Mesa Temática: Diálogos Sur-sur: pedagogías descolonizadoras
TÍTULO: DESAFIOS RELACIONADOS AO ÂMBITO DA PÓS-GRADUAÇÃO:
INVESTIGANDO O PROCESSO DE SUBJETIVAÇÃO DOS JOVENS
PESQUISADORES EM BUSCA DE SER MAIS.
Autores: Verônica Salgueiro do Nascimento - Universidade Federal do Cariri.
Email: [email protected]. Lúcia Rabello de Castro - Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Email: [email protected]
O que esperar do Ensino Superior no cenário atual, principalmente, no que diz
respeito aos desafios relacionados ao âmbito da Pós-Graduação? Especificamente, o
contexto dessa pesquisa é o da formação de pesquisadores, mestres em
Desenvolvimento Regional Sustentável na recém-criada Universidade Federal do Cariri
(UFCA), Estado do Ceará, Brasil. O objetivo deste trabalho foi investigar sobre o
significado da formação no mestrado e refletir sobre o processo de subjetivação dos
estudantes envolvidos na pesquisa. Propomos no grupo focal o compartilhamento de
reflexões a respeito das possíveis contribuições do processo de formação no mestrado
para os estudantes que integraram a primeira turma do curso em estudo.
De acordo com o referencial teórico que tomamos como base, há o
reconhecimento do aspecto coletivo e processual do reconhecer-se pesquisador
pertencente a um território. Na interação social se processa a tessitura do sujeito ativo e
reflexivo. Para tanto, acreditamos ser necessário romper com o paradigma tradicional,
bancário da apreensão do conhecimento, buscando erigir o novo com base na criticidade
e participação (Freire, 2001), buscando o diálogo entre as diversas áreas do
conhecimento num modelo cunhado por Santos (2010a) de ecologia de saberes. Nesse
atual paradigma, o ser humano se reconhece como autor, intervindo em sua trajetória
pessoal e profissional. Nesse contexto de atividade e criação, homens e mulheres são
convidados a assumir a negação do que é dado, da aceitação dócil do que é posto.
Sobretudo, aproximando-os da condição de Ser Mais segundo Paulo Freire (2005)
conceito chave para entender a concepção de ser humano assumida pelo autor. Ele nos
ajuda a compreender melhor tal conceito relacionando-o com a vocação para
humanização.
Nesse contexto de atividade e criação, homens e mulheres são convidados a
assumir a negação do que é dado, da aceitação dócil do que é posto. Sobretudo,
aproximando-se da condição de Ser Mais. Pensando e fazendo criticamente, os temas
desafiadores não ficam encobertos, passam a ser um "percebido-destacado" e o sujeito
sente-se mobilizado a agir e descobrir o "inédito-viável". Ele é algo que o sonho utópico
sabe que existe, mas só será conseguido pela práxis libertadora (A. Freire, 2011). Em
síntese, podemos afirmar que a construção do inédito-viável resulta do exercício criativo
e coletivo alimentado pelo nosso horizonte utópico que nos aproxima do "ser mais"
freireano.
De acordo com este posicionamento, a concepção de educação que assumimos
como uma das referências para o presente trabalho se edifica principalmente a partir das
contribuições de Paulo Freire (2001). Este autor afirma que a educação “não sendo
fazedora de tudo é um fator fundamental na reinvenção do mundo” (Freire, 2001, p.96).
Extremamente oportuna a alusão do autor à capacidade humana de reinvenção. Abordar
essa dimensão provoca uma grande aproximação entre educação e a perspectiva da
sustentabilidade.
No âmbito restrito deste artigo gostaríamos de delimitar nossas reflexões em
torno da questão central: Como se deu o processo de formação do pesquisador na
perspectiva que preconiza o conceito freireano do Ser Mais? Quais os desafios para esta
formação? Como parte seguinte do texto, apresentaremos o leque conceitual que
fundamentará nossas análises.
Conceitos principais da investigação
Entendemos como necessária realizar uma demarcação conceitual para o
desenvolvimento de nossa problematização. Apresentaremos dois aspectos importantes
correlacionados ao conceito central de formação para Ser Mais, quais sejam:
Pertencimento e Participação.
Com relação ao conceito de pertencimento, passa a ser entendido como
processo psicológico, social, cultural e ético-político. O pertencimento pressupõe um
compartilhamento de valores, traços culturais que norteiam práticas interventivas no
contexto vivido. Silva e Ferrante (2009) propõem a compreensão do conceito de
pertencimento que se concretiza em novas formas de ação, transformação com relação
ao meio sócio-ambiental que compartilham.
Especificamente a dimensão do pertencimento ao sertão, sublinhada nesse
trabalho, pode ter o seu entendimento problematizado a partir do contraponto produzido
pelas mudanças avassaladoras do movimento de globalização/mundialização. Por muito
tempo, a “sina” do nordestino foi sair de sua terra. Atualmente, para o jovem no sertão
essa sentença absoluta tem sido relativizada. Para muitos, a possibilidade de permanecer
em seu lugar de origem tem se apresentado viável. No entanto, o sentimento de pertença
a um local tem sofrido o atravessamento dos ares da globalização, muitas vezes
fortalecido pelo caráter acrítico de padronização e homogeneização. O que tal quadro
provoca nas dimensões do pertencimento e participação? Poderia apenas levar ao
enfraquecimento destas, ou poderia deixar brechas para se tecer formas outras de estar
situado em seu lugar, interferindo no seu contexto através de ações inovadoras e
criativas tendo como horizonte utópico Ser Mais?
No contexto estudado, uma nova universidade sendo construída, a formação de
jovens pesquisadores se constitui uma ação desbravadora. A tradição universitária de
pesquisa ainda a ser estabelecida. Sem dúvida, um grande desafio. Como fortalecer a
dimensão participativa nesse pensar-fazer? Um primeiro passo seria ampliar nossa
compreensão sobre o próprio conceito de participação e o que este pode envolver. Com
relação ao termo em estudo, gostaríamos de ressaltar a contribuição de Castro (2010a,
p.15) a respeito das dimensões da participação e sua articulação com o conceito de
pertencimento “Participar deslancha sempre um processo de busca, pertencimento e
ação criadora”.
De acordo com o referencial teórico que tomamos como base, há o
reconhecimento do aspecto coletivo e processual do reconhecer-se pesquisador
pertencente a um território. Na interação social se processa a tessitura do sujeito ativo e
reflexivo. “Processo de subjetivação política, que implica a construção do
pertencimento à coletividade e a responsabilização pela vida em comum” (Castro,
2008b. p.253). Esse fazer (articulando pertencimento e participação) é atravessado
também pela dimensão coletiva, não passa apenas por uma vontade individual. “O
interessante nesse processo é que a construção de tal caminho muda tanto os que o
fazem como aqueles a que se destina. Aprender a viver juntos, a “conviver”, desenvolve
as potencialidades do ser mais profundo e originário da pessoa” (SERRANO, 2002,
p.11). Fica explicito que “A participação demanda a inclusão de parceiros no processo
de estabelecer metas e valores de convivialidade” (Castro, 2010a, p. 42).
Desta forma, o processo de participação deverá fortalecer espaços que ofereçam
ao sujeito a oportunidade de entender a si mesmo como parte de um todo maior.
Levando-se em consideração que isto “requer uma lenta transformação subjetiva que
redimensiona o sentido de lugar e de inserção do jovem” (Castro, 2008b. p.254). Para
tanto, necessário se faz romper o paradigma tradicional, bancário da apreensão do
conhecimento, buscando erigir o novo com base na criticidade e participação.
Reconhecendo-se autor, intervindo em sua trajetória pessoal e profissional.
O caminho tecido ao pesquisar
Os sujeitos da pesquisa foram os estudantes da primeira turma do mestrado
selecionada em Janeiro de 2011. Escolhemos como objeto da pesquisa as dimensões do
pertencimento e da participação e suas interações possíveis no contexto de formação no
mestrado em desenvolvimento regional sustentável.
A metodologia adotada na pesquisa alinha-se com o referencial da pesquisa
qualitativa. Esta se mostra como a mais adequada aos propósitos do presente trabalho.
As metodologias qualitativas derivam da convicção de que a ação social é fundamental
na configuração da sociedade (Haguete, 2000). A abordagem qualitativa responde a
questões particulares e preocupa-se com um nível de realidade que não pode ser
quantificado. Ela trabalha com o universo de significados, motivações, crenças e
valores, o que corresponde a uma dimensão relacional mais profunda, não apropriada a
quantificações.
Inicialmente desenvolvemos alguns encontros com o grupo focal e
posteriormente fizemos o registro de informações a partir de entrevistas em
profundidade com a utilização de um roteiro semi-estruturado. Privilegiaremos neste
texto a análise das falas compartilhadas no grupo focal. Nossas análises para a escrita
deste artigo detiveram-se no relato de um encontro com sete egressos da primeira turma
do mestrado. Essa atividade aconteceu no final do semestre de 2013.
Minayo (2010) caracteriza a técnica do grupo focal como uma entrevista em
grupo. Importante destacar a dimensão grupal nessa demarcação metodológica. Nesse
contexto não temos apenas a somatória de um conjunto de participantes como sujeitos
de pesquisa, além disto temos a dimensão coletiva que assume importante papel na
construção das informações a serem compartilhadas e refletidas.
Dessa forma, a opção por esta técnica grupal se justifica pela intencional
valorização da interação grupal que estimula o compartir de experiências e a
ressignificação do vivido. “O pesquisador tem a possibilidade de ouvir vários sujeitos
ao mesmo tempo, além de observar as interações características do processo grupal”
(Kind, 2004, p. 126).
Minayo (2010) indica que o roteiro para o grupo focal deve ser suficientemente
provocador para permitir que aconteça um debate entusiasmado e participativo e que
possa promover condições de aprofundamento do fenômeno investigado. Adotamos a
formulação de uma pergunta central acompanhada de alguns itens que, durante a
aplicação da técnica, ajudaram na condução do grupo para manutenção do foco. O tema
inicial para a conversa foi: "o antes e o depois da experiência do mestrado". Qual o
significado da experiência para cada um?
Com este convite ao diálogo, partimos para um momento coletivo de trocas
interessantíssimas. Ressaltamos a importância da participação do sujeito pesquisado na
tessitura da pesquisa. Com este exercício dialógico foi nos possível potencializar a voz
do pesquisado (sujeito da pesquisa- egressos). Trabalhamos com a compreensão de que
a fala é um “elemento que delineia o traçado da história dos homens, mulheres e
crianças, e que, portanto, pode destiná-los a convivências mais democráticas ou mais
autoritárias” (Castro, 2010a, p. 21). O compartir reflexões em grupo a respeito de
experiências reforça o registro democrático em seus processos educativos.
Assinalamos ainda que nos alinhamos com o referencial da pesquisa
intervenção. Esta perspectiva teórica reforça que “O „campo de pesquisa‟ se constitui a
partir e com, a presença do pesquisador” (Castro, 2008a, p.37). A participação do
pesquisador e sua interação com o grupo pesquisado é fator determinante para a
construção das interpretações para as falas compartilhadas. Demarcamos que a análise
das falas será feita de acordo a técnica da triangulação dos dados (Souza; Zioni, 2003)
tecida a partir das falas dos pesquisados, do referencial dos autores em foco e das
análises dos pesquisadores.
Descrevendo o cenário da pesquisa: o contexto do Mestrado em Desenvolvimento
Regional Sustentável na Universidade Federal do Cariri.
O Mestrado Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Regional Sustentável (PRODER), do Campus da Universidade Federal do Cariri
(UFCA), foi autorizado pela CAPES em dezembro de 2010 e deu início à sua primeira
turma em fevereiro de 2011 com a entrada dos 20 (vinte) alunos. Em 2012 ingressaram
no mestrado 15 (quinze) alunos, e em 2013 e 2014 foram selecionados 20 (vinte alunos)
em cada ano.
O objetivo principal do Programa é promover a formação de mestres,
proporcionando uma abordagem interdisciplinar do desenvolvimento à luz dos novos
paradigmas e da modernidade ética. O fato de se localizar territorialmente em um
espaço historicamente excluído dos processos de desenvolvimento, o interior do estado
do Ceará, em pleno Sertão Semiárido, imprime ao Programa uma responsabilidade
redobrada. O PRODER nasce com o compromisso de interferir positivamente na
formação social e econômica da região que o abriga. Ele foi o primeiro curso de
mestrado ofertado pela instituição. No próximo ano (2015) completará cinco anos de
existência.
O curso está estruturado em torno de uma Área de Concentração,
Desenvolvimento Regional Sustentável, tendo seus estudos capilarizados em duas
linhas de pesquisa: Ambiente e Desenvolvimento Regional Sustentável; e Sociedade,
Estado e Desenvolvimento Regional Sustentável. Neste ano (2014) realizou a IV
Semana do Meio Ambiente, com o tema: Educação, Sustentabilidade Desenvolvimento
Humano.
A instalação da UFCA neste território traz em si um imenso desafio: a formação
diferenciada de novos profissionais, sobretudo no que diz respeito aos espaços da
produção do conhecimento para além da sala de aula, enfatizando a prática da pesquisa
e a extensão comprometidas com a transformação local. A possibilidade de reverter o
fluxo migratório para os grandes centros urbanos constitui-se numa oportunidade
relevante de contribuir para a permanência dos jovens em sua região para que possam,
num futuro próximo, converter o seu processo de formação individual em benefício
coletivo para suas comunidades de origem.
Chacon (2008) ressalta o aspecto do deslocamento de importantes recursos
financeiros e humanos para a região gerando repercussões na esfera do poder público,
na iniciativa privada e em toda a sociedade. Gianella (2011) ao se reportar aos desafios
que essa experiência nos coloca chama a atenção para um possível conflito entre o
aspecto de inovação ou ruptura e o aspecto da repetição ou reafirmação de uma velha
maneira de entender o mundo.
Enfatizamos que o PRODER tem como principal desafio contribuir com a
produção de conhecimentos para fortalecer o processo de desenvolvimento, com foco
especial para o Sertão Semiárido do Nordeste brasileiro. De forma ampla esta proposta
traz implícita a necessidade de uma abordagem interdisciplinar para fomentar e
consolidar pesquisas sobre temas relativos aos processos de desenvolvimento de uma
região. O tema exige uma análise que perceba sua complexidade, e isto só pode ser
alcançado a partir da abordagem baseada nas dimensões da sustentabilidade (social,
ambiental, econômica e institucional). O pressuposto inicial é que uma região é
resultante de um processo de construção social e político, marcado por limites e
potencialidades que a particularizam.
Caracterização do grupo pesquisado: descobertas e dúvidas
No levantamento dos dados iniciais revelou-se que a primeira turma do mestrado
possui, no que diz respeito à graduação, um forte traço de variedade entre os cursos
selecionados. Estão representadas as áreas de Administração, Agronomia, Arquitetura,
Enfermagem, Geografia, História, Jornalismo, Letras, Pedagogia, Recursos Hídricos,
dentre outras. Foi observado que os alunos ressaltam a importância desse aspecto como
diferencial do o curso e passaram a buscar a troca de saberes e a construção
compartilhada de novos saberes. O grupo iniciou seu processo de formação no primeiro
semestre de 2011 e todos já defenderam suas dissertações.
No contexto do grupo pesquisado, um dado a ser ressaltado, refere-se ao fato de
que todos os egressos são oriundos da própria região do Cariri. A maior parte fez sua
graduação fora da região. Estes demonstram grande entusiasmo por terem o meio de se
capacitarem em sua região de origem. Ressaltamos a oportunidade que esses sujeitos
estão tendo de permanecerem em seus sítios. De acordo com Zaoual (2008, p. 86), sítio
é entendido como espaço simbólico de pertencimento, entendido ante de tudo como
uma pátria imaginária, ou seja, entidade imaterial. É também compreendido como
patrimônio coletivo que estabelece sua concretude no espaço de convivência entre os
atores.
Um depoimento muito revelador de um dos estudantes traduz a importância que
o mestrado assume para ele: “Esse mestrado veio para mudar a vida das pessoas, veio
para mudar a minha vida”. Os dados apresentados no trabalho de pesquisa de Barreto;
Chacon; Nascimento (2012) sobre a expansão do ensino universitário na região do cariri
cearense, confirmam a percepção a respeito do aspecto potencial de transformação na
vida dos sujeitos universitários comprovando que em sua maioria são oriundos de
escola pública. Essa experiência universitária poderá gerar grandes mudanças na vida de
cada um, em sua família e na comunidade de onde vem. No início da segunda década do
Século XXI, são grandes e complexos os desafios no que diz respeito ao contexto
educacional. Muitos são os que depositam sob a educação uma imensa
responsabilidade, a de solucionar todos os males da humanidade. Outros, já descrentes,
ocupam o lugar de críticos ferrenhos e despotencializam o lugar da educação.
Utilizamos inicialmente um questionário para o registro de informações que foi
aplicado no final do primeiro ano do mestrado. Todos estudantes fizeram a sua
qualificação em Março de 2012. No referido mês, aplicamos um questionário para
colher informações sobre o perfil da turma e para poder levantar as expectativas dos
educandos para os próximos cinco anos. No conjunto das respostas, identificamos o
grande interesse pelo exercício da docência no ensino superior. Além disto, percebemos
o fortalecimento da inclinação para a pesquisa. O que pode indicar a descoberta de uma
prática ainda pouco desenvolvida na região. No entanto, não se indica um fazer pesquisa
abstrato, revela-se um fazer direcionado para o foco do processo de formação
vivenciado. Como último ponto, mas não menos relevante, apresentado pelos
estudantes, descrevemos como a preocupação com a construção de uma prática social
interventiva traduzida por esse posicionamento do participante.
Em resumo, nos resultados colhidos pelo questionário, identificamos o
fortalecimento do tripé clássico em que permanece apoiada a universidade, qual seja:
ensino, pesquisa e extensão. Acreditamos que o trabalho dissertativo de cada aluno da
turma de mestrado produziu uma relevante problematização de questões locais e a
produção de um saber genuíno. Ressaltamos a oportunidade que esses sujeitos estão
tendo de permanecerem em seus sítios. Um depoimento muito revelador de um dos
estudantes traduz a importância que o mestrado assume para ele: “Esse mestrado veio
para mudar a vida das pessoas, veio para mudar a minha vida”. Esses dados confirmam
a percepção a respeito do aspecto potencial de transformação na vida dos sujeitos
universitários comprovando que em sua maioria são oriundos de escola pública. Essa
experiência universitária poderá gerar grandes mudanças na vida de cada um, em sua
família e na comunidade de onde vem.
Resultados e análises das falas dos egressos a partir do grupo focal
Como primeiro elemento analisado, observamos a visível situação de que a
experiência de formação do mestrado foi um divisor de águas para muitos dos
participantes. "Quando entrei no mestrado não tinha consciência da importância que
seria o mestrado para os rumos da minha vida profissional" (participante 1). Mas qual
seria esta importância? Tivemos algumas pistas para entender melhor em que consiste
tal relevância.
Um elemento compartilhado no grupo que pode contribuir para a compreensão
da importância do mestrado para os participantes é ressaltado na fala da participante 3:
"Não apenas a quantidade de assuntos novos, mas a maneira de ver. Poder olhar as
coisas com uma nova visão". O participante 4 reforça "ver o que antes nem percebia".
A superação de uma formação conteudista se faz necessária, posição postulada pela
proposta da Educação libertadora elaborada por Freire (2005). Nesta sistematização, a
leitura crítica do mundo é imprescindível, a realidade passa a ser percebida por outras
lentes. Lentes abertas ao diálogo com outras fontes de referência, outros saberes. Algo
próximo também ao conceito de Ecologia de Saberes, sistematizado por Santos (2010)
que visa romper com a monocultura do saber e do rigor científico e com a
desqualificação de outros saberes diversos do saber científico. Tal proposta constitui-se
"através de perguntas constantes e respostas incompletas" (Santos, 2010, p. 66).
O segundo aspecto que gostaríamos de aprofundar nossas análises, revelado
pelas discussões apesentadas no grupo focal diz respeito à dimensão de que todo
conhecimento é social (Santos, 2010) e para o outro. O processo de formação
vivenciado pelos egressos indica que foi reforçada a dimensão relacional da
sustentabilidade. A fala do participante 5 ressalta "Ser alegre com o outro, se vê no
outro". A Fala do participante 6 também amplia nosso entendimento com relação ao
que aprendeu sobre o conceito Desenvolvimento Sustentável: “"Extrapola a questão
ambiental apenas, incluí todas as dimensões da sustentabilidade. Sustentabilidade das
pessoas". O inédito-viável a ser construído diz respeito também a produção de
conhecimentos que superem o reducionismo da competitividade e a marca da exclusão.
Algo que edifique toda a simbologia contida na expressão "Ubuntu", ditado
africano traduzido como “existo por que nós existimos”. A expressão nos lembra que a
existência (e o conhecimento) do indivíduo é dependente das relações com os outros.
Tal posicionamento visa fortalecer o princípio da solidariedade juntamente com os
princípios da partilha e do cuidado mútuo que, de acordo com Ramose (2010), tem sido
fragilizados pela globalização capitalista. Desejamos ressaltar que “de acordo com esta
filosofia, o ser humano individual deve ser encarado não apenas como um provedor de
valores, mas como valor básico e principal de entre todos os valores” (Ramose, 2010,
p.213). Sublinhamos que as falas dos sujeitos pesquisados se complementam a partir da
interação entre os pesquisados proporcionada pelo estar em grupo e podemos relacionar
o aspecto da construção compartilhada do conhecimento com a forma de ver além que o
mestrado proporcionou abordado no primeiro aspecto aprofundado em nossas análises.
Reforçando a interligação entre os pontos até o momento analisados, apresentamos o
terceiro aspecto a ser aprofundado em nosso estudo, qual seja: a dimensão da
interdisciplinaridade.
O participante 1 em outro momento de seu relato afirmou "gostaria de enaltecer
o caráter interdisciplinar que o mestrado oferece". Como anteriormente descrito, o
programa de mestrado é interdisciplinar, são várias as modalidades de graduação.
Podemos refletir que esta marca da interdisciplinaridade trouxe um diferencial para a
formação dos participantes. O participante 2 reafirma esta dimensão em sua fala: "Muito
crescimento a partir das trocas interdisciplinares".
No entanto, dificuldades também foram compartilhadas. Tivemos a seguinte
afirmação compartilhada: "Sofri preconceito de pessoas de minha área de formação que
não entendiam o porquê de minha escolha por um mestrado em Desenvolvimento
Regional Sustentável" (participante 2). Essa fala indicou que, o reconhecimento da
importância da formação inicialmente compartilhada pelo grupo ainda não se estende
aos seus pares profissionais. O novo a ser construído (inédito-viável) passa por um
processo de graduação que também se aproxime de questões interdisciplinares. Um
processo de formação que se comprometa com a construção do tipo de conhecimentoemancipação, "buscando superar a ignorância representada pelo colonialismo"
(Oliveira, 2008, p.21).
De acordo com o que levantamos sobre o que se discute em torno do termo
interdisciplinaridade, podemos concluir que o conceito ocupa o centro das atenções, está
na „moda‟, mas não é novidade (Maheu, 2010). Ou seja, há muito tempo se discute o
conceito, mas não se consegue alcançar a consolidação de práticas interdisciplinares. No
cenário das pesquisas sobre esse termo, Fazenda (2009) apresenta algumas reflexões
pertinentes ao nosso estudo. A autora indica que “O primeiro passo para a aquisição
conceitual interdisciplinar seria o abandono das posições acadêmicas prepotentes,
unidirecionais e não rigorosas que fatalmente são restritivas, primitivas e „tacanhas‟
impeditivas de aberturas” (Fazenda, 2009, p.13). Buscar o estranhamento do que se
estabeleceu como padrão. Problematização do que é posto na busca do pensar de forma
ambígua. “Exercitar uma forma interdisciplinar de teorizar e praticar educação
demanda, antes de mais nada, o exercício de uma atitude ambígua” (Fazenda, 2009,
p.13).
Ao refletir sobre as falas dos pesquisados e o referencial dos autores
apresentados, nos indagamos: quais são as nossas ações para consolidar práticas
pautadas na leitura de mundo e no desvelamento crítico das realidades; intervenções
solidárias (saber social e para o outro) e que nos aproximem de um saber-fazer
interdisciplinar?
Um dos caminhos que poderiam nos aproximar de práticas profissionais
interdisciplinares seria que a formação destes profissionais pudessem proporcionar o
aprofundamento deste referencial. Mas como alcançar isto no cenário atual?
Percebemos como preocupante a profissionalização docente pertinente ao contexto
contemporâneo que deveria passar por uma formação interdisciplinar. “Formar
educadores que entendam melhor seus alunos e a si mesmos, que entendam melhor o
que é um ser humano da maneira mais contextualizada possível” (Maheu, 2010, p.168).
Severino (2009) defende que o modelo de educação a ser abraçado deve
proporcionar e fortalecer processos de mediações existenciais. Ensino só se legitima se
for mediador da educação. “Garantir que a educação seja mediação da percepção das
relações situacionais, que ela lhes possibilite a apreensão das intrincadas redes políticas
da realidade social” (Severino, 2009, p.37).
Como desfecho desta parte do texto, destacamos que a análise do conteúdo das
falas nos permite estabelecer conexões com as ideias de Freire (2007) quando afirma
que uma das tarefas da formação acadêmica a ser desenvolvida seria o compromisso
com a curiosidade epistemológica, sem deixar de lado a imaginação criadora que busca
desocultar a verdade. Dessa forma, ele ressalta “Refiro-me à tarefa, não importa qual
seja a atividade universitária – a da docência, a da pesquisa ou da extensão – de
desocultar verdades e sublinhar bonitezas” (p.119).
Na parte final do texto apresentaremos alguns pontos para demarcar nossas
contribuições para movimentar as discussões a respeito do processo de formação de
novos mestres e sua articulação com a transformação social e a construção subjetiva do
profissional para Ser Mais.
O grande desafio que o estudo nos apresentou
Gostaríamos de indicar como desafio trazido pelas falas dos participantes o
desconhecimento por parte da maioria da população a respeito do foco principal do
mestrado, ou seja, o tema do Desenvolvimento Regional Sustentável. Para o
entendimento amplo desta questão, convém demarcar toda a complexidade presente no
pensar e fazer Desenvolvimento Sustentável. A princípio, restringiu-se sua compreensão
aos aspectos ecológicos e econômicos, no entanto, o termo tem evoluído (Camargo,
2003) de forma a envolver aspectos que contemplam a relação de interdependência
entre meio ambiente e desenvolvimento humano. Nessa direção, Sachs (2007, p. 22)
afirma: “trabalho atualmente com a ideia de desenvolvimento socialmente includente,
ambientalmente sustentável e economicamente sustentado. Ou seja, um tripé formado
por três dimensões básicas da sociedade”.
Para muitos autores o termo mais recentemente cunhado e mais adequado seria
Sustentabilidade. Em consonância com este posicionamento, acrescentamos a afirmação
de Gadotti (2006, p.114) “Sustentabilidade não tem a ver apenas com a Biologia, a
Economia e a Ecologia. Sustentabilidade tem a ver com a relação que mantemos
conosco mesmos, com os outros e com a natureza”. De acordo com este
posicionamento, acrescentamos que abordar a temática do desenvolvimento sustentável
e da sustentabilidade significa discutir sobre o papel do ser humano, da natureza e de
suas conexões, “sobre a vida que circula no planeta terra, casa comum da humanidade”
(Calou; Nascimento; Sampaio; Chacon, 2013, p.3).
No cenário atual, é inegável que, o debate sobre este termo vem assumindo o
centro das atenções. O interesse pelo entendimento deste conceito tem crescido e
estabelece palco propício para o diálogo entre vários segmentos da sociedade em geral.
No entanto, estamos longe de alcançar “um consenso quanto ao seu real significado,
quanto a como implementá-lo e mesmo quanto à possibilidade de sua implementação
em âmbito global” (Camargo, 2003, p. 15).
Desta forma, o nosso grande desafio e como desdobramento de nossa
investigação, percebemos o quão urgente e necessário se faz envidar esforços que
possam contribuir para a problematização do termo Desenvolvimento Sustentável.
Sobretudo, a partir da pesquisa realizada, pensamos em contribuir com o debate e com a
sistematização de novos conhecimentos das realidades locais e cotidianas. Convidamos
os egressos do mestrado para pensar conosco sobre tal temática e convidamos agora o
leitor deste artigo para que juntos possamos tornar nosso “o desafio de pensar, expor e
ouvir o outro sobre a questão da sustentabilidade” (Sorrentino, 2011, p.19), reforçando a
percepção de que tais reflexões são ancoradas em nossa inserção no tecido social no
qual nos encontramos todos envolvidos.
Lembrando que sustentabilidade significa participação democrática e redução de
desigualdades sociais, e diminuição de pobreza monetária, devendo, portanto,
reestruturar as forças produtivas e mudar um sistema que gera situações-limite quase
que intransponíveis, por meio de uma racionalidade ecológica, que nos faça conscientes
de todos os danos que estão atualmente colocando o planeta em risco face ao modelo de
vida-consumo-devastação que criamos e ao qual estamos submetidos (Nascimento;
Petrola, 2014).
No contexto de formação de novos pesquisadores em uma nova universidade
entendemos ser necessária a ousadia de fazer diferente e construir o novo possível, que
possa ir de encontro ao “ideal de profissionalismo e especialização que alimenta o modo
de subjetivação do pesquisador (...) em que se aceita o existente como o limite do
possível” (Castro, 2010b, p.624).
Por último gostaríamos de enfatizar o sentido utópico assumido no horizonte de
nossas reflexões. "Mas se é verdade que a paciência dos conceitos é grande, a paciência
da utopia é infinita” (Santos, 2010b. p.346). Entendemos que as reflexões suscitadas a
partir das falas dos sujeitos de pesquisa alinham-se com o desejo de superação do
paradigma dominante, buscando contribuir com o movimento de afirmação de um outro
paradigma emergente em que o pensar e o fazer a sustentabilidade se inscreve. Trata-se
então da construção de uma utopia coletiva que nos sentimos construindo nas nossas
práticas cotidianas sociais e pedagógicas (Reigota, 2012). Não é tarefa fácil nem é uma
tarefa individual: UTOPIZAR com o objetivo de contribuir para a criação de um novo
senso comum que nos permita transformar a ordem ou desordem existente.
Referências
Barreto, P.L.; Chacon, S.S.; Nascimento; V.S. (2012). Educação e desenvolvimento
sustentável: a expansão do ensino superior na região metropolitana do Cariri.
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Calou, R.; Nascimento, V.; K.; Chacon, S. (2013). Desenvolvimento Sustentável e
Cultura de Paz: conceitos passíveis de um processo de ensino e aprendizagem. Revista
Terceiro Incluído. Goiania. Universidade Federal de Goiás. v.3, n.2 (2013). p. 1-10.
Camargo, A.L.B. (2003). Desenvolvimento Sustentável: dimensões e desafios. 6ª ed.
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Mesa Temática: Diálogos Sur-sur: pedagogías descolonizadoras