Nome autor Somanlu Revista de Estudos Amazônicos ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 1 Nome ar tigo Copyright © 2004 Universidade Federal do Amazonas SOMANLU – REVISTA DE ESTUDOS A MAZÔNICOS Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas. (SOMANLU é um herói mítico da Amazônia criado pelo escritor Abguar Bastos) MINISTRO DE ESTADO Tarso Genro DA EDUCAÇÃO C OMISSÃO EDITORIAL Elenise Faria Scherer Narciso Júlio Freire Lobo Nelson Matos de Noronha R EITOR Hidembergue Ordozgoith da Frota E DITOR Renan Freitas Pinto V ICE-REITORA Neila Falcone da Silva Bonfim COORDENADORA DE R EVISTAS Prof.ª Dayse Enne Botelho PRÓ-REITOR DE PESQUISA E PÓS -GRADUAÇÃO José Ferreira da Silva DIRETOR DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS Maria Izabel de Medeiros Valle COORDENAÇÃO DO PROGRAMA E CULTURA NA AMAZÔNIA Narciso Júlio Freire Lobo DE PÓS-GRADUAÇÃO SOCIEDADE CONSELHO EDITORIAL Elenise Faria Scherer, Renan Freitas Pinto, João Bosco Ladislau de Andrade, José Aldemir de Oliveira, Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro, Márcia Perales Mendes Silva, Marcos Frederico Krüger Aleixo, Maria Izabel de Medeiros Valle, Marilene Corrêa da Silva, Narciso Júlio Freire Lobo, Nelson Matos de Noronha, Odenildo Teixeira Sena, Selda Vale da Costa, Walmir Albuquerque Barbosa e Yoshiko Sassaki EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Rogério Cordovil CONCEPÇÃO DA CAPA Marcicley Rego FINALIZAÇÃO DA CAPA Verônica Gomes FOTO DA CAPA Antônio Lima (A Crítica) REVISÃO DE ABSTRACTS Paulo Renan Gomes da Silva REVISÃO DE PORTUGUÊS Sérgio Pereira A exatidão das informações, conceitos e opiniões são de exclusiva responsabilidade dos autores Publicada em Julho de 2004 Somanlu: Revista de Estudos Amazônicos do Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas. Ano 1, n. 1 (2000 - ). —- Manaus: Edua/ FAPEAM, 2000 v.: il.; 17 x 24cm. Semestral Até 2002 publicação anual e vinculada ao PPG Natureza e Cultura na Amazônia. Interrompida em 2001. ISSN 15118-4765 1. Cultura Amazônica 2. Amazônia - Sociologia 3. Amazônia - Antropologia I. Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia. CDU 316.722(811) 2 Universidade Federal do Amazonas Instituto de Ciências Humanas e Letras Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia — PPGSCA Av. Rodrigo Octavio Jordão Ramos, 3.000/Campus Universitário — ICHL CEP 69077 – 000 Manaus – Amazonas – Brasil Fone/Fax: 055 92 647-4381/647-4380 www.ufam.edu.br www.ppgsca.ufam.edu.br Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 e-mail: [email protected] Editora da Universidade Federal do Amazonas Rua Monsenhor Coutinho, 724 Centro Telefax: (0xx) 92 231-1139 e-mail: [email protected] CEP 69.010-110 Manaus/AM Nome autor Sumário Apresentação ........................................................................................ 5 Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais” como fator essencial de transição econômica - pontos resumidos para uma discussão Alfredo Wagner Berno de Almeida .................................................9 Tradição, modernidade e políticas públicas no alto Rio Negro Maria Luiza Garnelo Pereira ..........................................................29 Dimensão pedagógica da violência na formação do trabalhador amazonense Marlene Ribeiro .............................................................................. 55 Inovações tecnológicas e qualificação profissional Maria Izabel de Medeiros Valle ..................................................... 81 Impactos da reestruturação produtiva nas expressões de consciência de classe dos operadores de produção da Zona Franca de Manaus Márcia Perales Mendes Silva .......................................................... 99 Desemprego, trabalho precário e des-cidadanização na Zona Franca de Manaus Elenise Faria Scherer ..................................................................... 125 Impactos da reestruturação produtiva no Amazonas – níveis de emprego e desemprego na Zona Franca e demais setores Iraildes Caldas Torres .................................................................. 147 SUFRAMA: agência dos agentes Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 3 Nome ar tigo Izaura Rodrigues Nascimento .................................................... 159 Um debate sobre a Agenda 21 Brasileira: em defesa da floresta amazônica Pérsida da Silva Ribeiro Miki ....................................................... 187 Dissertações defendidas (2002) ............................................................ 201 Roteiro para elaboração de artigos ......................................................215 4 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Nome autor Apresentação O Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia – PGSCA completou cinco anos de existência na busca e no esforço para consolidar a pós-graduação e a pesquisa na área das humanidades no Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Amazonas. Na trajetória da produção acadêmica do Programa, a revista Somanlu tem sido o veículo de comunicação por meio do qual os seus professores, seus pesquisadores, alunos colaboradores e convidados têm oportunidade de publicar os seus trabalhos, suas pesquisas e seus estudos literários. Trata-se de um empreendimento que vem reforçar, formalmente, a interlocução com outros segmentos acadêmicos/intelectuais -- não só no âmbito local como, também, transpondo fronteiras regionais -- que participam de preocupações similares: a Amazônia. Sem perder suas características de pluralidade temática e de opiniões, próprias de seu caráter muldisciplinar, a revista Somanlu, neste número, procurou trazer aos seus leitores reflexões centradas, em grande parte, na questão do trabalho. Este número inicia com o artigo de Alfredo Wagner B. de Almeida que traz ao debate a reflexão de que não se pode, na atualidade, pensar e falar sobre as alternativas de desenvolvimento na Amazônia sem levar em conta a presença dos movimentos sociais e o reconhecimento dos saberes tradicionais dos povos amazônicos, somados ao direito intelectual desses povos para viabilizar a autosustentabilidade. O artigo de Maria Luiza Garnelo Pereira analisa as práticas políticas e as formas próprias de organização da etnia Baniwa do alto Rio Negro na luta pela implantação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEI. A autora mostra de forma inovadora e particular, a busca pelos direitos à saúde que se expressam nos convênios celebrados entre essa etnia e algumas instituições governamentais. O texto de Marlene Ribeiro procura historiar a organização de uma nova classe social que se constituiu, precisamente, nos anos 70 com a consolidação do industrialismo em Manaus, na era da Zona Franca. A autora procura enfatizar o fazer-se classe dos trabalhadores agricultores/ Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 5 Nome ar tigo pescadores/ribeirinhos que, na luta política e na sua dimensão educativa transformaramse em operários metalúrgicos no chão das fábricas do Distrito Industrial de Manaus. O trabalho de Maria Isabel de Medeiros Valle discute os impactos sociais das inovações tecnológicas e organizacionais nas indústrias da Zona Franca de Manaus. Mostra como estes processos sociais passaram a exigir dos trabalhadores do chão de fábrica novas qualificações técnico-profissionais e novas competências sociais, demandando uma outra formação e qualificação profissional. O texto de Márcia Perales Mendes da Silva centraliza a discussão nas metamorfoses que ocorreram no mundo do trabalho nas indústrias do Distrito Industrial da Zona Franca de Manaus. Aponta as mudanças que afetaram o cotidiano dos operadores de produção destas fábricas e que se expressam nas manifestações de consciência dos trabalhadores no espaço fabril. Completa a temática da reestruturação produtiva nas fábricas do Distrito Industrial, acrescido da questão do desemprego, o artigo de Elenise Faria Scherer que, ao tomar como referência as fontes primárias e secundárias, mostra o índice de desemprego em Manaus a partir dos anos 90. Apresenta as manifestações dos ex-montadores e exmontadoras sobre suas condições de vida e seus envolvimentos em trabalhos precários, a partir do momento em que perderam seus postos de trabalho nas fábricas do complexo industrial local. O trabalho de Iraildes Caldas Torres que examina a mesma temática da reestruturação produtiva nas indústrias da Zona Franca de Manaus, mostra os impactos deste processo no emprego e no desemprego no Distrito Industrial e em outros setores da economia amazonense. A análise de Isaura Rodrigues do Nascimento sobre a SUFRAMA indica os caminhos percorridos por esta agência de desenvolvimento regional na Amazônia Ocidental, a qual imprimiu uma nova dinâmica sócio-econômica no Estado do Amazonas. Destaca, outrossim, os impactos sócio-culturais que influenciaram a vida cotidiana dos manauenses. A revista Somanlu finaliza esta edição com o artigo de Pérsida da Silva Ribeiro Miki que faz uma análise da Agenda 21 brasileira no que se refere às implicações ambientais. A autora nos mostra o lugar de destaque que a Amazônia Legal ocupa neste documento, pelo reconhecimento mundial de sua sócio-biodiversidade. Encerramos a revista com a apresentação dos resumos das dissertações dos nossos alunos defendidas durante o ano de 2002. Editores 6 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Nome autor Artigos Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 7 Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais”... 8 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Alfredo Wagner Berno de Almeida Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais” como fator essencial de transição econômica – pontos resumidos para uma discussão Alfredo Wagner Berno de Almeida1 Resumo O trabalho focaliza os movimentos sociais como sujeitos da questão ambiental na Amazônia no contexto das polêmicas oficiais em torno da propriedade intelectual e do patrimônio genético Palavras-Chave Movimentos Sociais na Amazônia, agroecologia, propriedade intelectual, patrimônio genético. Abstract This paper aims to focus the social movements as subjects of environmental issues within the context official controversies vis-à-vis the intellectual property and the genetic inheritance in the Amazon Region. 1 Professor-visitante do PPGACP-UFF/Universidade Federal Fluminense. Bolsista da Faperj. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 9 Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais”... Keywords Social Movements in the Amazon Region; Agroecology; Intellectual Property; Genetic Inheritance. As polêmicas em torno da relação entre a fragilidade do “ecossistema amazônico” e as “alternativas de desenvolvimento” têm sido marcadas, a partir de 1988, com a intervenção sistemática dos movimentos sociais, por uma ruptura radical com esquemas de pensamento utilizados comumente nos documentos oficiais de planejamento e no âmbito da política ambiental. Tal ruptura aponta para uma noção de “ecossistema amazônico” que não se reduz mais ao quadro natural e às descrições e classificações de espécies, produzindo listas e copiosos inventários de ocorrência de plantas, frutos e congêneres. Rompendo com a prevalência do “biologismo” na explicação deste quadro natural, ela traz em seu bojo o significado de “ecossistema amazônico” como produto de relações sociais e de antagonismos, ou seja, pensado como um campo de lutas em torno do controle do patrimônio genético, do uso de tecnologias e das formas de conhecimento e de apropriação dos recursos naturais. As representações da natureza, cristalizadas no âmbito do aparato burocrático, são abaladas neste embate com repercussões sobre outras noções operacionais e conceitos que preconizam uma “exploração racional” dos recursos. De igual modo tem sofrido modificações o tratamento mediático dos conflitos sócio-ambientais resultante de estratégias de comunicação postas em prática, nos jornais e revistas de circulação periódica, por interesses e por “especialistas” em meio ambiente coadunados com a lógica dos “grandes projetos” e com sua pretensa racionalidade na exploração dos recursos naturais. A repetida invocação de “modernidade” e “progresso”, que parecia justificar que os agentes sociais atingidos pelos grandes projetos fossem menosprezados ou tratados etnocentricamente como “primitivos” e sob o rótulo de “atraso”, tem sido abalada em face da gravidade de conflitos prolongados e à eficácia dos movimentos sociais e das entidades ambientalistas em imporem novos critérios de consciência ambiental. 10 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Alfredo Wagner Berno de Almeida Um dos principais embates nestas polêmicas concerne à própria instituição de direitos sobre o patrimônio genético, que está sendo crítica e duramente construída2 em oposição às formulações de laboratórios de biotecnologia adotadas pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Os traços e características, deste referido patrimônio, que devem ser tomados em conta, não são a soma das diferenças “objetivas”, ao contrário, apontam para um quadro complexo de experiências e distintas modalidades de uso dos recursos naturais, envolvendo conhecimentos localizados de diferentes agentes sociais, marcados por uma diversidade étnica com suas respectivas organizações de representação política. Neste contexto, as alternativas de desenvolvimento podem ser entendidas como abrangendo o conjunto de medidas adotadas para pôr em execução projetos de reconhecimento do “saber nativo”. Compreendem experiências concretas de cooperação, que tanto envolvem manejo quanto processamento e transformação de matérias-primas. Tais experiências sempre consideradas artesanais, pré-industriais ou limitadas, não obstante sua eficácia, até então não tiveram condições históricas de ganhar corpo, dado que a Amazônia foi sempre uma região “dominada”, pensada de fora e objeto permanente de projetos de inspiração colonialista. Aliás, a função geral da oposição entre “natureza” e “civilização”, coextensiva à nossa maneira usual de pensar, expressa tão-somente a consciência que as metrópoles coloniais têm de si mesmas. Ela resume tudo aquilo em que a sociedade ocidental dos últimos três séculos se julga superior a sociedades consideradas “mais primitivas”, “atrasadas”, “selvagens” ou ágrafas, tudo aquilo em que as sociedades industriais e urbanas se julgam superiores às “populações nativas” consideradas características das florestas úmidas e tropicais. É sobre o processo de fortalecimento de movimentos sociais e de afirmação étnica que se contrapõe a este ideário positivista de racionalidade absoluta, cujo fito é a naturalização de fatos sociais, que pretendo discorrer. 2 Veja-se as dificuldades de aprovação do primeiro instrumento de combate à “biopirataria” que se acha tramitando no Congresso Nacional há oito anos, qual seja, o Projeto de Lei do Senado n. 306, de novembro de 1995, de autoria da senadora Marina Silva, que dispõe sobre os instrumentos de controle do acesso aos recursos genéticos do País e dá outras providências. Dentre as disposições gerais tem-se a que prevê a participação das comunidades locais e dos povos indígenas nas decisões que tenham por objetivo o acesso aos recursos genéticos nas áreas que ocupam. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 11 Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais”... Os Pajés e a Organização Mundial do Comércio Em decorrência deste ponto de partida, quero iniciar a reflexão com uma proposta de discussão que apresentei ao Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), realizado em 2002, mencionando a reunião dos pajés, curandeiros e líderes espirituais, de povos indígenas da Amazônia realizada em dezembro de 2001 em São Luís, capital do Estado do Maranhão. Compareceram a este evento representantes de vinte povos indígenas, que definiram os termos de uma carta a ser enviada à Organização Mundial de Produção Intelectual (OMPI) sediada em Genebra, Suíça. O Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), que patrocinou a reunião, foi o portador da carta destinada diretamente ao Comitê Intergovernamental da Biodiversidade. Os temas em pauta diziam respeito a: a) recursos naturais das florestas tropicais, em particular da Amazônia, que estão sendo explorados industrialmente; b) necessidade de serem protegidos juridicamente os conhecimentos tradicionais para evitar a biopirataria ou pirataria ecológica 3 , ou seja, para evitar que “outros” se apropriem ilegítima e ilegalmente destes saberes nativos. 4 Considere-se “biopirataria” ou “pirataria ecológica” um conjunto de práticas delituosas que tanto consistem em transportar animais ou plantas, sem permissão legal, com o objetivo de usar o material genético coletado para fins comerciais, quanto em usurpar os conhecimentos tradicionais de povos indígenas e camponeses sobre animais e plantas. Compreende, pois, a usurpação de direitos de propriedade intelectual e a expropriação dos saberes nativos. 4 Na última década intensificaram-se de tal ordem os casos de apropriação ilegal do capital de conhecimentos acumulado pelos povos indígenas e pelas chamadas “populações tradicionais” que foi instituída, em 1997, na Câmara dos Deputados uma “Comissão para apurar denúncias de exploração e comercialização ilegal de plantas e material genético na Amazônia”. Entre outros, foram apurados casos de tráfico de besouros e borboletas, exportação ilegal de sementes (caso da empresa Tawaia, Cruzeiro do Sul-AC), corantes naturais (extração do pigmento azul do jenipapo) e processamento do urucum, patentes do bibiru ou bibiri, cujo princípio ativo foi registrado pelo laboratório canadense Biolink, e do cunani, patente do couro vegetal, extração do látex de cróton (caso da Shaman Pharmaceuticals, que diz já ter estudado “sete mil plantas de todo o conjunto da Floresta Amazônica”: cf. Relatório Final da Comissão. Brasília. Câmara dos Deputados. 1998 p. 13-44. Acrescentem-se ainda casos de coleta de sangue-DNA dos Karitiana e Suruí de Rondônia por universidades norteamericanas (Arizona, Yale) e laboratórios. (ibid. p. 30-35) Aumentando esta lista, tem sido divulgados pela imprensa periódica em 2003 “novos” casos de patenteamento que usurpam conhecimentos nativos, senão vejamos: o cupuaçu, considerado uma fruta exótica da Amazônia, foi patenteado pela Asahi Foods que produz o cupulate, chocolate de cupuaçu. A Rocher Yves Vegetale registrou nos EUA, Europa e Japão a patente sobre a produção de cosméticos ou remédios que usam o extrato de andiroba.O laboratório nor te-americano Abbot sintetizou e vende uma toxina analgésica produzida por um sapo ( Epipedobetes tricolor) que vive nas árvores 3 12 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Alfredo Wagner Berno de Almeida Esta reunião em que funcionários religiosos e especialistas das sociedades indígenas, que detêm conhecimentos de botânica e de flora, aplicando-os em suas práticas agrícolas e extrativas, produzem pleitos dirigidos a agências multilaterais (OMC, OMPI), coadunados com as mobilizações de preservação ambiental levadas a efeito pelos movimentos sociais na Amazônia na última década, significa uma politização do saber sobre a natureza e por extensão uma politização da própria natureza. Abre-se, de maneira mais formal, um novo capítulo de antagonismos e conflitos sócio-ambientais em que os conhecimentos indígenas e das chamadas “populações tradicionais” começam a se constituir num saber prático em contraponto àquele controlado pelos grandes laboratórios de biotecnologia, pelas empresas farmacêuticas e demais grupos econômicos que detêm o monopólio das patentes, das marcas e dos direitos intelectuais sobre os processos de transformação e processamento dos recursos naturais.5 E o que são estes conhecimentos nativos? Eles não se restringem a um mero repertório de ervas medicinais. Tampouco consistem numa listagem de espécies vegetais. Em verdade, eles compreendem as fórmulas sofisticadas, o receituário e os respectivos procedimentos para realizar a transformação. Eles respondem a indagações de como uma determinada erva é coletada, tratada e transformada num processo de fusão.6 A questão do direito de patente institui, enquanto prerrogativa para regular relações, um campo de confrontos sucessivos. Nele começam a se destacar as mobilizações e as iniciativas dos movimentos sociais e de organizações ambientalistas. amazônicas. O governo Lula, através do Ministério do Meio Ambiente, objetivando aprimorar o controle sobre as usurpações prepara um banco de dados com o nome científico e popular das várias espécies nativas para ser disponibilizado via Internet. Cf. MENCONI,M. e Rocha,L. “Riqueza Ameaçada --- a falta de fiscalização e controle das espécies nativas abre as portas para a biopirataria e dá ao Brasil prejuízo diário de US$ 16 milhões”. Isto É nº. 1773, de 24 de setembro de 2003 p. 92-98. 5 Esta experiência de reunião dos pajés foi inspirada em um trabalho já em curso na Venezuela, produzindo um banco de dados que catalogou, até agora, nove mil conhecimentos.Todos estes conhecimentos tradicionais foram produzidos por povos indígenas e por camponeses. Para outros esclarecimentos consulte-se TACHINARDI, Maria Helena. “Pajés com a palavra --- Brasil poderá ter banco de dados com conhecimentos tradicionais”. Gazeta Mercantil, 17 e 18 de novembro de 2001. 6 Um dos exemplos de expropriação destes conhecimentos indígenas mais divulgados pela imprensa concerne à “espinheira santa”, que é bastante conhecida para combater a acidez no estômago. Técnicos japoneses teriam tido informações sobre os procedimentos de beneficiamento e patentearam os extratos da erva e agora para que se possa utilizá-la tem que se pagar a empresas japonesas os direitos autorais. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 13 Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais”... A Rede “Grupo de Trabalho Amazônico” - GTA, “para além da luta em defesa dos conhecimentos tradicionais, como no processo movido pela anulação do registro do nome cupuaçu no Japão, trabalha pelos direitos comunitários mais amplos como forma de mostrar para a sociedade brasileira que a biodiversidade está ligada com a diversidade cultural e agrícola das comunidades” (GTA, 2003). A Associação em Áreas de Assentamento do Maranhão - ASSEMA, juntamente com a Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de Lago do Junco-COPPALJ e o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Côco Babaçu-MIQCB têm se movimentado desde 1998 no sentido de registrar suas marcas, numa linha de produtos batizada como “babaçu livre”, que já são comercializados 7 . Desde fevereiro de 2003 o Instituto Indígena Brasileiro de Propriedade Intelectual - IIBPI, recém-criado, começou a registrar os conhecimentos tradicionais dos pajés (MENCONI; ROCHA, 2003, p. 96). Não obstante tais iniciativas registre-se que o número de patentes solicitadas por brasileiros é extremamente baixo se cotejado com o de países industrializados 8 . Reivindicar o direito intelectual é uma forma de luta, é uma forma de contrapor conhecimentos, tornando-se essencial para as alternativas de desenvolvimento autônomo, posto que podem viabilizar a auto sustentabilidade. Basta dizer que as bases empíricas dos procedimentos elaborados em laboratórios e demais empresas refletem as informações primeiras detidas pelos nativos. A seleção, a infusão e a utilidade já foram definidas, muitas vezes centenariamente, pelo saber nativo quando os laboratórios começam a atuar. Afinal, em muitos casos, o que os laboratórios acabam fazendo se resume em agregar os componentes tecnológicos à fórmula criada pelos índios e pelas “populações tradicionais” 9 . A eficácia trabalho precursor dos povos indígenas é sobejamente reconhecida como assevera o pesquisador Charles Clement do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia O primeiro empreendimento de comercialização exclusiva destes produtos em áreas metropolitanas trata-se da “Embaixada do Babaçu” inaugurada em São Luís (MA) no decorrer de 2002. Outras 68 iniciativas de “relações comerciais justas” podem ser encontradas na publicação do MMA intitulada “Negócios para Amazônia Sustentável” (MMA et al. Rio de Janeiro, 20022003). 8 Para maiores dados veja-se o artigo “Caldeirão da pajelança”, de autoria de D. Menconi e S. Filgueiras, publicado na Isto É, de 19 de setembro de 2001, p. 93-95. 9 Há situações extremas como o caso da associação das mulheres trabalhadoras rurais de Ludovico, que fabricam sabonetes de óleo de babaçu e vendem para a Sensual’s Pacific que os distribuem nos EUA com seu próprio rótulo, porquanto as quebradeiras de coco babaçu ainda não patentearam seu produto. O óleo de babaçu para tal fabricação é produzido pela 7 14 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Alfredo Wagner Berno de Almeida INPA, que, a partir de seus estudos com o palmito pupunha, explica que “quando a planta não é domesticada ou pelo menos semidomesticada esses conhecimentos são adquiridos em etapas da investigação científica no decorrer de vários anos”. Os índios desenvolveram essas tecnologias por meio da seleção de sementes, de solo, da rigorosa observação do meio ambiente”. (CLEMENT apud NOGUEIRA, 2002, p. 9) 10. Sob este prisma não haveria uma descontinuidade absoluta entre os saberes práticos e aqueles produzidos pela investigação científica e os laboratórios se beneficiaram deste conhecimento inicial. As estratégias empresariais e o monopólio dos direitos autorais De outra parte há laboratórios farmacêuticos que, além do controle da extração vegetal e dos processos industriais, adquiriram imóveis rurais para compor suas próprias fazendas com espécies cultivadas. Depois de décadas nas florestas ombrófilas da Pré-Amazônia, adquirindo produtos extraídos por povos indígenas (Guajajara) e camponeses, a MERCK, após uma experiência conflituosa com posseiros na fazenda Faísa, no Vale do Pindaré, adquiriu a fazenda Chapada, em Barra do Corda (MA), Vale do Mearim, e implantou uma grande plantação de jaborandi do qual obtém a pilocarpina. Este mesmo laboratório farmacêutico obtém também a rutina a partir da fava-d’anta coletada por camponeses das regiões de cerrado. 11 Cooperativa dos Produtores Agroextrativistas de Lago do Junco, que também expor ta para a Europa (The Body Shop) e para o EUA (Aveda). Para um aprofundamento desta experiência leia-se o documento “História sobre o pensamento de fabricação de sabonetes do grupo de Ludovico”, de autoria da quebradeira de coco babaçu Maria Alaídes de Souza. O Mar anhão em r ota de colisão-e xperiencias camponesas vver er sus políticas ggoo v er namentais colisão-experiencias namentais.. São Luís:CPT. Coleção Padre Cláudio Berganaschi, 1998, p.171-176. 10 Segundo Clement, “o conhecimento dos índios e caboclos também é substancial na catalogação das plantas medicinais. Informações de comunidades tradicionais ou correntes no meio urbano sobre prováveis benefícios terapêuticos de plantas são absorvidos na Coordenação de Pesquisas em produtos Naturais (CPPN) do INPA como ferramenta para investigação científica”. Clement cita o exemplo da pupunheira, que produz a pupunha. Essa palmeira foi domesticada pelos índios em um período estimado de cinco a dez anos atrás e devido a essa característica possui tolerância ecológica muito mais ampla que qualquer um de seus prováveis ancestrais [...] os índios desenvolveram sofisticadas tecnologias de melhoramento genético, manejo e desenvolvimento de produtos que só resta aperfeiçoá-las às necessidades do consumo em larga escala, a principal característica do mercado mercado...”. NOGUEIRA, W. Indios ajudam pesquisa a queimar várias etapas. Gazeta Mercantil, 18 de junho de 2002. 11 A Merck atua em 150 países com 32 fábricas e 69 mil empregados e apresentou em 2001 faturamento correspondente a US$ 47,7 bilhões. No Brasil possui uma unidade industrial com 800 empregados e teve um faturamento, em 2001, correspondente eta Mer cantil a US$ 95,5 milhões Cf. KARAM,Rita. “Mercado questiona balanço da Merck”. Gaz Gazeta Mercantil cantil, 09 de julho de 2002. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 15 Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais”... O que está em jogo em estratégias empresariais desta ordem é a propriedade da terra visando o controle efetivo de toda a evolução das espécies vegetais e o controle do conhecimento absoluto da flora 12. Está-se diante, pois, de pelo menos duas estratégias empresariais: uma delas, por artifícios de intermediação, controla principalmente a circulação da produção extrativa, através de uma vasta rede de intermediários, que comercializam diretamente com índios, quilombolas e extrativistas, enquanto a outra detém também a propriedade dos meios de produção. Combinando-se estas estratégias com uma terceira, desenvolvida no domínio jurídico-formal e empreendida por agências multilaterais focalizando a concentração da propriedade intelectual, tem-se o escopo da ação empresarial das indústrias farmacêuticas. Assim, quando os pajés se reuniram para decidir os termos da citada carta, eles não se encontravam isolados em sua condição de funcionários religiosos e antes refletiam um aspecto coletivo dos conflitos em que seus grupos sociais de referência se acham envolvidos. De certo modo estava em jogo uma percepção de que hoje a Organização Mundial do Comércio (OMC) – que é uma das três agencias multilaterais que disciplinam as medidas emanadas das políticas de inspiração neoliberal (as outras duas seriam o Banco Mundial-BIRD e o Fundo Monetário Internacional-FMI) e visam globalmente uma “homogeneização jurídica” (BOURDIEU, 2001, p. 107) – através da Organização Mundial de Produção Intelectual (OMPI) pretende estabelecer seu controle sobre todas as espécies vegetais do planeta13, independentemente das legislações nacionais e dos direitos consuetudinários. Neste caso o laboratório atua diretamente diferenciando-se de estratégias empresariais, mais usuais, que pressupõem intermediação sem preocupação com propriedade da terra, como no caso do contrato entre o laboratório suíço Novartis e a organização chamada Bioamazônia, com escritório em São Paulo. “O tiro de largada já foi dado nos grandes laboratórios do País e do mundo. Para ober microorganismos da região o suíço Novartis desembolsou US$ 4 milhões, o britânico Glaxo Wellcome, US$ 3,2 milhões, e o Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos,US$ 1 milhão.Cada um à sua maneira. O contrato da Novartis com a Bioamazônia, uma organização social, por exemplo, virou escândalo e está sendo revisto.Com escritório em São Paulo, a Bioamazônia acabou comprometendo-se com a Novar tis a coletar 10 mil microorganismos diferentes e enviar cepas para o Exterior. Para se ter uma idéia da riqueza da região, o laboratório só precisaria recolher meio quilo de terra em cada um dos 50 pontos escolhidos na florestas para chegar à quantidade de microorganismos desejada. Em outras palavras estaria gastando os tais US$ 4 milhões em 25 quilos de terra. “O contrato entre a Bioamazônia e a Novar tis parece o antigo acordo do governo da Costa Rica com o laboratório Merck, quando toda a biodiversidade do país foi vendida por apenas US$ 1 milhão” segundo Antonio Paes de Carvalho presidente da Extracta e da Associação Brasileira das Empresas de Biotecnologia. Apesar das farpas de Carvalho, a sua Extracta também mantém um polpudo acordo com a Glaxo”. (Cf. OSMAN,Ricardo; ALMEIDA, Juliana. “Guerra verde”. Dinheir Dinheiroo , n.155., 16 de agosto de 2000, p. 65-66). 13 “A unificação do campo econômico mundial pela imposição do reino absoluto do livre comércio, da livre circulação do capital e do crescimento orientado para a expor tação apresenta a mesma ambigüidade que a integração no campo econômico nacional em outros tempos: embora dando aparência de um universalismo sem limites, de uma espécie de ecumenismo que encontra suas justificativas na difusão universal dos estilo de vida cheap da “civilização” do MacDonald’s, do jeans e da coca-cola, ou na “homogeneização jurídica”, freqüentemente tida por um indício positivo de 12 16 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Alfredo Wagner Berno de Almeida Tem-se, pois, uma contradição básica qual seja: de um lado a posição norteamericana, secundada pela Suíça e refletida na OMC, que pretende que os grandes laboratórios de biotecnologia patenteiem todas as espécies e fórmulas que possam ser usadas na transformação industrial destas espécies nativas. De outro lado, tem-se, além de nações relutantes, a posição resoluta das cooperativas agroextrativistas, das associações artesanais, dos movimentos sociais, das organizações ambientalistas e dos pajés de que os conhecimentos tradicionais, inclusive os considerados folclóricos, são fatores de uma cultura específica que não são passíveis de patenteamento por grandes laboratórios, porquanto se trata de conhecimentos centenários e/ou imemoriais que não podem ser regulados por patentes ou a elas reduzidos. Trata-se de uma luta entre a liberdade de uso dos conhecimentos tradicionais, pelos próprios agentes sociais que os produzem e reproduzem, e o controle absoluto destes conhecimentos pretendido por empresas transnacionais e pelos laboratórios de biotecnologia. Tais laboratórios pretendem levar o patenteamento ao máximo, estendendo-o a todo e qualquer conhecimento dos recursos naturais. Está-se diante de uma modalidade de “homogeneização jurídica” que subjuga dispositivos jurídicos nacionais e visa disciplinar, pela subordinação jurídico-formal, as práticas e os saberes de pajés, pajoas, benzedeiras, curadeiras e demais conhecedores de ervas com função medicinal e ritual. Tal episódio consiste num novo capítulo da chamada “guerra ecológica”, referida a trágicas disputas por recursos naturais estratégicos, porquanto afeta a combinação estável de recursos que tradicionalmente têm assegurado a sobrevivência de índios e camponeses. Isto é, além de ameaçar as condições de reprodução social e física das chamadas “populações tradicionais”, expropria seus conhecimentos e saberes, inviabilizando sua reprodução cultural e desestruturando fatores de identidade étnica. Este processo de expropriação se traduz em conflitos diretos na esfera circulação e torna-se explícito em diferentes circuitos de mercado. “gglobaliza lobalization tion”, esse “projeto de sociedade” que serve os dominantes, isto é, os grandes investidores que, situandotion se acima dos Estados, podem contar com os grandes Estados e em particular com o mais poderoso dentre elês política e militarmente, os Estados Unidos, e com as grandes instituições internacionais, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional,Organização Mundial do Comércio, controladas por eles, para garantir as condições favoráveis à condução de suas atividades econômicas” (BOURDIEU, 2001, p. 107) Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 17 Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais”... O mercado segmentado versus o mercado de “commodities” As chamadas “populações tradicionais”, através de suas entidades representativas e de diversos movimentos sociais, apregoam que este conhecimento intrínseco não pode ser assim expropriado, não pode ser subdividido e retalhado entre laboratórios, desagregando os domínios de saberes em que são socialmente produzidos. O esfacelamento não apenas colide com processos de afirmação étnica como pode destruir as unidades culturais e ter, por extensão, um impacto negativo sobre centenas de experiências produtivas, de povos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhos e pequenos produtores agroextrativistas em toda a Amazônia. Além dos aspectos simbólicos têm-se os aspectos econômicos desta contradição que apontam para dois circuitos de mercados que se opõem frontalmente: o mercado segmentado versus o mercado de “commodities”. A noção de “commodity” vinculada a produtos homogêneos, produzidos e transportados em grandes volumes, por grandes empreendimentos tanto no setor mineral (ferro, ferro-gusa, bauxita, estanho, manganês...) quanto na extração madeireira 14 , na coleta de plantas com propriedades medicinais e nos produtos industriais (soja, óleos vegetais, celulose ...), contrasta e colide com a produção baseada na extração através do trabalho familiar, em cooperativas de produtores diretos, de base artesanal ou que incorpora tecnologia simples, agregando valor aos produtos da floresta, e que é comercializada em circuitos específicos de mercado. Reforça o mercado de “commodities” a implantação de agroindústrias, de indústrias agroflorestais, incluindo-se as de papel e celulose, e de bioindústrias, a 14 Registra-se atualmente uma ácida discussão sobre espécies que estariam em extinção como o mogno que foi exportado no decorrer de 2000 para 96 empresas estrangeiras de 27 países diferentes. “Os quatro maiores compradores, segundo o gerente do Greenpeace, são Aljoma Lumber, Dan K. Moore Lumber, DLH Nordisk e Thompson Mahogany”(FERREIRA, Renata“Preço do mogno pode subir”. Gazeta Mercantil Mercantil, 27 de novembro de 2002 pág. C-04). Uma das exigências relativas ao mogno é que sejam implantados projetos de manejo, com plantio aprovado pelos órgãos oficiais competentes e com a cota de retirada de madeira determinada pelo IBAMA.O manejo florestal na Amazônia, embora tenha se constituído numa exigência legal a empresas de papel e celulose, guzeiras etc, praticamente não existia até 1994. Em 2001 se limitava a 300 mil hectares, o que evidencia a pouca importância que lhe vem sendo atribuída por empresa mineradoras e madeireiras. Por outro lado, no que diz respeito à ação governamental tem-se o seguinte quadro prospectivo: “Os planos oficiais para a preservação dos recursos naturais amazônicos incluem a criação até 2010 de 50 milhões de hectares de novas florestas nacionais (Flonas), que são unidades de conservação de uso sustentável, com o objetivo de produzir bens (produtos madeireiros e não madeireiros) a ao mesmo tempo manter os serviços ambientais. Outros 25 milhões de hectares deverão ser destinados a parques e reservas biológicas, ampliando a área de proteção na região dos atuais 3,25% para cerca de eta Mer cantil 10% do território”. (PINTO, Raimundo. “A Amazônia explora a sua biodiversidade”. Gaz Gazeta Mercantil cantil, 10 de dezembro de 2002). 18 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Alfredo Wagner Berno de Almeida expansão das usinas de ferro-gusa e empreendimentos mineradores que fazem dos recursos naturais uma atividade comercial em larga escala. Um dos exemplos mais conhecidos concerne à rápida e desordenada expansão do plantio de soja no Sul do Maranhão, no Mato Grosso e em Rondônia. Uma outra situação compreende a ampliação das usinas guzeiras em Marabá (PA) e Açailândia (MA), consumindo carvão vegetal de florestas nativas em proporções cada vez maiores 15 . Outros exemplos destes “grandes projetos” referem-se aos milhares de hectares incorporados por indústrias de papel e celulose no Maranhão (baixo Parnaíba e Imperatriz) e no Amapá e o descontrole das atividades mineradoras que já adentraram terras indígenas16 , violando princípios constitucionais, uma vez que a exploração depende de regulamentação do Congresso Nacional. No que tange à questão do patrimônio genético ora abordada vale citar a proposta de utilizar a biodiversidade como matéria-prima, estabelecendo “um pólo bioindustrial que utilize fármacos e extratos fitoterápicos de plantas nativas” na Zona Franca de Manaus (PINTO, 2002). O autor observa que “Para dar apoio a esta meta, acaba de ser inaugurado em Manaus o Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), que vai gerar tecnologias que agreguem valor às matérias-primas da biodiversidade amazônica. Trata-se de um setor que movimenta cerca de US$ 195 bilhões anuais no mercado mundial”. (PINTO, 2002). Nada assegura, entretanto, que tal iniciativa seja reflexo de uma política industrial dirigida especificamente para o patrimônio genético, buscando recuperar Segundo documentos do Programa Nacional de Florestas (PNF) do Ministério do Meio Ambiente, a recomposição das áreas plantadas para uso industrial e energético da madeira encontra-se abaixo do necessário. “Segundo estimativas apresentadas ao Banco Mundial pelo Programa Nacional de Florestas a média de replantio de áreas desde 1996 não ultrapassa os 250 mil hectares/ano, quando seriam necessários 630 mil hectares/ano”. Em outras palavras o Brasil estaria a caminho de um Gaz eta Mer cantil apagão florestal conforme sublinha Leonor Bueno em “Apagão florestal vem aí, aler ta PNF” (Gaz Gazeta Mercantil cantil, 31 de julho de 2002). 16 Para efeito de ilustração, cabe citar que grande parte dos 2,6 milhões de hectares das terras dos Cinta-larga, em Rondônia e Mato Grosso, foi devastada por garimpeiros em busca de diamantes. Compradores estrangeiros, oriundos de Israel e da Bélgica, foram detidos em Juína (MT), sob suspeita de contrabando. O contrabando explica a enorme discrepância entre a expor tação legal de diamantes de gemas, que segundo o Serviço de Comércio Exterior (SECEX) no ano passado foi de apenas 9.096 quilates, e o destaque que as pedras brasileiras começam a ganhar no mercado externo. De acordo com o Mining Journal Journal, publicação especializada da Inglaterra que mede a comercialização de pedras preciosas na Europa, a produção de diamantes de gema no País foi de 900 mil quilates, no mesmo período, comercializados a US$ 41 milhões.Esse número colocou o Brasil como o décimo maior produtor de diamantes do mundo. Basta fazer a conta – 900 mil quilates menos nove mil – para concluir que 890 mil quilates saíram ilegalmente do País em 2001. “Está claro que a amior parte desses diamantes sai do País contrabandeada” afirma o procurador da República Pedro Taques que coordena uma força tarefa da PM que investiga o contrabando de diamantes em terras indígenas” (RIBEIRO JR., Amaury. A Nova Maldição. Isto É , 4 de dezembro de 2002). 15 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 19 Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais”... o conhecimento indígena e valer-se das suas potencialidades econômicas. A Fundação Getulio Vargas-FGV desenvolveu, por solicitação da SUFRAMA, um estudo sobre as potencialidades econômicas da Amazônia Ocidental e enfatizou os seguintes produtos de mercado amplo: amido de mandioca, palmito de pupunha, frutas tropicais (notadamente açaí e cupuaçu), extração de safrol da pimenta-longa, madeira serrada (pré-beneficiada), madeira laminada e compensada, piscicultura, castanhado-brasil e turismo ecológico (GAZETA MERCANTIL, de 10 de maio de 2002). Os prognósticos de diferentes instituições assinalam que “antes de 2010 a madeira tropical se transformará na principal “commodity” da Amazônia brasileira” (GAZETA MERCANTIL, de 10 de maio de 2002) 17. Os movimentos sociais e a contra-estratégia Quais os recursos que as entidades ambientalistas e os movimentos sociais com suas respectivas experiências localizadas contam hoje no âmbito deste enfrentamento tão desigual? A tentativa de resposta nos impele a refletir sobre a necessidade de repensar a questão ambiental, envolvendo além de práticas colidentes de agentes sociais diferenciados, o reconhecimento daquelas dimensões simbólicas peculiares nas relações destes agentes com os recursos naturais. Este ato de repensar aponta para novas modalidades de interpretação sobre o acesso, o uso e a apropriação, temporários ou permanentes, dos recursos hídricos, florestais e do solo, bem como para aspectos conflitantes em face das políticas governamentais. Transcendendo a uma noção estrita do recurso básico, a terra, o esforço de reconceituação incorpora ademais fatores étnicos e político organizativos, abarcando distintos atos de mobilização que denotam consciência ecológica. Deste modo a questão ambiental não pode mais ser tratada como uma questão sem sujeito. Não se restringe ao contorno de um quadro natural isolado, pensado preponderantemente por botânicos e biólogos. E quem seriam os sujeitos? Os sujeitos desta questão 17 No dia 10 de maio de 2002 foi realizado no Renaissance Hotel em São Paulo (SP), sob patrocínio da SUFRAMA e do Ministério do Desenvolvimento, com realização da Gazeta Mercantil, o evento intitulado: “Seminário sobre oportunidades de negócios na Amazônia Ocidental e Amapá” visando atrair investidores e empresários do Centro-Sul do País. 20 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Alfredo Wagner Berno de Almeida ambiental na Amazônia tem se constituído na última década e meia. Eles não têm existência individual ou atomizada. A construção destes sujeitos é coletiva e se vincula ao advento dos vários movimentos sociais que passaram a expressar as formas peculiares de uso e de manejo dos recursos naturais por povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, ou seja pelas denominadas “populações tradicionais”. Constata-se nos meandros dos conflitos sócio-ambientais decorrentes uma desnaturalização do termo “população” que aqui contrasta com a noção de “populações biológicas”. O advento nesta última década e meia de categorias que se afirmam através de uma existência coletiva, politizando nomeações da vida cotidiana tais como: índios, seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhos, castanheiros, pescadores, extratores de arumã e quilombolas, dentre outros, trouxe a complexidade de elementos identitários para o campo de significação da questão ambiental. Registrou-se uma ruptura profunda com a atitude colonialista homogeneizante, que historicamente apagou as diferenças étnicas e a diversidade cultural. O sentido coletivo destas autodefinições emergentes impôs uma noção de identidade à qual correspondem territorialidades específicas, cujas fronteiras estão sendo socialmente construídas e nem sempre coincidem com as áreas oficialmente definidas como reservadas. Estáse diante de um processo de territorialização complexo em que o raio de abrangência dos movimentos sociais não se confunde com as manchas de incidência de espécies identificadas cartograficamente, ou seja, a atuação do Conselho Nacional dos Seringueiros-CNS, por exemplo, não se acha confinada nas regiões de incidência de seringais. Com propósito de síntese, pode-se adiantar que antes da questão ambiental, através da categoria terra, recurso básico, era considerada indissociável dos problemas agrários e agora pela noção de território, revela-se dinamicamente atrelada a fatores étnicos e afirmativos de uma identidade. A construção de sujeitos sociais indica para uma existência coletiva objetivada numa diversidade de movimentos organizados com suas respectivas redes sociais, redesenhando a sociedade civil da Amazônia e impondo seu reconhecimento aos centros de poder. Estas redes emergem para além de entidades ambientalistas ou de defesa ecológica, abrangendo sobretudo organizações locais. Já não é mais possível dissociar a questão ambiental das associações voluntárias e entidades da sociedade civil, com raízes locais profundas, que estão se Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 21 Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais”... tornando força social tais como: a União das Nações Indígenas (UNI), a Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira (COIAB) e toda a rede de entidades indígenas a ela vinculada, que alcança 75 organizações e 165 povos indígenas; o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), o Conselho Nacional dos Seringueiros, o Movimento Nacional dos Pescadores (MONAPE), o Movimento dos Atingidos de Barragens (MAB), a Associação Nacional das Comunidades Remanescentes de Quilombo e a rede de entidades a ela vinculada no Maranhão (ACONERUQ) e no Pará (ARQMO), e a Associação dos Ribeirinhos da Amazônia. Há outras organizações incipientes que estão se estruturando a partir de situações de conflito localizadas como o Movimento dos Atingidos pela Base de Lançamento de Alcântara, a partir de 2001, e a Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (COAPIMA), criada em setembro de 2003 por mais de 60 lideranças Guajajara, Krikati, Gavião, Canela, Awá-Guajá e Kaapor. Inclua-se também as mobilizações crescentes em face da construção do gasoduto de Coari (AM). Atreladas a elas tem-se outras modalidades organizativas que também devem ser mencionadas tais como: a)entidades ambientalistas, que também buscam sistematizar um conhecimento mais detido sobre a região amazônica; b) o novo sindicalismo dos trabalhadores rurais proveniente das antigas “oposições sindicais” que hoje designam a chamada “agricultura familiar”; e c) as experiências de cooperativas agroextrativistas e de projetos de assentamento, principalmente no Acre, Amapá, Rondônia, Tocantins e Maranhão; d) o agrupamento de índios de diferentes etnias, que se encontram em áreas metropolitanas, numa só entidade. Uma ilustração concerne ao Conselho dos Índios de Belém, que inclusive tem representação no Congresso da Cidade, outra ilustração aos índios que residem em Manaus. Em ambas situações participantes destas organizações podem ser encontrados comercializando produtos fitoterápicos. No caso de Belém há condições de possibilidade, através do Congresso da Cidade, de uma articulação destes movimentos com a associação dos feirantes do Ver-o-Peso que consiste na maior praça de mercado de fármacos e saberes tradicionais da Amazônia. A expressão destas múltiplas redes ultrapassa a mil organizações e tem, inclusive, levado os organismos internacionais a estimularem a sua institucionalização. 22 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Alfredo Wagner Berno de Almeida Não é por acaso que tem sido financiados pela cooperação internacional, nos últimos onze anos, inúmeros projetos de “fortalecimento institucional”. O maior deles data de 1991-1992 e se refere à constituição do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), como uma rede de organizações que acompanha as iniciativas do Projeto Piloto de Preservação das Florestas Tropicais-PPG-7. Esta rede hoje abrange 513 organizações18 e paralelamente à consolidação institucional estimula experiências localizadas através dos Projetos Demonstrativos (PDA) e, mais recentemente, os Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas (PDPI). Além de se caracterizar por práticas de mobilização contra a devastação das florestas, a expropriação dos meios de produção e a usurpação dos “saberes nativos”, a contra-estratégia busca consolidar a consciência ecológica, incorporando-a à identidade coletiva dos movimentos sociais. Às lutas pelo livre acesso das chamadas “populações tradicionais” aos recursos naturais acrescente-se aquela de uma nova geração de índios, quilombolas e seringueiros, que migrou para as cidades concluindo cursos de formação superior e que agora se voltam para aprimorar seus estudos na questão do patenteamento. “Para saber a melhor forma como isso pode ser feito e quais seus direitos, um seringueiro, um pajé, uma advogada índia – a primeira a se formar no País ---, uma juíza negra, representando os direitos das mães-de-santo da Bahia e advogados, representantes de comunidades indígenas, estão desde segundafeira recebendo noções sobre patentes, marcas e direitos autorais na sede do Instituto Nacional de Propriedade Intelectual(INPI) no Rio”. (CONCEIÇÃO, Cláudio R. Gomes. “Indios se interessam por patentes”. Gazeta Mercantil, 8 de maio de 2002). Outras atividades de aprimoramento concernentes à titularidade de “conhecimentos tradicionais” e sua consolidação compreendem seminários, exposições e intercâmbio de experiências e instalação de pequenos empreendimentos industriais, envolvendo representantes dos diferentes movimentos e das entidades ambientalistas 19 . Em todas estas situações a contra-estratégia reforça as identidades políticas e não pode De acordo com a publicação do GTA intitulada Pelo futuro da Amazônia Amazônia, conjunto de posições tornadas públicas quando da realização da Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável (WSSD 2002) ou Rio + 10, a rede GTA é “integrada por 513 organizações sociais e populares entre associações de ribeirinhos, castanheiros, pescadores, seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, povos indígenas, agricultores familiares, entidades ambientalistas, de assessoria e de pesquisa” (GTA, 2002, p. 6). 19 Para efeito de evidenciar a intensificação destas práticas vale citar os informes do GTA que noticiam: a) a realização da oficina “Conhecimentos tradicionais:proteção, acesso e repartição de benefícios” em Rio Branco (AC) entre 2 e 4 de outubro de 2003; b) a “Mostra de empreendedoras rurais da Amazonia”, promovida pelo MMNEPA, GTA,FETAGRI e GTNA, congregando 90 experiências realizadas por grupos rurais de mulheres não somente agricultoras, mas também extrativistas, quilombolas e indígenas, realizada em Belém entre 1 e 3 de outubro de 2003; c) Embrapa e FUNAI devolveram milho indígena a 18 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 23 Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais”... ser dissociada do controle efetivo dos meios de produção combinado com a aplicação dos “saberes práticos”. Os movimentos sociais e o processo de consolidação de territorialidades específicas As identidades peculiares (seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhos, quilombolas) correspondem territorialidades específicas. Tais territorialidades, como já foi sublinhado, não equivalem exatamente às manchas de incidências de espécies cartografadas no zoneamento ecológico-econômico. Para efeito de exemplo, observe-se que a área de atuação do movimento das quebradeiras de coco babaçu não corresponde de maneira precisa àquela de ocorrência dos babaçuais estimada em 18 milhões de hectares. O mesmo se pode dizer dos chamados castanheiros. A territorialidade que lhes é correspondente não equivale à superfície do Polígono dos Castanhais, cujas estimativas variam entre 800.000 e 1.200.000 hectares. No caso dos movimentos indígenas seu raio de abrangência não corresponde exatamente à extensão das terras indígenas na Amazônia. Haja vista que há entidades que agrupam indígenas que trabalham e têm morada habitual nas capitais, Belém e Manaus, rompendo com os dualismos rural/urbano e aldeia/cidade. A existência do recurso natural, em termos botânicos e geológicos, e a sua classificação oficial, por si só, não constituem critérios definidores de um determinado grupo ou de seu respectivo território. Além disto, os mesmos agentes sociais podem ser encontrados em mais de um movimento, tais como castanheiros e quebradeiras de coco babaçu que se filiaram ao Conselho Nacional dos Seringueiros ou atingidos por barragens que se vinculam a diferentes os movimentos. Há um processo de territorialização comunidades Xavante. O milho pertence às variedades Nodzob que foram perdidas com a orientação de técnicos agrícolas para o uso de sementes comerciais. “O milho foi recuperado do banco de sementes, foi cultivado no campo experiemental de Nova Porteirinha (MG) antes de ser devolvido aos Xavante. Não se tem ainda informações sobre o tipo de cooperação técnica e proteção aos conhecimentos que foi utilizado nessa cooperação” (GTA – Info 30 setembro de 2003); d) o plantio e processamento do caju e outros frutos do cerrado através da implantação de uma indústria, controlada por cooperativas agroextrativistas, em São Raimundo das Mangabeiras, que será inaugurada pelo líder camponês Manuel da eta Mer cantil Conceição (cf. FILGUEIRAS, Otto. “Fábrica do Sonho no Sertão”. Gaz Gazeta Mercantil cantil, 11 e 12 de outubro de 2003). 24 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Alfredo Wagner Berno de Almeida que é dinâmico e não necessariamente composto de áreas contíguas, que é construído através das ações sucessivas de unidades de mobilização. 20 Os grupos que se objetivam em movimentos sociais se estruturam também para além de categorias censitárias oficiais. Importa distinguir a noção de terra daquela de território e assinalar que as categorias imóvel rural, usada pelo INCRA, e estabelecimento, acionada pelo IBGE, já não bastam para se compreender a estrutura agrária na Amazônia. Os critérios de propriedade e posse não servem exatamente de medida para configurar os territórios ora em consolidação na Amazônia, haja vista que no caso do “babaçu livre” os recursos são tornados abertos e de uso comum, embora registrados como de propriedade de terceiros. 21 Os tipos de manejo e de uso se sobrepõem à propriedade garantidos pela mobilização política dos movimentos sociais. Tal mobilização apóia-se também no repertório de saberes específicos próprios das realidades localizadas. Menosprezar isto pode gerar impasses como estes que discutem genericamente a “ocupação humana em áreas de preservação ambiental” ou outros tais como: as RESEX permanecem há uma década sem que tenha sido concluída a regularização fundiária e sem que haja perspectiva de dirimir os litígios a curto prazo. De igual modo parques, reservas e florestas nacionais encontram-se intrusados, notadamente por madeireiras e agropecuárias, sem que haja um mecanismo capaz de garantir de maneira efetiva o desintrusamento. Um dos elementos centrais desta discussão é que hoje na Amazônia não se pode mais pensar no problema do ecossistema através da categoria terra simplesmente. Tem-se que considerar as vantagens teóricas de pensá-lo a partir de um processo de territorialização, pois esta categoria envolve o sujeito da ação, implicando numa construção social. Bandeiras de luta de preservação ambiental, mobilizações que se Sobre o conceito de unidades de mobilização, consulte-se ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de. “Universalização e Localismo – ba te movimentos sociais e crise dos padrões tradicionais de relação política na Amazônia”. CESE-De CESE-Deba bate te, n. 3-Ano IV, Maio de 1994, p. 21-41. 21 A mobilização das quebradeiras de coco babaçu tem levado, desde 1997, inúmeras Câmaras de Vereadores do Vale do Mearim a aprovarem leis municipais que garantem a preservação e o livre acesso aos babaçuais em regime de economia familiar. Tais leis que asseguram o livre acesso aos babaçuais, separam a propriedade do solo daquela do uso da cobertura vegetal, permitindo às quebradeiras adentrarem em terras de terceiros para efetuar a coleta e a quebra da amêndoa do babaçu. O município que primeiro logrou êxito na aprovação foi o de Lago do Junco com a Lei Municipal n. 005 de 1997. Atualmente este município conta em sua representação com uma vereadora quebradeira de coco: D. Maria Alaídes de Souza. Além deste tem-se a Lei Municipal n. 32 de 1999, aprovada pela Câmara de Lago dos Rodrigues e a Lei Municipal n. 255 também de 1999, aprovada pela Câmara Municipal de Esperantinópolis. Além do livre acesso tais leis proíbem derrubadas de palmeiras babaçu, cortes de cachos e uso de agrotóxicos em conformidade com a Lei Estadual n.4. 734 de 1986,que também consistiu numa conquista. 20 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 25 Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais”... contrapõem aos desmatamentos e instrumentos legais no plano municipal para garantir áreas reservadas constituem alguns dos elementos deste processo de territorialização. São os seringueiros, com seus empates e outras formas de impedir o desmatamento, que estão construindo o território em que a ação em defesa dos seringais se realiza. São os atingidos por barragens e os ribeirinhos que estão defendendo a preservação dos rios, igarapés e lagos. E assim sucessivamente: os castanheiros defendendo os castanhais, as quebradeiras os babaçuais, os pescadores os mananciais e os cursos d’água piscosos, as cooperativas agroextrativistas os seus métodos de processamento da matéria-prima coletada. De igual modo os pajés, as pajoas, os curandeiros e os benzedores acham-se mobilizados na defesa das ervas aromáticas e medicinais, dos extratos, das resinas e dos saberes que as transformam. De maneira resumida, pode-se dizer que esta forma de pensar a Amazônia abre uma nova possibilidade, que transcende àquela idéia de imaginar estes sujeitos da ação ambiental como guardiães da floresta simplesmente ou, numa visão com pretensão de racionalidade, como fazendeiros ambientais. Eles são mais que guardiães ao acumularem um capital de conhecimentos localizados (uso centenário, manejo em contínua transformação, processamento, transformação) e ao disporem de quadros técnicos (Ong’s, universidades) como assessores permanentes produzindo um conhecimento cumulativo e em permanente transformação. Assim, eles não podem ser mais imaginados, numa perversa divisão de trabalho, como guardando a floresta ou como preservando-a para ser usada pelos laboratórios de biotecnologia. O conhecimento científico encontra-se também nas suas experiências transformadoras – seja nas cooperativas, nas unidades de processamento e beneficiamento – , nas suas práticas, e este fato estabelece uma disputa teórica e conceitual frente a um conceito positivista de “ciência”, engendrado pela dominação. Em decorrência existe uma forte articulação entre o conhecimento científico – produzido por intelectuais que intervêm numa luta política seus critérios de competência e saber acadêmicos – e os movimentos sociais, que não pode mais ser facilmente quebrada. Pode-se pensar numa nova divisão do trabalho político em face da questão sócio-ambiental, combinando ciência e disciplinas militantes na acumulação de um capital de conhecimentos. Qualquer proposta de “alternativa de desenvolvimento” ou de “desenvolvimento local sustentável” passa, portanto, por este saber acumulado, pelas 26 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Alfredo Wagner Berno de Almeida formas de agregação de valor dele derivadas, e por um novo gerencialismo nas associações e cooperativas agroextrativistas, que incorpora fatores étnicos, de identidade, de gênero e de ênfase no entendimento dos sujeitos da ação.Não é por acaso que se recorre agora à autoridade dos pajés. Eles não controlam só o sagrado, eles controlam também os saberes que orientam as relações com os recursos naturais. Seriam o pano de fundo das relações antrópicas. Sabem transformar as ervas, sabem fazer infusões, conhecem os santuários e ademais não revelam publicamente seus segredos, protegendo-os para assegurar sua reprodução dentro do próprio grupo. A noção de direito autoral aqui é tradicionalmente resguardada pelo “segredo” da vida sacerdotal de funcionários religiosos dos próprios povos indígenas ou de quilombolas e extrativistas. À OMPI, em princípio, se põe o reconhecimento destas formas nativas de direito consuetudinário que tem no “segredo” da fórmula uma expressão de “propriedade intelectual”, acatada por diferentes povos e etnias. A forma consuetudinária expressa uma modalidade de direito autoral que luta para ser reconhecida. Os desdobramentos destes pontos para discussão aqui apresentados conduzem às seguintes indagações: em que planos pode-se articular o conhecimento científico, crítico e responsável, com o “conhecimento nativo” dos recursos naturais da região amazônica? Em que medida as experiências de produção em cooperativas agroextrativistas, observando os ditames das organizações ambientalistas, podem garantir a consolidação dos chamados “saberes tradicionais”? Quais as condições de possibilidade destes saberes virem a ser incorporados e “protegidos” por políticas governamentais num quadro em que prevalece a idéia de mercado aberto, no qual a lógica das “commodities” prepondera, e em que a homogeneização dos produtos da floresta tornou-se um objetivo das estratégias empresariais? A nossa capacidade de respondê-las pode significar um meio de superar os entraves por elas colocados. Referências ALMEIDA, A. W. B. 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Gazeta Mercantil, 17 e 18 de novembro de 2001. 28 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Alfredo Wagner Berno de Almeida Tradição, modernidade e políticas públicas no alto Rio Negro Maria Luiza Garnelo Pereira 1 Resumo Este trabalho, desenvolvido na região do alto rio Negro, analisa as concepções políticas de lideranças indígenas Baniwa, sobre suas próprias práticas e as de instituições do mundo não indígena, refletindo sobre a polifonia discursiva de agentes de políticas públicas, que estabelecem interações com o movimento indígena. Palavras-Chave Saúde, diferenças étnicas e mundo indígena. Abstract This work, developed in the the region of the high Negro River, analyses the polithical conceptions of the leaders of the Baniwa indians, about their owns practises and over the non-indian world, thinking over the poliphony of speeches from the agents of public polithics, that has interactions with the indian movement. 1 Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Amazonas. Coordenadora do Núcleo de Estudos de Saúde Pública. Projeto Rede Autônoma de Saúde Indígena/RASI, da Faculdade de Ciências da Saúde. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 29 Tradição, moder nidade e políticas públicas no alto Rio Negro Keywords Health, differentiated ethnics, indian world. O contexto da pesquisa O trabalho vem sendo desenvolvido no município de São Gabriel da Cachoeira, alto rio Negro; esta região, conhecida na geopolítica brasileira como cabeça do cachorro, tem sido, nos últimos anos, palco de importantes embates entre projetos nacional-desenvolvimentistas, ambientalistas, grupos indígenas e instituições transnacionais que conduzem a globalização das relações planetárias. O contexto político geral da região agrupa os militares com o Sistema de Vigilância da Amazônia – SIVAM e o revigorado Calha Norte, garimpeiros, entidades ambientalistas e de defesa da causa indígena, missões religiosas, projetos governamentais de desenvolvimento regional e outros. No campo sanitário, temos a recente movimentação do Ministério da Saúde para a implantação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEI,2 uma tentativa de prover atenção à saúde de grupos etnicamente diferenciados, e de resolver uma longa disputa com a FUNAI pela condução dos rumos das políticas de atenção à saúde indígena. A movimentação em torno dos DSEI gerou, além de um incremento nas tensões e interações políticas, a celebração de relações conveniais entre um órgão de governo, a Fundação Nacional de Saúde e entidades indígenas. Os convênios, celebrados não apenas no alto rio Negro, inauguram uma forma de legitimação do movimento indígena por setores do governo, que comporta inclusive o repasse de recursos públicos para entidades indígenas, algo inusitado no Brasil. Partindo do campo específico da saúde, buscamos explorar a interface entre o mundo indígena, com suas formas próprias de organização social e as lutas políticas travadas junto à sociedade nacional e global, na busca do exercício de direitos políticos específicos de grupos culturalmente diferenciados e de acesso aos direitos de cidadania e bens sociais, entre os quais se destaca a saúde. Tais lutas, ainda que 2 Distritos Sanitários Especiais Indígenas são formas de organização de microssistemas de saúde de base local e dirigidos especificamente à população indígena residente em sua área de abrangência. 30 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Maria Luiza Garnelo Pereira travadas no âmbito das instituições e fóruns decisórios não indígenas, são centradas na idéia de direito à diferença étnica e são profundamente matizadas pelo modo indígena de vida, que parametra e orienta as representações e práticas sociopolíticas dessas lideranças, seja no campo da saúde, principal foco de interesse deste texto, ou nas outras ações realizadas no âmbito mais geral do movimento indígena. A análise das estratégias de atuação dos atores políticos indígenas, no contexto de lutas intra e interétnicas, evidencia um manejo da identidade étnica, em que a adoção de uma condição de “índio genérico” garante unidade política na atuação de representantes de diferentes etnias, autodenominados lideranças indígenas,3 e amplia sua capacidade de negociação junto aos poderes constituídos. Embora a diferença étnica nunca se apague de fato, sua negação temporária facilita alianças com entidades/instituições globalizadas, contribuindo para consolidar e ampliar sua intervenção no sistema de saúde e nas políticas indigenistas como um todo. Paradoxalmente, este mesmo movimento gera uma revigoração da etnicidade, e uma busca/reconstrução, de sinais diacríticos de uma indianidade antes pouco valorizada. Uma das idéias centrais aqui desenvolvidas é que as características da organização social e cosmológica do grupo étnico estudado, influenciam decisivamente nas formas de atuação de suas organizações indígenas,4 o que implica propor que uma compreensão mais adequada da dinâmica de atuação do movimento indígena rio-negrino exige um entendimento das formas de exercício do poder político e simbólico da sociedade que deu origem a cada organização indígena que o compõe. O grupo investigado, localmente conhecido como Baniwa, pertence à família lingüística Aruak e habita as margens dos rios Içana e Aiari, no território brasileiro. Tal grupo, composto por aproximadamente 4.000 indivíduos, distribuídos em 97 aldeias, subdivide-se no Brasil em quatro fratrias exogâmicas entre si, cada uma das quais congregando diversos sibs que interagem através de relações hierárquico-rituais, Na linguagem corrente no alto rio Negro, a denominação de liderança indígena costuma aplicar-se a vários tipos de agentes políticos, tais como chefias de aldeia conhecidas como capitães, líderes de organizações indígenas de base, isto é, de âmbito local e dirigentes da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro/FOIRN. 4 Organizações indígenas são fenômenos recentes na sociedade brasileira, existindo poucos estudos sobre as mesmas. Ricardo (1995) e Monteiro (1996) estudaram o tema, no âmbito do Brasil, com certa ênfase em relação ao alto rio Negro. Dentre as principais características destas entidades observa-se a utilização, pelos índios, de estratégias organizativas próprias das sociedades nacionais, assemelhadas aos sindicatos. Sua direção costuma ser exercida por pessoas jovens cujo foco principal de luta se dá no contexto das relações interétnicas na busca de maior autonomia de decisão na política indigenista e na conquista de direitos sociais. 3 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 31 Tradição, moder nidade e políticas públicas no alto Rio Negro centradas na consangüinidade como eixo de reprodução/manutenção da cultura Baniwa e na afinidade/alteridade por eles concebida, por fator essencial na transformação da mesma. Dentre os membros deste grupo, os dados sobre o movimento indígena, biomedicina e organização de serviços da rede de saúde, foram coletados através de observação participante de eventos políticos e sanitários ocorridos na área Baniwa nos últimos quatro anos e de entrevistas aplicadas a informantes Baniwa dos rios Içana e Aiari, afluentes do rio Negro, dos sibs Kadapolitana, Dzawenai, Walipere Dakenai, Komadaminannai e Kapithiminannai e Hohodene. As informações sobre as organizações indígenas de base 5 foram coletadas também junto às diretorias e filiados de cinco das nove entidades atuantes na região. Referencial teórico A idéia de cultura, caracterizada por Sahlins (1997), como organização da experiência e da ação humanas por meios simbólicos é um conceito central que perpassa toda a discussão do tema, e a partir do qual buscaremos articular e harmonizar as diferentes contribuições teóricas utilizadas. Na tentativa de evitar um uso instrumental da noção de cultura, foram explorados os espaços de uso ressignificado das normas culturais pelos sujeitos, rejeitando uma abordagem dicotômica entre tradicional e moderna; os pressupostos adotados neste trabalho são mais bem expressos pelas palavras de Sahlins, para quem, “a tradição consiste nos modos distintos como se dá sua transformação: a transformação é necessariamente adaptada ao esquema cultural existente” (1997, p. 62). A partir dessas premissas, buscou-se entender como os povos indígenas rio-negrinos vêm desenvolvendo estratégias específicas de incorporação de elementos da cultura mundializada ao seu próprio sistema de mundo. Tais propostas são congruentes com investigações recentes de Terence Turner (1992 e 1993), sobre as interações entre as produções socioculturais Kayapó e aquelas trazidas pelo contato interétnico; em tais pesquisas o autor demonstra que este grupo indígena vem efetuando um “processo de recolonização” dos saberes e artefatos 5 Organizações de base são entidades que congregam um número determinado de aldeias e efetuam uma intermediação entre o plano local e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro/FOIRN, entidade que articula politicamente todo o movimento indígena no alto rio Negro. 32 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Maria Luiza Garnelo Pereira tecnológicos do mundo não indígena, utilizando-os como forma de revitalização da etnicidade. Bourdieu (1989 e 1996), ao interrogar-se sobre as condições sociais que tornam possível a apreensão do mundo, evidencia que, dentre as diversas formas de conceber e manipular a vida social, o Poder Simbólico capaz de atribuir sentidos ordenados ao mundo social, é uma das vias preferenciais de transformação da realidade, constituindo redes de sentido que operacionalizam uma simbolização capaz de constituir e transformar esta mesma realidade. A proposta de Bourdieu, que adotaremos aqui, é aceitar os símbolos por instrumentos de poder, de comunicação e de transmissão de conhecimentos, mas sem ignorar, como faz o interacionismo simbólico, as interveniências do meio social, onde tais símbolos são gerados, reproduzidos e transformados. O autor caracteriza o campo da produção simbólica como um microcosmo onde grupos sociais exercitam a capacidade de “fazer ver e fazer crer”, isto é, de fazer valer, para os outros, a sua própria visão de mundo, intervindo desta maneira sobre a sociedade; o poder simbólico é uma forma transfigurada de outras manifestações de poder, partilhando com elas a capacidade de produzir efeitos e transformações reais no contexto social onde é exercido. A partir das premissas dadas por Bourdieu, tentaremos apreender os modos como os atores sociais 6 em pauta capturam o real e como reconstroem no cotidiano das organizações indígenas. As lutas travadas em torno da identidade étnica podem ser caracterizadas como um caso particular de luta pela possibilidade de dar a conhecer, fazer reconhecer e legitimar sentidos/visões específicos de mundo, produzidos por grupos culturalmente diferenciados, em luta para instituir suas categorias de percepção e apreciação da realidade como algo reconhecível pelo todo social (BOURDIEU, 1996). O que está em jogo aqui é um tipo de luta simbólica na qual as lideranças indígenas esforçam-se por legitimar uma definição identitária capaz de anular o estigma e a exclusão. É através de atividades eminentemente simbólicas que o movimento indígena vem intervindo na cena social, buscando reverter desvantagens sociais e econômicas que lhes foram impostas no contato interétnico. Em relação aos seus próprios liderados, as lutas simbólicas das lideranças comportam também 6 O termo está sendo usado para caracterizar os sujeitos que estabelecem relações capazes do produzir o campo políticosanitário que tentamos analisar. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 33 Tradição, moder nidade e políticas públicas no alto Rio Negro uma reconstrução criativa do passado e presente étnicos, que eles tentam legitimar através de suas práticas políticas diante das organizações que dirigem. A produção etnológica de pesquisadores dos grupos rio-negrinos, como Wright (1981, 1988, 1992, 1998), Hill (1989), Journet (1980, 1995), S. Hugh-Jones (1979) C. Hugh Jones (1979), Goldman (1963), Jackson (1983) e Koch-Grümberg (1995), será intensamente utilizada, provendo a base de análise das características da cultura e organização sociopolítica dos grupos étnicos em pauta. Igualmente a produção teórica de Pierre Clastres (1982, 1990) e F. Santos-Granero (1993, 1994) proverá aportes sobre as características do poder político nas chefias ameríndias. A teoria da Comunicação Social também comparece com a Semiologia dos Discursos, entendida como o estudo dos fenômenos sociais enquanto formas de produção de sentido, pelos sujeitos de um processo histórico, político e sociocultural determinado (ARAÚJO, 1995). Os movimentos sociais são aqui conceituados como processos políticos, expressões de poder da sociedade civil, desenvolvendo-se em um contexto de correlação de forças sociais (GOHN, 1997). A teoria dos movimentos sociais subsidiou a análise da organização interna e externa do movimento indígena do alto rio Negro e conseqüentemente das formas de exercício de seu poder político. Observa-se que internamente as demandas estão orientadas a partir de um conjunto de valores e crenças oriundos do pensamento mítico, que ordena as estratégias de ação dos grupos e as orienta para as lutas travadas no âmbito das relações interétnicas. No contexto intersocietário, onde se inscreve o movimento indígena rionegrino, vêm ocorrendo diversas iniciativas governamentais que visam à implantação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEI; as autoridades de governo têm buscado alianças políticas com as organizações indígenas e suas assessorias, para a legitimação de seu projeto político, que costuma confrontar-se com os interesses das redes de poder local, não indígena. As elites não indígenas do alto rio Negro configuram-se como o principal opositor do movimento indígena em decorrência de tensões oriundas da disputa pela terra e pela exploração de recursos ambientais. Questões como esta remetem às estratégias de (re)construção histórica da identidade étnica e política do movimento indígena na América Latina, temas que vêm sendo tratados por autores como Bartolomé (1979) e Bonfil Batalla (1979 e 34 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Maria Luiza Garnelo Pereira 1988), que analisam a politização da diferença pelo movimento indígena e identificam a possibilidade de construção de um novo sujeito coletivo capaz de encaminhar processos reivindicatórios passíveis de influenciar as políticas de Estado. Verón (1980)7 permite a exploração da polissemia das práticas discursivas sobre o poder político, doença e práticas de cura, onde coexistem diferentes visões de mundo; tais elementos configuram a realidade sócio-sanitária do alto rio Negro como um mercado simbólico8 onde os diferentes discursos e práticas políticosanitárias buscam tornar-se hegemônicos; tais facetas caracterizam o campo sanitário como um espaço de expressão do poder e disputa política entre os grupos sociais envolvidos. O mercado simbólico representado por estes discursos permite evidenciar um conjunto de forças políticas indígenas e não indígenas, que buscam legitimar suas práticas e cuja dinâmica própria determina a forma de atuação dos atores políticos indígenas que produzem demandas para as instituições de saúde. O movimento indígena na cena social rio-negrina A cena social9 em que se situa o movimento indígena é bastante eclética, comportando a presença de múltiplos atores como ONG’s cristãs com suas propostas de fraternidade, os saudosistas da “vida natural” que identificam os povos indígenas quase como parte do cenário de florestas idílicas, os ecologistas políticos, entidades com interesses políticos e econômicos de impacto na globalização, como a Organização Pan-americana de Saúde e o Banco Mundial. Pode perceber-se ainda uma variada gama de outros atores sociais como empresas de cosméticos, universidades que desenvolvem programas de estudos sobre a questão indígena e, Diversos autores, entre os quais E. Verón (1980), têm trabalhado com a noção de inter textualidade no sentido da heterogeneidade das origens de cada discurso; cada emissor congrega em si mesmo um conjunto de discursos que constituem o seu próprio, constituindo um mercado simbólico no qual as diferentes configurações discursivas competem entre si. 8 Segundo Verón (1980), mercado simbólico é o espaço social onde os discursos concorrentes expressam posições, onde os atores negociam sentidos e poder, gerando-se uma alternância de posições sociais e práticas discursivas, que ora ocupam posições centrais, ora periféricas, dependendo das relações de poder/saber, nos distintos níveis de articulação das relações sociais. 9 A cena social é aqui concebida como um espaço de interações conflitivas onde os atores sociais tentam tornar hegemônicas suas posições e visões de mundo. 7 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 35 Tradição, moder nidade e políticas públicas no alto Rio Negro finalmente, as onipresentes ONG’s de apoio a ambas as causas, que com freqüência intermediam o acesso dos grupos locais ao plano político mundial. O cenário comporta ainda diferentes formas de atuação de lideranças indígenas, tais como as que militam nos centros de poder e decisão urbanos e a população aldeada que está em um outro patamar, um pouco mais distanciado de um convívio cotidiano com a modernidade e que efetuam sua “educação mundializada” no contato com agentes da globalização, entre os quais seus próprios parentes, assessores e outros membros da sociedade nacional. Este conjunto de elementos mostra a inadequação de pensar-se em simples oposições entre índios e não índios. Embora a prática política das lideranças indígenas seja profundamente perpassada pela idéia dessa oposição, pode-se observar uma complexificação na teia de relações de poder; nela os atores sociais intercambiam suas posições no campo político intersocietário, de acordo com as situações contextuais que precisam enfrentar, ora situando-se como índios que atuam em consonância ou oposição ao mundo dos brancos10 e com as produções sociopolíticas de sua cultura de origem, ora são brancos desempenhando tais papéis, em uma dinâmica que permite a construção de alianças diversas onde se intercambiam interesses e prioridades dos blocos de poder que perpassam a questão indígena. Tal movimentação demonstra a capacidade de manejo simbólico da identidade indígena, de apropriação e utilização dos interesses e prioridades das instâncias de decisão do mundo não indígena e a incorporação de políticas sociais e tecnologias que possam viabilizar a ampliação das lutas políticas travadas pelas lideranças (TURNER, 1993). A dinâmica das relações políticas travadas nas organizações de base reflete, em grande parte, as tensões das relações de parentesco, expressas na distribuição geográfica das aldeias que lhes fornecem base de apoio e nas fissões periódicas que entre aquelas ocorrem. Por outro lado, as formas de atuação de tais lideranças representam novas estratégias, construídas pelos povos indígenas, para lidar com as instituições não indígenas, na busca de uma posição menos assimétrica que a que lhes é habitualmente conferida; boa parte da legitimidade dos líderes de organizações indígenas é garantida por sua escolaridade e pelo domínio de saberes do mundo dos 10 O termo “branco”, uma designação corrente no alto rio Negro, está sendo utilizado aqui para referir-se aos membros do mundo não indígena, não tendo correlação necessária com características somáticas dos indivíduos. 36 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Maria Luiza Garnelo Pereira brancos, mas esta pré-condição é insuficiente para prover a sustentação de uma trajetória política mais duradoura. Discutindo as atribuições de uma chefia de aldeia, Nicolas Journet (1995) informa que entre os Baniwa a generosidade, a habilidade de congregar o esforço comum para a realização de obras na comunidade, a firmeza e a constância de posições e opiniões, a serenidade, a ponderação, a constância e a capacidade de mediar conflitos, são características valorizadas no exercício do poder político. Se no contexto intratribal os antigos critérios de avaliação e legitimação de chefias de aldeias costumam ser aplicados para orientar a avaliação do desempenho das jovens lideranças das organizações de base, no plano das relações interétnicas observa-se uma flagrante diferença entre as práticas discursivas produzidas pelas lideranças do movimento indígena que reivindicam direitos legais e as dos capitães, particularmente os mais idosos que, através de práticas clientelistas que foram dominantes no passado, tentam driblar a profunda assimetria das interações com o poder político e econômico local. Tal diferença expressa as posições relativas dos atores sociais no mercado simbólico do alto rio Negro; nele coexistem visões de mundo contraditórias e em disputa pela hegemonia e credibilidade, que garantirá a legitimidade de ação de cada ator envolvido na cena social; não existe uma homogeneidade possível: o processo político ali travado configura um mosaico com uma coerência global, mas comportando consideráveis contradições internas onde se confrontam feições plurais de configurações identitárias; a cultura manifesta-se heterogênea e dinâmica, expressando as diferentes visões de mundo e experiências concretas de seus membros. Sendo entidades políticas criadas para mediar a relação com o mundo externo, as organizações indígenas têm como exigência básica: o aprendizado de atividades próprias do mundo do branco e de suas relações de poder; são prérequisitos comuns ao militante do movimento indígena, ao professor e ao agente de saúde, a escolaridade formal 11 e o aprendizado de técnicas de linguagem institucional do mundo ocidental, ou seja, de documentação escrita, como abaixo-assinados, ofícios, requerimentos, formulários, estatísticas, procedimentos administrativos, ela11 Na história das relações de contato do alto rio Negro, a escolarização aparece como um dos sinais distintivos do processo civilizatório desenvolvido pela Missão Salesiana; atualmente qualquer processo educativo desenvolvido recebe uma valorização imediata, independente de sua qualidade pedagógica e eficácia social. Nas representações e práticas sociais dos informantes da pesquisa, a escolaridade surge como um disputado objeto de desejo e de prestígio, que inflama as disputas intercomunitárias. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 37 Tradição, moder nidade e políticas públicas no alto Rio Negro boração de projetos para captação de recursos jetc. Nelas pode observar-se um padrão de aprendizado horizontal, travado no âmbito informal pelas próprias lideranças; os “locus” de aprendizado são as práticas do movimento indígena regional, nacional e internacional; os líderes aprendem, uns com os outros, a lidar com eventos, reuniões, audiências com autoridades, a elaborar projetos, a negociar com suas bases e com as outras organizações, na busca de ampliar a legitimidade, o prestígio, os recursos e os bens captados no bojo do trabalho político. As estratégias de ação e de aprendizado próprios do movimento indígena geram construções analíticas específicas, não inscritas nas pautas de comportamento anteriores ao contato interétnico, e nem nas formas próprias de operar do mundo não indígena; tais elaborações visam a compreensão e abordagem de um conjunto de problemas cuja eventual resolução e/ou encaminhamento torna as organizações indígenas uma das vias privilegiadas de acesso a bens e direitos sociais sistematicamente negados aos povos indígenas. Em que pese tais características, elas não são entidades de classe, no sentido que concebemos um sindicato; tampouco representam grupos de moradores dispostos aleatoriamente no espaço urbano, sem vínculos prévios entre si, unidos apenas por interesses conjunturais. As organizações indígenas congregam grupos de parentes (e mais raramente também seus afins) com relações prévias de obrigações sociais recíprocas culturalmente estabelecidas, e constituindo-se como mais um, dentre outros, meio de demarcação de uma identidade de uso local12 no cadinho pluriétnico do alto rio Negro; tal identidade pode propiciar um manejo gradativamente mais ampliado, de “índio do alto rio Negro” quando as lideranças participam do Conselho Deliberativo da COIAB,13 de “índio da Amazônia ou do Amazonas” quando participam de fóruns de âmbito nacional da CAPOIB e ainda de “índio da Amazônia brasileira” quando comparecem a reuniões internacionais. Ao sair do alto rio Tal singularidade pode ser bem evidenciada quando observamos a base geográfico-cultural a partir da qual uma associação se configura; assim, temos por exemplo: Organização do Rio Aiari, uma entidade que representa majoritariamente os sibs Hohodene; Organização do Médio Rio Içana, que representa principalmente a fratria Walipere; podemos ter ainda Organizações do Alto, Médio e Baixo Tiquié, Uaupés, etc.; sob o rótulo de diferenciação geográfica encontramos diferenciações de “sibs”, que expressam configurações das relações de poder local. 13 A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) propõe-se a ar ticular as interações entre todas as organizações indígenas da Amazônia Legal; a CAPOIB – Conselho de Articulação dos Povos Indígenas do Brasil propõese a fazer o mesmo no âmbito nacional. Os próprios nomes dessas instituições evidenciam a renúncia a uma forma hierárquica de organizar as entidades de base cujas iniciativas podem ser, no máximo, “articuladas” por entidades de âmbito mais geral; de fato, observa-se que as organizações locais gozam de bastante autonomia, não havendo relações de subordinação aos níveis regionais e nacionais. 12 38 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Maria Luiza Garnelo Pereira Negro, efetuam um apagamento temporário da identidade local, em favor de uma frente de alianças que possa ampliar seu poder de negociação e deliberação em fóruns mais amplos. Algumas entidades, como as Associações de Agentes Indígenas e de Professores – AAIP poderiam ser consideradas como algo próximo a uma entidade de categoria; elas têm lutado por salários, pelo estabelecimento de um programa de educação continuada para seus membros, por currículos escolares diferenciados, etc. Essas, porém, comportam muitas diferenças em relação a uma organização tipo sindical. No âmbito local o poder ou influência da entidade de classe é nulo: o professor ou agente de saúde lida diariamente mais com a influência do capitão e outras figuras de destaque na aldeia, que de sua associação. Pelo menos no alto rio Negro elas não têm tido acesso a canais diretos de financiamento, embora contem com a contribuição dos associados, boa parte dos recursos tem sido obtido através da FOIRN, o que, de uma forma ou de outra, limita sua autonomia. De um modo difuso pode observar-se uma desconfiança da liderança de entidades de base, que temem um fortalecimento das entidades de classe, como a Associação dos Agentes Indígenas de Saúde – AAISARN, que poderiam estabelecer lutas corporativas, prejudiciais aos interesses de conjunto das comunidades indígenas. Tal desconfiança, firmemente enraizada nos mecanismos de restrição à diferenciação individual, pode representar um meio de intervir no trabalho dos subgrupos profissionalizados, detentores de saberes não oriundos do mundo indígena, sobre cuja atuação o mundo da aldeia dispõe de poucas formas de controle. O trabalho político cotidiano exige o entendimento do mundo não indígena, da dinâmica do próprio movimento indígena e das conjunturas políticas e econômicas que possam favorecer ou dificultar as lutas étnicas. Nas aldeias há uma circulação limitada destas informações, boa parte das quais exige o domínio da escrita, o que deixa muitos líderes potenciais fora do páreo; é inegável que existe um descompasso entre o que as lideranças indígenas aprendem em sua militância e os saberes circulantes nas aldeias. Com freqüência, os jovens líderes queixam-se da dificuldade em fazer os mais velhos compreenderem as diferenças entre esta forma de atuação de suas entidades e o trabalho de gestão cotidiana da vida na aldeia. Entre as próprias lideranças indígenas a apropriação desses saberes é desigual; tanto podeSomanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 39 Tradição, moder nidade e políticas públicas no alto Rio Negro mos encontrar lideranças perfeitamente familiarizadas com a linguagem do mundo globalizado, como outras que, em fase mais inicial de aprendizado, expressam posições mais próximas às do mundo da aldeia, imersas em uma lógica predominantemente local. A partir da dinâmica encontrada entre as organizações Baniwa, pode-se imaginar a organização política no alto rio Negro como uma série de círculos concêntricos, nos quais os anéis mais largos são mais ligados ao poder local, representado pelos capitães que dão sustentação (ou a retiram) às organizações de base; tais cargos costumam ser preenchidos por pessoas mais velhas, de baixa escolaridade, que podem atuar também como conselheiros das organizações de base, exercendo controle sobre a movimentação delas. Os mais jovens, em geral mais escolarizados, podem fazer-lhes triagem para cargos de direção das organizações de base e/ou participar do conselho da FOIRN (um colegiado deliberativo de base ampla), onde também se observar um significativo número de velhos capitães. Os cinco diretores da Federação podem ser considerados o anel mais central e certamente de maior alcance político, a quem cabe a difícil tarefa de negociar as grandes decisões com as esferas de poder do mundo dos brancos, incluindo-se aí as políticas públicas, e acomodar as tensões e disputas entre os diferentes grupos étnicos do alto rio Negro, além de movimentar toda a burocracia necessária para o funcionamento da entidade. Neste movimento ascendente, a escolaridade não é o único critério, mas tem um peso importante na escolha de dirigentes de organização de base, agentes de saúde e professores indígenas. Embora este critério, oriundo da “situação colonial”, seja um requisito fundamental, ele não significa que a liderança possa agir com completa autonomia e independência dos capitães; ela recebe uma delegação provisória cuja legitimidade pode ser rapidamente contestada com a força dos boatos que circulam nas aldeias. Observamos aqui a construção de um tipo de identidade política que não sendo centrada exclusivamente na tradição, promove uma manipulação no capital simbólico (BOURDIEU, 1989) detido por alguns membros do grupo, permitindo um reencontro e um reforço da comunidade étnica, que se apropria e utiliza, para seus próprios fins, os saberes gerados no contato interétnico. Particularmente entre os Baniwa, os capitães detêm suficiente poder para fazer a glória e a desgraça dos representantes de suas organizações de base, forçan40 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Maria Luiza Garnelo Pereira do sua rotatividade. Esta forma de intervenção social gera uma dificuldade permanente no funcionamento destas instituições, pois sua atuação está sempre pautada pela substituição periódica de líderes que, a cada mandato, reiniciam o aprendizado de como a entidade deve atuar e de como interagir com os outros elementos dos mundos indígena e não indígena; existe, além disso, o risco permanente de descontinuidade dos projetos e atividades iniciados na gestão anterior. Em longo prazo, porém, tal rotatividade pode mostrar-se funcional, não só porque limita a formação de uma elite descolada dos interesses comunais, mas também porque propicia a ampliação do raio de capacitação informal, feita no seio do próprio movimento indígena, gerando, a cada mandato, um maior número de pessoas informadas sobre as formas próprias de operar do mundo não indígena, motivadas e engajadas nas pautas de luta étnica. Apesar das fortes interações com a politização mais ampla do movimento indígena, pode dizer-se que no caso Baniwa a principal base de apoio das lideranças é a endorreferida (TURNER, 1992), isto é, definida no interior, e pelas normas culturais do próprio grupo étnico. Não se deve subestimar porém a influência do apoio externo representado por assessores e instituições não indígenas, já que sua atuação pode redundar em maior ou menor volume de conquistas políticas e sociais e em conseqüente aporte ou retirada de apoio político às lideranças; mesmo com forte sustentação local, uma liderança cuja atuação não se traduza em ganhos concretos, através da obtenção de bens e serviços a serem redistribuídos entre suas comunidades de apoio, será, cedo ou tarde, destituída de seu mandato. Se por um lado as chefias de aldeia reconhecem a necessidade de eleger representantes com escolaridade suficiente para aprender a lidar com os complexos problemas da política indígena e indigenista, por outro lado eles não estão dispostos a abrir mão de sua autoridade em favor dos mais jovens, capacitados ou não para lidar com os saberes dos brancos. Ao contrário, o que se observa no momento atual é que as habilitações obtidas pelos jovens, no campo da saúde, da educação ou da política indígena, têm sido utilizadas como instrumento de reforço ao poderio dos capitães, não apenas para reafirmar sua própria importância entre os consangüíneos, ou entre os afins nos rios vizinhos, mas também junto aos outros grupos étnicos rionegrinos. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 41 Tradição, moder nidade e políticas públicas no alto Rio Negro O agente de saúde é, por exemplo, um dos elos de uma corrente de relações familiares em cujo núcleo central está o capitão e/ou pastor, no caso de aldeias evangélicas (às vezes os dois papéis são exercidos pela mesma figura); o capitão articula uma rede de alianças entre parentes e opera como uma “máquina” de captação de recursos de subsistência e principalmente mercadorias industrializadas e bens sociais como assistência à saúde ou oferta de escolas comunitárias. Sua maior ou menor capacidade de obtê-los reflete-se no poder que pode exercer junto ao seu grupo de influência. Quando o capitão tem vários filhos, ele procura distribuí-los em diversos papéis sociais que possam reforçar seu prestígio e importância; assim, encontramos capitães com filhos soldados, agente de saúde, professor etc. Em geral, as duas últimas profissões costumam ser desempenhadas por filhos mais novos, que estudaram um pouco mais, através do esforço conjugado do pai e irmãos mais velhos, para custear os estudos fora da aldeia. Nesse contexto, o trabalho do agente é concebido pela chefia de aldeia e pelo próprio agente, como um meio de sustentação do poder político do pai e às vezes do tio ou do avô. Ser agente de saúde não é trilhar um caminho de diferenciação individualizante e sim reforçar as relações comunais de poder, já estabelecidas. As jovens lideranças das organizações indígenas também são continuamente pressionadas para obter bens e prestígio junto a FOIRN, onde os Baniwa têm sido historicamente suplantados por outros grupos étnicos. Embora critiquem com certa freqüência suas organizações de base, os capitães entrevistados orgulham-se dela e de suas conquistas; as lideranças incorporaram esta necessidade e competem ativamente para conseguir ampliar seu poder político e decisório na Federação. No mundo Baniwa não se observa, como entre os grupos Tukano do Uaupés colombiano,14 uma subversão das relações tradicionais de poder entre gerações; mesmo detendo um considerável grau de autonomia, a atuação das lideranças de organizações de base ainda é regulada pelos típicos mecanismos sociais rio-negrinos que visam inibir a diferenciação individual. O controle exercido pelas gerações mais velhas se dá pelo uso de estratégias não apenas políticas, mas também através das práticas sanitárias, acusações de feitiçaria e maledicências diversas que expressam 14 Embora não tenhamos efetuado uma pesquisa sistemática junto às organizações indígenas da área Tukano no Brasil, o trabalho de capacitação das lideranças que realizamos junto a todas as organizações indígenas do alto rio Negro, permite evidenciar que a situação entre os povos Tukano guarda similaridades (embora com menor intensidade) com o contexto colombiano descrito por Jackson (1995). 42 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Maria Luiza Garnelo Pereira formas próprias de reprodução da ordem indígena. Atualmente tais mecanismos são ampliados pelo uso da radiofonia, que permite aos capitães comunicar-se entre si, às vezes espalhando boatos15 que forçam a liderança a explicar e justificar suas ações e a restringir sua autonomia em reuniões, assembléias e conferências que ocorrem ao longo do ano nas aldeias. Localismos e globalismos Dentre o seu conjunto de atribuições, as lideranças indígenas costumam ressignificar práticas sociais e políticas modernas como o ambientalismo16 e as disputas e padrões de comportamento de seus grupos de parentes. Suas organizações operam simultaneamente como instituições da sociedade nacional, mas também expressam relações de poder travadas entre os sibs e as contradições entre os grupos de parentesco. Os dirigentes devem gerenciar a coexistência de padrões ocidentais de organização política, fundados nos direitos de cidadania, no voto, no igualitarismo entre os representantes, com o exercício do poder no âmbito do parentesco, cujas características são pautadas não só pela hierarquia que ordena a vida de consangüíneos e afins, mas também pelas representações e percepções que os capitães elaboram sobre os modos de operar do mundo não indígena e da atuação das lideranças. O acúmulo de capital político dos capitães faz valer sua visão de mundo para os mais jovens (BOURDIEU, 1989); aqueles que rompem, ou não cumprem com suas expectativas, fundadas ou não, podem ter um novo acesso negado à representação de seu grupo de origem, junto às organizações indígenas. As lideranças Baniwa, como todas as outras, devem lidar com um duplo e contraditório papel; tem de harmonizar em si próprias a diluição de sua identidade Um fato ilustrativo deste controle ocorreu com uma das lideranças das organizações pesquisadas. A liderança obteve 14 dúzias de tábuas para construção de uma escola; a notícia circulou pela radiofonia e pôde observar-se uma verdadeira romaria de capitães que se dirigiram à aldeia sede da organização para contar as tábuas, uma a uma, e verificar se haviam realmente 14 dúzias de tábuas ou se eventualmente a liderança havia se apropriado individualmente de alguma delas. 16 Albert (1995) analisa o discurso de uma liderança indígena Yanomami demonstrando como ela vem se apropriando do discurso ambientalista para fazer-se ouvir no mundo dos brancos, não como uma mera caixa de ressonância, mas através da elaboração de simbolizações criativas, nas quais a liderança busca elementos de sua singularidade cultural, para produzir uma prática discursiva que lhe permita configurar e ampliar alianças conjunturais e viabilizar seu projeto político que, necessariamente, não coincide com o do movimento ambientalista internacional, apesar das semelhanças aparentes. 15 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 43 Tradição, moder nidade e políticas públicas no alto Rio Negro em uma condição genérica de “índios em luta” que demandam direitos de cidadania, pautados no igualitarismo, mas também na afirmação da diferença étnica junto à sociedade nacional e mundial. Tais concessões ao pan-indigenismo só são toleradas como estratégias de atuação direcionadas “para fora” da reserva; no âmbito comunal, as rivalidades clânicas, as relações de poder fundadas no controle de gênero e de geração têm prioridade absoluta na cena social. Na realidade aqui estudada, o controle das organizações indígenas pelo poder local é forte o suficiente para enfrentar o interesse e prioridades de ONG’s de financiadores e destituir lideranças apontadas como demasiado subservientes aos ditames dos brancos. O tema remete à questão da autonomia possível aos povos indígenas no bojo deste cenário. Neste âmbito, Smith (1987) interroga que constelação de interesses cerca uma organização indígena e que liberdade de ação ela tem diante dos interesses de partidos políticos, donos de terras, igrejas, etc. Não pode falar-se em completa autonomia do movimento indígena, subsumido como está, às determinações da sociedade global, que conjunturalmente lhe empresta apoio e visibilidade em detrimento dos interesses de um desenvolvimentismo rudimentar da burguesia regional. Apesar de não estar isento da influência de instituições políticas do mundo não indígena, as práticas do movimento indígena no alto rio Negro não apresentam, atualmente, grau importante de cooptação político-partidária como as situações estudadas por Jackson (1995) e Smith (1987) em outros grupos ameríndios. A política partidária exerce um considerável fascínio sobre muitas lideranças, observando-se um certo número de candidaturas indígenas, a maioria das quais malsucedida nas eleições. A militância partidária, porém, tem implicado um afastamento de tais lideranças do movimento indígena e não na cooptação das mesmas; não dispomos ainda de dados suficientes para explicar as variáveis implicadas na situação, mas facilmente se constata que a FOIRN e a maioria das organizações de base vêm se mantendo firmemente distanciadas de partidos políticos de qualquer viés ideológico. As informações coletadas mostram que as razões da adesão a candidatos são análogas àquelas descritas por Palmeira (1996) em seus estudos sobre processo eleitoral, são critérios vinculados a lealdades e solidariedades a grupos de parentes, 44 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Maria Luiza Garnelo Pereira vizinhos e amigos. Nas palavras do autor, embora não haja uma completa correspondência entre a lealdade do voto e lealdades fundamentais ligadas à parentela, “[...] a lealdade do voto é adquirida via compromisso: ela não implica, necessariamente, ligações familiares ou vinculação a um partido; a lealdade política tem a ver com compromisso pessoal, com favores devidos a uma determinada pessoa, em determinadas circunstâncias” (1996, p. 46). Informantes Baniwa do rio Içana demonstram, por exemplo, uma forte lealdade a um ex-prefeito que ocupou o cargo há alguns mandatos anteriores ao atual, em função de antigas ligações com seu pai que foi regatão e “patrão de borracha” de boa parte dos homens mais velhos desse rio. Diversos capitães aprenderam a língua e a lógica do mundo do branco, trabalhando para o velho comerciante em um tipo de aprendizado que, mesmo precariamente, substituiu o trabalho dos internatos salesianos, inexistentes no alto e médio Içana. Desta forma, a imagem do exprefeito assume conotações emocionais pela rememoração do menino que cruzava os rios da região em companhia do pai, nas intermitentes viagens pelos rios da região. Outro critério orientador do voto é um cálculo pragmático da quantidade e tipo de bens distribuídos pelos candidatos. A análise das falas Baniwa mostra que eles não têm sequer ilusões de melhorar sua vida através da ação político-partidária; o “tempo da política” é período de promessas, de favores, festas, animação e de potenciais presentes trazidos pelos candidatos, mas não um tempo de esperança de mudança; os candidatos podem ter maior ou menor valor, não segundo suas propostas, já que, como disse um dos capitães: “eles só fazem falar tudo igual, mas nenhum deles faz mesmo nada”, mas segundo a qualidade dos bens veiculados durante a campanha. Os pedidos de votos são incluídos em um circuito de trocas de favores que “[...] supõem, de um lado, um pedido e, de outro, uma promessa, ou seja, diferentemente de outras formas de reciprocidade, supõem o empenho da palavra em duas partes; portanto, promessas recíprocas: a promessa de retribuição e a promessa de atendimento” (PALMEIRA, 1996, p. 47). Os candidatos são amplamente reconhecidos como pessoas que não cumprem suas promessas (o cumprimento da palavra é um valor essencial no código de honra Baniwa), por isso os capitães Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 45 Tradição, moder nidade e políticas públicas no alto Rio Negro atualmente só valorizam o que poderíamos chamar de “pagamento à vista” da promessa, isto é, presentes distribuídos antes da eleição. Os chamados “presentes” podem ser gêneros baratos, como camisas e bonés, mas também itens mais valorizados como geradores de energia, antenas parabólicas, telhas de alumínio e motores de popa. As chefias de aldeia aprenderam a não confiar em promessas a serem cumpridas depois do pleito, já que depois de eleitos os políticos costumam esquecê-las. São inúmeros os relatos rancorosos sobre promessas não cumpridas, dívidas acumuladas com pessoas e comunidades, desatenção, grosseria e humilhação de capitães que demandam a resolução de problemas existentes nas aldeias, decorrentes da falta de uma correta aplicação de políticas públicas, principalmente na área social. A existência de demandas reprimidas nas áreas de saúde, auto-sustentação e educação costumam gerar fortes pressões, feitas pelos capitães, sobre o movimento indígena, para que encontre formas de atendê-las. Caso a organização tenha sucesso, sua atuação resulta, afinal, na ampliação do poderio dos capitães. Se estes anteriormente tentavam responder a tais questões através de um “corpo a corpo” com as autoridades, atualmente preferem encaminhar tais demandas para as suas organizações de base. A análise de discurso de lideranças indígenas, feita por Orlandi (1990), mostra o domínio de diferentes formas e tipos de discurso (discurso científico, histórico, crítico, de denúncia, etc.) que são acionados conforme a oportunidade (e necessidade), nas negociações com as agências de contato. Quando se faz necessário, as lideranças podem exibir, durante uma interlocução, uma postura ingênua e/ou alegar desconhecimento das regras da língua portuguesa. Em tais situações elas costumam invocar a condição de índio, manipulando sua identidade para melhor identificar e selecionar aliados e adversários no âmbito da sociedade nacional. Garnelo (1997), analisando a dinâmica do movimento indígena a partir da ótica da saúde, encontrou uma situação análoga, demonstrando que, nos espaços de negociação com representantes das instituições da sociedade nacional, as lideranças manejam e ressignificam sentidos e práticas sanitárias de forma a ampliar seu espaço e poder político junto à população aldeada e citadina. O trabalho do agente Indígena de Saúde pode ser caracterizado como um dos vetores de aplicação de políticas públicas de saúde nas áreas indígenas; no geral 46 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Maria Luiza Garnelo Pereira ele se legitima por um tipo de desempenho, fundado na apropriação de um saber técnico aprendido nos treinamentos ministrados pelas instituições de saúde, e no controle da circulação de bens de saúde que são colocados a seu encargo. Ao serem selecionados em suas aldeias, os agentes de Saúde passam a prover meios adicionais de reforço ao prestígio da liderança comunal; tais meios se fundamentam tanto na capacidade de reconhecer e tratar problemas de saúde, como na detenção de bens simbólicos e materiais como os medicamentos, o combustível, e outros meios de intervenção sanitária. Os capitães esforçam-se para controlar os bens captados pelos agentes de Saúde, forçando sua redistribuição na comunidade; tal atitude se choca com a lógica técnica, que orienta a prescrição de medicamentos segundo os diagnósticos dos doentes e não para atender às regras da reciprocidade obrigatória tradicional. Os agentes de Saúde têm de lidar com dois tipos de exigências conflitantes: aquelas feitas pelo seu treinamento, que proíbe a distribuição dos bens de saúde na forma de presentes e aquelas das comunidades que exigem esta forma de circulação dos mesmos; se o agente de Saúde atende às exigências do Sistema de Saúde, perde prestígio na comunidade; distribui-se prodigamente os insumos sob sua guarda, atendendo aos ditames da ordem social indígena, pode ser responsabilizado pelo uso inadequado dos mesmos e os potenciais efeitos adversos daí decorrentes. Diversas frações da sociedade globalizada têm feito uma identificação, justificada ou não, dos povos indígenas com as premissas do ecodesenvolvimento, o que tem lhes propiciado um maior apoio da opinião pública mundial e acesso a financiamento das atividades de política indígena, além de possibilitar às lideranças a travar contato com modelos de desenvolvimento distintos do tipo predatório que vêm sendo praticado historicamente na Amazônia, auxiliando-os a pensar e a desejar o direito de estabelecer os seus próprios modelos de desenvolvimento em suas sociedades. Segundo Smith (1987), tais iniciativas só se têm feito possíveis nas regiões em que os grupos indígenas puderam gozar de relativa independência econômica e de relativa autonomia cultural, apesar de séculos de processo colonizatório. O entrelaçamento entre o indigenismo e o ambientalismo põe as organizações indígenas em um eixo de articulação entre universalismos e localismos, superando um momento anterior em que elas se referiam essencialmente aos Estados Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 47 Tradição, moder nidade e políticas públicas no alto Rio Negro nacionais. A liderança indígena articulada em seu cotidiano imediato ao poder local, que a constitui e legitima sua participação, é guindada ao papel de interlocutor de uma comunidade discursiva mundial. A globalização materializa-se na vivência indígena, gerando saberes e vivências que modificam e redimensionam suas práticas sociais e influem no modo de viver; suas lutas pelos direitos étnicos concretizam um tipo de “educação mundializada” (ORTIZ, 1994). Se por um lado o movimento indígena pode ser caracterizado como uma forma de luta para obtenção de melhoria das condições de vida, por outro, a própria dinâmica de atuação/interação das lideranças estabelece importantes transformações em sua concepção de etnicidade; eles aprendem a partilhar símbolos da modernidade, a transitar pelas linhas de força da globalização e a mobilizar valores e padrões culturais produzidos fora das fronteiras da terra indígena. Tal movimentação “para fora” redimensiona o modo como essas lideranças lidam com as manifestações de sua cultura de origem. A consciência da “indianidade” adquirida no mundo não indígena, torna as lideranças mais alertas e sensíveis para a necessidade de preservar rituais, saberes, o meio ambiente onde vivem, etc., não apenas para negociar com poderes externos ao mundo indígena, mas também por perceberem que mudanças nas pautas tradicionais de comportamento se fazem necessárias, a fim de dar conta dos novos desafios que se constituem no contato com a modernidade. Tais práticas sociais remetem a uma identidade-processo, em permanente ressignificação, rejeitando o fixismo de um modelo prescritivo, mas que, ao contrário, deve ser permanentemente reconstruído, segundo as necessidades e prioridades geradas no contato intersocietário estabelecido não apenas com o mundo dos brancos, mas também com outros grupos indígenas. Em regiões como o alto rio Negro, a etnicidade comporta elementos de um prolongado processo colonizatório, com a incorporação de diversos saberes e ideologias alheios ao núcleo central dessas culturas. Embora a ordenação mítica se mantenha como discurso fundador e agregador das formas de atribuir sentido à realidade, as representações sociais elaboradas pelos indígenas evidenciam uma permeabilidade a elementos ressignificados da cultura do colonizador que foram incorporados ao ethos Baniwa, permitindo releituras críticas das normas culturais e a geração de estratégias cognitivas que favoreçam as interações com a alteridade. 48 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Maria Luiza Garnelo Pereira Trata-se aqui menos de enunciar o que Oliveira Filho (1999) chama de “Antropologia das perdas e ausências culturais”17 e mais de efetuar a análise da expressão de tais formações culturais, enquanto elementos totalizadores de múltiplas influências18 que configuram atualmente o universo nativo. O “ser indígena” configura uma identidade que, longe de ser contrastiva com a população regional ou meramente inventada, configura um processo multifacetado de circulação de significados que, sem negar o que é estrutural, assume um caráter historicamente dinâmico em sua configuração cada vez mais perpassada pela realidade mundial. Problematizando as relações dos grupos sociais supostamente exteriores ao fluxo principal da cultura mundializada, Ortiz (1992) demonstra que nas interações intersocietárias a idéia convencional de imposição de valores e comportamentos de uma realidade à outra precisa ser relativizada no atual processo de globalização. Para ele, o caráter e intensidade dessas inter-relações fazem com que hoje nenhum grupo social possa situar-se efetivamente como uma exterioridade em relação à cultura mundial; o que era externo, pertencente a um padrão mundial, torna-se nativo, legitima-se ao ser inserido em práticas nativas de caráter amplamente polifônico. Instituições e comportamentos ditos tradicionais convivem com formações socioculturais mundializadas que assumem, por sua vez, configurações inesperadas ao serem reapropriadas pelos grupos subalternizados (ORTIZ, 1994). Além disso, a adesão a padrões globalizados de comportamento, como o uso de bens tecnológicos, ao invés de constituir-se apenas em fator de dependência e de destruição da organização da sociedade, pode passar a formar parte das estratégias de luta pela autonomia política e econômica de povos indígenas (TURNER, 1993). O autor está se referindo a uma tradição de cer tas correntes da Antropologia latino-americana, cuja produção se contentava em evidenciar/denunciar as perdas de descontinuidades culturais e territoriais, sofridas por cer tos povos indígenas no processo de assimilação às sociedades nacionais; segundo Oliveira, tais estudos careciam de uma preocupação maior com o entendimento de como tais sociedades efetivamente se organizavam e enfrentavam as relações de contato interétnico. 18 No rio Negro é sutil a expressão de traços culturais identifiquem contrastivamente os indígenas diante dos regionais. As pessoas comuns das aldeias não expressam sequer dúvidas sobre sua identidade indígena, mesmo que algumas vezes os traços distintivos sejam vivenciados de forma depreciativa. Entre líderes indígenas é comum o uso de expressões como “resgate cultural” e “revitalização da cultura”; as lideranças Baniwa questionam tal uso, alegando que não se pode resgatar o que não foi perdido, pois consideram íntegras as bases de sua cultura. A própria vivência no movimento indígena é que parece despertar uma maior necessidade de expressar sinais distintivos (como a construção de malocas, não para morar, mas para sediar organizações) diante do mundo não indígena; neste mesmo tipo de estratégia podemos situar o trabalho de revitalização do uso de plantas medicinais e de valorização das estratégias xamânicas de cura, que vêm sendo feito pelas organizações indígenas naquela região. 17 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 49 Tradição, moder nidade e políticas públicas no alto Rio Negro As práticas discursivas do movimento indígena se configuram simultaneamente como um produto e uma forma de ação social, não se devendo encará-las apenas como um meio, um veículo de informação; elas evidenciam as conflitivas interações de poder que permeiam esses grupos sociais e a posição que os emissores desses discursos ocupam em suas respectivas sociedades e em relação à sociedade nacional e mundial. Tais práticas não apenas representam, mas também transformam a realidade, caracterizando-se como um tipo de ação social, simultaneamente material e simbólica, que se constitui e é constituída nas relações de poder vigentes na sociedade e que entreabrem a possibilidade de construção de um novo sujeito coletivo capaz de, pela politização da diferença, lidar com as situações de conflitos e subordinação interétnicos e de encaminhar processos reivindicatórios passíveis de influenciar as políticas de Estado referentes aos povos indígenas. Referências ALBERT, B. O ouro canibal e a queda do céu: uma crítica xamânica da economia política na natureza. Brasília: Ed. UNB, 1995. (Série Antropologia). ARAÚJO, I. A reconversão do olhar. Dissertação (Mestrado) apresentado à Escola de Comunicação da UFRJ, Rio de Janeiro, 1995, 203 p. (mimeo). BARTOLOMÉ. M. A. Consciencia étnica y autogestión indigena. In: Descolonización en America Latina. México: Ed. Nueva Imagen, 1979. BONFILL BATALLA, G. 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Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 53 Tradição, moder nidade e políticas públicas no alto Rio Negro 54 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Nome autor Dimensão pedagógica da violência na for mação do trabalhador amazonense Marlene Ribeiro 1 Resumo O artigo trata de uma experiência popular e movimentos sociais no Amazonas, no período de 1979 a 1987, tendo por objetivos os agricultorespescadores e os operários metalúrgicos amazonenses. Focaliza a violência – mecanismo inerente ao capital enquanto relação social – na sua dimensão educativa de formação de sujeitos sociais. Registra mudanças na linguagem, nos costumes e no saber, ou na cultura construída sobre o mundo da produção rural cabocla, que cedem lugar a atitudes, linguagens e conteúdos, ou a uma cultura própria da moderna produção industrial. A pedagogia da violência dirigida contra os trabalhadores amazonenses faz-se pedagogia da autoformação de uma classe trabalhadora que, aos poucos, reconhecese por sujeito da produção de bens e de história. Palavras-chave Trabalho e educação; violência cultural; cultura do trabalho. 1 Professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ex-professora da Universidade Federal do Amazonas (1980-1990). Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 55 Dimensão pedagógica da violência na formação... Abstract This article is about an experience concerned with popular education and social movement in Amazonas, during the period of 1979 to 1987, and which involved the amazonense fishermen-agricultural workers and metallurgists. It concentrates on violence – an inherent mechanism of capital as social relation – in its educative dimension of formation of social subjects. It registers changes in language, custums and knowledge or in the culture produced and based on the wold of caboclo agricultural production, that are transformed into new attitudes, languages and meanings or into a culture of the modern industrial production. The pedagogy of violence directed against the amazonense workers turns into the padagogy of the self-formation of a working class which recognizes itself as subjects of production of goods and history. Keywords Work and education; cultural violence; culture of work. Introdução A violência é hoje um tema incorporado ao nosso cotidiano pelas notícias de crimes aparentemente incompreensíveis cometidos por jovens, de saques motivados pela fome, de seqüestros, de exploração do trabalho e da sexualidade infantil, que quase nos acostumamos com ela. Nesse sentido, acusações de violência, desordem e ilegalidade, dirigidas às lutas dos trabalhadores sem-terra, de um lado, e a massificação das análises que “naturalizam” as desigualdades ao afirmar que na sociedade não há lugar para todos, de outro, estimulam-me a retomar este texto, parte da minha dissertação de mestrado escrita em 1987. 2 Sua atualidade e importância mostram-se pela necessidade de desocultar a violência que se acentua na produção 2 Ver RIBEIRO, 1987, nas referências bibliográficas. 56 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Mar lene Ribeiro de um a “nova pobreza” decorrente do desemprego,3 violência esta cujo tratamento, muitas vezes restrito ao âmbito jurídico, 4 oculta suas múltiplas faces. É preciso, penso, compreender a violência na sua raiz, enquanto produção da relação contraditória capital x trabalho, produção esta que assume uma dimensão pedagógica de formação do trabalhador para o capital e, ao mesmo tempo, contra o capital. Aqui se insere a minha contribuição neste estudo em que faço um recorte do processo do trabalhador amazonense. Reflito sobre uma experiência de 8 anos com educação popular e movimentos sociais no Amazonas, no período de 1979 a 1987, tendo por sujeitos os agricultores-pescadores e os operários-metalúrgicos amazonenses. Focalizo a violência – mecanismo inerente ao capital enquanto relação social – na sua dimensão educativa de formação de sujeitos sociais – os trabalhadores – que buscam uma emancipação concreta. Entendo que as formas através das quais a classe trabalhadora se organiza e luta conferem conteúdo a esta realidade social. Estas formas, porém, são contraditórias, uma vez que as mesmas se contradizem no interior de relações onde se confrontam interesses antagônicos. De um lado, o capital organiza os trabalhadores para produzirem forças para impor. Ao controle interno da fábrica, alia-se o controle externo do exército industrial de reserva “liberado” da terra, dos instrumentos de trabalho e do salariato (CASTEL, 1998). De outro lado, a exploração mesma que atinge as condições de trabalho e de vida dos trabalhadores, responsáveis por um produto que é social, impõe a necessidade de organização, cujas estratégias de luta são caracterizadas por manifestações de violência, de desrespeito à lei e à ordem. A democracia representativa, sustentada pelo poder econômico e pelo poder ideológico dos meios de comunicação de massa, mascara a extrema violência com que se estabelece a relação capital x trabalho. Esta violência é agravada pelo fato de que o capital arranca novas máquinas-ferramentas eliminadoras de postos de trabalho, jogar aquela força de trabalho “liberada” à sua própria sorte. Ampliar o conhecimento sobre esse processo de constituição do trabalhador contribui para entender a violência sistemática imposta às classes trabalhadoras. Exclusão ou eliminação do excedente de força de trabalho na 3.ª Revolução Industrial – qual o destino dos trabalhadores em um mundo governado pelo capitalismo neoliberal? Esta é a questão que se coloca FORRESTER, Viviane. O horror econômico. São Paulo: Unesp, 1997. 4 Ver CHAUÍ, Marilena. Uma ideologia perversa. Folha de São Paulo, Caderno Mais! Domingo, 14/3/1999, v. 5, p. 3. 3 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 57 Dimensão pedagógica da violência na formação... Acumulação primitiva – chave teórica para análise da for mação do trabalhador A história dos trabalhadores europeus e brasileiros aponta para um movimento comum de expulsão de terra, perda dos instrumentos de trabalho e transformação do camponês em operário, muito embora este movimento possa assumir coloridos diversos de acordo com as condições históricas em que se efetua. Como interpretar este movimento, que é comum, sem perder de vista a sua especificidade no Brasil, especialmente no Amazonas? Começo pela sua origem concebida por Marx como acumulação primitiva, ou seja, uma acumulação que não decorre do mundo capitalista de produção, mas é seu ponto de partida (MARX, 1982, p. 828). A acumulação primitiva, portanto, é onde se estabelecem as condições iniciais para a obtenção da mais-valia. Os meios de produção e sobrevivência em si não possuem valor de troca, não são ainda capital. Para isso, é preciso que sofram transformações que estabeleçam as relações básicas contraditórias entre forças produtivas e relações de produção, que, por sua vez, estarão fundadas na unidade dialética produção social/apropriação privada, ou seja, trabalho/capital. A teoria clássica construída por Marx explica o processo que produz o assalariado e o capitalista, que tem suas raízes na sujeira do trabalhador (MARX, 1982, p. 831). Nessa teoria, expropriação e proletarização são momentos de um único processo, a chamada acumulação primitiva que teve sua gênese na Europa, quando a nobreza aliada à burguesia promoveu o cercamento das terras comuns e da Igreja Católica, expulsando camponeses e servos (MARX, 1982, p. 850).5 Não tendo sido criados postos de trabalho para toda essa força de trabalho liberada, a legislação sanguinária contra os expropriados, através das prisões, das torturas, dos enforcamentos e da compreensão dos salários iria discipliná-la adequadamente para as relações de trabalho instauradas com o advento das indústrias (MARX, 1982, p. 854). Como transpor essa experiência dos trabalhadores europeus para interpretar o processo de expropriação/proletarização dos trabalhadores amazonenses, tendo o cuidado de não aplicar a teoria como se fosse uma camisa-de-força à realidade pesquisada? 5 Ver ainda KAUTSKY, Karl. A questão agrária. Por to: Por tucalense. v. I e II, 1972. FLORENZANO, Modesto. As revoluções burguesas. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981. 58 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Mar lene Ribeiro Na contradição básica capital/trabalho encontra-se a resposta para esta realidade também contraditória, uma vez que a expansão do capital se efetiva através de dois movimentos excludentes: a atração e a repulsão dos trabalhadores em conseqüência da luta de classes. O capital expulsa o camponês da terra e o atrai para a fábrica, porque só a força de trabalho cria valor, portanto, só a apropriação do produto gera capital. Mas, na fábrica nem todos são aceitos, e mesmo os que ficam, rebelam-se, pondo em risco os lucros e a própria relação. Nesta luta situam-se os novos inventos que revolucionam os processos técnicos de produção, aumentando a força produtiva do trabalho e reduzindo o tempo de trabalho necessário para reproduzir o mesmo valor (MARX, 1982, p. 359 e s). Para manter as taxas médias de lucro ameaçadas constantemente pelas reivindicações de aumentos de salários e de benefícios sociais, o capital repele, ou desemprega, o mesmo trabalhador que atrai para si. É no interior desse movimento de atração/repulsão que acrescento um terceiro elemento à teoria clássica, como negação da negação, a organização dos trabalhadores que, lutando contra a relação que os vincula ao capital, constroem-se como classe. Tem sido muito criticada a concepção marxista-leninista de classes sociais fundamentais.6 A leitura que faço do movimento contraditório de constituição do trabalhador para o capital e como classe está baseada em Marx e Engels, para quem a burguesia é o produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de revoluções no modo de produção e de troca (s/d, p. 6), da mesma forma que o proletariado passa por diferentes fases de desenvolvimento (s/d, p. 6). Ainda nessa obra, os autores complementam: A princípio, empenham-se na luta operários isolados, mais tarde, operários de uma mesma fábrica, finalmente operários do mesmo ramo de indústria, de uma mesma localidade, contra o burguês que os explora diretamente (MANIFESTO, p. 14).7 Estudioso do processo de formação da classe trabalhadora inglesa, Thompson faz uma crítica à direção que tomou o conceito classe operária a partir da implantação do comunismo na Rússia, afirmando que é freqüente que a teoria preceda a 6 7 Ver, entre outros, LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Publicações Escorpião, 1974. Além do Manifesto do Partido Comunista, há outras obras de Marx em que aparece a questão das classes sociais, como MARX, Karl. O dezoito de Brumário de Luiz Bonaparte, As lutas de classes na França de 1848 a 1850. In: Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, [s/d.], p. 93-285. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 59 Dimensão pedagógica da violência na formação... evidência histórica que se tem como objetivo teorizar. Este autor, retomando Marx e Engels, destaca que a luta de classes é inseparável da classe e que esta não fica pronta pela sua mera introdução nos processos de trabalho industriais; a classe define a si mesma no seu efetivo acontecer, envolvendo homens e mulheres que modelam suas experiências de luta em formas culturais (THOMPSON, 1979, p. 34). Deste ângulo focalizo a classe que, não nascendo pronta, passa, como ocorreu com a burguesia, por um longo processo de aprendizado que é essencialmente de luta, que é essencialmente violento em todas as estratégias nas quais, conforme ressaltam Marx e Engels, procura quebrar a relação. Entendo, ainda, que este movimento gerado pela luta de classes tem um caráter pedagógico para ambas as classes. Como então fazer deste processo de modo a perceber a expropriação/proletarização/ organização como instrumentos educativos para o capital e para a formação da classe operária? Inicio pela caracterização do agricultor naquilo que o diferencia fundamentalmente do operário para captar o sentido de suas lutas. Despojado da terra e dos instrumentos de produção, o operário transforma-se em trabalhador coletivo no interior das fábricas, identificando-se com os companheiros nas condições de trabalho e nos salários que lhe são impostos. Porém o agricultor, ainda não transformado em operário, trabalha a terra utilizando seus próprios instrumentos, mantendo uma relação direta com o que produz enquanto matéria-prima. Suas relações com o capital se concentram no mercado, onde comparece sozinho ou, no máximo, com sua família, para levar seus produtos. Estes serão transformados em mercadorias mediadas pela mercadoria universal, o dinheiro, que lhes imporá um preço ou valor de troca, sem considerar o trabalho socialmente incorporado naqueles produtos, mas a “avaliação” do mercado determinada pelas leis do mercado. Operário e agricultor participam do mercado capitalista com mercadorias diferentes. O primeiro só dispõe de sua força de trabalho para vender. O segundo apresenta-se no mercado com seus produtos transformados em mercadorias. Portanto, as condições materiais de exploração a que estão sujeitos é que irão determinar a consciência destes trabalhadores, por isso mesmo diferem as formas de ver a realidade que se constroem nas lutas operárias e camponesas, ambas de naturezas diversas. Martins (1982, p. 19) considera que o agricultor, mesmo envolvido 60 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Mar lene Ribeiro na exploração do capital, não se percebe por trabalhador coletivo, mas por trabalhador autônomo. A exploração atinge apenas os seus produtos transformados em mercadorias sujeitas ao mercado, cujas leis são impostas de fora e de cima. A impossibilidade de intervir nas leis que regulam o mercado não lhe permite também captar a radicalidade da exploração contida na contradição básica produção social/ apropriação privada. Mesmo aí onde é explorado, não consegue apreender o seu produto como social, ainda que sejam muitos os agricultores que comparecem ao mercado nas mesmas condições. Ainda, segundo Marins (p. 15-19), o agricultor só tem possibilidade de constituir-se como classe no momento em que, expropriado da terra e dos instrumentos de trabalho, torna-se um trabalhador livre naquele sentido que é conferido por Marx, isto é, livre de sua terra e de seus instrumentos de produção e possuidor apenas de sua força de trabalho com a qual será obrigado a sujeitar-se ao regime de assalariamento. O autor está fundamentado em Marx, quando este diz que a transformação dos meios de produção em propriedade privada, “a expropriação da grande massa da população, despojada de suas terras, de seus meios de subsistência e de seus instrumentos de trabalho, essa terrível e difícil expropriação constitui a préhistória do capital” (MARX, p. 880). Todavia, Martins (1983) critica a postura ortodoxa que considera as lutas camponesas como um atraso na construção do socialismo enquanto dificultam a transformação do camponês em operário. Afirma que: “em tese e de modo muito geral este ponto de vista é correto. Ao mesmo tempo, reconhece que seria, entretanto, pura imbecilidade tentar convencer o camponês, que está sendo despejado, cuja casa está sendo queimada pelo jagunço e pela polícia, de que aceitar tal fato como uma contingência histórica” (MARTINS, p. 13). Martins (1983) também destaca as peculiaridades das lutas dos posseiros e dos sem-terra, nas quais é questionada a legalidade da propriedade, pondo em confronto o que é legítimo e o que é legal (MARTINS, p. 95). O móvel destas lutas não é a exploração, muito embora ela esteja presente, mas é a necessidade da terra para trabalhar e viver. Ainda, segundo o autor, as lutas pela terra são profundamente radicais; diferem da história clássica em que as lutas eram episódicas, por manifestarem uma vitalidade e Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 61 Dimensão pedagógica da violência na formação... organização que ultrapassa o momento de conquista da terra. É nesta luta que posseiros e sem-terra se descobrem vítimas de um sistema arbitrário e injusto. Em obra posterior, Martins (1986) identifica, nas lutas camponesas, a emergência de novas concepções de terra como um bem comum, de direito e justiça fundamentados no trabalho e não na propriedade privada, que evidenciam o rompimento do novo no interior da velha estrutura da sociedade de classes. Parto de questões levantadas por Martins, principalmente nessas duas últimas obras, para definir a compreensão teórica da realidade da expropriação/proletarização dos trabalhadores amazonenses, onde é possível observar a violência como método pedagógico de formação do trabalhador para o capital e como classe. Contextualizando as lutas dos agricultores-pescadores amazonenses na dinâmica da sociedade brasileira, percebo um caráter de classe que atinge o cerne do capital, enquanto as lutas procuram destruir a propriedade privada e propor uma nova forma de uso e, conseqüentemente, uma nova concepção de terra. A despolitização do econômico pelo emprego de categorias estáticas, desencarnadas dos processos históricos nos quais se engendram, tem dificultado a compreensão do movimento camponês que escapa às interpretações teóricas tradicionais. Captar a dimensão educativa desse processo, que expropria o trabalhador de sua terra e de seus instrumentos de trabalho, que o transformam em operário e, que, ao mesmo tempo, obriga-o a organizar-se para destruir essa relação, põe a seguinte questão: Como perceber, na violência com que o capital investe para expropriar/ proletarizar camponeses e operários e na violência com que estes trabalhadores se organizam para romper a relação, a dimensão pedagógica de formação do trabalhador para o capital e do trabalhador como classe, sem perder de vista a contraditoriedade de tal relação e sem dissociar o móvel econômico, como determinante da luta de classes, do político, como referencial ideológico, cultural e de valores que o informa? Vejo a luta pela posse da terra como uma luta específica dos trabalhadores brasileiros que vivem um determinado processo histórico diferente do que ocorreu na Europa, em que os trabalhadores eram autônomos, portanto, não se constituíam em relação com o capital. O trabalhador rural amazonense já está amarrado às 62 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Mar lene Ribeiro relações sociais de produção capitalista através do mercado. Procuro visualizar seu movimento por classe em formação; por classe que se faz na luta pela posse da terra e dos instrumentos de produção; pela comercialização de seus produtos e pela implantação de uma infra-estrutura que lhe ofereça condições de sobrevivência na terra, sob forma de hospitais, escolas, remédios, transportes, financiamentos, insumos, política de preços, etc. Nessas lutas alguns líderes são cooptados. Outros conseguem seus objetivos e abandonam a luta. Há aqueles que precisam fugir pelas ameaças constantes de mortes. Muitos morrem nos enfrentamentos e de doenças causadas pela miséria. Permanece o movimento fortalecido por levas de migrantes e de trabalhadores expulsos por fazendeiros, grileiros, dívidas com bancos... Aos poucos vão se encontrando ao longo do caminho, no cotidiano da luta pela terra e pela sobrevivência. Há uma dualidade no trabalhador rural que se manifesta na sua radicalidade quanto à luta pela terra e no seu conservadorismo quanto às relações de trabalho e quanto à aceitação das inovações tecnológicas.8 A observação pura e simples dessas condutas poderia levar a uma leitura deturpada de suas lutas, muito especialmente se privilegiarmos uma das faces de seu comportamento. É preciso ir à raiz desses comportamentos, às relações de expropriação/proletarização que geram a perda dos meios de produção, o assalariamento e a organização dos trabalhadores. Essas relações se fundam na contradição capital/trabalho, contradição esta que se reflete nas práticas sociais. O agricultor quer participar das instituições organizadas pelo capital, quer obter lucros, ser patrão. Porém, na luta que empreende para manter-se na terra e para vender seus produtos no mercado, percebe a existência de outros companheiros na mesma situação de exploração. Percebe também que o capital concentra a propriedade da terra e a riqueza produzida socialmente e não lhe permite espaço para a ampliação de seus ganhos, antes restringe e até destrói as oportunidades de reproduzir-se como agricultor. Esse é o processo histórico de longa duração, prenhe de contradições. A forma esquemática com que foi exposto tem por objetivo orientar a análise da realidade pesquisada, atentando, portanto, para o caráter dialético e histórico dos conceitos. 8 Lenin e Kautsky, ao analisarem a formação de um mercado na Rússia, o primeiro, e a questão agrária, o segundo, já apontavam essa dualidade do camponês. LENIN, Vladimir I. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. 1982. São Paulo: Abril. KAUTSKY, 1972. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 63 Dimensão pedagógica da violência na formação... O processo de expropriação/proletarização/organização assume uma dimensão pedagógica ao instituir a relação trabalho x capital. Para o capital, enquanto “educa” a força de trabalho para produzir mais, em menor tempo, gerando índices de lucro. Para a classe trabalhadora, enquanto esta se organiza e luta para destruir as relações de expropriação/proletarização, obrigando o capital a redimensionar-se para manter-se e, ao mesmo tempo, construindo-se classe para si 9 nesse processo. O movimento gerado pela luta de classe entre trabalho e capital parece-me a situação privilegiada para captar a violência que marca o educativo do capital e da classe trabalhadora. Parto do pressuposto de que as relações engendradas pelo capital são sempre contraditórias. Neste caso, o agricultor-pescador amazonense é autônomo enquanto detém a posse da terra e dos instrumentos de trabalho, não é autônomo enquanto já está preso à relação com o mercado. Sua produção é determinada por este e valorizada pela troca e não pelo trabalho socialmente contido ou pelo valor de uso. A ausência do título de propriedade não lhe garante a permanência na terra limitando a sua autonomia. No entanto, por possuir a terra e os instrumentos de trabalho, o trabalhador ainda não está preso à relação, podendo, de certa forma, subverter a lógica do capital. Faz isso, organizando a sua jornada de trabalho e a sua produção de acordo com as necessidades familiares, sem preocupar-se em produzir um excedente, até porque a herança indígena fortalece o hábito da não acumulação. Além disso, com sua posse está negando a propriedade privada, fundamento do capital. É a luta pela posse da terra e contra as condições que o esmagam e o empurram para a sujeição nas fábricas, que põe o agricultor frente a frente com o capital enquanto relação, forjando nele a consciência de que isolado será submetido e até assassinado, como já vem acontecendo. Esta luta para desvencilhar-se da relação vai subvertendo a concepção de propriedade privada pela sua negação – a posse – e engendrando novas relações que apontam para novas formas de organização da sociedade. “Percebo a posse coletiva como terceiro momento (negação da negação) da luta de classes em que se dá a superação da propriedade privada que é, por sua vez, a negação da propriedade individual autônoma” (RIBEIRO, 1987, p. 73). As lutas dos trabalhadores sem-terra parecem caminhar em direção a esse horizonte. 9 Ver MARX, Karl. Miseria de la filosofia. Moscú: Editorial Progresso, 1981. p. 141. 64 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Mar lene Ribeiro No Amazonas, condições geográficas acrescentam um dado importante para o entendimento do processo de expropriação/proletarização/organização. A Amazônia é uma imensa planície; as águas são presença viva e constante na vida dos caboclos; são suas estradas e fontes de alimentos. A exuberância da floresta não demonstra a pobreza do solo. Em vista disso, a sobrevivência do caboclo interiorano é garantida pela agricultura e complementada pela pesca.10 Na falta de carne bovina, porque o solo, o relevo e o clima não se prestam à pastagem, salvo em algumas regiões, e na falta de caça devido à depredação do meio ambiente, é o peixe que ainda garante o suprimento de proteína à alimentação do agricultor amazonense. Expropriação no Amazonas, portanto, refere-se não só a expulsão da terra, mas também dos rios, lagos, paranás e igarapés de onde o caboclo retira, através da pesca, o alimento necessário ao seu sustento e da sua família. Os rios estão sendo invadidos por barcos pesqueiros e as entradas dos lagos fechadas por seringalistas e fazendeiros, proprietários das terras que o margeiam, impedindo os agricultorespescadores de pescar. Supostamente despovoada, a Amazônia é objeto de projetos de ocupação e colonização justificados para a opinião pública como uma estratégia de integrar a região ao país, e de oferecer terra e trabalho para agricultores que perderam a terra (MARTINS, 1982; IANNI, 1979, 1981). A política oficial, entretanto, é desmascarada pelo fracasso dos projetos oficiais de colonização que têm um triplo objetivo: deslocar os conflitos das áreas mais tensas, desmobilizando os trabalhadores; ocupar áreas indígenas e posses de caboclos para a exploração mineral e garantir mão-de-obra barata para os projetos industriais e agropecuários. Hoje, a expansão do capital, expulsando índios, posseiros, pequenos e médios proprietários, retirando-lhes as possibilidades de sobreviverem da agricultura, da caça e da pesca, efetua-se com o acirramento cada vez maior da contradição capital/ trabalho, uma vez que não reproduz mercado de trabalho nas fazendas e indústrias para absorver pelo menos uma parte dessa força de trabalho “liberada” (MARTINS, 1982). Desta forma, o contínuo caminhar do agricultor expulso, em busca de sobrevivência nas grandes cidades, sem emprego, sem lugar fixo para morar e criar os filhos, enfrentando em toda a parte um inimigo comum que não lhe dá tréguas, 10 EMBRAPA. O significado socioeconômico da pesca. 1.º Plano Indicativo de Pesquisa Agropecuária para o Estado do Amazonas – 1980-1985. Manaus/AM, 1978. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 65 Dimensão pedagógica da violência na formação... é que lhe incute a compreensão de que não há saída. Com outros companheiros ocupa terras e as defende até a morte. É nesta luta pela posse da terra, que já vem ocorrendo em várias partes do país, que o trabalhador rural vai, aos poucos, construindo-se como classe e rompendo com a estrutura da propriedade privada. Nisto reside a diferença qualitativa das lutas dos trabalhadores rurais brasileiros, o que nos permite apreender a expropriação/proletarização/organização como um processo elementar de formação de força de trabalho para o capital e, ao mesmo tempo, do trabalhador como classe em luta contra o capital. A compreensão das lutas dos operários brasileiros, por sua vez, deve ser inserida na compreensão mais ampla das lutas internacionais. É o contexto de classes que se pode compreender o avanço científico-tecnológico aplicado aos processos produtivos. A pressão dos trabalhadores organizados nos países centrais eleva os salários e os encargos sociais, alterando a composição orgânica do capital. Para manter as taxas médias de lucro o capital move-se em duas direções: a) emprega tecnologias sofisticadas que ampliam os níveis de apropriação pela concentração de postos de trabalho e pela dispensa de trabalhadores; b) desloca-se para regiões onde exista uma força de trabalho liberada, barata e abundante, com regimes autoritários que exerçam controle sobre as organizações operárias, que sejam condescendentes ao não-cumprimento das leis trabalhistas, 11 que ofereçam incentivos fiscais e que permitam o livre fluxo de capitais para o exterior. 12 A divisão internacional do trabalho determina, com a criação da Zona Franca de Manaus, que, no Amazonas, seja implantado um modelo industrial artificial, porque não vinculado à produção primária, dependente de tecnologia e componentes importados. A abundância de terras determinará que a estratégia de proletarização, tal como no processo original, esteja articulada à expropriação da terra com a finalidade de “liberar” os trabalhadores para sujeitar-se ao trabalho nas indústrias. AntecedendoA flexibilização e a precarização do trabalho, no Brasil, diferentemente dos países centrais em que políticas sociais do Estado de Bem-estar Social entram em crise no início dos anos 70, constituem-se a regra de uma seguridade social nos moldes em que foi conquistada na Europa. 12 Este é o entendimento acerca dos objetivos de criação das Zonas de Livre Porto (ZLP), direcionados para os interesses do capital internacional, que aparecem em documentos da United Nations Industrial Developement Organization (UNIDO), nos autores consultados. Sobre a Zona Franca de Manaus, ver ANCIÃES, Adolpho Wanderley da F. et al. Avaliação da Zona Franca de Manaus . Brasília: CNPq/CAT/NAEA, 1980. Fotocopiado; ARAÚJO, Nice Ypiranga Benevides. O milagre dos manauaras: Zona Franca de Manaus. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1985. Dissertação. Fotocopiado. Ver também publicações em Ribeiro (1987, p. 245-6, nota). 11 66 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Mar lene Ribeiro as, o comércio de importados inicia o trabalho de “atração” das populações interioranas para a capital, Manaus, em busca de melhores condições de vida, de escolas e empregos para os filhos [...]. Além das agências estatais que mascaram a tomada “pacífica” da terra, é criado do Distrito Agropecuário com incentivos à implantação de agroindústrias no município de Manaus. O Distrito Industrial sujeita os trabalhadores liberados do campo. Aí onde o capital pretende obter índices de mais-valia que compensem a diminuição das taxas nas matrizes, irá pagar salários que nem preenchem as funções de subsistência, deixando de cumprir acordos de proteção ao trabalho e de assistência social. Para obter a sujeição dos trabalhadores a tais condições, as empresas precisam selecionar e educar o operário caboclo para que este produza segundo os fins determinados pelo capital. Faz isso. Não são propriamente os agricultores expulsos de suas terras os recrutados para trabalhar nas fábricas, mas seus filhos. Os operários estão na idade de 14 a 25 anos. Aí eles se submetem a uma série de normas para a produção que os reduzem a complementos de máquinas já obsoletas em países desenvolvidos, mas aqui no Brasil ainda respondem aos objetivos do capital, ou seja, prolongar o período de extração da mais-valia em função do capital investido na construção das máquinas. Os números escritos no quadro para serem alcançados ao final de um dia de trabalho, irão determinar todo o comportamento dos operários, suas horas de trabalho, refeição e lazer, a posição de seus corpos diante das máquinas e até o número de filhos que devem ter. 13 Produzir mais em menos tempo é uma norma que o operário deverá incorporar à sua alimentação, ao seu trabalho, à sua reprodução, ao seu lazer, à sua saúde, à sua instrução, à sua cultura, de modo a tornar-se um traço de sua personalidade. De maneira visível para o capital e invisível para o trabalhador, a constituição de uma subjetividade produtiva passa pela norma de produção entranhada nos corpos para fazê-los dóceis, confirmando estudos sobre a disciplina (ENGUITA, 1989), ou a constituição de um bio-poder (FOUCAULT, 1980 e 1984). Expropriação/proletarização/organização, portanto, são categorias históricas que 13 A introdução de novas tecnologias nos processos produtivos, como a robotização e a computação, convive ainda com a esteira taylorista no Distrito Industrial de Manaus. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 67 Dimensão pedagógica da violência na formação... permitem captar no movimento global da sociedade como se faz o trabalhador amazonense para e contra o capital. Nesse processo há uma dimensão pedagógica em que o capital procura impor suas “leis naturais” aos trabalhadores para formar o operário produtivo. O reverso desta posição mostra o educativo para o trabalhador, que se constrói como classe em uma práxis contraditória na qual, ao mesmo tempo em que produz para o lucro, luta contra o capital, subvertendo a sua racionalidade e tentando destruí-lo. O capital usa estratégias para expropriar o agricultor/pescador amazonense desde quando se estabelece como relação, determinando de fora a produção do caboclo; ou quando não lhe dá condições para produzir e comercializar seus produtos; ou na figura do Estado quando gera a dependência dos insumos, da assistência técnica e do crédito, ou quando toma a terra do caboclo usando a violência física, o aparato policial, desrespeitando preceitos constitucionais ou, ainda, nos projetos de colonização em que coloca em confronto com o caboclo para que este se “eduque” na composição com outro trabalhador já expropriado (RIBEIRO, 1998). São os filhos e filhas dos agricultores-pescadores que se tornam metalúrgicos nas multinacionais instaladas em Manaus. Para produzir segundo as exigências do capital internacional, os operários amazonenses serão submetidos à rigorosa disciplina. Costumes tradicionais provenientes da produção de tipo caboclo cedem lugar a um ethos direcionado para a produção lucrativa, imposto pelo arroubo salarial, pela extensão do exército de reserva e pelas péssimas condições de trabalho nas empresas e de vida nos bairros operários. Agricultores e operários não são robôs. Organizam-se na luta pela posse da terra e de uma política adequada aos seus interesses, por benefícios sociais já conquistados pelos trabalhadores do Sul, pela autonomia de suas organizações, ou seja, contra as contradições a que são submetidos e que representam o próprio capital. Neste aproximar-se da classe em construção é possível perceber que a violência da expropriação/proletarização caracteriza a pedagogia do lucro, substituindo métodos primitivos de produção, como os que utilizados para produzir a alimentação básica do caboclo, o peixe e a farinha, por métodos altamente sofisticados, como o uso da esteira, do computador e do microscópio. 68 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Mar lene Ribeiro Nesse processo, a linguagem, os costumes, as crenças, o saber construído sobre o mundo da produção rural determinada pelas condições de exploração do capitalismo mercantil, vão cedendo lugar a comportamentos, atitudes, linguagens e conteúdos peculiares ao mundo da moderna produção industrial, que substitui a lentidão e a incerteza dos fenômenos naturais, próprios do trabalho agrícola, pela precisão do cronômetro embasado no conhecimento científico-tecnológico. Mas, na contramão desse movimento, a pedagogia da violência dirigida contra os trabalhadores, moldados em mercadorias do processo produtivo capitalista, transmuda-se em violência de autoformação do operário em direção a uma classe que aos poucos passa a reconhecer-se como sujeito de produção de bens e de história. A dimensão pedagógica da violência na relação capital x trabalho Despovoadas na concepção daqueles que vêem o desenvolvimento através das fábricas, das agroindústrias, das estradas, do trabalho mecanizado e, sobretudo, das cercas de propriedade privada, as terras do Amazonas são, ao mesmo tempo, obstáculos à sujeição do trabalho, como também apresentam um grande potencial econômico representado por seus recursos naturais. Por isso, a expansão do capitalismo exige o cumprimento de leis de trabalho. A propriedade e/ou posse familiar são obstáculos à transformação de uma economia baseada na subordinação mercantil, para a subsunção real do capital, fundamento da economia planejada (MARX, 1985). A subordinação real efetuar-se-á pelo aproveitamento da força de trabalho potencial expulsa da terra para ser transformada no operariado do Distrito Industrial de Manaus. A passagem do velho individualismo econômico, caracterizado pela subordinação mercantil, para uma economia programada, que emprega tecnologias sofisticadas, ocorre sob a extrema violência das classes para manter/destruir a relação que as vincula. Essa luta tem um caráter educativo para as classes enquanto estas refazem suas estratégias de confronto em função das perdas e conquistas que vão obtendo ao longo do processo. Decorrente desta racionalização da economia, a Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 69 Dimensão pedagógica da violência na formação... expropriação/proletarização no Amazonas se apresenta como uma situação privilegiada para captar a dimensão pedagógica do processo que transforma trabalhadores muito próximos dos povos chamados “primitivos”, pela cultura indígena da qual são herdeiros diretos, em operários montadores de sofisticados aparelhos eletroeletrônicos. Modificações que ocorrem na organização do trabalho vão se refletir nas concepções, costumes e crenças dos trabalhadores. Para o agricultor-pescador a concepção de vida confunde-se com sobrevivência e trabalho porque este tem por objetivo único a manutenção da vida. O trabalho do agricultor-pescador, determinado tanto pelas condições materiais em que produz peixe e farinha com métodos artesanais quanto pela apropriação de seus produtos por regatões, 14 está sendo substituído pela agricultura intensiva, exploração racional da madeira e do minério. A mudança que se processa na produção material de bens de sobrevivência para bens de consumo é caracterizada pela introdução de novas culturas, instrumentos e métodos de cultivo. Silvicultura, guaraná, cacau, dendê, cítricos e pesca, que se utilizam de pesquisas, insumos, instrumentos aperfeiçoados, financiamentos, redes e frigoríficos substituem o peixe e a farinha que historicamente se constituíam como alimento básico dos caboclos amazonenses, derivados da pesca e do plantio da mandioca. As diferenças nas concepções de vida e de trabalho, definidas em função das alterações que se processam na estrutura produtiva baseada no trabalho familiar, que muda para trabalho assalariado, podem ser visualizadas com maior nitidez nos projetos de colonização, onde entram em conflito o caboclo, subordinado ao capital mercantil, com relativa autonomia sobre a sua produção, e o colono, já expropriado e submetido formalmente ao capital financeiro sob controle do Estado. 15 Para o colono, que perdeu a terra no Paraná, sua região de origem, que precisa pagar o empréstimo bancário e a sua parcela de terra, não interessa mais produzir a vida, mas produzir o lucro, o excedente. Para o caboclo, o colono é ganancioso porque trabalha para enricar. Separados pela cerca da propriedade privada, vão aos poucos descobrindo que são iguais nas condições de exploração a que estão submetidos. 16 Regatões são comerciantes que percorrem o interior em barcos, trocando produtos in natura por produtos industrializados, estes sobrevalorizados em relação àqueles. Ver TEIXEIRA, Carlos Corrêa. O aviamento e o barracão na sociedade do seringal: estudos sobre a produção da borracha na Amazônia. São Paulo: USP. Dissertação, 1980. 15 Sobre o confronto entre a produção e a cultura do agricultor caboclo e do agricultor colono, ver RIBEIRO, 1998. 16 Em Novo Aripuanã, no Projeto Esperança, caboclos foram expulsos das posses que ocupavam há mais de 10 anos, sendo essas terras demarcadas para a instalação de colonos provenientes do Paraná (RIBEIRO, 1987, p. 221-231). 14 70 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Mar lene Ribeiro Essas mudanças que se dão na matriz material de produção encarregam-se de destruir/gerar antigas/novas concepções, costumes e instituições. A troca de matérias-primas por produtos industrializados entre os trabalhadores rurais e os regatões vai perdendo espaço para o comércio de compra e venda, em que aqueles trabalhadores começam a ver seus produtos como mercadorias e a exigir o pagamento em dinheiro. A terra é abundante, porém o solo é pobre o que estimula a continuidade do nomadismo indígena, em que os agricultores-pescadores deslocam as lavouras sempre que o solo se esgota, por isso mesmo não se preocupam em obter títulos de propriedade. A posse ainda se confunde com a propriedade da terra percebida como meio de produção e de vida. A introdução das cercas da propriedade privada realça a validade dos títulos, bem como coloca para o caboclo a noção de terramercadoria, entendida no capitalismo como um valor monetário (MARX, 1983) que contrapõe à terra de trabalho a terra de negócio (MARTINS, 1982). A alimentação determinada pela natureza (peixe e caça) e pelos hábitos culturais (frutas e produtos derivados da macaxeira) diversifica-se com a introdução do macarrão, de enlatados e da pequena criação (galinhas e porcos), como alternativas para a falta de carne bovina, para a escassez de peixe e de caça. Nas fábricas, a quebra do binômio peixe com farinha, que enfrenta a resistência constante dos operários, têm dois objetivos ainda mais específicos. O tempo, como fator preponderante na produção, condiciona refeições que possam ser ingeridas mais rapidamente, que exigem menor consumo de água após a ingestão para não romper o trabalho e que evitem o sono e a fadiga após o almoço. A diminuição das áreas de terras dos posseiros minifundistas determina também a diminuição do tamanho da família. Agricultores têm famílias numerosas que garantem força de trabalho para o cultivo da terra e a produção da farinha. O processo de expropriação/proletarização está pondo para os agricultores-pescadores a questão do planejamento familiar pela preocupação com o futuro dos filhos, uma vez que não há terras para dividir. O uso da telha no lugar da palha do buriti, que vem rareando, e a introdução dos aparelhos eletroeletrônicos vão modificando os hábitos culturais relativos à construção das casas e à organização das atividades de lazer, respectivamente. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 71 Dimensão pedagógica da violência na formação... As mudanças que se processam na organização do trabalho são determinadas pelo propósito do capital de racionalizar a produção agrícola, extrativa e industrial na região, e que, para tanto, precisa ensinar ao caboclo as normas da produção intensiva. Usar sementes selecionadas, adubos químicos e instrumentos técnicos (grupos geradores e motosserras); investir em culturas que obtenham maior rendimento; analisar a fertilidade do solo para identificar as maiores possibilidades de aproveitamento do mesmo, são alguns dos objetivos desta proposta “educativa” cuja metodologia e conteúdos caracterizam-se pela violência e crueldade com que são impostos os novos valores aos expropriados/proletarizados.17 O capital estabelece e mantém suas normas fundadas nas relações de exploração pelo consenso, criando mecanismos que as justifiquem para torná-las “aceitáveis”, e pela coerção, quando os primeiros já não surtem efeito ou começam a ser desmascarados. A multiplicação das agências estatais responsáveis pelos financiamentos, pesquisas, assistência técnica e social, legislação, registro e controle de terras e águas preenchem a primeira função. Tais agências disfarçam a violência da destruição de modos de produção primitivos e da implantação da produção tecnológica planificada. Essa produção molda o trabalhador, inculcando, não só as novas regras do plantar/colher, do comprar/vender, mas também os novos valores que deverão ser incorporados como padrões de comportamentos produtivos pelos trabalhadores. Há casos em que a violência direta não se faz necessária, pois a falta de condições para produzir e as ofertas de compra de terras por parte dos fazendeiros fazem da expulsão em acontecimento anônimo, tranqüilo e limpo. Mas nem sempre é assim. Cada vez mais as máquinas das prefeituras, as carabinas da polícia e dos jagunços, os papéis mandados pelos juízes, através dos oficiais de Justiça, coagem o agricultor-pescador a tornar-se um novo homem, trocando sua terra, enxada e terçado pelo salário que talvez lhe dê o direito de usar instrumentos mais sofisticados, mas que não lhe pertencem. A luta apresenta também uma dimensão educativa para o trabalhador que se vai fazendo classe nesse processo. Os primeiros atos de resistência dos trabalhadores rurais às mudanças introduzidas pelo estabelecimento de novas forças produtivas 17 Ver Expropriação disfarçada: as agências educativas do capital (RIBEIRO, 1987, p. 128). 72 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Mar lene Ribeiro vão no sentido de tentar ampliar a sua terra, os seus ganhos, e até de formar um capital pela aquisição de máquinas, barcos e contratação de outros trabalhadores, bem poucos conseguem atingir este estágio, diferenciando-se dos companheiros. Uma grande maioria, pressionada pelas exigências do capital que quer fazê-los peões, ocupa espaços na Igreja participando de linhas pastorais de cunho popular. Em alguns casos, a organização da comunidade em defesa da posse da terra não conta nem com a Igreja nem com a presença do sindicato. É a luta extrema pela sobrevivência, pois os posseiros sabem que não têm para onde correr. As práticas dos sindicatos de trabalhadores rurais amazonenses, que começam a ser criados em 1972, têm-se caracterizado pelo assistencialismo e pelos impostos pela legislação aos seus órgãos de classe. 18 A premência da luta pela terra, que marca o processo de formação do agricultor como classe, vai burlar o controle exercido pelas agências estatais que imprimem a organização do trabalho para o capital, como também vai romper com os limites das instituições que os trabalhadores procuram para organizar-se: Igreja e sindicatos. Na Igreja são introduzidos temas de conteúdo eminentemente político, produzindo-se reflexões sobre as práticas dos trabalhadores na luta pela posse da terra, que os orientam para a ocupação de terras e para a participação sindical e partidária. Nos conflitos, onde a situação se radicaliza, porque não há terras para onde os agricultores possam deslocar suas roças, o sindicato começa a superar a característica assistencialista e de dependência do Estado, assumindo a liderança e encaminhando as propostas dos trabalhadores. Nesse processo são geradas, além de uma nova concepção de sindicalismo construída na luta, formas alternativas de organização autogeridas pelos trabalhadores, como as associações, as feiras e as cantinas comunitárias. A concepção de terra também vai sofrer alterações que apontam para novas formas de propriedade e uso coletivo do solo como meio de produção e de vida, uma vez que os conflitos vão mostrando aos trabalhadores a necessidade de permanecerem juntos. Mesmo assim, a dualidade do camponês como proprietário/ trabalhador faz com que as suas organizações, que em determinados momentos assumem maior radicalidade em relação às lutas dos operários, caminhem mais devagar e sejam muito frágeis aos métodos desagregados utilizados pela pedagogia do capital através de suas agências educativas. 18 Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Amazonas (FETAGRI/AM) e Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG). Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 73 Dimensão pedagógica da violência na formação... O processo de expropriação/proletarização vai atingir um número significativo de agricultores-pescadores, cujos filhos irão trabalhar como montadores de aparelhos eletroeletrônicos no Distrito Industrial de Manaus. Nas fábricas, a imposição de um novo ethos aos filhos dos agricultores-pescadores funda-se nas transformações resultantes da implantação do modo capitalista de produção plenamente desenvolvido, que tomará o lugar da subordinação dos agricultores ao capital mercantil, construindo-se, a partir da prática, a concepção de trabalho assalariado que substitui a de trabalho autônomo. O tempo da máquina irá determinar a disciplina direcionada para a produção da mais-valia sobre a qual se organizarão o transporte, a alimentação, os hábitos, a sexualidade, o lazer, a doença e a escola. No lugar dos dias e noites, dos meses, das cheias e vazantes do rio Amazonas, que determinam o plantio, a colheita e a festa; das estações inverno/verão, que duram cada seis meses, é posto o cronômetro que elimina a lentidão própria da natureza, o desperdício de matérias-primas e de movimentos. O tempo natural é substituído pelo tempo tecnológico, medido em minutos e segundos e inscrito nas esteiras, nas calhas onde são colocados os instrumentos, na posição dos corpos, determinando o movimento dos braços, mãos, olhos presos aos alicates, à solda, aos microscópios, às cores dos fios elétricos... O agricultor não tem móveis; come de pé ou sentado no chão; usa apenas a colher (vínculo com o remo, o barco e o rio) ou mãos; a sua principal refeição é pela manhã, antes de sair para a roça ou para a pesca. Nas fábricas, o operário, filho do agricultor, aprende a entrar em fila, a comer em intervalos regulares, a usar talheres, a sentar à mesa e a comer muito mais rápido. O barco a remo, usado no interior, é substituído na cidade pelo transporte coletivo (ônibus) fretado pelas empresas, mais rápido e eficiente para eliminar atrasos e quebrar o hábito de não trabalhar em dia de chuva, próprio do modo de vida rural. Perdem-se as habilidades de caçar, pescar, plantar, ralar e torrar a mandioca e aprende-se a montagem do kit eletrônico. A cultura indígena é identificada não só nos hábitos alimentares de construção da casa e nos instrumentos da caça, como também na manifestação da sexualidade. A miscigenação de nordestinos, que migraram para trabalhar na borracha, com índias, criou uma forma peculiar de sexualidade que não perde o caráter repressivo, 74 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Mar lene Ribeiro porém se expressa com maior liberdade, sendo marcada pelo afetivo em detrimento do que a cultura ocidental caracteriza como moral. Há uma lenda do boto, em que é possível perceber a síntese das culturas indígenas e européias, na interpretação que é dada à gravidez de uma moça solteira. Nas fábricas, empresários e gerentes vindos geralmente da Região Sudeste, caracterizam o comportamento feminino como tendendo à prostituição, não a partir de critérios culturais ou morais, como à primeira vista poderia parecer, mas estritamente econômicos, uma vez que as formas mais livres com que forma de fadigas, faltas, atrasos, licenças médicas e de gestante. Por isso, é preciso difundir a concepção de imoral ao comportamento das operárias caboclas, imprimindo a moral burguesa do “recato” feminino através de prescrições sobre o uso de roupas, proibições de relações com chefias, ou disciplinando o comportamento sexual dos jovens trabalhadores pelo controle da natalidade, pelas demissões após a licença-gestante, pela falta de creches, o que não impede que gerentes, supervisores e encarregados tirem proveitos de operárias que trabalham sob suas ordens. A sexualidade dos operários passa a ser rigorosamente controlada, tendo em vista a disciplina da linha de montagem que não pode parar.20 Paralelamente à questão da sexualidade, observa-se a disciplina do lazer, que passa a ser organizado pelo Serviço Social, ou Comunicação Social da empresa, ou pelo Serviço Social da Indústria (SESI), tendo por objetivo disciplinar as diversões operárias dentro dos padrões de produção, controlando especialmente o horário, a duração, a espécie de atividade e o consumo de bebidas. Visa também desmobilizar a freqüência às atividades sindicais que afetem a produtividade, pondo em questão as próprias relações sociais de produção devido ao trabalho político desenvolvido pelo Sindicato dos Metalúrgicos. Até a questão da saúde/doença é organizada pela disciplina da produção, visando classificar e manter o operário produtivo, extraindo dele o máximo de possibilidades de mais-valia.21 20 21 Nas indústrias montadoras a força de trabalho é predominantemente feminina, o que é justificado com a afirmação de que as mulheres são mais ágeis e pacientes para lidar com aparelhos minúsculos na montagem do kit. A resposta marcara o critério econômico que determina a seleção das mulheres por serem mais “dóceis”, morarem com os pais e, por isso, aceitarem salários inferiores aos que são pagos aos operários (RIBEIRO, 1987, p. 240-242). O tempo tecnicamente comprovado de “vida útil” de uma montadora é bastante curto, ou seja, constata-se que a partir do 3.º ou 4.º ano consecutivo no desempenho das tarefas de montadora, a produtividade da operária decresce. Ver SPLINDEL, Cheywa Rojza. Formação de um novo proletariado. As operárias do Distrito Industrial de Manaus. São Paulo: IDRC/FAPESP/IDESP, jan./1987. Fotocopiada. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 75 Dimensão pedagógica da violência na formação... Por fim, a escola, onde se supõe que os operários deveriam receber uma formação científico-tecnológica, desempenha dupla função. Uma, como socializadora de hábitos, atitudes e habilidades afinadas com a disposição do corpo e com a distribuição do tempo na linha de montagem; outra, como classificadora e hierarquizadora do valor da força de trabalho (ENGUITA, 1989). Para o trabalhador rural amazonense, a escola é a terra, das estações, das cheias e vazantes do rio, das características do solo, das sementes, da desova dos peixes [...] Seus filhos freqüentam a escola da sede do município durante as cheias, quando não há outra coisa a fazer senão esperar que as águas baixem para iniciar o plantio. Para as fábricas, no entanto, a escola é importante como inculcadora da disciplina que se expressa na obediência aos horários, na concentração da atenção, no domínio das necessidades fisiológicas, na freqüência e na permanência do corpo em uma mesma posição durante longos períodos de tempo. Esta importância cresce em função da idade-limite para o ingresso nas fábricas, dos 14 aos 25 anos. Os padrões de comportamento incorporados através da disciplina escolar influem para que o operário atinja mais rapidamente os patamares de produção e os critérios de qualidade determinados pelas previsões de lucro estabelecidas pelas empresas. Quanto à segunda função, a escolaridade constituise em critério de classificação de funções e salários, não importando a qualidade da formação escolar recebida. As formas através das quais o capital imprime o caráter do operário são brutais, uma vez que, sobre a destruição de processos primitivos de produção agrícola, estabelecem métodos refinados de montagem de sofisticados aparelhos eletroeletrônicos, como televisores, calculadoras, computadores, videocassetes, aparelhos de som, telefones, condicionadores de ar, ventiladores. Esta mudança, que ocorre na matriz material de produção, destrói hábitos, habilidades e comportamentos reproduzidos há séculos pelas práticas culturais de sobrevivência e pela tradição oral, e formula novas concepções de trabalho, de tempo, de vida e de crença. A violência com que o capital impõe às práticas dos trabalhadores a sua concepção de mundo, de humanidade e de economia explica-se pela violência com que os operários resistem ao estabelecimento da relação capitalista de reprodução. É na luta para não ser roubados, subjugados e consumidos que os operários vão se descobrindo enquanto tais. No início, através de atitudes individuais de rebeldia. Os 76 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Mar lene Ribeiro pedidos de demissão justificados pelos maus-tratos e gritos dos chefes imediatos; o sentir vergonha de ser operário(a); o absenteísmo; a doença mental e até o suicídio são formas individuais, espontâneas e ainda de rejeição de produção a que são submetidos os operários. Esses comportamentos iniciais irrefletidos vão evoluindo para formas coletivas não organizadas de resistência, que se expressam em lutas por reivindicações concretas. São as guerras de pratos contra a comida podre, são as paralisações internas contra o trabalho em altas temperaturas sem ventiladores ou condicionadores de ar, contra o fechamento do vestiário feminino, contra a falta de água gelada, contra a retirada da farinha do cardápio [...]. Aos poucos, os operários passam a ocupar espaços na Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA). Descobrindo que esta instância é patronal, os operários procuram organizar-se fora da fábrica. Seguindo a tradição religiosa interiorana do trabalho comunitário, procuram a Igreja e fundam a Pastoral Operária, onde irão articular a organização externa com a organização interna dos grupos de fábrica. Reflexões produzidas sobre as práticas mostram aos operários os limites da organização eclesial que os faz partir para a conquista do seu sindicato, organizando Oposição Sindical Metalúrgica Puxirum, eleita em 1984, cuja linha de ação foi mantida em 1986. A partir daí, sob a orientação do sindicato, são organizados os grupos de fábricas que mobilizam e sustentam as duas greves gerais, a de 1985, primeira da categoria metalúrgica, e a de 1986. Vale ressaltar a participação e a solidariedade de diferentes categorias de trabalhadores à primeira greve metalúrgica de Manaus. Apesar das conquistas obtidas, os sindicalistas têm enfrentado inúmeros problemas, que vão do seu despreparo para administrar a burocracia sindical, às questões referentes à segurança e à disciplina na organização dos grupos de fábricas, e às campanhas salariais, além de divergências de cunho político-ideológico no encaminhamento das lutas. Este foi o estágio possível, dentro de um determinado contexto de movimentos sociais em nível nacional, de amadurecimento da categoria metalúrgica, referência para as demais categorias de trabalhadores amazonenses. Em menos de 20 anos de criação do Distrito Industrial de Manaus, a categoria metalúrgica transpôs séculos de história de formação do proletariado internacional. Arrancada do interior de culturas autenticamente rurais, com fortes traços indígenas, começa a formar-se Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 77 Dimensão pedagógica da violência na formação... uma classe operária moderna que acompanha o movimento dos trabalhadores nacionais e internacionais e que inova nas suas estratégias de enfrentamento do capital. Suas práticas evidenciam a construção de concepções de solidariedade de classe, de um sindicalismo independente do Estado e de partidos políticos como instrumentos de luta da classe trabalhadora. Mas essas mesmas práticas são contraditórias e começam a apresentar limites, referidos, tanto ao esgotamento da estrutura sindical quanto à conjuntura de desemprego, em que a redução dos postos de trabalho e do número de sindicalizados aplasta o movimento sindical. Apesar do limites da luta sindical, compreendidos dentro do pacto que representou o Estado social, vejo como importante o aprendizado histórico efetuado pelos operários metalúrgicos, embora reconheça que hoje o contingente de trabalhadores desempregados enfrenta o desafio de superar o campo institucional, tanto sindical quanto partidário, como arena de luta. Considerações finais Esse recorte da história da transformação do trabalhador rural em operário, no Amazonas, está circunscrito a um período histórico – do final dos anos 70 ao final dos anos 80. É marcado, neste Estado, pelo crescimento das indústrias da Zona Franca de Manaus e, no país, pela reabertura política conquistada pela força dos movimentos sociais, em que se destacam as grandes greves metalúrgicas do ABC paulista. Os movimentos sociais, entre os quais o sindicalismo, enfrentam questões relacionadas à estrutura sindical e ao desemprego estrutural e tecnológico, questões essas relacionadas ao esgotamento do salariato e do modelo de sindicato a ele vinculado. Sendo assim, pergunto-me: Teria o estudo da expropriação/proletarização ultrapassado seu tempo de comunicar sentido, quando o desemprego estrutural e tecnológico aliado à destruição do Estado social, privilegia a repulsão da força de trabalho proletarizada? Não seria hoje a exclusão da relação – que concentra capital e expulsa trabalho –, disfarçada pelo nome de desemprego, uma violência ainda maior enquanto elimina a possibilidade aos processos produtivos concentram capital e expelem trabalho. Então, o que pode ser mais violento, a expropriação da terra para criar a relação em que o capital sujeita e explora a força de trabalho, ou a 78 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Mar lene Ribeiro eliminação desta força de trabalho explorada de seu vínculo contraditório com o capital, que pode significar a morte? Pode a substituição do “trabalho vivo” pelo “trabalho morto” significar uma via para a emancipação do trabalhador? Essa é uma questão central para a compreensão da violência sobre a qual se sustenta a relação capital x trabalho e das formas de superá-la. Será que o trabalhador consegue estar “livre” sem as mínimas condições de sobrevivência, quando todas as possibilidades de vida estão sujeitadas, exploradas e concentradas pelo capital? Ou será que a exclusão da relação no processo produtivo sob a forma do desemprego é a face oculta da queima do excesso da mercadoria, força de trabalho que, em outras épocas e situações, tem sido destruída por leis de vadiagem, enforcamentos, guerras, fome, miséria, queima de barracos, catástrofes e epidemias que, “preferencialmente”, atingem os pobres? Penso que desnudar a violência do capital na sua gênese, retratada na concretude e na singularidade do processo de expropriação/proletarização/ organização do trabalhador amazonense, ainda forneça elementos para contrapor ao capitalismo como via única que o neoliberalismo tenta-nos impingir. Ao mesmo tempo, realimenta aqueles princípios constituintes de uma sociedade democrática e solidária, cuja defesa, mesmo nos momentos mais adversos, como afirma Perry Anderson (1995), não podemos transigir. A revisão do processo histórico de expropriação/proletarização, tendo por referência um caso concreto, que reconta com novas palavras a velha e conhecida história da formação dos trabalhadores europeus e brasileiros, expõe inúmeras questões para refletir. O trabalho obscurecido pelo problema do desemprego, o esvaziamento dos movimentos sociais e organizações sindicais tradicionais são questões que não estamos sendo capazes de enxergar, presos que ainda estamos aos velhos modelos institucionalizados de organização dos trabalhadores. Referências ANDERSON, Perry. Além do neoliberalismo. In: SADER, Emir.; GENTILI, Pablo (Org.). Pós-Neoliberalismo. As políticas sociais e o estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 197-205. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 79 Dimensão pedagógica da violência na formação... CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Vozes, 1998. ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. 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Palavras-chave Inovações tecnológicas e organizacionais, qualificação e formação profissional, treinamento, trabalho, qualidade total. 1 2 O ar tigo é parte da Tese de Doutorado defendida em 2000 junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da IFCS/UFRJ. Professora adjunta do Departamento de Ciências Sociais da UFAM. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 81 Inovações tecnológicas e qualificação profissional Abstract The objective of this work is to discuss the social impacts of the technological and organizational inovations on the electronics industry of consumer goods in the Manaus Free Zone, having as a reference the field research, made in the years 1998-1999, on 4 great industries from the electronic sector. The data from the research show that the new ways of work organization require new technical and professional skills and, as a consequence, demands important changes in the professional formation and qualification. Keywords Technical inovation, organizational innovation, professional formation, professional qualification, trainning, work, total quality. Introdução A mudança nas formas de organização da produção e do trabalho difundiuse, nas últimas décadas do século 20, com enorme rapidez no mundo inteiro. A reestruturação produtiva alcançou países econômica e industrialmente diferenciados a partir da globalização dos mercados e da produção, do declínio da produção em massa e da adoção de políticas econômicas nacionais orientadas para o mercado. As repercussões do conjunto das transformações desencadeadas por esses processos são múltiplas e diferenciadas. Os distintos espaços empíricos de investigação, intensificada a partir da década de 80, capturaram especificidades e diversidades e, por isso mesmo, auxiliaram na reflexão sobre a natureza e a amplitude da nova trama produtiva. O ponto de partida do trabalho aqui apresentado é a literatura que trata do processo de modernização tecnológica e a sua repercussão sobre a formação profissional e toma como referência para o estudo realizado a indústria eletroeletrônica brasileira situada na cidade de Manaus. Centrado em quatro grandes montadoras de bens eletrônicos de consumo, o estudo considera que as mudanças ocorridas no 82 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Maria Izabel de Medeiros Valle espaço fabril na década de 90 visaram a adequação das unidades produtivas às exigências do ambiente marcadamente mais competitivo. A busca de novos padrões de produção para enfrentar a redução da demanda no mercado interno e o acirramento da concorrência entre os diversos produtores, resultados da recessão econômica e da abertura comercial, conduziram à elevação no grau de automação e à adoção de novos métodos de gestão. As inovações tecnológicas e organizacionais implicaram no reordenamento da estrutura de funcionamento das unidades produtivas daí emergindo um perfil diferenciado da empresa e do trabalhador. Modernização e qualificação profissional O debate sobre os impactos das inovações tecnológicas sobre a qualificação do trabalhador tem como referencial básico a formulação de quatro teses principais (PAIVA, 1989). A primeira, de filiação bravermaniana, aponta para o aprofundamento da desqualificação e intensificação do trabalho. A segunda, considera que o desenvolvimento tecnológico produz um efeito positivo sobre o trabalho já que conduz à requalificação e, portanto, à elevação da qualificação média do trabalhador. A terceira, refere-se à polarização das qualificações, isto é, à coexistência de dois tipos de profissionais: de um lado, um número muito reduzido de trabalhadores altamente qualificados e, de outro, uma grande massa de trabalhadores desqualificados. Por último, a tese da qualificação absoluta e desqualificação relativa que se apóia na idéia de que o “capitalismo contemporâneo necessita de homens mais qualificados em termos absolutos (a qualificação média se elevaria) enquanto que a qualificação relativa, considerando-se o nível de conhecimentos atingidos pela humanidade, se reduziria se comparado com épocas pretéritas” (PAIVA, 1989, p. 5). A análise dos efeitos da reestruturação produtiva sobre a qualificação do trabalhador brasileiro tem levado alguns pesquisadores, como se verá a seguir, a apontar para a emergência de um novo perfil de trabalhador que se coaduna com aquele estabelecido por Piore e Sabel (1984). Esses autores, ao analisarem os novos paradigmas da produção industrial, notadamente a especialização flexível, afirmam que Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 83 Inovações tecnológicas e qualificação profissional o seu funcionamento implica não só na adoção de novas tecnologias mas também na alteração do perfil do trabalhador: no lugar do trabalhador semiqualificado e obediente do sistema fordista, o trabalhador polivalente, multifuncional, consciente e responsável. Dessa forma, o operário-massa, desqualificado, tende a perder relevância no cenário das economias que vêm, desde a década de 70, procurando estabelecer um novo padrão de produção industrial mediante a adoção de novas tecnologias e novas formas de organização do trabalho. Pesquisas e ensaios produzidos no Brasil nos primeiros anos da década de 80, analisados por Abramo (1990), apontaram para mudanças na composição e qualificação da força de trabalho, isto é, para o aumento da proporção das profissões mais qualificadas em relação ao total da mão-de-obra empregada; exigências de escolaridade mais elevada; atribuição de tarefas de inspeção e controle para os trabalhadores da produção e polarização das qualificações. Com base nos resultados acima enumerados, a autora conclui que, de maneira geral, a tese da desqualificação não encontra amparo empírico. Outros autores (GITAHY; Rabelo, 1991; LARANJEIRA, 1993), também apontam para a transformação no perfil das qualificações e Laranjeira (1993, p. 26) chama a atenção para o fato de que “a desqualificação em um nível pode ser acompanhada por requalificação simultânea em outro nível”. Outros indicadores das exigências de mudança no perfil do trabalhador são apresentados por Lima (1991) que considera que o conhecimento do produto e das diversas fases da produção, a exigência de conhecimentos gerais e a disposição para o trabalho em grupo ganham cada vez maior relevância nos vários setores industriais. Valle (s/d, p. 8) considera que “uma das condições para a utilização eficiente dos sistemas integrados de produção é que os trabalhadores possuam algumas habilidades”, isto é, que sejam portadores de capacidades cognitivas e capacidades comportamentais. Na década de 80, cresce a demanda por um profissional tecnicamente competente, flexível, multifuncional e dotado de atributos ligados à sua subjetividade. Cooperação, iniciativa, envolvimento, responsabilidade e capacidade de decisão aparecem como novos requisitos necessários à contratação. 84 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Maria Izabel de Medeiros Valle Kirschner et al. (1993) também apontam, como resultado da pesquisa realizada junto a diferentes estabelecimentos de empresas líderes da indústria do Estado de São Paulo, para um novo perfil de qualificação do trabalhador. Maior autonomia, capacidade de verbalização e comunicação, capacidade de trabalho em equipe, conhecimento geral do processo de produção, capacidade de iniciativa, de criar, de pensar e de decidir são alguns dos requisitos que compõem o novo perfil da qualificação profissional. Para os autores (1993, p. 46-7), a superação da concepção taylorista-fordista da organização do trabalho leva, impreterivelmente, à mudança da concepção de tarefas que deixa de requerer um aprendizado por assimilação de operações, às vezes repetitivas, e de acrescentamento de qualificação [...], para requerer formas mais abrangentes e organizadas de aprendizagem, onde o ato de pensar preside o ato de fazer. A tese da qualificação/requalificação do trabalhador é fortemente questionada quando se introduz a perspectiva de gênero. Hirata (1992), por exemplo, alerta para as conseqüências sociais diferenciadas das mudanças tecnológicas sobre o emprego, o trabalho e a qualificação para homens e mulheres. Na mesma linha encontram-se os trabalhos de Lobo (1991), Kergoat (1992) e Abreu (1994). Para Neves (1994, p. 33), “se existe uma formação/requalificação para as mulheres, isto ocorre em setores onde elas já estão presentes: têxtil, metalúrgica, elétrica, eletrônica”. Fogaça e Salm (1994, p. 210-213) identificam na literatura que trata dos requisitos de qualificação exigidos pela nova base técnica, alguns pontos consensuais. Em primeiro lugar, o esgotamento do padrão taylorista-fordista conduz a uma diminuição das hierarquias e a uma ampliação das atribuições e responsabilidades dos trabalhadores do chão da fábrica, modificando a divisão do trabalho; por outro lado, as empresas tornam-se mais dependentes do envolvimento dos trabalhadores para a obtenção de melhores desempenhos. Em segundo lugar, as alterações da estrutura ocupacional, notadamente entre os trabalhadores diretos, privilegiam as habilidades mentais/intelectuais em detrimento das habilidades manuais. O “aprender a pensar” substitui o “aprender a fazer” e a formação profissional precisa ser reorientada no sentido de prover o desenvolvimento Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 85 Inovações tecnológicas e qualificação profissional das novas competências; os novos perfis privilegiam a maior autonomia, a criatividade, a capacidade de intervir no processo produtivo e o trabalho em equipe. Em terceiro lugar, as empresas passam a requerer e valorizar uma formação profissional ampla (broad skills) e não mais a formação específica (narrow skill). Em quarto lugar, a baixa escolaridade da população brasileira apresentase como o principal obstáculo à introdução e difusão das novas tecnologias de automação e de organização do trabalho. Os impactos produzidos pelas mudanças tecnológicas e, fundamentalmente, pela racionalização do processo produtivo e pelas novas técnicas organizacionais – menor verticalização, ampliação das tarefas, maior autonomia e responsabilidade – se não eliminam necessariamente os postos de trabalho sem maiores requisitos de qualificação, provocam uma maior segmentação porque os postos caracterizados pelo trabalho manual e repetitivo tendem a ser ocupados por uma força de trabalho secundária, sujeita a contratos precários e à alta rotatividade. A separação passa a ser estabelecida entre os que participam do core das atividades modernas e os que dela estão ausentes introduzindo novas fissuras na estrutura ocupacional. Os processos de reestruturação produtiva e de globalização da economia que transformam rapidamente o mundo do trabalho repercutem sobre a formação profissional dos trabalhadores. Nesse processo, emerge um perfil do trabalhador e um conceito de qualificação “que vai além do simples domínio de habilidades motoras e disposição para cumprir ordens [posto que inclui] também ampla formação geral. Não basta mais que o trabalhador saiba ‘fazer’; é preciso também ‘conhecer’ e, acima de tudo, ‘saber aprender’ (LEITE, 1997, p. 162-163). Forma, conteúdo e metodologia são redefinidos nesse contexto abrindo espaço para a emergência de uma nova institucionalidade. Os diferentes atores sociais – trabalhadores e sindicatos, empresas e suas entidades representativas, Estado e instituições científicas, tecnológicas e educacionais, organizações e instituições da sociedade civil posicionam-se nesse debate apresentando e negociando suas concepções acerca do tema da formação e qualificação profissional. 86 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Maria Izabel de Medeiros Valle Qualificação profissional e treinamento dos trabalhadores na ZFM A pesquisa realizada em quatro empresas produtoras de bens eletrônicos de consumo do Distrito Industrial de Manaus indica que as novas formas organizacionais do processo de trabalho adotadas na década de 90 do século 20 vêm distanciandose daquelas centradas no modelo hierárquico-funcional taylorista. A implementação de programas de qualidade requerem um tipo de qualificação que, situando-se além da escolaridade formal, envolve um processo de socialização pré-profissional resultante das características socioculturais e psicossociais dos trabalhadores. As novas formas de organização do trabalho faz evoluir a qualificação operária no sentido de transformá-la numa “divisão acrescida do trabalho” (FREYSSENET, 1990, p. 100). As condições para o ingresso e permanência no emprego tornam-se cada vez mais seletivas. Escolaridade, idade, capacidade de decisão, de ter iniciativa e responsabilidade, de resolver problemas e propor soluções, de administrar a produção e a qualidade, isto é, de desenvolver múltiplas funções, de ser simultaneamente operário de produção e de manutenção e inspetor de qualidade, todas estas são qualificações exigidas pelo novo modelo produtivo e contrastam fortemente com aquelas do modelo taylorista. Os novos requisitos que associam saber técnico-profissional e competências atitudinais parecem indicativas de uma transição da lógica da qualificação para a lógica das competências. 3 Nas entrevistas realizadas com os gerentes das diferentes empresas, ficou claro que entre os atributos hoje necessários ao trabalhador estão o conhecimento em profundidade de área específica de trabalho, compreensão de todo o processo de produção tendo em vista a necessidade de entender e prever os efeitos de possíveis erros na cadeia de produção e capacidade de adquirir e operar intelectualmente novas informações. Exige-se do trabalhador que ele seja simultaneamente um 3 A noção de qualificação, entendida na sua multidimensionalidade, implica na qualificação do emprego, qualificação do trabalhador e qualificação como relação social, isto é, como resultado de uma correlação de forças capital-trabalho. Na noção de competência, oriunda do discurso empresarial na década de 80, está ausente a idéia de relação social que define o conceito de qualificação. A competência remete a um sujeito e a uma subjetividade e as qualificações são substituídas por um “saber-ser” (HIRATA, 1992, p. 5). Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 87 Inovações tecnológicas e qualificação profissional especialista e um generalista e “um homem de decisão e iniciativa, disposto a colaborar”. A Confederação Nacional da Indústria (CNI, 1993, p. 18) expressa limpidamente essa idéia ao indicar que o trabalhador deve apresentar competência para superar “hábitos tradicionais adquiridos numa forma ultrapassada de relações sociais, baseada na oposição linear entre capital e trabalho” [e] capacidade de transferir conhecimentos adquiridos na vida cotidiana para o ambiente organizado do sistema produtivo”. A nova forma de organização exige do trabalhador habilidades de natureza operacional e conceitual. O trabalho autônomo, conceito fundamental no novo processo produtivo, deve orientar a formação do trabalhador de forma a incluir, entre a aquisição das competências necessárias, as habilidades básicas (“ensinar a pensar”, isto é, a identificar e superar erros como parcialismo, egocentrismo, arrogância e polarização); as habilidades específicas (identificada com o conceito de “empregabilidade” polivalente e a longo prazo, isto é, ações de qualificação e de requalificação profissional) e as habilidades de gestão (capacidade de co-gerir o processo tecnológico, de gerir o seu próprio tempo e sua relação com companheiros e chefes). A formação profissional deve, assim, ampliar o horizonte de competência do trabalhador, na percepção da CNI (1993, p. 19-21). Zarifian (1998, p. 22-23) argumenta que, entre algumas evoluções ocorridas nas grandes empresas encontra-se a introdução de um jogo mais dialético entre qualificação do cargo e aquela do indivíduo. A noção de competências, entre estas, as competências sociais (autonomia, comunicação, etc.), introduz capacidades que, em princípio, referem-se ao comportamento do indivíduo: Mas na aplicação prática da noção, a tendência prescritiva continua amplamente em cena: não é ao indivíduo que se associam as competências de autonomia e responsabilidade; é sempre o cargo que tem necessidades de autonomia e de responsabilidade. A competência exigida pelo cargo continua a determinar a competência adquirida pelo indivíduo. De fato, embora as competências sociais não estivessem explicitadas na “matriz de qualificação” em três das empresas investigadas, os atributos de responsabilidade e capacidade para o trabalho em equipe para o preenchimento de 88 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Maria Izabel de Medeiros Valle determinadas funções eram verificados através de entrevistas e “testes de seleção”. Em uma delas, no entanto, os atributos de responsabilidade, iniciativa, flexibilidade e facilidade de relacionamento eram parte dos “requisitos mínimos” para os preenchimentos dos cargos de montador, operador e reserva encontrando-se explicitados na descrição de cargos. No que se refere ao treinamento, o novo modelo produtivo vem requerendo a elaboração e execução de novos cursos destinados aos diferentes níveis hierárquicos. Na Tabela 1 estão relacionados os principais cursos oferecidos pelas empresas da amostra aos seus “funcionários”. Tabela 1: Zona Franca de Manaus. Treinamentos realizados pelas empresas da amostra (1998) Cursos Público-Alvo IE1 IE2 IE3 IE4 Matemática Básica Produção Sim Sim Não Sim Prática Redacional Produção Não Não Não Sim Leit. e Interp. Desenho Produção Sim Não Não Não Metrologia Prod/Qualidade Sim Sim Não Não Op. de MFCN Produção Sim Não Não Não Manut. Equipamentos Engenheiros Sim Sim Não Não CEP Prod/Qual/Sup/Eng. Sim Sim Não Não Desenvol de Hab. Gerenciais Gerentes/Chefes Sim Sim Não Não Conscientiz. para QT Todos Sim Sim Sim Sim ISO 9000 Todos Sim Sim Sim Sim Comunicação Adm/Qual/RH Sim Sim Sim Sim Inglês Todos Sim Sim Sim Não Informática Diversos Não Não Sim Sim Programa de Integração Todos Sim Sim Sim Não Palestras Todos Sim Sim Sim Sim Formação de Inst/Multiplic. Diversos Sim Sim Não Sim Supl. 1. grau Montador Não Sim Não Não Fonte: Pesquisa de campo. Obs: Na IE2 e na IE3 os cursos de inglês destinam-se àquelas categorias de trabalhadores “que necessitam desse tipo de curso”. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 89 Inovações tecnológicas e qualificação profissional As quatro empresas estudadas começaram a investir em amplos programas de treinamento como parte do projeto de reestruturação envolvendo a gestão da qualidade e encontravam-se, no momento de realização da pesquisa, em diferentes estágios de desenvolvimento dos programas de treinamento. A IE3 tem uma longa tradição na área de treinamento tendo inclusive criado uma fundação que atua na área de formação profissional. O grupo corporativo “adota uma política de treinamento agressiva” [que busca preparar] os seus funcionários para enfrentar os desafios do mercado, cada vez mais exigente em termos de formação profissional” (Balanço Social 1997 do Grupo Empresarial IE3). Em 1997, 5.311 funcionários participaram de 55.795 horas de treinamento conforme tabela abaixo: Tabela 2:Treinamento realizado pelo grupo corporativo IE3 Cursos Participantes Horas 4.741 45.274 Bolsa e Seminários 244 443 Idiomas 147 6.694 74 1.501 105 1.883 Capacitação Informática Gerencial Fonte: Balanço Social 1997 do Grupo Empresarial IE3. Na fábrica de Manaus, 962 trabalhadores participaram de 1.198 horas de treinamento no ano de 1998. A grande maioria destinava-se aos “operacionais” (626 trabalhadores, o que representa 65% do contingente empregado). A coordenadora de Desenvolvimento de Pessoal da empresa informa que o “treinamento objetiva solucionar problemas localizados na produção”. Em 1998, a coordenação referida foi responsável pela realização de 56 cursos dos quais 32 destinados aos operacionais, 19 aos administrativos (técnicos), 4 aos engenheiros e 1 às chefias. Predominaram os cursos destinados à capacitação, com carga horária variável (entre 2 e 120 horas). Todos os cursos foram organizados 90 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Maria Izabel de Medeiros Valle e executados internamente o que revela os frágeis ou até mesmo inexistentes vínculos com outras instituições locais. O grupo empresarial atua no ensino médio com habilitação profissional em Eletrônica e Processamento de Dados através de uma fundação, criada em 1987, “para formar e capacitar mão-de-obra qualificada para atender às necessidades tecnológicas da região amazônica”. Em 1997, a fundação investiu R$ 2.815,33 em cada um dos 287 alunos (139 em eletrônica e 148 em processamento de dados), “concedendo benefícios como ensino gratuito, empréstimo anual de livros didáticos e doação de uniformes, atendimento médico-odontológico e social, alimentação e transporte. Para dar suporte aos alunos, a fundação contava com 16 professores e 29 funcionários (15 dos quais terceirizados)” (Balanço Social 1997 do Grupo Empresarial IE3). Nos últimos anos, o montante destinado aos programas de treinamento vem diminuindo substancialmente e a “tendência é diminuir” frente às incertezas econômicas. A crise atingiu profundamente o setor de treinamento que ficou reduzido a 3 pessoas. A implantação de novas formas de organização e gestão do trabalho tem como objetivo, por outro lado, a construção de uma nova mentalidade: “a cultura da qualidade”. A estratégia de treinamento adotada na empresa IE2 tem como base os procedimentos da qualidade percebidos como “a bíblia” que orienta a elaboração dos programas para os diferentes trabalhadores. O objetivo dos programas é “qualificar o funcionário de acordo com a matriz de qualificação [e tem como] meta atingir a qualidade”, segundo depoimento da analista de treinamento da empresa. A qualificação apresenta, na percepção da entrevistada, diferentes significados: qualificação para a promoção; para a reciclagem de conhecimentos inerentes ao próprio cargo (nível operacional); para habilitar o trabalhador ao uso de novas tecnologias e para atualização (áreas financeira e de pessoal). Embora contemple diversas áreas e funções, “o foco dos programas de treinamento é a área produtiva”. Aos operários da produção destinavam-se os cursos de matemática básica, supletivo de 1º grau, eletrônica básica e instrumentação eletrônica. Para os técnicos e Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 91 Inovações tecnológicas e qualificação profissional engenheiros, metrologia, manutenção de equipamentos e Controle Estatístico de Processo (CEP). Estas categorias participavam de treinamentos realizados em São Paulo. E todas as categorias participavam dos programas Integração, 4 Conscientização para Qualidade Total, ISO 9000 e Palestra.5 O programa Desenvolvimento de Habilidades Gerenciais, destinado aos chefes e gerentes, visava ao preparo de “lideranças” junto às outras categorias de trabalhadores. Executado nos anos de 1996 e 1997, com assessoria de São Paulo, o programa desenvolveu-se mediante a formação de grupos formados por sete pessoas (grupos Cumbuca) que se reuniam uma vez ao mês, durante duas horas, para discutir e apresentar soluções para os problemas relatados. “A experiência iniciou-se em nível de chefia e direção e depois ‘baixou’ [para os outros níveis]. Todo mundo perdeu o medo de falar, de fazer exposição do pensamento”, informa o gerente da Garantia da Qualidade. Organizados pela própria empresa ou por centros profissionalizantes, instituições educacionais ou por empresas de consultoria, os cursos objetivam capacitar a força de trabalho, “fortalecer as relações interpessoais e promover uma integração maior entre os diferentes níveis”. O departamento de treinamento da empresa encontrava-se bastante reduzido. As funções anteriormente de responsabilidade da gerência de recursos humanos foram incorporadas à área de abrangência da gerência administrativa e financeira. O “enxugamento” do departamento, resultado da crise, é percebido pela analista de treinamento como “algo necessário e conjuntural”. O programa de treinamento na IE4 contempla atividades internas e fechadas e externas e abertas e visam “à qualificação e aperfeiçoamento do funcionário”. O setor de treinamento possui uma coordenação e um corpo de instrutores constituído pelos próprios trabalhadores.6 Em geral, os treinamentos destinam-se às áreas O programa consiste em apresentar a empresa ao trabalhador recém-contratado. No primeiro dia de trabalho e acompanhado por alguém da área de recursos humanos, o trabalhador visita as dependências da empresa, é apresentado ao “pessoal principal” (gerentes) e toma conhecimento das normas de funcionamento da empresa, do sistema de benefícios e de responsabilidades, da política de qualidade e da expectativa da empresa com relação ao desempenho do trabalhador. 5 As palestras, realizadas ao longo do ano, abrangem temas ligados à saúde, alimentação e qualidade de vida. 6 O gerente de Relações Industriais informa que “o corpo de instrutores”, ou “doutrinadores”, é constituído pelos trabalhadores da própria empresa que ao concluírem cursos realizados externamente transmitem seus conhecimentos para os demais trabalhadores de dentro da fábrica. Os “doutrinadores” são remunerados por hora/aula. Estes trabalhadores demonstram grande interesse em ministrar cursos em função da remuneração que funciona como complemento salarial. 4 92 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Maria Izabel de Medeiros Valle específicas. Para o pessoal da produção, matemática básica, eletrônica básica, kanban, solda e revisor de montagem. Os cursos externos “têm caráter comportamental”. Na avaliação do gerente de recursos humanos, os técnicos e os gerentes são bons tecnicamente mas péssimos em ter mos comportamentais porque não sabem lidar com pessoas. É um desastre no lidar com as pessoas. Nós estamos dando cursos de relações humanas, estilos de liderança, organização, trabalho em equipe, etc. Na IE1, o objetivo do treinamento também é a qualificação e a atualização da força de trabalho: “profissionais melhores, mais capacitados, mais criativos, em linha com o mercado”. Cursos de matemática básica, leitura e interpretação de desenho, metrologia e operação de máquinas/ferramentas com controle numérico destinam-se aos operários da produção. Para os engenheiros, cursos de manutenção de equipamentos e Controle Estatístico de Processo. Para os chefes e gerentes, o curso de Desenvolvimento de Habilidades Gerenciais e Palestras sobre relações humanas. Todas as categorias de trabalhadores participam de treinamentos relacionados à Conscientização para Qualidade Total, curso de idiomas (inglês) e programa de Integração. As horas anuais de treinamento distribuem-se entre cursos organizados pela empresa para seus funcionários e cursos organizados por centros profissionalizantes, empresas de consultoria e convênios com instituições educacionais. Os recursos financeiros aplicados pela empresa em treinamento vêm crescendo nos últimos anos, uma vez que a orientação da empresa é enfrentar a crise com investimentos em pessoal: “crise maior, maior o investimento em pessoal” (gerente de Recursos Humanos). No discurso gerencial, os novos métodos e técnicas organizacionais demandam um trabalhador com novas qualificações. No entanto, na prática, os programas de treinamento efetivados pelas empresas não se orientam pela busca de uma maior qualificação do trabalhador no sentido de provê-lo de maiores habilidades cognitivas, uma vez que se limitam às atividades vinculadas à execução da tarefa e à preparação de uma “nova mentalidade”. A introdução de novas formas Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 93 Inovações tecnológicas e qualificação profissional organizacionais não implica, portanto, na superação da divisão clássica taylorista que opõe trabalho de concepção e de execução. As informações obtidas no trabalho de campo indicam que a qualificação profissional identifica-se com a “qualificação horizontalizada” (ARRUDA, 1997), ou seja, aquela que ocorre por meio da agregação de tarefas. Conclusão A qualidade total é uma estratégia que permite simultaneamente melhorar a qualidade do produto e do processo, maximizar o uso de máquinas, equipamentos, materiais e instalações e instituir uma nova sociabilidade fabril mediante a constituição de relações sociais entre os diferentes níveis hierárquicos fundada na cooperação. O pacto social que daí emerge pressupõe a participação ativa e o compromisso dos trabalhadores na busca da qualidade e da produtividade. No entanto, ao ampliar as tarefas, o desgaste e as responsabilidades dos trabalhadores, mantendo o mesmo nível dos salários, as empresas asseguram-se da elevação da qualidade e da produtividade e também da lucratividade. O trabalho repetitivo e fragmentado tende a perder importância frente à exigência de novas habilidades cognitivas e comportamentais. A perda relativa de importância das habilidades manuais em face dos processos automatizados favorece, por sua vez, a polarização entre trabalhos mais qualificados e menos qualificados e o aprofundamento da segmentação por gênero. Os novos perfis profissionais compatíveis com o avanço da automação e a difusão de novos métodos de organização da produção e de gestão encontram-se associados à maior capacidade de abstração (capacidade para ler, interpretar e decidir) e, fundamentalmente, a certas qualidades subjetivas como responsabilidade, cooperação, interesse, etc. O trabalhador típico do modelo taylorista-fordista vem deixando de ser funcional para os objetivos empresariais. 94 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Maria Izabel de Medeiros Valle Referências ABRAMO, Laís W. Novas tecnologias, difusão setorial, emprego e trabalho no Brasil: um balanço. 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Sob tal enfoque, são centralizadas as metamorfoses ocorridas no mundo do trabalho e os desdobramentos políticos daí decorrentes, a partir da ótica dos operadores de produção do Distrito Industrial da Zona Franca de Manaus, base empírica para apreensão das múltiplas formas de expressão de suas consciências, bem como para a análise dos limites e possibilidades da emergência de embriões potencializadores em direção à formação da vontade coletiva. Palavras-chave Manaus; Zona Franca; trabalho. 1 Doutora em Serviço Social e professora adjunta do Departamento de Serviço Social e do Programa de PósGraduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 99 Impactos da reestr utur ação produtiva nas expressões de... Abstract The study sought to investigate and reflect on the consequences originated from a set of present changes on the day-to-day of the working class. Under such focus, the metamorphosis occurred on the working world and the political deployments derived were considered, departing from the point of producting workers of the Manaus Industrial District, which was the empirical basis for gathering the multiple forms of consciousness expressions, allowing the analysis of the limits and possibilities of appearance of purposive embryoes toward the consolidation of a collective will. Keywords Manaus; zone free; work Introdução Diante da emergência cada vez mais incontrolável das contradições inerentes à lógica do capitalismo, coube a precípua, inadiável e complexa tarefa de articular o “instrumental” necessário para a reversão da tendência das taxas de lucro. A grande recessão mundial que se instaurou a partir de 1974-1975, longa e complexa, com surtos de crise e expansão, exigiu que a dinâmica arbitrada pelo grande capital fosse revista para garantir uma base adequada às exigências de valorização, reiniciando-se uma nova sucessão de formas de produção de mercadorias (sob as mais diferentes configurações), 2 e regulações sociais, econômicas e políticas compatíveis, que, somadas às implicações das revoluções tecnológicas, têm subvertido o mundo do trabalho. 2 De acordo com os estudos de Mattoso, os representantes da escola de regulação francesa consideram várias configurações nacionais ou variantes nacionais em relação à reestruturação produtiva: fordismo genuíno (EUA), fordismo híbrido (Japão), flex-fordismo (Alemanha), fordismo impulsionado pelo Estado (França) e fordismo democrático (Suécia). Para outros autores, ainda segundo Mattoso, os desdobramentos das respostas à crise e ao esgotamento de um padrão de desenvolvimento seriam apenas dois: o neotaylorismo (caso dos EUA, Inglaterra e França) e o envolvimento coletivamente negociado (caso do Japão). A esse respeito, ver Mattoso, Jorge. A desordem do trabalho. São Paulo: Scritta Editora, 1996, especialmente o cap. II, p. 55-120. Para Gitahy, as novas formas de organização industrial recebem designações diferenciadas na literatura internacional: neofordismo ou pós-fordismo para a “escola de regulação francesa”; novo paradigma técnico-econômico para os neoschumpeterianos; “estratégia PIW”, na literatura escandinava; “especialização flexível” para Piore e Sabel; systemofactore para Hojjman e Kaplinsky; lean production ou “produção enxuta” para Womack. Apesar das diferenças qualitativas que os envolvem, todos eles destacam a existência de vantagens econômicas na utilização efetiva de inovações tecnológicas, nas áreas de produto, processo e organizacionais. A respeito, ver Gitahy, L. Inovação tecnológica, subcontratação e mercado de trabalho. In: São Paulo em Perspectiva. v. 8, n. 1. São Paulo: Seade, 1994, p. 144. 100 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Márcia Pelares Mendes Silva É para responder, portanto, a um tipo de crescimento limitado às “ondas longas recessivas”, em cuja origem situa-se a tendência declinante da taxa de lucro, que o capitalismo monopolista – caracterizado por Mandel como capitalismo tardio3 – implementa processos que envolvem desde a privatização do setor público até a desregulamentação 4 do mercado financeiro e flexibilização do mercado de trabalho, pautando-se numa nova política econômica, com capacidade, em potencial, de remover as barreiras criadas pelo modelo de acumulação fordista, 5 bem como propiciar as condições para a reestruturação capitalista global. Recuperar o controle do capital sobre o trabalho, tanto na esfera da produção quanto no campo institucional, é uma imposição historicamente pontuada pelo próprio sistema capitalista. Sustentando-me na compreensão de que é sob a gênese de novas determinações, pautadas nas mesmas bases capitalistas, que os complexos processos em curso redimensionam a materialidade e subjetividade dos trabalhadores, o objetivo desta pesquisa6 foi investigar e refletir sobre o conjunto de conseqüências advindas das metamorfoses do mundo do trabalho e seu rebatimento no âmbito das idéias e ações, a partir da ótica da classe trabalhadora, mais especificamente dos operadores de produção do Distrito Industrial da Zona Franca de Manaus, como subsídio para o dimensionamento dos limites e possibilidades da emergência de embriões potencializadores em direção à formação de uma futura vontade coletiva. Para Mandel, é a combinação de um conjunto de tendências desiguais que interagem na totalidade social (composição orgânica do capital em geral e nos setores mais importantes; a distribuição do capital constante entre o capital fixo e o circulante; o desenvolvimento da taxa de mais-valia e de acumulação; o desenvolvimento do tempo de rotação do capital e as relações de troca entre os Departamentos I e II [respectivamente, bens de produção e bens de consumo] que “[...] vai permitir-nos explicar a história do modo de produção capitalista, e sobretudo da terceira fase desse modo de produção, que denominaremos ‘capitalismo tardio’, mediante as leis do movimento do próprio capital, sem recorrer a fatores exógenos, alheios ao âmago da análise de Marx do capital”. (MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Nova Cultural, 1985. Os economistas, p. 27. 4 A desregulamentação é um slogan político determinante na era da acumulação flexível (HARVEY, 1992, p. 150). 5 O fordismo é aqui concebido como “a forma pela qual a indústria e o processo de trabalho consolidaram-se ao longo deste século, cujos elementos constitutivos básicos eram dados pela produção em massa, através da linha de montagem e de produtos mais homogêneos; através do controle dos tempos e movimentos pelo cronômetro fordista e produção em série taylorista; pela existência do trabalho parcelar e pela fragmentação das funções; pela separação entre elaboração e execução no processo de trabalho; pela existência de unidades fabris concentradas e verticalizadas e pela constituição/consolidação do operário-massa, do trabalhador coletivo fabril, entre outras dimensões” (ANTUNES, 1995, p. 17). 6 Esta pesquisa constituiu-se em uma das investigações, dentre outras realizadas, para o desenvolvimento e conclusão de minha Tese de Doutorado. 3 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 101 Impactos da reestr utur ação produtiva nas expressões de... Transfor mações sociais em curso: um olhar crítico É amplo e controverso o terreno de reflexão em torno da profunda crise que assola as sociedades contemporâneas. Incorporada ao léxico corrente sob os mais diversos significados7 e presente nas produções dos mais variados autores e correntes do pensamento social,8 a importância do desvendamento das teias constitutivas da crise deste final de século impõe-se a partir do entendimento de que as várias concepções que a envolvem estariam imbricadas “[...] no processo de secularização que envolveu todas as categorias da história e da ciência social e, de modo particular, os modelos macrossociológicos da explicação da evolução histórica, desde o positivismo até o marxismo e o funcionalismo”.9 Para a apreensão da constituição do bloco histórico atual, a concepção crítica da crise precisa ser refletida, em primeiro plano, evidenciando-se a prevalência da base material e não apenas a sua superestrutura jurídico-política. Com este propósito, sustento-me teoricamente em textos clássicos de crítica da economia política, 10 bem como me amparo em autores que oferecem contributos na direção supramencionada. Neste sentido, parece ser a partir da clássica afirmação de que a crise é a expressão do um descompasso entre a produção e a circulação, enquanto processo de produção e realização do lucro no interior da lógica de acumulação do capital e, ao mesmo tempo, o mecanismo através do qual a lei do valor se impõe, que é De acordo com Nogueria, “Na maior parte de seus inúmeros significados, ‘crise’ associa-se a um turning point, no qual explicitar-se-ia uma situação de particular gravidade e se revelariam, como diriam os médico, as chances de recuperação do paciente. Fala-se em crise econômica para assinalar uma fase de desemprego ou recessão. Em crise de consciência para demarcar uma inquietação causada por graves problemas éticos. O senso comum das pessoas registra a existência de crises sempre que se manifesta uma ruptura de um padrão (pessoal, grupal ou coletivo) tido como ‘normal’ [...]. Muitos sociólogos usam a palavra para qualificar situações afetadas pela quebra dos padrões de organização social, pelo ‘esgarçamento do tecido social’ que comprometeria a reprodução de uma dada ‘ordem” (JORNAL da Tarde, São Paulo, 25/3/99. 8 Segundo Nascimento, existe um congestionamento conceitual que merece ser bem enfrentado em nome da construção rigorosa de um espaço de inteligibilidade sobre a crise. Ao argumentar que na história das ciências sociais as concepções de crise têm assumido distintos contornos, Nascimento percorre a obra de alguns autores e/ou correntes do pensamento social resenhando as diversas concepções de crise nas ciências sociais, classificando-as em hermenêuticas, empíricas e comparativas. Ver NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. Crise e movimentos sociais: hipóteses sobre os efeitos perversos. In: Revista Serviço Social & Sociedade. v. 43, ano XIV, dez./1993, p. 72-92. São Paulo: Cortez Editora. 9 MARRAMAO, G. Política e Complexidade: o Estado tardo-capitalista como categoria e como problema teórico. In: HOBSBAWM, E. (Org.) História do Marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 132, v. 12. 10 Refiro-me especialmente aos livros 2 e 3 de O capital e os Grundrisse, de Karl Marx, cuja base conceitual permite uma leitura das crises do capital. 7 102 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Márcia Pelares Mendes Silva possível o entendimento dos processos de crises enquanto “[...] soluções momentâneas e violentas das contradições existentes, erupções bruscas que restauram transitoriamente o equilíbrio desfeito”.11 Redefinindo suas linhas de atuação através de uma dupla e concomitante implementação -- políticas neoliberais e transformações produtivas --, o sistema capitalista vem “favorecendo” a emergência de um novo paradigma industrial, pautado em novos processos de trabalho, onde “o cronômetro e a produção em série e de massa são ‘substituídos’ pela flexibilização da produção, pela ‘especialização flexível’, por novos padrões de busca de produtividade, por novas formas de adequação da produção à lógica do mercado”.12 Os processos reestruturadores em curso apontam também para o embate de práticas políticas, de ações de classes, que ratificam a correlação de forças entre capital e trabalho. É a partir dessa ótica que Dias sustenta que o conjunto de transformações para viabilizar as condições para a cumulação do capital envolve a adoção de medidas de dupla ordem – técnica e política: “[...] Todo o processo conhecido como reestruturação produtiva nada mais é do que a permanente necessidade de resposta do capital às suas crises. Para fazer-lhes frente é absolutamente vital ao capital – e aos capitalistas – redesenhar não apenas sua estruturação ‘econômica’, mas, sobretudo, reconstruir permanentemente a relação entre as formas mercantis e o aparato estatal que lhe dá coerência e sustentação. Assim, o momento atual da subsunção real do trabalho ao capital – conhecido ideologicamente como III Revolução Industrial – exige uma modificação das regras da sociabilidade capitalista, modificação essa necessária para fazer frente à tendência decrescente da taxa de lucro”. 13 Neste sentido, subjacente à emergência das mudanças na produção e no modo de regulação, enquanto condições para a reestruturação capitalista global, a proposta neoliberal apóia-se concomitantemente na despolitização das relações sociais, através da “[...] desqualificação teórica, política e histórica da existência de alternativas 11 12 13 MARX, op. cit., p. 286. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1995, p. 16. DIAS, Edmundo. A liberdade (im)possível na ordem do capital. Reestruturação produtiva e passivização. Campinas: IFCH/ UNICAMP, 1997, p. 14 [grifos meus]. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 103 Impactos da reestr utur ação produtiva nas expressões de... positivas à ordem capitalista e (d)a negação de qualquer mecanismo de controle sobre o movimento do capital, seja enquanto regulação estatal, seja por meio de outros mecanismos democráticos de controle social, em favor da regulação do mercado”. 14 A emergência de uma nova Revolução Industrial, possibilitada pela cibernética, automação, robótica, microeletrônica, flexibilização da unidade fabril, desconcentração da produção, vem aprofundando os níveis de desemprego, marginalização, precarização e exclusão social.15 Trata-se de um conjunto de transformações da estrutura do capitalismo – realizado em meio às ondas de modernização conservadora e de um quadro geral de globalização financeira, instabilidade econômica e emergência de inovações tecnológicas, produtivas e organizacionais – que vem rompendo com os mecanismos nacionais e internacionais que os regulavam, favorecendo um comportamento predatório ou espúrio, cujos resultados têm sido prejudiciais às sociedades contemporâneas. 16 Ainda que o Brasil esteja inserido em um contexto econômico, social, político e cultural que tem traços universais do capitalismo globalizado, apresenta singularidades que, “[...] uma vez apreendidas, possibilitam resgatar aquilo que é típico desta parte do mundo e deste modo reter a sua particularidade. Trata-se, portanto, de uma globalidade desigualmente combinada, que não deve permitir uma identificação acrítica ou epifenomênica entre o que ocorre no centro e nos países subordinados”.17 Para Netto, o Brasil se insere no capitalismo contemporâneo com duas importantes refrações derivadas de sua condição periférica e do nível de desenvolvimento e articulação das suas relações capitalistas: “Numa palavra, as transformações societárias [...] processam-se no Brasil mediadas pela inserção subalterna do país no sistema capitalista mundial e pelas particularidades de sua formação econômico-social”.18 MOTTA, op. cit., p. 97. “É possível afirmar que o conjunto de países ativamente envolvidos no processo de globalização, isto é, todos os membros da OCDE, mais uma ou duas dúzias de países da Ásia e da América Latina, estão em graus variados, sendo submetidos ao mesmo processo” (SINGER, 1996, p. 10). Sobre taxas de desemprego e número de desempregados, consultar OCDE (1990) E OCDE (1992). 16 Cf. MATTOSO, 1996, p. 31-32. 17 ANTUNES, R. Neoliberalismo, trabalho e sindicatos: reestruturação produtiva na Inglaterra e no Brasil. São Paulo: Boitempo, 1997, p. 79. 18 NETTO, op. cit, p. 103. 14 15 104 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Márcia Pelares Mendes Silva A instauração tardia do neoliberalismo no Brasil ocorreu sob uma forte ofensiva político-ideológica do capitalismo internacional que, amparando-se na queda do Muro de Berlim, na desagregação da antiga Rússia, no anúncio do “fim da História” e da “vitória” do capitalismo liberal em nível planetário, fez proliferar mundialmente a ideologia do mercado auto-regulado, da competição, da eficiência e do êxito econômico, sob o determinismo de que não haveria saída contra as tendências emergentes e inevitáveis dos pressupostos neoliberais. A partir de 1990, portanto, com a vitória de Fernando Collor nas eleições de 1989 que se inicia no Brasil “uma maior e explícita inserção subordinada às condições da nova ordem internacional e ao receituário de ajustes proporcionados pelos organismos internacionais”. 19 A nova orientação neoliberal e seus profundos resultados recessivos impõem novos padrões de concorrência capitalista no país e acelera o processo de privatização, desregulamentação e flexibilização das relações de trabalho, contingenciando as transformações produtivas nas empresas, expostas à concorrência internacional. É principalmente a partir desse marco histórico que o Brasil “[...] tende a se integrar mais ainda à nova ordem capitalista planetária, a construir um modo periférico da condição ‘pós-moderna’”. 20 Nesse contexto, ao invés de redefinir-se o perfil de intervenção estratégica do Estado, atacou-se o burocratismo do Estado e, com base na eficiência de mercado, acelerou-se “o seu processo de desestruturação e redução de sua capacidade de planejamento, financiamento, fiscalização, apoio à competitividade e à distribuição de renda”. 21 Iniciou-se no Brasil uma verdadeira cruzada privatista22 de desmantelamento de empresas estatais ou paraestatais em consonância com a ortodoxia dominante que apregoava a diminuição do Estado que, contrariamente ao desempenho do setor privado, era letalmente taxado de ineficiente e corrupto. MATTOSO, 1996. p. 39. ALVES, op. cit., p. 131. 21 MATTOSO, 1996, p. 39. Ainda segundo Mattoso (1995, p. 135), ao final da década de 80, o Estado brasileiro já se encontrava enfraquecido, não apenas financeiramente, mas do ponto de vista político e institucional, favorecendo a “aventura neoliberal de desestruturação selvagem no início dos anos 90”. 22 Cf. BORÓN, Atílio. A sociedade civil depois de dilúvio neoliberal. In: SADER, E.; GENTILI, P. (Org.). Pós-neoliberalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 79. 19 20 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 105 Impactos da reestr utur ação produtiva nas expressões de... O mercado de trabalho, que já vinha acumulando os efeitos da estagnação e da alta inflação da década de 80, ainda teve de conviver com a redução do emprego industrial, elevação da participação de trabalhadores sem contrato de trabalho, deterioração do poder de compra e aumento da desigualdade de renda dos indivíduos e famílias.23 Os resultados positivos têm sido para os empregadores que acompanham e corroboram com um processo de desintegração da força de trabalho, de dispersão dos trabalhadores, enfraquecimento de suas identidades sociais e políticas, precarização do emprego, do trabalho e a própria vida, ao lado do aberrante desemprego estrutural. Tendo como referência as reflexões explicitadas, o núcleo temático dessa investigação nas múltiplas formas de expressão de consciência dos trabalhadores na atualidade, bem como nos limites e possibilidades daí decorrentes em direção à possibilidade de germinação de uma vontade coletiva. Tal centralidade ratifica a importância e o interesse pela dimensão política, embora se reconheça a prevalência da esfera econômica. Conseqüentemente, fundamento-me em uma concepção entre política e economia que não restringe as relações de dominação e exploração ao terreno da economia, pois, “embora a hegemonia seja ético-política, ela deve ser também econômica, baseada necessariamente na função decisiva exercida pelo grupo dominante no núcleo decisivo da atividade econômica”. 24 Para tanto, elegi a matriz do materialismo histórico e dialético, uma vez que esta empreende o desvendamento do processo de produção e reprodução da sociedade capitalista, a partir da tematização teórica e histórica do processo de produção material e de reprodução social, numa perspectiva crítica, de ruptura e superação da sociedade capitalista. Sem distanciar-me do pensamento de Marx, fonte original dessa tradição, amparo-me também no pensamento de Lênin, Lucáks e outros pensadores mais contemporâneos filiados à tradição marxista, mas priorizo a perspectiva gramsciana, justificada não apenas pela contemporaneidade de seu pensamento, mas por ser a política a centralidade de seu constructo teóricometodológico. As condições do mercado de trabalho só não foram mais agravadas na década de 80 em função do crescimento mais lento da população urbana, do aumento do desemprego no setor público e à preservação da estrutura industrial (MATTOSO, 1996, p. 42). 24 GRAMSCI, Antonio. Obras escolhidas. São Paulo: Mar tins Fontes, 1978. 23 106 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Márcia Pelares Mendes Silva Parti da hipótese de que, diante da complexidade e das fragilidades que envolvem o coletivo operário na atualidade, esse coletivo manifesta sua ótica sobre as conseqüências das metamorfoses do mundo do trabalho para o seu cotidiano, principalmente porque é diretamente por elas atingido e ameaçado, sem estabelecer uma relação causa/efeito, levando-o, conseqüentemente, a incorporar de maneira significativa a ideologia dominante e expressar formas de consciência limitadas. Entretanto, entendo que tais limitações não são manifestações de expressões prevalentemente alienadas de consciência, mas de sua contraditoriedade, a partir da qual é possível apreender, à luz do núcleo do senso comum, germes potencializadores organizativos. Para tanto, as categorias centrais de análise são: a crise, o trabalho e a organização política. Ainda que se reconheça a extensão e diversidade do caráter teórico25 da crise, que sugere a priori uma complexidade quanto às suas construções conceituais, entendo que a prioridade à compreensão histórico-crítica da crise atual do capital é condição sine qua non para o desvelamento de seus impactos sociopolíticos na sociedade capitalista contemporânea, uma vez que é no interior dessa tessitura de crise econômica, política e social que os homens vêm elaborando reflexões, respondendo a indagações, posicionandose diante de novas determinações, consolidando/questionando concepções e objetivando ações. À luz desse entendimento, parto do princípio de que o discernimento crítico acerca do significado da crise do capitalismo atual vem ratificar a concepção de que a série de reparos temporários26 empreendidos na sociedade contemporânea – apresentados sob formas estratégicas inovadoras e definitivas de gerir as crises capitalistas instauradas – não implica na perenização do capitalismo, na aceitação da tese do fim da História27 25 26 27 Na história das ciências sociais, o tratamento teórico sobre a crise tem assumido contornos quantitativos e qualitativos distintos. A título de ilustração, Nascimento destaca, por sua importância, autores e correntes de pensamento onde a concepção de crise é abordada de formas diferenciadas, a saber: Durkheim e os funcionalistas, Marx, Gramsci, os marxistas franceses, a escola alemã da derivação, Weber, Keynes, a escola francesa de regulação, a corrente monetarista da economia, a escola de Frankfurt, Habermas, Bourdieu, Dahrendorf, Moore, Hobsbawm, Dobry, Chazel, Boudon, O’Donnel, Portantiero, Torres-Rivas, dentre outros. Cf. Nascimento, op. cit. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992. p. 177. Segundo Fernandes (1995, p. 58), na tese do fim da História, que adquiriu instantânea notoriedade já no início da década de 90, predomina a noção de que “a humanidade havia chegado a um estágio que tornava impossível qualquer perspectiva viável de desenvolvimento fora dos contornos do liberalismo político e econômico. Havia que se conformar com isso e aceitar todas as suas conseqüências. Estas perspectivas apontavam para a emergência no mundo de uma nova ‘paz perpétua’ de tipo kantiano. A ação norte-americana seria a ponta de lança de um projeto universal, baseado na razão, capaz de garantir paz e prosperidade para todos os povos do mundo”. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 107 Impactos da reestr utur ação produtiva nas expressões de... nem, tão pouco, no entendimento de que se vive uma etérea e nova ordem,28 ainda que seja inegável a implementação de um conjunto de medidas e inovações de dimensões globalizantes em prol do grande capital. Inova-se, sim, mas para potencializar uma estrutura socioeconômica em prol das mesmas forças que arbitram o trabalho assalariado, a troca de mercadorias, a acumulação do capital e a extração da mais-valia; inova-se, sim, mas para garantir que os frutos do produto gerado socialmente continuem açambarcados de forma privada; inova-se, porque, como afirma Marx, a burguesia só pode existir se renovar permanentemente as forças produtivas, 29 inova-se, sem dúvida, porque se trata de uma regra de sobrevivência do modo de produção capitalista: “inovar ou morrer”. Durante as crises, o capitalismo busca a forma que lhe possibilita produzir sempre e novamente as condições que permitem a continuidade de sua existência, através de novas maneiras de administrar as contradições emergentes, ou seja, “a crise como fase de destruição (desvalorização, aniquilamento) é, em virtude de seu poder reestruturador, condição para o desenvolvimento do capitalismo”. 30 Isso significa que nos momentos de crise, não há somente o fim de uma fase do desenvolvimento, em função do aguçamento das contradições, mas, concomitantemente, instaura-se uma nova fase de desenvolvimento por conseqüência da regulação dos elementos contraditórios em processo. Do ponto de vista histórico-crítico, as concepções de “trabalho e organização” devem sempre ser compreendidas à luz do histórico processo de formação da consciência humana, que sempre esteve e está umbilicalmente vinculada às experiências cotidianas dos homens, no locus do trabalho e fora dele, às suas formas de inserção nas relações sociais, econômicas, políticas e culturais, enfim, ao complexo de complexos constituintes da totalidade concreta, 31 onde os homens apreendem e/ou desenvolvem um conjunto de concepções que dão sustentação e direção às suas ações. Ver: FERNANDES, Ana Elizabeth Simões da Mota. Cultura da crise e da seguridade social: um estudo sobre as tendências da previdência e da assistência social brasileira nos anos 80 e 90. São Paulo: Cortez, especialmente os cap. I e II; também HARVEY, op. cit., parte II, 1995, p. 117-184. 29 KARL, M.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Global Editora, 1987. p. 79. 30 Idem, p. 87. 31 “O próprio da estrutura do ser social é o seu caráter de totalidade: não um ‘todo’ ou um ‘organismo’, que integra funcionalmente partes que se complementam, mas um sistema histórico-concreto de relações entre totalidades que se estruturam segundo o seu grau de complexidade” (NETTO, 1994, p. 37-38.) 28 108 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Márcia Pelares Mendes Silva De acordo com Netto, embora o processo de trabalho marxiano seja uma objetivação ontológico-social primária e ineliminável, comporta outras objetivações e delas se realimenta. Neste sentido, “Marx não reduz as objetivações ao trabalho e, menos ainda, não deriva dele as objetivações sociais. O mencionado processo de socialização da sociedade consiste, exatamente, em fazendo recuar as ‘barreiras naturais’ (mas jamais as eliminando), na atualização das crescentes possibilidades de novas objetivações. É o processo que, para Marx, configura a essência humana do ser social, explicitação dinâmica e movente de uma estrutura histórica de possibilidades: a objetivação, a socialização, a universalização, a consciência e a liberdade”. 32 Para Marx, a objetivação é positiva quando materializa a expressão da vida genérica, traduz a essência humana e possibilita ao sujeito reconhecer-se como autor e criador dessas objetivações. Entretanto, nas condições engendradas nas sociedades capitalistas, o trabalho humano não é a objetivação pela qual o ser genérico se realiza; mas, pelo contrário, é uma objetivação negativa, que o destrói, que o aniquila. Tratase da distinção feita por Marx entre duas modalidades de atividade prática do ser genérico consciente: “[...] a atividade prática positiva, que é a manifestação de vida (Lebenstausserung) e a atividade prática negativa, que é a alienação de vida (Lebenstausserung); [...] a objetivação é a forma necessária do ser genérico no mundo – enquanto ser prático e social, o homem só se mantém como tal pelas suas objetivações, pelo conjunto de suas ações, pela sua atividade prática, enfim; já alienação é uma forma específica e condicionada de objetivação”. 33 A atividade material está diretamente vinculada à atividade material e coletiva dos homens, sendo impossível concebê-la isoladamente em cada homem no conjunto das relações sociais. Fruto de um movimento contraditório e complexo de sujeitos históricos que obstinam libertar-se da opressão e dominação burguesas, tanto quanto possível, a consciência de classe implica uma ruptura crucial – a ruptura da alienação. Tal ruptura exige a superação de uma atitude contemplativa, imediata, superficial e fragmentada. Enquanto processo histórico-social, tal superação não é um ato individual, mas fruto de um movimento histórico de homens que buscam conscientemente realizar-se como seres humanos, através do conjunto das 32 33 NETTO, op. cit., p. 36. NETTO, J. P. Capitalismo e Reificação. São Paulo: Editora Ciências Humanas, 1981. p. 56. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 109 Impactos da reestr utur ação produtiva nas expressões de... objetivações, tanto ideais quanto materiais, que constitui a práxis humana, crítica e revolucionária no pensamento de Marx. Assim, a impulsão e estruturação da consciência de classe dão-se no processo de embate que se desenvolve no interior do conjunto complexo e contraditório da sociedade burguesa, através da práxis revolucionária, onde o trabalho é a categoria fundante do ser social. É através da organização e dos atos dos operários revolucionários que a teoria revolucionária materializa-se. De acordo com Lênin, a perspectiva marxiana de revolução pressupõe a organização do proletariado em classe, e, portanto, em partido político34 que encarna os interesses gerais, reais e históricos da classe proletária em seu conjunto, assim como o futuro do movimento. Não se trata, portanto, de elucubrações ou engenhosas fantasias. “As teses históricas comunistas não se baseiam de modo algum em idéias e princípios inventados ou descobertos por tal ou qual reformador do mundo”. Na realidade, as mesmas “São apenas a expressão geral das condições reais de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se desenvolve sob os nossos olhos”. 35 Portanto, a política é uma atividade prática na medida em que as lutas que os grupos ou classes travam está diretamente vinculada a um certo tipo de organização real. Nas condições da sociedade dividida em classes antagônicas, a política compreende a luta de classes pelo poder e pela direção da sociedade em consonância com os interesses e finalidades correspondentes: “O poder é um instrumento de importância vital para a transformação da sociedade”. 36 Para Lênin, coexistem, no interior da classe operária, diferentes tipos de consciência, com suas respectivas formas organizativas e práticas políticas. Isso significa que ainda não há consciência operária em se tratando da totalidade da classe, assim como não há dois blocos independentes, cujas constituições expressem, no primeiro bloco, a representação da classe em si (marcado pela alienação) e, no segundo, a representação da classe para si (caracterizada pela consciência política). O que de Segundo Vazquez (1977, p. 176), no Manifesto do Partido Comunista encontram-se as premissas da concepção de partido como destacamento estreitamente vinculado à sua classe: “Daí carecer de fundamento a tendência atribuir ao próprio Marx a idéia que o proletariado como classe se basta a si mesmo – isto é, sem necessidade de um partido – para conquistar o poder político, ou a idéia que identifica classe e partido”. 35 MARX, K. Manifesto do Partido Comunista, p. 88. 36 VAZQUEZ, op. cit., p. 201. 34 110 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Márcia Pelares Mendes Silva fato pode ser identificado no interior da classe é uma heterogeneidade ideológica, a partir da qual Lênin estabelece níveis diferenciados de consciência, fazendo distinção “entre os setores atrasados e setores avançados, setores intermediários da classe e operários marxistas -- revolucionários organizados em partido”. 37 Referindo-se à sua concepção de classe, Lucáks sustenta que a mesma não é “[...] nem a soma nem a média do que pensam, sentem, etc., os indivíduos que formam a classe, tomados um por um. E, no entanto, a ação historicamente decisiva da classe como totalidade é determinada, em última instância, por essa consciência e não pelo pensamento, etc. [...]”. 38 Isso significa que as questões que envolvem a consciência de classe não podem ser abordadas de forma individualista ou tão pouco reducionista, limitando-a aos pensamentos dos indivíduos, por mais que os mesmos sejam evoluídos. Ao tratar da necessidade da organização da classe subalterna e da constituição da vontade, Gramsci sustenta que a mesma não se constitui numa vontade exterior, imposta ou meramente teórica. Ao desenvolver a teoria da vontade coletiva,39 Gramsci a desenvolve concebendo-a a partir da unidade teórico-prática, que vai muito mais além do conhecimento, pois se encontra, direta e indissoluvelmente, ligada à atividade humana, à pratica, entendida não somente como agir, mas como agir que intenciona modificar conscientemente, transformando objetos e situações. É com base nesse entendimento que deve ser entendido que o processo de formação da vontade coletiva não se objetiva de forma homogênea no interior da massa. Se Gramsci posiciona-se contrariamente ao voluntarismo soreliano (que desprezava as condições objetivas) e contra o economicismo (que conduzia ao determinismo da base econômica), ele também não acredita na possibilidade de suscitar a vontade coletiva pelo alto, isto é, por uma atitude arbitrária do partido40, 37 38 39 40 WEBER, op. cit., p. 73. LUCÁKS, p. 64-66. GRAMSCI, 1988, p. 7. A crítica à manipulação das massas fica ainda mais evidente quando Gramsci analisa dois exemplos de partido que parecem fazer abstração da ação política imediata. O primeiro, é aquele constituído por uma “elite de homens de cultura, que tem a função de dirigir sob o ponto de vista da cultura, da ideologia geral, um grande movimento de partidos afins (que são na realidade frações de um mesmo partido orgânico)”. O segundo, almejando galvanizar as massas, “não tem outra função política senão a de uma fidelidade genérica, de tipo militar, a um centro político visível ou invisível”. Muitas vezes, o centro visível “é o mecanismo de comando de forças que não desejam mostrar-se em plena luz, mas agir apenas indiretamente por pessoa interposta ou por ideologia interposta” (GRAMSCI, A.). Obras Escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978. p. 173-175). Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 111 Impactos da reestr utur ação produtiva nas expressões de... porque, de seu ponto de vista, esses sentimentos das massas devem ser “purificados”, “educados”, “orientados”, mas nunca ignorados. “Essa unidade da ‘espontaneidade’ com a ‘direção consciente’ (ou seja, com a disciplina) é precisamente a ação política real das classes subalternas, enquanto política de massa e não simples aventura de grupos que dizem representar as massas”. 41 Se, portanto, o processo de organização e coesão de classe inicia sua concretização a partir dos movimentos espontâneos da massa, esses devem ser orientados e disciplinados por uma ação diretiva do partido, o que significa que os movimentos espontâneos exigem uma ação partidária orientadora e disciplinadora, porque, através dessa ação, essa espontaneidade vai, gradativamente, sendo substituída por uma ação política mais consciente, uma vez que nesse processo a vontade coletiva vai se fortalecendo e a classe subalterna, concomitantemente, vai elaborando sua própria concepção de mundo, e a fragmentação, a dispersão e a incoerência vão dando lugar à homogeneidade e à coerência. Assim, o processo de organização das massas funda-se na dialética espontaneidade/direção consciente. Neste sentido, o projeto da reforma intelectual e moral é a superação das formas de consciência existentes, da filosofia e da visão de mundo dominantes. Significa a possibilidade de, através de um movimento intelectual e moral – que está intimamente vinculado aos intelectuais orgânicos, aos intelectuais coletivos e a vontade coletiva – criar, popularizar e socializar a elaboração crítica da filosofia da práxis e da luta política das classes subalternas, o que culminará no surgimento de um novo homem, o homem-coletivo: “[...] todo ato histórico não pode deixar de ser realizado pelo ‘homem-coletivo’, isto é, ele pressupõe a obtenção de uma unidade ‘cultural-social’ pela qual uma multiplicidade de vontades desagregadas, com fins heterogêneos, se solidificam na busca de um mesmo fim, sobre a base de uma idêntica e comum concepção de mundo (geral e particular, atuante transitoriamente – por meio da emoção – ou permanentemente, de modo que a base intelectual esteja tão radicada, assimilada e vivida que possa se transformar em paixão”. 42 41 42 GRAMSCI, In: COUTINHO, 1989, p. 106. GRAMSCI, 1987, p. 36-37. 112 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Márcia Pelares Mendes Silva Na perspectiva gramsciana, a reforma intelectual e moral “[...] é condição necessária para a conquista da hegemonia nas sociedades capitalistas ‘ocidentais’”. 43 E essa hegemonia de uma classe na sociedade só existe efetivamente quando essa classe tem a direção ideológica e o domínio político, o que implica na conquista da sociedade e do Estado. É neste sentido que Gramsci intenciona “salientar a função dirigente, a conquista do consenso, a ação de tipo cultural e ideal que a hegemonia deve desempenhar”. 44 Para uma postura de contraposição à passividade, Gramsci chama atenção para a relevância da criticidade na consciência dos homens,45 ressaltando que a ausência da mesma pode comprometer a possibilidade da práxis revolucionária. Ao desenvolver seu raciocínio, explicita que o homem ativo da massa desenvolve uma atividade prática, mas sem ter uma clara consciência teórica da mesma, podendo-se até identificar, pela própria contradição entre sua consciência e seu agir, duas consciências teóricas: “[...] uma, implícita na sua ação, e que realmente o une a todos os seus colaboradores na transformação prática da realidade; e outra, superficialmente explícita ou ‘verbal’ não é inconseqüente: ela liga a um grupo social determinado, influi sobre a conduta moral, sobre a direção da vontade, de uma maneira mais ou menos intensa, que pode, inclusive, atingir um ponto no qual a contraditoriedade da consciência não permita nenhuma ação, nenhuma escolha e produza um estado de passividade moral e política”. 46 O processo investigativo Ratifico a consideração fundamental que os eixos de investigação deste trabalho devem estar permanentemente parametrados num contexto de medidas de enfrentamento da crise capitalista – esta por nós entendida como contradições COUTINHO, 1989, p. 107. GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramci. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1978. p. 78. 45 De acordo com Nogueira, “a chamada ‘consciência crítica’ tem seu principal atributo justamente nesse ponto. É uma consciência sempre em ‘crise’: desafiada a se negar a si própria para permanecer em condições de captar a realidade que muda ininterruptamente” (JORNAL da Tarde, São Paulo, 25/3/99). 46 GRAMSCI, op. cit., 1987, p. 20-21. 43 44 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 113 Impactos da reestr utur ação produtiva nas expressões de... inerentes ao próprio movimento ampliado de acumulação do capital – onde têm sido concomitantemente encaminhadas, de forma estratégica, impositiva e prevalente: a reestruturação produtiva, a desvalorização da força de trabalho e o redirecionamento dos mecanismos de regulação estatal. Esse é o horizonte pontual em que se formam as condições, limites e possibilidades da visão de mundo e conseqüente expressões de consciência de todos nós, onde se destacam os sujeitos desta pesquisa – os operadores de produção – trabalhadores do Distrito Industrial da Zona Franca de Manaus, especificamente os inseridos nas empresas de grande porte do Pólo Eletroeletrônico, lócus da pesquisa. 47 Para chegar às respostas e/ou reflexões acerca dos problemas de pesquisa enunciados, percorri a trajetória metodológica a seguir detalhada: primeiramente, procedeu-se a uma pesquisa qualitativa, 48 e, num segundo momento, implementouse uma pesquisa quantitativa. 49 Na pesquisa qualitativa, o instrumento utilizado foi a entrevista semiestruturada. Foram entrevistados 24 operadores de produção de 7 unidades das 4 empresas selecionadas. Considerando a necessidade de ampliação da base empírica da pesquisa, procedeu-se à pesquisa quantitativa, utilizando-se um instrumento devidamente estruturado em função do objetivo de desvelar, tendo como referência às opções registradas no instrumento supramencionado, as múltiplas expressões de consciência dos operadores de produção, conforme categorização construída (consciência crítica, crítica/contraditória, contraditória/alienada e alienada), vislumbrando-se, a partir das análises daí empreendidas em articulação com o conjunto das análises da pesquisa qualitativa, o desvelamento dos limites e possibilidades de embriões potencializadores da vontade coletiva. As categorizações construídas apresentam o seguinte conteúdo: • Consciência crítica: caracteriza-se pela capacidade do sujeito de relacionar causa/efeito, de discernir e refletir de forma consciente e coerente acerca de sua situação e de sua classe. Tende a atuar politicamente em movimentos organizados em prol de melhorias, incluindo tanto a sua categoria profissional, como extrapolando 47 48 49 Refiro-me às empresas Gradiente, Sharp, Sony e Philips. Realizada nos meses de agosto, setembro e outubro de 1998. Realizada nos meses de dezembro de 1998 e janeiro de 1999. 114 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Márcia Pelares Mendes Silva para uma visão em direção à totalidade, a classe trabalhadora. Inclina-se a expressar um comprometimento político com sua classe. É a força impulsionadora para o empreendimento do novo; • Consciência crítica/contraditória: caracteriza-se por uma composição mista de elementos de criticidade, que se fazem presentes, ainda que numa esfera pouco aprofundada, e elementos que expressam acriticidade, ingenuidade, espontaneísmo e visão fragmentada da realidade. O sujeito não consegue articular devidamente causa/efeito, nem refletir de forma consciente e coerente, embora disponha de um pequeno arsenal que o possibilita fazer reflexões isoladas, ocasionais e sem nexos causais. Tal ausência não permite o substrato suficiente para questionamentos e reflexões mais aprofundadas, propiciando apenas ocasionalmente envolvimento em ações políticas reivindicatórias, mas sem nenhum vínculo de comprometimento com ações políticas mais amplas; • Consciência contraditória/alienada: caracteriza-se pela composição de elementos fragmentados, incoerentes e ocasionais. Aqui, a criticidade não se manifesta dissociada de elementos de contraditoriedade e de alienação, uma vez que a relação causa/efeito não é realizada, ainda que de forma superficial. Há vislumbres de consciência, embora a predominância seja muito mais de ausência de tais vislumbres, o que oblitera e torna muito raro o envolvimento político, ainda que o mesmo se reduza exclusivamente ao nível de reivindicações corporativistas; • Consciência alienada: caracteriza-se pela quase total impossibilidade de reflexão, articulação e coerência. O sujeito torna-se mero produto alimentador da estrutura ideo-política e socioeconômica que o envolve, situando-se em estado de inércia moral e política. Não há nenhum indício de valorização e envolvimento políticos. Foram aplicados precisamente 410 formulários, com o objetivo de alcançarse um retorno de 10% de um total de 3.390 operadores de produção das empresas selecionadas. A elaboração do instrumento aplicado privilegiou um tipo de instrumento para levantamento de percepções. Optou-se pela medição atitudinal que se baseou na tabulação das respostas a um instrumento de medição de atitude do tipo Likert,50 50 LIKERT, R. The method of constructing an attitude de sacle. New York: Wiley, 1967. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 115 Impactos da reestr utur ação produtiva nas expressões de... envolvendo a amostra atingida – 9,03% – do total de operadores de produção. A construção do instrumento, coerentemente com os objetivos gerais e específicos e à luz dos pressupostos teórico-metodológicos do projeto de pesquisa, teve como centralidade doze dimensões, todas relacionadas ao cotidiano dos operadores, onde três categorias básicas foram priorizadas (trabalho/organização política/crise), além do tema serviço social, sendo que para cada uma das dimensões foram elaboradas entre três e quatro asserções (negativas e positivas),51 como se segue: 52 • Importância do Trabalho É através do trabalho que executo que posso chegar lá; O trabalho não é dispensável para o ser humano; Sempre atendo às exigências da empresa para garantir meu trabalho; Não ter trabalho é o que mais me assusta hoje. • Natureza do Trabalho Meu trabalho faz bem ao meu corpo e a minha mente; Não posso ter vida digna sem trabalho digno; Utilizo reflexão e criatividade para executar o meu trabalho; O que me importa mesmo é ter um trabalho. • Satisfação Profissional Não sinto orgulho do trabalho que faço; O meu trabalho parece com os movimentos de um robô; Um bom trabalho só depende de meu esforço em ter boa qualificação; Meu trabalho me proporciona um bom padrão de vida. A referência axial utilizada para esse procedimento teve como base a obra de LEMON, N. Attitudes and their measurement. New York: Wiley, 1960. 52 Asserções foram pulverizadas ao longo do instrumento aplicado, onde também foi incluído um espaço em aberto para considerações não direcionadas dos respondentes. 51 116 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Márcia Pelares Mendes Silva • Importância da Política Não participar de atividades políticas é falta de consciência; Todo homem é por natureza um ser político; Lutar por uma vida melhor não tem nada a ver com política; A prática política nesse país é uma grande sujeira. • Valorização da Organização Política O mais certo é mesmo “cada um por si e Deus por todos”; Minha organização política na fábrica é um risco que não vale a pena; O sindicato é um importante instrumento de luta dos trabalhadores; Partidos políticos são todos iguais: defendem seus próprios interesses; • Credibilidade na Política Ainda acredito que a união dos trabalhadores faz a sua força; Não acho que minha participação política possa melhorar minha vida; A política pode ser exercida com seriedade e dignidade; • Significado da Crise Somos nós que realmente sentimos a crise na pele: a corda sempre rompe do lado mais fraco; A crise seria menor se a renda do país fosse melhor distribuída; Acho que todos estão sofrendo igualmente os efeitos da crise; • Dimensões da Crise A crise é econômica, social e política; Funcionários e patrões precisam cooperar para superar a crise; A tecnologia não é boa porque tira o nosso emprego; A causa da crise é a globalização. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 117 Impactos da reestr utur ação produtiva nas expressões de... • Conseqüências da Crise As empresas só demitem porque precisam ser competitivas; Em nome da crise exigem cada vez mais da gente e dão cada vez menos; As empresas demitem porque não querem diminuir seus lucros; Com o desemprego que está aí, as empresas valorizam muito pouco nosso trabalho. Em relação a cada asserção, o respondente tinha a possibilidade de optar dentre quatro opções: concordo plenamente, inclinado a concordar, inclinado a discordar e discordo plenamente. Para cada uma das opções foi por mim atribuído previamente um valor entre 1 (mínimo) e 4 (máximo) pontos. A delimitação de cada valor foi definida de acordo com o conteúdo específico das várias dimensões e suas respectivas asserções, tendo sempre como suporte os objetivos a serem alcançados e os fundamentos teórico-metodológicos de sustentação do projeto de pesquisa. O instrumento foi validado quanto ao Conteúdo, Item e Confiabilidade. 53 Em relação aos resultados atitudinais finais, a prova estatística utilizada foi o teste não paramétrico do X² pertinente. Após a coleta do material e a tabulação dos dados de identificação dos sujeitos, pude registrar um conjunto bastante variado de características em relação aos operadores de produção: quanto à função (foram identificadas 22 diferentes funções envolvendo os operadores de produção), quanto à escolaridade (90% dos pesquisados eram portadores de certificado de conclusão de Ensino Médio), quanto ao gênero (discreta predominância das mulheres, aproximadamente 58,5% contra 41,50% de homens), quanto à faixa etária (massiva concentração na faixa etária entre 25 e 30 anos – 75%) e quanto ao tempo de vínculo empregatício (67% trabalham/ estão trabalhando na empresa entre o período de um e quatro anos). Após a tabulação total dos dados, os resultados foram graficamente representados e interpretados. 54 53 54 Os procedimentos em relação à validação de conteúdo, item e confiabilidade tiveram por base a obra de SCHMIDT, M.J. (1975). Undestanding and using statistics. D.C. Massachusetts: Heath and Company. Considerando a natureza e as delimitações de um paper, deu-se prioridade para a inserção somente do gráfico do resultado final da pesquisa. 118 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Márcia Pelares Mendes Silva Considerações finais Uma consciência coletiva, um organismo vivo, só se forma depois que a multiplicidade unificou-se através do atrito dos indivíduos; não se pode dizer que o ‘silêncio’ não é multiplicidade. Uma orquestra que ensaia cada instrumento por sua conta, dá a impressão da mais horrível cacofonia; porém, estes ensaios são a condição para que a orquestra viva como um instrumento só. Antonio Gramsci As análises oriundas do processo investigativo e suas correlações demonstram que as teias constitutivas nas quais nos inserimos remetem-nos a um novo ethos. Não no sentido do novo que engendra características inéditas na constituição das bases de sustentação do modo de produção capitalista, já que seus pilares permanecem eretos e favorecendo as condições de acumulação e valorização do capital. Trata-se de um novo ethos, revelador, sobretudo, das novas formas de subordinação do trabalho ao capital, fomentadas por uma cultura de crise geradora de consentimento das classes, que, inegavelmente, tem minimizado as potencialidades da classe trabalhadora de discernir, projetar e agir coletivamente, atuando, influenciando e alterando as relações sociais de dominação que imperam nas relações de classe. Sim, porque mesmo a exacerbação das adversidades conjunturais vivenciadas não torna anacrônico o entendimento de que as classes sociais ainda se constituem num importante “[...] foco centrípeto nas relações de oposição e antagonismo entre as forças sócias, despertando a solidariedade coletiva e implicando formas de organização socialmente abrangentes”55 desmonte da resistência à exploração do trabalho e à dominação do capital, como condição de visibilidade social e coletiva, sinalizam precisamente para uma lacuna, conforme expressa o gráfico final da pesquisa. 55 EVANGELISTA, J. E. Crise do marxismo e irracionalismo pós-moderno. In: Questões de nossa época , n. 7. São Paulo: Cor tez, 1992. p. 33. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 119 Impactos da reestr utur ação produtiva nas expressões de... Ainda assim, considero que tomar a atual fragilidade, opacidade e ausência dos movimentos dos trabalhadores de forma fatalista e precipitadamente derrotista, legitima a ideologia dominante, favorece a ampliação da lacuna e, concomitantemente, desfavorece a possibilidade de seu desvelamento e redimensionamento. Exatamente por isso, tais ausências precisam ser analisadas no contexto de feroz ofensiva do capital e apreendidas como expressão da complexificação processada nas relações sociais no mundo do capital, cuja reversão e avanço, longe de passar pela destruição das pretensões totalizadoras, requer, compulsoriamente, a perspectiva de totalidade. Mas, é fato que a ideologia dominante, ao mesmo tempo em que fragmenta o ponto de vista da totalidade, pela racionalidade da organização capitalista da vida social, parece atingi-la através dos processos de manipulação, persuasão e disciplinamento que penetram e conformam a totalidade das relações que viabilizam a sua reprodução, transcendendo o domínio das relações de trabalho para regular integralmente a vida dos homens. Neste sentido, a forma de ser e agir da classe trabalhadora parece ser contingenciada por uma força que lhe é exterior e por um poder que, ao dissolverse e esconder-se nas contradições das relações sociais, vem ampliando o seu espaço, aperfeiçoando a sua eficácia, ratificando uma substantividade concreta de dominação. Como “[...] a consciência jamais pode ser outra coisa que o ser dos homens conscientes e o ser dos homens consciente é o seu processo de vida real”, 56 os condicionamentos estruturais e conjunturais que engendram os processos concretos de trabalho e vida da classe trabalhadora, denotam a busca de maximizar o caráter reprodutor da ideologia dominante, expressas nas posturas dos trabalhadores voltadas, prioritariamente, para responder aos contornos das demandas empresariais, aos imperativos do mercado e aos ditames da cultura da qualidade e da competitividade, delineados pelos contornos de “colaboracionismo” e “parcerias” apregoadas pela ideologia neoliberal. Os trabalhadores vivem os processos de reestruturação produtiva, a globalização e a flexibilização de suas relações de trabalho. Sentem o seu potencial produtivo, a intensificação de sua força de trabalho, as relações de exploração que 56 MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã . São Paulo: Ed. Hucitec, 1987. p. 29. 120 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Márcia Pelares Mendes Silva caracterizam o espaço fabril, a parca remuneração que não lhes permite vida com dignidade. E, ainda, vislumbram trabalho e vida com qualidade e dignidade. Entretanto, não conseguem dar a inteligibilidade necessária ao viver, ao sentir e ao vislumbrar, limitando-se a acatar as novas determinações impostas, pressionados, sobretudo, pelo fechamento de postos de trabalho, perda de espaço profissional e altas taxas de desemprego. Dentre as conseqüências daí advindas, prevalecem concepções carentes de unidade crítica, o que oblitera reflexões coerentes e questionadoras, que relacionem os nexos de causa e efeito, que ousem elaborar prospecções, projetar investidas, lutar através de ações coletivas. O exercício político sindical e partidário que deveriam configurar-se em formas de organização e resistência dos trabalhadores, apresentase com seu campo reduzido, sai efetividade desacreditada, sua ação questionada e sua eficácia depreciada. As entidades classistas de organização política das classes trabalhadoras – partidos e sindicatos – parecem desencadear um misto de decepção e desaprovação e/ou distanciamento ou indiferença, enfatizando, concomitantemente, a postura de distanciamento da política e a necessidade de “novas” formas de fazer política. Ora, se a política é objetivada também através dessas entidades, que lhe dão visibilidade e força coletiva, e se os trabalhadores, que deveriam ser a sua base, concebem-nos com inequívocas doses de rejeição e descrédito, sobretudo quando se trata dos partidos políticos, parece urgente e imprescindível que se reavalie e redimensione a atuação, o significado e a importância que referidas entidades desenvolvem e ocupam na contemporaneidade da sociedade amazonense e manauense. Ainda que seja possível sustentar a prevalência de um caráter restrito de política, a possibilidade do exercício político sob bases éticas também é posta expressivamente pelos trabalhadores. Isso significa que se, conceptualmente, as formas clássicas de exercício político estão desacreditadas, como quer a classe dominante, potencialmente, a política é ainda vislumbrada como possibilidade de união, resistência e força dos trabalhadores. Entretanto, é preciso mais que sentir ou intencionar, porque a política requer concretude. É necessário viver a prática política. Sob o conjunto de adversidades em nível mundial, nacional e local, que tem desestruturado os movimentos organizados dos trabalhadores, as análises revelam a complexidade que envolve as situações que os trabalhadores e suas entidades Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 121 Impactos da reestr utur ação produtiva nas expressões de... enfrentam, e que ainda terão de enfrentar para não permitir que a fragilização e o descrédito fortalecem, mais ainda, a campanha da despolitização regida pela classe dominante. Talvez, fazendo confluir os movimentos organizados da classe trabalhadora para um patamar que extrapole os limites do espaço fabril, em direção a uma maior organicidade da sociedade civil. Se as formas de expressão de consciência dos trabalhadores investigados manifestam-se marcadas por reduzidos elementos de criticidade e fortes doses de alienação, que denotam a expressão de uma consciência contraditória, fragmentada e incoerente, há de considerar-se que, apesar de todos os percalços e limitações, esses trabalhadores não foram reduzidos a corpos sem alma. Eles apresentam momentos de “vislumbres de consciência”, que denotam a inabsorção integral e definitiva da ideologia dominante. Se for um fato que as concepções incoerentes e fragmentadas demarcam as expressões contraditórias de consciência dos trabalhadores, isto, por sua vez, parece também implicar na necessidade de que as entidades da classe trabalhadora tomem para si a responsabilidade histórica de orientar, direcionar e disciplinar a incoerência, a fragmentação e a contraditoriedade. Os raros germes identificados na contraditoriedade do senso comum dos trabalhadores precisam ser potencializados e substituídos por uma concepção mais coerente, direcionados em conexão com o exercício político imbricado num programa político que os trabalhadores reconheçam como expressão de suas necessidades. Sem esse direcionamento e ousadia, sem o desafio da concretude dos ensaios, ficará cada vez mais distante a efetividade de um projeto profissional, social, econômico e político, onde a orquestra viva como um instrumento só. Referências ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. Campinas, SP: Cortez; Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1995 . _______. Neoliberalismo, trabalho e sindicatos: reestruturação produtiva na Inglaterra e no Brasil. São Paulo: Biotempo, 1997. 122 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Márcia Pelares Mendes Silva BORÓN, Atílio. A sociedade civil depois de dilúvio neoliberal. 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Palavras-chave Desemprego; trabalho precário; reestruturação da produção; exclusão social e cidadania. 1 Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Amazonas. E-mail: [email protected] Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 125 Desemprego, trabalho precário e des-cidadanização na Zona Franca de Manaus Abstract The objective of this article is to bring to the polytical and academic debate, the questions of unemployment, precarious job and lack of citizen rights in the Manaus Free Zone, having as a reference the research made in the years 1999-2000, on workers fired from industries of the Industrial District. The results of the research show that the transformations on the production process was responsible for the unemployment, and that the unemployed workers were forced to accept many kinds of precarious works. It shows also that this serious social problem is not a local problem, but a local expression of the modern capitalism in his worldwide fase. Keywords Unemployment; precarious work; production restructuring; social exclusion; citizenship. Introdução A onda de desemprego e de trabalho precário que se expande na Zona Franca de Manaus pode ser imputada às transformações da estrutura produtiva deste modelo industrial e da crise econômica que assola o país desde dos primeiros anos da década de 90. 2 Tais processos sociais devem ser compreendidos e analisados não somente pelas similitudes intrínsecas às sociedades contemporâneas avançadas quando o desemprego estrutural chegou a um patamar de quase 28,5 milhões de trabalhadores em 1999 segundo os dados apresentados por Pochmann (2001, p. 86), mas, também, pela particularidade de uma estratégia capitalista originada nos anos 60 e 70 do século 20 com vista à expansão do capital em escala 2 Cf. POCHMANN, Márcio. Mercado de Trabalho e Gestão da Mão-de-Obra na Zona Franca de Manaus. Campinas: SUFRAMA/ FECAMP/UNICAMP, 1996; NOGUEIRA, Marinez. Reestruturação Produtiva: um olhar sobre a Zona Franca de Manaus. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 1998 e VALLE, Maria Isabel M. Globalização e Reestruturação Produtiva. Um estudo sobre a produção offshore em Manaus. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. UFRJ, 2000. 126 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Elenise Faria Scherer mundial. Nesses termos, entre tantos outros modelos de Zona Franca espalhados no mundo capitalista, 3 a Zona Franca de Manaus constitui-se apenas uma expressão local do capitalismo contemporâneo em sua fase mundializada, em que a lógica das transformações globais vem sendo impulsionada pelas inovações tecnológicas e organizacionais na esfera da produção. A Zona Franca de Manaus é produto de inúmeras combinações sociais pois trata-se de um modelo de produção industrial que tenciona criar maior liberdade à expansão do capital no processo de mundialização da economia nos marcos da nova divisão internacional do trabalho. Faz parte, portanto, dos processos de internacionalização da produção capitalista que foram criados em face das necessidades inerentes à lógica de um mercado mundial cada vez mais intenso desde a origem deste modo de produção. O Estado Nacional brasileiro adotou essa forma de enclave, segundo o discurso oficial por razões geopolíticas com intenções de ocupar os espaços vazios e de desenvolvimento regional. Essa versão da história que impregnou o imaginário social, na realidade, se fundamenta por uma diversidade de tributos ofertados pelos países-sede para impulsionar um modelo industrial que materializa uma estratégia econômica no processo de mundialização do capital. As normas traçadas pela Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial – ONUDI exigiam que o Estado Nacional oferecesse inúmeros tributos para estruturar o Distrito Industrial na cidade de Manaus. E, ainda, que fosse assegurada a governabilidade, capaz de possibilitar a estabilidade política necessária à plena atividade dos negócios, sobretudo, criando as condições gerais da produção capitalista, em especial, uma superpopulação relativa que atendesse às exigências médias do capital e seu exército industrial de reserva constituída por uma leva de caboclos que migraram da zona rural amazonense, sem nenhuma qualificação e organização política. A Zona Franca de Manaus, em seus anos dourados (1970-1980), absorveu um número expressivo de trabalhadores em seu parque industrial, mas deixou de 3 Segundo a Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial – ONUDI, na metade da década de 70 os modelos de Zonas Francas já se encontravam espalhados pelos países do Terceiro Mundo. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 127 Desemprego, trabalho precário e des-cidadanização na Zona Franca de Manaus fora outros tantos, que foram obrigados a inserir-se no trabalho informal.4 Isto significa dizer que o desemprego e o trabalho precário não se constituem numa novidade histórica assim como sua interface com a exclusão. Entretanto, os anos 90, com o esgotamento do pacto desenvolvimentista e com a reestruturação do capitalismo brasileiro à economia global, ocorreu uma retração no emprego formal, bem como ampliou o desemprego e o subproletariado no mercado de trabalho informal. A Zona Franca de Manaus, neste contexto, é profundamente afetada, sobretudo pela política de liberação comercial para o exterior e pelos limites de importação de insumos impostos pelo governo Collor de Mello. Este trabalho se propõe de forma sumária5 trazer para o debate a dimensão perversa deste modelo capitalista, num lugar da Amazônia configurado pelo desemprego e pelo trabalho precário que afeta de forma dramática o mercado de trabalho amazonense. A intenção é mostrar que a onda de desemprego obrigou inúmeros trabalhadores a engajarem-se no mercado informal, reinventando novas formas de sobrevivência e de trabalho precário, em decorrência da introdução das novas tecnologias no chão das fábricas do Distrito Industrial. Além disso, deixa claro, também, que a perda do contrato de trabalho, cuja materialidade é a carteira assinada significa a perda dos direitos sociais. As manifestações dos trabalhadores entrevistados estão presentes no trabalho nas falas de ex-operadores e ex-operadoras das que, hoje, se encontram fora das fábricas do Distrito Industrial. A crise mundial, as transformações no mundo do trabalho e o fenômeno do desemprego na Zona Franca de Manaus O capitalismo global nos anos 70 traçou por meio da ONUDI que as estratégias de desenvolvimento do capital, conhecidas por Zonas de Livre Comércio 4 5 Há um consenso entre os pesquisadores da dificuldade em definir o mercado informal de trabalho pela sua complexidade. Ele engloba diversas categorias de trabalhadores com inserções particulares. Neste trabalho estamos nos referindo ao trabalho por conta própria, sem carteira assinada, autônomos, donos de pequenos negócios familiares, com ganhos baixos e incertos. Cf. VVAA. Mapa do Trabalho Informal: Perfil socioeconômico dos trabalhadores informais na cidade de São Paulo. São Paulo: CUT/Editora Perseu Abramo, 2000. Ver ainda: CACCIAMALI, M.C. Globalização, informalidade e mercado de trabalho. In: Anais de XXVIII Encontro Nacional de Economia – ANPEC, Belém, 1999. Resumo do Relatório de Pesquisa Os excluídos da produção enxuta na Zona Franca de Manaus. Manaus: Universidade do Amazonas/CNPq, 2001, de nossa autoria. 128 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Elenise Faria Scherer ou Zonas de Livre Produção, deveriam ser subsidiadas com forte protecionismo estatal por parte dos países hospedeiros. A consolidação da Zona Franca de Manaus teve como suporte um conjunto de benefícios fiscais e creditícios, uma enorme infra-estrutura urbana para a criação do Distrito Industrial e, sobretudo, a mercadoria trabalho nos termos de Polanyi (1980) composta pelas levas de caboclos (ribeirinhos, agricultores, castanheiros, seringueiros) que migraram do mundo rural amazonense. Estavam, pois, dadas as condições necessárias a uma nova racionalidade do capital num lugar da Amazônia. A modernização capitalista chega, portanto, ao espaço regional afetando todas as esferas da vida social amazonense. Manaus deixou para trás a cidade porto de lenha e seu velho passado extrativista. Modificam-se as relações de produção e as forças produtivas se desenvolvem. Formam e redefinem-se novas classes sociais e novas formas de sociabilidade configuram-se na nova dinâmica do capital na região. Um novo proletariado urbano majoritariamente composto por trabalhadores que migram do mundo rural dá uma outra configuração à cidade de Manaus, que se torna a cidade para o capital. As contradições da nova ordem capitalista engendram um caos urbano em que a riqueza e a pobreza justapõem-se numa estranha mistura como dizia Lefebvre de caos e ordem (1999, p. 19). A magnitude das transformações aqui ocorridas está articulada às necessidades de expansão da economia internacional, define uma nova racionalidade e a precedência do lucro em todos os níveis da vida social amazonense e conformam a natureza intrinsecamente excludente do modelo industrial ZFM. As indústrias sediadas no Distrito Industrial incorporam no seu processo produtivo um número expressivo de trabalhadores desqualificados, jovens, dóceis, predominantemente do sexo feminino de acordo com a exigência do processo produtivo na época. 6 Mas deixou de fora uma população trabalhadora supérflua, não incorporada: as necessidades médias da expansão do capital (MARX, 1975, p. 485). Os postos de trabalhos criados não foram suficientes para incluir a demanda de trabalhadores e as conseqüências mais visíveis foram o desemprego e o crescimento do setor informal. 6 Cf. MOURA, Edila et al. A utilização do trabalho feminino nas indústrias de Belém e Manaus. Série Seminários e Debates, n. 10, Belém, NAEA/UFPA, 1986. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 129 Desemprego, trabalho precário e des-cidadanização na Zona Franca de Manaus Na década de 70 e 80, os anos dourados da ZFM, a montagem dos produtos eletroeletrônicos absorveu um número expressivo de trabalhadores. O processo produtivo nas indústrias do pólo eletroeletrônico7 pode ser definido pelo que se poderia de chamar de fordismo periférico (LIPIETZ, 1996) em que grande parte da produção era montada de forma manual e congregava um contingente significativo de trabalhadores. Nesse tempo histórico o parque industrial da ZFM chegou a concentrar cerca de quase 90.000 trabalhadores (SUFRAMA, 2000). No boom da ZFM, a cidade de Manaus contava com taxas de crescimento ocupacional nas indústrias em escala ascendente, a tal ponto que o emprego industrial superou as taxas de crescimento do emprego no comércio e nos serviços (NOGUEIRA, 1998, p. 96). Desse modo, a ocupação/emprego industrial foi crescente, apesar de uma relativa queda em 1985 em decorrência da recessão da economia brasileira nos anos 80. Apesar da chamada década perdida brasileira, a Zona Franca de Manaus continuou crescendo, congregando cada vez mais trabalhadores, portanto, um novo proletariado se punha no cenário político da sociedade local. Márcio Pochmann mostra, com bases nos dados da Superintendência da Zona Franca de Manaus – SUFRAMA, em 1985 “não somente o emprego industrial recuperou seu dinamismo como também deve ter aumentado sua participação relativa no emprego total, já que nesses quatro anos cresceu cerca de 39,5%” (1996, p. 9). Destaque-se que até 1989 o parque industrial absorvia 75.926 trabalhadores. A reestruturação do capitalismo em escala mundial e o esgotamento do pacto desenvolvimentista nos anos 90 forçaram uma nova re-inserção do Brasil ao capitalismo global que já vinha sendo sinalizado nos finais do governo Sarney. Nesse âmbito, o empresariado nacional, diante da concorrência internacional acirrada, passa a adotar um novo paradigma produtivo no parque industrial brasileiro. Nesse sentido, o impacto do chamado ajuste neoliberal, ou seja, o programa de liberação comercial exterior via redução de tarifas de importação sobre as indústrias da ZFM, tornou-se mais intenso que o impacto sofrido pela indústria 7 O maior pólo industrial entre os 22 pólos existentes no parque industrial da Zona Franca de Manaus. 130 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Elenise Faria Scherer brasileira. De acordo com o estudo de Marinez Nogueira, a ZFM experimenta sua crise em face da proposta do governo em reduzir a margem concedida à região para importação de insumos e para a venda de bens finais no mercado nacional retraído (1998, p. 110). Para Pochmann, a política de abertura comercial implicou uma maior exposição à concorrência dos produtos da ZFM frente aos similares importados no mercado nacional. Somando estes fatores à recessão dos primeiros anos da década de 90 (contração do mercado regional e nacional), pode-se vislumbrar a crise ocorrida no início da década de 90 no pólo industrial de Manaus. Pode-se observar que os trabalhadores inseridos no processo produtivo totalizavam em 1989 cerca de 75.926 e, em 1990, aproximou-se de 76.798 trabalhadores. Particularmente, o pólo eletroeletrônico – o maior dos 22 pólos existentes na ZFM, admitia no chão da fábrica, em 1989, 38.048; em 1990, 45.283. Entretanto, em 1993, no momento de sua pior crise decorrente da recessão econômica experimentada no governo Collor de Mello, este pólo absorveu somente 18.983 trabalhadores (SUFRAMA, 2000). A partir dos anos 90, percebe-se um decréscimo do emprego nas indústrias do ZFM. Em 1991, o processo produtivo contava com 58.875 trabalhadores; em 1996, cinco anos após, com 48.090 e encerrou o último ano do milênio com 39.652 empregos no Distrito Industrial. Isto significa dizer que na década de 90, a Zona Franca de Manaus excluiu do processo produtivo 37.146 trabalhadores, ou seja, uma média de 3.740 por ano (SUFRAMA, 2000). As informações mais recentes da Superintendência da Zona Franca de Manaus – SUFRAMA mostram que nos dois últimos anos do final do milênio (1999-2000) as taxas de emprego no DI, em 1999, foram de 39.652 na totalidade das indústrias da Zona Franca de Manaus. No ano 2000 houve acréscimo na contratação de trabalhadores, chegando a 44.519 e foram inseridos no processo produtivo 4.867 trabalhadores. Pode-se observar, entretanto, que apesar das taxas de emprego voltarem a crescer no último ano do século 20, elas não mais atingiram o patamar inicial da década de 90, ou seja, com 76.798 trabalhadores no chão da fábrica. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 131 Desemprego, trabalho precário e des-cidadanização na Zona Franca de Manaus Como se sabe, o contrato mercantil no Brasil sempre foi historicamente manco, mas a estrutura ocupacional brasileira, bem ou mal, permitiu durante décadas a integração de amplos contingentes de uma força de trabalho pouco ou nada qualificada. Atualmente a onda de desemprego que assola o país e sem perspectiva de retorno ao chão da fábrica, percebe-se uma quebra na estrutura ocupacional, interrompendo um ciclo histórico e de longa duração de mobilidade ocupacional e social. O contrato mercantil implode, que, como sabemos, nunca foi sólido e não se ampliou como norma de sociabilidade, num cenário marcado pela redefinição do Estado e pelos efeitos sociais decorrentes da globalização e da reestruturação produtiva em curso no país, enfim, pela revolução silenciosa da era Fernando Henrique Cardoso. Entre outras palavras, a reestruturação produtiva em curso e os arranjos neoliberais em vigor, o efeito conjugado da crise econômica e da abertura comercial iniciada no governo Collor vão incidir sobre a histórica base salarial, obviamente, distante da sociedade salarial de que fala Robert Castel (2000, p. 201)8 ao descrever as dimensões societárias e políticas do chamado modo de regulação fordista nos países desenvolvidos, especialmente a França. Na atualidade pode-se observar que a eliminação dos postos de trabalho seja no chão da fábrica, seja nos níveis intermediários, vem provocando processos de exclusão de grandes contingentes de trabalhadores amazonenses concentrados na periferia de Manaus. Além disso, as metamorfoses no chão das fábricas no parque industrial da Zona Franca de Manaus não se restringem à eliminação de empregos, mas dizem respeito à constituição de uma nova concepção sobre como produzir e, por conseguinte, afetam a composição e a qualificação da força de trabalho (VALLE, 2000, p. 231). 8 Para Castel, uma sociedade salarial é uma sociedade na qual a maioria dos sujeitos sociais recebe não somente sua renda, mas também seu estatuto, seu reconhecimento, sua proteção social. A sociedade salarial promoveu, neste sentido, um tipo completamente novo de segurança: uma segurança relacionada ao trabalho, e não somente à propriedade. CASTEL. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 180. 132 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Elenise Faria Scherer A máquina de inserção automática e o desemprego A partir dos anos 90, as indústrias da Zona Franca de Manaus, de forma diferenciada entre elas, passaram a adotar alguns princípios da fábrica enxuta disseminados pelos princípios do toyotismo de produção, ou seja, produção com menor custo de trabalho. Esse processo decorre da introdução de novas tecnologias e modificações na organização e nas mudanças da gestão da mão-de-obra, já analisados por Nogueira (1998) e Valle (2000). Pode-se dizer, portanto que as indústrias da Zona Franca de Manaus experimentam uma nova era configurada pelas “transformações no processo produtivo por meio das novas formas de acumulação flexível, do dowsizing, da reengenharia, do lean prodution, da qualidade total” (ANTUNES, 2000, p. 135). As empresas do Distrito Industrial, de acordo com a análise de Nogueira passam adotar o processo de automação nas linhas de montagem utilizando-se das máquinas de inserção automática que foram responsáveis pela redução brusca da força de trabalho, especialmente, às do pólo eletroeletrônico como vimos acima. A pesquisa da referida autora mostra que “cada máquina de inserção automática elimina em média 100 postos de trabalho com a vantagem de eliminação de erros e aumento da produtividade” (1998, p. 126). Anteriormente, a inserção de novas tecnologias no processo de produção de produtos eletroeletrônicos era feita manualmente pelos montadores e montadoras em número expressivo nas linhas de montagem. Entretanto, de acordo com as informações coletadas por Nogueira, a qualidade do produto não atendia às exigências da competitividade internacional. Com a adoção da máquina de inserção automática no chão da fábrica assegurou-se a rapidez e a segurança, uma vez que esta máquina é programada para tal. Essas máquinas, segundo o estudo da autora acima, produzem em uma hora o que antes uma linha de produção levava em média dois dias de trabalho. Além disso, elas garantem a possibilidade de não haver erros na inserção dos componentes (p. 106). Não se pode esquecer, todavia, que a redução da força de trabalho no DI deve-se ainda ao processo de terceirização das atividades de suporte da produção. Contata-se que as empresas, em geral, vêm externalizando os serviços de transporte, segurança, restaurante. limpeza e outros serviços. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 133 Desemprego, trabalho precário e des-cidadanização na Zona Franca de Manaus No âmbito dessas transformações no processo produtivo, novas estratégias de captura da subjetividade operária são criadas com intenções de reconstruir um outro processo cognitivo materializado numa espécie de regimento interno que normatiza as condutas de todos os trabalhadores envolvidos na produção. Definemse as funções, competências, habilidades e comportamentos. Essa captura da subjetividade operária adquire materialidade nas constantes reuniões, estímulos, prêmios em busca de motivar os trabalhadores a assumirem efetivamente a produção com controle de qualidade. Obtêm-se, portanto, o envolvimento dos trabalhadores por meio de várias estratégias de controle social quando são estimulados a cooperar com a lógica da valorização do capital. Os trabalhadores excluídos do processo produtivo e engajados atualmente na informalidade trazem consigo as formas persuasivas e de captura de sua subjetividade no espaço fabril. Para eles, ainda que suas demissões tenham sido justificadas pela necessidade de redução de quadro de pessoal, percebem que o desemprego está relacionado com a introdução de novas tecnologias, portanto, das transformações no mundo da fábrica. Para um ex-montador, “o desemprego na Zona Franca é devido à inserção de novas máquinas. Por exemplo, agora é uma máquina e um só técnico faz o serviço. Antes era preciso pelo menos uns três técnicos para fazer o que hoje ela faz sozinha” (depoimento de ex-montador, 2000). A racionalização da produção com intenções de diminuição dos custos é percebível pelos trabalhadores: “as máquinas aparecem de montão dentro das fábricas, aí o que ocorre, elas vão fazendo o serviço que antes a gente fazia. Elas fazem mais rápido, e por isso produzem mais. O dono da fábrica começa a lucrar mais rápido e manda a gente ir embora. Uma ex-montadora acrescenta: os robôs tomaram o nosso espaço. Nas reuniões eles diziam pra gente que robô não adoece, não reclama e não falta” (depoimento de um ex-montadora, 2000). Por outro lado, ex-montadores e ex-montadoras reconhecem que dificilmente voltarão ao chão da fábrica, pois são considerados “velhos” para o capital. A idade por volta de 26 a 30 anos (30%) e 31 a 35 (27%), não lhes permitem retornar e, além disso, não são qualificados para a nova racionalidade do capital. Nos anos iniciais de instalação das fábricas da Zona Franca de Manaus admitia-se um trabalhador sem qualificação ou semiqualificado. Agora requer-se um trabalhador com um novo perfil: jovem, polivalente, multifuncional, consciente e responsável. A idade e o nível 134 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Elenise Faria Scherer de escolaridade são critérios decisivos no momento de contratação. A destreza manual perde importância e agora é cada vez mais exigida a capacidade de raciocínio abstrato, para operar as máquinas computadorizadas. O operário-massa do início da ZFM moldado à esteira de montagem, tende a perder relevância nos cenários das economias globais que vêm, desde a década de 70, procurando estabelecer um novo padrão de produção fabril mediante à adoção de novas tecnologias e novas formas de organização do trabalho (VALLE, 2000). Na cidade de Manaus, ficar desempregado é de fato, um dilema complicado para os trabalhadores amazonenses, posto que o DI é o grande empregador. Perder o emprego nessa cidade possui para os trabalhadores uma significação muito mais grave do que perder o emprego no Sudeste do país, onde a economia e o próprio parque industrial podem oferecer possibilidades de recolocação dos empregados. Talvez, por isso, os trabalhadores mais jovens, embora admitindo que com a automação dificilmente voltarão às fábricas, peregrinam diariamente pelas largas avenidas do Distrito Industrial em busca de emprego. Outros, raramente por opção, ingressam no setor informal envolvendo-se nos mais diversos tipos de atividades e de trabalho precário. Inventando o trabalho Anterior a década de 90, no Brasil, o número de emprego gerado com carteira assinada era superior a 23% (1986-1990). A partir dessa década o emprego formal decresceu cerca de 28% (1991-1998), de acordo com as informações de Dupas (2000, p. 58). Isto supõe afirmar que nos últimos seis anos houve uma perda de 2,2 milhões de postos de trabalho no setor formal e um crescimento recorde de trabalhadores por conta própria que ingressaram na informalidade. Na contemporaneidade brasileira, o setor informal da economia engloba em torno de 12,87 milhões de pessoas que correspondem a 25% da população trabalhadora ocupada no país, envolvidos na informalidade com rendimento médio em alguns casos de R$ 240,00, especialmente na cidade de São Paulo. Os dados do Programa Regional de Emprego para América Latina e Caribe – PREALC, da OIT, mostram que os trabalhadores na informalidade – sem falar do desemprego Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 135 Desemprego, trabalho precário e des-cidadanização na Zona Franca de Manaus aberto – chegam a 7 milhões de pessoas no Brasil contra 2 milhões no início da década. Historicamente, o Brasil sempre conviveu com índices de desemprego e altos índices de informalidade. Nos últimos anos, porém, não só o governo reconheceu a gravidade do problema como culpabilizou a globalização e as novas tecnologias bem como faz, ainda, apologia à informalidade. 9 Mesmos nos anos dourados (década de 70 e 80), como já foi visto, as indústrias não absorveram a demanda de trabalhadores em sua trajetória. A Zona Franca de Manaus conviveu com o desemprego e o trabalho informal obedecendo a lógica capitalista de incorporar as necessidades médias do capital. Entretanto, como vimos, até a década de 80, as taxas de crescimento ocupacional nas indústrias foram em escalas ascendentes. De acordo com Pochmann, “setor industrial não foi o mais dinâmico apenas na criação de empregos já que o valor da produção industrial cresceu mais rapidamente que o valor das outras atividades econômicas. A participação relativa da produção industrial do PIB do Estado do Amazonas salta de 15,4% em 1970 para 55,5% em 1985, indicando que a indústria não somente foi o setor mais dinâmico da economia, como também em seu movimento dinamiza outras atividades” (1996, p. 8). A maioria dos trabalhadores da amostra era constituído de montadores ou montadoras nas fábricas do Distrito Industrial, sobretudo do pólo eletroeletrônico. Atualmente, 73% estão engajados no mercado informal. Eles possuem uma capacidade extraordinária de inventar cotidianamente o trabalho. As mulheres desenvolvem as mais diversas atividades, tais como corte e costura, peças íntimas femininas, fazem doces e salgados, lavam roupa para fora, vendem dindin (espécie de um gelado), produtos da Avon, jóias, lanches, churrasquinhos, peças de crochês e guardanapos que são vendidos nas feiras livres dos bairros. Observa-se ainda que algumas trabalhadoras saem para trabalhar deixando as responsabilidades domésticas com os maridos. Os homens preferem abrir pequenos comércios em suas próprias residências, com o dinheiro recebido das demissões. Estes são os que menos 9 Ao eliminar as diferenças que caracterizam a informalidade, o presidente da República fez este comentário: o informal não quer dizer o pior, do ponto de vista econômico. Os dados mostram que onde a renda mais cresceu foi no setor informal. Revista Veja, 10.9.97, p. 25. 136 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Elenise Faria Scherer sofrem e reclamam, pois, bem ou mal, têm uma renda garantida cotidianamente, portanto, estão em melhores condições se comparados aos outros que estão inseridos diretamente na informalidade – freqüentemente montada em uma extraordinária improvisação – para mobilizar recursos, algum ganho sempre incerto e descontínuo no mercado informal. Outros aventuram na construção civil, mas sem nenhuma formalidade contratual. Esses subproletários têm em comum a precariedade e estão desprovidos das garantias de estabilidades associadas ao padrão convencional, isto é, a carteira assinada.10 Essa é uma característica comum em quase todos os nossos informantes: a vulnerabilidade, a insegurança na relação de trabalho e na percepção da renda. Em síntese, não há garantias de cobertura social. Em decorrência perdem substancialmente a sua cidadania. Na informalidade são maiores as dificuldades para eles se constituírem como sujeitos políticos. Os trabalhadores engajados no setor informal, como os demais nas principais capitais brasileiras,11 recorrem ao trabalho por conta própria, quase sempre por falta de alternativa e raramente por opção. Além disso, caracterizamse por longas jornadas de trabalho, com ganhos incertos e variados. Em geral, ganham em média entre 1 a 2 salários mínimos em atividades que envolvem outros membros da família. Ademais, o mercado informal é o desaguadouro de quase toda a força de trabalho que sai à procura de emprego, tentando ganhar a vida de qualquer jeito. Muitas vezes os trabalhadores desempregados desistem de procurar emprego no setor formal por falta de condições financeiras para custear o transporte, lanche, etc. Na informalidade caracterizam-se a um só tempo pela insegurança e aleatoriedade, mas, por outro lado, inauguram formas alternativas de sociabilidade. Contudo, a referência no imaginário social dos trabalhadores da amostra, continua sendo o desejo de voltar às fábricas do DI, e, portanto, ter o vínculo empregatício, expresso na carteira assinada, que lhes dá garantia aos direitos trabalhistas e previdenciários, assegurados por lei. Dados do Ministério do Trabalho mostram que, em 1999, 35 milhões de trabalhadores encontram-se sem carteira assinada no Brasil. 11 Cf. VVAA. Mapa do Trabalho Informal: Perfil socioeconômico dos trabalhadores informais na cidade de São Paulo. São Paulo: Editora Perseu Abramo/CUT, 2000. 10 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 137 Desemprego, trabalho precário e des-cidadanização na Zona Franca de Manaus Sem emprego e privados dos direitos sociais O contrato de trabalho cuja materialidade é a carteira assinada conforma na tradição brasileira os requisitos de sustentação da cidadania.12 Ela define a existência civil e os modos de sociabilidade. Além disso, ela é aceitação tácita na sociedade brasileira como sinal de uma respeitabilidade e honestidade que redime o trabalhador do estigma da pobreza. Sem essa representação simbólica os trabalhadores estarão privados dos direitos sociais. Nessa perspectiva, os trabalhadores da amostra têm ainda uma enorme expectativa de retornarem às fábricas do DI. Apesar de reconhecerem que as inovações tecnológicas vêm provocando o desemprego,13 eles ainda têm esperança de voltar ao chão da fábrica. Para alguns: hoje em dia na sociedade uma pessoa desempregada não é bem-vista. Em outras palavras, é a carteira assinada que lhes dá segurança e dignidade. Essa representação simbólica faz com que os trabalhadores se sintam seguros, pelas garantias dos serviços sociais existentes dentro das grandes e médias indústrias da Zona Franca de Manaus. Veja-se este depoimento: “Lá é bom porque o Distrito paga bem, tem carteira assinada e tem acesso até a Unimed, transporte. Trabalhando em outro canto, tem que pagar transporte” (LSV, 2000). No imaginário social dos trabalhadores, nas fábricas do DI “é lugar onde se tem mais direitos”. O desejo de retorno ocorre “por causa da estabilidade da carteira assinada e da certeza do pagamento no final do mês” (depoimento de uma ex-operadora, 2000). A ausência de sistema público de proteção social eficaz obrigou aqueles setores do capital que são reconhecidamente estratégicos para o padrão do desenvolvimento brasileiro a criarem os welfare dentro das empresas. O welfare empresarial, existente nas grandes e médias indústrias da Zona Franca de Manaus, tornou-se atraente para os trabalhadores, pois o vínculo contratual implica ter Cf. a clássica discussão feita por SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e Justiça. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1979. 13 A crise enérgica brasileira vem afetando as indústrias da Zona Franca de Manaus. Nos últimos meses do ano foram demitidos 974 trabalhadores. Jornal Gazeta Mercantil, 26.7.2001. 12 138 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Elenise Faria Scherer acesso aos serviços sociais. Talvez por isso que Castel observa: “o trabalho permanece como referência dominante não somente economicamente como também psicologicamente, culturalmente e simbolicamente, fato que se comprova pela reação daqueles que não o têm” (CASTEL, 2000, p. 123). Nesses termos a precarização é sempre identificada com a ausência de contribuição à Previdência Social, e, portanto, sem direitos, inclusive o de aposentadoria.14 O fato de os trabalhadores desempregados não disporem de nenhuma garantia de renda assegurada pelo vínculo contratual, encontram-se ainda mais vulneráveis aos efeitos deletérios do mercado. Além disso, ao perderem o direito à sindicalização, não têm acesso às resoluções dos acordos coletivos e não podem ingressar no sistema de seguro-desemprego. Os dados do Sistema Nacional de Emprego – SINE – Regional do Amazonas mostram que só no primeiro semestre de 1999, considerado o pior momento da Zona Franca de Manaus, quando o desemprego atingiu seu ápice, 41.945 trabalhadores recorreram ao seguro-desemprego. Entretanto, somente 40.136 conseguiram obter esse direito. Com a perda do vínculo formal de trabalho, os trabalhadores ficaram impossibilitados de contribuir para a Previdência Social, haja vista que 100% dos entrevistados afirmaram que, se esta contribuição não for feita por meio do desconto em contracheque, o pagamento ao seguro social fica inviável. O trabalho precário, sem ganho fixo e sem contrato, impossibilita-os de contribuir mensalmente à Previdência Social. Para aqueles que estão na informalidade não existem nenhum instrumento que seja capaz de impor a contribuição ao INSS. Os nossos informantes mostram que não têm como pagar, outros não sabem como contribuir, e os demais não confiam na capacidade do setor público gerenciar a verba pública. Por isso a baixa na carteira não significa somente as perdas dos direitos, mas também a da dignidade. 14 A exclusão do sistema previdenciário, possivelmente, é o grave problema decorrente da informalidade. As chances de aposentadoria são nulas, a não ser que isso ocorra por velhice cujo benefício gerado é de natureza assistencial e não contributiva. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 139 Desemprego, trabalho precário e des-cidadanização na Zona Franca de Manaus Os sem-trabalho e sem-esperança. Somos todos inúteis? Como se vê, a necessidade do vínculo formal garantido e materializado pela carteira assinada é uma realidade entre os trabalhadores da amostra, pois somente assim se sentem úteis. Para alguns o trabalho dignifica o homem. Isto significa afirmar que é por meio da carteira assinada que lhes é garantida a cidadania. Sem ela, os nossos informantes se sentem sem direitos de cidadãos. Nesse sentido, a questão do desemprego é paradigmática, pois sem estatuto de trabalhador, os sem-emprego são confundidos com a figura do pobre, do desocupado, ou simplesmente da ociosidade e da vadiagem. Excluídos do mercado de trabalho, para alguns suas identidades não se completam, já que estão privados dessa espécie de acabamento simbólico que é a carteira de trabalho e que implica nos exercícios dos direitos e na prática da representação sindical (TELLES, 1991). A inserção no mercado formal de trabalho e, portanto, a carteira assinada é que constrói parâmetros de semelhança, identificação e reconhecimento, se possa afirmar: somos trabalhadores. Os trabalhadores engajados no setor informal e que tiveram suas trajetórias de emprego regular com registro em carteira nas indústrias da Zona Franca, as atividades na informalidade, hoje, por mais constantes e persistentes que venham a se tornar, não são consideradas trabalho. “Quando estou trabalhando, me sinto tão orgulhosa, pés no chão, me sinto uma brasileira, mas desempregada, não tem para onde correr” (depoimento de uma operadora, 2000). A carteira assinada, que assegura e prescreve o acesso aos direitos sociais e seu direito a existir socialmente, a ser reconhecido como cidadão, é a prova de ser um trabalhador responsável como uma trajetória ocupacional identificável em seus registros e cumpridor de seus deveres. Caso contrário, o trabalhador se sente: “discriminado, marginalizado, parece que a pessoa é um vagabundo. É difícil conviver com isso” (depoimento de um exoperador, 2000). Aqueles que são considerados velhos pelo capital, sofrem a provação da precariedade profissional que é efetivamente mais dolorosa quando ela atinge indivíduos no coração do trabalho, muitos deles com 30 anos de vida. Veja um depoimento: “inútil, porque saio à procura de trabalho e não tem, e quando tem, 140 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Elenise Faria Scherer não aceitam por causa da idade, então me sinto inútil. Um Zé-ninguém. Já tive a ponto de fazer besteira, pois sem trabalho não sou ninguém, é um desespero andar atrás de trabalho e não encontrar nada, ser sustentado pelos vizinhos” (depoimento de um ex-operador, 2000). Alguns desses trabalhadores entrevistados não têm mais nenhuma esperança de sair da condição de desempregado. Essas pessoas começam a ter o sentimento de que são inúteis à sociedade e perderam o sentido de suas vidas. Conclusão No início de abril do ano 2001, a Secretaria de Trabalho do Estado do Amazonas – SETRABS, registrou a ocorrência de 9.502 demissões somente no primeiro trimestre. Acresça, ainda, a demissão de 974 trabalhadores recentemente, decorrentes, naquele momento, da crise enérgica que vem afetando sobremaneira a indústria brasileira. Em outros termos, o desemprego voltou a crescer neste início de século na Zona Franca de Manaus. 15 Neste cenário, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Metalúrgicas e Eletroeletrônicas afirmou que entrou máquina, sai trabalhador, é trabalhador na rua. A despeito disso, Marx havia observado que no futuro o capitalismo iria orientar-se para a mais-valia relativa e que o capital se utilizaria do trabalho humano de forma intensiva, agora, com base em ciência e tecnologia que permitiria produzir mais e melhor. Esta antevisão marxista é impressionante, pela sua atualidade interpretativa do capitalismo contemporâneo; a mais-valia absoluta não perduraria como estratégia básica de exploração capitalista (1975, p. 585). Na contemporaneidade, as mutações nos processos produtivos, como vimos, estão a indicar que a exploração capitalista ocorre com a captura da inteligência do trabalhador, muito mais do que a sua força física. A sujeição do trabalho à lógica 15 Em face do aumento de demissões nos primeiros meses do ano, o governo do Estado mandou um projeto de lei ao Legislativo que estabelece normas para demissão dos trabalhadores do pólo industrial de Manaus. O secretario de Desenvolvimento Econômico argumentou que muitas empresas possuem uma massa salarial de 0,8 do seu faturamento total, incluindo o salário e os benefícios dos empregados. Para ele, é necessário que as empresas justifiquem porque esse índice de 0,8% do faturamento justifica as demissões. Jornal Amazonas Em Tempo. Economia. A 5, 12.7.2001. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 141 Desemprego, trabalho precário e des-cidadanização na Zona Franca de Manaus do capital ocorre num tempo histórico configurado pela intensidade do conhecimento como condição fulcral da produtividade capitalista. Marx já afirmara: “o capital tem, pois, o instinto imanente e a tendência permanente de aumentar a força produtiva para diminuir o preço das mercadorias e em conseqüência o do próprio operário” (1975, p. 586). Ao lançar mão de meios científicos e tecnológicos para o aperfeiçoamento das condições de produtividade, o capital impõe que a força de trabalho produza mais e melhor de acordo com a regras da competitividade em escala planetária. As mutações que ocorreram e estão a ocorrer no chão da fábrica, excluindo milhares de trabalhadores do processo produtivo na Zona Franca de Manaus, são apenas um caso singular no mundo capitalista – muito interessante de ser estudado – das necessidades da economia global, que nas décadas de 60 e 70 do século passado utilizaram-se da estratégia capitalista das zonas de enclaves para onde se transportaram modos de organização da produção e circulação da mercadoria compatíveis técnica e socialmente com a nova divisão internacional do trabalho. A Zona Franca de Manaus, como toda a estratégia capitalista, sempre foi, intrinsecamente, excludente. Mesmo nos seus anos dourados, nas décadas de 70 e 80, estima-se que 48% de PEA encontravam-se na informalidade, portanto, o desemprego, o trabalho precário e a exclusão não se constituem uma novidade histórica na cidade de Manaus. Entretanto, a automação e a crise na economia brasileira nos anos 90 provocaram demissões em massa e o aumento exacerbado do desemprego e do trabalho precário. As necessidades de valorização do capital são postas de forma explícitas pelo superintende da Zona Franca de Manaus: O pólo industrial de Manaus está definitivamente inserido no processo de globalização. Aos 33 anos, a Zona Franca e a SUFRAMA orgulham-se de possuir um parque industrial com níveis internacionais de preço e qualidade, tão com o aumento da oferta de emprego. Mas para que isso acontecesse, as empresas aqui instaladas enfrentaram um período de transição doloroso, de conseqüências severas, que exigiu sacrifícios, principalmente do 142 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Elenise Faria Scherer trabalhador amazonense, que viu a oferta de emprego cair pela metade passando de 90 mil para os atuais 45 mil (Grifos nossos). 16 As palavras do superintendente da Zona Franca de Manaus são reveladoras. pois (...) o movimento do capital é insaciável, diria Marx (1975, p. 316). O faturamento das indústrias do Distrito Industrial em 1988 contabilizou US$ 5.098.581.585; em 1995 chegou em torno de US$ 11.766.561527; e em 2000 US$ 10.291.961.410. Pode-se inferir que as indústrias cada vez mais faturam e cada vez mais absorvem menos trabalhadores. A queda da participação dos custos com pessoal pode ser o indicador que as indústrias da Zona Franca de Manaus estão inseridas no mercado mundial ultracompetitivo. Como afirma o economista Rodemark Castelo Branco, esse processo “não é uma tendência, é uma necessidade imposta pelo mercado internacional” (A CRÍTICA, 2001). A chamada crise da economia regional, que vem impulsionando o desemprego no Distrito Industrial, é apenas uma expressão local de repercussão das crises de expansão e reajuste da economia global. Nas palavras de Chesnais, “o movimento da mundialização é excludente” (1996, p. 33-36). No novo cenário mundial, os desempregados, subproletarizados que reconfiguram a cidade de Manaus, dificilmente voltarão ao processo produtivo. Esses trabalhadores excluídos parecem não ter lugar na história, pois não têm qualificação e nem idade para adequar-se ao progresso contemporâneo. Vivendo de bico, na condição de inempregáveis, transitam na informalidade de um lado para o outro, na incerteza e na descontinuidade. Alguns peregrinam pelas largas avenidas do Distrito Industrial na esperança de obter um trabalho com carteira assinada. Outros reconhecem que dificilmente voltarão ao chão da fábrica. Esses trabalhadores estão fora do limiar da trama representativa, não se constituem plenamente como cidadãos e não se singularizam como sujeitos direitos. Eles se tornaram dispensáveis à modernidade brasileira e amazonense em particular. 16 Entrevista com o superintendente da Zona Franca de Manaus, Sr. Antônio S.Melo no, Jornal “Amazonas em Tempo”. 27.2.2000. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 143 Desemprego, trabalho precário e des-cidadanização na Zona Franca de Manaus Referências ALONSO, Luis Henrique. Trabajo y ciudadania: Estúdios sobre la crisis da sociedad salarial. Madrid: Editorial Trotta, 1999. ALVES, Giovanni. O novo (e precário) mundo do trabalho: Reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000. CASTELL, Robert. 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Procura mostrar que a reestruturação produtiva provocou índices de desemprego e que a re-qualificação profissional não tem contribuído para a re-inserção dos trabalhadores no processo fabril. Palavras-chave Emprego, desemprego, produção e inovação. Abstract The objective of this work is to present the employment and unemployment levels in Manaus Free Zone, having as reference the secondary data from the Work Ministry and DIEESE. It also discusses 1 Professora da Universidade Federal do Amazonas (PGSCA) e doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 147 Impactos da reestr uturação produtiva no Amazonas – níveis de emprego e desemprego na Zona Franca... that the production innovations are responsible for the unemployment levels and that the new professional qualification of the workers hadn’t contributed to theirs reintegration in the industry work. Keywords Employment, unemployment, production, innovation. O trabalho assalariado é uma invenção do capitalismo industrial do século 18, período em que a relação salarial vai ser construída sob uma dupla face: abstrata (valor de troca) e concreta (valor de uso). A remuneração é o reconhecimento social e econômico do trabalho, da sua utilidade dentro de uma sociedade eminentemente mercantil. Isto significa dizer que outros tipos de atividades, também úteis, mas que não possuem um reconhecimento social, não se enquadram nesta definição de trabalho. A crise por que passa o mundo do trabalho nas sociedades modernas é, sobretudo, uma crise do trabalho assalariado e do fenômeno salarial. De acordo com alguns autores franceses, como Freyssenet (1993), a idéia de trabalho diz respeito ao mundo da produção ou do trabalho produtivo. Para esse autor, a idéia de trabalho aparece associada à execução de tarefas de caráter profissional, remuneradas, assalariadas e exercidas na esfera pública – leia-se nas fábricas – predominantemente pelos homens. Assim: O mundo do trabalho que tendo sido historicamente separado da casa, família, do local de moradia, torna-se cada vez mais autônomo e independente das relações sociais e das práticas políticas, religiosas, culturais e educacionais. Um conjunto de atividades sociais antes integradas no cotidiano da vida, comporia o mundo do não trabalho (BLASS, 1998, p. 1). A concepção de trabalho em Freyssenet é hegemônica e, de certa forma, expressa bem o discurso oficial da divisão sexual do trabalho ao dissociar o mundo da produção do mundo da reprodução e/ou o espaço público do espaço privado, 148 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Iraildes Caldas Tor res em que o primeiro diz respeito ao trabalho exercido pelos homens e o segundo ao não trabalho exercido pelas mulheres. Para Freyssenet (1993), as atividades domésticas não podem ser definidas como trabalho e sim como não trabalho, polaridade que se estabeleceu sobretudo no interior dos movimentos sociais de mulheres e mesmo em algumas vertentes da sociologia do trabalho. O trabalho enquanto categoria antropológica universal possui um conteúdo filosófico bem definido. É através dele que homens e mulheres realizam-se como seres históricos e sociais, constituindo-se em uma atividade através da qual o ser social modifica o mundo, a natureza, de forma consciente e voluntária, para satisfazer suas necessidades básicas. Para Marx (1989), é através do trabalho que o ser põe em movimento as forças de que seu corpo é dotado, para assim poder assimilar a matéria, dando-lhe uma forma útil à vida. O trabalho enquanto práxis possui um potencial libertador para o ser social. Constitui-se em um fator de crescimento, através do qual o sujeito histórico produz os meios necessários à sua existência para, assim, manter a sua dignidade. Bouffartigue (1996) registra três aspectos que concorrem para a valoração do trabalho: o aspecto econômico, o aspecto topológico e o aspecto simbólico. O primeiro diz respeito ao valor das relações de trabalho como um bem mercantil que assegura a sobrevivência do ser social. O segundo consiste no valor que o trabalho ocupa no sistema de distribuição social e nas atividades dos grupos, enquanto que o terceiro assenta-se nos significados sociais e no sentido pessoal atribuído ao trabalho. Esse autor acredita que há uma crise de um tipo de trabalho que é o trabalho assalariado e esse tipo de trabalho não é e nunca foi centralidade do ser social. Vásquez (1997) considera que o trabalho enquanto agir objetivo do ser social, que cria a realidade humano-social, é o trabalho no sentido filosófico, que é, em sua essência, a fonte das realizações e centralidade do ser. Aparadas estas arestas que consideramos importantes para a compreensão dessa conjuntura histórico-social – cuja intenção consistiu em deixar claro que não está em causa nestas discussões o esgotamento do trabalho humano ou o “fim da história”, como protagonizam os partidários da ética niilista do “fim do emprego” e da sociedade do trabalho –, passaremos a apresentar as estatísticas de emprego e Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 149 Impactos da reestr uturação produtiva no Amazonas – níveis de emprego e desemprego na Zona Franca... desemprego no Estado do Amazonas, a partir de dados secundários obtidos junto aos órgãos oficiais como o Ministério do Trabalho e o DIEESE. A reestruturação produtiva e o reordenamento das empresas remetem para a exigência de qualificação da força de trabalho, como uma necessidade que se coloca tangencialmente ao processo de ajuste ao mercado. No entanto, dado que o Estado brasileiro não investiu suficientemente na formação profissional, segue-se a lógica de exclusão produtiva de amplos setores das classes trabalhadoras, não só porque não possuem qualificação profissional, mas também porque não possuem escolaridade exigida. Para Antunes (1995, p. 44), “a atual tendência dos mercados de trabalho é reduzir o número de trabalhadores ‘centrais’ e empregar cada vez mais uma força de trabalho que entra facilmente e é demitida sem custos.” O impacto da reestruturação produtiva em países como o Brasil é mais problemático. No que se refere ao aspecto da escolarização, além do Estado não ter investido prioritariamente no setor educacional, também dificultou o acesso ao ensino formal aos filhos dos trabalhadores, sem falar da exclusão escolar de grandes contingentes de trabalhadores adultos. Quanto ao aspecto da qualificação profissional, peremptoriamente, essa questão ficou ao encargo do sistema ‘S’ (SENAI, SENAC, etc.), que por si só não pôde dar conta da grande demanda existente. No âmbito regional, é preciso dizer que a Zona Franca de Manaus, autorizada a funcionar até o ano de 2023, apresenta sinais inequívocos de inflexão no que tange à manutenção do nível de emprego para os trabalhadores amazonenses em relação à PEA (População Economicamente Ativa) deste Estado. O fausto da riqueza e do propalado desenvolvimento deixa uma dívida social sem precedente para com os trabalhadores, evidenciada no quadro de desemprego que a cada dia assume contornos assustadores, formando um corredor de exclusão social consignado na baixa do nível de vida desta população. A década de 90 apresenta indicadores de desemprego dos mais perversos. Os períodos de permanência do trabalhador nas empresas ficaram cada vez mais reduzidos. As grandes empresas reduziram cargos e até operações inteiras para evitar a sucumbência e imersão na crise. 150 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Iraildes Caldas Tor res No caso do Amazonas, os índices de desemprego são bastante preocupantes, conforme mostra a tabela abaixo: Tabela 1: Nível de emprego e desemprego no Estado do Amazonas. Ano Desligamentos Variação do nível de emprego 1991 90.212 - 17.349 1992 60.544 - 19.098 1993 53.145 3.967 1994 56.054 9.458 1995 73.472 2.726 1996 (jan. a jul.) 40.748 3.349 Fonte: Ministério do Trabalho/IPEA, Rio de Janeiro. Como se vê, há uma substancial retração do nível de emprego formal no Estado do Amazonas, incluindo sobretudo os setores da indústria que dispõem de incrementos tecnológicos como as empresas localizadas no Distrito Industrial de Manaus, mas que inclui, também, outros setores da economia formal com grandes rebatimentos nos setores de serviços, da construção civil e do comércio. Isto implica uma outra discussão presente neste debate que é a constatação de que a reestruturação produtiva atinge, também, outros setores e postos de trabalho. O professor Paul Singer (1998, p. 118), por exemplo, indica que “a demanda por trabalhadores está se retraindo em setores beneficiados por inovações tecnológicas, entre os quais se destaca a indústria, mas que inclui indubitavelmente boa parte do terciário.” Ao que parece, esta questão transcende os nexos da circunscrição teórica, é atualmente uma constatação que “salta aos olhos”, conforme podemos observar na demonstração estatística dos dados comparativos da situação dos postos de trabalho e do nível de emprego e desemprego nos vários setores da economia do Estado do Amazonas. Demonstraremos os dados no período de fevereiro de 1998 a janeiro de 1999, já que não nos foi possível obter os dados relativos ao ano de 1997: Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 151 Impactos da reestr uturação produtiva no Amazonas – níveis de emprego e desemprego na Zona Franca... Tabela 2: Dados comparativos da situação dos postos de trabalho no Amazonas de Fev./ 98 a jan./ 99 Atividade econômica Admissão Demissão Saldo 113 103 10 15.725 20.701 -4.976 879 351 28 4.926 6.384 -1.458 Comércio 17.073 16.387 635 Serviços 23.488 23.147 341 Administração Pública 100 96 4 Agric. Silv. Outros 668 525 143 Extrativa Mineral Indústria de Transformação Serv. Ind. Utilidade Pública Construção Civil Outras Total 279 41 238 62.751 67.735 -4.984 Fonte: CAGED (MTb) – Lei n.º 4.923 – Sistematização: DIEESE do Pará. Os dados sobre admissão e demissão de trabalhadores no período de fevereiro de 1998 a janeiro de 1999, na cidade de Manaus, mostram que o setor de serviços foi, no mesmo período, o setor que majoritariamente empregou e desempregou pessoas, seguido do setor industrial e do comércio, com percentuais também constatados em todo o Estado do Amazonas. Tabela 3: Dados comparativos da situação dos postos de trabalho em Manaus de Fev./ 98 a Jan./ 99 Atividade econômica Admissão Demissão Saldo 244 279 - 35 18.005 24.197 - 6.192 455 501 - 46 7.668 9.312 - 1.644 17.914 16.899 1.015 25.076 24.817 259 128 114 14 1.282 881 401 274 36 238 Extrativa Mineral Indústria de Transformação Serv. Ind. Utilidade Pública Construção Civil Comércio Serviços Administração Pública Agric. Silv. Outros Outras Fonte: CAGED (MTb) – Lei n.º 4.923 – Sistematização: DIEESE do Pará. 152 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Iraildes Caldas Tor res Os últimos dados relativos ao mês de abril de 1999 dão conta de que, em todo o Estado do Amazonas, o índice de admissão de trabalhadores correspondeu a 4.430, enquanto que o desligamento apresentou um percentual bem superior correspondente a 6.175, compondo um saldo de - 1.745 e uma variância de - 1. 09 do nível de emprego. A indústria é, certamente, o setor da economia que mais sofreu o impacto da reestruturação no nível de emprego na Zona Franca de Manaus. Iniciada em 1989 com a abertura da economia a reestruturação produtiva tomou forte impulso com a implantação do Plano Real no Brasil. As estatísticas mostram que em 1995 o índice de demissão correspondeu a 6.247 trabalhadores. Em 1996 foi de 7.561; os três primeiros meses de 1997 já davam sinais de inflexão com o índice de 1.941 demissões; do mesmo modo que nos dois primeiros meses de 1998 as demissões já ostentavam um índice de 2.229 trabalhadores. Em 1999 o quadro de demissões chegou a 5.797 e no ano de 2000 3.735 trabalhadores industriais foram demitidos, conforme demonstração estatística seguir: Tabela 4: Rescisão de Contrato de Trabalho do Ano de 1995. Meses Sexo Feminino Sexo Masculino Total Janeiro 198 180 378 Fevereiro 304 197 501 Março 245 241 486 Abril 158 269 427 Maio 189 255 444 Junho 340 412 752 Julho 99 150 249 Agosto 216 284 500 Setembro 166 259 425 Outubro 177 251 428 Novembro 323 335 658 Dezembro 446 553 999 2.861 3.378 6.247 Total Fonte: Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos do Amazonas/1996. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 153 Impactos da reestr uturação produtiva no Amazonas – níveis de emprego e desemprego na Zona Franca... Tabela 5:Rescisão de Contrato de Trabalho do Ano de 1996. Meses Sexo Feminino Sexo Masculino Total Janeiro 279 319 598 Fevereiro 258 335 593 Março 514 467 981 Abril 343 345 688 Maio 258 335 593 Junho 199 286 485 Julho 332 428 760 Agosto 185 292 477 Setembro 206 385 591 Outubro 432 332 764 Novembro 153 250 403 Dezembro 304 324 628 3.463 4.098 7.561 Total Fonte: Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos do Amazonas/1997. Tabela 6: Homologação de Rescisão de Contrato de Trabalho no início de 1997. Meses Sexo Feminino Sexo Masculino Total Janeiro 327 277 604 Fevereiro 336 338 674 Março 376 287 663 1.039 902 1.941 Total Fonte: Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos do Amazonas/1997. Tabela 7: Homologação de Rescisão de Contrato de Trabalho no início de 1998. Meses Sexo Feminino Sexo Masculino Total Janeiro 807 637 1.444 Fevereiro 501 284 785 Total 1.308 921 2.229 Fonte: Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos do Amazonas/1998. 154 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Iraildes Caldas Tor res Tabela 8: Rescisão de Contrato de Trabalho no Ano de 1999. Sexo Masculino 3.683 Sexo Feminino Total 5.797 2.114 Fonte: Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos do Amazonas/2000. Tabela 9: Rescisão de Contrato de Trabalho no Ano de 2000. Sexo Masculino 2.507 Sexo Feminino 1.228 Total 3.735 Fonte: Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos do Amazonas/2000. Houve uma queda considerável do emprego em todo o território nacional, enquanto que em 1993 a taxa era de 14,6% em 2001 chegou a 16,6%. Por outro lado, houve um crescimento da informalidade que saltou de 44,4% do total de ocupados em 1993, para 47,3% em 2001. Em apenas dois anos (1998-2000) o número de trabalhadores sem carteira de trabalho cresceu de 23,5% para 25,5% (PME/IBGE, 2001). Os índices de desigualdade social põem o Brasil na quarta pior distribuição de renda do mundo, superando apenas a Suazilândia, Nicarágua e África do Sul. Para além da aporia emprego-desemprego, a reestruturação produtiva introduziu mudanças nas relações de trabalho, afetando profundamente a materialidade das classes trabalhadoras: flexibilização trabalhista; trabalho por prazo determinado; transgressão da Convenção 158 da OIT; suspensão temporária do contrato de trabalho dentre outros. Está em curso uma tendência que vem se configurando numa perspectiva neo-social consignada na era do não direito, posto que promove a desregulamentação de uma série de medidas trabalhistas conquistadas arduamente pelo conjunto dos trabalhadores ao longo de quase dois séculos. O desemprego, caracterizado pela ausência de relação empregatícia e/ou pela ausência de geração de renda por parte do trabalhador, quer seja no âmbito formal ou informal, priva-o dos meios de subsistência tornando-o um ser desprovido e vulnerável em todos os sentidos. Geralmente, a perda do emprego acarreta Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 155 Impactos da reestr uturação produtiva no Amazonas – níveis de emprego e desemprego na Zona Franca... sérios problemas ao trabalhador, que vão desde os de ordem psicológica e emocional até aos problemas sociais como o alcoolismo, a perda da moradia, o submundo da criminalidade e o suicídio. É preciso dizer que o desenvolvimento econômico preconizado pela Zona Franca de Manaus, sob os preceitos do grande capital deixa, hoje, ao povo amazonense, um legado de aprofundamento da questão social, cujo preço é difícil avaliar. A ideologia do “novo eldorado” que atraiu para a cidade de Manaus um contingente populacional considerável, consignado numa mão-de-obra desqualificada e barata – proveniente não só do interior do Estado do Amazonas e adjacências, mas também de outras regiões, sobretudo do Nordeste – descarta, hoje, os filhos desses trabalhadores, deixando um saldo de desempregados explicitado numa grande problemática social. O perverso nisso é que o capital não esboçou nenhuma preocupação com a vida destes trabalhadores. Sequer dotou a cidade de infra-estrutura urbana à guisa de organização do seu tecido social; muito menos o poder público investiu em políticas públicas, principalmente no que diz respeito às políticas educacionais de acesso universalizado. Nem mesmo as empresas do Distrito Industrial investiram em qualificação profissional; ao contrário, mantiveram sempre a mão-de-obra inábil para o mercado atual. Daí que, quando ocorre o reordenamento ou redefinição do lugar do trabalho, é óbvio que a população não vai estar preparada, já que as forças de mercado e o poder público não se preocuparam com esta questão. É assim que, atualmente, a história impõe ao Estado brasileiro um “resgate” desta dívida social, através de uma política compensatória de qualificação e requalificação profissional financiada pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT. Ocorre que essas medidas tardias de treinamento profissional não estão resolvendo o problema do desemprego. De acordo com Singer (1998, p. 119), “o aumento da qualificação não induz os capitais a ampliar a demanda por força de trabalho, pois esta depende basicamente do crescimento dos mercados em que as empresas vendem seus produtos.” Em outras palavras, a qualificação profissional nesse contexto de transformações do mundo do trabalho não resolve o problema dos trabalhadores coletivamente. Além disso, o tipo de política de qualificação profissional implementada 156 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Iraildes Caldas Tor res pelo Ministério do Trabalho, via recursos do FAT, está longe de trazer benefícios de emprego aos trabalhadores. Ao que parece, tem sido basicamente um engodo para tirar o Brasil do ranking dos países que possuem uma população analfabeta e sem qualificação para o trabalho. Poderíamos concluir, a partir de Singer (1998, p. 120), que a “qualificação maior interessa ao trabalhador individual para obter uma vantagem na luta por emprego, mas só traria vantagens ao trabalhador em conjunto se fosse possível negociar escalas de salários que remunerassem melhor os de mais qualificação, sem reduzir o ganho dos menos qualificados.” Com efeito, deve-se reconhecer que se hoje o trabalhador desqualificado é excluído do processo produtivo, é porque antes ocorreu também a sua exclusão do processo de educação formal, somada ao baixo desempenho que a qualificação profissional teve neste país, em especial na Zona Franca de Manaus. Deve-se notar, por fim, que mesmo se alguma empresa, como a Moto Honda da Amazônia, tivesse desenvolvido minimamente uma política educacional de ensino supletivo para os seus empregados, hoje, com a reestruturação produtiva, esta empresa não se vê mais compelida a implementar essa política. É verdade que a reestruturação produtiva fragilizou o protecionismo fiscal das zonas francas afetando, inexoravelmente, o complexo industrial de Manaus. Isto significa dizer que a competitividade dos mercados impulsionou o deslocamento de muitas empresas para outras áreas mais atrativas, sob a intersecção dos blocos econômicos que se encarregaram de efetivar proteção às empresas numa concorrência intercapitalista. É também verdade que estxe modelo de desenvolvimento já cumpriu o seu papel histórico no plano do grande capital, mas não nos parece convincente a perspectiva de derrocada final da Zona Franca de Manaus, pois trata-se de um moinho de vento que dá sustentação ao poder político local. Referências ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses do mundo do trabalho. 3. ed. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Unicamp, 1995. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 157 Impactos da reestr uturação produtiva no Amazonas – níveis de emprego e desemprego na Zona Franca... BOUFFARTIGUE, Paul. Fin del trabajo o crisis del trabajo assalariado? Revista Sociologia del Trabajo. n. 29, invierno de 1996. BLASS, Leila Maria da Silva. Trabalho e suas Metamorfoses. In:_______. FREYSSENET, M. (1993). L’invention du travail, futur antérieur. n. 16, Paris, 1998. IBGE. Indicadores de Desemprego no Brasil. Rio de Janeiro, 2001 MARX, Karl. O capital. Crítica da economia política. Trad. de Reynaldo Sant’anna. 13. ed. São Paulo: Ática, 1989. Livro primeiro. v. 1 OFFE. Claus. Capitalismo desorganizado: transformações contemporâneas do trabalho e da política. Tradução de Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Brasiliense, 1995. SINGER, Paul. Globalização e desemprego: diagnóstico e alternativas. São Paulo: Contexto, 1998. VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. Trad. de Luiz Fernando Cardoso. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. WALLERSTEIN, Immanuel. Perspectivas de Futuro para El Capitalismo Histórico. In:_______. El futuro de la civilizacion capitalista. Trad. de José María Tortosa. Barcelona: Içaria, 1997. 158 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Izaura Rodrigues Nascimento SUFRAMA: agência dos agentes Izaura Rodrigues Nascimento 1 Resumo O texto aborda a Zona Franca de Manaus – ZFM em três momentos. Primeiramente no contexto de sua implantação, no segundo momento a SUFRAMA é caracterizada como agência de desenvolvimento e no terceiro momento são destacadas algumas questões que a perpassam na década de 90. Palavras-chave Desenvolvimento; industrialização; planejamento. Abstract In this text the Free Trade Zone of Manaus is approached in three moments. Firstly in the context of its installation, in the second moment SUFRAMA is characterized as development agency and in the third moment I look for to highlight some subjects that involve it in the decade of 90. 1 Mestre em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia pelo Centro de Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Amazonas. Técnica do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas – IPAAM. Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 159 SUFRAMA: agência dos agentes Keywords Development, industrialization, planning. Na pesquisa que deu origem a este artigo, realizada no final da década de 90, foram consultados livros sobre a temática, artigos e publicações de debates organizados pelo jornal A Crítica. O critério de escolha desses materiais foi o debate sobre o desenvolvimento regional e a ZFM, realizados por políticos, intelectuais e técnicos da SUFRAMA. Foram utilizados também documentos do órgão, tais como as sete Atas disponíveis com seus respectivos anexos, bem como um texto sobre a história da SUFRAMA produzido pela Assessoria de Comunicação do órgão. O contexto de instalação da Zona Franca de Manaus A instalação da Zona Franca de Manaus ocorreu no contexto da “Nova Divisão Internacional do Trabalho”. Esta nova divisão baseou-se na produção cada vez mais padronizada, voltada para o mercado mundial. Correspondendo, conforme aponta Freitas Pinto, a uma “nova estratégia do sistema capitalista mundial”, “...uma tendência a concentrar a influência de determinados países sobre determinadas regiões do mundo” (FREITAS PINTO, 1987, p. 29), concomitante a este movimento econômico do capitalismo, observamos o embate político entre as forças capitalista e socialista. A América Latina, desde o período pós-Segunda Guerra, como a maioria dos países sob o regime militar, busca o desenvolvimento nacional (SANDRONI, 1994, p. 95; MANTEGA, 1990, p. 12), aliada aos Estados Unidos, um típico representante da expansão capitalista. As zonas francas possuem um modelo mundial definido pela ONUDI, dentre as exigências para sua instalação encontram-se: baixos salários, controle do Estado sobre os trabalhadores, além dessas, há, ainda, a orientação para a criação de um órgão administrativo central e autônomo, autorizado pelo governo e situado dentro da própria zona, para organizá-la e administrá-la (FREITAS PINTO, 1987, p. 26). 160 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Izaura Rodrigues Nascimento No Brasil, a Zona Franca de Manaus, além de ser baseada neste modelo mundial é alicerçada na idéia de planejamento e esta está vinculada à idéia de Estado planejador, centralizador. Conforme nos ponta Simonsen, se inicialmente o planejamento “assumiu em realidade qualidade quase mística” no governo Kubitschek e tornou-se condição de respeitabilidade para João Goulart, foi no período militar que se impôs como método de racionalizar a ação governamental, a partir de um “programa macroeconômico” (SIMONSEN, 1974, p. 47). Podemos destacar, a partir na própria fala dos planejadores, a segunda fase ou, talvez, a outra face do regime militar. A primeira caracteriza-se pela imposição, pela força, do controle social e político, já na segunda o controle impõe-se como racionalidade, implantando o que Marilena Chaui denomina como “a forma sutil de dominação” (CHAUÍ, 1982, p. 49; CANCLINI, 1983, p. 37), que embora não sendo no início, depois se torna elemento produtor de consenso. A administração racional de meio transformar-se-á em fim. Sua representação pretende-se “neutra”, de aplicação da ciência representa-se como se ela fosse. Um conjunto de medidas governamentais vai consolidando-se nos quadros regionais, com maior concentração na Regiões Norte e Nordeste, com as SUDENE, SUDAM, SUFRAMA. O quadro regional do Norte e Nordeste: as intervenções mais significativas Em Elegia para uma re(li)gião, Francisco de Oliveira revela-nos que o Nordeste, anterior à SUDENE, encontrava-se num estado problemático, de estagnação econômica, miséria. Diversas intervenções já haviam sido realizadas sem, contudo, alterar a situação daquela região; ao contrário, acabaram por tornar-se reféns, seja do Estado Oligárquico, caso do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS, seja da indústria paulista, caso do Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA. Não que a SUDENE tenha alterado significativamente tal realidade, mas que aquele quadro propiciou uma série de expectativas quanto a uma ação governamental. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 161 SUFRAMA: agência dos agentes Assim, diz-nos Oliveira, os rumos da SUDENE não estavam marcados “desde sempre e para sempre”, e sim profundamente marcados pela “tragédia” da forma que tomaram as contradições do Nordeste, constituindo-se em ameaça à própria burguesia nacional, por um lado e pelas expectativas de um Francisco Julião, de um Miguel Arraes, do próprio Francisco de Oliveira, mas personagens do que indivíduos em si, porque sintetizam expectativas de classes sociais, de categorias e do próprio governo. Por isso é que na análise deste autor, caracterizar Miguel Arraes como populista, à época, seria reduzir as possibilidades de compreensão do processo social na sua dramaticidade; o populismo é a forma que as contradições tomam e não a ausência delas. A peculiaridade da colonização portuguesa no Brasil e, particularmente na Amazônia, o luso-tropicalismo, já foi destacado por diversos autores, dentre os quais, Raimundo Faoro em relação ao Brasil, Silva e Souza em relação à Amazônia. A sociedade foi fundada com uma estrutura estamental, na qual a população nativa sofreu profunda degradação cultural. Segundo Márcio Souza, a superestrutura da ação portuguesa na Amazônia foi mais eficiente e impregnou-se de tal forma que gerou uma auto-imagem negativa e, concomitantemente, uma dominação patrimonialista. O surgimento da elite política amazonense, por ele descrito, ocorre a partir do colono-chefe-militar, que vai se transformando num administrador sedentário: “[...] um estamento obediente aos interesses fiscais da Coroa e domesticado pela complicada malha jurídica e burocrática, mais ardilosa que o cipoal da floresta virgem” (SOUZA, 1990, p. 48). A independência do Brasil e seu tardio reconhecimento na Amazônia, em função da distância geográfica, não deixaram de revelar, segundo o autor, “o gosto oportunista da classe dominante, hegemonicamente portuguesa”, tal foi a pressa de adequar-se à nova situação, o que seria corroborado com a Cabanagem. O movimento, no qual se embatiam as Amazônias portuguesa, brasileira e indígena, embora revelasse profundas contradições internas, teve seu trágico desfecho com a elite, representando-se vitoriosa à custa do elemento nativo. Anos mais tarde, o poder central reconheceria essa representação oferecendo-lhe o estatuto de Província. Formava-se, assim, “a sociedade estamental baseada nos lances de boa vontade do poder central e na defesa de suas prerrogativas menores” (SOUZA, 1990, p. 51). 162 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Izaura Rodrigues Nascimento Assim, na Região Norte, as tentativas de “integração nacional” têm início de forma dramática com a repressão à Cabanagem. A sociedade regional funda-se sobre os escombros dos sonhos cabanos, solapados pelo Brasil independente (SILVA, 1996). A elite amazônica, que se aliara às forças imperiais, passariam, a partir daí, a uma condição de subserviência, interrompida pelo surto de riqueza no período áureo da economia gomífera, quando, conforme assinala Márcio Souza, Manaus transformou-se numa caricatura da Europa (SOUZA, 1978, p. 98). O autor acentua a diferença entre as elites do período colonial, do período mercantilista e do período imperialista (ciclo da borracha), mas reconhece a continuidade na superestrutura, nos costumes do estamento. Em 1900, Silvério Nery, restabelecendo o poder do estamento, agora no interior da estrutura republicana, inauguraria o caciquismo político no Amazonas. Nem a rebelião de 1924 pôde transformar o poder político no Estado do Amazonas. Na ideologia da borracha, a região e o ouro-negro eram indissociáveis, o produto extrativo, dado a sua própria natureza, parecia inesgotável. A elite punha-se uma aura, independia do Estado Nacional. No ciclo da borracha sucederam-se duas gerações: uma do naufrágio, conservadora, e a outra populista, voltada para as massas, representada por políticos, como Gilberto Mestrinho e Plínio Coelho, ao mesmo tempo a vida cultural ganha maior vigor com o Clube da Madrugada que, no entanto, não consegue mudar os rumos da política estadual, opõe muito mais o boêmio ao burguês. A partir das circunstâncias internas assim como dos quadros nacional e internacional, temos uma série de políticas voltadas à ocupação e à retomada da economia extrativa e agrícola, com os planos de colonização, plano de valorização da borracha. A crise americana de matéria-prima, em decorrência da 2.ª Guerra Mundial, possibilitou uma retomada do extrativismo da borracha, porém com pouca duração. Verificamos, assim, o quadro político e econômico que antecede a implantação da SUDAM e, por conseguinte, da SUFRAMA. As expectativas variavam em acordo com a proposta do deputado Francisco Pereira da Silva, que consistia na constituição de um porto de livre comércio, com as “reivindicações populares, Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 163 SUFRAMA: agência dos agentes sobretudo das classes empresariais e trabalhadoras”, que em 1966 pressionaram um reexame da e com propostas como a do governo federal: Zona Franca, após a reformulação da primeira. Poderíamos tomar como exemplo das expectativas as “esperanças” de Djalma Batista. A instalação da ZFM lhe parecia a aplicação da ciência ao desenvolvimento da Amazônia. Esta posição não pode ser tomada, no entanto, desprovida de sua análise crítica acerca da relação entre o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social, pois para Batista decifrar a “Esfinge”, consistiria em analisá-la cientificamente, buscar compreender as suas peculiaridades regionais. A Zona Franca de Manaus seria a intervenção governamental, por seu alcance, mais eficaz no desencadeamento do desenvolvimento regional (Batista, 1976: 268). Se tomarmos Márcio Souza, que publica seu livro A expressão amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo, na mesma época em que Djalma Batista publica O complexo da Amazônia: análise do processo de desenvolvimento, veremos uma postura com menor entusiasmo. A ZFM aparece como o “neocolonialismo”, no qual se teria realizado um golpe de estado na própria elite local, pois ocuparão os cargos subalternos, os diretivos ficando a cargo de pessoas de fora da região. A SUFRAMA e as experiências das agências de desenvolvimento As agências de desenvolvimento Djalma Batista em O complexo da Amazônia: análise do processo de desenvolvimento faz uma avaliação das agências de desenvolvimento: o BASA, nas suas três fases (Banco da Borracha – 1942, Banco de Crédito da Amazônia – 1950 e, finalmente, Banco da Amazônia – 1966); a SPVEA – Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, e a SUDAM – Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia. Sua leitura nos revela diversos aspectos que marcam a atuação dessas agências na região. 164 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Izaura Rodrigues Nascimento O BASA, segundo Batista, pode ser considerado como o primeiro instrumento do processo desenvolvimentista. Sua primeira fase corresponde ao Banco da Borracha, criado para defender a borracha, porém a Amazônia acabou favorecendo e financiando o processo de transformação do produto nas áreas ricas do Brasil, particularmente as indústrias do Sul, além dos desvios de recursos para negócios imobiliários. Quando o banco passou a financiar todos os produtos, passou também a exigir o título de propriedade, o que os pequenos e os médios proprietários não possuíam, conseqüentemente a maior parte dos créditos passou às transações comerciais. Na análise sobre o BASA, criado em 1966, Batista orienta-se pela questão: em que este banco estaria servindo a região como banco de desenvolvimento?, isto porque, analisando os relatórios do banco, de 1971, o autor depara-se com o montante de 47,5% dos empréstimos concedidos aos Estados fora da região amazônica, como Piauí, Ceará, São Paulo, Rio Grande do Sul, inclusive ao Distrito Federal (BATISTA, 1976, p. 204). Aqui se revela novamente a dificuldade de apreender a função dessa agência de desenvolvimento regional quando quase 50% dos empréstimos são concedidos a Estados de fora da Amazônia. Quanto a isso, afirma que entre os dados que não constam nos relatórios inclui-se a ausência de dados sobre as comissões pagas aos diretores do BASA, pelo movimento financeiro global, incluindo as liquidações. Na conclusão sobre a ineficácia do BASA, o autor credita sua causa ao sistema extrativista ao qual estava engajado. A Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia – SPVEA foi criada em janeiro de 1953 e instalada em junho do mesmo ano com o objetivo de incrementar o desenvolvimento da produção extrativa, agrícola, pecuária, mineral e industrial. Nas causas das dificuldades de sua estruturação estão, conforme Batista: a novidade de um organismo de desenvolvimento, a necessidade de disciplinar a aplicação das verbas, a inexistência de pessoal habilitado e a mentalidade de que tudo deveria provir do governo. Entre as maiores contribuições da SPVEA para a região, encontram-se o levantamento das necessidades da região e o apoio à pesquisa histórica, ao INPA – Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 165 SUFRAMA: agência dos agentes Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, a realização pioneira do primeiro curso de Planejamento Regional do Brasil em 1955. Vamos destacar aqui as dificuldades, por terem dados importantes para a análise da agência, sua estrutura interna. Temos: a “flutuação do cargo de superintendente, depois da primeira administração, ao sabor dos ventos políticos, sem levar em conta que cada escolhido tentava implantar uma nova orientação, sem que se fixasse a idéia de que o processo de valorização teria de ser a longo prazo. A heterogeneidade da Comissão de Planejamento era flagrante” (1976, p. 209), a criação de uma máquina burocrática emperrada, transformação da SPVEA num superestado, com poderes maiores que o dos governadores, em função dos recursos disponíveis, a hegemonia de técnicos estrangeiros. Em 27 de outubro de 1966, a SPVEA transforma-se em SUDAM, cujo objetivo consistia em promover o desenvolvimento auto-sustentado da economia e o bem-estar social da região amazônica (BATISTA, 1976, p. 211). Os planos da SUDAM eram realizados por particulares, como Hidroservice, Serete e Planave. Na avaliação sobre a SUDAM, o autor destaca principalmente os investimentos em infra-estrutura. As agências de desenvolvimento regional que antecederam a SUFRAMA apresentaram percalços, contradições. Poderíamos estabelecer uma relação de continuidade, uma tradição de constituição e/ou de configuração que tomam essas agências? O BASA, a SPVEA – Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, a SUDAM – Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia apresentam distorções das suas finalidades. A ineficácia dessas agências, na análise de Djalma Batista, tem sua principal causa no subdesenvolvimento histórico-social e, por conseguinte, no subdesenvolvimento cultural, na medida em que não existem condições para aceitação de princípios racionais na promoção do desenvolvimento, bem como pessoas com formação científica que possam pensar racionalmente a região (1976, p. 208). Decorridos 30 anos de SUFRAMA, não podemos mais atribuir os problemas ao subdesenvolvimento cultural e poderíamos fazê-lo em relação às vicissitudes do capitalismo? É patente que apenas um destes aspectos é insuficiente para explicá-los, pois a ação decorre de uma série de combinações, e todas as tentativas conjugam-se em esforços para apreendê-las. 166 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Izaura Rodrigues Nascimento A SUFRAMA como agência de desenvolvimento A Zona Franca de Manaus foi criada pela Lei n.º 3.173, de 6 de junho de 1957, regulamentada em 1960 a partir de alterações do projeto do deputado Francisco Pereira da Silva, cuja proposta consistia em criar um porto franco com a finalidade de “constituir um entreposto de mercadorias estrangeiras para abastecimento dos países vizinhos, que fariam também, através dela, as suas exportações” (BATISTA, 1976, p. 259). De 1957 a 1967, a Zona Franca de Manaus correspondeu a uma área de livre comércio “similar aos demais portos livres do mundo”, no próprio decreto é patente a inexistência de sua vinculação com o desenvolvimento econômico regional. Em 28 de fevereiro de 1967, pelo Decreto-Lei n.º 288, houve completa reformulação da Zona Franca, segundo Batista, visando promover o desenvolvimento do interior da Amazônia, dotando-a de bases concretas que viabilizassem o desenvolvimento da região: um centro comercial, um centro industrial e outro agropecuário (Zona Franca de Manaus: história e objetivos, 1996, p. 2). O discurso oficial, do planejamento, centraliza a justificação da criação da Zona Franca de Manaus em função das “desigualdades regionais”. A SUFRAMA – Superintendência da Zona Franca de Manaus, entidade autárquica, foi criada pelo Decreto n.º 61.244, de 28 de agosto de 1967, com uma função bem definida de organizar e administrar a Zona Franca de Manaus, desde a criação de uma infra-estrutura apropriada à instalação das empresas à distribuição das cotas de importação. Em fevereiro de 1976, Djalma Batista fazia um balanço sobre a criação da Zona Franca de Manaus. Os números sobre a receita tributária demonstravam a pujança do modelo, de 1968 a 1974 havia passado, em Manaus, de Cr$ 1.749.678,00 para Cr$ 17.881.784,78 e no Estado de Cr$ 32.580.332,00 para Cr$ 211.019.113,00. Estes dados demonstravam claramente a mudança do centro de gravidade da economia do interior para Manaus, um aspecto positivo pela superação da economia extrativista e negativo em relação ao êxodo rural, com o abandono de culturas tradicionais. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 167 SUFRAMA: agência dos agentes A Zona Franca de Manaus conta, atualmente (final da década de 90), com sete incentivos. A SUFRAMA administra quatro deles: Imposto de Importação, Imposto sobre Produtos Industrializados e o Imposto de Exportação e o quarto incentivo, que se refere à aquisição de lotes do Distrito Industrial ao preço de R$ 1,00 o metro quadrado, com 10 anos de prazo para pagamento. Muitas empresas adquiriam os terrenos como incentivo e, posteriormente, revendiam-nos a preço de mercado, só recentemente houve adoção de novos critérios. O quinto e o sexto incentivos são administrados pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia: consiste na isenção total ou parcial do Imposto de Renda e acesso ao Fundo de Investimento da Amazônia – FINAM. O sétimo incentivo é concedido na esfera do Estado do Amazonas: refere-se à restituição total ou parcial do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS. Os impactos sobre o “mundo amazônico” A ZFM adquiriu o caráter de um processo civilizatório na Manaus que perdera seu vigor no início do século, pois imprimiu uma nova dinâmica ao Estado, com os impactos culturais imediatos principalmente sobre a cidade de Manaus. Tais transformações partiram do que é mais exterior à cidade: as fachadas, as residências que se tornam lojas e vão se imbricando ao cotidiano, aos hábitos e “habitus”. São diversas as percepções desse processo. As observações de Djalma Batista dão conta de que: “Desde que começou a funcionar em agosto de 1967, depois de reestruturada, a vida de Manaus se transformou radicalmente, abrindo-se uma avalanche de novas casas comerciais e iniciando-se uma atividade econômica trepidante, de há muito desaparecida da cidade, que se enchem de gente recém-chegada, à procura novamente dos outrora famosos filões de ouro”, este processo passou a exigir e a forjar novos costumes conforme Ribeiro: “A fábrica é uma escola na qual os comportamentos, hábitos e atitudes adequados à produtividade são formados no próprio processo de trabalho” (1987, p. 275). Com a implantação do Distrito Industrial, veio toda uma “reestruturação” urbana, prevista no próprio projeto da SUFRAMA, com inúmeros benefícios para 168 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Izaura Rodrigues Nascimento os empresários, como a infra-estrutura para a instalação das indústrias, para o governo estadual, principalmente no que se refere ao montante do recolhimento do ICMS, que se converteu, por outro lado, em uma “desestruturação” urbana: a precariedade dos serviços prestados à população, a favelização mais intensa, a própria mudança na arquitetura. Diversos trabalhos da década de 80 demonstram a preocupação com o impacto da implantação da ZFM sobre a sociedade regional, em particular em Manaus e regiões adjacentes. Nesses trabalhos, a ZFM não aparece como um projeto, mas como realidade que concorreu para o agravamento de diversos problemas sociais, tais como: moradia, saneamento, serviços de saúde, transporte. Assim, a migração, favelização, expropriação e a formação de proletários são analisadas como a outra face da instalação do pólo eletroeletrônico em Manaus. Se a oferta de empregos e o aumento da arrecadação foram conseqüências positivas para a região, por outro lado, quanto à condição social, houve um certo tipo de degradação, pois a massa urbana aí constituída torna-se objeto das medidas do capital e do Estado. Se tomarmos o agravamento das condições urbanas na sua relação com a instalação da Zona Franca de Manaus, veremos um debate interessante entre João Pinheiro Salazar e Rosalvo Bentes. Para o segundo, o problema populacional, agravado desde a década de 70 (com o inchaço da cidade e os seus conseqüentes agravantes), ocorreu em função do declínio da economia gomífera e, por conseguinte, das atividades agrícolas que faziam parte daquele sistema, esta situação teria atuado como fator de expulsão do homem do interior. Salazar, que constrói sua tese num contraponto a Bentes, aponta outros elementos na análise do problema da moradia: a extinção da cidade flutuante e a Zona Franca de Manaus, que atuou como pólo de atração, além do que apresenta a defasagem entre o declínio da economia gomífera e o período no qual ocorre o inchamento da cidade. É interessante notar o aspecto econômico, em ambos, apontado como o fator mais relevante na migração. Retomando a polêmica, Marlene Ribeiro demonstra que estes aspectos não são excludentes, mas partes de um único processo: o capitalismo no Amazonas com sua face expropriadora e construtora de uma massa operária. O que na década de 80 aparecia como debate, nos anos 90 aparece como algo inquestionável: “Esse fato reproduziu as condições clássicas do fenômeno, isto é, falta de condições de vida no Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 169 SUFRAMA: agência dos agentes campo, agindo como fator de expulsão e avanço industrial, e a concentração de empregos e a ampliação do mercado de bens e serviços na área urbana, agindo como fatores de atração, vinculados a uma ideologia do progresso associada ao urbano” (COSTA, 1993, p. 20). Nos trabalhos de Salazar e Marlene Ribeiro existem, ainda, a percepção da emergência de movimentos sociais: as invasões (como resistência às políticas habitacionais levadas a efeitos pelos governos, marcando uma nova atitude em face das arbitrariedades), a organização do Partido dos Trabalhadores e do Sindicato dos Metalúrgicos. Estes movimentos marcam as contradições entre capital e trabalho, entre Estado e sociedade civil, possíveis a partir de uma certa tomada de consciência, viabilizadas tanto pela densidade populacional e condições precárias de trabalho, quanto pela noção de direitos individuais, direito à propriedade privada, ou seja, pela própria inserção nas relações capitalistas. A autora continua a supervalorizar o fator econômico sem levar em consideração os aspectos culturais e sua profunda influência nas migrações que ocorrem em todo o país. A cidade como símbolo de modernidade, “uma ideologia de progresso associada ao urbano”, com isso não queremos negar a importância do econômico, mas tentar demonstrar que ele não está sozinho, nem exclusivamente acompanhado da ideologia enquanto distorção do real. Na década de 90, os dados demonstram que o quadro mudou significativamente, mas não no sentido esperado. O impacto sobre a estrutura demográfica é inegável. A concentração populacional pode ser demonstrada conforme as informações do IBGE a partir dos levantamentos realizados em 1995 e 1996, segundo o qual o Amazonas possui 2.389.279 pessoas. Desse total, 1.157.357 vivem na capital e o restante nos demais 61 municípios do interior, ou seja, na capital está concentrada 48% da população do Estado (A CRÍTICA, 11/1/98, E3). Os serviços urbanos também continuam concentrados na cidade de Manaus. Observa-se assim que a Zona Franca de Manaus não promoveu o desenvolvimento regional, ou seja, não funcionou como pólo de irradiação do desenvolvimento econômico; ao contrário: parece ter retardado as possibilidades de desenvolver indústrias com matéria-prima regional pois “se, no âmbito estadual, a economia é marcada pela presença predominante do setor secundário na composição da renda (em virtude da participação do Distrito Industrial de Manaus), 170 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Izaura Rodrigues Nascimento o mesmo não ocorre no interior, onde o setor primário constitui a principal fonte de renda e onde a industrialização da capital quase não induziu as melhorias tecnológicas, quer nas atividades agropecuárias, quer nas industriais” (COSTA, 1993, p. 25), quanto ao distrito agropecuário, até agora não se consegue vislumbrar os resultados. A SUFRAMA e sua direção A SUFRAMA como órgão administrativo acabou por constituir-se em um poder paralelo ao poder do governo estadual, pois está vinculado diretamente ao governo federal. Além de contar com um orçamento significativo, que para o ano de 1995 era em torno de US$ 100 milhões, equivalentes ao orçamento da Prefeitura de Manaus (A CRÍTICA, 9/2/95, A12). Neste sentido é fundamental resgatarmos o artigo de Roberto Motta, com o título La Zone Franche de Manaus et le mode paria de la production, de sua pesquisa conclui que no interior deste aparelho burocrático o superintendente possui uma “aura imperial”. Nas palavras de Roberto Motta, é uma das posições mais importantes no serviço público brasileiro, é nomeado pelo presidente da República e possui uma importância concreta, equivalente ao governador eleito. É, concretamente, quem distribui as cotas de importação. Este poder, ao mesmo tempo em que constitui uma aura, inviabiliza a sua manutenção, pois, conforme as observações de Motta, a mudança constante de superintendentes deve-se às dificuldades de alocar as cotas, quando são necessárias leituras conjunturais que passam pelas tendências ou as mudanças no mercado internacional, dos interesses ou orientações do governo federal, das possibilidades da Zona Franca e, acrescenta-se a esses elementos, a importância das relações entre os superintendentes e o governo do Estado do Amazonas. Além disso, os critérios oficiais para a distribuição das cotas não são muito claros, possibilitando diversas interpretações e gerando, assim, condições para a centralização das decisões e conferindo maior significado político ao cargo. Algumas observações feitas por Clicério Vieira Nascimento Sá, atual superintendente da Coordenação de Estudos Econômicos e Empresariais – CEE, Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 171 SUFRAMA: agência dos agentes acerca dos superintendentes, evidenciam este fato: Rui Lins saiu por atritos com José Lindoso; Joaquim Igrejas Lopes se constituiu em uma medida apaziguadora; Delile Guerra de Macedo foi contemporizador do governo federal; Jadyr Magalhães assumiu sob a influência do governador Amazonino Mendes; Leopoldo Péres foi indicado pelo senador Bernardo Cabral; Alfredo Nascimento: indicado por influência do governador Amazonino Mendes; Manuel Rodrigues também sob a influência do governador Amazonino Mendes; Mauro Costa sob a influência do senador José Serra. Quanto à auto-imagem desta gestão, da qual faz parte, afirma que o superintendente Mauro Costa concebe a SUFRAMA como uma agência de promoção de investimento, e busca dar-lhe uma nova fisionomia. As informações sobre as influências políticas na definição dos superintendentes da ZFM podem ser corroboradas pelo processo de sucessão do superintendente Manuel Rodrigues. Na lista de “suframáveis” publicada em fevereiro de 1995 (conf. lista de ‘suframáveis’, tem quase dez nomes, A CRÍTICA, 9/2/95, A12), todos os dez nomes que concorriam à sucessão de Manoel Rodrigues eram vinculados a políticos amazonenses: “Esses nomes são apadrinhados de políticos amazonenses, que estão estendendo seus tentáculos em busca de apoio em todas as regiões do país”. O artigo também cita o condicionamento da viabilidade da administração, feita pelo governador Amazonino Mendes, à nomeação de um membro de seu grupo político. A disputa maior e mais significativa estava entre quem estava indicando, polarizada entre Amazonino Mendes e Artur Virgílio Neto. Conforme verificamos anteriormente neste trabalho, a implantação da Zona Franca de Manaus foi assinalada por Márcio Souza como um golpe contra a burguesia local que acabou ficando com os postos subalternos. Este aspecto é tratado também por Motta, que destaca a característica geopolítica militar da criação da ZFM, processo no qual não houve a preocupação com a oligarquia amazonense. Aponta, no entanto, que isso não significou o fim da ampliação das redes patrimonialistas. As disputas atuais que verificamos em relação ao cargo de superintendente demonstram uma profunda transformação, pois se não são técnicos ou políticos amazonenses que assumem a direção da SUFRAMA, parece haver, nas relações de força, uma cooptação dos superintendentes. “Os novos e poderosos interesses metamorfoseiam seus aliados, velhos ‘botos-tucuxis’ [...], novos Cabrais, tanto uma 172 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Izaura Rodrigues Nascimento velha oligarquia, quanto novos funcionários do autoritarismo se arranjam com os novos poderes...” (OLIVEIRA, 1994, p. 92). Um golpe dentro do golpe, a aparente passividade amazonense novamente impõem-se e, na sua linguagem, nem tanto estratégica do ponto de vista da ação racional burocrática, “vulgar” consegue imporse pela tradição e pelo carisma. Este é um aspecto patente que pudemos verificar na leitura das atas, quando Amazonino Mendes sobressai-se como líder, reconhecida sua “aura” no interior do CAS, quando os governadores dos outros Estados não se opõem diretamente à ZFM, mas o fazem à SUFRAMA, à burocracia do governo federal. Por outro lado, quanto às relações governador/superintendente, se no interior das reuniões do CAS verificamos um ritual de cordialidade, onde as disputas entre suas respectivas propostas são representadas como em direção ao interesse comum, na imprensa existe um enfrentamento mais aberto onde a pessoa do governador faz constantes ataques aos “inimigos” da ZFM. Conforme assinala Francisco de Oliveira: “Na retaliação pessoal opera-se a ilusão de um confronto de sujeitos; na realidade, a retaliação individual mascara a onipotência dos processos destrutivos coletivos, que permanece quase intocada. E a favor dos mais poderosos” (OLIVEIRA, 1994, p. 92). As próprias disputas entre Amazonas e São Paulo operam uma ilusão quanto aos reais interesses. Um outro elemento importante apontado por Motta refere-se aos privilégios dos empresários, sua conclusão remete à combinação, na Zona Franca de Manaus, de um capitalismo de pária com o despotismo hidráulico. Há, por conseguinte, um caráter aventureiro nos investimentos, pois o atrativo da ZFM são os incentivos fiscais. Segundo o autor, a maioria das empresas que veio para a ZFM era marginais em relação ao capitalismo internacional. E há também uma burocracia privilegiada, marcada pelo significado da própria SUFRAMA, como um locus de poder burocrático. O período ao qual se refere Motta, bem como o ponto de partida de sua análise, parece não ter permitido a percepção da vinculação da Zona Franca de Manaus com o capitalismo mais desenvolvido, fato que ganhou visibilidade com o processo de globalização econômica. Silva demonstra como a referência da nação produziu o fenômeno de refração nas análises dos militares, dos intelectuais. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 173 SUFRAMA: agência dos agentes Centrando a análise sobre a SUFRAMA como órgão burocrático a partir da consulta das sete atas disponíveis, podemos verificar diversas divergências entre o objetivo para o qual foi constituído seu Regimento Interno e suas ações concretas. A SUFRAMA tem seu funcionamento orientado a partir do Planejamento Estratégico, realizado de dois em dois anos, a partir do qual são elaboradas as diretrizes gerais, além disso é definido um Plano de Ação anual. Sua direção está a cargo do Conselho de Administração da SUFRAMA – CAS, que deveria reunir-se uma vez ao mês conforme seu Regimento Interno, e de dois em dois meses conforme orientações da direção atual; no entanto, conforme as atas consultadas, de dezembro de 1994 a outubro de 1997, foram realizadas sete reuniões ordinárias. Isto significa que a atribuição principal da autarquia, na prática à distribuição de cotas de importação, permaneceu centralizada a maior parte do tempo nas decisões do superintendente do órgão. Além do que não existem critérios definidos em relação à distribuição das cotas, o próprio conteúdo das reuniões deixou clara a prioridade aos projetos que tivessem maiores investimentos e, teoricamente, maior geração de empregos. Nenhum indício de prioridade à utilização de matéria-prima regional. Quanto a isso parece não haver muito interesse dos próprios governadoresconselheiros. Quando questionam a SUFRAMA, nas reuniões, é muito mais por pleitearem os benefícios fiscais da ZFM e a aplicação dos recursos a fundo perdido da SUFRAMA nos Estados do que discutir sobre a utilização da matéria-prima regional. A própria geração real de emprego não é fiscalizada. A reivindicação do representante da classe trabalhadora, Wilson Paixão, na 175.ª Reunião Ordinária realizada em março de 1997, torna patente este fato: “Ano passado, durante as três reuniões realizadas do Conselho, nós aprovamos mais de 70 projetos tanto de ampliação quanto de instalação, gerando em torno de aproximadamente 12 a 13 mil empregos. Até hoje estes empregos não apareceram. Onde estão esses empregos?” Outra questão que apareceu com as leituras das atas, e que está presente em todos os debates, foi a seguinte: a SUFRAMA é uma agência de desenvolvimento? Neste sentido, a 174.ª (de 6/12/96) Reunião foi esclarecedora, pois demonstra a dramática desigualdade de tratamento dos diversos Estados da Amazônia Ocidental, 174 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Izaura Rodrigues Nascimento quando nas palavras de Osmir Lima, deputado estadual do Acre, a SUDAM beneficia somente o Pará, e a SUFRAMA restringe seus benefícios ao Amazonas. Para termos uma idéia deste fato é interessante observarmos alguns dados sobre aplicação de recursos em 1997. Os R$ 77,8 milhões dos convênios da SUFRAMA com os governos estaduais foram assim distribuídos: 45,2 milhões para o Amazonas, 18,4 milhões para Rondônia, 11,1 milhões para Roraima, 1,1 milhão para o Amapá e 687,8 mil para o Acre (A Crítica, 11/1/98, E7). Este montante corresponde a apenas 40% dos recursos da SUFRAMA a título de fundo perdido, pois conforme a decisão do CAS, na 176.ª Reunião Ordinária de 1.º/8/97, 60% deveria ser rateado igualmente entre os Estados, ou seja, cerca de R$ 116,7 milhões, cabendo cerca de R$ 23,34 milhões para cada Estado. Os recursos destinados ao Estado do Amazonas podem ser acrescidos do ICMS arrecadado. Segundo os Indicadores Industriais da SUFRAMA a arrecadação foi de, aproximadamente, em 1995, US$ 203.533.549; em 1996, US$ 247.199.639 e, em 1997, até o mês de junho, US$ 100.957.492. Ressalte-se que a distribuição dos recursos à qual nos referimos anteriormente foi realizada a partir de critérios definidos pelo CAS. Antes de agosto de 1997, portanto, esta decisão dependia exclusivamente do superintendente. A SUFRAMA tanto não cumpriu sua função que os governadores freqüentemente criticam as reuniões do CAS, que se restringem à aprovação de projetos para a Zona Franca de Manaus e propõem a transformação da SUFRAMA, se não a sua substituição, por uma agência de desenvolvimento da Amazônia Ocidental. Isto, porém, não ocorreu somente neste órgão, pois o BASA e a SUDAM também estão sendo postos em questionamento e buscando, tal como a SUFRAMA, resgatar sua credibilidade a partir de uma reestruturação desses órgãos por meio de maior contato com os Estados, definição de critérios para aplicação de recursos, bem como da imagem dos seus dirigentes enquanto técnicos. O discurso do Sr. Artur Tourinho – superintendente da SUDAM, representa esta tendência: “Não tenho nenhuma vinculação a nenhum partido político, eu faço política ocupando com muita honestidade, com muita seriedade, muita transparência e muita vontade de trabalhar...” e “reunião de trabalho é discurso técnico, é discutir as necessidades do Estado” (174.ª Reunião Ordinária, anexo VIII). Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 175 SUFRAMA: agência dos agentes O debate sobre as agências de desenvolvimento mostra um outro lado, ao qual já nos referimos anteriormente. Há um despreparo, uma ausência de assessoria dos órgãos (com conivente beneficiamento de alguns) ou um desinteresse por recursos para projetos agropecuários e que utilizem recursos regionais. O discurso de Flora Valladares, do BASA, demonstra que nem com critérios para distribuição de recursos é garantida a participação dos Estados menores. Em 1996, por exemplo, apesar de os recursos estarem disponíveis, não houve apresentação de projetos. As reivindicações de atenção, por parte da SUFRAMA, para com os Estados de Roraima, Rondônia e Acre aparecem em todas as reuniões, chegando a posicionamentos extremos, como do governador do Estado de Rondônia, Waldir Raupp, quando decide pedir vistas de todos os processos da 175.ª Reunião Ordinária em função da divergência quanto aos critérios de distribuição dos recursos financeiros da SUFRAMA entre os Estados. A gestão atual da SUFRAMA representa-se como reestruturadora do órgão, uma gestão técnica, contrapondondo-se a gestões políticas que a antecederam, propõe-se a resgatar a imagem do órgão. “A SUFRAMA foi um feudo da Administração Estadual até a gestão passada”, segundo Aristides Oliveira Júnior, integrante da Coordenação de Estudos Econômicos e Empresariais – CEE, referindo-se à recomposição do CAS e atualização do Plano Estratégico realizados em 1996. A crise e suas possibilidades Desde sua implantação, a ZFM passou por diversas fases. No final dos anos 60 e na década de 70, foi favorecida em função da exclusividade em relação aos produtos importados, detinha o monopólio desses produtos no Brasil. Um quadro diferente delineia-se no final dos anos 70 e 80, com a liberação das viagens ao exterior e quando, com as pressões da indústria nacional, começam as ameaças de contingenciamento, o que não é de todo inesperado em função do próprio modelo pensado enquanto substituição de importações. O contingenciamento num momento de crise econômica, se por um lado possibilita o surgimento de médias e pequenas 176 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Izaura Rodrigues Nascimento empresas de componentes, por outro torna esses produtos mais caros. Também nessa década começam as exigências de crescentes índices de nacionalização dos produtos. Com a abertura econômica em 90, as empresas perdem as condições de competitividade em função dos custos, há a necessidade de adequação à Nova Política Industrial e de Comércio Exterior – PICE. O PICE foi implantado com o fim de estimular a produtividade e a qualidade e proporcionar maior competitividade à indústria nacional em níveis interno e externo. No ano de 1997 ocorreram três grandes crises: as pressões para a saída do superintendente Mauro Costa, o pacote do governo federal que cortou em 25% os incentivos fiscais, além da comissão de investigação da maquiagem de produtos na ZFM. Com a pressão política sobre o pacote fiscal, o governo federal retrocedeu. Um dos fortes argumentos utilizados foram acerca dos tributos federais recolhidos no Norte. Segundo a Delegacia da Receita Federal, de janeiro a novembro de 1997, do montante arrecadado no Norte, 54,97% foram recolhidos no Estado do Amazonas, os 45,03% restantes nos outros Estados da região (A CRÍTICA, 28/12/ 97, E3). Podemos dizer que desde a sua criação, a ZFM esteve em crise. No seu projeto, os desencantamentos; na sua direção, os embates entre o governo estadual e o poder dos superintendentes; nos seus desdobramentos, a frustração do distrito agropecuário sem resultados concretos; do distrito industrial sem valorizar a matériaprima regional e conseguir dinamizar a economia do Estado e da Amazônia Ocidental; e no momento atual quando se consegue visualizar a globalização econômica, na qual, conforme aponta Silva, a Zona Franca de Manaus pode ser considerada, desde o início, como um “espaço global”, há a possibilidade de afugentar esta economia global (SILVA, 1997, p. 45). A também crise constante entre os rumos do capitalismo e os interesses nacionais, embora possamos analisá-la como uma contradição aparente, bem serve aos propósitos político-partidários e ainda apresenta-se como um argumento eficiente na guerra fiscal. A grande questão de fundo, contudo, contra a qual todos se embatem é a seguinte: Por que a ZFM não conseguiu tornar-se uma zona franca do tipo superior, Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 177 SUFRAMA: agência dos agentes o qual “...goza de total autonomia até o nível de renúncia da determinação da sua política econômica nacional?” (NICÁCIO apud SILVA, 1997, p. 42). Ou por que não conseguiu desencadear um processo de desenvolvimento regional vinculado a um projeto nacional? A resposta a ambas não é una, a não ser que possamos afirmar que não ocorreu nem uma coisa nem outra em função das contradições sociais, de forma genérica, que resultou num desfecho inesperado, embora nem de todo imprevisível conforme destaca Silva acerca da análise de Freitas Pinto. Temos, então, mais uma “tragédia”, cuja causa pode ter sido “o protecionismo sob a forma de nacionalismo”, ou a ausência de um projeto de desenvolvimento nacional, ou ambos. Seus avanços e recuos nas relações de força concretas das quais temos pouco mais que os desfechos ou as projeções racionais das ações. Os rumos da Zona Franca de Manaus estão entre uma reestruturação do modelo, o que é lugar-comum, e a possível perda dos incentivos fiscais em 2013. Quanto à reestruturação, o próprio governo federal está operando adequações com maior controle sobre as empresas, da qual faz parte a adoção de novos critérios para a aprovação dos projetos (LEI n.º 9.532); a reestruturação da SUFRAMA é defendida pelo superintendente da autarquia, cujo representante aponta contradições entre a proposta do próprio governo federal e a posterior Medida Provisória n.º 1.602 e a Lei n.º 9.532. Há também a controvertida proposta do senador Jefferson Péres, cujo objetivo consiste em “transformar a Zona Franca num efetivo instrumento de desenvolvimento econômico”; segundo ele, “trinta anos de Zona Franca já provaram, à exaustão, que o modelo é eficiente na atração de investimentos e na geração de renda, mas concentrador nos sentidos espacial e social, em benefícios apenas de Manaus e de alguns extratos da população. Não se irradia para o interior nem distribui renda” (A CRÍTICA, 28/12/97), sua intenção, segundo ele, é mobilizar a sociedade para elaborar uma proposta comum sobre a Zona Franca de Manaus. Orientações menos extremadas aparecem na formulação do economista Rodemarck Castelo Branco, um dos mais importantes interlocutores sobre a ZFM no Estado, para quem “uma das saídas é verticalizar o parque industrial da ZFM, trazendo empresas de componentes para gerar escala de produção e criar o fator fundamental de competitividade, principalmente do setor eletroeletrônico, que é a 178 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Izaura Rodrigues Nascimento interação dos fornecedores e empresas de bens finais”, e concomitantemente criar condições para acumulação regional do capital, que propicie o surgimento de pequenos e médios negócios, com a valorização das potencialidades regionais. O quadro que se delineia, revela um tardio reconhecimento dos problemas presentes no próprio modelo, bem como dos vícios presentes nas agências de desenvolvimento que ensaiamos questionar se havia uma relação de continuidade. Na década de 70, já havia formulações que apontavam diversos problemas e suas possíveis superações como as de Djalma Batista, que se preocupava com a instalação de fábricas de montagem de aparelhos eletrônicos e para assegurar o desenvolvimento do Estado, sugeria, dentre outras medidas: “fiscalização dos lucros do comércio e da indústria, e legislação objetivando reter no Amazonas pelo menos uma parte dos mesmos, em aplicações concretas”; “estímulo ao aproveitamento de matérias-primas regionais no processo de industrialização (evitando que as fábricas se esvaziem quando cessarem os favores fiscais): madeiras, incluindo compensados; celulose e papel[...]” (BATISTA, 1976, p. 270). Foram, no entanto, necessários mais de vinte anos para que o próprio poder público estadual reconhecesse as distorções. Em artigo recente o governador Amazonino Mendes declara: “[...]desperdiçamos quase trinta anos de receita pública originária deste verão sem procurar direcionar investimentos que nos dessem o mínimo de resguardo para a instabilidade que já era flagrante. A Constituição de 88 nos acordou, dando-nos, com a sobrevida de mais 25 anos, uma nova chance. Será imperdoável perante a História não aproveitarmos esta segunda oportunidade, embora em meio a todos esses sobressaltos”. Ao contrário do que se poderia esperar, este reconhecimento não se pauta por uma abertura para pensar séria e democraticamente a reestruturação do modelo da ZFM, mas para justificar os investimentos no 3.º Ciclo: “O 3.º Ciclo não é propriedade de ninguém, é doutrina de redenção e de libertação de todo um povo” (A CRÍTICA, 23/11/97). Apesar disso a “mística do desenvolvimento regional”, que parecia cada vez mais distante, recrudesce, num certo sentido, tanto regional como nacionalmente. Mas os próprios critérios para concessão dos incentivos fiscais na “práxis”, conforme depoimento de Aristides da Rocha F. Júnior, até o momento privilegiam os maiores investimentos. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 179 SUFRAMA: agência dos agentes Quanto aos trabalhadores, se antes havia o questionamento do modelo, a partir de 1988, os sindicatos operários e suas lideranças políticas passaram a defender seus empregos (SILVA, 1977, p. 44). A própria iniciativa de criar um movimento pró-ZFM (A CRÍTICA, 6/2/98), de iniciativa da Força Sindical e do Sindicato dos Metalúrgicos, demonstra esta posição, a qual não pode ser avaliada como “desindexada de ideologias”, como quer fazer parecer José Roberto Tadros, presidente da Federação do Comércio do Estado do Amazonas – FACEAM (A CRÍTICA, 21/ 1/98). Impõe-se aqui a “hiper-realidade” como justificação ideológica sobre a qual Boaventura de Souza Santos nos chama atenção. O grande desafio hoje não é reconhecermos que a realidade tal como está era inevitável, mas surpreendermonos com a realidade que se teoriza a si mesma. Os impactos da globalização e da reforma do Estado brasileiro nos rumos da Zona Franca de Manaus As fases pelas quais passou a Zona Franca de Manaus, seus percalços, aos quais nos referimos anteriormente, podem ser melhor compreendidas quando relacionadas à estrutura do Estado brasileiro. A análise de Albuquerque (1995) sobre a história do Estado brasileiro, particularmente nos períodos correspondentes a “o Estado como superinstituição”, de 1930 a 1980, e a crise de 1980 a 1995, fornecemnos elementos que explicitam as próprias contradições nas decisões do governo federal quanto a ZFM. O Estado como superinstituição consolidou-se concomitantemente com o nacional-desenvolvimentismo. É ele que viabiliza a infra-estrutura e o desenvolvimento industrial a partir do centralismo. De 1930 a 1970, seja através da infra-estrutura, seja diretamente como empresário, o Estado, segundo Albuquerque, chega “[...] a responsabilizar-se por mais da metade da formação bruta de capital fixo do país. E gradualmente se transformou em gigantesca e centralizada superinstituição que tudo pretendia prever e prevenir e quase tudo procurava prover e programar” (1995, p. 139). O auge desta condição foi alcançado na década de 70, em função do controle do Estado sobre o Congresso Nacional e da sua organização administrativa em grandes sistemas. O Poder Executivo da União torna-se “um espaço por excelência de afirmação da tecnoburocracia”. 180 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Izaura Rodrigues Nascimento Apesar de modernizador, acentua o autor que o Estado preserva “práticas anacrônicas” que se ampliam na década de 80 e início de 90, com a crise econômica e a abertura política. São remodelados: o velho patrimonialismo, o cartorialismo clientelista e o corporativismo. O primeiro inicialmente representava a ampliação do poder tutelar sobre a sociedade e, posteriormente, significou o emprego dos poderes públicos para obter benefícios pessoais. O segundo “de início centrado nos amplos poderes de conceder, voluntariamente, a pessoas e entidades privadas, financiamentos, incentivos fiscais e outros privilégios, mais tarde, envolvendo o uso desses mesmos poderes para obter, muitas vezes em detrimento do interesse público, vantagens individuais” (ALBUQUERQUE, 1995, p. 140). O terceiro inicialmente fortalecendo os poderes do estamento tecnoburocrático, mais tarde, ampliando sua influência com adesão da nova força emergente: a dos políticos, para assegurar ou ampliar direitos e prerrogativas. A desagregação do Estado como superinstituição ocorre na década de 80, a partir daí se delineia a exigência de sua reestruturação. Três crises foram fundamentais no seu desencadeamento e ainda se fazem presentes: a crise de legitimidade do Estado autoritário, a crise financeira e a crise existencial. A crise de legitimidade do Estado autoritário tem lugar com a autonomia e significado adquiridos pela luta para a democratização, cuja condução foi minada pela recessão de 1981-83. A crise financeira “resulta da ampliação do fosso entre as receitas próprias da União e suas necessidades de financiamento” (ALBUQUERQUE, 1995, p. 141). A crise denominada pelo autor de existencial refere-se aos “alicerces institucionais” e a “identidade do próprio ente estatal”, “sua razão de ser e consciência de si mesmo; sua capacidade decisória e funcionalidade; sua percepção da sociedade; e a imagem que projeta perante ela” (ALBUQUERQUE, 1995, p. 142). A ausência de um projeto desde a década de 80 demonstra uma perda na autoconsciência do Estado, um processo de desestruturação que gerou uma “insciência institucional”. A própria capacidade decisória do governo “esgarçou-se” na transição democrática. A tentativa da Nova República de reduzir o gigantismo do Estado concorreu para sua desestruturação em função de um “[...]transformismo organizacional destrutivo e desestabilizador[...]”, nas palavras de Albuquerque (1995, p. 143). Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 181 SUFRAMA: agência dos agentes Neste contexto é instalada a constituinte, cujo resultado corresponde a ausência de visão das novas tendências: a globalização da economia, a liberalização dos fluxos comerciais e de capital, a formação de grandes blocos regionais e suas repercussões sobre o papel do Estado na economia. O governo Collor incorpora a vertente liberalizadora, porém contraditoriamente interfere no mercado e na vida financeira privada. Quanto ao Estado, a reforma administrativa aprofunda sua desestruturação. E como agravante “leva a extremos a fruição patrimonialista e cartorial do Estado e o uso organizado dos poderes públicos como forma de obter benefícios pessoais da iniciativa privada”, processo que culminou no impeachment (ALBUQUERQUE, 1995, p. 144). O governo Itamar Franco consegue restabelecer a respeitabilidade pública e o atual se propôs a reconstruir, em bases modernas e mais funcionais, o Estado brasileiro. Conforme podemos verificar, a crise da ZFM corresponde a também crise do Estado brasileiro, entre uma forma de acumulação primitiva de capital, a indústria nacional e a adequação às exigências da globalização econômica. A reestruturação da SUFRAMA relaciona-se diretamente ao restabelecimento da credibilidade das instituições, reflexo da imagem projetada pelo atual governo, o que no entanto está em xeque dados os escândalos observados nas instituições públicas, envolvendo os três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário desde o ano passado. O processo de globalização tem um efeito profundo sobre a ZFM, pois não corresponde a uma mudança setorial do capitalismo, que ocorre no seu interior, mas a profundas transformações em toda a sociedade. A utilização indiscriminada da globalização tem gerado uma considerável dificuldade de compreender o seu alcance, o complexo de mudanças que a representam. A análise de Ohmae (1996) demonstra a importância dos fluxos dos investimentos, da indústria, da informação e dos consumidores individuais que passam a ter “uma orientação mais global”. Isto significa dizer que não só as indústrias tenham sofrido mudanças, mas que essas mudanças relacionam-se com as exigências individuais, com um novo sentido na configuração da territorialidade, 182 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Izaura Rodrigues Nascimento com a velocidade das informações, com a perda de poder dos Estados nacionais. Os incentivos fiscais deixaram de ser o grande atrativo e dão lugar a “recursos atraentes”, que guardam cada vez menor dependência de concessão dos Estados nacionais. Neste sentido a tendência dos Estados nacionais não é de se orientarem pela centralização do planejamento, isto porque deixaram de ser os “protagonistas” das aspirações econômicas e sociais. O reflexo nas indústrias que não reduziram os custos e investiram na qualidade total é imediato, não conseguem competir perante as novas exigências, pois os consumidores buscam os produtos mais baratos, independente de onde foram produzidos. As ambíguas decisões do governo federal, ora mantendo os incentivos, ora retirando-os, resulta da adequação do modelo às novas exigências, combinadas senão a um projeto, mas a uma orientação de desenvolver e proteger uma indústria nacional embora tardiamente. A ZFM se por um lado antecipa a presença do capital globalizado no Brasil (na sua primeira versão), por outro se consolidou de tal forma na dependência dos incentivos fiscais e nas articulações políticas de interesses privados que sua transição manifesta-se como o fim. O maior problema da Zona Franca de Manaus parece localizar-se não apenas no seu modelo, pois produziu recursos que poderiam ter sido aplicados na dinamização da economia regional, mas resulta também das prioridades de investimento, definidas no âmbito das estruturas e do poder político. Referências ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de. Reconstrução e Reforma do Estado. In: VELOSO, João Paulo dos Reis; ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de (Coord.). Governabilidade & reformas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995. p. 129-198. BATISTA, Djalma. O complexo da Amazônia: análise do processo de desenvolvimento. Rio de Janeiro: Coleção Temas Brasileiros, 1976. BOURDIEU, Pierre. La Construcción del Objeto. In: El ofício de sociólogo. 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Abstract The debate the about of the Brazilian Calendar 21 and its environmental implications for the inherent goods to the Amazon forest raises world and local subjects on the natural resources and the populations of the Amazon Area. 1 Professora da Universidade Federal do Amazonas; mestre em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, com área de concentração em Política e Gestão Ambiental pelo Centro de Ciências do Ambiente – CCA, da Universidade Federal do Amazonas. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 187 Um debate sobre a Agenda 21 Brasileira: em defesa da floresta amazônica Keywords Brazilian Calendar 21; environmental amazon. Fruto da Agenda 21, no Brasil há o debate interativo sobre a Agenda 21 Brasileira envolvendo inclusive os recursos florestais. Esse debate, que acontece também nos espaços virtuais, vem produzindo documentos sobre os recursos florestais, a agricultura sustentável e familiar, o manejo dos sistemas produtivos e seus instrumentos econômicos para a sustentabilidade, e o planejamento e gestão dos recursos naturais. Nesses documentos, a Amazônia Legal ocupa um lugar de destaque pela sua importância mundial diante de toda a sua biodiversidade e do perigo à sua depredação e os possíveis impactos ambientais globais que isso pode significar: No conjunto, a Amazônia é a maior reserva biológica do mundo. Contém um quinto da água doce disponível e um terço das florestas latifoliadas. Estima-se que a região contém pelo menos a metade de todas as espécies vivas do planeta. Já foram identificadas pelo menos 60 mil espécies vegetais, 2,5 milhões de espécies de artrópodos, 2 mil de peixes e mais de 300 espécies de mamíferos (MMA/SCA, 1997). A manutenção dessa biodiversidade tem efeitos importantes para todo o planeta. Os compostos químicos e o material genético proveniente desse ecossistema representam fonte crucial para o desenvolvimento de produtos alimentícios e medicinais (AGENDA 21 BRASILEIRA, 2000). A biodiversidade da floresta amazônica já abre espaços para o investimento em pesquisas realizadas na área da farmacopéia. A diversidade da floresta em termos de Brasil é 35%. Grupos transnacionais como a Glaxo Wellcome2 firmou convênio 2 O grupo Glaxo Wellcome será o maior do mundo pela fusão com a SmithKline Beecham com seu valor estimado em US$ 189 bilhões. É um grupo que está investindo em pesquisas no Brasil cerca de US$ 3,2 para desenvolver novos medicamentos. Cabe lembrar que 40% dos remédios produzidos mundialmente vêm dos recursos naturais e esse é um mercado que movimentou só em 1994 cerca de US$ 345 bilhões. 188 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Pérsida da Silva Ribeiro Miki com a empresa brasileira Extracta, prestadora de serviços em pesquisa e tecnologia, criada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, para pesquisar compostos da flora brasileira. A Extracta juntamente com a Universidade Federal do Pará (UFPA) coletará as amostras de plantas na Amazônia para a formação de um banco de dados de pelo menos de 30.000 compostos. A pesquisa buscará descobrir medicamentos para as doenças tropicais (malária, dengue e leishmaniose), além de novos antiinflamatórios e antibióticos. Uma das motivações dos investimentos internacionais no Brasil vem juntamente com o vigor da Lei de Patentes (Lei n.º 9.279, de 14 de maio de 1996), já que anteriormente às descobertas, os produtos farmacêuticos, químicos e alimentícios não tinham suas patentes reconhecidas pelo Instituto Nacional de Propriedade Intelectual – INPI. Pelo Art. 229-C,3 do Título VIII, “Das Disposições Transitórias e Finais”, os produtos farmacêuticos necessitarão da anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANUS) para serem patenteados. Ainda pelo inciso III, e Parágrafo Único do Art. 18, os microorganismos trangênicos advindos dos seres vivos podem ser patenteados: Art. 18. Não são patenteáveis: III – o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade – novidade, atividade inventiva e aplicação industrial – previstos no art. 8.º e que não sejam mera descoberta. Parágrafo Único. Para fins desta Lei, microorganismos trangênicos são organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem, mediante intervenção humana direta em sua composição genética, uma característica normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais (GRIFOS NOSSOS). 3 Artigo acrescentado pela Medida Provisória n.º 2.014-2, de 28/1/2000 – DOU, 29/1/2000 – Ed. Extra. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 189 Um debate sobre a Agenda 21 Brasileira: em defesa da floresta amazônica Porém, a situação é bem mais complexa, principalmente quando se põe em pauta o comércio e o direito sobre a biodiversidade na Amazônia. Neste aspecto, o Brasil não possui uma legislação para encaminhar ações e dirimir os conflitos existentes. O Código Florestal aborda o assunto de forma superficial e simplista quando no Art. 13 expressa que: O comércio de plantas vivas, oriundas de florestas, dependerá de licença da autoridade competente. No Congresso Nacional tramitam três Projetos de Lei sobre a matéria, e só o da senadora Marina Silva – PT já se estende por quatro anos. A problemática crucial está em garantir o direito das populações tradicionais, que detêm grande parte do conhecimento sobre a natureza, principalmente no que diz respeito à farmacopéia, de impedir a biopirataria. Essas populações são consultadas sobre quais as plantas ou partes de animais que fazem efeito para curar determinadas doenças. Partindo daí, os laboratórios poupam uma grande soma de investimentos e tempo, pela sabedoria popular dos povos da floresta. No projeto de Lei de Acesso à Biodiversidade, da senadora Marina Silva – PT, esse impasse é posto no Capítulo IV, ao tratar “Da Proteção do Conhecimento”, em seis artigos (ART. 17 ao 22). Eis alguns exemplos: Art. 17. O poder púbico reconhece e protege os direitos das comunidades locais de se beneficiar coletivamente por suas tradições e conhecimentos e de serem compensadas pela conservação dos recursos biológicos e genéticos, seja mediante direitos de propriedade intelectual ou outros mecanismos [...]; Art. 18. Os direitos coletivos de propriedade intelectual constituem o reconhecimento de direitos adquiridos ancestralmente, englobando direitos de propriedade industrial, direitos de autor, direitos de melhorista, segredo e outros; Art. 20. Fica assegurado às comunidades locais o direito de não permitir a coleta de recursos biológicos e genéticos e o acesso ao conhecimento tradicional em seus territórios, assim como o de exigir restrições a estas atividades fora de seus territórios, quando se demonstre que estas atividades ameacem a integridade de seu patrimônio natural ou cultural. Os demais artigos deste Projeto de Lei estabelecem inclusive o prazo de regulamentação dos direitos coletivos de propriedade intelectual das propriedades 190 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Pérsida da Silva Ribeiro Miki tradicionais e não reconhecem os direitos individuais de propriedade intelectual (registrados dentro ou fora do país) dos recursos biogenéticos, quando forem utilizados o conhecimento das populações tradicionais, ou tenham esses direitos adquiridos sem o certificado de acesso e licença de saída do Brasil. Enquanto isso, no Estado de Tocantins, a Universidade do Tocantins (UNITINS), em convênios com a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Universidade Federal da Paraíba (UFBP), Universidade Federal do Ceará (UFCE), Universidade Gama Filho, do Rio de Janeiro, Universidade de São Paulo (USP) e universidades internacionais, vem desenvolvendo projetos, catalogando espécies e trabalhando com a farmacopéia da floresta amazônica, com tecnologia para produtos repelentes. No entanto, as práticas de uso dos recursos florestais na Amazônia, em sua maioria, não levam em conta o uso da sua biodiversidade: Mas este enorme manancial de biodiversidade tem sido alvo de intensa dilapidação. O fluxo migratório para a Amazônia aliado à ausência de uma política agrícola para a região são incompatíveis com a necessidade de preservação e conservação dos recursos florestais. A entrada de pequenos produtores e de posseiros está fortemente associada ao processo de extração madeireira. Entretanto não há estímulo ao aproveitamento das áreas já desmatadas e ao manejo florestal como alternativa de exploração sustentável da região (AGENDA 21 BRASILEIRA, 2000). Outro tema relevante da Agenda 21 Brasileira, que envolve a utilização do solo e vegetação da Amazônia, diz respeito à agricultura tradicional. Os povos que a praticam, principalmente nas várzeas, possuem tecnologias próprias que não degradam o ambiente. Hiroshi Noda e Sandra Noda estabelecem três formas de exploração do solo na Amazônia: “[...] o extrativismo, a agricultura tradicional e o sistema de produção indígena” (1994, p. 136). Esta primeira tem precedentes históricos, principalmente com a exploração do cacau, da salsaparrilha e da seringueira. Além da exploração de espécies vegetais, o extrativismo envolve todos os elementos da floresta, incluindo a exploração animal, e põe em questão a relação homemnatureza que também é uma relação de trabalho: Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 191 Um debate sobre a Agenda 21 Brasileira: em defesa da floresta amazônica As populações extrativistas realizam uma combinação entre agricultura de subsistência, coleta, caça, pesca e transformação de produtos extrativos variados e os produtos são utilizados tanto para o consumo próprio como para a venda [...] o extrativismo é uma atividade que caracteriza não um tipo de produtor rural, mas, fundamentalmente, uma técnica de produção [...] então, sua força de trabalho estará direcionada no sentido de aumentar a coleta do produto. Como conseqüência ocorrerá um processo recorrente, onde estágios mais elevados de especialização na atividade extrativa, induzirão maiores níveis de dependência do produtor rural, em relação ao comprador e maiores pressões serão exercidas sobre as espécies exploradas. Neste caso, níveis elevados de produtividade implicarão estágios crescentes de dependência e pobreza do trabalhador rural e, também, níveis predatórios de exploração da natureza (NODA; NODA, 1994, p. 136). Viajando de barco por cerca de 20 dias, nos municípios do Amazonas (Tefé, Coari, Codajás, Beruri, Manacapuru, e Itacoatiara), é fácil perceber a exploração existente nesta relação, principalmente devido à falta de organização (seja em forma de associação ou por cooperativas) das populações tradicionais. Os donos das embarcações chegam a pagar, nos lugares mais distantes como Beruri, gelo por mantas de pirarucu. O pescador não pode impor seu preço, pois quando isso acontece o pescado é devolvido imediatamente e logo em seguida já há outro pescador com o mesmo produto a submeter-se às exigências do comprador. Tão fechada é essa relação que os passageiros dos barcos não podem comprar o peixe oferecido nas canoas. São momentos de suspense entre todos os envolvidos. Outro fato que acontece na madrugada (presenciado no trecho entre Tefé–Coari e Coari–Codajás– Manaus) é a prática comercial do pescado e outros gêneros da floresta. O comércio começa no cais do porto, onde o dono da embarcação obtém as informações de fiscalização do IBAMA na região. Navegando nos rios, já por volta das 24 horas, as embarcações diminuem a velocidade e atracam canoas cheias de pescado (inclusive 4 5 Nos porões das embarcações geralmente há um compartimento secreto em caso de fiscalização do IBAMA, ou de qualquer outro órgão do poder público. Informações obtidas em pesquisa de campo nas viagens pelos municípios de Tefé, Coari, Codajás, Manacapuru e Beruri no período de outubro de 1999 a janeiro de 2000. 192 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Pérsida da Silva Ribeiro Miki com peixes proibidos como o pirarucu e tambaqui) e outros gêneros da floresta, que são embarcados em porões4 quando a maioria dos passageiros está dormindo.5 Experiências com populações organizadas, como na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e a Reserva Extrativista (Resex), do médio Juruá, parecem demonstrar que há outras perspectivas dessa relação de trabalho. Os povoados organizados já buscam alternativas econômicas sustentáveis de sobrevivência e comercialização. Mesmo com dificuldades para esta segunda parte, como é o caso da Resex do médio Juruá, que tentou colocar no mercado o óleo de andiroba e copaíba e nenhum laboratório da região comprometeu-se a comprar. Além do extrativismo, a agricultura tradicional é fruto da transculturação de técnicas agrícolas das populações nordestina, africana, portuguesa e indígena (esta é a formação da população cabocla): [...]as técnicas utilizadas pela agricultura tradicional têm permitido, durante séculos, o atendimento das necessidades básicas de subsistência das populações sob condições ambientais diversas (solos deficientes, áreas secas ou propensas a inundações, com recursos escassos), sem depender de mecanização, pesticidas ou fertilizantes químicos (NODA, H.; NODA, S. 1994, p. 139). Hiroshi Noda e Sandra Noda (1994) identificam duas características principais para a agricultura tradicional: a diversidade das espécies cultivadas e o policultivo,6 o que representa um manejo sustentável feito pelas populações tradicionais, pois é um tipo de agricultura que preserva os recursos genéticos das espécies, sejam alimentícias ou medicinais. O sistema de produção indígena é feito com plantas que foram semidomesticadas da floresta. As roças indígenas não são abandonadas após alguns anos, ...os índios formam novas roças a cada ano e deixam de colher as plantas ao cabo de dois ou três anos, mas algumas plantas permanecem por mais tempo, como o inhame e o ariá até por cinco anos, a banana por dez, o urucum e o algodão 6 O policultivo é ...o cultivo de diferentes espécies de forma consorciada e a adoção de sistemas de descanso do solo da área cultivada como uma espécie anual, principalmente a mandioca, denominado ‘pousio’ (NODA, H.; NODA, S. 1994, p. 140). Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 193 Um debate sobre a Agenda 21 Brasileira: em defesa da floresta amazônica por mais de vinte e o cupá por quarenta anos (NODA, H.; NODA, S. 1994, p. 142). Alguns grupos indígenas utilizam o “pousio” para manejar o solo. Dentre esse tipo de produção podemos destacar as seguintes características: • Diversidade de espécies plantadas (alimentícias, medicinais e para outros fins), não havendo o aparecimento de pragas nas culturas; • Técnica de pousio sem o abandono das áreas anteriormente plantadas, facilitando na alimentação de espécies animais; • Recuperação da flora e fauna com os corredores naturais (trilhas) até as roças; e • Contribuição na composição das florestas. As práticas na Amazônia que foram por muito tempo consideradas ultrapassadas e irrelevantes começam a ser expostas diferentemente diante dos fracassos ambientais da agricultura praticada pelos países industrializados na década de 70 e implantada principalmente no Sudeste e Sul do país. Dados da Agenda 21 Brasileira estipulam que as perdas ambientais pelo mau uso do solo com práticas agrícolas e florestais degradadoras chegam a 5,9 bilhões de dólares ou 1,4% do Produto Interno Bruto brasileiro – PIB. No entanto, os sistemas na Amazônia, tanto a agricultura tradicional como os de produção indígena, realizados pelos índios e caboclos, preservam os recursos genéticos das espécies cultivadas: A agricultura na Amazônia é de fundamental importância para a conservação dos recursos genéticos das espécies olerícolas, frutíferas, florestais e medicinais. Os agricultores tradicionais são os únicos que, ainda hoje, cultivam e mantêm a variabilidade genética das hortaliças não convencionais, de mandioca, de milho, etc. (AGENDA 21 BRASILEIRA, 2000). Henk Hobbelink (1990) problematiza a questão inerente aos recursos e bancos genéticos. Para o autor, é importante a implantação de uma política de conservação de áreas de origem para que sejam mantidas as plantações das culturas tradicionais, como opção para as futuras gerações quanto à manutenção dos recursos genéticos, e como opção de sustentabilidade para as comunidades tradicionais. 194 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Pérsida da Silva Ribeiro Miki Essa estratégia de ação é bem mais acertada do que a criação de bancos genéticos devido a sua grande fragilidade: Mas esta tentativa dos bancos de genes (conservar a diversidade genética) fracassa com freqüência. Inadequações técnicas e falhas nos equipamentos criam problemas importantes. Mais preocupante é o fato de que as sementes, uma vez armazenadas, fiquem marginalizadas do processo de evolução. A vida da variedade, literalmente congelada no tempo, dependerá mais de sua capacidade de adaptar-se às condições do banco de genes do que das características que a fizeram bastante valiosa para ser recolhida e armazenada. Não é surpreendente que nos bancos de genes se perca uma grande diversidade. William Brown, ex-presidente da Pioner Hi-Bred, a maior companhia sementeira de milho do mundo, afirma que, atualmente, se perde mais diversidade de milho dentro dos bancos de genes que no mundo externo a eles (HOBBELINK, 1990, p. 25-26). A extinção de variedades genéticas tradicionais rompe mundialmente com as possibilidades de combinações para os cultivos, além de tornar frágil histórica, cultural e economicamente a vida das populações dos centros de diversidade:7 Quando se extinguem variedades tradicionais, as comunidades perdem um fragmento de sua história e sua cultura. As espécies vegetais perdem um fragmento de sua diversidade genética. As gerações futuras perdem algumas opções, e a geração presente perde a confiança em si mesma. O tipo de semente que semeia o camponês determina em 7 Os centros de diversidade são locais geográficos onde há grande riqueza quanto à biodiversidade. “Os centros de diversidade da maior parte dos cultivos encontram-se nos países do Terceiro Mundo. Devido a diversos fatores, como as glaciações nos países do norte, são poucos os cultivos importantes cujos centros de diversidade estão fora do Terceiro Mundo. Mas recordemos que a diversidade é fundamental, encontre-se onde se encontrar. Não é necessário que esteja situada em um Centro de Diversidade, ou tão sequer em um país do Terceiro Mundo, para que se tenha importância local ou internacional. [...] É difícil exagerar-se o valor da diversidade genética (que procede principalmente do Terceiro Mundo) para as plantações modernas, nos países industrializados. Cada um dos cultivares de trigo do Canadá contém genes introduzidos em décadas recentes, que procedem às vezes até de quatorze países diferentes. Os pepinos norte-americanos obtêm seus genes para resistir a enfermidades, de lugares tão longínquos como Coréia, Birmânia e Índia. Existem cultivares modernos de alface que incluem genes procedentes de Israel, Itália e Turquia. Os tomates não poderiam ser cultivados comercialmente, na América do Nor te, se não fossem os genes de espécies selvagens da América Central e do Sul. Os principais híbridos de grãos de sorgos mundiais têm por base os sorgos Zera-Zera do Sudão e Etiópia” (HOBBELINK, 1990, p. 25-27). Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 195 Um debate sobre a Agenda 21 Brasileira: em defesa da floresta amazônica grande medida suas necessidades de fertilizantes e agrotóxicos. A semente influi na necessidade de maquinário e amiúde determina qual é o mercado para a colheita [...] e qual é o consumidor último. As comunidades que perdem variedades tradicionais que durante séculos adaptaram-se a suas necessidades, perdem controle e tornam-se dependentes, para sempre, de fontes externas de semente e dos produtos químicos necessários para cultivá-las e protegêlas [...] (HOBBELINK, 1990, p. 32). Essa dependência advém do capitalismo globalizado, através das transnacionais (agroquímicas e farmacêuticas) como Monsanto, Bayer, Hoechst, Eli Lilly, Hoffman-La Roche, Schering-Ploegh, Dupont e Lubrizol. São os chamados agribusinees que controlam a agricultura mundial e a biotecnologia através de três formas: criando pesquisas próprias, integrando seus interesses em outros territórios; adquirindo pequenas empresas ou se associando em forma de cooperação com estas; ou realizando contratos com universidades e outras instituições públicas de pesquisa. Cerca de dez transnacionais controlam 50% do mercado de agrotóxicos, processamento de alimentos, distribuição de grãos e outros setores deste agropoder, que através do desenvolvimento da ciência e da tecnologia criam pacotes agrícolas para os países emergentes, que se não forem utilizados na íntegra, há a quebra de todo o processo no cultivo. A dependência é tão alarmante, aliada ao desenvolvimento tecnológico, que sementes produzidas em determinada colheita não mais germinam, forçando a compra de novas sementes. Além do que, todos esses fatores causam desequilíbrios sócio-ambientais como a poluição das águas (mananciais), comprometendo a fauna e flora aquática, desertificação, erosão pelo mau uso do solo (com a contaminação química e a perda da matéria orgânica), o aumento da fronteira agrícola, e a intoxicação de animais, vegetais e pessoas pelo manuseio dos agrotóxicos, comprometendo as atuais e futuras gerações, com doenças que vão desde lesões hepáticas, renais até a teratogênese, mutagênese e carcionogênese. Além das populações tradicionais, na Amazônia há a agricultura familiar que apresenta diversos problemas diante da perda do controle sobre o uso do solo, que após diversas práticas agrícolas degradadoras ocorrem os processos de acidificação, salinização, erosão e desertificação. Esta também concorre para o aumento da fronteira agrícola na região amazônica. No debate existente sobre a Agenda 21 Brasileira, a 196 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Pérsida da Silva Ribeiro Miki falta de conhecimento é um dos pressupostos para a utilização de tecnologias depredadoras, mais de 40% dos agricultores assentados pela Reforma Agrária na Amazônia são analfabetos. Buscando alternativas para minimizar a falta de conhecimento dos assentados, no documento do referido debate há o destaque: [...]experiência realizada pelo Centro Agropecuário da Universidade Federal do Pará, de apoio ao Programa Casa Familiar Rural, na Transamazônica. Nessa iniciativa a criança divide o seu tempo entre a escola e o lote agrícola, aprendendo e discutindo problemas reais relacionados à produção e à gestão da propriedade (AGENDA 21 BRASILEIRA, 2000). Neste quadro, os agricultores familiares estão organizados da seguinte forma: • Catingão e Caixa Agrícola (organização da agricultura familiar); • Cooperativa, através de sociedade civil comercial; • Associação, através de sociedade civil sem fins lucrativos; • Cooperativa extrativista; e • Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (com base municipal e forte representação em áreas extrativistas), que já vêm desenvolvendo trabalhos para treinamento e profissionalização dos agricultores, buscando uma gestão ambiental dos recursos da economia no setor primário, inclusive com diversas parcerias, a exemplo da parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural – SENAR e Organizações Não-Governamentais – ONGs. Os agricultores sem alternativas para o uso da terra em relação às políticas de crédito, à infra-estrutura para a produção, ao acesso ao conhecimento, às tecnologias de cultivos sustentáveis e às pressões do mercado para uma produção em curto espaço de tempo são forçados a depredá-la, utilizando o processo de queimada para o preparo da terra ou para formar pastos. São fatos que mostram o despreparo deste agricultor diante da realidade amazônica, já que a origem deste agricultor e sua família é geralmente de migrações através de projetos de assentamento dirigidos pelo INCRA: Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 197 Um debate sobre a Agenda 21 Brasileira: em defesa da floresta amazônica Os pequenos produtores rurais, migrantes dos projetos de assentamento dirigidos, encontram grandes dificuldades para adaptarem-se ao novo ambiente e as técnicas agrícolas adotadas diferem daquelas praticadas pelos agricultores tradicionais da Amazônia. A diversidade de espécies cultivadas é mais restrita e, ao contrário dos agricultores tradicionais, não adotam a técnica de pousio das terras, para recuperar a capacidade produtiva dos solos [...] as roças plantadas são maiores e mais homogêneas do que a dos agricultores tradicionais, sendo mais sensíveis aos problemas, quando aparecem, como as pragas e as moléstias (NODA, H.; NODA, S., 1994, p. 146). Os incêndios acidentais se constituem em outro fato preocupante no processo de queimada: O uso do fogo na agricultura está estritamente relacionado ao preparo da área para plantio agrícola e à implantação e limpeza de pastagens. Entretanto, muitas vezes a queimada foge ao controle e provoca enormes prejuízos econômicos e ambientais. As queimadas acidentais foram responsáveis pela metade da área queimada na Amazônia em 1994 e 1995 (AGENDA 21 BRASILEIRA, 2000). A prática criminosa de queimar áreas de mata ou floresta provocando incêndios e a manipulação de balões está prevista na Lei de Crimes Ambientais (Arts. 41 e 42). No entanto ainda é difícil o controle sobre as queimadas e a identificação do criminoso, principalmente em grandes áreas incendiadas que ultrapassam as fronteiras das propriedades, tornando quase que impossível descobrir o início do fogo. A preocupação inerente aos debates da Agenda 21 Brasileira levanta sérias apreensões diante do quadro existente na devastação da floresta amazônica. As possíveis soluções apontadas para os problemas dispostos na Agenda 21 Brasileira envolvem uma gama de financiamentos econômicos, normatizações e ações de órgãos governamentais e da sociedade civil organizada, e principalmente a utilização dos conhecimentos advindos da pesquisa pelas universidades e instituições de pesquisa. 198 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Pérsida da Silva Ribeiro Miki Entre os caminhos postos em pauta de discussão como alternativa para as propriedades agrícolas familiares está a implantação dos Sistemas Agroflorestais – SAF. Os SAF são desenvolvidos pelos agricultores tradicionais nos países emergentes, como forma de subsistência para a superação dos obstáculos em relação à aquisição dos insumos agrícolas industrializados. Os Sistemas Agroflorestais representam uma [...]abordagem renovada que, atualmente, se faz acerca das atividades agrícolas em ambientes frágeis e complexos como dos trópicos úmidos, mais especificamente, da região amazônica, é um esforço de síntese no qual a ciência procura interpretar as técnicas antigas da agricultura tradicional e indígenas e, ao acrescentar elementos novos, as reconstrói sobre níveis mais elevados. Essa nova modalidade de manejo de terras é um desdobramento da agrossilvicultura concebida dentro de padrões de autosustentabilidade, de integração espacial e/ou temporal dos diversos elementos que compõem o sistema, de otimização do uso dos recursos disponíveis e de adequação e aceitabilidade dos agentes envolvidos no processo produtivo (NODA, H.; NODA, S., 1994, p. 142). Outra alternativa de sustentabilidade ambiental envolvendo atividades produtivas estaria no manejo e certificação florestal das reservas extrativistas. Hoje, conforme dados da Agenda 21 Brasileira, na Amazônia há 11 reservas e assentamentos extrativistas, englobando 30.000 pessoas organizadas em suas comunidades extrativistas, em cerca de 4 milhões de hectares. Essas organizações são interlocutoras com o mercado e instituições públicas e privadas, em relação com os produtos da floresta. A auto-sustentabilidade na exploração dos produtos dessas áreas é o objetivo desenvolvido por esses povoados, juntamente com a conservação dos recursos naturais renováveis. Finalmente, a Agenda 21 Brasileira (2000) propõe a redução das pressões sobre os recursos naturais, em quatro diretrizes: Desenvolver metodologias de planejamento setorial (formulação de projetos) que levem em consideração impactos ambientais negativos de modo a evitá-los de forma pró-ativa; Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 199 Um debate sobre a Agenda 21 Brasileira: em defesa da floresta amazônica Melhorar a ecoeficiência produtiva, visando, de forma integrada entre os diversos setores, a redução de perdas e desperdícios de recursos naturais e de energia (na produção e no uso); Internalizar no orçamento dos projetos de infra-estrutura dos custos de oportunidade sociais, ambientais e econômicos; Promover avaliação dos impactos. Referências AGENDA 21 Brasileira. Disponível em: <http://www.ensp.fiocruz.br/publi/radis/ tema 18.html. 25. mai.2000> BRASIL. Júris Síntese. Porto Alegre: Editora Síntese, n. 21, jan./fev. 2000. HOBBELINK, Henk. Biotecnologia: muito além da revolução verde. [S.l]: Ed. Porto Alegre, 1990. NODA, Hiroshi; NODA, Sandra do Nascimento. Produção agropecuária. In: Amazônia uma proposta interdisciplinar de educação ambiental: temas básicos. Brasília: IBAMA, 1994. 200 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Disser tações defendidas Dissertações Defendidas Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 201 Disser tações defendidas 202 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Disser tações defendidas Resumo de dissertações parte 2 Título: ALEGORIAS DA CONDIÇÃO HUMANA: UM ESTUDO SOBRE A OBRA “O TOCADOR DE CHARAMELA” DE ERASMO LINHARES Autor : Raimundo Nonato de França Fonseca Orientador: Marcos Frederico Krüger Aleixo Data de Defesa: 3 de abril/ 2002 Resumo Estudo sobre as alegorias da condição humana, tal como se apresentam nas imagens literárias da obra “O Tocador de Charamela”, do contista amazonense Erasmo Linhares. Investigação dos recursos literários utilizados pelo autor para configurar alegoricamente a condição humana. Análise da literalidade da obra, tomando como parâmetro as abordagens críticas contemporâneas relativamente à arte em geral e à contística em particular, especialmente o New Criticism, defendido por Afrânio Coutinho, e a Semiótica Literária, difundida por Umberto Eco. Destaque para os processos narrativos que apontam para a degradação humana, as intrincadas questões políticas do período da ditadura militar, as singularidades da vida nos seringais do Amazonas, a pequenez do homem diante da enormidade do universo e a sua impotência diante da morte, os desencontros da convivência em família, a oposição entre o que se é e o que se aparenta ser, o realismo fantástico. Abordagem sobre a categoria de emblemas da humanidade, ou seja, alegorias das contingências humanas. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 203 Disser tações defendidas Título: O PANÓPTICO VERDE: A AMBIENTALIZAÇÃO DA AMAZÔNIA ATRAVÉS DO PARQUE NACIONAL DO JAÚ Autor: Luiz Fernando de Souza Santos Orientador: Ernesto Renan Melo de Freitas Pinto Data da Defesa: 17 de abril de 2002 Resumo Esta Pesquisa examina as práticas referentes à proteção ambiental como sinal de um processo de ambientalização da natureza, no qual o ambiente emerge como tática de poder que regula e controla o uso do espaço e dos recursos naturais pelo homem. O pensamento de Michel Foucault, particularmente sua noção de biopoder, é a base teórica para a interpretação deste processo de ambientalização, observado a partir de sua materialização na Amazônia, reconfigurada contemporaneamente como espaço conectado ao destino ecológico da Terra. A unidade de fundamentação empírica é o Parque Nacional do Jaú, localizado na bacia do rio Negro e criado em 1980 para proteger elementos representativos de um ecossistema de águas pretas. Este Parque é resultado de um complexo exercício de poder e de saber de cientistas, ambientalistas e da política ambiental brasileira. Vivem no interior desta unidade de conservação aproximadamente 150 grupos domésticos sobre os quais pesam as normas, o controle, a disciplina e a vigilância imposta na área. Portanto, o exercício de biopoder, observado no Parque Nacional do Jaú, configura-se como um Panóptico Verde, representativo de um olhar ambientalizado que se estende por toda a Amazônia. Título: ÇAIRÉ: NOS RIOS DO IMAGINÁRIO, A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL Autora: Eglê Betânia Portela Wanzeler Orientador: Prof. Dr. Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro. Data da Defesa: 27 de abril de 2002 204 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Disser tações defendidas Resumo Esta pesquisa aborda alguns aspectos importantes sobre o imaginário e o símbolo da Festa do Çairé, que ocorre na Vila de Alter do Chão – cidade de Santarém/PA há pelo menos quatro séculos. Compreender essa festa pelos rios do Imaginário foi a tarefa principal da pesquisa, ora porque se apresenta de um universo simbólico próprio, ora porque se constitui como um movimento constante de renovação, transformação, recriação e flexibilidade, permitindo o desenvolvimento de uma cultura que, efetivamente, conduz a vida das pessoas na Vila de Alter do Chão e cria espaço para a reelaboração da identidade cultural. A abordagem histórica antropológica perspectivada nesta pesquisa indica alguns caminhos possíveis para a compreensão do processo de reinvenção do Çairé que irá contribuir efetivamente para construção da identidade cultural Borari. A pesquisa também trata de refletir sobre o processo de transformação e transfiguração dessa Festa e suas implicações na cultura da Amazônia. Titulo: ANDRÉ VIDAL DE ARAÚJO: PENSAMENTO SOCIAL E SOCIOLOGIA Autora: Lúcia Marina Puga Ferreira Orientador: Ernesto Renan de Freitas Pinto Data de Defesa: 2 de julho de 2002 Resumo: Pesquisa sobre o Pensamento Social Brasileiro que tem por objetivos conhecer e analisar as condições de produção desse pensamento num contexto periférico da Sociologia no Brasil. Nesta pesquisa, tomou-se como estudo de caso a obra sociológica de André Vidal de Araújo, identificando e interpretando o pensamento e obra do autor; compreendendo a Sociologia Brasileira em uma de suas manifestações regionais não incorporada ao processo de constituição da Sociologia no Brasil, assim como identificando sua obra no contexto do Pensamento Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 205 Disser tações defendidas Social Brasileiro. Como metodologia, procedeu-se à reconstrução do pensamento e dos escritos do autor, buscando fazer convergir as sugestões de análise que estão em Quentin Skinner e Paul Ricoeur. Procedeu-se à análise da obra de Araújo enfocando as influências em seu pensamento do Pensamento Social da Igreja Católica, da Sociologia Americana da Escola de Chicago e da Sociologia Brasileira. Os principais temas analisados são: sua visão sociológica da infância e da educação; a Sociologia da Amazônia, enforcando aspectos referentes às comunidades amazônicas, as relações sociedade natureza e a questão agrária; o desenvolvimento de uma sociologia urbana; e a sociologia visual. Este estudo amplia o quadro do pensamento brasileiro, por incorporar um autor que tem abordagens pioneiras para o estudo da Amazônia. Título: WAIMIRI-ATOARI EM FESTA É MARYBA NA FLORESTA Autora: Maria Carmen Rezende do Vale Orientadora: Selda Vale da Costa Data de Defesa: 4 de julho de 2002 Resumo Os Waimiri-Atroari, durante muito tempo, marcaram presença no imaginário do povo brasileiro como guerreiro que enfrentava e matava a todos que tentavam invadir seu território. Essa imagem contribuiu para que autoridades governamentais transferissem a incumbência das obras da estrada BR 174 (Manaus– Boa Vista) ao Exército Brasileiro, que utilizou forças militares repressivas para conter os indígenas. Esse enfrentamento culminou na quase extinção do povo kinja (autodenominação Waimiri-Atroari) que utilizaram as festas maryba como manifestações importantes dessa realidade. Constituem-se em momentos onde vários grupos locais e aglomerados se reúnem. Festejam o rito de passagem masculino. O ascender do mundo infantil ao universo masculino adulto nas Karaweri maryba, Primeira e Segunda Behe maryba. O término da construção da casa nova – Mydy maryba. A harmonia entre o mundo dos vivos e dos mortos – as 206 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Disser tações defendidas lohy maryba. Nessas festas, revela-se toda a complexidade de uma visão de mundo construída durante século pelos Waimiri-Atroari. A maryba, por ser um espaço festivo e ritual, conseguiu manter elementos estruturantes da cultura WaimiriAtroari, elementos esses que contribuíram para a residência desse povo diante da situação de contato com a sociedade brasileira. Título: MANAUS: PLANO DIRETOR E EXPANSÃO URBANA Autor: João Paulo Vieira de Oliveira Orientador: José Aldemir de Oliveira Data da defesa: 5 de julho de 2002 Resumo Analisa o Plano de Manaus (1975) nas permanências e transformações ocorridas no processo de políticas urbanas adotadas pelo Estado, identifica-se o que motivou o processo de expansão urbana da cidade, comparando as diretrizes planejadas, com as ações efetuadas pelos agentes produtores do espaço urbano, destacando a ação do Estado, ao mesmo tempo agente regulador e produtor do espaço urbano. Compara o planejado no documento e o efetivamente executado, recorre ao estudo das formas da cidade, tal qual ela hoje se apresenta, verificando as transformações ocorridas no sistema viário, nos grandes equipamentos urbanos, na condições de habitação e no uso e ocupação da terra urbana. Título: O POVO KOKÁMA: UM CASO DE REAFIRMAÇÃO DE IDENTIDADE ÉTNICA Autor: Marcos Antônio Braga de Freitas Orientadora : Selda Vale da Costa Data da Defesa : 17 de julho de 2003 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 207 Disser tações defendidas Resumo O ressurgimento do povo Kokáma no contexto das sociedades indígenas contemporâneas suscita questões que levam a analisar o processo de reelaboração de sua identidade étnica. Para isso foi preciso realizar o levantamento etno-histórico de sua presença na historiografia amazônica, bem como mapear a realidade atual dessa população no processo de reinvidicação da terra. Historicamente esse processo vem sendo construído a partir da década de 80, quando esse povo se organiza e luta pela posse do território. A análise para compreender essa reafirmação identitária trabalhou com as categorias de identidade étnica, etnicidade e territorialidade, sendo que esse processo de reelaboração da identidade dos Kokáma se reafirma nas relações sociais processadas com outros povos e com a própria sociedade envolvente. O povo Kokáma está espalhado por diversas localidades ao longo do rio Solimões, desde o município de Tabatinga até o Anamã e na cidade de Manaus, no Estado do Amazonas. Hoje, os Kokáma lutam e assumem abertamente sua identidade étnica e são reconhecidos pelas organizações indígenas e a própria FUNAI como um grupo indígena. Título: AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO SANGUE: UM ESTUDO COM DOADORES E NÃO DOADORES EM MANAUS Autora : Maria Zeilla Moreira da Frota Orientadora: Yoshiko Sassaki Data de Defesa: 21 de agosto de 2002 Resumo A dissertação parte do pressuposto de que o ato de doar sangue diz respeito não apenas a uma decisão pessoal do candidato de ser sensibilizado para tal, mas envolve fatores que dizem respeito a todo o seu contexto social e cultural. Conforme a legislação brasileira a doação de sangue deve ser altruísta, voluntária e não gratificada direta ou indiretamente, com isso, torna-se relevante identificar e 208 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Disser tações defendidas conhecer as motivações que envolvem a doação de sangue. Utilizou-se nos procedimentos metodológicos a análise documental e entrevistas numa amostra significativa e não probabilística. Na análise documental através das estatísticas do hemocentro de Manaus, buscou-se refletir sobre o perfil dos doadores; e nas entrevistas dos grupos selecionados buscou-se refletir sobre as motivações e representações sociais do sangue na doação. Os dados levantados apontam que o imaginário social influi na demanda de doadores e em suas respectivas doações. Assim, compreende-se que a doação de sangue não depende exclusivamente da “boa vontade” dos sujeitos, mas de fatores que envolvem as condições de saúde do indivíduo, o estigma cultural do simbolismo do sangue e as representações sociais que as pessoas adquirem em relação à doação de sangue. Título : AMAZÔNIA, TERRITÓRIO E PODER: O PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DO SIVAM Autor: Thelma Lima da Cunha Marreiro Orientador: José Aldemir de Oliveira Data de Defesa: 31 de outubro de 2002 Resumo Consiste em analisar a reorganização do espaço na Amzônia, com base no processo de implantação do Projeto SIVAM, cuja função é o de promover um sistema de rede de informações sobre o território amazônico. Inicialmente é discutido o exercício do poder no controle do território desde o seu período de colonização, em busca de maior compreensão das ações estratégicas na Amazônia brasileira. Reflete-se sobre a importância de um sistema de vigilância, na extensa área de fronteira amazônica, mas com potencial relevante para compartilhar com a sociedade nacional. E finaliza-se com uma abordagem sobre a educação articulada à educação ambiental, buscando apresentar os principais objetivos do SIVAM sendo repassados à sociedade regional por meio do Projeto SIVAMzinho. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 209 Disser tações defendidas Título: MADEREIRA COM SELO VERDE NO ESTADO DO AMAZONAS: UM ESTUDO ACERCA DAS CONCEPÇÕES DOS TRABALHADORES SOBRE A CERTIFICAÇÃO FLORESTAL MADEIREIRA. Autora: Jocilene Gomes da Cruz Orientadora: Elenise Faria Scherer Data de Defesa: 31 de outubro de 2002 Resumo Este trabalho faz uma abordagem sobre as discussões em torno do desenvolvimento sustentável como um modelo alternativo de desenvolvimento ao modelo capitalista vigente. Destacam-se, de modo particular, as propostas de desenvolvimento sustentável para a Amazônia, como a exploração florestal sustentada e a certificação florestal atribuída às empresas madereiras que adotam princípios e critérios com fins sustentáveis, como os estabelecidos pelo Conselho de Manejo Florestal – FSC. Nesse processo, apresentam-se as assertivas sobre a Mil/Precious Woods Amazon, a primeira madereira no Estado do Amazonas a ser premiada com um selo verde, em virtude de realizar sua atividade de exploração florestal madereira pautada nos princípios do FSC. O objetivo da pesquisa constituiu em ouvir os trabalhadores dessa madereira, com o intuito de conhecer suas concepções sobre a certificação florestal concedida à referida madereira, especialmente para saber o que pensam sobre os critérios sociais contidos na certificação. Título: A CIDADE QUE EXISTE EM NÓS: A MARCA DO URBANO NA POESIA DE ALDÍSIO FILGUEIRAS Autor: Allison Marcos Leão da Silva Orientador: Marcos Frederico Krüger Aleixo Data de Defesa: 06 de novembro de 2002 210 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Disser tações defendidas Resumo A literatura de produção amazonense, especialmente no que se refere à poesia, tem se valido de temas que historicamente são tido como amazônicos, e tem se caracterizado como literatura de feição regionalista com tendências aos velhos motes da natureza – os elementos naturais, tais como o rio, a floresta. As explicações para tal predileção não são simples e são várias; remontam mesmo a um período anterior à chegada do europeu a estas terras e sedimentaram-se nas mentalidades artísticas a partir da própria consolidação de certos traços do imaginário geral sobre a Amazônia. No entanto, a cidade, que não está incorporada plenamente a estes estereótipos, é um elemento muito forte que, independente das tentativas de que a ocultem, emerge indireta ou diretamente nos discursos literários e artísticos de uma forma geral. No caso do Amazonas, nosso maior representante de literatura urbana é certamente o poeta Aldisio Filgueiras. Sua produção, que já soma quase trinta anos, sempre trouxe a cidade como um dos temas mais presentes, senão o mais freqüente. Interessados em conhecer alguns dos motivos que levaram a produção literária amazonense a se consolidar sob a égide do regionalismo estereotipado, e mais interessados ainda em compreender as inúmeras retratações da cidade na poesia de Aldisio Filgueiras, resolvemos pesquisar a marca do urbano em tal poética, especialmente nas obras Malária e outras canções malignas, A república muda e Manaus, as muitas cidades, livros que foram por nós estudados. Para tanto, nos foi necessário observar de que maneiras a cidade tem sido percebida pela literatura universal. Um estudo da formação do pensamento social da Amazônia também se mostrou importante, para que obtivessem respostas satisfatórias acerca da grossa corrente regionalista já citada. A apreciação da forma poética de Aldisio Filgueiras e sua relação com as formas de comunicação urbanas ganhou relevo à medida que percebemos que esta é uma poética bastante original do ponto de vista da forma. Concluímos o trabalho com uma análise da marca do urbano nesta poética a partir de quatro pontos específicos – o tempo, a memória, o choque e a multidão. A dissertação tenta utilizar colaborações da crítica psicanalítica e da formalista, dada a complexidade do tema. Tais contribuições se fazem presentes como ferramentas quando necessárias, e têm como fio condutor a compreensão da literatura a partir das relações históricas Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 211 Disser tações defendidas entre arte e sociedade. Percebemos, por fim, a poesia de Aldisio Filgueiras como representativa de uma modernidade que atualiza o discurso poético amazonense, posto que traz um homem repleto de conflitos e repartições. Sua poesia tem a cidade não somente como meio ambiente; ela desenvolve mesmo uma relação de convivência com a urbe, que, como em toda convivência, traz suas benesses e seus malefícios. Título: A ENCRUZILHADA DO PECADO, YE’PÁ E O IMAGINÁRIO SEXUAL NO MITO TUKANO DE CRIAÇÃO DO MUNDO Autora: Maria das Graças de Carvalho Barreto Orientadora: Heloísa Lara Campos da Costa Data de Defesa: 18 de novembro de 2002 Resumo O trabalho evidencia os contrastes entre a visão que os descobridores europeus e alguns naturalistas do século 18 construíram sobre a sexualidade indígena e o imaginário sexual dos povos da Amazônia, representados pela narrativa mítica de Séribhi, Te’ónari-Kumu, da etnia Tukano. A pesquisa revela a impossibilidade de encontro entre uma concepção de sexualidade fundada na misoginia e na rejeição das manifestações e das imagens corporais e o imaginário sexual de uma cultura que constrói sua identidade calcada na figura feminina, em torno da Deusa Ye’pá, Criadora do universo cósmico do pensamento Tukano. Séribhi-Kumu, cujo nome de batismo é Gabriel dos Santos Gentil, em sua narrativa, revela a importância da sexualidade para o seu povo, quando identifica o ato criativo como ato sexualcerimonial. O Corpo e a sexualidade, centro das epifanias, é a própria essência da criação. Todas as cerimônias e rituais celebram e recriam as núpcias entre a Deusa Ye’pá e os entes por ela criados: Criador e Criatura estão de tal modo unificados que um é a própria essência do outro, no plano real e imaginário, no universo sagrado e no universo profano. O pecado fica na encruzilhada da transcontinentalização e da trasculturação, porque, até então, “não havia pecado do lado de baixo do equador”. 212 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Disser tações defendidas Título: AS FESTAS POPULARES DA AMAZÔNIA NAS REDES DE COMUNICAÇÃO; UM ESTUDO SOBRE O BOI-BUMBÁ DE PARINTINS, A CIRANDA DE MANACAPURU E O ÇAIRÉ DE ALTER DO CHÃO E AS SUAS RELAÇÕES COM O MERCADO CAPITALISTA Autor: Wilson de Souza Nogueira Orientadora: Marilene Corrêa da Silva Data de Defesa: 20 de dezembro de 2002 Resumo Este trabalho trata da relação das festas populares amazônicas com o mercado capitalista por intermédio de pesquisa sobre o Boi-bumbá de Parintins, a Ciranda de Manacapuru e o Çairé de Alter do Chão. Os três eventos atraem a atenção de milhares de turistas e dos meios de comunicação. Há pouco tempo, as três folias não ultrapassavam os domínios dos lugares nos quais são encenadas. Esse fenômeno foi analisado sob a orientação de pesquisas na literatura pertinente e nas incursões de campo, com ênfase às informações dos atores sociais nele envolvidos. Produziu-se, a apartir daí, uma reflexão que aponta as festas populares em acelerado processo de ressignificação de conteúdo discursivo e plástico para se adequarem às exigências do mercado capitalista. Embora estejam satisfazendo as necessidades de um mercado que movimenta milhões de reais, as populações que produzem e legitimam as três festas não são recompensadas com melhorias de qualidade de vida. A televisão aparece como principal ferramenta no processo de apropriação dessas festas populares pelo mercado por causa da sua singularidade no transporte de imagem e áudio ao mesmo tempo e por estar atrelada aos interesses do poder econômico. Para se contrapor ao quadro de exploração mercantil exacerbada dos bens simbólicos, este estudo sugere mudanças nas relações de produção, distribuição e consumo dos bens culturais, para que se tornem democráticos e voltados à contrapartida social. Esse tipo de intervenção dependerá, prioritariamente, da articulação das camadas que estão relegadas literalmente ao papel de figurantes na realização desses eventos. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 213 Nome ar tigo 214 Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 Nome autor Roteiro para elaboração de artigos 1. Os trabalhos deverão ser enviados em disquete com etiqueta identificando o(s) autor(es) e em três vias impressas, em corpo 12, na fonte Times New Roman. 2. O artigo deverá conter, no máximo, 30 mil caracteres, sem espaços; título, o nome e a identificação do autor (titulação, área de estudo da titulação, vinculação profissional. Ex.: Doutor em Sociologia, professor do Departamento de Ciências Sociais/UFAM); resumo em português e em inglês; palavras-chave e referências bibliográficas. Obs: só devem ser usadas notas explicativas – nunca nota para indicar a obra citada – e sempre no final do texto, antes das referências bibliográficas; os resumos devem ter, no máximo, 350 caracteres, sem espaços. 3. As referências a obras vêm sempre no corpo do trabalho, entre parênteses, como no exemplo: (SOUZA, 1998, p. 157) ou (SOUZA, 1998, p. 155-157). 4. As citações até três linhas são identificadas por aspas no texto. A partir de quatro linhas devem ser destacadas do texto, em itálico, sem aspas. 5. As referências bibliográficas devem obedecer aos seguintes modelos: [MARCUSE, Hebert (1972). Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar], [GALVÃO, Eduardo (1951). Boi-bumbá; versão do baixo Amazonas. Anhembi. São Paulo, v. 3, n. 8, julho, p. 276-291.], [SACHS, Ignacy. Estratégia de tradição para o século XXI. In: BURSZTYN, Marcel. (Org.). Para pensar o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 29-56.]. 6. Anexo: caso existam, devem vir depois das referências bibliográficas. 7. Os textos serão submetidos à análise de consultores de acordo com o tema abordado. 8. Os autores que tiverem artigos publicados receberão um exemplar da Revista. Obs.: O disquete e as cópias impressas devem ser entregues ou enviadas para a Secretaria do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia. O texto deve estar revisado pelo(s) ao autor(es). Os trabalhos que não obedecerem às regras serão devolvidos pela Comissão Editorial. Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004 215