Oxigênio
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Título Original: Oxygen
Copyright © 2008 Carol Wiley Cassella
Todos os direitos reservados pela Editora Nossa Cultura Ltda, 2010.
Editores: Paulo Fernando Ferrari Lago, Claudio Kobachuk
Tradutora: Liliana Negrello
Revisoras: Tania Growoski, Adriana Gallego Mateos, Valquíria Molinari
Direção de Arte de capa e coord. gráfica: André Alexandre Machado
Capa: Fabio Meurer Paitra
Diagramação: Marline M. Paitra e Cláudio R. Paitra
Nota: a edição desta obra contou com o trabalho, dedicação e empenho de vários
profissionais. Porém podem ocorrer erros de digitação e impressão. Pede-se que seja
comunicado à editora no caso de existir qualquer das hipóteses acima.
EDITORA NOSSA CULTURA LTDA
Rua Grã Nicco, 113 – Bloco 3 – 5.º andar
Mossunguê
Curitiba – PR – Brasil
Tel: (41) 3019-0108 – Fax: (41) 3019-0108
http://www.nossacultura.com.br
Dados internacionais de catalogação na publicação
Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira
Cassella, Carol.
Oxigênio / Carol Cassella ; tradução: Liliana
Negrello. – Curitiba, PR : Nossa Cultura, 2011.
308 p. ; 16 x 21 cm.
Tradução de: Oxygen.
ISBN 978-85-8066-016-6
1. Ficção americana. I. Negrello, Liliana.
II. Título.
CDD (22ª ed.)
813.5
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Este romance é dedicado ao centro do meu universo:
Will, Sara, Julia e Elise;
e a minha estrela gêmea, Steve.
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C a rol W i ley C a s sel l a
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As pessoas se sentem tão fortes, tão resistentes. Aplico anestesia em pilotos de
avião, executivos de grandes corporações, diretores de escolas, mães de crianças
bem-nascidas, juízes e zeladores, psiquiatras e vendedores, montanhistas e músicos.
Pessoas que se exibiram e lutaram e respiraram neste planeta por vinte, trinta, setenta
anos, desafiando a inexorável e entrópica decadência de todas as coisas vivas. E
todos se agarram à existência de uma mesma molécula: o oxigênio.
Todo o complexo mecanismo humano tem seu ápice no oxigênio. A corrente
de energia, que provém do metabolismo que nos mantém vivos, termina com o
oxigênio como aceptor final de elétrons. Retire-o e tudo se interrompe em minutos,
retardando a máquina precisa e interligada até que ela entre em colapso, asfixiada,
fria e azul.
As duas portas que nos conectam ao oxigênio – a boca e o nariz – são mais
apreciadas por outras funções: degustar, cheirar, sorrir, assobiar, soprar fumaça ou
mandar beijos, dar utilidade aos fabricantes de óculos, batons, cosméticos e aos
cirurgiões plásticos. Feche-as pela duração da previsão do tempo do telejornal e
tudo o que você planejou para o resto da vida evapora num sopro de imaginação.
Há um momento durante a administração da anestesia geral em que fico
intimamente ligada ao paciente. Um momento de transferência de poder. Aperto
o êmbolo para expulsar a substância ministrada gota a gota por via intravenosa, e
espreito a face relaxar, observo os últimos pensamentos organizados se libertarem
da consciência, vejo a respiração se tornar superficial, vagarosa, até parar.
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Se eu abandonasse meu paciente – engolido pelas profundezas de seu sono
enquanto a asfixia colore as veias de azul – os lábios ficariam roxos, a pele rosada
passaria a cinza e a batida firme, bip, bip, bip, do monitor cardíaco iria esmorecer,
depois vacilar. Como uma ruína arqueológica, o cérebro morreria em camadas:
personalidade, memória e movimentos entrando em colapso como tijolos de uma
construção antiga até a pulsação da respiração e do sangue pelo tronco cerebral se
interromperem.
Há momentos durante minha rotina diária em que sou tocada pelo pensamento
de quão precária é a linha na qual a pessoa inconsciente se equilibra, uma mosca
infeliz na teia de uma aranha. É como um afogamento em que a abençoada
inconsciência precede a desesperada fome de ar. No último instante, entro em cena
e insuflo o fôlego salvador, ajustando minha máquina para tomar conta do que o
tronco cerebral não pode mais comandar: fazer com que os pulmões bombeiem o
oxigênio para dentro e para fora, manter o coração batendo e transferindo todas
as moléculas de oxigênio para as células. Depois de anos fazendo esse resgate fica
tudo tão fácil. É tão rotineiro ver o declínio da consciência, seguido pelo declínio
da atividade respiratória para, então, aparecer como um herói. Passa a não ser mais
uma sensação de poder, passa a ser um trabalho diário.
Sou uma anestesiologista – praticante da arte e da ciência da anestesia. A palavra
significa literalmente “nenhuma sensação”. Em nosso léxico moderno, ela denota
uma perda temporária da capacidade de sentir, uma ausência de dor durante um
procedimento que, de outra forma, seria doloroso. É assim que defino meu trabalho:
a transformação de eventos dolorosos em procedimentos indolores; o comando e a
manipulação da mente humana para que ela desista de qualquer tentativa de controle
e do reflexo evolutivo de escapar do desmembramento e da violação.
A maioria dos pacientes chega à sala de cirurgia sem qualquer escolha: o ombro
que estirou na quadra de squash, a vesícula que se rendeu durante a digestão de um
prato de carneiro bem temperado, o incômodo do acúmulo de gordura no corpo
ou da idade que avança. Há ainda, claro, as mudanças repentinas e desafortunadas
da natureza, aquelas que selam o destino de alguns para que morram antes do
desabrochar da velhice com cânceres que se achegam em forma de tumores do
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tamanho de uma bola de beisebol enquanto pagamos nossas contas, aparamos
nossas roseiras e planejamos as festas infantis de nossos filhos. E, por fim, há a ação
silenciosa dos aneurismas da artéria aorta ou de veias coronárias e artérias carótidas
que golpeiam nossas humildes e tranquilas vidas enquanto discutimos com os filhos
adolescentes ou fazemos amor com nossos maridos e esposas. Esses eventos nos
levam até as portas das salas de emergência e nos colocam em macas com lençóis
brancos que se movem pelos corredores de luzes fluorescentes diretamente para
dentro das salas de cirurgia frias e sem janelas.
Hoje é um dia como qualquer outro para mim. Desligo meu despertador
antes das cinco e me levanto, tremendo de frio diante do aquecedor do banheiro,
enquanto aguardo a água do chuveiro ficar quente. Em algum lugar da cidade, meus
pacientes também se levantam, ansiosos com suas operações, preocupados com
as dores e doenças que só podem ser curadas pela faca, imaginando a inevitável
cicatriz, tentando antecipar a dor. Talvez até tentem imaginar o rosto do único
médico diretamente ligado ao procedimento que é um completo estranho e que
eles não conhecem. As pessoas têm a opção de selecionar seus clínicos de acordo
com critérios como o conforto e a segurança, e seus cirurgiões por referências e
reputação, mas os anestesiologistas, via de regra, são chamados para atender uma
sala de cirurgia, não um paciente. Os hospitais não seriam capazes de acomodar
acidentados de carro, cesáreas de emergência e feridos à bala num já lotado esquema
de operações sem uma equipe de anestesia flexível e rotativa.
Esse anonimato quase me fez desistir da escolha da especialidade quando estava
na escola de medicina. Queria me envolver com a vida das pessoas, não ser apenas
alguém que controla de forma transitória a dor. Detestava a ideia de receber de um
estranho o controle de seu corpo após uma troca introdutória de gentilezas. Porém,
durante a primeira semana no turno na anestesia, descobri que amava o trabalho –
sua precisão e foco, seu equilíbrio entre habilidade técnica e sensibilidade clínica;
sintonizando a interação entre o coração e os pulmões enquanto o cérebro descansa;
dosando os narcóticos e os bloqueios nervosos até o agradável ponto em que a dor
de um paciente de câncer é aliviada para que ele possa aproveitar o tempo que resta
com as pessoas que ama.
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Amo o curto espaço da entrevista pré-operatória durante o qual descubro todo
um cosmos do processo de cura. Tenho que apurar a percepção da trepidação, da
aquiescência inocente, da submissão ou do aprisionamento para buscar o toque ou
a frase exata que me transformará de uma estranha escolhida para uma tarefa em
uma guardiã. Não posso provar que entrar em uma sala de cirurgia acreditando que
tudo vai dar certo pode melhorar o resultado de uma operação, mas é aí que mora a
arte de meu trabalho.
Escorrego para dentro de um jeans usado e de um agasalho confortável, agradecida
de só precisar escolher a roupa para o percurso de casa até o hospital. O cheiro do
café me atrai para a cozinha, ainda escura como se fosse meia-noite. As tarefas do
dia começam a se embaralhar com os sonhos – a apresentação para as enfermeiras
sobre a utilização de peridurais em partos, que preciso fazer nas próximas semanas, o
relatório sobre relaxantes musculares que o comitê farmacêutico solicitou, a dúzia de
telefonemas que preciso dar e o fato de que deveria ter trocado o óleo do carro há uns
20 mil quilômetros.
O telefone toca exatamente quando ia fechar a tampa de minha garrafinha de
viagem, com um pé já para fora da porta. Apanho o gancho no último toque, depois
de me atirar sobre o balcão da cozinha e derramar café em meu braço e no vaso de
violeta mantido de forma negligente, já mais marrom do que verde, que acabou se
espalhando, completamente seco, por todo o chão.
“Tia Marie? É a Elsa.” Sua voz está abafada e percebo um soluço surdo preso
na garganta.
Olho para o relógio. “Oi, querida. O que foi? Sua voz parece triste.”
“Nada demais. Só precisava conversar.”
“São cinco e meia da manhã, querida.”
“Sete e meia. Aqui são sete e meia.”
“Certo.” Prendo o telefone no queixo e empurro com o pé a terra e as pétalas
murchas, para um vão embaixo do balcão. Se eu não sair de casa em dois minutos e
meio estarei atrasada. “Então, você acaba de acordar ou está indo para a cama?”
“Há, há. A aula começa em quarenta e cinco minutos.” Ela dá um suspiro
audível no bocal do telefone e já imagino a cena – ela deve estar agachada em cima de
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seus sapatos e sandálias, entre as camisetas empilhadas e os jeans, o fio do telefone
serpenteando por baixo da porta do closet. “Mamãe e eu tivemos uma briga ontem.
Ela telefonou?”
Jogo as chaves para dentro da bolsa e me apoio com os cotovelos sobre o balcão
da cozinha. “Não, mas eu trabalhei até tarde ontem. O que aconteceu?” Viro a
cafeteira para um ângulo em que os ponteiros vermelhos do relógio não fiquem me
encarando.
“Ela simplesmente não entende!” A raiva faz com que ela irrompa em soluços.
Elsa tem quinze anos e é a filha mais velha de minha única irmã, Lori. Quando
completou quatorze anos, fui subitamente promovida ao status de socorro telefônico;
sou a mulher sem filhos que tem todas as respostas para as questões que Elsa não
consegue perguntar à mãe. Embora me sinta honrada com o novo posto, desconfio
que minha sobrinha se volta para mim porque sabe que vou dar razão para as duas.
“Ela não entende o quê, docinho?”
“Não entende nada! Ela explodiu comigo porque minha tarefa de Moral e
Cívica está atrasada. Mas só está atrasada porque tive que praticar para o debate.”
“E desde quando você faz parte da equipe de debates?”
“Não são os debates da escola. É um novo clube. Queremos legalizar a
maconha.”
Ergo o corpo subitamente e conto até cinco antes de responder. “Elsa?”
“Oi?”
“Você me diria se estivesse fumando maconha?”
“Meu Deus, tia Marie. Odeio ficar doidona! Mas isso é, por assim dizer, um
assunto de direitos civis básicos!”
Dessa vez a contagem vai até dez e resolvo ignorar o deslize. “Bem, talvez você
tenha aí algo para ajudar em sua tarefa de Moral e Cívica, então.”
Elsa grita para minha irmã que vai descer quando tiver terminado de se vestir e
que ela pare de encher o saco. “O que você está vestindo?”, me pergunta, num novo
tom de voz – suas tristezas completamente esquecidas.
“O que estou vestindo?”, olho para baixo. Um suéter verde-exército de tricô,
jeans azuis e sapatos confortáveis. “Uma saia de cintura baixa de seda rosa-choque e
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um suéter creme de caxemira. E acabo de fazer a unha à francesinha com bolinhas.
Tudo rosa.”
Elsa cai na risada. “Está bem, tia, você está mentindo total.”
“Me pegou de novo! Se você me ajudar a lembrar, te envio meus jalecos. Aí você
pode customizá-los para mim, que tal? Meu chefe adoraria. Então, o que você está
vestindo?” A risada de Elsa quase me faz esquecer o horário. Oito minutos depois,
ela sai do closet e parte a caminho da escola. Se os sinaleiros trabalharem a meu
favor, vou conseguir chegar no horário.
O hospital First Lutheran foi construído nos anos 1930, um castelo com
fachadas art déco, uma fortaleza contra doenças. Trabalho aqui há sete anos – tempo
suficiente para ter uma boa vaga de garagem no subsolo, evitando o chuvisco gelado
de Seattle nesses primeiros dias de primavera. Troco a marcha e viro o ar quente
para meu rosto, aproveitando os últimos minutos de solidão.
Nesse horário, sou uma das poucas médicas no hospital. Mas os remanescentes
do turno da noite e o pessoal do novo turno já preenchem os corredores. Eles
tagarelam em filipino e em coreano e em urdu e em espanhol e em inglês – beneficiários
de um recrutamento internacional que todos os anos atrai os mais brilhantes
graduandos de classes estrangeiras para trabalhar nos hospitais americanos. É
necessária uma enorme quantidade de pessoas para atender um paciente desde o
momento em que ele entra no estacionamento até sua saída, quando desce de cadeira
de rodas pela rampa que vai levá-lo de volta à vida, com bandagens limpas, pílulas
para a dor e uma consulta de retorno marcada para dez dias. Todos os funcionários
se vestem igual para o trabalho: calça e camiseta de algodão azul com gorro para os
cabelos e protetores para os pés do mesmo tecido e da mesma cor, tudo planejado
para manter nossas bactérias pessoais longe das barrigas, peitos e membros abertos
de nossos pacientes.
Enquanto a maior parte da cidade ainda dorme, nós nos lançamos no grande
show da medicina, o circo de aventuras desafiadoras dentro do corpo humano.
Cabos elétricos se enrolam para ligar dispositivos de cauterização, sistemas de
monitoramento, máquinas de marca-passo, lasers, microscópios e unidades de
raios X. Caixas de aço cirúrgico são autoclavadas, e instrumentos são dispostos
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como talheres exóticos em cima de mesas móveis. O soro fisiológico é aquecido à
temperatura do corpo humano, pronto para ser usado nos ferimentos.
Bethany, a gerente de nossa sala de operações, organiza a confusão de cirurgias
– marcadas ou emergenciais –, de instrumentos, de câmeras, de fibras óticas, de
técnicos, de aparelhos de bombear, e também de temperamentos, como se tudo
fosse um organismo vivo. Ela conseguiu desenvolver um equilíbrio entre a adulação
e o autoritarismo que faz com que os cirurgiões, mesmo que de má vontade, sempre
cooperem. Bethany se senta em uma mesa alta atrás de um vidro e fica martelando as
unhas pintadas de roxo no teclado do computador como uma sacerdotisa poderosa
no comando do centro cirúrgico.
Arranho minhas unhas no vidro para irritá-la e ela me olha através de seus
óculos bifocais enfeitados com brilhos e presos ao pescoço por uma correntinha
turquesa cheia de frisos. “Oi, Bethany. Onde devo ir hoje?”
“Arranhe esse vidro mais uma vez e vou dizer ao Dr. Scoble que você está se
oferecendo voluntariamente para pegar o turno do feriado.”
“Já estou em três feriados este ano. Você vai ter que me ameaçar com algo mais
assustador.” Pego uma bala de canela da cestinha de papel posicionada perto do
vidro e ponho na boca. “Falando em turnos, tenho amigos vindo me visitar depois
da próxima semana. Você tem alguma ideia se vai estar muito agitado? É feriado,
então, alguns dos cirurgiões devem estar fora da cidade.”
Ela coloca vagarosamente a mão sobre o mouse, clicando em várias telas.
“Parece... três gerais e dois vasculares vão estar fora. Deve ficar tranquilo.” Então,
escorrega um papel em minha direção. “Escreva as datas aí embaixo. Vou tentar
colocar você em salas mais leves. Se você me trouxer pralinas.” Presenteei o pessoal
do centro cirúrgico com caixinhas de minhas pralinas favoritas do Texas no Natal
passado e agora Bethany está viciada.
“Uma caixa inteira. Como estão as coisas hoje?”
“Mal. Espero que tenha dormido bem. Cinquenta e oito casos agendados – três
corações – e já tenho mais seis casos para encaixar. Você devia ficar contente de não
ser a primeira da lista.”
“Sou a quarta. Alguma emergência?”
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“Uma. Hematoma subdural começando em doze minutos.”
Às vezes acho que os administradores hospitalares gostariam de nos colocar
nas salas de cirurgia operando vinte e quatro horas por dia; é um dos poucos
setores de um hospital que sempre gera dinheiro. Pelo menos fazemos um esforço
para acomodar o ritmo de sono nas escalas dentro do grupo de anestesia. Uma ou
duas vezes por semana sou a primeira da lista e tenho que ficar no hospital a noite
toda, atendendo qualquer operação que apareça. Um de meus parceiros fica como
segundo da lista e permanece no hospital até o final da tarde, depois fica disponível
para voltar caso haja necessidade. E a lista vai em frente a partir daí, os últimos da
fila sendo os que ficam menos tempo no trabalho. Todos os dias são regidos pelo
imperativo das cirurgias – tumores invadindo órgãos vitais, frágeis ossos idosos
quebrados, membros gangrenados que ameaçam septicemia, trompas de falópio e
intestinos obstruídos.
Bethany diz: “Você começa em cinco minutos com Stevenson e depois tem mais
oito cirurgias à tarde, a menos que precise trocar um dos encaixes. Hillary está com
oito até que você possa rendê-lo – ele trabalhou no plantão da noite. McLaughlin
está ocupado com um caso complicado na radiologia, então, não tenho ninguém
livre que possa te dar uma folga até meio-dia e meia. Desculpe. Se Janovich mantiver
sua agenda, Kuciano deve estar livre e poderá rendê-la para o almoço. Talvez.” Ela
programa o dia numa coreografia meticulosa dos pacientes de modo que o menor
número possível de horas extras tenham de ser pagas.
Olho para o imenso quadro do outro lado da mesa de Bethany. Lá está
disposta toda a lista de operações e salas de cirurgia, as operações agendadas estão
em caneta preta e as emergências em vermelho. Abaixo do número cinco, há uma
lista de três casos menores – uma mastectomia, uma hérnia ventral e a colocação
de um acesso venoso central – seguido de uma longa operação pediátrica. As três
primeiras anestesias devem ser relativamente simples e diretas, se os pacientes forem
saudáveis. Terei que falar com Don Stevenson, meu cirurgião, sobre a criança. No
First Lutheran, não cuidamos de crianças tão frequentemente quanto de adultos,
então, esses casos sempre parecem ser mais estressantes. Se Don conseguir terminar
suas operações razoavelmente perto da hora prevista, poderei chegar na sala oito
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perto das três da tarde, rendendo Joe Hillary para que ele possa ir para casa dormir.
Porém, já trabalhei com Don antes e conheço sua tendência a exagerar na dose.
Digo a Beth: “Melhor tentar outra pessoa para dar suporte ao Joe. Stevenson vai
se atrasar, o que deve empurrar esse último paciente para depois das três, imagino.
Quem está na Cirurgia Geral hoje?”
“Marky.”
“Ah, Deus. Marconi. Vamos todos ficar aqui até tarde.” Sean Marconi é famoso
por trabalhar noites inteiras. Mesmo sendo a quarta na lista, corro o risco de ter que
ficar até tarde.
Bethany pisca para mim por detrás de seus óculos. “Deus Marconi ou Deus
Deus?”
“E Marconi sabe a diferença?” Ela ri e acrescento: “Você nunca me ouviu dizer
isso, Bethany. Já temos deuses suficientes por aqui.”
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A sala 5 fica no final de um corredor com ramificações que levam às salas de
depósito de equipamentos. O tinir de metal e os barulhos de plástico que faço ao
caminhar ressoam pelas paredes a cada passo. Com um estetoscópio e algumas
chaves pendurados ao pescoço, meu pager e telefone celular presos no pulso e com os
bolsos cheios de canetas, frascos de medicamentos e seringas pareço um segurança
equipado para qualquer eventualidade. O dia estaria começando a clarear agora
mesmo, se eu pudesse vê-lo. Algumas vezes fico um tempo sem ver o nascer ou o pôr
do sol, alternando entre salas de cirurgia, corredores e uma cafeteria sem janelas.
Uma operação começou na sala 8 e Joe Hillary está debruçado sobre a pequena
mesa ligada à máquina de anestesia, os papéis iluminados por um feixe de luz e o resto
da sala completamente escura. Apanho uma máscara cirúrgica da prateleira que fica
acima da pia e a prendo sobre o nariz e a boca, abrindo em seguida as portas pesadas
de metal de forma que uma maca passaria tranquilamente por ali. O cirurgião olha
em minha direção e esboça um cumprimento, mas Joe não me vê até que estou quase
colada a ele. A paciente está dormindo, seus olhos cuidadosamente tapados para
prevenir riscos à córnea, um tubo plástico endotraqueal saindo de sua boca. O tubo
embaça e desembaça ritmicamente a cada ciclo do ventilador mecânico. À frente
do pano azul que nos separa do espaço do cirurgião, monitores mostram o interior
do abdômen, inflado até o tamanho de uma abóbora com dióxido de carbono para
que os órgãos possam ser vistos e dissecados. O pálido alaranjado, o forte roxo e o
leve amarelo dos tecidos, entrecruzados pela rede de veias vermelhas, se alteram na
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tela a cada movimento da câmera. O cirurgião corta a vesícula inchada, separando-a
do fígado e a pressão sanguínea se eleva. Joe, sentado perto da cabeça da paciente,
aumenta seu gás anestésico. A anestesia, como o ser humano em geral, não é uma
coisa estática. A sopa de gases e medicamentos necessários para cada paciente é
única e modificável no decurso da operação.
Chego perto de seu ouvido, para que nossa conversa não atrapalhe o cirurgião.
“Oi. Por que você está trabalhando a essa hora?”
“Você viu o quadro? A agenda estava muito apertada para encaixar a paciente
mais tarde.”
“Fielding tem duas craniotomias. Adoro esses casos. Devia pedir a Bethany
para me colocar na neuro com mais frequência.” O ventilador tamborila em ritmo
lento, alguns tempos abaixo das semibreves que marcam o pulso da paciente. “Está
gelado aqui. Quer que eu ajuste a temperatura?” Apanho um cobertor que está perto
de Joe e jogo sobre os ombros.
Ele balança a cabeça em negativa. “Me mantém acordado.” Joe está sentado
em um banquinho de forma que, apesar de ele ser alto, nossos rostos ficam mais ou
menos na mesma linha. Só consigo ver seus olhos, delineados pela máscara cirúrgica
e pelo capuz, vermelhos de fadiga. “Você dormiu?”
Ele nega. “O maldito pager tocava toda vez que punha a chave na fechadura da
sala de descanso.”
Massageio seu pescoço por um minuto. Joe gosta de trabalhar duro – trabalhar
duro e em condições duras. Ambos escolhemos o First Lutheran por sua reputação
de melhor hospital de Seattle. Os músculos do ombro e a espinha de Joe estão
enrijecidos.
“Por que você não vai pegar uma xícara de café?”, ofereço.
“Não se preocupe comigo. Você tem seus próprios pacientes para cuidar.”
“Vai logo”, cutuco sua costela e, quando mesmo assim ele não se mexe, faço
cócegas até que desista e se afaste. “Descanse um pouco. Meu primeiro paciente é
fácil.”
Joe finalmente se levanta, espreguiçando e retirando as luvas enquanto me passa
rapidamente o histórico de saúde da paciente e seu atual status em relação à anestesia.
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Preencho os poucos sinais vitais que as máquinas mediram automaticamente nos
últimos minutos e assino o relatório.
Em menos de dez minutos Joe está de volta, parecendo um pouco menos
cansado, um aroma de café e menta em seu hálito. Há gotas de água pendendo de
suas costeletas, sobrancelhas e pescoço, e a frente de sua camiseta está umedecida.
“Obrigado”, ele diz. “Se eu sair daqui antes do sol se pôr te devolvo o favor.”
“Deixe para a próxima semana. Gary e sua filha estão vindo me visitar e posso
precisar trocar um dia com você.”
Ele eleva as sobrancelhas. “Então, finalmente vou conhecer seu ex?” Gary e
eu dividimos o mesmo teto – de forma completamente platônica – com outras duas
mulheres quando eu estudava medicina e ele cursava um mestrado em administração
na Universidade de Houston. Ele ainda é um amigo querido. Joe se refere a ele como
meu marido por conta dessa época em que vivemos em comunidade.
Desfiro um jab em suas costelas e dou uma risada. A técnica que acompanha
o cirurgião nos olha de relance. Aceno timidamente, me volto para o outro lado e
abaixo o tom de voz. “Vamos nos encontrar no Wild Ginger uma noite. Mas não
faça essa piada do ex na frente da filha dele – a mãe da menina pode não achar tão
divertido. Mal posso acreditar que ele já é pai de uma criança de treze anos.”
“Ela parece com você?”, ele pergunta, ainda de forma jocosa.
“Sem piadas, Joe. Prometa, ou não vou apresentá-lo.” Pego minha caneta da
mesa e jogo o cobertor ao redor do pescoço dele. “Tenho que ir. Volto assim que
Stevenson terminar.”
Joe é meu melhor amigo no First Lutheran. Na verdade, ele é simplesmente meu
melhor amigo. Por uns poucos meses, há alguns anos, foi também meu namorado.
Não permiti que a relação fosse em frente. Desde a faculdade de medicina
construí uma rígida cortina de ferro entre meu trabalho e minha vida amorosa,
porque não desejava oferecer minha vida privada como diversão a portas fechadas
para meus colegas. Salas de cirurgia criam amizades profundas, mas também
podem se tornar covis para fofocas e terreno fácil para o relaxamento de fronteiras
pessoais. Possivelmente o que conspira para isso é o número de horas trabalhadas
em compartimentos semicerrados em meio a maravilhas tecnológicas e pessoas
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vaidosas que se aglomeram em torno dos pacientes como componentes de uma
máquina misteriosa que faz transplante de fígado e prótese de joelho e biópsias de
seios e reparação de estiramentos musculares. É como pertencer a uma sociedade
secreta na qual a possibilidade de falhar é abandonada assim que avançamos pela
porta e assumimos uma absoluta insolência que nos permite brincar de deuses
contra as doenças.
Comecei a repetir isso tudo quando percebi o quanto fiquei nervosa quando
ele sentou ao meu lado na sala de conferências, a estranha cautela de minha postura
e o tom de minha voz. Agora acho que os meses de enrolação que antecederam a
entrega foram a razão de termos uma amizade tão forte, como se o amor sexual
entre nós fosse uma ilha em meio a quatro anos de confidências mútuas e piadas
internas e perseverança compartilhada no trabalho. É quase como se essa ilha de
intimidade física tivesse nos ligado, igual aos pactos de sangue que eu fazia com
minhas amigas.
Anestesia é como aviação – contamos com uma rede de apoio e segurança
dobrada espalhada por toda a rota. Apenas o componente humano é que não vem com
um dispositivo que dispara luz vermelha em caso de emergência. Por volta de 6h15,
estou na sala 5 arrumando meu material e a máquina de anestesia – uma checagem
ritualística de aspiradores, bombas, tubos de pressurização, gases, monitores, luzes
de alerta e medicamentos de emergência. Os ensurdecedores toques dos bipes
parecem uma orquestra fora do tom.
Um carrinho vermelho com múltiplas gavetas trancadas à chave guarda meus
tubos de respiração, seringas, cateteres de sucção, laringoscópios para ver a estreita
passagem que leva das cavidades da boca e da garganta até os pulmões – toda a miríade
de equipamentos necessários para cuidar de meus pacientes com segurança durante o
“tempo sem tempo” que dura a anestesia. A gaveta de cima é onde ficam os remédios:
os que apagam a consciência e a memória, drogas que paralisam os músculos e que
restabelecem as forças. Tenho medicamentos que aumentam e diminuem o ritmo
cardíaco, manipulam a pressão sanguínea, deixam o sangue mais fino, amortecem a
pele, esvaziam o estômago, diminuem a salivação. No topo do carrinho há uma caixa
trancada onde ficam meus narcóticos – morfina, demerol, fentanil – drogas miraculosas
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que fazem com que as dores de uma cirurgia sejam suportáveis. Substâncias invisíveis,
transparentes como a água, parentes próximas do ópio. Injetadas na corrente
sanguínea, chegam ao cérebro e bloqueiam a fechadura molecular da porta da dor.
Separo e rotulo cada seringa transparente de medicamento e, então, posiciono-as em
meu carrinho, como colunas de soldados prontos para receber o comando, e tranco a
caixa novamente com uma chave que carrego em meu pescoço.
Mindy, a enfermeira da sala de cirurgia, e Alicia, a instrumentadora, chegam e
começam a arrumar suas coisas, separando a papelada, desenrolando os lençóis azuis
esterilizados sobre as mesas, ajustando luzes, espalhando os campos cirúrgicos. Nós
três já passamos incontáveis horas em salas de cirurgia gélidas conversando sobre
detalhes insignificantes de nossas vidas. Ambas estão no hospital há mais tempo
do que eu – tempo suficiente para conhecer todas as primeiras e segundas esposas,
assim como uma variedade sub-reptícia de amantes.
Alicia emigrou das Filipinas e valoriza sua nova identidade americana. Seus
olhos são margeados por delineador preto que desliza pelos cantos. A maioria das
mulheres que trabalha com cirurgia passa grande parte do tempo com a boca e nariz
cobertos por uma máscara, e os cabelos presos num gorro de proteção. Algumas
compensam o fato chamando atenção para os olhos, como fazem as dançarinas
escondidas em véus nos haréns. O cabelo de Alicia é vermelho vivo e a primeira
vez que a encontrei sem a proteção obrigatória da cabeça, não a reconheci. Ela é tão
miúda que tem de ficar em cima de um banquinho para enxergar o campo cirúrgico
e repassar os instrumentos.
“Então, hoje vai ser um bom dia, Alicia?”
“Claro, Marrrria!”, responde, empolgada. “Existe outro tipo de dia? Estou
planejando colocar uma gotinha de Valium no café da manhã de Stevenson.”
“Cuidado – a mulher dele pode gostar e você vai ser obrigada a manter um
fornecimento constante.”
“A agenda está boa. Apertada demais para que coloquem encaixes. Sentimos sua
falta no jogo de softbol no sábado. O pessoal da sala de emergências nos nocauteou.”
Ela coloca alguns clipes de metal em filas paralelas perfeitas, suas extremidades
marchando em uma linha precisa ao longo dos limites da mesa.
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Olho de relance da outra extremidade da maca, onde estou arrumando os
eletrodos de ECG, espalhados como uma aranha de cinco patas por baixo do
travesseiro. Gosto de ter tudo pronto, todos os mecanismos de meu ofício disfarçados
por baixo de superfícies macias antes que o paciente deite e durma. “Você não
sentiria minha falta. Quando estava na faculdade de medicina, eu era muito ruim.
Meus lançamentos são péssimos. Melhor me chamar para o futebol.”
“Ei, tenho que levar minha filha para colocar aparelho nos dentes hoje. Você
tem algum remédio para isso? Algum remédio para mim?”
“Há, há. Nada legalmente aceito. Minha irmã sempre dá tylenol para as crianças
antes de apertarem o aparelho.” Ajeito o cabelo para dentro do gorro e dou uma
última checada em tudo. “Stevenson pediu alguma coisa em especial para a cirurgia
pediátrica?” Até conhecer meus pacientes e ler os seus prontuários, não sei nada sobre
eles, exceto nomes e idades. Mas Stevenson não agendaria uma criança no First Lutheran
se o problema fosse muito grave – casos complicados são enviados para o Hospital das
Crianças. Algumas vezes, o pessoal de apoio do cirurgião é que me avisa se ele pediu
alguma posição ou equipamento fora do comum que altere meus planos na anestesia.
“O cisto? Sim. Ele quer operá-la de bruços. Ele comentou sobre isso ontem.
Acho que disse algo sobre ela ser meio retardada, ou algo do tipo.”
Paro o que estava fazendo e coloco as mãos na cintura, considerando os
diferentes caminhos para fazer a indução anestésica, um pouco irritada por Stevenson
não ter me dito nada antes. Com a correta preparação, fico sempre animada para
enfrentar casos como este – conseguindo acalmar o paciente já na minha entrevista
pré-operatória. Faço o papel de psiquiatra, assim como de artista da medicina, uma
hipnotizadora química que guia os pobres pacientes assustados até o reino seguro
e sem dor da verdade. É um mundo privado que construo junto com meu paciente,
um mundo ao qual o cirurgião nunca tem acesso, um pacto secreto que nunca consta
no registro do hospital ou nas guias de pagamento. Gosto de pensar que este é o
momento em que posso fazer uma grande diferença – injetando a primeira camada
de anestésico com palavras em vez de drogas.
“Tudo bem. Mas preciso de um tempinho extra, então, para que a sedação já
esteja fazendo efeito quando a trouxerem para cá.”
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Minha primeira paciente de hoje é uma senhora de quarenta e seis anos
que vai perder seu seio esquerdo para o câncer. Eu a cumprimento na sala pré-operatória, sorrindo e desviando sua atenção com questões rápidas, explicações
e garantias de que ela está no patamar de menor risco na classificação de quem vai
tomar anestesia – 1, em uma escala que vai até 5. Ela está sentada na cama, magra
e bronzeada, com batom rosa e os olhos maquiados com muito bom gosto (para
quem, fico imaginando). Isso empresta à manhã cores de normalidade, como se
ela estivesse indo para um clube em vez de ter que limpar um parasita invasivo de
seu corpo.
Tenho a sensação de já ter encontrado essa mulher antes, dezenas de vezes.
Ela é a voluntária do Grupo de Jovens, a anfitriã-padrão, a líder da fraternidade
universitária referendada pelo nome completo do marido e cujo próprio nome é
sempre prefixado por um Sra., educada o suficiente para ser erroneamente rotulada
de mimada. Ela é a mulher que nem pisca quando começo a injetar o anestésico, que
me faz perguntas sobre meu trabalho e minha família e rejeita qualquer piedade. Ela
vai vencer e tocar em frente.
Enquanto a paciente está enrolada confortavelmente na estreita mesa de
cirurgia, me posiciono perto de seu ouvido, no momento em que ela começa a
perder a consciência e sussurro, “Estou aqui. Vou tomar conta de tudo. Você vai
acordar bem e confortável. Vai se recuperar completamente.” Um leve acelerar no
ritmo cardíaco é o único sinal de que ela sente medo.
A cirurgia é tranquila. O ritmo compassado do pulso da paciente no monitor
garante que ela está bem e que as células vermelhas estão suficientemente saturadas
de oxigênio. As leves oscilações de pressão sanguínea e do ritmo cardíaco guiam
minha mistura de gases anestésicos, narcóticos e fluidos. Há uma comunicação sem
palavras entre minha paciente e eu. Permaneço como uma sentinela protegendo-a
da invasão cirúrgica.
Stevenson está de bom humor nesta manhã, graças a Deus. Seu filho acaba de
ser escolhido como titular de uma posição importante no time de futebol americano,
então, há chances de a universidade cobrir os custos de seu estudo. Stevenson brinca
com Alicia sobre a possibilidade de ela sair com o garoto e sobre as “coisas” que ela
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poderia lhe ensinar. Quando os nódulos linfáticos da paciente se mostram livres
de câncer, o humor de todos melhora e Stevenson pede que alguém coloque uma
música – ele gosta de suturar a pele ao som de Led Zeppelin.
Posso praticamente adivinhar se uma cirurgia foi bem-sucedida só pelo
volume da música e da conversa. As pessoas de fora muitas vezes se chocam
com a irreverência de ouvirmos uma banda de rock enquanto nossas luvas de
látex costuram tecidos em carne viva. Mas garanto que isso é um bom sinal.
É o sinal de que o cirurgião está em território conhecido, tão à vontade com o
procedimento que suas mãos dançam familiarmente. É como o som dos aparelhos
de controle de oxigênio e dos monitores cardíacos para o anestesiologista.
É por meio deles que sabemos, ou intuímos, exatamente o momento em que é
preciso ministrar um toque extra de narcóticos ou aumentar um pouco os gases e
químicos para manter o paciente dormindo, inconsciente e sem sentidos, até que
o último curativo seja feito, o lençol seja puxado até a altura do peito e alguém
diga: “Acorde, acorde, sua cirurgia terminou e foi tudo bem”. Aperfeiçoamos e
simplificamos os procedimentos até que aquele anfiteatro dos primórdios, com
estudantes de medicina engravatados, sem luvas, anestesiando o paciente com um
lenço embebido em clorofórmio, virou apenas a primeira etapa de uma linha de
montagem.
Enquanto empurro a maca de minha paciente em direção à sala de recuperação,
ela sorri, seu câncer completamente esquecido em meio à miríade de drogas
ministradas. “Parece que deu tudo certo”, digo, passando a mão em seus cabelos
e entregando o relatório para Júlia, a enfermeira que a atenderá agora. “O Dr.
Stevenson virá conversar com a senhora em alguns minutos”.
Ela coloca a mão no rosto; um gesto muito comum de quem volta da anestesia.
Por causa desse gesto passei a acreditar que temos que fazer uma reconexão tátil com
nossos lábios, olhos e nariz para acordar de fato. “Acabou? A cirurgia acabou?”
“Já acabou, querida”, diz Júlia. “Você está sentindo alguma dor?”. Ela nega
com a cabeça e se ajeita novamente no travesseiro. Julia se dirige a mim. “Minha
sobrinha virá no próximo mês fazer uma cirurgia para reparar um tendão rasgado
no ombro com o Nuezmann. Você poderia atendê-la?”
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“Com o maior prazer. Fale com ela sobre o bloqueio interescalênico do nervo.
Muitos pacientes com problemas semelhantes se dispõem a fazer o procedimento
porque dessa forma não precisam de medicamentos até o dia seguinte.”
A sala de recuperação está ficando cheia, uma dúzia de estranhos se amontoando
nas estações de monitoramento, alinhados na parede como soldados feridos, um
monte de cateteres, gazes e bacias do Emesis por todo lado. A privacidade do paciente
é secundária em relação à importância de manter os monitores visíveis em caso de o
alarme de emergência soar ou de haver uma obstrução de vias respiratórias. Puxo um
maço de folhas de trás do prontuário de minha paciente e começo a preencher tudo
em três vias, de recibos de pagamento até uma ficha sobre a anestesia. O original
ficará no arquivo permanente da paciente para documentar meu trabalho, enquanto
as cópias serão distribuídas para planos de saúde, fornecedores do hospital, para a
farmácia e para o escritório de anestesia – onde minha atividade profissional será
traduzida para códigos e guias. Uma das enfermeiras coloca jacintos recém-colhidos
num plástico vazio e eu me inclino por sobre a mesa para sentir o perfume. Isso pode
ser o mais perto do mundo lá de fora que chegarei hoje.
Will Hanover, colega veterano do meu grupo, esbarra em mim enquanto corre de
um paciente em recuperação para a próxima cirurgia. “Ei!” Ele me segura passando
um braço ao redor dos meus ombros e tira rapidamente a máscara cirúrgica, que fica
balançando em seu queixo rotundo. “Bethany deve mandar mais um paciente para
sua sala essa tarde. Como está sua agenda até agora?”
Olho para meu relógio. “Trinta minutos atrasada. Alguém pode render o
Joe? Ele passou a noite toda acordado.” O First Lutheran contratou quatro novos
cirurgiões no ano passado, mas não recrutou novos anestesiologistas. Will é o
responsável por checar nossos horários e gasta horas tentando encaixar todos os
pacientes.
“Ninguém está livre. Hoje vai ser o terceiro dia seguido que ninguém da equipe
sai do centro cirúrgico antes das sete. Devíamos arrancar Phil de suas reuniões e
colocá-lo novamente no centro cirúrgico. Aí ele contrataria alguém.” Will levanta as
calças do uniforme até seu estômago bem acolchoado e aperta o cordão da cintura.
O gesto parece ser exatamente o que ele gostaria de estar fazendo no pescoço de Phil
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agora. Phil é o chefe do departamento de anestesia e um membro da diretoria do
hospital. Nossa equipe se pergunta frequentemente se isso faz dele nosso advogado
ou carrasco, e a resposta depende do quão fatigados estamos. Ele tem de se manter
num equilíbrio frágil – sendo um “deles” e um de nós.
“Ele não tinha feito uma oferta para aquela mulher de Nova York?”
“Fez. Assim como outros três hospitais com melhores benefícios e um salário
maior. Vou dar a ele um cateter de Foley como presente de Natal – para ver se ele
gosta da ideia de trabalhar treze horas sem uma maldita pausa para ir ao banheiro.”
Will lança perdigotos em minha face enquanto discursa e sinto um impulso de
consolá-lo – mais por estar preocupada com sua pressão do que por acreditar que ele
tenha algum poder contra o orçamento apertado do hospital.
A segunda cirurgia demora mais do que o previsto e estou uma hora e meia
atrasada quando chego para conhecer meu terceiro paciente. Ele é um executivo do
Starbucks de sessenta e três anos com um linfoma recém-diagnosticado, e Stevenson
está colocando um cateter na veia cava para que o paciente possa ser tratado sem
a abrasadora infusão de drogas quimioterápicas, normalmente ministradas em
veias finas dos braços e das mãos. Quando entro na sala pré-operatória, ele me
parece tranquilo e plácido, dando respostas curtas para minhas perguntas. Injeto
um miligrama de sedação e sua máscara se derrete em um pedido de consolo e
esperança, e em uma longa história sobre sua mais nova neta. Esses minutos extras
deixam Stevenson ansioso, aguardando que eu envie o paciente à sala de cirurgia.
Stevenson está ficando irritável e desconta em uma técnica em radiologia. Depois
murmura desculpas por baixo da máscara, mais para ele mesmo do que para a jovem
intimidada. Sua impaciência permeia a sala e mesmo Mindy e Alicia desistem de
tentar fazê-lo ficar de bom humor.
Logo que o executivo dorme, começo a preparar os medicamentos e
equipamentos para a paciente pediátrica, que é o próximo caso. Uma criança
necessita de uma dose mais precisa de drogas do que um adulto; a margem de erro
é menor, então, diluo as drogas em volumes maiores e concentrações menores. Os
tubos pediátricos, instrumentos e máscaras de oxigênio são menores, o que me
lembra as casinhas de boneca em que brincava, com pequenas mesas, armários de
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cozinha, panelas e louças minúsculas. A porta se abre atrás de mim e Joe entra na
sala. Ele se inclina atrás de meu carrinho de anestesia de braços cruzados, suas
veias trançadas e azuis se espalhando por suas mãos ruivas e sardentas. Percebo que
Alicia faz uma pausa em sua concentração para acompanhá-lo – ele costuma ter esse
efeito nas mulheres.
“Oi. Minha pancreatomia foi cancelada, então, terminei por hoje. Precisa de
uma pausa rápida antes de eu ir embora? O café do lounge foi passado há apenas três
horas.” Joe tem um jeito de fazer tudo soar espirituoso. Quem não o conhece bem
acaba perdendo seu lado sóbrio. Ele tem uma leve ambliopia e, quando está muito
cansado, percebo que seu olho direito fica parado no centro, como se ele estivesse
vendo o mundo de dois pontos de vista. Não sei como isso dá ainda mais charme a
Joe – um detalhe de vulnerabilidade que as mulheres adoram.
“Estou bem. O Brad deve me cobrir para a pausa do almoço. Vá dormir – parece
que você não sai mais do hospital ultimamente.”
“O construtor entregou o orçamento para minha cozinha – pedi a Will que me
desse os turnos extras. Não há muito porque correr para casa.”
“Onde está Claire? Reclamando novamente de sua indiferença doméstica?”
“Como todas as minhas mulheres.” Ele pisca. “Não me olhe com essa cara.”
“Não estou olhando com cara nenhuma! Juro.” E coloco a mão sobre minha
máscara para esconder o sorriso.
“Você está pensando nisso, então.”
“Você precisa de um cachorro, Joe. Ele será leal e quentinho para dormir ao seu
lado todas as noites.”
Ele ri e, embaixo das fortes luzes brancas da sala de operações, as rugas ao
redor de seus olhos se rasgam até perto da linha do cabelo. Alguns homens
realmente ficam mais bonitos com a idade. Se bem que, no caso de Joe, percebo um
incômodo por estar ficando mais velho. As pessoas às vezes fazem piadas por ele
ser muito espontâneo, mesmo na sala de cirurgia, mas Joe é um médico dedicado.
E essa é uma das razões porque gosto tanto dele. Ele conseguiu entrar na faculdade
de medicina há vinte anos trabalhando em um laboratório de pesquisa à noite, e
continua incansável. Um de seus novos caprichos é a bicicleta italiana de corrida
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recém-comprada. Brinquei que queria ver quanto ela custaria por quilômetro
rodado. Na semana seguinte, ele foi de bicicleta do centro de Seattle até Paradise
Lodge no Parque Nacional de Mount Ranier e voltou.
Stevenson me chama para que eu ajude a virar o paciente – ele está tendo
dificuldades em colocar o cateter na veia – e preciso me abaixar para agarrar os
lençóis abaixo dos ombros e da cabeça.
Joe me entrega uma toalha limpa e sussurra, “Por que ele está tão agitado?”
“Estamos atrasados. Que grande surpresa. Não se preocupe, logo vamos
conseguir deixá-lo mais relaxado. Você poderia arrumar o resto dos medicamentos
para mim?” Tiro a chave da caixa de narcóticos do pescoço e entrego a ele. “É uma
criança, então, quero o fentanil a cinco mg/ml.”
“O que mais?” Ouço Joe abrindo os plásticos de seringas e agulhas e tirando a
embalagem dos vidros.
“Suxametônio a dois por ml, atropina a cem.”
“Quanto a criança pesa?”
“Não sei ainda. Não é um bebê – tem, o quê, oito anos?”
Levanto-me por trás da cortina de lençóis, meu cabelo caindo para fora do
gorro e meu estetoscópio pendurado entre uma de minhas orelhas e a camiseta do
uniforme. Joe está rotulando a última seringa. Sua testa brilha de suor e ele puxa as
mangas do uniforme para a altura dos cotovelos. Embaixo de sua máscara é possível
ver sua barba ruiva por fazer.
“Obrigada. Vá para casa”, digo.
Ele coloca a chave novamente em meu pescoço e ajeita meu cabelo para dentro
da máscara. “Me ligue no final de semana se quiser sair para jantar. Se o tempo
estiver bom, podemos sair e voar até Friday Harbor.”
“Hum. Não podemos fazer algo no nível do mar?” Joe é piloto, provavelmente
bem competente – ele comprou seu próprio avião no ano passado. O problema é
que tenho um embaraçoso medo de altura e ele só conseguiu me convencer a voar
em sua companhia uma vez. Meu estômago estava revirado quando, num silêncio
alarmante, os pneus tocaram e friccionaram a pista. Joe olhou para mim e procurou
um saquinho de emergência. Depois, caiu na risada ao perceber que era apenas uma
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questão de nervos – seus assentos de veludo estavam a salvo de uma possível golfada.
Sobrevoar as ilhas de Puget Sound num dia sem nuvens renderia uma bela vista se
eu fosse capaz de relaxar o suficiente para manter os olhos abertos. Joe tentou me
convencer a dar uma de copiloto, até que finalmente percebeu que meu terror não
ia dar uma chance. “Isso desafia a lógica. Você trabalha numa área que depende da
ciência e seus mecanismos e não tem confiança nos princípios básicos”, ele disse.
“Ah, eu confio na física”, gritei mais alto do que o barulho do motor. “Só não
confio nos humanos que construíram e que pilotam aviões.”
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