MAURICIO C. COUTINHO • 169 MEMÓRIA Antonio Maria da Silveira e os grandes economistas* Mauricio C. Coutinho** Resumo – O artigo analisa a produção intelectual de Antonio Maria da Silveira nos seus últimos 20 anos de vida, período marcado pela aproximação em relação à filosofia econômica e pelo exercício da crítica à economia e aos economistas, tendo como referência o conceito de “indeterminação de Senior”. Antonio Maria criticou a utilização imediata das grandes abstrações dos sistemas teóricos em fórmulas prescritivas e, na crítica aos economistas que assim procediam, apoiou-se na obra e nos nomes de grandes economistas do passado e do presente. A relação de Antonio Maria com a teoria econômica, sua abordagem da história do pensamento econômico e, finalmente, sua crítica frontal à teoria da escolha pública são os temas do artigo. Palavras-chave – Antonio Maria da Silveira, indeterminação de Senior, vício Ricardiano, filosofia econômica. JEL – A11, A14, B41 1. Introdução A vida e a obra de Antonio Maria da Silveira são um prato cheio para os economistas apreciadores da boa prosa, do texto correto, da metodologia econômica e/ou da filosofia das ciências. Como muitos dos * Agradeço a gentileza e a colaboração de Antonio Henrique da Silveira e de Fabio N. P. de Freitas. ** Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Economia / UNICAMP – Departamento de Teoria Econômica. Caixa Postal 6135, CEP 13083-857. Rua das Camélias, 750 – Campinas – SP – 13087-488. E-mail: [email protected]. Econômica, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.169-184, junho 2007 170 • ANTONIO MARIA DA SILVEIRA E OS GRANDES ECONOMISTAS artigos publicados por Antonio Maria nos últimos 20 anos têm um marcante caráter biográfico e se encontram referidos a seus progressos e dilemas intelectuais, a simples leitura revela que a filosofia econômica, a procura de interconexões entre a economia e as outras ciências, bem como entre a teoria econômica e a vida social, compõem o quadro de referências de sua maturidade acadêmica. O objetivo deste artigo é justamente comentar os principais pontos da agenda intelectual de Antonio Maria, considerando-se a produção acadêmica das duas últimas décadas, o período que sucedeu ao seu envolvimento com a economia monetária.1 Como se sabe, Antonio Maria, engenheiro por formação e professor por vocação, tomou contato sistemático com a teoria da administração no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), instituição em que lecionou a partir de 1964.2 A pós-graduação na Graduate School of Industrial Administration (GSIA), da Universidade Carnegie-Mellon, reforçou sua opção pela administração, embora sua tese doutoral, empreendida no campo da economia monetária sob a orientação de Meltzer, tenha-o conduzido à teoria econômica. A rigor, Meltzer, Simon e Ansoff formaram sua santíssima trindade particular em economia e administração. A inquietação social, assim como a preocupação com os problemas políticos e sociais, é anterior à sua vida universitária. Pelo que o próprio Antônio Maria relata, provêm da tradição doméstica de uma família mineira em que udenistas e pessedistas conviviam em harmonia. A precoce adesão aos programas de garantia de renda mínima como instrumento preferencial de supressão da miséria – paixão de toda a sua vida – estava bem estabelecida já na virada dos anos 1960 para 1970. A desconfiança em relação aos modelos econométricos, assim como o início de suas preocupações com a fundamentação do fazer científico, foram deflagrados pela descoberta de que os modelos em economia monetária, aos quais se dedicou na tese de doutoramento e imediatamente após, assentavam talvez em fundamentos pouco sólidos, visto que os dados relativos à inflação no Brasil – conforme se veio a saber – haviam sido manipulados nos anos 1970. Enfim, o agnosticismo (mas nunca o niilismo) científico e a paixão pela aplicação da economia à eliminação da miséria social afastaram Econômica, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.169-184, junho 2007 MAURICIO C. COUTINHO • 171 Antonio Maria de toda preocupação com a descoberta ou com o desenvolvimento de uma ciência econômica “verdadeira”, monotônica (dominante ou paradigmática) e imune a críticas. Essas inquietações levaram-no a uma reflexão sobre a natureza da ciência econômica cuja originalidade, acredito, reside: a) na insistência em comparar e conjugar a economia e as demais ciências; b) na aceitação do dissenso, ou das “meiasverdades” das teorias e c) no apreço pela história do pensamento econômico ou, melhor dito, na recorrente utilização dos grandes economistas como fontes de autoridade e de demonstração dos méritos da diversidade teórica. Nesta breve nota em homenagem a Antonio Maria, vou dedicar-me exatamente a esses pontos. Deixo de lado as contribuições do autor à filosofia econômica, em especial sua particularíssima (e criativa) apropriação de Kuhn, para me concentrar no seu modo próprio de compreender a relação entre a economia e as demais ciências e a passagem da teoria às aplicações (seção 2), a pluralidade teórica e seus efeitos no uso e abuso do nome dos grandes economistas como fonte de autoridade (seção 3). A título de conclusão (seção 4), proponho uma nota sobre a crítica de Antonio Maria à teoria da escolha pública (e a Buchanan), elemento de sua obra que me parece condensar os pontos mais destacados de sua objeção aos abusos da teoria econômica. 2. A economia e as demais ciências O que mais chama atenção nos textos publicados por Antonio Maria a partir do (ouso dizer, “clássico”) “Simon e satisfazimento” (SILVEIRA, 1983) não é tanto a insistência em temperar a lógica econômica, ou a hipótese de “homem econômico racional”, ou ainda a hipótese maximizadora dos economistas, com as contribuições advindas de outras ciências comportamentais. Cometido por um discípulo de Simon, esse viés seria compreensível e até mesmo esperado; cometido por um economista matemático desencantado com a modelagem econométrica e bastante influenciado por Georgescu-Röegen e Morgenstern, essa orientação representaria até mesmo um rumo natural. Econômica, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.169-184, junho 2007 172 • ANTONIO MARIA DA SILVEIRA E OS GRANDES ECONOMISTAS O que chama atenção, dada a trajetória intelectual de Antonio Maria, é o fato de ele jamais ter sido tentado a pôr em dúvida a eficácia e o status científico da ciência econômica. Em nenhum texto, nem mesmo nos mais cáusticos – como o que trata do Prêmio Nobel em Economia (SILVEIRA, 2003) –, Antonio Maria revela-se um descrente ou um desertor da ciência econômica. Ao contrário, seus artigos representam um elogio à ciência, como comprova a simples (e reiterada) equiparação entre o estatuto da teoria econômica e da física.3 Para Antonio Maria, assim como existe uma física teórica, pode também existir uma economia teórica dotada de grande rigor. Debreu, Pasinetti, Solow seriam dignos exemplos de praticantes da ciência pura ou abstrata (SILVEIRA, 1993). O pecado dos economistas consiste em não distinguir entre economia pura, economia aplicada e, ao rés-do-chão, a arte da ciência, da qual a prática de política econômica seria o caso mais conspícuo. Um pecado de idêntica gravidade dificilmente seria praticado pelos físicos, que não se consideram engenheiros (teóricos ou aplicados) nem tampouco acreditam que seus princípios científicos possam ser imediatamente aplicados ao mundo real. Contudo, antes de buscar as razões para essa fratura de percepção entre físicos e economistas, cabe ressaltar o apreço de Antonio Maria pela economia teórica. Apesar de ter sido um cultor declarado de Schumpeter, nem mesmo ele se arrisca a observar que, em economia, a ideologia pode entrar “pelo porão”, afetando mesmo os sistemas teóricos mais sofisticados. O problema dos sistemas teóricos em economia, desde que devidamente construídos, não residiria em sua falta de rigor ou na possibilidade de contaminação. A falha reside na ausência de reconhecimento, pelos economistas, de que há um abismo entre a teoria econômica e a prática da economia; esta última, com efeito, não dispensa os princípios teóricos, mas requer muito mais. O tecnocrata exemplificaria o último degrau nessa escala de degradação ou o exercício vulgar de juízos de valor, lançados por ignorância ou mistificação (SILVEIRA, 1994). A solução, para Antonio Maria, viria da descoberta da “indeterminação de Senior”, ou do reconhecimento da necessidade do concurso de muitas ciências para o estabelecimento do saber concreto em economia ou para o exercício da economia como disciplina normativa. Transpor Econômica, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.169-184, junho 2007 MAURICIO C. COUTINHO • 173 sistemas abstratos diretamente para o plano da realidade, ou recomendar a implementação de políticas a partir apenas de teoremas desenvolvidos a elevado grau de abstração, desconhecendo as instituições, a história etc., significaria incorrer no chamado “vício ricardiano”, expressão tomada de Schumpeter para designar “o hábito de empilhar uma carga pesada de conclusões práticas sobre uma fundação tênue, que não se lhe iguala, mas que parece, em sua simplicidade, não apenas atrativa, mas também convincente.” (SCHUMPETER, 1986, apud SILVEIRA, 1993). Antonio Maria esmerou-se em difundir estas duas expressões: a “indeterminação de Senior” e o “vício ricardiano”. Segundo relata, teria sido o reconhecimento da “indeterminação de Senior” – uma realidade já conhecida por Stuart Mill e Marshall –, que o levou a acreditar na possibilidade de reabilitar o conhecimento econômico ou de conciliar sistemas teóricos e economia aplicada. Mais ainda, a “indeterminação de Senior” possibilitou-lhe compatibilizar as especialidades que fizeram parte de sua formação – matemática, teoria da administração, teoria econômica – com a filosofia econômica. Graças a Kuhn, Popper, Lakatos, nosso autor harmonizou uma formação científica multidisciplinar e se reconciliou com a economia (teoria econômica e economia prática). Acredito que advenha da descoberta da “indeterminação de Senior” a falta de dogmatismo ou a facilidade com que Antonio Maria dialogava com economistas de formação diversa. Melhor dito, a naturalidade com que aceitava contribuições de sistemas teóricos que muitos não hesitariam em catalogar como incompatíveis, e a recusa em aderir a posturas monoparadigmáticas.4 Em teoria econômica, a postura de Antonio Maria não era a de um típico mineiro das Gerais nem a de alguém em cima do muro. Era a de um declarado cultor da diversidade, dada sua aceitação da “indeterminação de Senior”. A “indeterminação de Senior” envolve não apenas a postura marshalliana de aceitar como necessárias muitas mediações entre a ciência mais abstrata e as prescrições em economia, ou o reconhecimento da necessidade de interfertilização entre a economia e outros ramos do conhecimento: ela envolve ainda a aceitação da diversidade dos sistemas abstratos e da possibilidade de que em diversos deles se possam encontrar boas trilhas para o conhecimento da realidade. Econômica, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.169-184, junho 2007 174 • ANTONIO MARIA DA SILVEIRA E OS GRANDES ECONOMISTAS A “indeterminação de Senior” permitiu a um Antonio Maria crítico da teoria econômica e de suas aplicações não se transformar – como foi dito acima – em um desertor da ciência. Há diversas formas de deserção, parciais ou completas, da ciência econômica: pura descrença, atribuir à ciência moderna um quê de charlatanismo (atitude em parte motivada pela estreiteza das hipóteses e em parte pelo dogmatismo de muitos economistas), insistir na importância da retórica, ressaltar o viés ideológico dos formuladores de teorias e dos proponentes de políticas, fincar pé no irrealismo das hipóteses etc. A meu juízo, Antonio Maria passou ao largo de tais atitudes ao aderir à filosofia da ciência,5 e ao incluir em sua maneira de ver o mundo e a ciência – e nisso ele foi pioneiro – aspectos da sociologia da ciência ainda hoje pouco reconhecidos no Brasil. Pelo que me consta, Antonio Maria foi o primeiro economista brasileiro a dar destaque aos sistemas de incentivos que impelem os economistas a abraçar determinadas opções teóricas. Nesse particular, suas ponderações aproximam-se das de David Colander, um economista ao mesmo tempo não-desertor e crítico dos economistas, que, em diversas obras e particularmente em uma coletânea com título sugestivo – Why Aren’t Economists as Important as Garbagemen? Essays on the state of Economics (COLANDER, 1991) –, estranha que os colegas de profissão apliquem a todos, menos a si próprios, os pressupostos da racionalidade instrumental. Todos os homens agem em busca de seus interesses, menos os economistas, que sempre procuram a verdade... Ora, considera Antonio Maria, o sistema de incentivos filtra as nossas escolhas. O economista também é um ser interessado (ou interesseiro). E mesmo sem chegarmos aos extremos de falsificação inerentes à tecnocracia – forma mais degradada de prática profissional –, é fácil percebermos que os sistemas de promoções moldam as opções científicas. De acordo com Antonio Maria, um dos dilemas da formação moderna seria o predomínio, nas grandes escolas de pós-graduação, da teoria econômica pura. Nas grandes escolas há pouco ou nenhum espaço para a história, para a filosofia, para as ciências comportamentais, para um conhecimento da realidade social que fuja da modelagem econométrica pura e simples. O fato de o prêmio Nobel de economia ter sido atribuído preferencialmente a teóricos puros (SILVEIRA, 2003; SILVEIRA, 2000) incenEconômica, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.169-184, junho 2007 MAURICIO C. COUTINHO • 175 tiva uma tendência exclusivista que acaba por conduzir a um brutal estreitamento de foco e por disseminar o “vício ricardiano”. Os economistas em formação ficam presos à ciência pura e os mais inocentes – a maioria – acreditam que dela se pode pular para a realidade e as prescrições. Antonio Maria ainda faz menção dos incentivos mais rasos, particularmente ao tratar da economia transformada em política econômica. Nesse ponto, entretanto, é discreto. Destaca o papel das grandes escolas, mas pouco ou nada fala das agências internacionais de financiamento e de controle de políticas macroeconômicas (FMI, Banco Mundial), que, na verdade, exercem um papel ímpar na difusão das ideologias econômicas ou das abordagens monoparadigmáticas. De todo modo, Antonio Maria longe esteve de ser um ingênuo em política ou na análise das motivações. Em SILVEIRA (1999a) pode-se ver o largo espectro do programa de pesquisas por ele vislumbrado a partir da “indeterminação de Senior”, e o modo como contemplava a sociologia da ciência e do fazer científico. A visão de Antonio Maria sobre o ensino está bem exposta em SILVEIRA (1993), texto em que é feita uma defesa da diversidade no currículo mínimo de economia, nos termos da Resolução no 11 (de 1984) do Conselho Federal de Educação. Curiosamente, o texto não destaca um fato decisivo na formação do economista: o abismo que existe entre Graduação e Pós-Graduação. Em termos simplificados, pode-se afirmar que dificilmente o graduado em economia, formado em boa escola, terá condições de entender mais de 5% dos artigos publicados em revistas científicas de prestígio. Os restantes 95% soarão incompreensíveis, por falta de um preparo que, em economia, só se obtém na pós-graduação. O egresso da graduação – o praticante normal da profissão – dificilmente poderá exercer um juízo crítico, ou dificilmente poderá situar-se diante das novidades teóricas que ano a ano saem dos baús dos cientistas. Permanecerá necessariamente à mercê dos difusores, ou do senso comum da ciência. Pode-se argumentar que um graduado em medicina tampouco faz ciência – para ficarmos presos a uma analogia certamente agradável a Antonio Maria, que muito aprendeu com o pai médico –, ou que um graduado em engenharia apenas aplica a ciência – para nos atermos à Econômica, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.169-184, junho 2007 176 • ANTONIO MARIA DA SILVEIRA E OS GRANDES ECONOMISTAS formação original do próprio Antonio Maria. No entanto, engenheiros e médicos formados em boas escolas são capazes de ler um artigo científico, acompanhar as inovações da ciência, comparecer a congressos em suas especialidades sem se sentirem alienados. Enfim, poderão em todo caso exercer a profissão com dignidade e atualização, se assim desejarem. O mesmo não ocorre com o simples graduado em economia: é intransponível o abismo que existe entre um doutor – o iniciado na ciência – e o reles bacharel. Um reles bacharel permanecerá prisioneiro das divulgações mais simples e das práticas mais grosseiras da ciência. Por mais que a diversidade de formação seja um objetivo louvável (SILVEIRA, 1999b), ela em nada contribuirá para a evolução da ciência, e – aqui o principal – pouco acrescentará à simples prática profissional. Longe de pretenderem representar uma crítica à sociologia da ciência econômica que aflora nos textos de Antonio Maria, estas observações apenas evidenciam que o programa de pesquisas propiciado por sua visão mal foi iniciado no Brasil. 3. Os grandes economistas Como foi dito, Antonio Maria apreciava os grandes economistas. Paradoxalmente, deu a seu maior achado (a “indeterminação de Senior”) o nome de um autor que empalidece diante de outro dos admitidos proponentes da mesma solução: Stuart Mill.6 O “vício ricardiano” foi uma expressão tomada a Schumpeter, outro dos deuses do panteão de Antonio Maria. Considero “vício ricardiano” uma expressão de gosto duvidoso, que só pode ser creditada à má vontade de Schumpeter em relação a Ricardo. Em primeiro lugar, Ricardo foi um fino analista da política econômica de seu tempo, como seus diversos panfletos comprovam. Em segundo lugar, grande parte dos “vícios” de Ricardo – prescrições finalistas baseadas em verdades abstratas – provém, na verdade, de Malthus e de James Mill. O combate às leis dos pobres, um dos exemplos mais acabados do “vício ricardiano”, é puro Malthus.7 Finalmente, os Principles representam um tratado geral (abstrato, portanto), e, em muitos momentos, RiEconômica, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.169-184, junho 2007 MAURICIO C. COUTINHO • 177 cardo desce com cuidado da teoria às prescrições. Não nos esqueçamos que, ao defender o livre-comércio de grãos, uma de suas grandes consignas, Ricardo argumenta que nem os controles ferrenhos dos tempos das guerras napoleônicas impediram que o trigo do continente chegasse à Inglaterra. Há falta de realismo nesta conclusão? Deixemos de lado Ricardo e continuemos a lista dos grandes economistas constantemente mencionados nos trabalhos de Antonio Maria. Afora a já citada tríade que marcou sua pós-graduação (Meltzer, Ansoff, Simon), um sem-número de pesos-pesados acorre a seus textos. Fora de ordem cronológica: Marshall, Wicksell, Smith, Marx, Keynes, Sully (exemplo máximo de formulador de política), Knight, Friedman, Georgescu-Roegen, Böhm-Bawerk, Kuznets, Stigler, Wagner, Schmoller, Pasinetti, Solow, Hayek, Neville Keynes, Hicks... Isso para não mencionarmos os filósofos, em especial Popper, Kuhn, Lakatos, Feyerabend. Entre os autores do século XX, é digno de nota que Antonio Maria tenha aludido frequentemente àqueles que, como ele, foram leitores de economistas ou cultores da história do pensamento econômico. É o caso óbvio de Schumpeter, mas também de Pasinetti, Solow, Hicks, Hayek, Stigler, Knight, todos economistas de grande formação, poder-se-ia dizer, e interessados na evolução da ciência. Antonio Maria foi também um leitor atento de historiadores do pensamento. Afora Schumpeter, Blaug, Pasinetti, Groenewegen, freqüentemente se refere a Hicks e Stigler, teóricos que, sem terem sido historiadores do pensamento “profissionais”, incursionaram na área com muita desenvoltura. O próprio Antonio Maria, sem ter sido um historiador do pensamento econômico profissional, redigiu um artigo – “Wagner e Schmoller sob a luz da indeterminação de Sênior” (SILVEIRA, 1993) – que recompõe os argumentos de Wagner com muita competência e criatividade.8 Esta lista (incompleta) dos grandes economistas torna patente a erudição de Antonio Maria, seu apreço por autores dotados de cultura econômica diversificada e, por outro lado, sua estratégia de recorrer aos grandes nomes em abono das suas teses. A escolha das expressões “indeterminação de Senior” e “vício ricardiano” é o exemplo mais eloqüente desta estratégia, mas cabe mencionar também a farta utilização da autoridade de grandes nomes nos ataques a outros (e menos estimados) auEconômica, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.169-184, junho 2007 178 • ANTONIO MARIA DA SILVEIRA E OS GRANDES ECONOMISTAS tores. O exemplo mais notório está na crítica a Buchanan, de que tratará a próxima seção. Nela, Antonio Maria recorre a uma plêiade de avalistas com credenciais impecáveis: Knight, em especial, e também Simon, Ohlin, Wicksell. Contra a hipertrofia da racionalidade instrumental, nada como a autoridade de portadores de credenciais neoclássicas inatacáveis.9 Em suma, Antonio Maria foi um cultor dos grandes nomes da economia. Em diversos casos, seu apreço adveio diretamente da leitura das obras; em outros, de referências tomadas de historiadores do pensamento. Fiquei com a impressão de que Sully e Galiani não mereceram leitura direta, e de que sua leitura de Ricardo não foi das mais densas. Muitos outros expoentes da economia, porém, foram lidos e relidos – Simon, Knight, Hicks, Pasinetti – e History of Economic Analysis foi, para ele, uma espécie de livro de cabeceira. Ora, esta obra de Schumpeter, a par de representar um caso extremo de erudição em história do pensamento econômico, pode ser também considerada uma (nada ingênua) declaração de amor à teoria econômica. Fácil entender a devoção de Antonio Maria a Schumpeter. 4. A crítica a Buchanan Entendo que a crítica a Buchanan e à teoria da escolha pública representou um momento especial na trajetória intelectual de Antonio Maria, por diversas razões. Em primeiro lugar, por ter sido elaborada durante o período passado em Cambridge, uma lufada de ar fresco que reconciliou Antonio Maria com as melhores práticas acadêmicas. O retorno a uma instituição de alto nível internacional, longe do pugilato institucional típico das escolas brasileiras, revigorou Antonio Maria.10 Em segundo lugar, os textos que sumariam a crítica à escolha pública figuram, a meu juízo, entre os melhores de Antonio Maria, após a fase monetarista de sua obra.11 Finalmente, estão presentes na crítica à escolha pública as características mais fortes do sistema de Antonio Maria: a existência permanente de um fio condutor (a “indeterminação de Senior”), o recurso aos grandes nomes, a utilização de uma abordagem marcadamente metodoEconômica, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.169-184, junho 2007 MAURICIO C. COUTINHO • 179 lógica e, finalmente, a fina ironia que impede o texto de deslizar para o achincalhe, ainda que, em relação a Buchanan, tenha-se a impressão de que a fineza mal esconde o deboche. Começando pelo final, Antonio Maria denomina a obra básica de Buchanan e Tullock, The Calculus of Consent (BUCHANAN E TULLOCK, 1963), de “o clássico” (aqui, com evidente ironia). Acusa Buchanan de ter incensado Wicksell sem ser wickselliano, diante de uma platéia sueca, apenas para pavimentar a via de acesso ao Nobel. Afirma que Buchanan – um assumido sucessor da tradição knightiana – na verdade traiu as idéias de Knight. Utiliza o trabalho de Harry Johnson (JOHNSON, 1971) sobre a revolução keynesiana e o monetarismo para imputar à estratégia de Buchanan todas as cinco etapas típicas de um complô para a autopromoção ou para a auto-atribuição da condição de promotor de uma verdadeira revolução científica. Em resumo, Antonio Maria responde ao chumbo com chumbo. Buchanan considera-se de fato fundador de uma nova via para a ciência econômica, e sua obra abunda em elogios à própria contribuição teórica, tanto quanto deprecia seus supostos adversários teóricos e políticos. Ora, Buchanan seria um representante extremo dos cataláticos, a ponto de resumir não só a economia como todo o fenômeno político a um processo de troca. A política, o Estado, os governos, o gasto público, na visão dos cataláticos modernos, podem ser incluídos na cartilha do contratualismo rasteiro que informa a visão econômica de Buchanan. Daí a construção de uma teoria econômica do Estado que, sob o verniz da racionalidade científica (econômica), mal esconde um ponto de partida manifestamente ideológico e finalista: Buchanan considera que no gigantismo dos Estados modernos, supostamente impulsionado por políticas keynesianas, está o pecado capital das sociedades do pós-guerra. Nesse quadro, a obrigação moral do economista seria lutar pela preservação da liberdade, advertir contra o agigantamento da esfera estatal. Enfim, Buchanan orienta-se por um imperativo moral: péssimo ponto de partida para a construção de um sistema científico. Sem perceber, adverte Antonio Maria, Buchanan adere ao “vício ricardiano”. Desce da mais elevada abstração ao ativismo político, com a dispensa de qualquer mediação. É de fato um ativista político travestido Econômica, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.169-184, junho 2007 180 • ANTONIO MARIA DA SILVEIRA E OS GRANDES ECONOMISTAS de cientista. Esquece que o agigantamento da esfera estatal talvez não advenha apenas do auto-interesse dos burocratas, ou do descaso dos economistas keynesianos, e sim do prosaico fato de ser grande a gama de serviços públicos requeridos pelos cidadãos nas sociedades modernas. Além disso, ao aderir ao individualismo metodológico mais acirrado, Buchanan encontra-se em dificuldades para explicar a existência de grupos, da presença de interesses não-econômicos ou não-individuais na esfera pública. Se já na esfera da economia torna-se difícil sustentar a dominância exclusiva do “homem econômico”, uma abstração com usos bem delimitados, o que dizer da ação coletiva? Abordar a política sob a ótica exclusiva do individualismo metodológico e do contratualismo econômico representaria um reducionismo, sob todos os aspectos colidente com a “indeterminação de Senior”. Ao invés de abrir a economia à contribuição das demais ciências, temos na teoria da escolha pública um exemplo candente de imperialismo econômico – a racionalidade instrumental dos economistas explicando a política. Até aqui, vimos que a crítica a Buchanan abrangeu os aspectos filosóficos e metodológicos, além de ter-se valido do usual recurso aos grandes nomes – Simon, Veblen, Knight, Harry Johnson, Kuznets, Kuhn, Schumpeter... Segue, portanto, o método usual, ou, dito de outro modo, é puro Antonio Maria. Ademais, a crítica é muito representativa em outro aspecto: não se detém no sistema teórico, ou na teoria econômica, de Buchanan. Ora, o ponto de partida de Buchanan, antes de se lançar à construção de um sistema de pretensões grandiosas e de doutrinar sobre tudo e todos, é a economia do setor público, ou a teoria das finanças públicas. Buchanan aceita a noção de bem público, assim como a demonstração de Samuelson da falha de mercado provocada pela existência de bens de consumo coletivo (indivisíveis). Insere-se na tradição do welfare economics, deixandose levar, contudo, devido a uma exacerbação do contratualismo, a uma extensão do ótimo paretiano, da teoria dos preços para a teoria do Estado. Sua obra mais delirante não é “o clássico” – como Antonio Maria denomina The Calculus of Consent (BUCHANAN AND TULLOCK, 1963) –, e sim The Limits of Liberty (BUCHANAN, 1975), em que se propõe a desenvolver Econômica, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.169-184, junho 2007 MAURICIO C. COUTINHO • 181 uma teoria econômica da constituição do Estado. A tal ponto, nenhum economista chegara, ou viria a chegar. Samuelson, assim como muitos expoentes e antecessores da economia do setor público, não ousariam ir tão longe. Restringiriam suas análises ao teorema dos bens públicos e suas decorrências ou, no máximo, aceitariam alguns dos exercícios e axiomas da teoria da escolha pública, que se propõem a lançar luz sobre fenômenos como determinação orçamentária, votação, formação de maiorias. Dificilmente reduziriam a política à lógica contratual, e mais dificilmente ainda se proporiam, como Buchanan, a formular uma teoria do pacto constitucional de bases estritamente contratualistas, tal como em The Limits of Liberty. Na visão de Buchanan, penso eu, sua teoria da constituição está para a política (a constituição do Estado) assim como as obras fundamentais de Arrow e Debreu estão para a teoria dos preços: demonstração axiomática, abstração pura. Tudo isso, naturalmente, em linguagem verbal, e não matemática. É problemático que tal demonstração esteja profundamente impregnada da ótica normativa e de propósitos finalistas, como suspeita Antonio Maria. Problema maior, contudo, consiste em se fazer tábula rasa de toda a centenária tradição da ciência política, malgrado as referências elogiosas a Maquiavel (um suposto antecessor da escolha pública). Problema maior ainda é construir um edifício tão portentoso sobre os alicerces limitados das noções de bem público e ótimo de Pareto. Em suma, o empreendimento de Buchanan é discutível na própria esfera da teoria das finanças públicas, de onde parte, e certamente não seria aceito por Samuelson, Baumol e outros expoentes do welfare economics que propuseram questões relevantes em economia do setor público.12 Antonio Maria perde esta questão: do ponto de vista da teoria econômica do setor público, a obra de Buchanan é, no mínimo, discutível. Pulveriza Buchanan com a artilharia pesada da filosofia econômica, quando poderia tê-lo fulminado com um simples tiro de espingarda da teoria econômica. Fica a curiosidade: por que razão um admirador tão incondicional de Schumpeter, e ademais cultor da teoria econômica, ao criticar os economistas deixa sempre de lado os argumentos da teoria econômica, em favor da filosofia econômica? Talvez esse seja um dos ônus do Econômica, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.169-184, junho 2007 182 • ANTONIO MARIA DA SILVEIRA E OS GRANDES ECONOMISTAS apego extremado àquilo que considerava seu grande achado, o reconhecimento da “indeterminação de Senior”. Notas 1 Permanecem fora do comentário os trabalhos e a atividade em prol do programa de garantia da renda mínima, a verdadeira paixão social de Antonio Maria. 2 Informações sobre a vida de Antonio Maria, bem como sobre sua trajetória profissional e produção intelectual, encontram-se no Memorial apresentado ao Concurso para Professor Titular da UFRJ (SILVEIRA, 1992) e em LOPES E FREITAS (a ser publicado). 3 Entre outros artigos, ver SILVEIRA (1991), SILVEIRA (1993), SILVEIRA (1999a), SILVEIRA (1999b). 4 Antonio Maria dizia não ter abandonado o monetarismo para aderir a qualquer outra visão monoparadigmática. Ver LOPES E FREITAS (a ser publicado). 5 Ao se deparar com a pequenez da ciência econômica (diante da administração e da história), Antonio Maria buscou a solução, via Georgescu-Roegen, na filosofia econômica. “Voltei-me para a filosofia econômica, ao invés da abandonar a economia – estava começando a associá-la com uma impressão de charlatanismo.... Depois de Georgescu, consegui um esquema de solução na forma da Indeterminação de Sênior” (SILVEIRA, 1993). 6 Por que não “indeterminação de Mill”? Acredito que se trate da influência de Schumpeter ou de uma simples idiossincrasia do autor, e não de precedência. 7 Embora Malthus criticasse a mania de teorizar em abstrato de Ricardo... 8 O texto é assimétrico. A apresentação de Wagner é bem mais consistente que a de Schmoller. 9 A inclusão de Simon na lista dos economistas neoclássicos é um abuso meu. 10 Em Cambridge, Antonio Maria leu e releu History of Economic Analysis, de Schumpeter, e mergulhou em A Study of History, de Toynbee. Concluiu apenas quatro dos doze volumes da obra de Toynbee, mas admite que a experiência foi marcante (SILVEIRA, 1992). 11 “A sedição da escolha pública: variações sobre o tema das revoluções científicas” (SILVEIRA, 1996a); “A perspectiva da escolha pública e a inclinação institucionalista de Knight” (SILVEIRA, 1996b). Em matéria de qualidade e originalidade, equiparo estes artigos a “Simon e satisfazimento” (SILVEIRA, 1983). 12 Baumol, um grande economista, evita completamente, em Welfare Economics and the Theory of the State, obra dedicada ao mesmo assunto, todos os extremos a que chegaria Buchanan. Econômica, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.169-184, junho 2007 MAURICIO C. COUTINHO • 183 Antonio Maria da Silveira and the Great Economists The article focuses Antonio Maria da Silveira’s intellectual activities within the last 20 years. From 1980 on, Antonio Maria approached himself to a philosophical stand, and, by means of a concept – Senior’s indetermination – criticized the leaps from high abstraction to hollow prescription, typical of so many economists. Antonio Maria’s criticism was based on the history of economic ideas, in the sense that his views were backed by the authority of great economists. The main issues are Antonio Maria’s view of economic theory, his uses of the history or economics and, at last, the way his criticism of public choice theory shares the main characteristics of his system. Key-words – Antonio Maria da Silveira, Senior’s indetermination, Ricardian vice, economic philosophy. Referências bibliográficas BAUMOL, W. Welfare Economics and the Theory of the State. Londres: G. Bell Sons, 1967. BUCHANAN, J.; TULLOCK, G. (1963) The Calculus of Consent. Logical foundations of constitucional democracy. Michigan: Ann Arbour/The University of Michigan Press, 1963. BUCHANAN, J. The Limits of Liberty – between Anarchy and Leviathan. Chicago: University of Chicago Press, 1975. COLANDER, D. Why Aren’t Economists as Important as Garbagemen? Essays on the State of Economics. Nova York: M. E. Shappe, 1991. JOHNSON, H. G. The Keynesian Revolution and the Monetarist Counterrevolution. American Economic Review, v. 61, maio 1971. LOPES, C. L.; FREITAS, F. N. P. (a ser publicado). Homenagem a Antonio Maria da Silveira. SCHUMPETER, J. A. (1986). History of Economic Analysis. Londres: Allen & Unwin, 1986. SILVEIRA, A M. Simon e Satisfazimento. Literatura Econômica, v. 5, 1983, Rio de Janeiro. Econômica, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.169-184, junho 2007 184 • ANTONIO MARIA DA SILVEIRA E OS GRANDES ECONOMISTAS ______. A indeterminação de Sênior. Revista de Economia Política, v. 11, n. 4, 1991, São Paulo. ______. Memorial apresentado ao concurso de Professor Titular na UFRJ, 1992. ______. Wagner e Schmoller sob a Luz da indeterminação de Sênior. Estudos Econômicos, v. 23, n. 2, 1993, São Paulo. ______. Teorias Econômicas: a meia-verdade temporária. Revista Brasileira de Economia, v. 48, n. 2, 1994, Rio de Janeiro. ______. A perspectiva da escolha pública e a tendência institucionalista de Knight. Revista Brasileira de Economia, v. 50, n. 1, 1996a, Rio de Janeiro. ______. A sedição da escolha pública: variações sobre o tema das revoluções científicas. Revista de Economia Política, v. 15, n. 1, 1996b, São Paulo. ______. Indeterminação de Sênior: perspectivas e realizações de um programa de pesquisa. Revista de Economia, v. 25, n. 23, 1999a. ______. A indeterminação de Sênior e o currículo mínimo de Economia. Revista de Economia Política, v. 18, n. 1, 1999b, São Paulo. ______. A ciência econômica na Europa e nos Estados Unidos: pluralismo versus monismo. Análise Econômica, v. 18, n. 34, 2000. ______. A ciência econômica na Europa e nos Estados Unidos: o Prêmio Nobel e seus vieses. Econômica, v. 5, n. 2. 2003, Rio de Janeiro. Recebido para publicação em maio de 2007. Aprovado para publicação em maio de 2007. Econômica, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.169-184, junho 2007