os grandes escritores se reúnem e dão novas formas a nossa
linguagem, através de suas obras literárias.
É fato noticiado que nossas escolas não estão conseguindo
ensinar os jovens a se expressar através de linguagem escrita.
Esse fato explica a quantidade de notas ZERO atribuídas às redações solicitadas pelo ENEM em 2014. Algumas centenas de
milhares, sem contar as notas sofríveis.
Então, a resposta à pergunta POR QUE? Porque a ACADEMIA DE LETRAS DOS ESTUDANTES DA UNIVERSIDADE
MACKENZIE, pioneira entre estudantes, visa a preparar seus
membros graduandos das diversas Faculdades, para o trato
com a língua portuguesa. Não adianta sair bem preparado tecnicamente de uma profissão e não conseguir expressar corretamente as suas ideias. Um advogado, um administrador, um
publicitário etc que não se expresse em suas petições, relatórios ou textos, dificilmente conseguirá vender seu trabalho.
Conclamamos os estudantes da Universidade Presbiteriana
Mackenzie a procurarem a Academia de Letras e passarem a se
acostumar com os saraus literários que muito acrescentarão à
sua vida profissional.
Esperamos por vocês em nossa ACADEMIA. Participem.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 12
Prefácio
A REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DOS ESTUDANTES
DA UNIVERSIDADE DO MACKENZIE
Por Guilherme Ramalho Netto - Menbro Honorário da Academia e 1º Presidente da ABAMACK
Inicialmente, merece todo o aplauso a iniciativa da Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie de
publicar esse número da Revista. As palavras são insuficientes
para destacar a importância da atividade literária para o desenvolvimento das pessoas. Especialmente, através da literatura,
diretamente ligada aos valores humanistas, que nos vêm através dos bons autores, formadores que são, especialmente da
juventude universitária, como arte, virtude e ciência de pensar, e de se expressar com clareza e elegância (art. 205 da CF).
Está aí a missão da Academia, agora restaurada em boa hora
pelos estudantes do Mackenzie, sensíveis à importância das letras para nossa formação como pessoas, o que muito ajudará
nossa vida em sociedade, especialmente, como profissionais do
direito. Tenho que os valores universais da bondade, humildade, respeito, responsabilidade, bons sentimentos, solidariedade, raramente podem ser desenvolvidos sem a contribuição da
literatura. Não há literatura sem leitura atenta e refletida.
Também, cabe registrar que a leitura no silêncio, refletida, é
insubstituível no papel de ordenar nosso pensamento e nossos
sentimentos, o que muito nos enriquece como pessoas.
No ensejo do lançamento da Revista, desejo que a Academia
e a ABAMACK sejam coirmãs e parceiras no ideal de cultura, a
serviço dos universitários e, depois, dos graduados e pós-graduados, no exercício da cidadania, com base no valor supremo,
dignidade da pessoa humana, nos aspectos físico, cultural, espiritual e social.
É o que desejo, AD IMMORTALITATEM.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 13
Poesia
fragmentos
Por Aidil Prado
O que será que me vai na alma, que sinto o que não posso explicar?
Enrubesce-me a face, umedece minhas mãos, dilata minhas pupilas
Faz meu coração célere, minha voz estremece...
O que posso fazer com esse sentimento que cresce dia-a-dia?
Será uma fagulha de amor que se acende?
Será um misto de desejo e querer?
Será uma ilusão que me preenche as horas furtivas?
O que será de meus passos que insistem em ir em sua direção?
Deixam-me desorientada, me fincam diante de ti
Fazem meu bom senso rir de mim?
O que posso fazer para arrancar você de minha pele?
Se teu cheiro tornou-se permanente
Se tuas mãos insistem em me prender
Se meu coração não está mais no meu peito?
O que será de meus dias se você não pode estar comigo?
Se não houve promessas
Se não existiram encontros
Se você dista em demasia da minha vida?
O que posso fazer com esse desalento que me tira o sono?
Se te desejo mais do que qualquer desejo,
Se te sinto em cada instante de meus dias,
Se minha noção de realidade perdeu-se de mim?
O que será do nosso (meu) amor?
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 14
Poesia
joão
Por Aidil Prado
Julgo tão ímpar ser você
outrora um menino e hoje homem feito
antes apenas um rabisco do que seria amanhã
ou o que galgaria no futuro distante, pensaria.
Logo a distinção se fez entre o menino e o homem
os traços firmes que pouco a pouco perfazem cada passo
pela estrada da vida seguem irrepreensíveis
entre tantos outros meninos que esperarão ser como você
ser humano íntegro e feliz.
deixe sempre o riso aflorar
e faça de cada desafio um caminhar adiante.
Junte todas as pedras que possam surgir
agarre-as e deposite-as na memória
garanta que somente bons ventos
únicos soprarão em sua vida
ainda que tentem desviar seu trilhar
quando achar que nada mais existe
uma nova esperança diferenciará novamente
a alma do homem da do menino
reto, coerente, simples, apaixonado
absoluto em busca sempre de si mesmo.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 15
Poesia
querer
P or Aidil Prado
Como posso refrear-me
diante de tão doce querer
que tira minha fome
dispara meu coração
desnorteia meus sentidos?
Como posso concentrar minha lógica
diante do seu rosto
que me atrai como ímã
inunda meus olhos
acentua minha incoerência?
Como posso acautelar-me
diante dos seus passos lânguidos
que flutuam diante de mim
permeando minha existência
abalando minha estrutura?
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 16
Poesia
agridoce
Por Arthur Fernandes Guimarães Rodriguez
Enquanto embriagante noite me aflige
em devaneadas horas, desespero,
coçando em calafrios, boca à laringe
engasgam orações de ecoado apelo.
E quão frígidas mãos tocam seus seios?
Contraindo o visceral pesar do perdão,
os lascivos dedos de castos receios,
mergulham sobre montes de ilusão.
Voluptuoso silêncio adentra o quarto,
consumindo qualquer vão sobre a pele
limbo que mais conforta do que fere.
Dentro do ermo amalgamo me farto,
Saliva amarga, crostas desse beijo.
Agridoce a quimera do desejo.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 17
Poesia
Soneto em dor maior
P or Arthur Fernandes Guimarães Rodriguez
Tarde cai sobre lágrima sovina,
amadurecem vigas. Um firme esteio
nas palavras vadias de teu gorjeio,
como em um ramo abrolhado que me abomina.
E cálida, a menina entre meus braços
entretecendo insídias, por que me fere?
Em arcadas mãos que cavam fundo a pele.
Tão vil camponesa de arados devassos.
Vi no verde anil pálido do seu rosto
enrubescer bochechas, em maduras
maçãs áureas, paliando amargo gosto.
Sobre oposto que nego, rupturas
dentro do meu pulsante cismo exposto.
Rápidas palavras brandas, lentas criaturas.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 18
Poesia
Ode aos formandos
Por Aurelio Tadeu Luiz Barbato
Repicam os sinos todos em festa
pelos que cingem o capelo à testa.
Quem eles são?, perguntarás desconfiado;
aí vem os triunfantes, responderei admirado.
São heróis de luta árdua e severa,
a labutar contra dura e prisca fera.
Dia após dia, contra a própria mente,
conhecendo toda a terra e gente.
E por que são sisudos?, indagas;
porque sabem as agruras da vida,
e de todo o Estado, as chagas.
E o que farão por nós?, desafias;
terão por justiça estandarte;
serão da lei dos homens vigias,
a libertar o povo em qualquer parte.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 19
Poesia
amor e armadura
P or Danilo Souza Costa
E aí J. Sá o que me diz, da parte e do todo da parte,
A guerra do Guerra no mundo: sua tinta, mensagem e arte?
Pus-me a pensar se sabia o todo da parte que sei
Talvez sem saber não diria, de Boca do Inferno a rei
Então promoveu mais alguém e achava que ele entendia
Sua ideia do todo e da parte na arte que ele escrevia
Não entende, ele explica, é mestre
Mas cabe a você entender
Se sente e pratica este teste, já peca em pecar, por saber
É, tudo bem, pode ser, mas aqui eu não vivo só
Se semeio algo de bom, o todo floresce melhor
Mas e a parte, consegue ajudar?
Ou acha que só vai crescer?
Aí não tem todo nenhum
E peca em pecar, por saber
Por hora, na hora não penso se a minha verdade é pura
Talvez se me cobrem paixão, darei meu amor e armadura
Quem sabe um dia consiga mostrar a si a que veio
Levar sua parte ao todo, a parte que vive a passeio
A parte que vive a passeio?
Eu não entendo o que diz
Então se concentre no todo da parte que te faz feliz
Aí me confundo e me iludo, no mundo vivemos paixões
Eu prego a verdade a um surdo, mas mostro a um cego emoções
Então os cegos te amam, me diga porque quer mais
Só quero viver como um surdo, sentir como um cego e falar por sinais
Pois é, meu caro poeta, aos poucos vai tendo razão
Constrói seu castelo por dentro, não erra por medo, mas sim por ação
A guerra da parte é santa, entenda, é o todo que quer
Não há caridade sem choro, perdão sem pecado, homem sem mulher
Não há aprendiz sem um mestre
Não há um teste sem prova
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 20
A lua cresce e enche, míngua no céu e volta a ser nova
Então, ainda que sinta amor de corpo e alma pura
Seria injusto com a arte doar uma parte de minha armadura
A arte do todo da guerra faz parte da minha figura
Se sou você em parte, a parte do todo é minha pintura
Eu choro contigo, poeta
Enxerga o que pode fazer
Errado, pecado, fardado, vive acertado quando ousa saber
Eu choro contigo amigo
Me faz enxergar o que vê
Assim, cada um é uma parte, o todo: uma arte que está pra nascer.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 21
Poesia
Do sentido
P or Felipe Righetti Ganança
Basta ser breve instante,
Que de mim nasça divina essência,
Que tédio despreze, em instante mais breve
Pudesse eu, nesse instante qualquer
Alguns versos de amor fazer,
Das folhas úmidas, ou só das folhas
Pudesse eu,
Ter o sentido que aqueles versos têm,
E em bela árvore velha deitar,
Deles faria sentido que pudesse eu sentir,
Do rio que segue,
Em contínuas linhas de graça,
Salvo o teu olhar,
Que guardo, em um sentido que não compreendo,
Sinto.
Tua alegre inocência,
De poeta de versos incompletos,
De viagem sem destino,
De um sentir sem coração que o sinta,
Banha as margens da fria vida,
Que me carrega sem almirante algum,
Pudesse eu,
Saber que não há maneiras de sentir,
Nem maneiras há,
Nem formas há,
De sonhar e sentir,
Tudo o que a vida nos dá,
Faria do sentir das coisas, sentido algum
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 22
Louco, dirás, não buscar sentidos.
Mas que sentido há?
Se sentidos estão perdidos,
Sem sentido algum.
No mais breve dos instantes,
Se sentido ali houvesse,
Se desfez na primeira gota,
No primeiro parto sem mãe,
Pudesse eu,
Parar de buscar sentido as coisas,
As coisas do amor,
Aos versos do amor, não faria.
Se não nos deram sentido,
No só sentido de solidão,
A procura por sentido nos faz ser,
[Almirantes],
Seja saboroso vômito,
Esta raiva de incompreensão,
De beleza que posso ver,
Mas não há sentido claro que a traga,
Não há?
O sentido das coisas, talvez
É não terem sentido algum.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 23
Poesia
o que aconteceu ao homem de ontem?
P or Gabriel P Boneto
O que aconteceu ao homem de ontem?
Que terá acontecido ao garoto sonhador?
Aquele! Aquele mesmo! Que planejara uma infinidade de sonhos
E que ia para a vida como um batalhador
Em todos esses anos, quantas mudanças vivenciou
Quantas foram as fases da vida que ele passou
Tantas foram as adversidades que encontrou
E hoje encontra-se prostrado, resignado, perdido
Iludido com o que antes era-lhe o futuro
Agora, o presente não passa de um mundo escuro
O que vê são apenas trevas e isolação
Sentimentos mil da mais nua e crua solidão
Vê no mundo toda a podridão
A corroer a humanidade
Que está doente, clamando por um salvador
Esse garoto de outro dia seria o salvador
Mas agora, não consegue sentir se não a dor
E quer ser deixado, deixado em paz
Num canto confortável, não quer ser incomodado mais
O mundo se acabando e ele sendo deixado para trás
Este é o homem de ontem! O ser que traiu seus ideais!
Não passa de um verme inflexível, incapaz de se renovar
Ser ignorante! Sabe que vive na sociedade, mas não quer se sociabilizar
E se hoje confrontasse o passado?
O eu de ontem ficaria irado com o eu do hoje, que não passa de um bastardo
Apesar de tanto revés, algo bom veio
A poesia, nua e crua, forma bestial de literatura
Eis o que aconteceu ao homem de ontem – morreu entediado e desolado!
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 24
poesia
marecheia
Por Arthur Fernandes Guimarães Rodriguez
Mar e cheia, maré cheia, como num mar a ver navios, respiro trovoadas enquanto me alimento, inteiro, atento, entendo, nebulosas quedas d’água no infinito, bonito, como esdrúxulas rochas
radioativas entre moedores de carne, roedores, conforme andam,
procriam suas estúpidas carências, decências ancestrais de crenças
burguesas, crianças francesas tortas e indisciplinadas, nuas, numa
cama quadrada, poucas horas sobre nada, nadam enquanto afogam mágoas enlatadas, enviadas e processadas em camadas, ponderadas como fúnebres flores de jardins, sobre mim, morrem as
dúvidas de inocência, clemência de não ser.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 25
poesia
marazia
P or Arthur Fernandes Guimarães Rodriguez
No mar, mastros são lápis em papéis navegando sobre monocromáticas cores, voando palavras pelo céu, transbordando
amores, rompendo o tempo, afastando o infinito, vivendo em
desalento, comendo odores, cuspindo palavras perfumadas, fazendo do tudo um nada, agulha que na pedra entorta, em tortas
angústias desamparadas, amedrontadas, sonoras ideias dizem,
nada, cada parte dessa música, rústica, ao som das notas antigas,
amigas, dos ouvidos desorientados, da saliva seca na garganta,
do catarro aprisionado nos pulmões, batendo em carros, caros, os
caros entes de cárie nos dentes que tremem, grunhem, rangem...
Transmitindo, infligindo alguma parcela de sentimento, saneamento básico do pensamento, como vento, assoprando poeiras
no oceano, sem engano, engasgo, esgano, punho atado ao pano,
um ano, nau atracada ao não, vil embarcação, insídias escondidas
pelo chão, galpão, alçapão, corrupto pão dos ratos, nefastos, que
roem, moem e põe a sujeira nos pratos, tratos, fatos, tatos, atos
e chatos, crepitando o caixão da moribunda poesia, sem simetria
ou exatidão, inexatidão, inexatos dão, doam os órgãos aos sãos,
imensas ondas afogando grãos, o navio que não viu o arpão, acertar o centro cerne da questão.
No mar, maestros, mestres, mastros, astros, estrelas, estrelas-do-mar, areias, areias no ar, sereias, sereias-do-lar, fazem da
meneante azia marítima, um digestivo navegar, mas a poesia põe
azia novamente no mar, a azia dos mares asiáticos, azia angustiante criadora de poetas, profetas e promessas, movem o indefinido,
sem sentido, contido em tudo que se pode olhar.
No mar não se cria, não existe poesia no mar, mergulha-se,
afunda-se tão fundo que não cabe num mundo, nu mudo... Aprisionado em seus mistérios, acorrentados nas audazes correntes do
mar, aguerridas tormentas contrastem com a natureza do sereno
no mar, com a dureza de ser ermo no ar, não há poesia no mar, só
há, só ar, soar, doendo corpos pela azia, num ar soar azia, nu ar,
somar azia, só mar, azia, som ar azul, nu mar azul, num mar a suar
azia, no mar só há azia, não há poesia, há maresia, marazia.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 26
Poesia
Poema da despedida
Por Helena Roldan Antunes
Tudo parece um passado distante
Cada instante um sonho que não ocorreu
Mas morreu dentro da minha cabeça
Me esqueça porque eu já esqueci
Pois cresci em um segundo
Tão profundo que não tem fim
E assim ganhei mais distância
Da ânsia de me ver sem você
O porquê fica para depois
Nós dois ficamos para trás
Tão atrás que parece outra vida
Quase esquecida no fundo da gaveta
Que Julieta má que fui eu
Sem Romeu não quis me matar
Só andar por aí sem razão
Procurando paixão em todo olhar
Sem encontrar não fraquejei
Não desejei resgatar nossa história
Vida ilusória não quero mais
Do cais de minh'alma já partiu teu navio
Mar bravio afoga a esperança
Nesta dança não tenho par
O lar da desilusão me acolhe
Não molhe seu rosto agora
Lá fora tudo melhor ficará
Algo alegrará seu pensamento
No momento em que menos esperar
Vá buscar quem te queira
Na beira do guarda-chuva
A luva para sua mão fria
Que esfria quando me vê
E você ficará bem mais feliz
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 27
A cicatriz que deixei sumirá
Nem notará a minha ausência
Minha falência será decretada
Por nada nesse mundo retorne
Sempre contorne o que lhe obstruir
Pode vir apenas para me dizer
"Soube esquecer, vamos conversar?"
Irá me contar as coisas boas
Novas pessoas e alegrias
Melhores dias que se sucederam
Que aconteceram e acontecerão
Pela determinação que em você há
Agora vá e não volte ainda
Está finda nossa relação
O coração aguenta pancada mais forte
A morte é sempre um reinício
Seria desperdício não aprender com ela
Nesta viela não volte a andar
Sem lembrar fica mais suportável
Conselho aplicável o que falei
Seja rei e não me peça sua rainha
Sou minha e sempre serei
E sei que assim não lhe agrado
E malgrado isso lhe digo adeus.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 28
Poesia
À literatura
Por Marco Antônio Filho
Obrigado à literatura
por deixar o poeta sofrer,
por dar um jeito simples
de eternizar todo o sofrimento.
Aquele doloroso
ou talvez inesquecível sentimento
ficará marcado na história
como meu carinho e amor por ela
em forma de poesia.
Disfarçada em forma de despedida,
mas sempre em tom de reencontro.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 29
Conto
O que será de ana?
Por A idil Prado
Ana era uma menina de alma, presa no corpo de mulher.
Aprendeu desde cedo que suas qualidades não lhe trariam somente benesses. Renderiam a ela muitos constrangimentos, saias-justas e dúvidas quanto a ela mesma.
Numa noite chuvosa e fria, Ana se dispôs a acompanhar um
professor conhecido até seu carro, já que ele não tinha como se
proteger da chuva, além de estar abarrotado de papéis. Assim ela
seguiu, solícita, com seu escudo pluvial prostrado, protegendo o
suposto cavalheiro, acima de qualquer suspeita. Apenas aparência.
Andaram debaixo da chuva forte, daquelas que o que se quer
somente é estar em casa, na cama, embaixo da coberta, ouvindo
os pingos baterem no vidro, como se estivessem desesperados
para entrar.
O braço alheio roçou o seio e Ana engoliu em seco, trazendo-a de volta de seu devaneio. Imagine só, foi um acidente, pensou.
Mais um, mais outro. Ana cede o escudo, ressabiada com a atitude,
mas ainda, com fé na dignidade do homem.
Olhou para a rua, quase deserta, apesar do horário de saída
das aulas. A chuva espantou a todos. Parou. Quis ir embora dali,
mas ainda chovia e foi solicitada sua companhia até o carro, “para
evitar que os papéis se danificassem, afinal, tratava-se de provas...”.
“Onde está o carro?”. Haviam dito que ele estacionava próximo ao
campus. “Ah, está mais lá para baixo, em outro local, vamos seguindo, já chegaremos”. A rua em que estavam foi se tornando
cada vez mais escura, mais vazia, mais fria.
O que fazer, pensou Ana, naquela situação surreal? E se acaso
precisasse correr? Para onde iria? Sem pessoas, sem táxis, tudo fechado, escuro, silencioso. Ouviam-se apenas as batidas quase descompassadas do próprio coração e a respiração acelerada do professor. Resolveu entabular uma conversa qualquer e ele, malicioso,
tocou no mesmo assunto de meses atrás: o perfume.
Ah, o perfume! Aquele que era o cheiro de Ana: vívida, alegre,
sorridente, apaixonada, feliz. O mesmo que envolveu seu vestido
e seu cabelo, para um momento dela, não dele, que no local era
apenas um convidado e, mesmo assim, fez de tudo para se desven-
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 30
cilhar de sua companheira e lhe sussurrar ao pé do ouvido como estava linda. Ana achou graça e não deu importância... Mas, naquele
instante, sozinha com ele, sentiu-se como um bicho acuado e não
gostou de ter salvo o cavalheiro.
Em frações de segundos, o início relampejou em sua lembrança
tormento dos encontros “casuais”, do toque acintoso no braço, do
cerceamento para a saída do prédio... e as palavras que não paravam de gritar: “Ana, você estava linda!” “Ana, não consigo esquecer seu perfume!” “Ana, ficaria lisonjeado se fosse o objeto do seu
amor!” “Ana, preciso falar com você (sem nada efetivo para dizer)!”
Ana, Ana, Ana!!!!!!!
Naquela altura, tentou ir embora, mas tudo estava deserto, somente um bar aberto na outra quadra. Andou em direção contrária,
tentando acelerar os passos, mas foi impedida: “Não vá, é perigoso.
Acompanhe-me até o carro.” Mas não chovia mais e Ana precisava ir!
A mão segurou firmemente seu braço, impedindo-a de continuar, direcionando-a a seguir em frente, em meio à escuridão
total. Emudeceu. Não queria acreditar no que estava acontecendo. Pensou em correr, mas a mão ainda pousada em seu braço,
continha-a. Pensou em gritar, mas quem a ouviria e, caso ouvisse,
quem a acudiria?
Acabou-se aquela quadra e Ana avistou ao longe, do outro
lado da rua, próximo da única luz existente, um hotel, daqueles
que pessoas como ela jamais entrariam. Parou para tomar fôlego
e, mais uma vez, tentou desvencilhar-se daquela situação, sendo
impedida pelo corpo alheio à sua frente. “Onde está o carro? Estamos andando há muito tempo!” “Não se preocupe, disse ele, está
logo ali”, apontando para a entrada daquele local duvidoso. “Não
tenha medo! Você está com fome? Eu estou. Vamos comer algo e
eu a levo para casa”.
O corpo todo de Ana começou a tremer. Sua boca ficou seca,
suas mãos geladas e o instante final parecia próximo. Desespero
total. Se ao menos ela reagisse... se... se...
Viu ao longe uma luz se aproximando, devagar. Um casal saído
do breu total, falava com ele. Aproveitou para fugir. Reuniu todas
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 31
as forças, pôs-se no meio da via a gritar e a balançar os braços
para o alto, chamando a atenção do motorista. Entrou rapidamente no táxi, travou as portas e quase desfaleceu.
Do lado de fora, o algoz batia no vidro do carro, pedindo
para entrar, dizendo que a acompanharia. Sentiu as travas abrirem e, numa fração de segundos, gritou para o taxista seguir
em frente. Assustado com a reação, o fez.
Ana olhou para trás e viu, no meio do nada, apenas os olhos
da fera que perdeu a caça.
A chuva não estava mais lá fora, mas insistia em molhar sua face.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 32
Conto
O manifesto das mulheres poetas
Por Ana Paula Ricco Terra
São muitas as dúvidas que permeiam o cotidiano de uma mulher.
Verdade que somos todas sobreviventes de Woodstock e mil motivos
temos para acreditar que os grilhões do machismo foram arrebentados de tal maneira que nem o pó sobrou como resquício no tempo.
Mas se vivemos de fato no paraíso da liberdade, por que insaciáveis
dúvidas não nos deixam viver ausentes de culpa? Por que parece contra a natureza uma mulher admitir a si mesma que é capaz de sentir
prazer? (Como se esse pequeno divertimento apenas fosse permitido
de vez em quando SE um homem assumisse a responsabilidade do
ato). Por que o medo de encontrar alguém do sexo oposto, sentindo
por perto o falso fantasma da fragilidade? Por que o medo de pensar e
falar exatamente aquilo que pensamos? Por que o medo das avós e das
mães? Por que corar na frente do pai por uma pergunta pessoal que
não deveria ter qualquer obrigatoriedade de resposta?
Cansamos de textos sendo censurados e de estereótipos que sobrevivem ao tempo nos tomando a liberdade! Queremos ser mulher!
Queremos ser pessoa! Peço licença ao senhor Marx para roubá-lo em
sua valiosa ideia da tomada de consciência e transformá-la em uma
luta feminina... Que tal se cada uma de nós nos apoiássemos buscando o direito de sermos livres despojadas da categoria de inferiores?
Que tal se pudéssemos assumir o que antes não nos era permitido?
Temos uma vantagem... Se ao homem é proibido pensar como mulher
(seja lá o que é pensar como uma mulher), podemos pensar como homens (ou como quem quisermos, se o pensar como mulher deixa de
ser para nós “pensar como mulher”).
Dói pensar que a literatura está repleta de construções que nos
excluem. Por que livros tão lindos, clássicos tão poéticos são contaminados pela ignorância que ainda não está só no passado? Desconsideramos tudo que nos tratam “como um vento que passou”, como diria
nosso poeta Cazuza? Abandonamos os clássicos? Não. Eu digo: Que
os clássicos sejam nossos também. Que olhemo-los com outros olhos:
Sejamos os homens. Lutemos pelo direito de pensar como homens!
Lutemos pelo direito de assumirmos papéis masculinos nas obras
clássicas! Lutemos pelo direito de sermos POETAS (não poetisas com
muito pudor e sim poetas românticos que morrem de amor).
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 33
Balzac que esteja do nosso lado quando de Ève passarmos a Lucien; de irmã carinhosa que se desdobra no trabalho doméstico pelo
irmão, seremos aquela que busca a intelectualidade, aquelas que escrevem poemas sobre a vida.
Não, Durkheim, não somos diferentes, não temos experiências
distintas por sermos mulheres! Somos pessoas e cada pessoa vive suas
experiências de maneira individual: não somos todas iguais e não somos menos suscetíveis ao suicídio porque não sentimos como sentem
os homens. Existimos e podemos ser POETAS.
Goethe: o papel de Lotte não nos cabe mais – a mãe de todos não
é a mulher que enche os olhos; não sabe o que é a verdadeira alma que
encanta: morreu sem conhecer a mulher que é o próprio Werther.
Somos todas Miladys tão fortes como Athos em Os Três Mosqueteiros. Somos e sentimos como pessoas. Nós, mulheres da Academia de Letras, somos POETAS e lutamos para, como POETAS,
sermos reconhecidas.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 34
Conto
Minha primeira “istória”
Por Bruna Bianca Brandalise Piva
Há uma coisa empírica sobre o tempo, que só com o tempo se aprende. É que nossos sentidos vão ficando mais aguçados, nossos temores mais brandos e nossas escolhas mais
acertadas, principalmente se essas escolhas forem literárias.
Acredite, a metamorfose do homem não é só de corpo, mas,
principalmente, de espírito e quando digo espírito não pretendo fazer aqui qualquer apologia religiosa, não, falo do espírito
construído em mundo terreno, nesse roteiro escrito ao longo
da vida, cheio de improvisos e notas de rodapé. E aí está toda
a magia de envelhecer, é a metamorfose de nosso espírito de
lagarta a borboleta.
A primeira coisa que aprendemos com o tempo é que guardar coisas inúteis e velhas ocupa um espaço que não podemos
dispor e por mais que possa ser dolorosa, a limpeza é fundamental. E foi assim que minha apostila da primeira série, o
caderno do terceiro ano, o guardanapo da restaurante chique
que visitei há alguns anos, a minha prova mais bem sucedida e
inclusive meu primeiro texto literário foram parar num saco de
lixo preto que, dentre muitos outros, se perdeu, desaparecendo
naquele gira-gira sem fim do caminhão de lixo, e desse jeito
mesmo imaginei todo meu passado triturado, triado e reciclado. É claro que eu queria uma cerimônia, talvez um enterro e
um discurso inflamado. Mas, quem daria valor a meu primeiro
conto intitulado “Minha Primeira Istória”? Pois é, ficou faltando um “h”! E o zero marcado em vermelho no meio da folha,
impediu a todos de se interessarem pela leitura do texto. O engraçado é que hoje, antes de jogá-lo fora, a curiosidade apertou
como um espremedor de batatas e, de palavra em palavra, fui
decifrando as orações que, para minha surpresa, me levaram a
um riso confuso, um riso profundo recheado pela lembrança do
dia em que fui lagarta.
E se há uma saudade maior em ser lagarta, é a do casulo. Oh,
lugarzinho bom, ali acolhido e protegido, o homem é criança, e
nada no mundo lhe pode tirar essa condição, mas a esta outra
coisa sobre o tempo que só se aprende com ele, o romper do
laço, a busca do desconhecido, e a independência são condições
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 35
intrínsecas para ser borboleta, e assim, abrindo mão da velha “istória”, é que a nova história encontra espaço para florescer, afinal, como diria Richard Bach “aquilo que a lagarta
chama fim do mundo, o homem chama de borboleta”.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 36
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 37
Conto
Pão franzcês e kafê para inglês
P or Danilo Souza Costa
Imagine um pão que alimenta e um café que desperta.
Imagine que há uma xícara de café toda ornamentada, enfeitada, com detalhes dourados, toda se exibindo, escondendo o seu
made in, e que ninguém toca, mas passa e elogia a beleza daquele
café. Imagine só: um pão que alimenta e nada pra despertar.
Imagine o José. Ele é seu amigo, e acorda um dia em sua
casa na forma de um bicho asqueroso, monstruoso e repulsivo,
lembrando uma barata gigante.
Agora se pergunte: quem é ele? O bicho? O amigo? O José?
Quem é esse que dormiu ontem e acordou hoje? Há diferença
entre eles?
Damos nomes pras coisas, às explicamos e as entendemos
por analogia a outras, o que leva a crer que a visão pode confundir o sentido real das nossas certezas, que podem parecer
óbvias, mas podem ser apenas reflexo de coisas que a gente
acredita que é verdade, sei lá por que.
Imagine o que é uma democracia, pense na sua essência,
onde há um líder com discursos populistas, ou seja, que conforta as nossas esperanças moribundas, que dita de forma democrática as regras do jogo, uma vez que sempre consulta sua
base aliada e as famílias que nunca elegem um presidente para
nós, mas visando um interesse maior, e diria, bem maior, não
deixam nossa democracia morrer, nos tornando um Estado que
possui o governo dos melhores. E viva a democracia.
Vivemos fazendo coisas pra atingir um não lugar muito comum:
a liberdade. Vivemos acreditando no que vemos, tocamos e ouvimos.
A analogia é ótima na infância, mas a filosofia deve ser trabalhada
desde a juventude. O José seria seu inimigo por que parece que vai
te atacar? Quem é que cria esse abismo enorme entre o ser e o não
ser? Tá, a gente pensa pouco, mas alguém também ilude...
As ideologias segregam, confortam e dão uma preguiça, que
até ligamos a TV pra esquecer o que não nos agrada.
Devemos nos preocupar com as estruturas que formam os
nossos conceitos, pois o marketing de poder, de vitória e de
liberdade deturpa a mente e reluz como ouro, vendendo essa
ideia a quem nem queria comprar.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 38
Ouve-se muito falar em inversão de valores, o que pode parecer subjetivo, pelo fato de valor ser algo relativo, mas com
o perdão da explicação comparativa, podemos perceber que há
xícaras belas que contêm veneno e estão postas na mesa pra
atrair quem não bebeu.
Agora imagine que o veneno tenha o nome de café e em vezde te despertar te aliena e te mata pra si mesmo.
É mais ou menos como diria um inglês aí: um esgoto com
nome de flor tem cheiro de esgoto e não de flor. Mas pra saber escolher o que enfeitará a nossa casa, devemos esquecer os nomes
e conceitos e procurar enxergar a essência, pra não cair no grave
erro de achar que o mau cheiro vem, ou do vizinho, ou da rua.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 39
Conto
quando
P or Felipe Righetti Ganança
Quando nasci, eu já era protegido por uma Constituição que
me garantia uma série de direitos, sem mesmo que eu soubesse
algo sobre eles. Antes que eu entendesse o significado de uma
nota de dois reais, o problema da hiperinflação já tinha sido superado e a primeira vez que fui ler sobre o assunto foi em uma
aula de história na escola.
Quando eu tinha 12 anos, começou a vigorar o novo Código
Civil que colocava, de uma vez por todas, homens e mulheres na
mesma igualdade formal, sem que ao menos eu soubesse que homens e mulheres pudessem ter direitos tão diferentes. Nunca me
passou pela cabeça uma mulher não poder votar, não ter o direito
de se divorciar sem dar explicações ou se casar por obrigação assumida pelos pais. Eu nunca conheci um escravo e nunca conversei
com alguém que viveu nessa época.
Quando eu tinha 13 anos, um operário assumiu a presidência
do meu país e, mais tarde, uma mulher assumiria o mesmo cargo.
Um ano depois um negro assumia a presidência dos Estados Unidos. Eu nunca vivi um dia em que o Habeas Corpus esteve suspenso.
Quando eu tinha 16 anos, resolvi tirar meu título de eleitor e
pude votar em quem eu quisesse. Se eu quiser fundar um partido
político, eu posso. Eu nunca vi uma receita de bolo no lugar de
uma notícia de jornal e eu posso ouvir, falar e ler o que eu quiser,
quando eu bem entender.
Talvez por ter nascido com tudo isso pronto, grande parte da
minha geração cresceu com dois grandes problemas: achar que
tudo sempre foi assim e acreditar que tudo isso já basta.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 40
Conto
‘Le & ‘La
P or Karina Azevedo Simões de Abreu
Ela acordou, tropeçando um pouco nas próprias pálpebras e
com o pé dormente. O dia lá fora ainda não havia desabrochado, e
um cinzento clima fresco pairava sobre a manhã.
Ele ainda estava dormindo, ressonando profundamente, e,
embora estivesse calor (como sempre!), estava enroscado em um
edredom recém lavado de conforto e maciez.
Ela fez alguns desenhos, enquanto pensava em borboletas e
folhas verdes. Sua cabeça doía um pouco, e os olhos denotavam
cansaço e sono. Como iria bem uma coberta.
Ele se remexeu desconfortavelmente, talvez antevendo que
logo seria a hora de acordar, que era a última coisa que ele desejava.
Tinha algumas horas de correria e longas ruas para percorrer.
Ela fechou os olhos, por apenas um segundo, sem dormir, respirou fundo e sorriu.
Ele abriu os olhos, por apenas um segundo, sem acordar, respirou fundo e sorriu.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 41
Conto
Você sabe o que significa andar de
mãos dadas?
Por Karina Azevedo Simões de Abreu
Andar de mãos dadas significa que, mesmo que por alguns instantes, você seguirá o mesmo caminho acompanhando e sendo acompanhado por aquela pessoa. Durante aquele breve momento, não importa o que aconteça, terá alguém para te apoiar e te socorrer. Esse alguém
lhe ajudará a se levantar caso tropece, e, muitas vezes, te impedirá de
cair. Ele vai te dizer o caminho quando você se sentir perdido, mas às
vezes precisará que você o guie.
Trilhar um mesmo caminho pode ser durante um dia, um mês,
um ano ou até mesmo uma vida. É algo sério, sincero, que brota no
fundo da alma como brotam as flores na primavera. Pode ser uma
trilha de pedras, de areia, de asfalto, de poças de lama ou mesmo de
plantas e canções. Pode ser um caminho leve como a brisa ou doloroso
como um espinho.
Por isso, quando alguém lhe oferecer a mão para caminhar, aceite-a apenas consciente de seu significado. Aceite-a de coração, e disposto a enfrentar alguns contratempos. Aceite-a sabendo que da chuva e
dos louros raios de sol nascem o arco-íris e que a grama não seria tão
bela ao amanhecer sem seu orvalho que acumulou durante a noite.
Andar de mãos dadas significa que, mesmo por alguns instantes,
você seguirá o mesmo caminho acompanhando e sendo acompanhado por determinado alguém. Significa ter um sorriso quando se está
triste e um abraço quando se está carente. Significa ter um ombro para
chorar e alguém para pedir colo, assim como significa também ter alguém para desejar um bom dia e bons sonhos; ter alguém que faça
valer a pena levantar da cama, sorrir e viver.
Ah, e ainda mais importante que entrelaçar as mãos é atar os corações; é estar sozinho acompanhado, é sorrir sem mexer a boca e rir
sem fazer barulho, apenas o olhar. É aquela fita de cetim que enfeita
a caixa de bombom dos enamorados, é a chama que crepita na lareira.
Ah, é tanta coisa que já não mais o sei dizer. Sei apenas que quero
caminhar no momento.
Caminhar por uma longa jornada de poucos minutos, por um longo trajeto de poucos metros e por lugares nunca vistos por onde todos
passam toda hora. Caminhar pelo prazer da estrada e não só pelo desejo da chegada ao destino.
Então... Quer unir a sua junto com minha pequena mão e
caminhar?
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 42
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 43
Conto
o desenho da menina
Por Marco Antônio Ferreira Lima Filho
A menina abre seu livro de pensamentos. Nele, um infinito de
possibilidades a serem feitas pela ponta de seu lápis mal apontado, porém confiável que a guria usa. A borracha fica logo ao lado
para que, em um eventual erro, conserte logo assim que achar
algo de errado. As páginas amareladas pedem com sua vazia expressão que alguma coisa seja feita com ela. Seja um desenho,
uma frase, uma história, um pensamento... O que for!
A menina se deita em sua cama e começa a pensar. Pensa em
tudo que fez no dia. Lembra de quantos rostos viu desde que
saiu de casa até o momento que voltou. Recorda-se dos pequenos gestos que vira ao longo do dia. Das pessoas que passavam
em sua volta e lhe davam um sorriso, um ar de cansaço ou uma
expressão preocupada. Seus olhos procuravam coisas inusitadas
que não se via todo dia, para poder anotar em seu caderninho
quando chegasse a sua casa.
Levemente, a menina começa a rabiscar. Pequenas linhas vão
dando formas, que viram círculos que parecem querer virar olhos
pequenos e escuros, tais como ela viu em um menino. A boca é
traçada com cuidado, para que o mínimo detalhe de uma boca pequena em forma de coração seja feito fielmente como havia visto.
Suas bochechas redondas são marcadas pelos pequenos buracos
que se formam no meio dela. O sorriso é grande, como se escondesse a boca de tão grande que são seus dentes.
A menina para. Por que será que acha que falta alguma coisa? Imagina que há algo que completasse o desenho, mas não é
possível trazer. Vejamos: temos a boca rosada; os olhos negros
e grandes; a sobrancelha forte que lhe realça os olhos... Até mesmo coloquei os cabelos castanhos enrolados que lhe dava uma
expressão de anjo! O que falta?
Tentou refazer várias vezes naquela noite. A luminária focava
bem no centro do papel riscado e rabiscado milhares de vezes. O
grafite se misturava com o papel amarelo e deixava fortes riscos na
página amarelada. As sujeiras da borracha se espalhavam pela cama
a cada soprada que a menina dava quando terminava de apagar.
Após um tempo, a menina se dá conta do que faltava. “Mas
é claro!”, pensou ela. Num rápido movimento, fechou o livro,
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 44
imaginou o menino que amava e pediu ás estrelas presentes a
sua frente na janela: “poderia fazer-me o favor de mandar um
pouco de amor dele? É isso que falta no meu desenho: um pedaço da alma dele para que o desenho seja fielmente como senti.”
E assim a menina fecha o livro e vai repousar. Sua alma está
limpa, sentindo-se como se estivesse nova em folha. Afinal, o
que queria era poder estar do lado dele mais uma vez. Queria
pedir para que uma estrela o trouxesse e o deixasse ficar ao seu
lado mais uma vez para que ele pudesse deixar seu desenho e
suas frases mais reais; que pudesse fazer com que o livro inteiro
de imaginação fosse nada mais e nada menos do que um pedido
direto para si mesma de trazer o menino um dia de volta ao seu
lado. Era um livro de pedidos secretos que só tinha uma intenção: deixar o amor guardado pra quando ele voltasse.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 45
|Danielli de Cassia Morelli Pedrosa |
UTILIDADE
A frieza absoluta nunca o impedia de estar presente
em vários lugares, especialmente nos mais íntimos. Toda
aquela severidade e seu jeito obscuro de ser destacavam-se nos insistentes silêncios e, talvez, exatamente por
isso, todos sem exceção, lhes confiavam os mais íntimos
segredos, expondo-se sem constrangimento diante dele,
como a desafiá-lo a ter uma vida, uma vida viva.
Por vezes sua aparência lembrava restos de outras
coisas, de outros momentos, de outras pessoas. Tantas
formas podia assumir que quase nunca o definiam por
sua expressão, apenas por sua presença ou ausência.
Sempre um tanto sisudo, em sua arrogância de sabe-tudo, quase chantagista perante o que lhe caía de graça,
podia ser dono do mundo se lhe apetece apenas falar.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 46
Não revelava sentimentos especiais ou algum apego específico, mas se mostrava útil
para as senhoras mais vulneráveis que passavam muito tempo ao seu redor, solitárias
e adoecidas por suas tristezas sem fim. Junto dessas existia em sua função de apoio, de
socorro, guardando suas coisas particulares,
atento às suas falas de abandono, segurando
seus copinhos de licor ou suas xícaras de chá
com alguma cerimônia, alimentando uma
dependência quase obscena que lhe permitia
considerar-se indispensável.
Nunca fora muito de animais de qualquer
espécie, todas as suas experiências com esse
tipo de ser, lhe renderam arranhões, manchas e profundo desagrado. Tratava-se de
um ente feito de arestas afiadas e sabia como
utilizá-las para afastar o indesejável. Tinha
uma perfeita noção de qual era o seu lugar no
mundo e fazia bom uso dele – observando,
arquivando, catalogando e organizando objetos, impressões e informações concretas e
talvez também as abstratas.
Não gostava dos dias por causa do sol que
parecia lhe inchar as articulações, fazendo-o sentir-se um tanto bovino. Não gostava
das noites porque sempre acabava do lado
da cama de alguma alma necessitada - sua
inabilidade emocional o tornava facilmente
aborrecido. Enjoava das pessoas, enjoava
dos ambientes, enjoava dos meses e estações
do ano, tudo ia tornando-se igualmente entediante conforme as rotinas se escoavam.
Sabia-se egoísta e vazio, mas de algum modo
interessante. Sem coração ou afetos, mas
profundamente prático. Em geral sem uma
beleza significativa, mas em certos círculos
e por certos motivos, admirável! Então ia ficando ali, tempos após tempos, em sua tarefa
taciturna e inquestionável, iludido pela imobilidade de sua suposta importância.
Toda fantasia de controle acabou no dia
em que ela chegou.
Ela ocupava com a luz do seu sorriso e seu
perfume antigo, cada centímetro do ambiente. Seu humor - nem doce nem cítrico - preencheria seus dias e tudo que lhe acontecesse
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 47
a partir daquele momento. Irreverente, ela
lançou sobre ele seu lenço transparente e ele
incomodado com tamanha energia, sentiu-se
pego por um vendaval de primavera ou um
carrossel de cores açucaradas. Nada nunca
mais pareceu igual.
Aquela alteração brusca de sintonia o irritou muito, atarantado e agressivo acertou-lhe
o mindinho do pé e esperou o grito, surpreendendo-se com a gargalhada alta que o colocou
num desespero contido, recalcado, aturdido.
Imobilizado pela surpresa e pela própria condição, apenas obscureceu-se mais em seu canto predileto e esperou enquanto ela o ignorava
solenemente, andando por todo lado com sua
leveza de fada, com seus passos cadentes de
bailarina. Nunca antes conhecera um pescoço
como aquele e em ganas de assassino, sonhava
torcê-lo, mordê-lo, oferecê-lo aos deuses em
sacrifício. Não trairia, porém, sua tez plácida
nem mesmo pela mulher mais linda do mundo
e toda aquela sua exagerada felicidade.
Os dias passavam e quanto mais ela pairava por ali, mais ele sentia-se oprimido, quanto mais a vida dela era vivida, com suas cores
e sua sépia, com suas alegrias e tormentos,
mais peso ele se via carregando sobre si. Sendo assim, a idade, antes plenamente ignorada, passou a pesar-lhe os pés e com ela uma
melancolia própria dos que sabem que meia
vida não é melhor do que nenhuma.
Uma hora ela olhou para ele com outros
olhos, olhos de borboleta travessa em tarde
quente e se empenhou a mudá-lo, mudá-lo
tanto que o ofendeu, ao final sentiu-se meio
mulher e se, por um lado, isso o aquecia, por
outro o fragilizava. Aquelas coisas escorrendo sobre ele e secando, todos aqueles cheiros,
novas temperaturas e novos sabores, o confundiam demais, exasperavam, feriam sem,
contudo, causar-lhe o ímpeto necessário para
apenas recusar-se.
Quando o tormento acabou, o outro surgiu entre afoito e misterioso. Magro em sua
altura, mas quase belo com seus cabelos mal
cortados. Olhou para ele apenas uma vez, seu
sorriso irônico lhe pareceu de pena, nada comentou. Inerte como um morto, observou-a
entrar e lançar-se nos braços do forasteiro e
a forma como ele tocava nela a noite inteira, evidenciou mais do que denunciou, toda
a impossibilidade que cercava suas próprias
relações. Tudo fora feito para o outro, aquele
outro cujas mãos passeavam com desenvoltura pelas formas que ele cultuava todo dia,
aquele outro que beijava ora com suavidade,
ora com furor, tudo o que ele insone, velava
todas as noites, aquele que esbarrava nele os
pés grandes toda vez que ia, toda vez que ia...
Quando enfim descansaram, ele recebeu
sobre si um bule quente que feria um pouco
sua recém-pintada superfície, também havia
pratinhos com guloseimas e pode vê-la abrindo seu lindo sorriso até um pouco depois dos
olhos para agradecer o que o outro lhe servia
com aparente amabilidade. Estudou a expressão dela cuidadosamente, as faces rosadas e
brilhantes de pura languidez, os cabelos soltos
em liberdade e desalinho, toda aquela beleza
sem esforço que lhe revelava o rosto cheio de
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 48
uma nova luz, seus olhos transmitindo uma
meiguice pueril, denunciava aquilo que outrora ele apelidara de estranha estupidez feminina. Já conhecia aquele olhar de tantas outras
vezes, apenas não lhe levara a sério, não o deixara tocá-lo, não assim, não como ela.
Sentiu suas estruturas cedendo um pouco, o peso dos anos não se compara ao dos
sentimentos. Sabia pela experiência alheia,
ingerida por sua atuação de voyer absoluto,
que plantar expectativas, em geral, se traduzia em colher decepções. Calou-se ainda mais
calado do que sempre fora, se isso acaso fosse
possível, enrijeceu as pernas curtas e grossas,
segurou-se como pode e coisificou-se de vez,
por pura preservação, embora mal pudesse
compreender do que pretendia se proteger.
Pensou por último se ela repararia, se em algum momento se daria conta, se o notaria, se
ao menos sentiria falta da forma como ele a
acompanhava em lealdade absoluta.
Ao final viu-se arrastado, repartido, depredado. Feito em partes. Abandonado num
terreno baldio qualquer. Apodrecendo chuva
após chuva. Sem mais nenhuma utilidade.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 49
|Danielli de Cassia Morelli Pedrosa |
O MENINO, O HOMEM E O DESTINO
Mais mudanças no canto de sombras. Incontáveis
são as mudas estabilidades dessa vida e incontáveis são
as transições que falam. O prazer era o do movimento, da coreografia das estações, do abandonar-se e do
adquirir. A dor habitava o repouso em que a cabeça dispara em brasas, que ao se lançarem marcam a pele com
memórias do que foi deixado para morrer lá fora, nos
frios de algum outro lugar. Seria importante identificar
o exato segundo em que a névoa da primeira infância
cede lugar aos labirintos das primeiras letras.
Com os tocos de madeira roubados engendrava grandes batalhas e homenagens aos soldados mortos. Assim
havia tarde e manhã. A saudade agoniante que sentia do
irmão mais velho não se justificava por alguma ausência, antes tinha lugar na redução de seu relacionamento
a diálogos oculares e suspiros de indignação. O irmão
insistia em negar, ele insistia em admitir. A injustiça
atordoante revelada nesta negação não dava margem
para nenhum tipo de reconciliação. O pequeno intuía
naquilo tudo o medo, um pavor animista que faz crer
em poderes que as palavras na verdade não têm.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 50
Perdido nos devaneios das vacas e dos galinheiros, nos deveres escolares e na limpeza
do quintal, o maior abanava do pensamento
toda a angústia de simplesmente não poder
voltar para casa. Mesmo durante a noite,
quando compartilhava a cama com aquela cabeleira cacheada que seguia usando chupeta,
fingia ser só no mundo apenas para não dar
de cara com a história dos malditos adultos,
esses grandes incompetentes.
O olhar sempre daria com a língua nos
dentes, caso os tivesse.
O olhar da mãe traduzia-se em culpas e penitências fracassadas. Andava agora sempre
cabisbaixa, criando uma espécie de corcunda
invisível, presa de uma cantilena estranha,
repleta de trivialidades que beirava a um fútil obsceno – a hora do leite, a hora do banho,
a hora da cama, a hora da aula – e de hora
em hora, em meio aos marulhos pouco polidos dos muitos moradores da casa do avô, os
três imigrantes se esbarravam por ali e por lá
numa cegueira emocional seletiva que apenas
ao pequeno ofendia.
Perseverante o caçula seguia ansiando a
anuência do irmão. Incansável, o perseguia
pela casa, pelos campos e pelas águas do imundo açude. Ouvi-lo admitir, afirmar aquilo que
ambos sabiam, aquele segredo macabro que os
tirara de casa, os lançara na fazenda e fizera o
pai desaparecer, seria simplesmente como voltar a respirar. A crua verdade era que os dois
se recordavam das visitas daquele outro, do
vestido aberto com o qual a mãe saía do mato
num sorriso rosado e algo tétrico. Quanto
mais Cassiano reprimia o assunto, mais condenava o irmão a um ostracismo sufocante e
aos monstros que arrogantes continuavam a
povoar sua própria miséria.
O avô era um homem bom, mas não era
um homem gentil. O pequeno se livrara de sua
perseguição constante graças aos surtos de
asma, em compensação tinha uma legião de
tias solteiras coladas ao seu cangote, elas lhe
exigiam meias, cachecóis e blusas de lã mesmo em dias quentes e de sol a pino. Odiava em
particular os serões quando lhe punham de
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 51
doente e o enfiavam águas amargas goela abaixo, lhe escorriam óleos grudentos pelo nariz,
esfregavam seu peito com pasta de mostarda
fedida e o faziam comer peixe todo santo dia,
o remédio de Santo Esperidião.
Incrivelmente cansado para alguém tão jovem, Cassiano se sentava de noite na varanda
e gastava o tempo com as estrelas. Recordava
da mãe dançando ao léu em noites soltas de
verão, depois do Natal. Seus sorrisos verde-água se misturavam na prata das mocinhas do
céu, brincadeiras de roda que o faziam o mais
apaixonado dos filhos, o mais novo adormecia zombeteiro no colo dela enquanto os três
esperavam o pai voltar da roça, a janta feita,
bolos de milho servidos, a cortina da porta do
quarto deles cerrada, risadinhas metálicas que
indicavam que tudo ia bem. Ali no avô o tempo voava em longas torturas, um mês engolia
uma década.
Andava macambuzio por não tolerar a
aproximação do irmãozinho. Quando sentia
nos ossos o raio fixo daqueles olhos lânguidos,
quando via os longos cílios que eram tão dela,
a testa larga do pai, as mãozinhas roliças que
tantas e tantas vezes apertaram seus braços
buscando abrigo em noite de vendaval, algo
ardido em seu peito se espalhava e se encolhia.
Não conseguia cuidar dele agora. Não podia
nem mesmo cuidar de si. Tinha se feito um
barril de ódio. Podia matar o primo Otto de
um pronto. Podia matar o pai que os largara ali
sem nem olhar para trás. Podia matar a mãe,
que teimava em ser sempre mais bonita em
sua tristeza peculiar. Podia matar o pequeno
por amá-lo tanto e por não ser forte o bastante para suportar seu sofrimento romântico.
Quando tal raiva se lhe apoderava dele corria com as mãos tensas para o meio do mato
e matava um sapo ou esmagava um arbusto.
Longe da casa corria feito louco, urrava e gemia,
fazia rilhar os dentes e estapeava a própria cara
com força. Bem no fundo só queria que a mãe
viesse lhe buscar e o pusesse para dormir, como
quando era único, ingênuo e feliz. Muito tarde
para tudo isso agora, se sentia ridículo.
O sentimento cinza e rijo acompanhava os
três desde a manhã e ia forte até a hora de dormir. Fantasmas na janela ameaçavam a mãe
que já completamente inóspita e disforme não
se fazia de refém de coisa alguma – num passe
errado aniquilara um mundo e não conseguia
olhar adiante e encontrar nenhum recomeço.
Tristeza só vem em suaves sussurros de
grilo na alma boa, no anjo sem asas, na fada
destituída de sua luz. O resto de nós vira fumaça de cigarro velho, antigo, fedido, desnaturado. Só um homem traído cuja família lhe
escorreu entre os próprios dedos compreende
o mau gosto de um fracasso tão total. Cassiano
pensava no pai, sozinho num canto qualquer
desse mundo de Deus, deitado com mulher da
vida talvez, bêbado de muitos dias, valente
para se enfiar em briga com qualquer Zé Ruela
de boteco só para esconder a dor na porrada,
aquele massacre longilíneo que o peito perpetuava. Ninguém pode sentir duas dores ao
mesmo tempo, isso se comprova na Ciência,
por segundos a mais intensa cede lugar para a
mais aguda e o momento de alívio de uma dor
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 52
por outra pode ser a exata diferença entre um
sufoco e um respiro.
Toda noite o pequeno se gastava de olhos
arregalados, fixados na silhueta do irmão –
sua única esperança no mundo. Se Cassiano
conseguisse dar sentido a tudo aquilo talvez
seu medo fosse embora, talvez aquela coisa
no ar se diluísse, talvez o pai voltasse e todos
pudessem voltar para casa. Dia após dia lutava contra o sono enquanto o irmão lutava
contra o desejo de sair de perto dele. Lá pelas
tantas da madrugada dormiam enfim próximo e de cabeças encostadas, a cena mais inocente do mundo capaz de esmagar de culpa a
alma de uma mãe penitente do mais ridículo
adultério da Terra.
A asma foi piorando conforme mais e mais
cotonetes iam sendo enfiados em suas orelhas
por tias obcecadas por higiene. O preço do
remédio fez da mãe escrava da casa. Cada dia
somado em que se vivia de favor se revelava
um dia a menos de leveza de sorrisos curvos,
pequenos como mariposas translúcidas. Trancafiado em casa, sem permissão sequer de sair
ao sol, foi sentindo um mofo crescer por dentro, um bolor azedo e nos músculos uma tensão
exagerada que usava tentando conter a energia
que lhe fluía íntima, seu núcleo de criança saudável teimando em aparecer. Não apreciava a
vida de menina mimada que ia levando, aquilo
lhe estragava os nervos e fazia multiplicarem-se lágrimas constrangedoras. Aos poucos ia
ficando mais esquivo, retraído e birrento, protagonizando episódios de descontrole e hostilidade totalmente estrangeiros.
Lógicas da infância são simples e acertadas.
Coisas como dizer que primo Otto era mais
agradável que o pai não pareciam se coadunar
com o fato de ele ter fugido de trem no mesmo
instante em que o pai cego de raiva e de pinga
arrastava sua mãe pelos cabelos até o rio, de
onde ela voltou toda ensanguentada apenas
para pegar os filhos pelos braços e caminhar
léguas e léguas até a fazenda do avô.
O pequeno se ressentia da falta do sofá da
sala onde costumava deitar para achar figuras
no teto manchado pela umidade. O maior sentia falta dos livros de história que o pai lhe dera
de aniversário. A mãe sentia falta das vidraças
recém-instaladas na cozinha e que permitiam
ver as roupas limpas esvoaçando nos varais. O
pai sentia falta do orgulho de ser homem de
bem, pai de família, alguém no mundo de quem
podiam precisar. Primo Otto já bisbilhotava a
janela de uma nova vizinha em São Paulo.
A espécie de mágoa calada entre os irmãos
chegou ao ápice na noite em que o pequeno jazia roxo na cama, pulmão roncando mais que
navio a vapor, olhos agigantados, contornados
por pálpebras brancas de gente morta e cujo
brilho grotesco parecia capaz de iluminar todo
um arraial. O menininho insistia em apertar a
mão do maior até doer, era tanto amor louco e
desespero naquele par de janelas escuras que
Cassiano jurou para si mesmo que assim que
ele caísse enfim morto por sufocamento sairia
correndo daquela casa maldita e nunca mais ia
voltar. Embora estivesse mais do que pronto
para a fuga, o pequeno não morreu.
- Mãe, o que você fez foi acabar com a gente...
Disse o mais velho num tom de mera constatação e aspirou fundo, como quem se alivia.
Depois saiu do quarto sem aguardar o efeito
do comentário.
O menor ouviu.
Não recriminou a mãe por nada, mas o alívio fez seu trabalho. Enfim algo causara tudo
aquilo, tinha mesmo relação com as coisas que
ambos haviam presenciado e não era mesmo
sua culpa. Naturalmente sua melhora foi atribuída ao antialérgico.
Certa ironia passou a colorir seus dias. Dava
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 53
nome aos tocos de madeira, dava-lhe caras de
gente conhecida feitas com caneta hidrocor.
Alguns tomavam forma e jeito de membros da
família. O primo Otto amargava uma penitência sem fim enfiado até o pescoço numa garrafa
PET, cheia de lama do rio. Apesar de um novo
sonambulismo, que inclusive lhe rendera uma
boa mijada dentro da geladeira, sentia-se mais
e mais esperto e outra vez vivo.
Seis meses.
Viam na mãe uma magreza e um silêncio
que parecia traduzir enfim o vislumbre de algum fio para sua confusa meada.
Aquela tarde vazia acabou por trazer mais
do que a chuva torrencial que acabou por enclausurá-los no canto mais sombrio da sala. O
menorzinho aboletava-se no colo da mãe feito
um pequeno morcego herbívoro grudado em
uma bananeira. O grande aproveitava um resto limpo de papel de pão e desenhava cruzes
de diversos tipos com um lápis de olho surrupiado de alguma tia, seus desenhos ganhavam
sempre uma toada sinistra que a mãe ignorava
convenientemente.
O homem entrou porta dentro num rompante, um spray de chuva lhe saía das roupas
umedecendo tudo ao redor. A surpresa confundia as cabeças e erguia exclamações interiores
que não ousavam de fato existir no tempo e no
espaço, outra vez expressão perdida no receio
de que palavras soltas celebrassem reconhecimentos e a partir deles nascessem destinos.
Devia ter perdido uns dez quilos e cortara
a barba toda. As roupas amarrotadas e encardidas denotavam um tempo de exílio na lua.
Grandes rodelas verdes ao redor dos olhos davam-lhe um contorno geral de transtornado e
se voltar a vê-lo tinha sido uma alegria, vê-lo
num segundo instante foi um desconforto.
O silêncio deitou-se pleno num abandono
de leviandade. Os olhos se encontravam e se
havia compreensão havia uma negação mútua
que só palavras espadas poderiam desfazer.
Tudo jazia estagnado como um quadro de natureza morta e a percepção do portal aberto
esfriava barrigas e trazia asas ao pensamento.
O sofrimento contínuo é açúcar em artérias saudáveis, cada grão representa corrosão
e tanta doçura é amarga em longo prazo, o
prazer é queimadura, todo suor é esqueleto,
todo dia é um negativo, todo o ar é tóxico e a
juventude se vai em teias plenas de uma falsa
velhice, cujo antídoto se esconde atrás de um
sorriso constante. Todo perdão é mortífero se
chega na hora errada, toda a traição é imperdoável se traz em si o signo de uma covardia
que para o eu sempre nasce enviesada. Cancerígena. Hipócrita.
O pai tinha ido até lá para recuperar sua
família.
Ver os filhos fê-lo mais forte. Ver a mulher
que o magoara fê-lo mais fraco. A mãe percebeu com nitidez o espectro que penetrava as
narinas dele, por um momento titubeou entre os mares de culpas, a mágoa pela surra e a
agonia de não achar mais sentido naquela vida
de oca transição. Fora caprichosa e tola, uma
vaidosa, o caso não havia durado nem o suficiente para poder chamá-lo de alguma paixão.
Se cedesse ali seria para sempre moldura vazia.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 54
Pegou-lhe a mão e ao sentir sua repulsa esperou com humildade que ele chegasse no lugar
onde ela estava agora.
Aos poucos o homem fez um esforço e sorriu um pouco numa careta tensa e engraçada.
A mulher inclinou a cabeça num gesto suave
de ave indefesa. Os meninos se entreolharam
permitindo-se pela primeira vez um pouco de
esperança. Observava-se com atenção o pai
erguer o peito buscando talvez recuperar um
pouco da dignidade, aquela mesma que vinha
assistindo escoar hemorragicamente desde
que soubera dela. Desajeitado cumprimentou
os outros da casa. Havia em tudo certo sentimento de decoro, uma solenidade amarela,
algo como o final de um réquiem quando os
músicos aliviados encerram suas partituras
com cuidado para que não pairem dúvidas
quando ao momento final.
Cassiano foi o primeiro a enfiar suas poucas coisas no carro e aguardar sentado impacientemente enquanto os pais se despediam
dos avós e tios. Com o carro em movimento
dava para ver sua cabeça recostada de lado,
vislumbrando o ar pelo vidro traseiro, como
se dormisse os sonos dos justos, mas de olhos
abertos, ainda atentos, de vigília.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 55
|Danielli de Cassia Morelli Pedrosa |
OPOSIÇÕES E CORRESPONDÊNCIAS EM
MEMÓRIAS DE DUAS JOVENS ESPOSAS
um estudo do duplo em balzac
Este estudo se propõe a identificar e analisar os aspectos da construção e da organização das personagens Luísa de Chaulieu e Renata de Maucombe, na obra Memórias
de duas jovens esposas, de Balzac. Pretende-se destacar
elementos da relação de duplo, estabelecida entre as personagens, e do movimento especular sobre os quais toda
a ação da obra é articulada. Utiliza-se como fundamentação teórica desta análise o conceito desenvolvido por
Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, que, ao edificar
uma justaposição entre Apolo e Dionísio, representa as
duas faces de um duplo que, tal qual o que ocorre entre as
duas personagens de Balzac, não existem sem seu oposto.
Essa dinâmica entre as personagens balzaquianas é apresentada em dois movimentos opostos que evoluem em
intersecção - cada um representando os posicionamentos
e a vida de uma das protagonistas – que, em constante
contestação, mais do que alcançar uma complementaridade, acabam por nutrir tal antagonismo, cada qual se
fortalecendo e se consolidando em seu lado da polarização. Ao final, o fenômeno estabelecido a partir desse jogo
dialético é o início de uma discussão fundamental para o
delineamento de um novo tipo de representação social feminina, com toda sua bagagem de duplicidade e conflito,
a saber: a mulher moderna.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 56
De forma geral, a obra trata de uma extensa correspondência entre duas amigas de
longa data, que ao abandonar o convento em
busca de uma vida não religiosa, trocam as
experiências vividas, cada uma em sua própria circunstância, descrevendo seus acontecimentos, sentimentos, ideias, planos e visão
de mundo. Encontram-se também cartas do
marido de Renata, dos dois maridos de Luísa
e de um dos cunhados, todas necessárias para
esclarecimentos dos fatos em si, sem que estas
interrompam ou alterem o foco narrativo, que
é a relação das duas personagens principais e
seus desdobramentos.
Segundo Ronai (2012), a primeira menção
desta obra por parte do autor acontece em
1834 quando em cartas para sua noiva, Condessa Hanska, Balzac anuncia que vai ocupar-se “com as memórias de uma jovem esposa”.
Apenas em 1841 define como título definitivo
Memórias de duas jovens esposas, revelando inicialmente uma óbvia intenção de escrever, não
em forma de cartas entre duas amigas, mas,
sob a forma de memórias escritas por uma só.
Muitas informações corroboram a ideia de que
a primeira figura a ser imaginada por Balzac
tenha sido Renata. Falas de Renata para Luísa,
como “é que tu me afiguras uma outra eu mesma” ou como “Tu, querida Luísa, serás a parte
romântica de minha existência” ilustram por
si mesmas essa ideia.
Evidências atribuem o quadro da vida conjugal de Renata, tão realista para os padrões
da época, a confissões reais de uma amiga do
autor, Sra. Zulma Carraud. A figura correspondente de Renata, Luísa, parece ter nascido de
uma necessidade de melhor explicar a vida da
primeira por meio de uma oposição.
A temática do duplo é recorrente na literatura a partir do século XVIII, se num primeiro
momento é utilizada como um reforçador da
ideia de homogeneidade nos aspectos identitários, no romantismo passa a ser retomada
do ponto de vista contrário, ou seja, da heterogeneidade (Gonçalves, 2011). Nesse período
o conceito de singularidade do sujeito é deixado de lado, consequentemente, trazendo uma
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 57
ções que expressem desmedida, vibração,
autenticidade (como, por exemplo, a música, o sofrimento, o sexo) entre outras.”
fragmentação da ideia de eu. É da perspectiva
dessa quebra de unidade do eu que o duplo
heterogêneo surge, tornando-se várias vezes
metáfora da busca pela identidade. Em sua
heterogeneidade, o homem objetiva afirmar
uma integralidade, uma unidade, uma identidade homogênea que precisa se repensar e se
reconstruir a cada instante. (Bravo, 2002)
A identidade se constrói por meio das relações com o outro. O eu só existe através do
outro, o outro é aquele que nos direciona, só
podemos definir nossa posição em relação ao
outro. O processo de compreender-se só pode
se realizar mediante a alteridade. O duplo é
uma instância sempre presente, crítica e sempre gerando opiniões por parte de seu outro, já
que é por meio dela que o sujeito constrói sua
identidade. (Bakhtin, 2006)
É desse movimento constante de compreender a si e ao outro através da constante
oposição que surge a força dessa narrativa.
A dicotomia Apolíneo-Dionisíaco - expressão referente aos mitos gregos de Apolo e Dionísio - foi popularizada por Nietzsche, na obra
O nascimento da tragédia, como um contraste
entre o espírito de racionalidade, ordem e harmonia intelectual, representado por Apolo e o
espírito da espontaneidade e do êxtase, representado por Dionísio.
Apolo surge como um deus de “poderes
configuradores”, pois governa a forma, a proporção, a perspectiva (entre outros elementos) gerando harmonia e a “ilusão” da bela
aparência das coisas. É o mito que representa
a semente do pensamento racional, desenvolvido posteriormente pela filosofia, trata de experiências que se relacionam com a exatidão,
característica própria da razão, sendo que
mesmo a fantasia apolínea nasce da crença
na supremacia da objetividade, da dominação da vida por meio de artifícios reflexivos.
O caráter apolíneo, de propensão filosófica,
possui o dom de considerar homens e todas
as coisas como imagens oníricas e interpreta
a vida através dessas imagens. Através de uma
limitação mensurada por elementos racionais,
de uma liberdade em face das emoções mais
selvagens, desfruta de uma sapiente tranquilidade e de uma ênfase no princípio da individuação (conceito junguiano que descreve o
processo através do qual o ser humano evolui
de um estado infantil de identificação para um
estado de maior diferenciação, o que implica
uma ampliação da consciência).
No que tange à arte e a vida podemos
denominar apolíneas as manifestações
que expressem exatidão, harmonia, prudência, ilusão (como por exemplo, as artes plásticas) e dionisíacas as manifesta-
Apolo, como divindade ética, exige dos
seus a medida e, para poder observá-la,
o autocontrole. E assim corre ao lado da
necessidade estética da beleza, a exigência do ‘conhece-te a ti mesmo’ e ‘nada em
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 58
demasia’, ao passo que a auto-exaltação
e o desmedido eram considerados como os
demônios propriamente hostis da esfera
não apolínea. (Nietzsche, 2007, p.370)
No duplo balzaquiano, cabe a Renata o caráter apolíneo, tem esse papel reafirmado pela
própria parceira de dualismo em falas como
as que se seguem: “Portamo-nos as duas de
modo bem singular: muita filosofia e pouco
amor, é o teu lema; muito amor , pouca filosofia, o meu.” (Balzac, 2012, p. 351) “Ó minha
sublime Renata, acho-te agora muito grande!
Dobro os joelhos diante de ti, admiro tua profundeza e tua perspicácia.” (Balzac, 2012, p.
404) “Querida imbecil, a tua carta bem mostra
que só conheces o amor teoricamente.” (Balzac, 2012, p. 440) “O que vais classificar de minha loucura, minha Renata, eu a quis realizar
só por mim...” (Balzac, 2012, p. 467).
Ao aceitar o papel imposto pelos pais, de
casar-se cedo com um homem mais velho e
conveniente, imediatamente a personagem se
apropria de uma severidade e de uma maturidade pouco esperada numa moça tão jovem.
De quase noviça a espécie de oráculo, Renata
desliza por sua trajetória previsível, recheada
de estratégias de ascenção social e econômica,
numa posição bastante confortável enquanto
soberana de um marido velho totalmente submisso e, senhora de si, através de um controle
milimétrico e ferrenho de cada emoção e desejo que a sorte poderia lhe trazer. Em raras
exceções, quando confrontada pela felicidade
amorosa de Luísa, demonstra algum senti-
mento pelo fato de ter aberto mão de suas
ansiedades adolescentes pelo amor e consola-se sempre na possibilidade do amor materno,
embora reconheça que a presença de Luísa e
de sua oposição lhe possibilita manter-se em
seu equilíbrio apolíneo, apesar de constamentemente lhe criticar os “desvarios”.
Apolo deseja sempre conduzir os seres a
uma vida sensata e tranquila, traçando linhas
fronteiriças entre eles e trazendo à sua memória, através de exigências de autoconhecimento e comedimento, que tais linhas são as mais
sagradas do mundo. (Nietzsche, 2007) No
caso de Renata, tais linhas estruturantes são
as normas sociais e as exigências culturais da
época, suas imposições ao papel feminino adequado. Embora seja impossível não comentar,
que ao contrário do que era esperado pelos
padrões de então, Renata se torna a franca
soberana de sua casa. Ainda que mascarada
pelas aparências para não ridicularizar o marido, fica explícito em toda a narrativa, que uma
jovem de 17 anos dominava e conduzia um
marido de 37 em todas as coisas, realizando a
contento cada uma de suas ambições.
No discurso da persongem são explícitas
as características formais do caráter apolíneo.
Em cartas recheadas de descrições imagéticas
e de análises filosóficas, todos os outros personagens e as circunstâncias surgem como elementos de um quadro sobre o qual ela reflete,
analisa e disserta. Construindo para si mesma
e apregoando a Luísa, as bases da ilusão de um
controle absoluto – sobre si mesma, sobre a
vida, sobre as pessoas que a cercam e sobre
o destino – e através da qual estabelece suas
escolhas e posicionamentos de vida, como demonstram suas expressões abaixo:
[...]vejo a vida como uma dessas
grandes estradas da França, lisa e suave,
sombreada por árvores eternas. (Balzac,
2012, p. 305)
Minha vida está agora determinada. A
certeza de seguir por um caminho traçado convém igualmente ao meu espírito e
ao meu caráter. Uma grande força moral
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 59
corrigiu para sempre o que denominamos
os acasos da vida. (Balzac, 2012, p. 324)
Se empreendo reerguer esse caráter
deprimido, restituir seu brilho às qualidades que nele entrevi, quero que tudo
pareça espontâneo em Luis. Tal é a tarefa suficientemente bela que me impus e
que basta para a dignidade de uma mulher. (Balzac, 2012, p. 345)
Estudei cruelmente o papel da esposa
e da mãe de família. (Balzac, 2012, p.365)
Durante essa vida animada por festas
(...) e à qual assisto como a uma peça teatral bem representada, eu levo uma vida
monótona e regrada, à semelhança da
vida de convento. (Balzac, 2012, p. 395)
A individuação apolínea, revelada num desejo perene de proteger seu verdadeiro eu, evitando emiscuir-se no outro, o que representa
o oposto do anseio dionisíaco pela unificação,
é muito bem ilustrada por Renata ao dizer que
“Permanecendo na solidão, uma mulher nunca
se torna provinciana, conservando-se o que é.”
(Balzac, 2012, p.325) ou em “eu muito desejava permanecer nessa bela estação da esperança amorosa, que, não gerando o prazer, deixa à
alma a sua virgindade”. (Balzac, 2012, p.341)
Assim como em Nietzsche, sem a relação
fraterna complementar Apolo-Dionísio, a tragédia não seria um espetáculo possível - pois
sem Apolo ela perderia seu caráter mimético
e sem Dionísio perderia o vigor e a expressão
de vida, tornando-se apenas uma expressão
formal e uma supremacia da razão – não se-
ria possível uma Renata sem uma Luísa, o que
parece ter sido bem intuído e bastante investido por Balzac na construção das personagens.
Renata sem Luísa não passaria de um diário
de uma jovem casada ao gosto dos costumes
da época, às voltas com suas múltiplas obrigações de mãe e dona de casa ambiciosa, por
sua vez, Luísa sem Renata traria talvez as delícias e martírios de uma jovem passional e
espontânea em conflito com as exigências da
sociedade, lugar comum nos romances do século XIX. Já as oposições e correspondências
entre as duas, acentuadas pelo estilo epistolar
que enriquece muito a narrativa, ao permitir maior ingresso no universo subjetivo das
personagens, acabam por transformar a obra
em uma criação de “extraordinária penetração
psicológica, com intensa dramaticidade” (Ronai, 2012, p.271) que pode ser considerada de
fato uma grande obra e com uma sofisticada
atmosfera trágica, que dificilmente poderia
ser produzida de outra forma.
Como possível primeiro vértice do duplo,
Renata retrata Luíza num tom profético que
sempre destaca seus lugares antagônicos e sua
ligação de almas:
Em que sociedade brilhante vais viver! Em que tranquilo retiro terminarei eu minha obscura carreira! (Balzac,
2012, p. 301)
Enquanto te preparas a colher as alegrias da mais ampla existência, a de uma
srta. de Chaulieu, em Paris, onde reinarás, tua pobre corça, Renata, essa filha
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 60
do deserto, caiu do empíreo onde nos alDionísio aparece como oposição à ilusão
candorávamos nas realidades vulgares
apolínea de controle. Entre outros atributos, é
de um destino simples de uma margarida. “o deus da vida, da metamorfose, da desmedida,
(Balzac, 2012, p.305)
da morte, do sexo, da dor e da música.“² DioTu, querida Luísa, serás a parte ro- nísio é a expressão da vida autêntica, “na qual
mântica da minha existência. (Balzac, a alegria é vivida quando a situação o pede e o
2012, p.306)
sofrimento não é negado quando a dor se lhe
Afligiste-me sem querer, e, se não fôs- apresenta”². Insta a uma experiência de vida
semos duma única alma, eu diria que me
sem artifícios, espontânea, verdadeira, onde a
feriste, mas não nos ferimos também a
dor é vivenciada sem anestésicos metafísicos,
nós mesmas? (Balzac, 2012, p.362)
em total oposição ao caráter simétrico e harTuas cartas dão um sabor passional monioso de Apolo. Através do caráter dionià uma vida doméstica tão simples, tão
síaco, acontece um lançar-se à radicalidade da
tranquila, uniforme como a estrada real vida, para a realidade dos revezes do destino.
num dia de sol. (Balzac, 2012, p. 373)
É comum uma associação dos cultos dionisía...teus amores parecem-me um sonho!
cos com o estado de embriaguez e desenfreada
Por isso sinto dificuldades em compreen- licença sexual, que conduz a um esquecimento
der como os tornas tão românticos. (Bal- de si próprio e a uma libertação de si mesmo
zac, 2012, p.396)
culminando num entusiasmo, resultado da
Das duas eu sou um pouco a Razão, possessão pelo deus. Desta forma, o indivíduo
como tu és a Imaginação; eu sou o gra- com todos os seus limites, afunda numa espéve Dever, como tu és o louco Amor. Essse
cie de autoesquecimento e com ele, esquece-se
contraste de espírito que não existia se- também dos preceitos apolíneos, o desmedido
não para nós duas, à sorte aprouve con- surge como a verdade, toda a contradição da
tinua-los nos nossos destinos. (Balzac, existência humana aparece com suas dores e
2012, p.432)
prazeres, surgindo como do coração da natureza. Não se fala mais de ascese, espiritualidaSurge então Luísa - provavelmente a se- de ou dever, apenas de uma opulenta e triungunda criada pelo autor, mas a primeira a
fante existência.
surgir no romance - dotada de um caráter dionisíaco ilustrado até mesmo por uma profun[...]o único Dionísio verdadeiramente
da relação com a música, arte dionisíaca por
real aparece numa pluralidade de confidefinição: “Unicamente a música me encheu
gurações, na máscara de um herói lutaa alma, só ela foi para mim o que foi a nossa
dor e como que enredado nas malhas da
amizade.” (Balzac, 2012, p.319)
vontade individual. Pela maneira como
o deus aparentemente fala e atua, ele se
assemelha a um indivíduo que erra, anela e sofre. (Nietzsche, 2007, p.67)
Luísa demonstra em cada carta, observação, descrição, tamanho entusiasmo e magnetismo, que torna impossível ao leitor uma não
identificação instantânea. Toda sua sede de
viver e sua curiosidade pela vida são reveladas
a cada situação vivenciada e na maneira como
a personagem muito mais sente, do que pensa as situações. Existem uma verdade e uma
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 61
espontaneidade características em Luísa, que
a despeito de sua inteligência e de sua perspicácia, acabam por dominar suas escolhas, nem
sempre acertadas e quase nunca precavidas.
Aspectos preponderantes de seu caráter passional se revelam constantemente em sua fala:
É uma vantagem imensa não ser uniforme. (Balzac, 2012, p.293)
Sinto ainda vivamente o golpe desse primeiro choque de minha natureza
franca e alegre com as duras leis do mundo. (Balzac, 2012, p.315)
O amor é, certamente, uma enncarnação, e que condições não serão necessárias para que ela se realize! (Balzac,
2012, p.319)
Há não sei que apetite em mim para
as coisas desconhecidas ou, se quiseres,
proibidas, que me inquieta e revela, no
meu íntimo, um combate entre as leis
da natureza e as da sociedade, mas surpreendo-me a fazer transações entre essas potências. (Balzac, 2012, p.374)
Em toda a obra de Balzac observa-se uma
preocupação intensa e, inclusive admitida pelo
próprio, pela retratação autêntica dos costumes de sua época. É nítida em toda obra balzaquiana essa nuance visionária que lhe permite
intuir, através dos acontecimentos históricos,
políticos, econômicos e sociais, o sentido de
seu tempo, identificando as potências anônimas e as forças do invisível, suas tendências
e probabilidades. Ainda que se atribuam mui-
tas vezes ao autor a alcunha de conservador, o
mesmo não consegue evitar ver-se fascinado
por personagens que escapam ao seu controle
como Luísa de Chaulieu, exatamente por não
se encaixarem nas exigências e papéis de sua
época. Talvez desse fascínio tenha surgido
essa leitura da história em colisão constante
com a progressão romanesca evidenciada na
construção dessas duas personagens.
Embora o desfecho trágico de Luísa corresponda exatamente ao apogeu de Renata,
quando da conquista de todas as suas ambições: Paris, os filhos, a ascensão do marido e
sua afirmação como grande dama da sociedade, Balzac não nega a Luísa a dignidade de
sua escolha, uma vez que seus amores foram
verdadeiros, demonstrando aqui uma equivalência dos contrários e uma autenticação da
importância de cada um, todos os seus desejos são realizados, inclusive o de morrer aos 30
anos, ainda jovem, bela e atraente. Ao final, ao
ver a amiga morta (seu duplo), de coração despedaçado, Renata chama pelos filhos, a base
sobre a qual todo sentido de sua vida e de seu
controle ilusório fora construído, sem Luísa
lhe resta apegar-se a eles para manter-se viva.
A correspondência entre as personagens
se dá, não só por sua visão de mundo e características pessoais, mas também na forma
como o autor trabalha as relações de tempo e
de espaço. Se de início temos Luísa debutando em Paris e Renata começando uma vida de
casada provinciana, vemos aos poucos as duas
invertendo tudo, Luísa morrendo ao final, isolada em um chalé no campo enquanto Renata
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 62
acompanha o marido em seu sucesso profissional e social em Paris. Enquanto Luísa, sem
conseguir gerar filhos, se aprofunda nas experiências amorosas por dois homens diferentes, em dois momentos diferentes, em duas
relações muito diferentes, hora sendo adorada, ora adorando, Renata gera três filhos a
quem se dedica e com quem se relaciona mais
profundamente na impossibilidade de entregar-se amorosamente ao marido, sentido sempre como homem inferior, a quem cabia a ela
elevar. Se no início temos a sensação de que
Luísa abre-se para a vida, enquanto Renata se
enclausura, ao final, temos o sacrifício de Luísa em prol da ascensão de Renata, concluindo
a dualidade das personagens.
Seguindo o conceito de Candido, de que “o
escritor dá a personagem, desde logo, uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a curva de sua existência e a natureza
de seu modo de ser” (1995, p.59), concluímos
que na obra citada, onde o duplo Luísa-Renata se contrapõem constantemente em valores renovadores e conservadores da sociedade vigente, observa-se através da natureza
de cada personagem e de suas relações, um
trabalho de revisão constante de questões
fundamentais para a construção de uma nova
identidade feminina, díades como: dever x
paixão, amor x maternidade, dependência x
autonomia, dominação x submissão, são discutidas exaustivamente e organizados num
posicionamento apolíneo x dionisíaco por si
mesmo muito produtivo. Acompanha-se no
enredo o desdobramento das escolhas das
personagens, sendo que o destino de cada
uma define e é definido pelo da outra, não de
forma intencional, mas de forma especular.
Deste modo, destacamos a importância desta
obra ao discutir questões pertinentes, ainda
hoje atuais, revelando a multidimensionalidade do autor, a acuidade de suas percepções
e a atemporalidade de suas contribuições.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 63
|Danielli de Cassia Morelli Pedrosa |
REVISANDO LILITH EM A PELE QUE HABITO
compreendendo os aspectos da conflitiva homem-mulher
Assistir ao filme A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar,
é entrar em contato com o Mito da forma mais perturbadora possível, ou seja, reatualizado. Tudo ali é mítico!
O tempo é mítico porque é circular, passado e presente
se substituindo num emaranhado de fatos que aos poucos
ganha significado e significados os mais surpreendentes,
significados que mudam tudo, dando ao enredo novos
equilíbrios, um novo entendimento, portanto, significados míticos. E mesmo a tentativa da personagem Vera de
demarcar o tempo, escrevendo os dias na parede, iniciando
de trás para frente, se perde num infinito de riscos mediados por desenhos míticos, míticos porque desenhos que
buscam explicar o homem.
O espaço é mítico. A escolha de Toledo como cidade
central da trama não poderia ter sido mais acertada. A
cidade espanhola, declarada 'World Heritage Site' pela
UNESCO em 1986 por sua característica de coexistência
pacífica das culturas cristã, judaica e islâmica (“The City
of Three Cultures”). Lugar onde mundos se encontram
e se confluem - na lógica mítica, ponto de onde os mundos também se originam.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 64
Talvez, a presença de elementos do Brasil no filme não se deva apenas ao gosto pela
cirurgia plástica, como justifica o diretor, fazendo muito mais sentido, assim, a ponte do
quadro de Tarsyla Amaral, exposto na parede
do quarto, na cena em que Gal carbonizada caminha para a janela. Brasil - um lugar onde as
culturas também se encontram, se confluem e,
portanto, de onde também se originam.
Chama a atenção o nome da mansão do
médico, “El Cigarral”, ou lugar das cigarras,
alusão clara ao fato que se tem ali um lugar
onde metamorfoses acontecem: uma casa de
campo que é palco de encontros e tragédias,
onde coisas vivas são criadas e recriadas sob
o desejo de um demiurgo autoritário, onde
o sagrado está presente através de deuses
pendurados nas paredes (Vênus, Dionísio e
Ariadne) e onde conversas ao redor de grandes piras incendiadas explicam as origens e
os segredos da vida. Temos até um jardim de
mansão para orgias dionisíacas.
Os personagens são míticos: temos um
Adão /Lilith /Galatéia enclausurado (Vicente-Vera), temos um Prometeu pós-moderno/
Frankenstein espanhol/ Pigmaleão/ Dionísio
(Robert), temos também um Zeus lascivo e
infantilizado (Zeca) metamorfoseado em tigre
amordaçando a própria mãe e violentando uma
mortal - homens agindo como deuses, segundo
seus desejos e intentos, acima do bem e do mal,
oprimindo os mortais, geralmente mulheres
(ou homens que transformam em mulheres...
rs..). Temos virgens apavoradas (Norma) diante
de homens-sátiros excitados e confusos (Vicente) e até uma Europa/Lilith mãe de monstros
(Marília). Tudo isso numa amoralidade que soa
muito natural, como devia ser no Olimpo.
São tantos os mitos evocados pela história,
pelos detalhes, pelos fatos do filme e pela atuação dos personagens que antes de mergulhar
nessas analogias, faz-se mais do que necessária
uma introdução ao assunto.
A partir do século XX, os eruditos ocidentais retomaram a percepção de mito oriunda
das sociedades arcaicas, passando a compreendê-lo como a designação de uma história
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 65
verdadeira, dotada de um caráter exemplar,
significativo e sagrado. O homem moderno,
compreendendo a si mesmo como construído
pela História, assim como o homem arcaico
se considerava o resultado de uma série de
eventos míticos, acaba por admitir o mito,
não como teoria abstrata ou fabulação vã, mas
como elemento constitutivo de sua formação,
codificação verdadeira do sagrado primitivo e
sabedoria prática. (Eliade, 1963, p.7)
Nas sociedades onde o mito vive como
modelo para a conduta humana, dando valor
e significado à existência, é possível esclarecer não só uma etapa na trajetória do pensamento humano, mas também elucidar a
contemporaneidade - captar os sentidos por
trás da conduta, entender suas causas e reconhecê-las como fenômenos humanos.
O mito é uma realidade cultural extremamente complexa (...) conta uma história sagrada, ele relata um acontecimento
ocorrido no tempo primordial, o tempo
fabuloso do princípio (...) narra como,
graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja
uma realidade total, o Cosmo, ou apenas
um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma
instituição. (Eliade, 1967, p.11)
Todo mito de origem pressupõe e prolonga a cosmogonia; como a criação do mundo é
a criação por excelência, a cosmogonia torna-se o modelo exemplar para toda a espécie de
‘criação’. Todo mito de origem introduz uma
situação nova, algo que ainda não existia.
O meio cósmico em que se vive, por
mais limitado que se vive, por mais limitado que possa ser, constitui o “Mundo”;
sua origem e sua ‘história’ precedem qualquer outra história individual. (...) Uma
coisa tem uma origem porque foi criada,
isto é, porque um poder se manifestou
claramente no Mundo, porque um acontecimento se verificou. (Eliade, 1967, p.39)
Para o homem religioso, o essencial precede a existência, o homem tornou-se o que é devido a uma série de eventos, o mito os relata e
com isso explica como e porque a humanidade
se formou dessa maneira. A existência real se
inicia no exato instante em que este homem
recebe essa história primordial e aceita as suas
consequências. Sempre se trata de uma história divina, portanto, eterna e atemporal.
Os eventos essenciais não são os mesmos
para todas as religiões. No caso do mundo
judaico-cristão (ou seja, o nosso), o evento essencial é o drama do Paraíso, cujo qual
constituiu e definiu a condição humana como
se apresenta. Inevitável pensar em mitos de
criação (e tudo no filme gira em torno da
criação, na figura deste Prometeu Pós-moderno, Frankenstein espanhol), sobretudo na
nossa cultura ocidental, sem pensar no Éden
e em todos os desdobramentos que isso significou para nós, ainda mais no que tange à
problemática da relação entre gêneros.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 66
Almodóvar, talentoso e ousado cineasta, trazia em si fundidos o princípio masculino e
grande inovador da sétima arte e reconhe- o feminino, só depois teriam sido separados
cidamente um questionador dessas relações, sucessivamente. Segundo os comentários do
cuja temática se apresenta de forma insisten- Rabi Abba, no livro do Esplendor – o Sepher
te em toda a sua obra (títulos como Mulheres Ha-Zohar (um dos livros Canônicos judaià beira de um Ataque de Nervos, Fale com Ela, cos, série de comentários místicos sobre a
Tudo sobre minha Mãe, Ata-me, Abraços Parti- Torá - os cinco livros de Moisés - escritos em
dos, entre outros, são um verdadeiro desfile
aramaico e hebraicomedieval, contendo uma
de diversas abordagens sobre o assunto), traz
discussão mística sobre a natureza de Deus e
em A Pele que Habito, em todo resgate mitoló- considerações sobre a origem e estrutura do
gico que o filme propõe, mais um lugar onde
universo, a natureza das almas, pecado, reo conflito do Paraíso, em sua versão comple- denção, o bem e o mal, e diversos temas relata, incluindo o Adão andrógino e Lilith, é re- cionados), o primeiro homem era macho e fêtomado e discutido. Para quem nunca ouviu
mea precisamente para que se assemelhasse a
essa, cabe uma explanação.
Deus que não tinha distinção de sexos em si.
Segundo o mito judaico-cristão, Jeová-Deus (Sicuteri, 1998, p.13)
decidiu criar o homem para que se tornasse o
Pode-se associar a esse entendimento, o
coroamento da criação e disse: “Façamos o ho- mito do Andrógino Primordial, considerado
mem, que seja a nossa imagem, segundo a nos- um representante do mito do duplo na mitosa semelhança.” (Gênesis 1.26)
logia grega, localizado n’O Banquete, de PlaEmbora possa se pensar na estrutura afe- tão. Segundo o filósofo grego, a constituição
tiva e sexual de Adão em termos antropológi- do homem era diferente da atual, havia três
cos, existe um mistério obscuro a respeito da sexos na espécie humana, além do masculiprimeira companheira de Adão: a mitologia no e do feminino, existia um que participava
bíblica reforça a ideia de uma androginia ini- tanto no aspecto, quanto no nome de ambos
cial, ao afirmar que “Deus criou o homem à os outros. O masculino era considerado fisua imagem, à imagem de Deus o criou, ma- lho do sol, o feminino da terra e o comumcho e fêmea os criou.” (Gênesis 1.27) Este é -de-dois, da lua. Os andróginos eram fortes
um trecho sinuoso, pois introduz o conceito
e orgulhosos de sua completude e perfeição,
de androginia no indivíduo, segundo o prin- atreveram-se contra os deuses e foram punicípio da harmonia total do Uno que é feito de
dos, separados. (Santos, 2011, p.104)
Dois e também perpetua, através da multipliDa mesma maneira, o homem do Éden
cação da espécie, na união do masculino com o - inicialmente Uno e indiferenciado - ao gafeminino, a imagem de Deus, já que o homem
nhar maior consciência, é separado em dois.
lhe é semelhante. Sob essa perspectiva, Adão A compreensão dessa separação, como se deu
e quais foram suas consequências é essencial
para esse estudo.
Segundo a mitologia judaica e babilônica,
inicialmente o homem, além de andrógino,
teria também uma sexualidade indiferenciada e primitiva, acasalando-se inclusive
com animais, afastando-se dessas práticas
quando conseguiu reconhecer a mulher, uma
“auxiliadora que lhe fosse idônea” (Gênesis
2.18), o Adão bíblico solicita uma companheira quando identifica sua própria insatisfação. Os comentários rabínicos consideram
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 67
uma metáfora desse abandono do primitivismo, o livro sagrado dizer que Adão deixaria
pai e mãe para unir-se à mulher (uma vez
que o mesmo não tinha pais). Assim fica velado o desinteresse pela inferioridade animal
ao orientar-se para uma companheira mais
digna. Comenta-se, inclusive, que Adão inicialmente tinha um rabo, que lhe foi retirado
para seu decoro, informação ratificada pelos
estudos científicos a respeito da evolução do
corpo humano. (Sicuteri, 1998, p.15)
É no momento em que Adão nomeia os
animais, em Gênesis 2.20 que parece compreender a necessidade da diferenciação, Adão
abandona então a parte de sua identificação
com o divino expressa na androginia, supera a
sexualidade animal e eleva-se pedindo a Deus
uma companheira. De acordo com a compreensão rabínica, Deus não teria criado logo
de início uma companheira para Adão porque
“viu que Adão se lamentaria dela, por isso não
a criou enquanto não a tivesse pedido...” Deste
modo a mulher nasce, por desejo de Adão, que
dera-se conta de sua própria solidão e também
de si mesmo, de sua própria alma.
O mito de Lilith surge na grande tradição
oral, reunida nos textos de sabedoria rabínica
de versão jeovística e é paralelo, precedendo-o
em alguns séculos, ao da versão bíblica. Tais
narrações, especialmente no que concerne ao
nascimento da mulher, são repletas de contradições e mistérios excludentes. Deduz-se que
a narração sobre Lilith, primeira esposa de
Adão, perdeu-se ou foi removida no período
da transposição da versão jeovística para a sa-
cerdotal, em seguida sendo alterada pelos Pais
da Igreja. (Sicuteri, 1998, p.23)
A redescoberta de Lilith nos remete a uma
compreensão da origem da relação homem e
mulher, da cisão entre instintivo e racional,
também a um esclarecimento do grande equívoco do primado do masculino sobre a mulher sentida como inferior. “Toda a história
psicológica da relação homem-mulher (...) é
uma série de notas de rodapé à história de
Adão e Eva.” (Hillman, 1984, p.13)
Dizem os rabinos que desde o início de
sua criação, Lilith foi somente um sonho e
o sonho, para o homem, é a voz potente de seu espírito e de sua profundidade
interior. No sonho não existe espaço para
verdade ou inverdade, para a lógica ou a
fantasia. No sonho o homem está inteiro
(...) E tudo existe, como existe o homem.
Porque existe o homem que sonha. E Lilith
para nós nasce talvez do sonho ou da narrativa dos rabis, nasce de uma necessidade ou de uma fantasia coletiva. (Sicuteri,
1998, p. 25)
Lilith pode ser identificada nas sutilezas,
subentendidos e alusões analógicas do Beresit-Rabba (o primeiro livro da Torá). Surge definitivamente em Gênesis 1, Deus os abençoou
e, segundo a versão jeovística, macho e fêmea
humanos estavam em estado animal, indiferenciados e sem disparidade entre os sexos. Eles
eram informes. O “desta vez” de Gênesis 2.2225¹, quando da criação de Eva, dá margem de
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 68
referência para esta mulher antecedente. Segundo a tradição, Lilith nasceu cheia de saliva
e sangue e era capaz de instigar em Adão uma
insustentável perturbação e isso o assustou terrivelmente. Em outra versão, teria sido criada
com fezes e imundície em vez de pó puro, denotando intenção de Jeová em criar a mulher
inferior ao homem.
Na criação de Lilith está implícita a
perda da unidade mágico-religiosa dos
dois sexos na pessoa única do ‘homem’. A
mulher, evidentemente, enquanto reprimida e comprimida sob a autoridade do
macho, tentava reconquistar então, a paridade. Lilith nasceu das mãos do Jeová
Deus, impura, humana: Um Adão, portanto. (Sicuteri, 1998, p. 28)
Como Lilith nasce após Adão, ao entardecer do sexto dia, assim como os répteis e os
demônios, já entra no mito com uma carga
de fatalidade, um verdadeiro espírito deixado informe por Deus, ela é uma companheira
que possui uma identificação com a serpente e o demônio, Lilith estaria mais próxima
do protótipo natural da mulher do que Eva.
As diferentes reações de Adão frente às duas
naturezas femininas, censurando Lilith (vista como carnal e como aquela que seduz) e
aceitando Eva (vista como imagem do bem),
não o isenta de que ambos os femininos lhe
tragam desgraças, uma vez que a dócil Eva
também é seduzida pela serpente e pela sua
própria curiosidade.
Embora a mulher tenha sido criada para
personificar o sentimento que liga o homem
da antiga tradição a seu Deus, o amor entre o
casal é perturbado quase que de imediato. No
caso de Lilith, não havia paz entre eles porque quando se uniam sexualmente na posição
tida como mais natural – mulher por baixo do
homem – ela se impacientava e questionava
porque deveria abrir-se sob o corpo de Adão,
porque deveria ser dominada por ele, se fora
feita do pó e, portanto, sua igual. Solicitou então a inversão de posicionamento para estabelecer uma paridade entre eles. Adão recusou e
a submeteu. Lilith não aceita essa imposição
e se rebela contra Adão, pronuncia irritada o
nome de Deus, acusa o homem, transgride a
ordem e rompe o equilíbrio. Adão se vê abandonado e em seu desespero recorre ao Pai que
interpreta o desafio ao homem, como um desafio ao divino. (Sicuteri, 1998, p.35)
Lilith voa para longe, na direção das margens malditas do Mar Vermelho. Após ter
profanado o nome do Pai, se torna o veículo
do pecado, o símbolo da transgressão. O “demônio’”em Lilith impele a mulher a “fazer
algo” que o homem não permite: Lilith pede a
inversão das posições no coito, Eva obedece a
serpente e come o fruto proibido. Parece haver
uma espécie de lei natural que impele a mulher
à prevaricação para não ser obrigada a submeter-se ao homem. Tanto Lilith quanto Eva assumem o risco de seus atos e modificam tudo, dão
origem a uma outra coisa, a uma nova ordem, a
uma situação nova, a um outro mundo. Lilith
tem sua natureza alterada quando blasfema
contra Deus, já não é mais capaz de obedecer,
não é mais companheira de Adão, passa a relacionar-se com espíritos maléficos e a parir
demônios. Embora tenha uma natureza astuta
como a da serpente e uma grande sabedoria
demoníaca, seu sofrimento aumenta quanto
maior se torna o seu conhecimento. Lilith permanece na própria liberdade, endemoninhada,
talvez rainha do inferno, como seu espírito feminino. Ao declarar guerra ao Pai e receber dele
um papel demoníaco, desencadeia força destrutiva e desde então não há paz para o homem.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 69
Lilith é associada à experiência das fases
lunares (lua nova representaria sua fuga do
Éden) e manifesta o lado feroz de todas as divindades femininas. Vemos aspectos dela em
Hécate, nas Lâmias, Eríneas e Fúrias, em Medéia e nas bruxas da Idade Média, também em
toda mulher que não se submete e não desiste
diante da dominação masculina. Pensar em Lilith independente, sobrevivendo por si mesma
em oposição ao macho e à lei do Pai, sugere a
ideia de uma postura de total competição com
o homem ou uma elaboração interna do tema
da relação e a respeito disso, o mito das Amazonas sugere uma boa analogia, já que elas
constituem a forma arcaica daquilo que é chamado impropriamente de feminismo.
É sobretudo em Vicente-Vera, o homem
transformado em mulher e em sua jornada
que o mito de Lilith incide.
O filme é baseado no romance francês Mygale (ou tarântula), de Thierry Jonquet, que
rege sua principal linha narrativa com algumas mudanças criativas que melhoram o enredo. Inevitável ligar o simbolismo da aranha ao
órgão sexual feminino - ideia talvez herdada
do populacho, mas que ganha até em Saramago seu lugar, imortalizada em O Homem Duplicado. Atribui-se o título muito mais, porém,
ao fato desse tipo de aranha em vez de teias,
cavar túneis na terra, preparando alçapões
para prender suas vítimas. Pensando no título escolhido por Almodóvar, A Pele que Habito,
faz muito sentido, uma vez que a nova pele
indestrutível que continha o eu de Vicente,
representava muito mais do que um aspecto
fenotípico, mas um verdadeiro aprisionamento psíquico - pele essa acompanhada de uma
vagina, órgão celebrado e amaldiçoado pelos
séculos afora, causador de misérias, doador de
prazeres, lugar por onde se obtém a luz, para
Vicente um verdadeiro alçapão. Tendo-se em
vista o nome dado por Louise de Bourgeois
(de quem falaremos a seguir) a sua mais afamada obra, a aranha de bronze, com 9 metros
de altura, exposta no Museu Guggenheim em
Bilbao, Mamã, fica óbvio tanto o simbolismo
quanto a conflitiva sugeridas.
De modo geral, o filme trata da obsessão
de um cirurgião plástico pela criação de uma
pele transgênica, capaz de resistir a agressões
as mais diversas, em especial, queimaduras. Tal
desejo nasce inicialmente em prol da cura da
esposa, queimada gravemente em um acidente de carro, perpetuando-se depois da morte
desta, pela sua própria loucura e genialidade.
Colocando-se como criador, Robert age de forma amoral, ignora aspectos éticos e qualquer
sentimento de culpa. Movido pela vingança,
sequestra o agressor da filha (Vicente), transformando-o numa mulher em tudo semelhante
a sua esposa falecida, Gal (evocando Galatéia,
a escultura perfeita, amada por Pigmaleão, a
quem Afrodite transforma em mulher real).
Essa transformação de Vicente em Vera leva 6
anos, assim como no final dos 6 dias da criação
Lilith é criada, após o período de evolução do
Adão andrógino indiferenciado.
Transformado do dia para noite em mulher, através de uma vaginoplastia, num
processo avesso ao que se costuma fazer nos
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 70
casos de transsexualidade, em que primeiro
existe a aplicação de hormônios para a alteração das características físicas secundárias
do paciente e só depois a mudança de sexo
propriamente dita é efetuada. Vicente se
vê de imediato destituído do poder sobre si
mesmo, aqui representado muito psicanaliticamente pela perda do falo. A seguir se vê
sendo modificado dia após dia, até se tornar
outra pessoa por completo, numa sequência
de intervenções cirúrgicas e medicamentosas
completamente alheias ao seu desejo e consentimento. Vicente é feito coisa, substância,
matéria-prima para a criação de algo novo,
em uma palavra se torna argila.
Aprisionado no corpo e no espaço, reduzido
a um quarto televisionado, Vicente feito Vera,
portanto um homem posto em um corpo de
mulher ainda inacabado (Adão andrógino com
Lilith, misturados e informes), vivenciando em
si mesmo todo o processo de criação de seu
idealizador, inicia uma busca interna por equilíbrio e sobrevivência. Trilhando uma verdadeira jornada de herói, onde cada etapa é importante, onde cada escolha define o personagem,
determina assim a reconstrução de seu caráter
e destino. Em cada instante de escolha de Vera,
é a lógica de Lilith que prevalece, seu modelo de
feminino, feminino transgressor, aquele que se
recusa à submissão e à vitimização.
Nesse momento outros nomes são invocados neste caminho de formação da nova
pessoa que ainda é Vicente, mas que também
é Vera. Refletindo sobre o fato de que nas
metamorfoses míticas, por mais outro que
o indivíduo se torne, algo seu permanece, a
‘mens’, o que se observa é uma ação estratégica por parte do personagem no intuito de
preservar essa essência. Essa ideia fica bem
ilustrada pela cena em que Vera, trancafiada
em seu quarto, seleciona canais de TV. Entre
assistir a um documentário em que felinos
gigantes capturam uma presa e identificar-se
com a vítima, e um programa de Ioga, em que
a apresentadora justamente faz um discurso
sobre a necessidade de encontrar no interior de si mesmo um local de refúgio, onde
ninguém poderia lhe destroçar, opta pelo segundo e passa a praticar Ioga diligentemente,
com o objeto de “não confundir a forma – Assana – com o conteúdo”.
Vera segue sendo provada dia após dia, são
lhe oferecidas roupas de mulher, que ela se recusa a usar, mantendo-se vestida apenas com
seu macacão protetor, cor da pele que nos dá
sempre a impressão de nudez, nudez mítica,
nudez informe do paraíso e mesmo quando
aceita se vestir a agir como a mulher idealizada
por Robert, só o faz na esperança de conseguir
escapar dali. As roupas femininas, recortadas,
servem como matéria-prima para suas esculturas, inspiradas num livro em que toma contato com as esculturas de Louise Bourgeois. A
artista, muito influenciada pelo surrealismo e
pelo primitivismo, apresenta numa obra com
inequívoca dimensão autobiográfica, uma militância interior que se contrapõe ao mundo
exterior assumindo um caráter universal. Trata
especialmente das emoções mais fundamentais do homem, partindo sempre do particular,
falando da consciência trágica e brutalmente
cruel da existência humana, expressando através de suas esculturas os complexos emaranhados existentes na constituição das questões de
gênero, corpo, essência, sobretudo no que tange aos aspectos do feminino e de sua condição:
“Femme Maison” é uma série de pinturas figurativas e metafóricas que reflectem sobre identidade e condição de
género dentro da complexidade modernista e vertical da cidade em explosão. A
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 71
disfuncionalidade da arquitectura, dita
doméstica, converte-se no próprio corpo
da mulher em clausura, a mesma mulher
menina para quem a casa familiar da
infância provincial, miniaturizada em
mármore à escala de uma boneca, significava a guilhotina pendente em “Cell
(Choisy)”. Tornadas arquitecturas totémicas, as esculturas “Personages” das
décadas de 40 e 50, celebram a abstracção
antropomórfica que a linguagem anterior
não contém. Com total autonomia inicial,
começam progressivamente a integrar
ambientes cada vez mais complexos, em
diálogo umas com as outras, num histórico contributo para a genealogia da instalação. É também no espaço e do espaço
que brotam as esculturas em gesso e látex
do período seguinte. Viscerais, primitivos,
orgânicos e disformes, os corpos em metamorfose parecem libertar-se, fluidos, a
partir de fissuras e orifícios subterrâneos.
(...) Mais referenciais e controladas, as
esculturas de mármore reforçam o carácter sexual das anteriores. Falos, vulvas,
torsos hermafroditas, reconfiguram uma
linguagem escultórica híbrida materialmente classicizante. As celas e os quartos
são o apogeu narrativo do pensamento
plástico de Bourgeois. (Arte Capital - ver
referências)
Importante salientar que esse viés artístico é próprio de Vicente que já trabalhava na
confecção de esculturas e na ornamentação
de vitrines na loja de roupas Vintage de sua
mãe, costureira e restauradora de figurinos –
que comprava roupas usadas e as “reformava”. Nesse ponto vale também comentar a
importância da frase de Hemingway escrita
na parede por Vera – “A Arte é garantia de
saúde”, que sem dúvida revela o eixo paradigmático em que a essência de Vicente se apoia
para tolerar a condição de aprisionamento físico e mental em que vive. Em seus desenhos,
escritos e esculturas trata de estabelecer um
diálogo entre o que era e o que está se tornando, construindo em si mesmo outra coisa,
coisa esta capaz de abarcar todo o conteúdo
simbólico, informativo e emocional com o
qual é obrigado a lidar.
Outro momento importante de escolha
para Vicente-Vera é aquele em que ela se vê
diante da proposta de maquiar-se, recebendo
inúmeros cosméticos e um livro de orientações. A escolha da marca dos produtos, Chanel, não parece ter sido aleatória, uma vez
que Coco Chanel, costureira (como a mãe) e
estilista francesa famosa por transformar a
imagem da mulher no mundo, traz de forma
emblemática em sua história pessoal a transgressão, a recusa por submeter-se ao papel
social imposto à mulher, transmitindo essa
possibilidade a todas as outras através da
moda – ao abandonar o uso dos espartilhos,
ao cortar os cabelos curtos, ao mudar toda a
maneira de vestir a mulher, abriu do externo
para o interno um caminho novo para o feminino. É bárbaro refletir sobre isso, porque a
marca Chanel é usada para propor a Vera um
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 72
jeito de ser mulher baseado no desejo de Robert e ao recusar a maquiagem, ficando apenas com o lápis para suas escritas na parede,
Vera recusa a marca Chanel (que acabou se
tornando também um instrumento midiático de controle da mulher) e opta pela ChanelLilith, por sua ideologia igualitária e por sua
originalidade, ou seja, pela essência da mulher real. Essa grande ênfase em roupas, cortes e costuras, sem dúvida serve de metáfora
para a pele, bastando para isso lembrar-se
das cenas em que Robert está desenvolvendo
GAL em um manequim e depois em Vera. A
pele, nosso maior órgão, aquilo que nos contorna, que nos formata, que nos contém.
Um nome que surge un passant no filme,
mas que vale comentar é o de Alice Munro,
primeira contista a ganhar o Nobel da Literatura, em 2013. A escritora é conhecia por
abordar aspectos do cotidiano inusitado, situações que levam o enredo – ou uma vida – a
algum sobressalto importante ou até mesmo
a uma mudança completa de rumo. Suas personagens femininas estão sempre envolvidas
em algo não convencional, mas se mostram
sempre resignadas em sua sorte. No que tange ao momento em que Vera o recebe, pode-se pensar numa referência ou reforço à sua
aparente aceitação passiva da condição em
que se encontrava.
A grande cena ‘Lilithiana’ do filme ocorre,
quando depois de 6 anos e uma tentativa de
suicídio frustrada, percebendo a obsessão de
Robert por ela, Vera começa a tentar seduzi-lo.
Todo o discurso da personagem nesses
momentos é pura menção à cena em que Lilith tenta convencer Adão de que é igual a ele,
feita como ele e, portanto, sua companheira
ideal. Vera começa sua fala dizendo que tanto ela quanto Robert não eram como todo
mundo, propõe que convivam, de ‘igual para
igual’, diz a ele que pertence a ele, que fora
feita à medida dele e que ele havia gostado
disso. Assim como Adão, Robert rejeita essa
proposta, só acolhendo Vera como amante
ao vê-la vitimizada por Zeca, portanto, rebaixada, agredida, humilhada, profanada e
conspurcada, da mesma forma que Adão só
se anima a recuperar Lilith após ela ter se
exilado e se imiscuído aos demônios. Nesse
momento, assim como Dionísio que acolhe
Ariadne após ter sido abandonada por Teseu,
Robert salva Vera, assassinando seu próprio
irmão, que ainda está em cima dela na cama.
Desse modo, como Adão, Dionísio e Robert,
essa figura mítica do homem que é incapaz
de aceitar uma mulher, a menos que ela esteja numa posição de vítima, de alguma forma inferiorizada, desvalida, desprotegida e
reduzida é tema recorrente na história e na
literatura, trazendo a tona um complexo de
inferioridade e um medo ancestral do homem com relação à mulher de quem ele só
se consegue se aproximar quando fragilizada.
Dionísio surge aqui, também no hábito de
Robert de oferecer ópio a Vera, assim como o
deus grego que embebedava suas conquistas.
Importante destacar que Robert já reconhecia em Vera seu duplo, em sua obsessão por
observá-la, copiando muitas vezes até suas posições e gestos, toda a fascinação se dá por uma
identificação plena e pela percepção da força
do outro – 'Vera é uma sobrevivente!' e a imagem dela que vai crescendo na tela em relação
à dele, embora ela siga olhando-o de baixo para
cima, numa reverência de criatura para criador.
Mesmo após ceder às propostas dela, segue temendo-a e se confia nela, é unicamente por reconhecer nela as marcas de si mesmo. Ao final,
quando ela enfim o mata, apenas trocam de lugar, Robert dando a ela o poder de vida e morte
sobre ele, poder que antes era dele sobre ela.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 73
Outro aspecto de Lilith surge na figura de -lo, antes ciente de que o mesmo Deus que o
Marília, a mulher cuja loucura habita o ventre. feria era o único a poder salvá-lo) - teria sido
Conta-se que Lilith passou a parir demônios
modificado, evoluindo de uma postura diviapós entregar-se aos espíritos caídos. Marília, na despreocupada de julgamentos morais ou
mãe que Robert trata como serva, pois igno- sem uma ética que Lhe impusesse obrigações
ra ser seu filho, seduzida por um empregado (já que a moralidade pressupõe consciência, e
(pai de Zeca) e por seu patrão (pai de Robert), Deus, avalia Jung, é uma experiência psíquica
gera dois loucos, cada um louco à sua própria transcendente, um fenômeno absolutamente
maneira. Lilith também se expressa na em- portentoso, e não um homem, simplesmente).
briaguez de Robert pelo cheiro de carne queiSob essa perspectiva, a experiência com
mada vindo de Gal, na adoção de um estilo Jó teria sido uma espécie de divisor de águas
de vida de vampiros após o acidente dela e de
na relação de Deus com o homem, o ponto
suas queimaduras, sem espelhos e na comple- culminante de um arquétipo em evolução,
ta escuridão. Lilith surge também em Josefi- pois esse homem mortal viu o semblante de
na, a mulher que foge e abandona marido e Javé, a partir do que Deus se renova “conhecifilho constantemente e para quem não have- do”, tomando consciência de si, agindo e cresrá mais vestimentas, uma vez que seu marido
cendo dentro dos homens. Para completar a
vende suas roupas, numa tentativa talvez de
contraparte desta experiência mística, Javé
apaga-la de vez de sua vida.
(ou Jeová) decide encarnar-se em nosso meio.
A Lilith amazona surge em Cristina, a mu- Entretanto, o segundo Adão (Jesus) não naslher que não gosta de homens e que desafia ce das mãos divinas e do pó, mas sim do venVicente a vestir ele mesmo o vestido que de- tre de uma mulher humana, uma segunda
seja ver nela. É essa cena que Vera retoma no Eva. Jesus, representando o Deus que viveu
final do filme para convencer Cristina de sua entre os homens, que conhece a condição hureal identidade, mostrando a ela que de fato
mana, pode arbitrar sobre ela com justiça e
vestira o vestido ele mesmo.
redimi-la, pois a conhece de dentro para fora,
Impossível não resgatar aqui um texto de
se fez como homem, se fez homem.
C.G.Jung, chamado Resposta a Jó, no qual o
De forma análoga, Vera representa o hoautor faz toda uma reflexão sobre a relação
mem que só é capaz de compreender a conentre Deus e o homem, sugerindo que Jeová dição feminina e redimi-la ao se tornar uma.
- afetado pelo discurso e atitude de Jó (que, Da mesma forma que Javé vitimiza Jó, pois
após ter sido vítima de toda a coleção de tor- sequer possui a consciência moral para não
turas e injustiças que bem conhecemos, reve- fazê-lo, uma vez que não contém em seu íntilando a frágil condição humana diante de um mo a noção, de si e do outro, necessária para
Deus Todo Poderoso e sem nunca amaldiçoa- que isso não lhe seja possível, para que haja
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 74
um limite moral imposto dele para ele, o homem não consegue VER a mulher, integrá-la
e acolhê-la enquanto não se exercita na alteridade e na empatia, na capacidade de abrir
em si mesmo um espaço do outro e para o outro – no caso, para a mulher, o grande outro
do homem. A Pele que Habito conta a história
de um homem que obrigado a viver como mulher, é submetido a todas as opressões e experiências fatais que uma mulher pode vivenciar em sua história de vida, protagonizando
um processo de redenção por um ato não
intencional de agressão (situação com Norma) que resulta em verdadeira homenagem
ao espírito feminino e à sua resiliência inata. Ironicamente, a conclusão desse processo
abre um espaço para que ele se torne desejado pela mulher que deseja e que não desejava
homens, ilustração talvez de que o caminho
para o coração e para a vagina da mulher habite na capacidade de compreendê-la e de se
colocar em seu lugar, sendo o resultado disso,
revelado na forma de tratá-la.
Conclui-se retomando a ideia de que
sempre que o conflito entre o masculino e
feminino se verifica, quando os gêneros de
alguma forma se mostram imbricados, confundidos, emaranhados e em disputa, o que
se manifesta são os aspectos do embate mítico do Paraíso; pode-se afirmar que muito tem
sido conquistado no sentido de se integrar o
desejo de igualdade de Lilith à necessidade
de autoafirmação de Adão, mesmo a curiosidade de Eva tem sido amplamente saciada
na busca livre pelo conhecimento por parte
de muitas mulheres, aplicadas a instruir-se
e investir todo seu potencial construtivo e
criativo. Muito tem sido feito também no
sentido de conscientizar o mundo a respeito
da violência contra a mulher e, a despeito das
culturas e religiões que ainda insistem em
reprimi-la e oprimi-la embaixo da pecha de
uma falsa manutenção da ordem, pode-se intuir que um mundo onde homens e mulheres
se respeitam em suas diferenças ou ao menos
estão abertos ao diálogo e à colaboração mútua só pode se tornar um lugar infinitamente
melhor para se viver.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 75
|Danielli de Cassia Morelli Pedrosa |
A ESCADA
Ainda menina, fitou a escada.
A longa camisola de flanela feita pela avó mais atrapalhava do que aquecia – pesada, confundia os movimentos das pernas, podia segurá-la com a mão direita
enquanto com a esquerda se amparava no corrimão.
Aquele tecido todo irritava e o cabelo, apertado demais
na trança feita pela tia, parecia um cabresto.
- Tão lindo esse seu cabelo, vamos prendê-lo!
Quanto mais tempo passava contemplando a escada
de cima, mais uma volúpia líquida ia se espalhando em
suas veias, tomando o corpo numa espécie de infusão
quente, alcoólica. Em antecipação sentia os pés suspensos, primeiro um e depois o outro, o dobrar suave e firme dos joelhos, a sensação de capacidade para a obra.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 76
Num instante percebeu a própria sombra
na parede, projetada bem na esquina da escadaria, parecia tão grande! Orgulhosa, admirou
o perfil longilíneo que se opunha totalmente
ao que de fato era seu corpo naquela época,
seria a profecia de um corpo adulto elegante?
O pescoço comprido da sombra a encantava,
os movimentos delicados davam-lhe motivos
para sorrir e em meio a esse transe, como que
para arrebatar-lhe das fantasias onipotentes
da infância, surgia uma verdade estranha, algo
que ainda lhe soava alto demais, um desconforto, um cobertor curto que descobria o peito
quando se aquecia os pés. A menina não sabia,
mas esse desajuste lhe acompanharia ainda
por muito tempo.
O desejo era descer a escada. Aquela contemplação toda só servia para aumentar sua
gana de conquistar o que queria. Ao baixar os
olhos, encontrou um par de meias em cor-de-rosa. Dentro de alguns minutos passaria a
odiar essa cor para sempre.
Ouvia o vento travesso contribuir com o
farfalhar das cortinas, se pretendia descer, fazia-se necessária à pressa. Logo a avó se aproximaria e então a oportunidade estaria perdida.
A vida na casa não passava de um jogo insólito,
teatro de angústias e de controle, vestia as roupagens de seu personagem e mantinha-se invisível dentro dele.
A escada ganhara um tom adverso naquela
madrugada do último abril. A lembrança dos fatos tornara-se algo esparsa. Sabia que a mãe lhe
daria um irmão, isso segundo informações do
pai que lhe respondera – entre perplexo e cômico – sua pergunta sobre o motivo dela ter ficado
tão gorda. Desde então a menininha via constantemente uma energia fluorescente pairando
pela casa. Nada mais de brincadeiras. Nunca
mais puderam regressar para seu próprio lar, lá
onde ficaram sua cama e seus brinquedos. Quase não via o pai. Passava longas temporadas no
quarto das tias, onde era constantemente instado um silêncio difícil e migratório.
As refeições, feitas sempre em horas bem
marcadas, constituíam-se de comidas de adulto
que ela nunca apreciava e havia escassez de leite
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 77
porque o avô tomava antes dela. A mãe, rechonchuda e frágil, lhe apertava demais ao peito
quando dormiam - sono indigesto, colchão no
chão do quarto das irmãs do pai. Em seu pensamento esparso de criança, sentia o amor doído
pela falta de alegria.
Habituée da gentileza rude de seu outro
avô, buscou alguma aproximação também com
este, busca frustrada, pois ele era um homem
duro em sua moleza, estranho, que teimava em
trocar seu nome pelo de qualquer outra criança
e quando lhe dirigia um olhar parecia atravessar-lhe, focado em algo que estava além dela.
O cheiro dele enjoava, um dia saberia de suas
aventuras etílicas, por agora traduzia para si
mesma o perfume ardido que lhe causava uma
curiosidade meio mórbida, ao vê-lo fumando
como chaminé no quintal de trás.
A vida da menina era um oceano de conversas sussurradas por detrás de portas e recriminações constantes camufladas atrás de
doces sorrisos conciliadores. Via na mãe uma
crescente melancolia, o que somada à fragilidade própria dos estados avançados da gravidez,
despertava na menina uma espécie de medo ancestral do abandono. Tal sentimento em vez de
acovardá-la a desafiava a ser cada vez mais livre.
Não queria ajuda no banho, não queria dormir
com ninguém, não queria que lhe dessem comida na boca, não queria toques de nenhuma
espécie ou histórias antes de dormir.
Numa madrugada fria de final de outono
acordou com um movimento pendular da mãe
no colchão ao lado. Fitou o rosto dela com
atenção e a luz pálida advinda do vão da por-
ta entreaberta, luz de abajur de santo, tão comum na casa de beatas católicas, revelou algo
vindo de seus mais horríveis pesadelos – lágrimas desesperadas.
Atordoada, a pequena passou a ouvir a discussão vinda do corredor. O avô gritava cego de
raiva palavras que ela não conhecia, o som surdo de uma pancada e de um gemido arrancou a
mãe dos cobertores num movimento por demais
lépido para um corpo em tão adiantada gestação.
A criança seguiu correndo atrás da mãe presa de
um terror inespecífico, viu a avó meio dependurada na beira da escada amparada pela mãe,
ambas em desespero, ambas quase a despencar
escada abaixo, num segundo momento viu também o avô prensado na parede pelo corpo redondo da mãe. Ouviria no decorrer da vida muitas
versões do mesmo fato, mas era essa a imagem
que lhe contaria sempre a verdade do que ocorria nas sombras daquela casa triste.
Depois disso, durante muito tempo tivera
medo de escadas. Pensava em noites escuras e
frias, se lembrava do cheiro do avô e de choros
da mãe, se via caindo no infinito após o primeiro degrau, um tombo do qual muito pouco sabia já que era pouco mais de um bebê quando
ocorrera. Por muitos dias só descia as escadas
no colo de alguém e esse arranjo lhe bastava,
porém crianças crescem depressa demais e com
elas suas reais necessidades. Logo já não vestia
mais as roupas que lhe mandavam, não aceitava mais prender os cabelos, não se calava mais
diante da demora em tirá-la do quarto pela manhã mesmo cientes de que já estava acordada
fazia muito tempo.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 78
Todo o seu ser em franco desenvolvimento
ansiava por duas coisas: Voltar para sua própria
casa e descer aquela maldita escada, sozinha.
Poderosa, criou seu próprio sortilégio. Bastaria descer a escada sem nenhuma ajuda e todo
esse universo paralelo bizarro em que agora viviam deixaria de existir, como os sonhos ruins
que se evaporam ao despertar.
Observava a escada com uma concentração
extrema: calculando, compreendendo, arquitetando. Não havia margem para erro algum.
Assistia constantemente todos os adultos descendo e subindo aqueles degraus vez após vez –
andavam e até corriam, pulavam degraus, dançavam com leveza de bailarinos sem pestanejar.
Não podia ser tão difícil!
Ensaiou o primeiro passo com os olhos cerrados, sentia na ponta do pé, calçado apenas de
meias, a distância e a superfície – algo lhe dizia
que dos melhores sentidos excluía-se a visão.
Após convencer-se de que já absorvera o movimento, desceu lentamente para o degrau de
baixo sentindo uma vertigem leve, quase uma
altura da mente, um torpor. Repetiu a ação lentamente, pé após o outro, sem pressa e lutando
contra a intuição que lhe pedia brevidade.
Tudo foi ganhando maior facilidade, embora
a mão já lhe doesse, cativa da exagerada firmeza
ao corrimão de madeira escura. Após o quinto ou
sexto degrau já havia um sorriso em seus lábios e
no décimo, uma sensação gloriosa de dever cumprido lhe enchia o peito de criança, a plenitude
da conquista feita - liberdade ensolarada que ilumina até os recônditos essa caverna sombria, na
qual nos enfiamos tantas vezes na vida.
Quando já fazia a curva que lhe concederia
a graça do trecho final de sua missão, foi pega
de surpresa pelo som agudo reverberando por
todos os cantos da casa. O efeito do susto foi
a perda completa do equilíbrio. Num vislumbre havia o corpo de criança estendido inerte
no final da escada, desacordado, ferido, quiçá
morto. Um arrepio tomou-lhe de ponta a ponta, no reflexo ergueu com violência os braços e
foi assim, dependurada no corrimão, que dedos
gelados pela água fria que lavava a louça a agarraram. Nervosíssimos, tentavam de toda forma
dominar a criança. A menininha, apavorada, se
empertigava, chutava, arranhava e mordia. Não
desceria no colo agora que se sabia capaz.
Irritada, a avó lhe fez sentar no degrau à força.
- Se você quer descer sozinha, vai ter que
descer sentada!
Bem podia virar fada ou borboleta e voar
para muito, muito longe.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 79
|Danilo Souza Costa |
ANÁLISE SOBRE A OBRA LITERÁRIA O
CORAÇÃO DAS TREVAS - JOSEPH CONRAD
Nesta exposição, tratarei de um dos maiores clássicos
da literatura do século XX: O Coração das Trevas (1902), de
Joseph Conrad, achando de bom tom, para tanto, construir um resumo da obra e pontuar, segundo a minha visão, peculiaridades da história. Adianto, desde já, que a
conclusão é totalmente parcial acerca da genialidade desta
obra atemporal, que trata expressamente da colonização e
da legitimada busca por capital. Mas é tacitamente que ela
impressiona quando mostra o impacto da influência cultural sobre a mente humana, iluminando a ideia de que o
certo e o errado em cada lugar dependem, acima de tudo,
da melhor justificativa apresentada.
Europa: século XIX –o século do progresso, da fé enorme na ciência, em que o homem é herói da sua própria história; é o século de Darwin, dos determinismos, em que se
crê que é possível desvendar leis gerais que movem o mundo; é o século dos neoimperialistas, que justificavam seus
atos na maior “filantropia às avessas” que o mundo possa
ter visto, alimentando o mito do colonialismo.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 80
Conrad, em O Coração das Trevas (1902), conta a história de Charlie Marlow, um apaixonado
por mapas e viagens náuticas, que, na ânsia de
ver realizado seu sonho de garoto de conhecer
um lugar supostamente não explorado, se voluntaria para assumir o comando de um navio
a vapor que iria se lançar no coração da África.
Marlow é o narrador da própria trama. Típico contador de histórias, ele narra aos seus
companheiros de embarcação – que são apresentados por sua classe social e não pelo nome – o
que vivenciou em sua viagem ao Congo com minúcias, dor e pesar, como se fosse, tudo aquilo,
um pesadelo.
Ao ingressar em uma companhia marítima,
para qual se voluntariou, assumiria como comandante “de um vapor”. O protagonista submeteu-se a alguns ritos burocráticos que o fez crer ter
algo de sigiloso naquela prática; todavia, firmou
o contrato. Posteriormente, ele foi submetido
a exames médicos, no quais após lhe aferirem
a pressão, o médico pergunta se poderia medir
o seu crânio, questionando ainda (se ele teria
histórico de loucura na família). Essa prática de
medir o crânio nos faz lembrar de Cesare Lombroso, positivista contemporâneo a data da história, que hoje compõe o rol dos integrantes do
racismo científico. Lombroso acreditava que o
biótipo do indivíduo determinava sua tendência
para o crime, considerando ainda, que os negros
tinham mais predisposição ao cometimento daqueles – teoria que ganhou status de verdade durante a época. Assim, o procedimento médico ao
qual Marlow foi submetido era considerado um
exame oficial, que, dentre todos os outros, visava
garantir a segurança dos demais tripulantes. Ao
ser questionado por Marlow do porquê de não
viajar para examinar os funcionários da empresa
no local do trabalho, o doutor diz não ser tolo e
afirma que as coisas se modificam por lá.
Essa passagem deixa o leitor tenso, se perguntando o porquê de todo aquele rito e quais
os mistérios que cercam a trama. Por que O Coração das Trevas? Quais trevas? Aonde será que
esse rio nos levará...?
Marlow, recém nomeado comandante, finalmente inicia sua viagem a bordo de um vapor
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 81
francês, descrevendo a paisagem como uma esA colonização, para “civilizar” os povos
pécie de retorno aos primórdios da humanidade
tidos como primitivos, foi o marketing da
e, após um mês, desembarca em um dos postos
campanha dos governos imperialistas, que se
da companhia, onde observa alguns homens ne- baseavam na ideia dos antropólogos evoluciogros de “aparência decadente”. Um rapaz apro- nistas, que sustentavam que aqueles povos vixima-se faminto e Marlow lhe dá um pedaço de
viam na “infância” da humanidade e que eles,
pão, observando um pano de lã que aquele tinha os brancos europeus, tinham a dura missão de
em volto ao pescoço, sem entender a utilidade “educá-los” e “civilizá-los”.
daquilo. Note que o protagonista, embora tenha
Ao prosseguir em viagem por mais de trezenuma atitude aparentemente nobre ao alimentar tos quilômetros, nosso aventureiro chega com
o trabalhador, carrega em si a sensação de supe- a sua tripulação ao Posto Central e recebe uma
rioridade, própria do etnocentrismo europeu. previsão de que deverá esperar aproximadamenFica a impressão de que, para ele, aquilo fosse
te três meses para seguir viagem. Por lá, interacomo alimentar um animal qualquer, já que ao gindo com um agente de primeira classe, Marlongo do romance, os escravos são propostos
low ouve que o Sr. Kurtz, chefe do posto, era um
por Conrad como instrumenta vocalia. (Há ne- “prodígio, um emissário da bondade e da ciência”.
cessidade de colacar a tradução entre parênteses.
Sr. Kurtz era o autor de um quadro que conPesquisei, mas não encontrei. Talvez fosse o caso
tinha a figura de uma mulher com os olhos vende questionar o autor.) O mais curioso, que se
dados e com uma tocha acesa na mão. Considepode observar na forma de escrita do autor, é
rando que a arte é uma produção cultural, mas
que ele faz muito o uso de personificação, dando
com traços pessoais, fica como desafio ao leitor
a impressão que ele “personifica as coisas e coi- desvendar a personalidade de Kurtz, diante de
sifica as pessoas”: atitude própria do capitalismo, tantas pistas.
interessantemente. Literariamente brilhante,
A caminho do posto de Kurtz, Marlow estahumanamente desprezível.
va ansioso e também sentia medo. Ouve falar
E, como Marlow não está livre dessa ten- algo sobre marfim e também que Kurtz e seu
dência, é interessante pensar a possível relação
assistente precisam ser mortos para servir como
que ele pode ter feito entre a cor da lã e a cor exemplo, pois prejudicam os interesses daquela
da pele, bem como questionar o porquê daquele
empresa; Marlow acha os homens monstruo“ser” usar tal adereço. Em contraposição, ao ver sos porque julga que suas mentes são capazes
o contador-chefe da companhia, lhe saltou aos
de tudo. No caminho, próximo ao destino final,
olhos tamanha elegância com suas vestimentas
ancora a embarcação e são atacados por nativos
finas. Mas elegante para quem? Pro negro de lã com flechas que voam pelos ares. Posterior a isso,
no pescoço talvez não, já que a elegância é, sem conseguem, enfim localizar o posto e encontram
dúvida, uma produção cultural.
o assistente do chefe, imaginado por Marlow
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 82
como uma figura mítica, a quem não se aguenta
de curiosidade para conhecer.
Marlow descobre que foi o próprio Kurtz
quem ordenara o ataque à embarcação, já por
que não queria ser levado de lá, e que mais do
que ser um dos nativos, como parte integrante
da tribo, ele era uma espécie de líder que, por
alguma razão, em sua busca incessante por
marfim, acabara por se anexar ao povo onde
vivia, promovendo rituais “primitivos” e ordenando a morte de integrantes desobedientes,
tendo ainda, a frente de sua cabana, uma exposição de crânios humanos, mostrando total
distanciamento do que seria considerado civilizado aos moldes europeus.
E o que teria acontecido com aquele pródigo,
emissário da bondade e da ciência, considerado
pelo seu assistente e pelos membros da tribo
como um sábio, detentor de esclarecimentos
fundamentais? Será que viu muito sangue, promoveu muitas mortes em busca de algo que teria
valor relativo? Será que essa busca imposta por
outrem, deturpou a mente de um pensador que
pode facilmente ter entrado em um conflito de
interesses? É possível.
“[...] um esboço de uma mulher vendada que
carrega uma tocha acessa.” Talvez seja a chave
de um mistério formado pelo labirinto da mente humana. A arte, como já dito antes, carrega o
homem e o seu produto, a cultura. Em sua visão
de mundo e dentro de sua crença, Kurtz detinha um conhecimento, uma iluminação, que
estava em sua mão e que, paradoxalmente, não
poderia ser usado pela pessoa que o detinha,
pois estava vendada, estava nas trevas pessoais,
em suas próprias trevas, já que a venda é um
limitador pessoal. Agora imaginemos um indivíduo, produto da descrita sociedade europeia,
fazer parte de uma tribo; sua noção de valor se
transforma, o que importa para ele é o que importa para sua cultura.
Ao final da história, Marlow encontra Kurtz
em seu leito de morte, e esse o confia algumas
palavras, documentos e fotografias. Algumas
noites depois, Kurtz morre, proferindo o que
talvez pudesse ser uma descrição das trevas – “o
horror, o horror!”. Tamanho é o peso destas palavras, que quando volta à Europa, Marlow conta
para a companheira de Kurtz que suas últimas
palavras foram o nome dela. Com isso, Marlow
escondeu o horror, assim como todo esse horror
era escondido e justificado para a “civilização”.
Mas e esse tal “Coração das Trevas”?
A treva é a escuridão, a ignorância, o medo, o
mal. O coração pode ser o centro, onde acontece,
mas pode ser o âmago, o mais profundo. O leitor
sem dúvida sente isso, se vê no Tâmisa, no navio,
na tribo, tem um choque com o seu diferente,
como Caminha ao chegar ao Brasil, mas se percebe igual, segundo nossos valores e fragilidades.
Essa obra nos faz pensar acerca do certo, do
errado, do relativo, do civilizado. E o civilizado,
talvez, seja fazer coisas aceitáveis ou que pareçam aceitáveis, dentro dos moldes da sociedade
que acolhe esses conceitos, desde que possam
ser justificadas e baseadas nos mais puros sentimentos e intenções humanas.
Conrad se veste de Marlow e corre ao claustro, onde “torce, aprimora, alteia, lima” (Bilac)
as descrições que lhe são interessantes e fundamentais para lapidar, como um ourives, o “coração” que ele quer mostrar.
E tanto tempo depois, ainda podemos ser
contemporâneos de seu entendimento e, sem alterar-lhe “a fôrma e a forma” (Bandeira), resumimos essas trevas em curtas palavras: “o horror, o
horror...!”.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 83
|João Carlos Lopes da Silva|
A ECOLOGIA MENTAL E O NOVO PANORAMA DA
HUMANIDADE
Empresas em liquidação, queda nas bolsas de valores
do mundo, crises financeiras ameaçam diferentes mercados que refletem em todos os países da comunidade
internacional, inflação, recessão; excesso de consumo,
escassez de recursos, fome, guerras, revoltas populares,
epidemias e catástrofes naturais...
Avançamos em nossa lógica do progresso em todos
os sentidos: em nenhuma outra época gozamos de tanta
tecnologia, pesquisa e descoberta científicas como agora. Ultrapassamos as fronteiras do espaço e saímos para
conhecer o Universo do qual somos parte. Sabemos hoje
que não estamos no centro da existência, mas somos um
planeta, entre os muitos do nosso sistema solar – presente em uma das várias galáxias dentre as que compõem
este Universo em constante expansão.
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 84
Diariamente temos, além dos problemas e
preocupações de ordem pessoal, as complicações que afetam toda a coletividade – e que não
são poucas. Se de um lado o individualismo nos
deu o senso de pessoalidade, podendo até mesmo ser avaliado como fator positivo modernamente; de outro, parecemos ter perdido o senso
de humanidade. Entretanto, é inevitável não
nos pensarmos como esta totalidade, este todo
humano, que está intimamente ligado em infinitos aspectos, sendo o mais considerável deles:
moramos nesta mesma Terra.
E o que fazemos com essa nossa morada é
completamente contraditório com todo o progresso, em termos de consciência, que atualmente experimentamos: as vidas de milhões de
espécies estão ameaçadas, muito da diversidade que compõem a fauna e flora terrestre desapareceu. O aquecimento global é uma realidade
tão latente que a cada ano os verões estão mais
insuportáveis e os invernos mais rigorosos.
Somos péssimos inquilinos da Terra e a tratamos como donos – espécies de reis e rainhas
– sem nenhum comprometimento com a sua
existência, como se ela dependesse de nós para
existir, quando na verdade nós somente estamos aqui porque ela possui as condições perfeitas para o surgimento de todas as formas de
vida - inclusive a nossa. Portanto nossa relação
com esta morada é de interdependência e não
de dominação. Assim como dependemos uns
dos outros – por isso humanidade – dependemos da Terra como nossa morada maior.
A Ecologia Mental insere-se então neste
contexto para nos dizer que não é somente o
modo de sociedade em que vivemos que está
destruindo a vida na Terra, como também o
algo muito mais profundo: o modo como pensamos. Os padrões mentais, ideias e pensamentos que temos acumulado ao longo da vida.
Sabemos, por exemplo, que o desenvolvimento sustentável é uma realidade a ser acolhida
por toda a humanidade, ou pelo menos por parte
dela que está comprometida com a manutenção
da vida na Terra, no entanto todo o conhecimento que temos recebido sobre a urgente necessidade de modificar o modo como nos relacionamos
Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 85
com o ambiente em que vivemos parece não ser
eficaz porque não houve a mudança mental necessária para criar novos hábitos.
A poluição, o consumo desenfreado de bens
e serviços, a ideia de dominação e destruição
como meio recreativo e o desmatamento são
exemplos de problemas que diariamente nos
cercam, contra os quais não conseguimos tomar atitudes conscientes necessárias por conta dos padrões mentais que nos condicionam.
Este modo de pensar, considerando a Terra
como objeto de dominação está intimamente enraizado no homem e suas origens, e vêm
de muito antes da sociedade moderna. Grande
parte da nossa agressão contra a natureza vem
de dentro da nossa mente – dos vícios culturais,
preconceitos e instintos que possuímos.
O antropocentrismo erra ao colocar o homem como o sentido da existência das outras
coisas; a cosmologia nos ensina que no Universo todas as coisas estão interligadas, e todos os
seres, portanto, são interdependentes – e igualmente importantes. Há uma relação íntima entre tudo aquilo que existe.
Leonardo Boff, que trata do tema da Ecologia Mental, considera que há duas tarefas básicas nesse processo de terapia ecológica: remover os obstáculos que impedem a nossa mente
de considerar a Terra e todos os seres vivos que
ela abriga coexistentes e não subordinados nossos; e buscar novas orientações para que criemos hábitos ecologicamente corretos. Neste
sentido trata-se de uma completa transformação do padrão mental atual para dar espaço a
um processo contínuo de reeducação da mente.
Ainda para Boff há alguns obstáculos nesse
processo: a) a indiferença: a insensibilidade ao
acreditarmos que tudo pode continuar como
está e a crença de que o modo como estamos
levando é correto e a Terra suportará isso por
muito mais tempo, o que não é verdade. Beiramos o colapso – há risco de maiores catástrofes coletivas como as que já ocorrem; b) o
consumismo: nosso hábito mais individualista e irresponsável, assim, é preciso construir
um novo modo de consumo solidário em que
pensemos não somente em nós mesmos como
nessa comunidade ecológica e humana que nos
cerca; c) a falta de cuidado: não cuidamos do
equilíbrio da própria natureza, do ar que respiramos, do lixo de nossas casas etc., é preciso
resgatar a ética do cuidado.
Não podemos esquecer que ao tratarmos
deste tema estamos falando diretamente da
manutenção da vida, da nossa e daqueles que
virão depois de nós. A visão de cooperação não
pode ser perdida neste processo de novo pensamento na consideração do planeta. Ao contrário da competição que se fomenta hoje, a
Ecologia Mental nos propõe um estilo de vida
cooperativo entre todos os seres vivos.
Precisamos considerar a raça humana como
uma grande família, chamada de humanidade,
na qual todos nós somos uns dependentes e
cooperadores dos outros, sem nos esquecermos
da Terra, a nossa morada, que possui recursos e
condições perfeitas para a nossa permanência
viva. E que, no entanto, sofre grandes ameaças
e sente, como entidade viva que é, a degradação
de todo mal que continuamente temos lhe feito.
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Por fim, a Ecologia Mental é um ideal que
precisa ser difundido em toda a sociedade civil
e seus segmentos, nas organizações que incorporam o cuidado do meio ambiente e academias, nas diferentes religiões e culturas, nos
órgãos de discussão internacional e blocos econômicos, pois somente assim despertaremos
a humanidade para um novo panorama global
de cuidado da vida – tornando a Terra um lugar
melhor para nós vivermos e para as próximas
gerações. Pratique essa ideia.
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feche a revista e vá ler um livro
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