1 Gênero e História das Mulheres: diálogos conceituais Andreza de Oliveira Andrade [email protected] A necessidade de inserir as mulheres enquanto protagonistas dos processos históricos e, conseqüentemente, de uma escrita da história comprometida com a necessidade e possibilidade de pensar a pluralidade e a alteridade no âmbito da historiografia, tem sido posta à tribo dos(as) historiadores(as) e incorporada especialmente por aqueles(as) articulados com o pensamento da diferença sexual, enfatizando, no interior do Movimento Feminista, tal protagonismo. O que significa problematizar e historicizar muitos dos elementos conceituais que tem servido como instrumentos na feitura de uma história que pensa as mulheres na sua pluralidade como sujeitos e objetos da prática histórica. E, neste sentido, penso que é imprescindível historicizar a própria emergência do termo gênero como categoria de análise social. Esse conceito surgiu entre as feministas norte-americanas a partir da década de 1970 para enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. Segundo Joan Scott: “A palavra indicava uma rejeição ao determinismo biológico, implícito no uso de termos como ‘sexo’ ou diferença sexual” (SCOTT, 1990: 1). Sua emergência no âmbito dos debates sociais atrelada ao seu importante papel de chamar atenção para “os símbolos culturais”, para “os conceitos normativos”, para “ as instituições”, para “a organização social”, assim como para “as identidades subjetivas” aponta sua tendência às abordagens políticas relativas à constituição das identidades sociais, inclusive promovendo uma releitura do significado do “político” que, nesse sentido, promove uma bifurcação entre as esferas do público e do privado. Tal conceito sugere, em especial, repensar e romper com a rigidez do binarismo entre os pólos masculino e feminino, de maneira que seja possível estruturar as análises histórico-sociais a partir de matrizes plurais no interior de cada um desses pólos, de modo a se contemplar os conflitos e as cumplicidades que permeiam a dinâmica social, produzindo arranjos e desarranjos em suas relações. 2 É especialmente a partir da emergência do conceito de gênero que os sujeitos passaram a ser pensados e abordados de forma multifacetada, ou seja, como constituídos não apenas pelo gênero, mas também pela raça, etnia, classe e sexualidade. E, neste sentido, o poder deixa de ser compreendido como um movimento hierárquico linear, centralizado ou de direção unificada. São essas marcas sociais que, ao combinarem-se de maneira complexa e peculiar, barram a concepção simplificadora do homem dominante versus a mulher dominada. Desse modo, o conceito de gênero investe, de maneira enfática, contra a lógica essencialista que concebe mulher e homem de maneira universal e trans-histórica. Em consonância com as práticas autoquestionadoras e com a trajetória polêmica dos debates no campo do feminismo, o conceito de gênero foi responsável também por suscitar debates, questionamentos e contestações por parte de feministas e por estudiosas e estudiosos no âmbito das Ciências Sociais. Provavelmente as críticas mais veementes recaiam sobre o fato dos debates e da militância feministas ainda estarem muito atrelados a modelos sociais consagrados, a saber: o sujeito branco, de classe média urbana e heterossexual, que estariam circunscritas aos debates iniciais do Movimento Feminista. Uma das limitações que tem sido apontada quanto ao conceito de gênero seria a de que ele tende a reforçar o dualismo homem/mulher que toma a heterossexualidade como norma natural de nossas práticas desejantes. Essa crítica se assenta no fato de que, para algumas estudiosas, as experiências, as histórias e as reivindicações das mulheres não-brancas e das lésbicas foram deixadas de lado quando da elaboração teórica feminista. Por outro lado, há estudiosas/os que assentam sobre a radicalização do conceito de gênero a possibilidade de desconstrução da oposição binária masculino/feminino. Esse é o posicionamento assumido, por exemplo, pela historiadora, Joan Scott e outras teóricas, como Guacira Lopes Louro (2004) e Teresa de Lauretis (1994) ao estabelecerem aproximações com o pós-estruturalismo. Ao passo que o caráter social da construção de nossas identidades de gênero toma força e legitimidade no campo dos debates sociais, de certa maneira, levam aquelas(les) que se apropriam de seu conceito a tomar como referencial analítico os distintos contextos sociais e momentos históricos com o qual estão tratando. E assim, as perspectivas essencialistas sobre os gêneros tendem a ser afastadas e as análises 3 centram-se nos processos históricos e culturais responsáveis por construir essas identidades. (LOURO. 1997:23) Todo esse arsenal de debates, originados a partir da emergência do conceito de gênero enquanto uma categoria útil de análise histórica e social significou um verdadeiro renascimento teórico do Movimento Feminista. Foi nessa saída do casulo da criatividade intelectual que, nas academias, algumas intelectuais feministas passaram a tratar da diferença de gênero, quando “sexo” passa então a ser uma categoria distinta da categoria “gênero”. Essa distinção representou um importante esforço de refundamentação teórica do feminismo, bem como a abertura de um leque de possibilidades discursivas no âmbito da categoria gênero que atualmente transcende os limites dos debates feministas e que amplia os encaminhamentos de pesquisas acerca das questões de gênero e sexualidade. Foi uma reorientação que implicou não só em novos perfis para os projetos de pesquisa, para demanda e registro do movimento de mulheres, mas também para as Ciências Sociais e o pensamento filosófico. Mas isso é outra questão que por ora ficará em suspensão. Essa fertilidade discursiva em torno do conceito de gênero, somada a necessidade da intelectualidade feminista em consolidar no âmbito acadêmico um lugar que lhe fosse próprio levou à implantação dos chamados Women`s Studies, contando com debates no âmbito da Historiografia, da Antropologia, da Sociologia e da Teoria Literária. O fato é que alguns desses esforços teóricos acabavam se excedendo em sua tentativa de constituir “a grande narrativa” sobre “A Mulher”, ou seja, eram trabalhos que por um lado pensavam “a” diferença feminina desbiologizada em virtude da maneira como se apropriavam do conceito de gênero, mas por outro acabavam por essencializar essa diferença. Então, rompia-se com a “essência biológica” em função de estabelecer outra modalidade ontológica para “a Mulher”, que, em geral inscrevia-se no âmbito psicológico. Este, acabou se constituindo como um ponto de vista problemático à medida que a fixação do olhar sobre a diferença tenderia a fixar o lugar daquilo que seria a identidade feminina, essencializando uma diferença que a princípio era para ser apenas cultural. Dessa forma, o conceito de gênero tomado como genérico do conceito de diferença sexual passaria a confinar e limitar o pensamento crítico feminista no arcabouço conceitual de uma oposição universal de sexo: a mulher concebida enquanto a principal diferença do homem e em oposição a este e ambos universalizados em suas identidades. Ficava desse modo, difícil de articular o conceito 4 “d’A Mulher” com as diferenças entre as mulheres ou, de modo mais específico, com as diferenças nas próprias mulheres. A partir dessa perspectiva tem-se “A Mulher” (pensada como sujeito e substantivo determinados) gozando de características específicas que a diferenciam d’O Homem para a melhor. É o caso das experiências substancialmente relativas ao corpo feminino, pensadas como intransferíveis, como a maternidade e sua complexidade envolvendo gravidez, parto e aleitamento que, somados dão origem à idéia de cultura feminina positivamente diferenciada da cultura masculina como padrão hegemônico da humanidade. Da androgênia igualitarista da “primeira onda” há uma migração, nessa “segunda onda”, que leva à cisão, à bipartição de dois universos culturais: o feminino e o masculino. A diferença de gênero parecia não possuir outro sentido senão o da descontinuidade entre os dois gêneros, logo, se dava a reelaboração de uma dicotomia essencializada para as identidades do feminino e do masculino. Acontece que a diferença é ela própria, um marcador de diferenças. As mulheres, ao aprenderem os benefícios de serem diferentes dos homens, começam a perceber também que podem se beneficiar ao constituírem diferenças entre si mesmas. São os idos de 1980 e, nesse momento localiza-se a radicalização da influência dos debates pós-estruturalista ligados aos Estudos Culturais. É o início da terceira onda que surge a partir da experiência das lutas sociais que se multiplicaram e se diversificaram, lançando o foco sobre a existência de diferenças coletivas significativas entre as mulheres. Essa fase do Movimento Feminista emerge filha de seu tempo, carrega consigo valores ou, a ausência deles, inspirados no que chamarei de uma estética de si pós-moderna. Os debates em torno das políticas de identidades, mais do que nunca, assumem seu caráter rizomático, nos termos deleuzianos. A partir da negação das ontologias se vai à busca das representações fluxas, nada é permanência, tudo é movimento, é um estar das coisas. Há, nesse sentido, uma radicalização em torno da multiplicidade das identidades pela negação das permanências e das imanências desses aspectos que nos constituem. O sujeito é objetivado na ação por meio do assujeitamento às práticas regulatórias ou a reflexão crítica que faz de cada um de nós um (a) “forasteiro (a) de dentro” (HUTCHEON,1991: 98), fixada em nossas identidades de gênero, experiências de um corpo sexuado, cuja pesada materialidade 5 pode e deve ser questionada, segundo Tânia Swain. (2002). O corpo, a partir de então é revisitado, mas não mais enquanto determinante biológico, mas como o lugar onde a cultura inscreve de forma mais poderosa suas marcas nos sujeitos. Não é mais a questão de que “meu corpo me pertence”, mas o meu corpo me marca e inscreve em mim as fronteiras da cultura através de minhas práticas de subjetivação. As feministas chamam a atenção para o poder da “tecnologia do gênero” pensadas como os dispositivos sociais e institucionais dotados de poder para controlar o espaço de significação social produzindo, promovendo e implantando, assim, as representações de gênero (LAURETIS, 1994). De um lado, o masculino, portador de uma genitália, física ou metafórica, que lhe concede um espaço onde é possível exercer poder e autoridade enquanto sujeito universal, naquilo que tenho denominado de cultura masculina hegemonicamente disseminada enquanto valor neutro na sociedade: o homem, sinônimo do humano, sujeito dotado de transcendência. De outro, o feminino, o Outro “natural”, que carrega as marcas da imanência de um corpo no qual se inscreve um destino, a partir da maternidade e da sexualidade. Dessa forma, as “tecnologias do gênero” arquitetam uma realidade feita de representações e auto-representações por meio da linguagem, da imagem, dos múltiplos discursos teóricos emergentes dos mais diversos campos disciplinares, de todo um aparato simbólico responsável por designar, criar e instituir o lugar, o status e o desempenho dos (as) indivíduos (as) no âmbito da sociedade. Esse debates têm procurado, segundo Tânia Swain, demonstrar que no processo de fundição de nossas práticas sociais o “eu” não existe ontológica e essencialmente, mas é a partir deste processo que se forja como peles que vão delimitando nossos corpos afetados pela norma social e pelas relações de poder, identidades inscritas a partir de papéis definidores: mulher e homem, marcados (as) por uma identidade que nos aprisiona pelas restrições que nos são culturalmente colocadas e que tendemos/ aprendemos a naturalizar. Segundo Swain: Esses traços, desenhados por valores históricos, transitórios, naturalizam-se na repetição e reaparecem fundamentados em sua própria afirmação: as representações da “verdadeira mulher” e do “verdadeiro homem” atualizam-se no murmúrio do discurso social. (SWAIN, 2002: 325) Os questionamentos identitários nesse contexto articulam-se com uma tendência que se fortalece a cada dia na sociedade contemporânea, trata-se da busca de representatividade dos mais diversos grupos sociais. Vivemos em uma sociedade 6 em que, em detrimento da força das identidades normatizadas e cultuadas como modelo, há incontáveis outras identidades que asseiam e lutam por seu reconhecimento. Mas como disse anteriormente, não são identidades que reivindicam para si uma legitimidade ancorada em essencialismos e ontologias ilusórias. São nesses termos que Swain procura inquietar seus leitores (as) ao questionar-se sobre sua própria condição de sujeito: Quem somos “nós”, assim, encerrados em corpos sexuados, construídos enquanto natureza, passageiros de identidades fictícias, construídas em condutas mais ou menos ordenadas? Quem sou eu, marcada pelo feminino, repensada enquanto mulher, cujas práticas não cessam de apontar para as falhas, os abismos identitários contidos na própria dinâmica do ser? (SWAIN, 2002:327) Esses questionamentos teóricos e a produção das feministas identificadas com essa vertente do Feminismo bebe diretamente da fonte do pós-estruturalismo e tem nos Estudos Culturais, em sua vertente pós-estruturalista, seu principal espaço de produção. Gênero e Cultura Histórica Os estudos de gênero emergem no universo acadêmico nacional a partir da década de 1980, momento em que a academia passou a se ocupar de modo mais sistemático do gênero enquanto categoria de análise historiográfica e o assume enquanto temática válida de pesquisa, como já foi dito no capítulo anterior. Já se vão quase trinta anos e aparentemente ainda espera-se que isso resulte numa maior disseminação das pesquisas de modo que se possa constituir um ambiente cada vez mais propício para a produção de conhecimentos nessa área e em sua inter-relação com outros campos e saber. Discutir e pensar as trilhas que trazem não só a temática de gênero, como a da história das mulheres e os debates acerca da sexualidade para o interior do universo epistemológico acadêmico é também um caminho que nos coloca diante de uma questão, que é a de perceber como a inserção de tais temáticas no âmbito das Universidades tem influenciado a produção de pesquisas acadêmicas e em que medida esta têm incorporado os debates de gênero, sejam os mais contemporâneos ou mesmo aqueles tradicionalmente antenados com a chamada primeira onda 7 feminista, cuja inspiração literária principal é o marxismo. Em temos materiais, que tipo de pesquisa esse movimentar-se da epistemologia histórica em direção a esses temas tem inspirado? Tal questão é o eixo norteador de uma pesquisa que se utiliza das monografias produzidas por estudantes do curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) entre os anos de 2002 a 2007, partindo da pesquisa realizada no acervo disponível no Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica (NUDOPH/ UEPB) na tentativa de cartografar alguns espaços de produção de cultura historiográfica apontando, assim, encaminhamentos práticos dados aos debates teóricos, tanto no que se refere à historiografia e aos debates de gênero em si, quanto ao que se tem praticado como História de Gênero. A eleição das monografias de graduação enquanto documento histórico se encaminha justamente no sentido de tentar perceber em até que ponto a academia, no caso a UEPB, tem se apropriado de saberes e relações epistemológicas e subjetivas, que se encontram em circulação em suas aulas e nos debates que se estendem para além delas, nas trocas de experiência entre os sujeitos, na escrita de seus (suas) docentes e no incentivo destes(as) a produção por parte de alunas e alunos. Esta é um tipo de documentação cujos mecanismos de produção se apresentam de modo claro. Há presente em todas elas o caráter intencional de se produzir um conhecimento histórico legitimo e legitimado pelo lugar de produção acadêmica. A intencionalidade de se produzir cultura histórica é um aspecto presente e considerável neste tipo de fonte. De certa forma, todas procuram investigar problemas, parcelas da realidade, e ao lidar com elas é preciso ir à busca de suas fontes, de suas inspirações e de indícios que possam fornecer informações a respeito das questões que cada trabalho formula, bem como do lugar social a partir do qual cada uma deles é produzido. Desse modo, acabam sendo introduzidos no âmbito da pesquisa questionamentos acerca não só dos(as) autores(as) dos trabalhos, mas também do lócus sócio-institucional que abriga tais pesquisas. No presente contexto, à medida que a pesquisa foi sendo desenvolvida, foram também sendo colecionar dados que iam se apresentando a cada leitura, a cada referencial bibliográfico, a cada nome de orientador ou orientadora que encontrava nos trabalhos. Tomando estes como parte de uma realidade sistêmica, à medida que me deparei com o recorte temporal da pesquisa, um recorte que não escolhi, mas que, de certo modo, me foi posto pelo 8 desenvolvimento da pesquisa ao passo que os dados se acumulavam, fui percebendo que o recorte temporal desta ia do ano de 2002 até 2007. O que despertou minha curiosidade foi perceber que diante de um universo de duzentas e oitenta e nove monografias catalogadas no NUDOPH a partir da década de 1990, apenas trinta e oito estavam classificadas como Gênero e História das Mulheres, das quais apenas vinte e três existem de fato no acervo, sendo todas estas foram produzidas nesse período. Esses dados sinalizam claramente que essa “nova geração” de docentes que passa a integrar o quadro da Universidade a partir de 2002 parece trazer uma importante contribuição para o que chamaria de certo desencaminho em relação ao que, aparentemente, era o eixo temático mais recorrente nos trabalhos: a história regional com recorte político e/ou econômico. Não só com base nos dados, mas também na condição de testemunha, visto que fomos aluna do curso entre 2001 e 2005, é possível afirmar que esse ingresso de novos docentes trouxe uma sutil reformulação da cultura histórica que se praticava na Universidade até então. Não poderia dizer que se tratou de uma revolução teórico-metodológica, mas um movimento de aproximação em direção a temáticas que não estavam circunscritas apenas ao âmbito da história política e/ou econômica, ou mesmo a uma exacerbação daquilo que, parafraseando Eric Hobsbawm, poderia chamar de um marxismo vulgar. Essa realidade foi sendo gradativamente percebida a partir das bibliografias dos planos de curso, das aulas e até mesmo nos bate-papos durante o cafezinho. É justamente neste contexto que, não sem resistências, temáticas ligadas à história cultural como gênero, sexualidade, história das mulheres e cotidiano, foram sendo introduzidas na UEPB e, penso eu, inspirando esses trabalhos que tomo como fonte para minha pesquisa. Entre a militância e a produção de conhecimento acadêmico Essas monografias, enquanto documento, são modalidades de linguagem escrita, passíveis de serem concebidas, neste contexto, como parte de um sistema social específico, assim como representação de práticas epistemológicas que se apresentam como exercícios de elaboração de uma cultura histórica, não só balizada 9 pelo saber produzido na academia, como arraigada a ele, ao passo que são elas próprias produtos do saber acadêmico, são uma modalidade deste. Embora a UEPB abrigue o Flor e Flor – Grupo de Estudos de Gênero, não se pode relacionar diretamente a produção das monografias do curso de História com as atividades do grupo, pois embora possua uma proposta intersdisciplinar, este está muito mais ligado ao curso de Serviço Social do que ao de História, por outro lado, trata-se também de um grupo voltado para a militância junto aos movimentos sociais muito mais do que ao estudo e as produções acadêmicas sobre gênero. A militância social e política do grupo se dão de modo intenso e, vale salientar, vêm dando importantes contribuições junto ao movimento de mulheres não só em Campina Grande, mas no Estado da Paraíba como um todo, lutando por causas que considero justas e válidas. Mas por outro lado, isso faz com que o espaço para os debates e a produção de conhecimento no interior do grupo fiquem relegadas a ocasiões mais “propícias” que, diga-se de passagem, que quase não existem. O que contribui para a formação de um cenário onde as produções ligadas ao grupo fiquem circunscritas muito mais a esforços e estudos individuais que a um trabalho de estudos e produção epistemológica desenvolvido em conjunto. Acho que o fato de ter sido ligada ao grupo me permite afirmar que ele ainda necessita de esforços e projetos efetivos para se tornar um grupo de pesquisa. Por outro lado, acontece anualmente na UEPB o Colóquio Nacional de Representações de Gênero e de Sexualidade que em 2008 teve sua quarta edição. Trata-se de um evento organizado pelo Centro Paraibano de Estudos do Imaginário ligado ao Mestrado de Literatura e Interculturalidade daquela Universidade. Embora seja um evento nacional, pode-se dizer que, dentro da própria academia não acontece uma integração entre pesquisadores e pesquisadoras na realização desse tipo de evento, com isso, se deixa de contribuir para que os eventos realizados possam ter uma maior abrangência entre os discentes, instigando a curiosidade e incentivando debates que possam resultar no surgimento de novas pesquisas sobre gênero. Os esforços isolados e/ou a pouca integração entre pesquisadores(as) se reflete no pequeno número de monografias que abordam problemáticas nessa área, são apenas vinte e três em um universo de duzentos e oitenta e nove, aproximadamente 8%, o que é uma quantidade muito tímida. Além disso, há outro agravante que se apresenta em relação à produção de gênero, é que, ao longo da 10 pesquisa foi possível comprovar que, nem todos os trabalhos que se propuseram discutir gênero o fizeram, a grande maioria pode ser classificada como história das mulheres produzidas sem que uma abordagem teórica sobre as questões de gênero fosse desenvolvida ao longo dos textos. São classificadas como gênero e história das mulheres as monografias cujo objeto de pesquisa está, de algum modo, relacionado a estas temáticas. Essa classificação, em geral, é feita a partir do título dos trabalhos e de suas palavras-chave. Nessas monografias há uma clara a predominância de trabalhos que, embora relacionem-se a gênero em seus objetivos, enquanto produto final, são apenas exemplares de certa modalidade de uma história das mulheres mesclada com história regional e/ou local. Se a pesquisa histórica surge a partir de “achados” (ARÓSTEGUI. 2006: 470) diria que dentre eles, nem sempre ou, quase nunca, é possível encontrar aquilo em busca do que se partiu e isso sinaliza para o fato de que uma pesquisa dificilmente tem seus contornos claramente definidos, até que esta esteja concluída, não no sentido de atribuir respostas finais às problemáticas suscitadas, mas no sentido de que se chega a um momento em que toda pesquisa histórica precisa encerrar sua contribuição para com a historiografia. Ao conceber os possíveis rumos para uma pesquisa partindo dessas monografias, tinha em mente analisar como as teorias de gênero têm contribuído para o desenvolvimento de pesquisas nessa área, e, confesso que, esperava encontrar algo diferente dos materiais com os quais me deparei. Levando em consideração a bibliografia consultada, os sumários, resumos, o (a) docente que assinou a orientação e a leitura dos trabalhos pretendia discutir em que nível se encontravam os debates de gênero na academia. Mas qual foi minha decepção ao perceber que dentre os vinte e três trabalhos pesquisados apenas dois trabalhos carregavam a proposta de discutir gênero propriamente. Olhares sobre as práticas de uma cultura histórica: confusões conceituais A análise empreendida dos trabalhos durante a pesquisa levou em consideração o fato de que a escrita de uma história que busca apreender o vivido ou pelos menos seu espectro enquanto passado, a partir de experiência e lugares secundários de resistência das mulheres, no âmbito das sociedades é uma prática 11 que envereda por trilhas que, apesar de abertas no âmbito das Ciências Humanas e Sociais há mais de vinte anos, ainda se apresentam como caminhos alternativos e que esperam por serem explorados de maneira mais profícua. Para apreender no passado as experiências de resistências é preciso que a academia invista na formação crítica de seus/suas historiadores/as, o que pode parecer redundantemente óbvio, mas que é o único caminho para a elaboração de abordagens teóricas desvencilhadas de matrizes dogmáticas. A crítica teórica feminista tem investido numa concepção contextual, histórica e relativista quando se trata das abordagens de gênero e da história das mulheres, o que inicialmente implica naquilo que algumas teóricas consideram de uma atitude crítica iconoclasta que rejeita totalidades universalizantes. É um exercício de historicização de conceitos que têm sido instrumentalizados nos trabalhos acadêmicos, como em relação à noção de família, dominação, patriarcado, subjetividade, a fim de transcender o caráter estático que se tem atribuído a conceitos que são construções culturais e discursivas e que têm sido associados à figura das mulheres enquanto relacionados à sua natureza. Historicizar a produção de conhecimento no contexto de uma contemporaneidade que experimenta processos de mudanças constantes parece-me um passo fundamental no sentido de orientar discussões teórico-metodológicas que possam contribuir para fundamentação de um campo historiográfico mais fértil e criativo e o desenvolvimento de culturas histórias capazes de apreender através da temporalidade a experiência dos sujeitos em sua diversidade deslocada de dogmas hierárquicos em torno da legitimidade dos saberes históricos. Esse tipo de exercício historiográfico consiste basicamente em delimitar o lugar, as circunstâncias, o lugar social e a relação com o objeto. O que se dá a partir do ato de assumir a temporalidade histórica enquanto parte do objeto de reflexão e mecanismo constitutivo do próprio objeto, problematizando-o e inserindo contornos ao redesenho do passado. Embora os trabalhos analisados durante a pesquisa tenham em comum o fato de serem todos catalogados como gênero e história das mulheres cada um deles, a sua maneira, se propõe a escrever a história no feminino efetuando, de certo modo, um redesenho de uma cultura historiográfica que durante muito tempo tradicionalmente ocupou-se de uma história protagonizada por homens e por seus 12 valores sociais. Esses trabalhos são exemplos da busca por novas interpretações para os discursos historiográficos a partir de outros pontos de vista, que não ficam apenas no campo discursivo, mas contam com uma diversidade documental que felizmente já vem sendo trabalhada, ainda que não tenham conseguido fazer com que gênero e história das mulheres deixassem de ser um campo na história para ser um campo para história, pensados em sua importância tanto quanto a história política ou econômica, por exemplo. Ao se tomar esse tipo de produção historiográfica como espaço de reflexão no sentido de perceber a maneira como o objeto “gênero” tem sido apropriado como possibilidade de pesquisa na academia é possível verificar como este ainda se confunde muito de perto com “mulheres” e “feminismo” ao mesmo tempo em que, foi possível observar sutis mudanças na prática de pesquisa na UEPB no período entre 2002 e 2007, pelo menos no tocante a atração por outras temáticas, entre elas o gênero e a história das mulheres entre alunos e alunas da graduação de licenciatura em História. A recorrência dessas temáticas ainda é muito pequena se comparada ao ritmo de produção de trabalhos relacionados às tradicionais temáticas da história política, social e/ou econômica, ou até mesmo algumas temáticas da história cultural. Em se tratando da academia penso que um dos motivos para isso é que em muitos casos, alunos e alunas chegam ao final da graduação convictos, muitas vezes sem nenhum embasamento literário para tal, de que a história das mulheres e das relações de gênero são temas menores, ainda marginais, cuja natureza anedótica indica uma desconexão em relação à “história de verdade”. Por outro lado, em se tratando destas monografias, considerando que é importante mencionar que, embora possuam suas limitações, estes trabalhos merecem o crédito de significarem tentativas de constituir experiências iniciais na pesquisa de gênero. A coragem dessas(es) pesquisadoras(es) em colocar suas perspectivas de história, gênero e história das mulheres à apreciação acadêmica deve sim, ser valorizada. O que, não significa, no entanto, que a tentativa por si só mereça qualquer tipo de isenção quanto à analises posteriores como esta. Esse tipo de equivoco epistemológico só pode ser corrigido a partir de uma mudança na cultura escolar que a academia produz. O que de um modo geral parece-me está muito mais nas mãos de professores e professoras que na dos/das alunos/as. Pois, só a partir da articulação da dimensão de gênero com a política, com as hierarquias sociais, com os contextos econômicos e a sua participação nos 13 eventos históricos é que será possível promover uma releitura da cultura histórica praticada na academia. Ao longo deste texto tenho manifestado descontentamento em relação a certa prática de história das mulheres que tenho considerado problemática porque deixa de fora a reflexão e/ou uma maior problematização das categorias e das relações de gênero e das relações de poder nas quais estas estão implicadas. Mas o que isso significa em termos práticos no âmbito da cultura histórica? Qual é, pois a dimensão historiográfica desses espaços epistemológicos que tenho chamado de gênero e história das mulheres? Sem dúvida que esta é uma questão que delibera alguns perigos, visto que definir é sempre um exercício de tentar estabelecer fronteiras e cada pessoa demarca os territórios a partir dos mecanismos topográficos que estão ao seu alcance, ou seja, a partir do lugar social que ocupa. Portanto, não há mapeamento que seja de todo fiel ao ponto de dar conta da totalidade das territorialidades conceituais de que se ocupa. Diante disso o que nos resta é tentar cartografar esses espaços procurando não perder de vista à mobilidade dos limites conceituais, o caráter volátil das identidades estabelecidas. A historiografia contemporânea vive a inquietação gerada pelos desafios que a epistemologia pós-moderna lhe tem posto com a constante confusão de fronteiras quando alguns dizem ser irrelevantes a oposição binária entre fato e ficção, pois ambos se constituem a partir da linguagem que constrói a narrativa, confundindo deliberadamente a noção de que o problema da história é a verificação enquanto o problema da ficção é a veracidade. Ambas as formas de narrativa são sistemas de significação cultural. Deste ponto de vista tanto a ficção como a história são sistemas culturais de signos, construções culturais que tendem a assumir posições autônomas em relação a esses sistemas culturais, embora esteja intrinsecamente ligados a eles. (HUTCHEON. 1991) Isso impõe a nós historiadoras e historiadores a necessidade de repensar nossa prática em meio a contexto de incertezas e transformações no qual os sujeitos repensam sua relação com o passado e se questionam até que ponto conhecê-lo pode ajuda-los a compreenderem-se a si próprios e ao mundo que os cerca e a projetar novos caminhos. O que faz com que uma reação se torne algo cada vez mais imperativa a busca por saídas que nos direcionam para uma condição de autonomização em relação à caduquice de toda e qualquer orientação teórico – 14 metodológica pensada enquanto espaço de engessamento do pensamento e da práticas dos/as historiadores/as. Nesse sentido, penso que a prática de uma história das mulheres que se queira constituir representações cada vez mais próximas da “realidade” vivida pelos seus sujeitos/objetos precisa se constituir articulada com as dimensões das relações de gênero. E estas são dimensões que abrigam complexidades inscritas para além do âmbito do tradicional binarismo que opõe homens e mulheres encerrando-os no reducionismo homem – dominador versus mulher – oprimida. A isso eu chamaria de produzir constantemente uma história cultural das relações de gênero que entrelaça passado e presente à medida que as questões postas ao passado emergem a partir de inquietações do tempo presente. Considerando a contemporaneidade é um terreno fértil para o surgimento de novas e constantes inquietações, pode-se dizer que este também é um campo epistemológico fecundo e aberto a criatividade. O que não deve ser entendido como um aspecto reducionista que busca encerrar todas as dimensões da realidade sócio-histórica nessas relações. É, no entanto, a tentativa de estabelecer no âmbito da cultura histórica um espaço de reflexão mais efetivo que se coloque em um nível de complexidade situado para além das tradicionais binômios e das verdades prontas e definitivas. Dessa maneira, a introdução da temática do gênero não só a partir do enfoque da história das mulheres se apresenta como uma forma de rever narrativas, observar a importância da polifonia da história que se escreve no plural e na multilateralidade, dando importância ao papel de múltiplos sujeitos, e percebendo distintas temporalidades. Com o conjunto das monografias pesquisadas, tomadas como documentos, o intuito é também o de promover uma análise diante da documentação histórica por uma perspectiva de gênero revisitando a fonte escrita e a escrita desses/as historiadores/as sob um ponto de vista que perpassa os limites dos textos escritos enquanto produto de um lugar social e institucional. Lidar com escrita do outro é sempre um caminhar à margem de abismos, pois a apropriação que eu faço dessa textualidade e o modo como me aproprio desses discursos estão inexoravelmente ligados ao lugar social que ocupo enquanto sujeito e às perspectivas teórico-metodológicas que estabeleço com a história de gênero enquanto categoria historiográfica e universo de pesquisa. Diante disso é sempre 15 difícil fazer uma “análise crítica” da produção de outrem de modo inofensivo e todas(os) que empreendem essa empresa estão vulneráveis a cometer um dos mais problemáticos erros da tribo dos historiadores: a mania de julgamento. Particularmente não considero tê-lo feito, nem muito menos, me coloco em condição de imparcialidade, pois este é um mito inequívoco, cultivado por alguns dentre os súditos de Clio. Procurei analisar estes trabalhos a partir da importância que, como historiadora, dou às reflexões teórico-metodológicas no que se refere à produção de conhecimento, às práticas de pesquisa e à própria ação. REFERÊNCIAS ARÓSTEGUI. Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru: Edusc, 2006. BARROS. Ofélia Maria de. Não ser debandada no mundo: A construção social das donas de casa no Cariri Paraibano. Campina Grande: UFPB. Dissertação de Mestrado. 1996. BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo 2 – Experiências vividas. 7ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. BEHABIB. Seyla & CORNELL. Drucilla. Feminismo como Crítica da Modernidade: Releitura dos pensadores contemporâneos do ponto de vista da mulher. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1987. BUTLHER. Judith. “Corpos que Pensam: sobre os limites discursivos do ‘sexo’”. In: LOURO, Guacira Lopes. (Org.) O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. 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