O MÉDICO LUIZ ANTONIO DOS SANTOS LIMA E O PERSONAGEM
SIMÃO BACAMARTE: ALIENAÇÃO DE DOIS ALIENISTAS?
Juliana da Rocha e Silva
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
[email protected]
Resumo
Essa pesquisa analisa a similitude de pensamento do educador Luiz Antonio Ferreira Souto
dos Santos Lima e do personagem de Machado de Assis, o psiquiatra Simão Bacamarte, sob a
ótica do movimento ideológico higienista. A partir das leituras de obras por eles escritas,
identificamos a forma pela qual os pensamentos do educador e do personagem machadiano
convergiam em defesa de uma sociedade saneada mentalmente e, consequentemente,
disciplinada e civilizada. No intuito de identificar a ideologia sanitarista presente nos
discursos do médico e do psiquiatra, procedemos à leitura do conto “O Alienista”, de
Machado de Assis, publicado primeiramente no ano de 1882, bem como da tese de
doutoramento “Hygiene Mental e Educação”, do médico e educador Luiz Antonio dos Santos
Lima, publicada em 1927. Sendo “O Alienista” um conto de um carioca e “Hygiene Mental e
Educação” a tese de doutoramento de um potiguar, trabalhamos no intuito de perceber como
as instituições de sequestro presentes nas obras – o manicômio e a escola, respectivamente –
apresentavam um mesmo discurso sanitarista de reforma social brasileira. Para isso,
delimitamos o nosso recorte temporal ao período entre o fim do século XIX e início do século
XX – momento histórico em que as obras foram escritas – e consideramos aquelas instituições
como responsáveis pela normalização das condutas e dos comportamentos dos indivíduos.
Fazemos uso também dos conceitos de normalização, discurso de verdade, saber, poder,
disciplina, controle e governamentalidade de Michel Foucault (1982; 1995; 2004) porque
entendemos que é a partir das suas teorizações sobre sociedade e relações de poder-saber que
podemos analisar a forma pela qual os discursos do educador Luiz Antonio e do psiquiatra
Simão Bacamarte contribuiriam para a disciplinarização dos indivíduos no início do século
XX. Como parte das pesquisas de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, esse trabalho permite que vejamos a sintonia
de pensamento existente entre o personagem de Machado de Assis (1999) e Luiz Antonio dos
Santos Lima (1927) no âmbito do controle dos corpos e da política de higienização das
mentes destinada aos loucos e aos escolares. Acreditamos contribuir para o enriquecimento da
temática da historiografia educacional brasileira a partir da análise das obras de um médico e
de um escritor na perspectiva de conformação da sociedade do início do século XX.
Chegamos à conclusão de que o conto machadiano e a tese de final de curso constituem
produtos da ideologia higienista, pois ambos os autores levaram em consideração a realidade
de caos social para a escrita de seus trabalhos. Tanto Assis (1999) quanto Lima (1927)
enfrentaram conturbações sociais, políticas e econômicas no período em que viveram, por isso
consideramos que eles foram influenciados pela mentalidade sanitarista da época e que o
discurso presente nas suas obras reflete esse ideário de higiene.
Palavras-chave:
Normalizador.
Movimento
Ideológico
Higienista.
Sociedade
disciplinada.
Padrão
Introdução
Neste trabalho, analisamos as obras do médico e educador Luiz Antonio dos Santos
Lima (1890-1961), nascido no Rio Grande do Norte, e do poeta e escritor Machado de Assis
(1839-1908), natural do Rio de Janeiro, a partir do seu personagem alienista – o psiquiatra
Simão Bacamarte. Nosso intuito é investigar de que modo os discursos desses intelectuais
refletiam a mentalidade médico-sanitarista brasileira.
Esse objetivo, para nós, se destaca pelo fato de acreditarmos que Luiz Antonio dos
Santos Lima, ao escrever sua tese de doutoramento “Hygiene Mental e Educação”, em 1927, e
Joaquim Maria Machado de Assis, ao publicar, em 1882, a obra “O Alienista”, foram
influenciados pelo ideário de higienização dos corpos e mentes, defendido no Brasil na
transição do século XIX para o século XX.
Acreditamos, pois, que esses intelectuais foram partícipes da construção de um saber
científico sobre a sociedade (e para a sociedade) brasileira, o qual se constituiu num
movimento ideológico que previa mudanças sociais no âmbito da higiene e do sanitarismo: o
movimento higienista.
A escolha das referidas obras se deveu ao fato de ser nesses materiais que o viés
médico-higienista dos pensamentos desses teóricos é percebido de modo evidente: Luiz
Antonio dos Santos Lima, ao propor a aliança entre higiene mental e educação, demonstrava a
preocupação com o caráter da higienização das mentes das crianças em idade escolar; e o
alienista de Machado de Assis, o psiquiatra Simão Bacamarte, salientava a necessidade de
proteger os moradores da Vila de Itaguaí das doenças mentais, propondo medidas de
higienização que englobavam a internação no sanatório de todos aqueles que apresentassem
qualquer desvio de comportamento.
O discurso higienista das duas obras evidencia a influência que o movimento
ideológico sanitarista deteve diante das instâncias sociais ‘escola’ e ‘sanatório’ e permite
percebermos Luiz Antonio e Simão Bacamarte como alienistas cuja alienação fazia parte de
um movimento maior, que atingiu diversas outras instâncias de poder do Brasil daquele
período.
Para descobrirmos que a alienação presente nos discursos dos alienistas não era
inerente apenas ao médico e educador e ao personagem psiquiatra, reportamos nossa
investigação ao cenário social brasileiro do fim do século XIX e início do século XX. E, com
as pesquisas de autores que estudaram o momento histórico dessa sociedade, fundamentamos
teoricamente nosso trabalho.
Utilizamos as definições de Aranha (2006a; 2006b), Cambi (1999), Dumas (1996),
Veiga (2011) para nos situarmos com relação aos aspectos gerais da sociedade do fim do
século XIX e início do século XX. Logo, tomamos conhecimento dos momentos econômico,
social, político e educacional vividos pelos pensadores contemporâneos e influenciadores dos
seus modos de pensar.
Fazemos uso, também, dos conceitos de poder, saber, disciplina, docilização dos
corpos e instituição de sequestro de Foucault (1982; 1995; 2004). Por meio desse teórico
francês, percebemos as relações de poder e saber presentes no movimento higienista e o modo
pelo qual a sociedade seria disciplinada segundo o padrão normalizador vigente. Analisamos,
assim, os pensamentos de Luiz Antonio (1927) e de Simão Bacamarte com a percepção de
que a escola e o manicômio são instrumentos de manutenção da ordem social estabelecida –
são essas instituições que formam os indivíduos dentro da perspectiva da ordem social em que
estão inseridos.
E, ao procedermos à análise histórica das condições sociais que instituíram e
alojaram a emergência da necessidade de se higienizar as mentes brasileiras do início século
XX, vemos o poder enquanto elemento capaz de explicar como se produziram os saberes e
como a sociedade foi constituída na relação entre ambos. Concordamos, portanto, com o
pensamento de Foucault (1982) de que não existem sociedades isentas das relações de poder;
isentas dessas forças que atuam nos corpos.
Optamos por iniciar esse trabalho com a análise das circunstâncias sociais,
econômicas e políticas enfrentadas por esses intelectuais, seguidas do ideário sanitarista
percebido nas obras por eles escritas. Com esse esquema, poderemos perceber que os
pensamentos de Lima (1927) e de Simão Bacamarte – sob o crivo de seu criador, Assis (1999)
– perpassavam as noções de higiene relacionadas ao corpo; eles se remetiam a algo mais
abrangente e menos palpável: ambos expunham a preocupação com o cuidado com a mente –
seja ela de um internado, seja de um escolar.
Mas porque os discursos de Luiz Antonio dos Santos Lima e de Simão Bacamarte
pregavam a necessidade de higienização das mentes dos brasileiros?
O Brasil da transição do século XIX para o XX: um período de conturbações
No final do século XIX e início do século XX, o Brasil do médico e educador Luiz
Antonio dos Santos Lima e do personagem de Machado de Assis, Simão Bacamarte,
enfrentou algumas mudanças políticas, econômicas e sociais.
Com os processos de abolição da escravatura, em 1888, e de Proclamação da
República, em 1889, aliados ao crescimento do capital e às perspectivas de desenvolvimento
iminentes do país, foi desenvolvido, por parte das elites dominantes, um entusiasmo pelo
crescimento social e econômico do Brasil (DUMAS, 1996).
No entanto, as mudanças advindas com o processo de industrialização fizeram com
que as cidades crescessem desordenadamente. A diminuição da população rural e o aumento
do número de imigrantesi geraram, atrelados à falta de estrutura física das cidades, condições
de vida insalubres nas cidades brasileiras (ARANHA, 2006b). A falta de saneamento e as
condições precárias de higiene “agravaram ainda mais os problemas da cidade suja, doente,
acanhada, espremida e desprovida, exigindo soluções a curto prazo” (LIMA, T., 1996, p. 81),
pois um país que tinha como lema a “ordem e progresso” deveria, no mínimo, ser ordenado e
progredido. Vê-se, portanto, nesse contexto, que o lema do país ordenado e progredido
chocava-se com a situação de calamidade pública em que vivia a população.
A título de exemplificação, Cynthia Veiga explica que cidades como, por exemplo, o
Rio de Janeiro
[...] foram palcos de problemas relativos à forma como trabalhadores,
escravos, ex-escravos, pobres e negros situavam-se no espaço urbano. [E
que] as concepções sanitaristas estiveram presentes desde o Império através
de ações que visavam ao fechamento de cortiços e estalagens nocivas à
saúde pública. As condições de vida da população pobre e a disseminação de
doenças como a febre amarela e a varíola colocavam para as autoridades
uma questão vital: como implementar o progresso? (VEIGA, 2011, p. 401).
Sob o discurso de levar o país ao progresso, a intelectualidade brasileira, imbuída do
espírito nacionalista e ufanista, pensou em medidas e apontou soluções para o caos social em
que o Brasil se encontrava. Desse feito, tendo como alvo o desenvolvimento de toda a nação
brasileira, a intelectualidade, detentora de um poder que gerava saber sobre a população,
passou a considerar o brasileiro como a causa do atraso do país. Segundo a percepção que
tinha, o perfil de indolente, preguiçoso e doente do brasileiro necessitava ser transformado,
pois não era compatível com o progresso e a modernização, exigidos pela nova ordem social.
Era preciso transformar o país doente em país sadio, limpo e ordenado – requisito
fundamental para a implantação e a consolidação de uma sociedade “moderna”, equivalente
econômica e culturalmente aos países desenvolvidos; era preciso fazer com que o brasileiro
acompanhasse o ritmo das mudanças ocorridas no país, pois o desenvolvimento era
incompatível com as epidemias, que dizimavam milhares de pessoas, com as ruas imundas e
com os corpos sujos e doentes da população.
Esse pensamento de renovação em iminência na transição do século XIX para o XX
traz a moralidade, a conduta, os bons costumes, as doenças físicas e psíquicas como
problemas de higiene, tornando-as alvo de intervenção. Dessa forma, a inspeção higiênica dos
corpos, casas e espaços públicos e uma ampla reformulação dos costumes da população
constituíram o cerne da solução para o Brasil doente e atrasado. Para isso, todos os setores da
sociedade receberiam intervenções da medicina social; o que fez concentrar a atenção da
intelectualidade no corpo social (FOUCAULT, 1982), pois o alvo era não mais o indivíduo,
mas a coletividade.
Essa mentalidade que pregava a formação um novo brasileiro para uma nova
sociedade progredida e ordenada constituiu o movimento ideológico higienista, o qual se
caracterizou como uma ideologia de cuidado com o corpo e com a mente de cada indivíduo –
para o fortalecimento de suas capacidades produtivas – e de cuidado com o meio ambiente
(CAMBI, 1999).
Sendo essa ideologia compreendida como “uma forma de construir representações ou
de organizar representações já existentes para atingir determinados objetivos ou reforçar
determinados interesses” (BARROS, 2009, p. 86), nós a associamos ao controle social
exercido pelos médicos sanitaristas sobre a sociedade brasileira do início do século XX. E
percebemos que o conjunto de ideias e normas de conduta, veiculado pelo movimento
higienista, levou os indivíduos a pensarem, sentirem e agirem de acordo com os interesses da
classe que detinha o poder.
Vemos, com isso, o poder como prática de conformação da sociedade e como “ação
estruturante das ações” (VEIGA-NETO, 2005). Percebemo-lo como algo que não se possui ou
se detém, mas como algo que se exerce. No mesmo sentido não há “o” poder emanando de
um centro (comumente atribuído ao Estado) e sim relações de poder disseminadas por toda
estrutura social, porque “provém de todos os lugares” (FOUCAULT, 1995; 2004).
Assim, entendemos que o poder higienista seguiu como construtor de representações
inconscientes nos brasileiros daquele período no intuito de atingir determinado fim: o
desenvolvimento do país.
Acreditando que a “ordem” e o “progresso” seriam alcançados somente através de
uma organização sanitária da nação, a intelectualidade passou a defender que novos costumes,
hábitos, valores, conceitos comuns e representantes dos ideais dominantes fossem criados e
estivessem em sintonia com os novos preceitos políticos, sociais e culturais da nova era
republicana (VEIGA, 2011). Para isso, a sociedade deveria estar livre não somente das
mazelas físicas, como também das de caráter mental, pois o efeito desestabilizador da ordem
causado pelos doentes mentais também era um empecilho ao avanço da nação.
A ênfase na importância da higienização das mentes
Associada à desordem, ao crime, ao alcoolismo, à preguiça, à falta de inteligência,
entre outros empecilhos ao desenvolvimento do país, as doenças mentais verificadas nos
brasileiros preocupavam as autoridades da época e se tornavam alvo de pesquisas e
classificações pelos higienistas, que buscavam suas causas e sintomas (ARANHA, 2006a).
Conforme explicação de Engel (apud WANDERBROOCK JR, 2007), tal fato fez
com que os focos de ameaça à integridade da ordem estabelecida fossem identificados e/ou
associados à insanidade. Deste feito, a higiene mental passou a ocupar lugar de destaque na
medicina social, possibilitado aos médicos orientarem o destino de cada indivíduo: o
internamento aos loucos e a prevenção aos não loucos, principalmente aqueles predispostos à
loucura, já que a hereditariedade e o pertencimento às raças inferiores eram fatores de
degeneração social.
Sobre a importância da higiene mental e das ações por ela exigidas, Wanderbroock
Junior (2007, p. 33, grifos do autor) afirma que
Aos olhos dos higienistas, todo “normal” era suspeito, e os “deveres
patrióticos” para com a Nação impunham múltiplos esforços para estabelecer
o “equilíbrio social”, mediante processos depurativos. Por essa razão, o
“giro” da higiene sanitária à higiene mental estava associado à necessidade
social daquele momento, que exigia uma ação muito mais sobre a mente do
que sobre as enfermidades propriamente ditas. Isso implicava, ao mesmo
tempo, um estudo e uma ação no plano subjetivo do homem.
Agir na subjetividade seria intervir nos hábitos, costumes e comportamentos
humanos, corrigindo-os e os adaptando conforme os padrões de normalidade do período.
Nesse sentido, era preciso reformar o povo, regenerando, moralizando, disciplinando e
unificando as diferenças individuais presentes na sociedade (VEIGA, 2011), uma vez que a
república brasileira somente se concretizaria a partir da unidade nacional.
Corrigir hábitos, mudar comportamentos, padronizar condutas, disciplinar desvios
eram a proposta de higienização mental trazida por Santos Lima (1927) e pelo personagem de
Machado de Assis (1999), Simão Bacamarte.
Esse ideário de saneamento social defendia e reconhecia os princípios médicos de
higiene dos corpos e das mentes da população como um saber normalizador, instituído para o
desenvolvimento e a civilidade da nação brasileira. Por acreditarem na ciência moderna como
o único conhecimento válido para tal feito, os médicos fizeram uso do saber científico que
possuíam e o utilizaram para observar e modificar aspectos do comportamento humano que
podiam ser verificados externamente (ARANHA, 2006b).
Assim, nos tópicos “A alienação de um alienista: conto ou realidade?” e “A alienação
de um alienista adentra na escola”, abordamos os discursos de higienização das mentes
expostos nos pensamentos do psiquiatra Simão Bacamarte e do médico e educador Luiz
Antonio dos Santos Lima, respectivamente.
Com isso, descobrimos que a alienação dos alienistas, presente tanto no manicômio
quanto na escola, foi reflexo de uma ideologia de higienização, defendida pela
intelectualidade formada, em sua maioria, por médicos.
A alienação de um alienista: conto ou realidade?
Em seu “O Alienista” (1999), Machado de Assis discute as fronteiras entre a razão e a
loucura humanas e também coloca em evidência o poder enquanto instrumento de controle
social.
Conforme podemos comprovar a partir do excerto que se segue, em conversa com o
boticário Soares, Simão Bacamarte – médico da Corte e personagem principal do conto –
demonstra sua ânsia pela busca de explicação para as patologias cerebrais humanas
percebidas nos moradores da Vila de Itaguaí e diz:
Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, sr. Soares, é ver se
posso extrair a pérola, que é a razão [...]. A razão é o perfeito equilíbrio de
todas as faculdades; fora daí insânia, insânia, e só insânia (ASSIS, 1999, p.
29).
No decorrer da obra, a inquietude do alienista fez com que, baseado nos seus
experimentos científicos, ele internasse na Casa Verde (o sanatório) todas as pessoas que
apresentavam algum desvio nas suas faculdades. Deste feito, o médico encerra em seu
manicômio uma grande quantidade de pessoas cujo comportamento era até então considerado
“normal” pela sociedade. São alguns exemplos: os que possuíam “mania” de oratória, os
vaidosos, os excessivamente corteses, os emprestadores de dinheiro e até mesmo sua própria
esposa, que passara a noite hesitando entre um colar de granada e outro de safira para ir ao
baile.
Segundo critérios do alienista, foram definidos padrões de normalidade que estavam
em consonância com os ditames dos poderes políticos e científicos da época. Como
consequência, houve o internamento de todos os moradores da cidade, pois todos
apresentavam, baseados nas teorizações do médico, alguma anormalidade comportamental.
A trama surpreende quando, considerando os diagnósticos elaborados pelas suas
teorias, o alienista se vê equivocado e liberta todos os internos, pois considera agora que o
louco não é mais o desequilibrado, mas aquele que exibe pleno equilíbrio das faculdades
mentais. Essa nova teoria fundamenta a prisão do padre Lopes, da esposa do boticário
Crispim e do barbeiro Porfírio.
Meses após o tratamento, todos foram soltos ao revelarem algum desequilíbrio,
provando que estavam curados. Com isso, Simão Bacamarte desconfia de que sua teoria não
havia curado ninguém e que os pacientes só haviam revelado um desequilíbrio que já
possuíam anteriormente. Decide, por isso, internar-se a si próprio e deslocar seu estudo para si
mesmo, já que se considera a única pessoa realmente equilibrada de toda a vila. Tranca-se na
Casa Verde, declarando-se ao mesmo tempo médico e paciente, e morre depois de alguns
meses.
Essa ironia na tentativa de higienizar as mentes da Vila de Itaguaí, trazida pelo
alienista, elucida a mentalidade dos intelectuais da sociedade brasileira das décadas de 20 e 30
do século XX. Por considerarem fundamental ao Brasil alcançar o patamar de país
desenvolvido e progredido, a intelectualidade médico-sanitarista buscou sanear as mentes da
população brasileira como um todo, de modo a formar indivíduos sadios, higienizados
mentalmente, disciplinados e docilizados.
Essa conjuntura da obra de Assis (1999) trazida para a realidade social permite que
vejamos a razão e a loucura como instrumentos utilizados pelo poder dominante em
conformidade com o seu interesse. O saber científico da medicina permitiu à intelectualidade
deter o saber sobre o corpo e a mente de cada indivíduo, fazendo com que os médicos,
principalmente, detivessem o poder de controlar, disciplinar, docilizar o comportamento, a
moral e o intelecto de cada ser.
Em virtude desse ideário de necessidade de higienizar a mente da sociedade,
percebemos o porquê de nada de efetivo ter sido feito contra a alienação de Simão Bacamarte
e a sua Casa Verde: de qualquer modo, as clínicas de internamento psiquiátrico eram
instituições que serviam para o internamento das pessoas tidas como entraves ao
desenvolvimento do país. Como esses indivíduos com alguma anormalidade mental e/ou
comportamental não se enquadravam no padrão normalizador, o manicômio tinha por função
tentar adequá-los às exigências da nova ordem social.
Vemos, portanto, que o médico alienista de Machado de Assis (1999), Simão
Bacamarte, reproduz a ideologia sanitarista disseminada entre os séculos XIX e XX, e a obra
em que se insere, “O Alienista”, mesmo se tratando de um conto fictício, traz elementos da
vida em sociedade que se confundem com a realidade social daquele período.
A alienação de um alienista adentra na escola
No caso da tese de doutoramento “Hygiene Mental e Educação”, vemos a ênfase que
é dada à prática de higienização das mentes a ser implementada nas instituições escolares.
A importância da escola como ambiente ideal para a higienização das mentes dos
escolares é destacada por Luiz Antonio devido à ação prolongada dessa instituição diante de
todos os sujeitos sociais em idade escolar. É na escola que os conhecimentos, atitudes mentais
e comportamentos verificados nas crianças e jovens são transmitidos e corrigidos.
Por considerar o corpo infantil como um objeto a ser analisado, estudado, docilizado e,
consequentemente, dominado, transformado e aperfeiçoado, o potiguar defende a ideia de que
é por intermédio desse corpo moldável que, no ambiente escolar, as almas infantis serão
fabricadas e cultivadas. E, identificando-as como produto do investimento político do corpo e
um instrumento do seu domínio, Luiz Antonio entende que a ortopedia moral dos escolares,
materializada através da vigilância, do controle e da correção, buscará enquadrá-los nos
padrões de normalidade daquela época.
Para isso, os médicos deveriam atuar nos campos da moral, do corpo e da mente de
cada criança, uma vez que qualquer desvio de comportamento, qualquer dificuldade física ou
mental deveria sofrer as medidas de intervenção médica e de correção da anomalia. As
medidas de higiene – a serem implementadas na escola – permitiriam a correção de cada
desvio observado nas crianças. Para o pensamento dos médicos sanitaristas do período, as
práticas de higienização dos escolares gerariam corpos e mentes disciplinados.
Nessa instituição, novos modelos de comportamento deveriam ser conformados a
partir dos modelos formativos da higiene, uma vez que
Os bons conselhos quer de moral, quer de Hygiene, são muito aproveitaveis
neste periodo [da infância] e assim como os máos processos pedagogicos
podem influenciar na genesis da degenaração mental, assim também a bôa
orientação impressa á educação de uma creança póde salvaguardal-a do
desequilibrio psychico. (LIMA, L., 1927, p. 25).
Na obra “Hygiene Mental e Educação”, onde os problemas de disciplina são vistos
como passíveis de análise e correção, Luiz Antonio disserta sobre os escolares que
apresentam algum desvio de comportamento e que, portanto, necessitam de normalização –
indivíduos com comportamento suspeito: os “idiotas”, os “débeis mentaes”, o “preguiçoso”, o
“triste”, o “medroso”, os “instaveis ou nervosos”, os “emotivos”, os “perversos”, os
“hystericos”, os “impressionaveis”, os “presumpçosos ou convencidos” (LIMA, 1927), entre
outras categorias de desvios, seriam corrigidos nas suas imperfeições, conforme a
anormalidade comportamental percebida.
Em Luiz Antonio, sob vigilância e disciplina constantes, os escolares são analisados
individualmente em suas imperfeições mentais e moldados através da inculcação e do cultivo
de hábitos sadios para que estes passem a constituir a personalidade de cada um.
O discurso médico-pedagógico defendido pelo autor propunha uma higiene mental
como ciência aplicada, que visava ao equilíbrio psíquico, à saúde da alma e à prevenção das
psiconeuroses com o objetivo de proteger e melhorar o psiquismo humano, em meio a um
contexto no qual a doença mental era colocada entre os mais temíveis flagelos sociais.
Para Luiz Antonio dos Santos Lima,
O intuito exclusivo da hygiene mental é de proteger e melhorar o psychismo
do homem; é um ensaio para se estabelecer as bases racionaes e scientificas
do seu funccionamento, para dar orientação, que constitue a prophylaxia das
psychopatias no individuo normal, no predisposto e no anormal, para
melhorar o mais possivel as engrenagens diversas das funcções mentaes;
procurar contribuir largamente para a felicidade duradoura dos indivíduos e
da sociedade, pelo que constitue uma das partes da hygiene social. (LIMA,
L., 1927, p. 9).
Não foi criado, para as crianças, o “sanatório Casa Verde”, mas as intervenções de
Luiz Antonio e de todos os demais médicos alienistas, que atuavam em nome do
desenvolvimento social e econômico, fizeram da instituição escolar um ambiente de
prevenção e profilaxia das doenças do corpo e da mente dos sujeitos lá retidos.
Nesse contexto de higienização das mentes, Luiz Antonio dos Santos Lima dissertou
sobre as práticas de controle das mentes das crianças em idade escolar. A tese de
doutoramento que escreveu, na conclusão do curso de medicina, foi tida como um manual a
ser seguido, principalmente, por professores e diretores escolares a fim de que, juntamente
com a equipe médica, pudessem intervir nos corpos e mentes infantis e, indiretamente, atingir
os lares dessas crianças, modificando e corrigindo também os maus hábitos das famílias.
Sua obra trouxe propostas de melhoria social e evidenciou a posição de influência
que o médico potiguar detinha para o controle, vigilância e normalização da sociedade. As
medidas de higienização mental nela encontradas são sugeridas considerando o nível de
desenvolvimento mental alcançado por cada criança.
Educar o corpo físico, além de atentar para o cuidado com a mente e a moral dos
infantes, em total conformidade com os padrões de higiene, constitui os fins da educação do
início do século XX. Era preciso educar a mente, o corpo e a moral para que, completos e
íntegros, os indivíduos se tornassem civilizados e disciplinados.
Considerações finais
A análise dos pensamentos de Luiz Antonio e de Simão Bacamarte nos permitiu
perceber os processos de disciplinarização aos quais os escolares e os loucos foram
submetidos. Vimos que, por meio da imposição de um poder sobre seus corpos e almas, a
intenção era transformá-los em entes dóceis, disciplinados, limitados pelo poder microfísico,
que restringia significativamente o campo de ações e comportamentos possíveis.
As instituições “escola” e “manicômio” foram consideradas como dispositivos de
controle social, capazes de capturar por tempo variável os corpos dos escolares e dos loucos e
de aplicar sobre eles as práticas cotidianas de docilização. O poder sanitarista ao qual esses
indivíduos foram submetidos estava voltado no sentido de governar contínua e
permanentemente cada conduta, sustentando, assegurando e aperfeiçoando a vida de cada um.
A partir daí, observamos a escola e o manicômio do início do século XX como
instituições de sequestro, que tiveram seus saberes e práticas influenciados pelo saber médicosanitarista para a higienização e docilização dos corpos e mentes dos indivíduos. E sobre isso,
por partilharmos da inquietação do vereador Sebastião Freitas, quando indaga com o
presidente e outros colegas de ofício sobre a veracidade do saber médico-científico,
utilizamos a pergunta que faz e nos questionamos: “se tantos homens em quem supomos juízo
são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?” (ASSIS, 1999,
p. 47).
No caso, por exemplo, de Luiz Antonio dos Santos Lima e da real necessidade de
higienização das mentes dos escolares, percebida por ele e pelos demais médicos que atuavam
nas escolas, como não percebê-lo como um alienista que intentava sanear a mente de todas as
crianças, pois todas apresentariam, cedo ou tarde, algum tipo de desvio comportamental?
Ao propor uma medida de higienização das mentes que classificava as crianças
brasileiras do início do século XX, antes tidas como normais, como fora do padrão da
normalidade (devido a momentos de falta de atenção, hiperatividade, teimosia, introspecção,
impaciência, dentre outros tantos “desvios” que o ser humano apresenta ao longo de, até
mesmo, um dia), afirmamos que o pensamento de Luiz Antonio era tão alienista quanto o do
personagem alienista do conto machadiano.
Tanto o potiguar da realidade, Luiz Antonio, quanto o fruto da imaginação de
Machado de Assis, Simão Bacamarte, rotularam os comportamentos e atitudes mentais dos
escolares e dos loucos em categorias que os viam como aberrações que deveriam ser
corrigidas o mais rápido possível para o desenvolvimento e progresso da nação.
Essa ideologia em prol da correção e da prevenção das doenças de caráter mental
fazia parte da proposta de higienização da sociedade do início do século XX para o progresso
e a civilidade de toda a nação brasileira. Por isso, antes de classificarmos Luiz Antonio e os
demais médicos sanitaristas como heróis ou vilões da história brasileira, devemos percebê-los
como pertencentes a um contexto social, econômico e histórico diferente do que vivenciamos.
O fato de estarem imersos num contexto de caos social, sendo detentores do saber
científico, fez com que liderassem a campanha em prol da higienização das mentes da
população. No caso de Luiz Antonio dos Santos Lima, tendo escolhido o ambiente escolar
como o terreno ideal para o plantio de suas ideias modernizadoras, o médico e educador
visualizou as crianças como plantas a serem cultivadas, corrigindo e eliminando qualquer
galho rebelde ou anômalo; de modo similar, Simão Bacamarte o fez com todos os moradores
da Vila de Itaguaí – o que comprova o fato de que seu idealizador, Machado de Assis, refletiu
esse contexto de conturbações sociais, vivenciado por ele, no conto que escreveu.
O conto da Vila de Itaguaí e a realidade educacional brasileira expõem a atuação dos
médicos, psiquiatras, psicólogos, educadores, entre outros profissionais unidos pela
empreitada do progresso e do desenvolvimento, que, permitindo a produção de um saber
médico sobre os corpos e mentes, definiu um plano de ação para toda a sociedade.
Essa atuação dos detentores do poder e do saber científicos deve ser analisada a
partir de um viés histórico a fim de que tenhamos uma investigação contextualizada com a
época estudada.
Por isso, nessa perspectiva, percebemos Luiz Antonio dos Santos Lima e toda a
equipe de médicos que atuavam nas instituições de sequestro no início dos novecentos como
jardineiros cultivadores da ordem e do progresso nacionais. A imagem desses sanitaristas
tinha um destaque de competência e importância devido à esperança e ao entusiasmo que foi
dado ao saber científico como solucionador dos problemas sociais que o Brasil enfrentava.
Referências Bibliográficas
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da Educação. São Paulo: Moderna, 2006a.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação e da pedagogia: geral e Brasil.
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Sodré (1976) explica que havia no Brasil, entre os anos de 1890 e 1900, 17 milhões de habitantes; número que
aumentou, em 1920, para 30 milhões.
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O MÉDICO LUIZ ANTONIO DOS SANTOS LIMA E O PERSONAGEM