GT 6 – Alternativas agrícolas: discursos de justificação e de contraposição ao produtivismo Desconstruindo o ‘convencional’: o conhecimento agroecológico e a emergência de redes de cooperação no Litoral Norte do Rio Grande do Sul Monique Medeiros1 Flávia Charão Marques2 Ademir Antonio Cazella3 1 Mestre em Desenvolvimento Rural e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Agroecossistemas da Universidade Federal de Santa Catarina (PGA/UFSC). [email protected] 2 Doutora em Desenvolvimento Rural. Professora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS). [email protected] 3 Doutor em Ciência do Homem e da Sociedade. Professor do Programa de PósGraduação em Agroecossistemas, Universidade Federal De Santa Catarina (PGA/UFSC). [email protected] Resumo No Litoral Norte do Rio Grande do Sul é possível analisar transformações sociotécnicas que vem desencadeando uma nova dinâmica de desenvolvimento rural, que busca desconstruir o ‘convencional’ na medida em que inter-relaciona agricultores e mediadores sociais na construção de redes de cooperação. Tais transformações levam a crer que os vínculos estabelecidos em formas de redes de cooperação vão além dos aspectos sociais e técnicos, abrangendo também aspectos econômicos, ambientais e cognitivos. Palavras-chaves: agricultura familiar; ação social; transformações sociotécnicas. Avenida Presidente Vargas, 417/9º. andar, sala 909 CEP 20071-003 - Rio de Janeiro – RJ CNPJ: 10.269.919/0001-39 Email: [email protected] Introdução O avanço do processo de modernização da agricultura brasileira, associado à chamada “Revolução Verde1”, está relacionado às desigualdades sociais e regionais. Por um lado, o pacote tecnológico agrícola estabelecido foi formulado em centros de pesquisa onde as prioridades eram definidas sob a influência de interesses das corporações e do setor agroindustrial, privilegiando métodos e critérios de validação que se restringiam a situações de laboratório. Por outro lado, a chegada da modernização ao campo é vivenciada diferentemente pelos diversos grupos sociais ali presentes. Os conhecimentos locais, que pareciam fadados ao desaparecimento em função da homogeneização técnica proposta pelo processo modernizante e pelos processos unidirecionais de extensão rural adotados, transformam-se, acomodam-se e geram diversidades importantes. Como contraponto à difusão de conhecimento de ‘cima para baixo’, nas últimas décadas, tem proliferado e ganhado espaço a ideia da valorização dos conhecimentos locais como parte das estratégias para o desenvolvimento rural. Pesquisas e ações de diversas organizações ligadas ao desenvolvimento rural (organizações governamentais e não governamentais, agências nacionais e internacionais de fomento ou de financiamento) vêm enfatizando, pouco a pouco, os resultados da interação do conhecimento local com os conhecimentos advindos da tecnologia e da ciência, fato este que possibilita um novo olhar sobre o espaço rural, que abrange o surgimento de adaptações e rearranjos em relações sociais e de trabalho, de novas formações de sentido e de reinvenções de práticas e técnicas, especialmente agrícolas. Considerando-se que, durante significativo tempo, a lógica da intensificação da produtividade a partir de uso indiscriminado dos recursos naturais e de insumos químicos de síntese, a exemplo dos agrotóxicos, foi vista como referência única daquilo que era valorado como certo, ou seja, como ‘convencional’. processos de mudanças tecnológicas (como adaptações em sistemas produtivos que busquem diminuir impactos ambientais) tornam-se complexos. A reivindicação por transformações no modo de enxergar e de praticar a agricultura promove influências sobre as diversas formas de intervenção realizadas no rural e são desempenhadas por diversos atores que interagem com os agricultores, sejam eles do poder público, de organizações não governamentais, de lideranças comunitárias, das instituições de pesquisa, entre outros. No Litoral Norte do Rio Grande do Sul, algumas transformações sociotécnicas nessa direção estão desencadeando uma nova dinâmica de desenvolvimento rural, que busca desconstruir o ‘convencional’ na medida em que inter-relaciona diversos atores sociais na construção de redes de cooperação. Essas redes, construídas por agricultores familiares aliados a distintos mediadores sociais, são marcadas pela aprendizagem coletiva, otimização no uso de recursos sociais e naturais, ampliação das relações sociais e da capacidade organizativa. As transformações ocorridas nessa região levam a crer que os vínculos estabelecidos em formas de redes de cooperação vão além dos aspectos sociais e técnicos e abrangem também os aspectos econômicos, ambientais e cognitivos. Uma evidência disso é que essas redes de cooperação têm conduzido mudanças inclusive nas formas com que o agricultor se relaciona com a natureza, atribuindo mais valor aos conhecimentos locais, formulando alternativas produtivas sustentáveis e a construção de novos mercados por meio de circuitos curtos de comercialização com vínculos diretos com consumidores. Dessa forma, considerando que os agricultores não são simplesmente receptores passivos de iniciativas de planejamento e de intervenção social, econômica e tecnológica, mas que eles criativamente dão forma a novas possibilidades para o desenvolvimento rural, este artigo busca compreender como as redes de cooperação, construídas por agricultores familiares 1 A Revolução Verde consistiu num conjunto de técnicas e práticas disseminadas a partir da década de 1950, que permitiu um aumento na produção e produtividade agrícola com base no uso crescente de insumos modernos: variedades vegetais de alta produtividade, fertilizantes químicos, agrotóxicos, além da intensificação da mecanização. Avenida Presidente Vargas, 417/9º. andar, sala 909 CEP 20071-003 - Rio de Janeiro – RJ CNPJ: 10.269.919/0001-39 Email: [email protected] e diversificados mediadores sociais têm influenciado a transformação da dinâmica de desenvolvimento rural, a qual vem sendo guiada por princípios agroecológicos, em alguns municípios do Litoral Norte do Rio Grande do Sul. As reflexões que direcionam este texto basearam-se em informações obtidas pelos autores por meio de ferramentas metodológicas essencialmente qualitativas como a observação, entrevistas abertas e semi-estruturadas, fotografias e pesquisa documental. Parte das informações e observações foram realizadas por meio de visitas técnicas, reuniões e oficinas com agricultores familiares e distintos grupos de atores sociais envolvidos com a agricultura familiar de base ecológica na região de estudo. 2 O artigo está dividido em quatro seções, sendo a primeira dedicada a uma breve contextualização do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, com foco nas mudanças ocorridas na região com a chegada da modernização, principalmente com relação à agricultura familiar local. Na segunda é discutida a importância do compartilhamento de conhecimentos e experiências, para o desenvolvimento de ações inovadoras, como o desenvolvimento da agricultura de base ecológica por um grupo de agricultores familiares no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Na terceira são analisadas as relações de reciprocidade e o compartilhamento de conhecimentos nas redes de cooperação construídas por diferentes atores sociais nessa região. Na quarta e última seção são apresentados alguns pontos estratégicos na configuração dessas redes de cooperação que indicam uma alteração nas trajetórias de desenvolvimento rural na região. O Litoral Norte do Rio Grande do Sul: qual agricultura familiar? A região do Litoral Norte do estado do Rio Grande do Sul é composta por 20 municípios com área de 5.136.723 km² e população de 284.046 habitantes (IBGE, 2010). A população atual é resultante, inicialmente, do povoamento indígena, da colonização açoriana, portuguesa e africana, e, posteriormente, de etnias como alemães, italianos, poloneses e japoneses. A partir do século XX, diferentes fatores como a potencialidade turística e boa produtividade agropecuária deram impulso ao crescimento econômico e geográfico da região. Usufruindo das diferenças de relevo e microclima, os agricultores realizaram na meia encosta, após o corte e queima da mata, o plantio de banana e, nos vales, os cultivos de fumo e de arroz. Os principais produtos da fase colonial da região foram a cachaça, a rapadura, a farinha de mandioca, os dormentes para construção de ferrovias, o feijão e o milho. No final da década de 1950, com a construção da rodovia BR-101, e consequente retirada dos excedentes agrícolas do litoral via terrestre, substituindo a via lacustre, a agilidade de deslocamento de pessoas e produtos transforma a dinâmica da região. Dessa maneira, o Litoral Norte passou por um processo de expansão de suas atividades econômicas, mas como consequência desse panorama, sofreu também por uma intensificação de desmatamento, tendo em vista o tipo de agricultura praticada pelos agricultores pautada na queimada e no cultivo fundamentalmente de milho e feijão, e cana-de-açúcar e mandioca. Nesse sentido, essa região viu, já no final dos anos 1950, acontecerem certos fatos que auxiliaram a modificar por completo o padrão produtivo existente e, como consequência, a vida dos seus habitantes, em especial das famílias de agricultores. A introdução do chamado pacote de modernização da agricultura (mecanização, quimificação, adubação, sementes, irrigação etc.) teve início com a introdução e adoção de alguns cultivos específicos, até então praticamente inexistentes, como o fumo, as olerícolas e a banana tipo prata (COTRIM et al., 2007). Com isso, uma parcela formada por uma diversidade de agricultores familiares, os quais possuem diminutas áreas de terra, passa a ter maiores 2 Também foi possível acompanhar esses atores sociais em atividades cotidianas, como o trabalho nas feiras livres, os eventos regionais da agricultura familiar de base ecológica, os encontros e reuniões entre agricultores, as atividades nas lavouras, na produção agroindustrial, e em sua relação com os mediadores sociais atuantes na região. Tais atividades foram desenvolvidas pela primeira autora, entre agosto de 2011 e agosto de 2013, na qualidade de extensionista rural. Esta atuação foi realizada junto à Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural/Associação Sulina de Crédito e Assistência Rural (EMATER/ASCAR – RS). Avenida Presidente Vargas, 417/9º. andar, sala 909 CEP 20071-003 - Rio de Janeiro – RJ CNPJ: 10.269.919/0001-39 Email: [email protected] dificuldades para a sua reprodução social nesse espaço devido às novas relações sociais de trabalho e de produção. Atualmente, verifica-se que há uma forte especialização da agricultura, principalmente nas áreas de várzeas dos vales e nas planícies, desenvolvida por alguns agricultores com maior disponibilidade de áreas planas e, consequentemente, favorecidos por um maior grau de acumulação de capital. Como apenas uma pequena parcela de agricultores possui grande quantidade de áreas planas disponíveis nas suas unidades produtivas, a maioria dos agricultores continua a plantar nas encostas, porém com rendimentos e tecnologias bem inferiores, se comparados às áreas de várzea (COTRIM et al., 2007). Esse processo excluiu boa parte da população local, formada por agricultores familiares e comunidades locais (indígenas e afrodescendentes), que abandonou a região em busca de oportunidades de trabalho nas cidades. Devido à grande parte da região ser ocupada por florestas de Mata Atlântica, no início da década de 1990, quando foi crescente a implantação das leis de preservação ambiental e a intensificação de seu controle pelos órgãos de fiscalização, aqueles agricultores que continuaram em suas localidades passaram a enfrentar dificuldades ao terem suas práticas agropecuárias restringidas pela legislação ambiental (COTRIM et al., 2007; LUZ, 2012). Em contrapartida, é exatamente dentro dessa conjuntura que se começa a evidenciar um rico mosaico cultural e produtivo, no qual prevalece uma agricultura familiar relacionada intrinsecamente a uma dinâmica em que uma ordem moral torna indissociável a terra, a família, e o trabalho. Nessa dinâmica se compreende o papel preponderante da família como estrutura fundamental de organização da reprodução social através da formulação de estratégia (conscientes ou não) familiares e individuais que remetem diretamente à transmissão do patrimônio material e cultural (a herança) e à transmissão da exploração agrícola (a sucessão) (CARNEIRO, 1999). Guiadas por essa lógica da agricultura familiar, as famílias dos municípios de Itati, Terra de Areia, Três Forquilhas, Maquiné, Dom Pedro de Alcântara e Osório, abrangidas no recorte empírico deste trabalho, caracterizam-se pela produção de alimentos em sistemas diversificados, inclusive de base ecológica, e movidos pelo desejo de continuar produzindo no meio rural, respeitando as restrições da legislação ambiental vigente. Transpondo fronteiras: indo além da ação individual A inclusão de novos domínios e atividades associadas à unidade de produção agrícola, como a transformação e comercialização de alimentos, as medidas e estratégias relacionadas à proteção ambiental, entre outras, implicam em transposição de fronteiras. No contexto vinculado ao desenvolvimento rural, pode-se comparar a transposição de fronteiras a uma ‘imersão no desconhecido’. Novas experiências são traduzidas em novos conhecimentos que, por sua vez, inspiram novas práticas. Nessa dinâmica, novas técnicas e novas redes se fazem necessárias e, para isso, novos conhecimentos são requeridos. Isso se aplica não só à criação de novas atividades e novas redes que agregam renda e oportunidades de emprego no rural, como também à construção de novas respostas à evolução das necessidades e expectativas da sociedade, em geral na reconfiguração dos recursos rurais (OOSTINDIE e BROEKHUIZEN, 2008). Com base na reconfiguração desses recursos, processos de desenvolvimento rural constituídos por aprendizagem e partilha de conhecimentos fazem emergir ações inovadoras, que retroalimentam o processo, podendo vir a resultar em outras. Essas ações inovadoras carregam em si conhecimento e são constituídas em dinâmicas de aprendizagem. Para que existam relações permanentes que contribuam para o fluxo de conhecimentos é importante que os agricultores estendam suas ações e relações sociais e técnicas para fora da unidade de produção, fazendo assim com que as fronteiras sejam transpostas. Essas formas de transposição de fronteiras são constantemente criadas, recriadas e adaptadas no decorrer das vidas desses agricultores. Avenida Presidente Vargas, 417/9º. andar, sala 909 CEP 20071-003 - Rio de Janeiro – RJ CNPJ: 10.269.919/0001-39 Email: [email protected] No Litoral Norte do Rio Grande do Sul, uma transposição de fronteira importante realizada por um grupo de agricultores pode ser visualizada na transição da prática de agricultura convencional para a agricultura de base ecológica. O início dos trabalhos com a agricultura ecológica nos municípios de Três Forquilhas, Terra de Areia e Itati envolveu diversas realidades e distintos atores sociais. Nas palavras de um dos primeiros agricultores familiares a se interessar pela agricultura de base ecológica no município de Três Forquilhas percebe-se a importância das conexões entre diferentes atores sociais na realização de uma prática inovadora. Quando a gente iniciou na agricultura ecológica, em 1995, a gente não conhecia as técnicas, era tudo novidade. A EMATER e o Centro Ecológico foram importantes na nossa caminhada. O primeiro curso que a gente fez sobre agroecologia foi organizado pelo Centro Ecológico e quem nos convidou pra ir foi o técnico da EMATER. A transição para a agricultura de base ecológica é uma construção social (ou eco-social) que emerge através das interações que se estabelecem entre atores, recursos, atividades e lugares nos processos de desenvolvimento rural (SCHMITT, 2009). Neste caso em específico, essas interações são evidentes quando o agricultor revela a importância das conexões dos agricultores com o Centro Ecológico, uma Organização Não Governamental (ONG) com sede no município de Dom Pedro de Alcântara, e a EMATER, uma instituição que trabalha com assistência técnica e extensão rural, no acesso a conhecimentos novos. A partir desse primeiro contato com a agroecologia, esses agricultores conheceram outros espaços de troca de experiências e passam a mobilizar novos incentivos por distintos mediadores para iniciar a prática da agricultura de base ecológica. De acordo com Sabourin (2009), o início da prática de uma agricultura de base ecológica requer, em algum momento, uma motivação particular. O interesse em promover uma transição pode ser originado de diversas formas, desde a simples constatação de que um vizinho está desempenhando essa atividade e obtendo êxito, até o resgate de ideais transmitidos por ancestrais. Porém, a existência de uma motivação particular ou até mesmo de uma tomada de consciência de um interesse comum entre vários indivíduos não é suficiente para o desenvolvimento de uma ação coletiva. Muitas vezes, esta tem de ser ativada, incentivada, acompanhada ou sustentada por algum estímulo externo, cuja eficácia é maior na medida em que se vale dos canais das relações sociais pré-existentes: parentesco, compadrio, redes de diálogo ou de comunicação interpessoais. Isso se confirma ao compreendermos que os cursos, palestras, seminários e dias de campo, ministrados por diferentes instituições voltadas à agroecologia, possibilitaram e ainda possibilitam às famílias uma oportunidade de ter contato com outro modo de trabalhar com a agricultura, um modo que segundo um dos agricultores entrevistados é percebido como o ideal sob diversos aspectos. É o mais sustentável pra se praticar a agricultura porque tudo o que ajeitamos é para o crescimento de um todo. A agricultura convencional é diferente... Quanto mais adubo e agrotóxicos usamos, mais despesas, menos colheita, mais contaminação do solo, menos diversificação, menos saúde, menos lucro temos. Na agricultura ecológica todos os insumos aplicados são investimentos, enquanto que na agricultura convencional são despesas. A agricultura de base ecológica possui, na agricultura familiar, um espaço diferenciado de atuação, sustentando-se nos potenciais endógenos de cada localidade para a construção de formas de agricultura compatíveis com as realidades ecossistêmicas, econômicas e culturais específicas. Dessa forma contribui para processos de desenvolvimento rural a partir de uma Avenida Presidente Vargas, 417/9º. andar, sala 909 CEP 20071-003 - Rio de Janeiro – RJ CNPJ: 10.269.919/0001-39 Email: [email protected] ótica localizada, isto é, que reconhece e valoriza a identidade, a cultura, a tradição, a biodiversidade e a paisagem como ativos importantes na interação da sociedade com a natureza. Após modificar suas técnicas e se aprofundar na agricultura de base ecológica, os agricultores obtiveram resultados significativos com sua produção. No caso específico de um dos agricultores entrevistados, em sua unidade de produção ecológica de aproximadamente três hectares, a colheita anual de citros ultrapassou trinta toneladas de frutos, ou seja, uma produtividade de aproximadamente dez toneladas de frutos, contra a produtividade média da região de quatorze toneladas cultivados no sistema ‘convencional’. Obter produtividade inferior, porém, utilizando a mão de obra familiar, insumos gerados na própria unidade produtiva e garantindo a saúde não somente da família produtora, como também do ambiente e dos consumidores, motivou não somente esse agricultor como também os que vinham iniciando os trabalhos na agricultura de base ecológica a buscarem mais informações e partilhar as que estavam adquirindo. Como esses espaços de trocas de experiência, cursos e palestras que frequentavam chamavam a atenção de outros agricultores da região, eles conheceram outras famílias dos municípios vizinhos de Itati, Terra de Areia, Osório e Maquiné, que também tinham como objetivo dar novo sentido a realizações de técnicas e práticas utilizadas na agricultura. Essas famílias desses cinco municípios, pouco a pouco, construíram laços de confiança e em meados de 2010, seis delas, assistidas por técnicos dos escritórios da EMATER, trabalhando com ideias e ideais que se opunham ao padrão ‘modernizante’, criaram um grupo informal, com o intuito de compartilhar suas experiências e ter acesso a novas informações sobre a agricultura de base ecológica. A constituição desse grupo lhes abriu outras portas e fez com que eles vislumbrassem a necessidade de sua conexão com distintos atores sociais. Reciprocidade e conhecimento compartilhado na construção de redes de cooperação Após a criação desse grupo informal, os agricultores familiares se aliaram a distintos mediadores sociais e passaram a promover significativas modificações em suas rotinas resultantes da construção de redes de cooperação no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Essas redes de cooperação foram criadas a partir da necessidade de compartilhar conhecimentos sobre a agricultura de base ecológica, envolvendo desde os aspectos produtivos, até desenvolvimento de condições de inserção socioeconômica dos agricultores familiares nos mercados. Essa dinâmica pode ser concebida como um “conjunto entramado de processos organizativos” (ROVER, 2011, p. 60), no qual os elementos que ‘se entramam’ estão ligados à agricultura familiar, mas são colocados em marcha por distintos atores sociais: agricultores individuais, aqueles organizados em cooperativas, agroindústrias familiares, associações, grupos informais, ONGs, organizações de assistência técnica e extensão rural, institutos de pesquisa, universidades, dentre outras. Essas redes estão propiciando, nessa região, o estabelecimento de vínculos, fundamentalmente geradores de fluxos de conhecimento, informação e aprendizagem, que promovem a transposição das fronteiras das unidades de produção e da ação individual dos agricultores e de outros atores envolvidos. Disso resulta, também, o desenvolvimento de condições de inserção socioeconômica desses agricultores familiares a mercados diferenciados. As reuniões realizadas entre os membros do grupo de agricultores ecologistas representam oportunidades de troca de experiência que os impulsionavam a buscar sempre mais informações. Dessa maneira, encorajados uns pelos outros, passam a frequentar mais cursos e palestras com a finalidade de compreender mais a agricultura de base ecológica. Como esses cursos são elaborados por algumas organizações da região, esses agricultores tiveram a oportunidade de realizar diversas e novas parcerias, com destaque para aquelas estabelecidas com o Centro Ecológico de Dom Pedro de Alcântara, Associação Nascente Maquiné (ANAMA), pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e com a Cooperativa de Agricultores Familiares de Itati, Terra de Areia e Três Forquilhas (COOMAFITT). Avenida Presidente Vargas, 417/9º. andar, sala 909 CEP 20071-003 - Rio de Janeiro – RJ CNPJ: 10.269.919/0001-39 Email: [email protected] Dessa forma, adaptando, transformando e interagindo práticas e técnicas embasadas por seus conhecimentos com as práticas e técnicas apreendidas por meio da execução dos projetos de apoio técnico com base em múltiplas metodologias, esses agricultores construíram, em conjunto com os mediadores sociais, uma iniciativa de trabalho diferenciada. As alternativas tecnológicas que foram sendo desenvolvidas, segundo os entrevistados, eram baseadas em princípios da agroecologia, promovendo o resgate dos conhecimentos locais, como o acompanhamento das fases da lua para realização de práticas de plantio e colheita ou a utilização de resíduos orgânicos para fertilização do solo. Inúmeras outras práticas e técnicas foram sendo desenvolvidas e sistematizadas, promovendo o reordenamento de recursos diversos e, com isso, mudando a forma de fazer agricultura, transformando, sobretudo, a relação entre os agricultores e as organizações voltadas à agroecologia presentes no local. Essa inter-relação entre os agricultores e outros atores sociais é constituída por uma série de vínculos sociais e de fluxos de conhecimento em torno da produção. Dessa maneira, as mudanças tecnológicas englobam não somente modificações nos padrões de produção agropecuária, como também modificações nas dinâmicas sociais, nas formas com que os agricultores reagem e adaptam-se às mudanças tecnológicas (SABOURIN, 2006). Os momentos de encontro desse grupo possibilitaram aos agricultores ecologistas ter momentos de trocas de informações importantes também sobre administração da unidade produtiva e acesso a mercados de comercialização para seus produtos. É interessante mencionar que eles tinham como principais mercados de comercialização a ‘venda de porta em porta’ nas cidades vizinhas do Litoral Norte, durante o verão; as feiras nos municípios vizinhos; e a entrega desses produtos para atravessadores. Esses agricultores, por não possuírem uma certificação desses produtos como orgânicos, muitas vezes, vendiam seus produtos como convencionais para evitar perdas no campo. Esse tipo de comercialização acaba por ser desestimulante, já que todo um trabalho diferenciado no sistema de produção é desvalorizado ou, pelo menos, não reconhecido. Pensando em solucionar esses problemas e ampliar de seus espaços de comercialização, o grupo se deparou com uma nova necessidade: a certificação de seus produtos como orgânicos. A necessidade de certificação dos produtos orgânicos veio através da lei que começou a ser discutida em 1994, quando o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) reuniu-se com representantes de entidades ligadas à produção e ao consumo de alimentos orgânicos com o propósito de criar normas para a produção orgânica em todo o território nacional. A discussão continuou nos anos seguintes e, em 2007, a legislação que rege a certificação foi estabelecida pela Lei Federal 10.8313 e regulada por cinco Instruções Normativas. Essa lei abarca na categoria de ‘orgânicos’ as diferentes vertentes que englobam a produção de base ecológica. A partir da Lei Federal, foi criado o Sistema Brasileiro de Avaliação de Conformidade Orgânica (SISORG). Dele fazem parte dois tipos de Organismos de Avaliação da Conformidade Orgânica (OAC): a) as Certificadoras Comerciais, chamadas de terceira parte, por não integrarem os agricultores e trabalharem por sistema de auditagem; b) os Organismos Participativos de Avaliação de Conformidade (OPAC), que, assim como as certificadoras, precisam ter credenciamento junto ao MAPA, mas têm o sistema de acreditação feito por grupos compostos de agricultores e outros atores interessados, como consumidores, técnicos e organizações sociais (PINHEIRO, 2010). À luz dessas informações, os agricultores deste estudo decidiram dedicar-se a realizar a certificação de caráter participativo, por meio do sistema de certificação ainda emergente. A opção foi certificar a produção através de OPAC, ao invés da contratação de empresas de certificação por auditagem. Essa escolha se deve, em parte, aos altos preços praticados pelas empresas certificadoras, mas também à inconformidade com a metodologia de trabalho, já que a credibilidade ‘concedida’ aos produtos de base ecológica por pessoas e estruturas alheias à 3 No artigo 2º da lei apresenta-se como certificação orgânica o ato pelo qual um organismo de avaliação da conformidade credenciado dá garantia por escrito de que uma produção ou um processo claramente identificado foi metodicamente avaliado e está em conformidade com as normas de produção orgânica vigentes (BRASIL, 2007). Avenida Presidente Vargas, 417/9º. andar, sala 909 CEP 20071-003 - Rio de Janeiro – RJ CNPJ: 10.269.919/0001-39 Email: [email protected] comunidade não criam um processo de autonomia da família agricultora ou da comunidade (MEIRELES, 2003). A partir do conhecimento e compreensão do funcionamento dos OPAC e das parcerias que o grupo de agricultores ecologistas estabeleceu, ocorreu uma aproximação com a Rede Ecovida de Agroecologia, um OPAC já atuante na região4. O objetivo dessa Rede consiste na construção de um processo distinto de certificação denominado “participativo em rede”, o qual contrapõe o modelo mais comum realizado pelas demais certificadoras: o modelo de auditoria por inspeção externa. Essa Rede abrange os estados de Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e São Paulo, sendo formada por núcleos regionais. Atualmente conta com 23 núcleos, abrangendo em torno de 170 municípios. Seu trabalho congrega, aproximadamente, duzentos grupos de agricultores, vinte ONGs e dez cooperativas de consumidores5. Após contato com esse OPAC, três famílias de agricultores ecologistas se associaram à Rede Ecovida. Para além de certificarem sua produção, esses agricultores tinham propósito de acessar informações a respeito da construção de um OPAC, a fim de transformar o grupo de agricultores ecologistas em um novo OPAC, porém, de menor abrangência. A ideia de construir um OPAC em menores dimensões, se diferenciando da Rede Ecovida, se baseou no fato desse grupo de agricultores prezar por relações de proximidade entre os seus componentes. Os entrevistados alegam que quando o Organismo se torna muito abrangente, envolvendo centenas de famílias, essas famílias acabam não conhecendo todos os componentes desse Organismo, e os laços de confiança e as relações de reciprocidade, tão caros a um processo de certificação participativa, tendem a se tornar tênues. Assim, a proposta desse grupo foi de construir um Organismo, abrangendo os municípios do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, no qual todos os membros se conhecessem, se visitassem frequentemente e, assim, pudessem garantir com segurança sua produção orgânica. Acompanhar as atividades da Rede Ecovida, além de facilitar o acesso a esclarecimentos sobre a parte documental de construção e desenvolvimento de um OPAC, proporcionou às três famílias associadas o estreitamento de relações com outras organizações voltadas à agroecologia que também participam da Rede Ecovida, o que favorece, consequentemente, a todo o grupo de agricultores ecologistas envolvidos no ideal da construção de um outro OPAC. Concomitante à participação dessas famílias na Rede Ecovida, as atividades do grupo de agricultores ecologistas se tornaram cada vez mais disseminadas pela região em função da obtenção de colheitas significativas de produtos de base ecológica. Dessa maneira, famílias de agricultores do município vizinho de Dom Pedro de Alcântara também se agregaram ao grupo, trocando, doando, recebendo informação e, acima de tudo, construindo conhecimento, confiança e reciprocidade. É importante salientar que por meio dessas transposições de fronteiras que requerem compromissos coletivos e organização, novas relações sociais se estabelecem ultrapassando a capacidade individual, o que torna possível aos agricultores a construção de vínculos que se apoiam sobre práticas de ajuda mútua, principalmente com relação à troca de conhecimentos e práticas relacionados ao desenvolvimento de novas formas de trabalho com a agricultura. Essas iniciativas estão fundadas no princípio de “reciprocidade”, a partir de relações estruturadas em função do interesse da totalidade do grupo (SABOURIN, 2006). Dessa forma, o grupo de agricultores ecologistas cresceu e envolveu novos agricultores, técnicos e consumidores em sua transformação. Em 2012, teve-se a criação de uma associação e no ano seguinte do “OPAC Litoral Norte”. Atualmente, o grupo conta com o envolvimento de, aproximadamente, vinte e cinco famílias de agricultores, dentre as quais dez já possuem sua produção certificada por este OPAC. O processo de certificação participativa envolve reuniões mensais nas unidades de produção dos sócios do OPAC, a fim de visitar as unidades produtivas para conhecimento das técnicas utilizadas a campo, validar ou questionar os procedimentos em torno das técnicas e, também, para organizar a parte documental do Organismo. Os encontros entre agricultores e 4 5 Para uma maior discussão a respeito da Rede Ecovida de Agroecologia, consultar Rover (2011). Informações obtidas no site: http://www.ecovida.org.br/a-rede/; acessado em 27 de janeiro de 2014. Avenida Presidente Vargas, 417/9º. andar, sala 909 CEP 20071-003 - Rio de Janeiro – RJ CNPJ: 10.269.919/0001-39 Email: [email protected] técnicos possibilitam a troca de experiências a partir das formas que cada um encontrou para solucionar problemas semelhantes, como o controle dos danos causados por insetos e doenças, melhoria da qualidade do solo e acesso a mercados diferenciados. Nesses momentos, os mediadores que acompanham as reuniões, como é o caso dos técnicos da EMATER, muitas vezes conhecem técnicas novas e são desafiados a encontrar explicações para a sua eficiência. Essa interação desafia todos a reverem seus conhecimentos. Com o intuito de conhecer outras experiências de unidades de produção ecológica, o OPAC Litoral Norte, juntamente com a COOMAFITT, buscou parcerias com a Cooperativa dos Citricultores Ecológicos do Vale do Caí (ECOCITRUS), com sede no município de Montenegro. Essas parcerias possibilitaram aos componentes do OPAC e alguns sócios da COOMAFITT a realização de uma visita técnica à sede da ECOCITRUS, onde são organizados os produtos a serem comercializados, além de visitas a alguns associados dessa cooperativa. Todos são produtores de citros certificados pela Rede Ecovida de Agroecologia. Essa visita técnica despertou a atenção não só dos agricultores do OPAC Litoral Norte, mas também dos sócios da COOMAFITT, que ainda não estavam envolvidos com o OPAC. Isso possibilitou que novas famílias de agricultores se associassem ao OPAC. As relações e trocas que se estabelecem durante essas trajetórias são relevantes para além das possibilidades comerciais que se abrem, uma vez que é perceptível a ativa circulação de informação e conhecimento que leva à tomada de decisões e ações. Tais aspectos favorecem significativamente a construção de ‘espaços de manobra’ por esses agricultores, que se revelam estratégicos para a superação de problemas relacionados à sua reprodução social e ao reconhecimento de seu trabalho com a agricultura (PLOEG et al., 2004). A relação da COOMAFITT com o OPAC Litoral Norte, que foi construída já no início do grupo informal de agricultores ecologistas, é algo que vem se fortalecendo com o passar do tempo. Atualmente, em torno de dez famílias, membros do OPAC, são também associadas a essa Cooperativa, que hoje conta com 130 sócios. A proposta da COOMAFITT para um futuro próximo é de que os membros do OPAC, também sócios da Cooperativa, produzam alimentos certificados para serem comercializados no mercado institucional, através do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)6 e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)7 via Cooperativa. De acordo com os membros do OPAC Litoral Norte, essa parceria pode vir a viabilizar a logística de entrega de produtos para o OPAC, pelo fato da Cooperativa já possuir a infraestrutura necessária, se beneficiando com a comercialização de quantidades significativas de produtos. Essa cooperativa atende atualmente a demanda de quatorze municípios por meio do PNAE e de outras duas municipalidades pelo PAA. De acordo com os gestores da COOMAFITT, além de ampliar a lista de produtos oferecidos pela Cooperativa com produtos orgânicos, essa parceria estimula de forma gradativa que mais sócios realizem a transição da agricultura convencional para a de base ecológica. Esse tipo de parceria entre as organizações se mostrou tão promissor que o presidente do OPAC Litoral Norte, no ano de 2013, se tornou também vice-presidente da COOMAFITT. 6 Regionalmente chamado de “merenda escolar”, esse Programa é gerenciado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e visa à transferência, em caráter suplementar, de recursos financeiros aos estados, Distrito Federal e municípios destinados a suprir, parcialmente, as necessidades nutricionais dos alunos. O Programa segue a Lei nº 11.947/2009 que determina a utilização de, no mínimo, 30% dos recursos repassados pelo FNDE para alimentação escolar, na compra de produtos da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando os assentamentos de reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas (FNDE, 2011). 7 Esse Programa tem como finalidade incentivar a agricultura familiar, compreendendo ações vinculadas à distribuição de produtos agropecuários para pessoas em situação de insegurança alimentar e à formação de estoques estratégicos, sendo constituído por instrumentos que permitem a estruturação e o desenvolvimento da agricultura familiar (FNDE, 2011). No PAA parte dos alimentos é adquirida pelo governo diretamente dos agricultores familiares, assentados da reforma agrária, comunidades indígenas e demais povos e comunidades tradicionais, para a formação de estoques estratégicos e distribuição à população em maior vulnerabilidade social. Avenida Presidente Vargas, 417/9º. andar, sala 909 CEP 20071-003 - Rio de Janeiro – RJ CNPJ: 10.269.919/0001-39 Email: [email protected] Duas das três famílias que já possuem certificação orgânica de seus produtos através da Rede Ecovida, e que são membros do OPAC Litoral Norte, hoje, estão associadas à COOMAFITT e fornecem seus produtos certificados ao mercado institucional através dela. É importante salientar que essas duas famílias justificam sua continuidade de vinculação ao OPAC Litoral Norte, mesmo já possuindo a certificação via Rede Ecovida, devido os laços de amizade e reciprocidade construídos entre os associados. Tais famílias afirmam que eles estarem vinculados à Rede Ecovida os possibilita no auxílio ao OPAC Litoral Norte, ainda no início do processo de constituição, principalmente nas questões burocráticas, visto que eles já enfrentaram desafios semelhantes no outro OPAC em andamento há mais tempo. Além disso, atualmente, outras três famílias do município de Itati, sócias da COOMAFITT e componentes do OPAC, estão orientando o cultivo de palmeira juçara8 de forma ecológica a fim de trabalhar com o processamento da polpa desse fruto, mais conhecida como “açaí de juçara”. A ideia é de certificar a polpa via OPAC Litoral Norte e comercializá-la no mercado institucional através da COOMAFITT. No entanto, segundo os entrevistados, há uma barreira a superar no caso do processamento da polpa. Esses agricultores não possuem uma agroindústria para essa finalidade, e junto com a COOMAFITT, eles entraram em contato com algumas famílias de agricultores ecológicos, vinculados à Rede Ecovida de Agroecologia, que trabalhavam coletivamente em uma agroindústria familiar de panificados e processamento de frutas, localizada no município de Três Forquilhas, e propuseram uma parceria com essas famílias. As quatro famílias vinculadas à agroindústria se animaram com a organização da Cooperativa e, vislumbrando o acesso a novos mercados, se associaram a ela. A partir dessas interações, a ideia desses agricultores é de que, em breve, as famílias produtoras de fruto de juçara repassem os frutos à Cooperativa e essa utilize a estrutura e a mão de obra dos associados da agroindústria para o processamento da polpa, garantindo trabalho e renda não só aos produtores de juçara, como também às famílias vinculadas à agroindústria. É importante evidenciar que a utilização de polpas de frutas nativas na confecção dos produtos dessa agroindústria tem um significativo potencial para a valorização de hábitos culturais e dos recursos naturais existentes no local, o que intrinsecamente favorece a formação de sistemas produtivos sustentáveis. O envolvimento dos agricultores com proposta de elaboração desses produtos tem gerado outras conexões, que favorecem dinâmicos fluxos de conhecimentos, descoberta e reordenamento no uso de recursos, naturais e sociais, além da busca por estratégias de enfrentamento aos condicionantes do ambiente econômico e institucional, tão necessárias ao aprimoramento dos processos. Enquanto essa ideia de ofertar a polpa de açaí na ‘merenda escolar’ não pode ser colocada em prática, porque aguardam a regulamentação do OPAC, o contato da agroindústria com a COOMAFITT rendeu outros ‘frutos’. Após a associação dos membros da agroindústria à Cooperativa, quatro famílias começaram a elaborar panificados para entregar em distintas escolas, inclusive de Porto Alegre (capital distante 130 km), através da COOMAFITT. Os pães elaborados com mandioca, abóbora e polpa de juçara, embora ainda não certificados, já conquistaram espaço e a preferência de nutricionistas envolvidas com a elaboração dos cardápios das escolas. Para essas famílias, a importância da certificação está relacionada ao fato de poderem receber um valor adicional, de até 30%, nos produtos destinados ao mercado institucional. Para além dos possíveis ganhos econômicos é necessário sublinhar que o fato de haver uma nova institucionalidade que reconhece a certificação participativa representa o fortalecimento da dinâmica de desenvolvimento que concebe o agricultor como ator central, garantido seu espaço de representação política e reprodução social, bem como autonomia na gestão, tomada de decisões e escolhas tecnológicas. 8 A palmeira Juçara (Euterpe edulis) é uma espécie original da Mata Atlântica, que ocorre desde o estado do Rio Grande do Sul até a Bahia. Além do palmito extraído do interior do pecíolo de suas folhas, produz grande quantidade de frutos que, após amadurecimento, podem ser processados e transformados em polpa, utilizada para diversos fins alimentícios. Avenida Presidente Vargas, 417/9º. andar, sala 909 CEP 20071-003 - Rio de Janeiro – RJ CNPJ: 10.269.919/0001-39 Email: [email protected] Essas redes de cooperação estabelecidas entre agricultores e mediadores sociais, a fim de buscar alternativas ao padrão modernizante de agricultura, são elementos que contribuem para a mudança de entendimento sobre a eficiência de uma unidade de produção agrícola, ampliando o foco também para as questões políticas e sociais. Tais aspectos desconstroem o parâmetro convencional de eficiência que considera quesitos puramente econômicos, fazendo com que os demais aspectos da vida social passem a ser valorizados. Essas conexões que constroem tais redes levam a reordenamentos, não são simplesmente técnicos e materiais, mas envolvem, simultaneamente, negociações, renegociações, conflitos, disputas por poder e até possíveis criações de novas relações organizacionais. Ou seja, elas não se restringem à agricultura e incidem sobre outros limites setoriais e estão proporcionando aos agricultores desbravar novos caminhos e estabelecer desvios das regras que o modelo de desenvolvimento modernizante impõe (OOSTINDIE; BROEKHUIZEN, 2008). E para não concluir... O grupo de agricultores familiares do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, direcionados pelos ideais da agricultura de base ecológica e apoiados por projetos de assistência técnica e políticas públicas, como o PNAE e o PAA, executam ‘práticas desviantes’. Tais práticas representam formas inovadoras de organização e combinação de recursos. Ao mesmo tempo em que resgatam antigos costumes e tradições dos processos agrícolas, inovam na articulação entre atores, em sua relação com os mercados e mesmo na criação de novas organizações. Isso retroalimenta a ideia de que a criação de vínculos entre esses agricultores familiares e organizações da agricultura familiar se estabelece para além da obtenção de melhoria de renda. Ela se constrói baseada em princípios de proximidade e reciprocidade entre os agricultores familiares, resgatando, com isso, a localidade. Neste caso, agricultores espalhados pela região, oriundos de diferentes etnias, descendentes de açorianos, portugueses, africanos, alemães, italianos, poloneses e japoneses, embora mantenham distintos costumes e tradições, se reúnem em função das proximidades de objetivos e ideais em organizações comuns. Dessa forma, o vínculo, que seria puramente econômico, traz consigo essa diversidade de conhecimentos e culturas, técnicas e práticas, assim como valores que geralmente são desenvolvidos e direcionados por determinados costumes. Essas diversas relações entre esses agricultores também são facilitadas pelo fato deles possuírem vínculos com mais de uma organização, que envolvem diferentes atores sociais. Foi possível verificar, durante as entrevistas e observações, que essas múltiplas ligações constituem estratégias coletivas na busca por autonomia. Os vínculos criados para dar forma a esse processo de participação em vários tipos e níveis de organizações colocam os agricultores em contato com outras associações e cooperativas, fazendo com que as inter-relações sejam cíclicas e frequentes. Essa dinâmica que amplia horizontes, através da transposição das fronteiras individuais, tem sido responsável pela visualização de oportunidades estratégicas por parte desses agricultores. Uma das estratégias interessantes encontradas por eles em uma região, de um lado, com histórico de cultivos ‘convencionais’ de culturas como banana, fumo e olerícolas, e de outro, repleta de Áreas de Proteção Ambiental, foi a transição da agricultura ‘convencional’ para a agricultura de base ecológica. A agricultura de base ecológica vem mostrando que pode contribuir com a conservação tanto dos elementos naturais, como solo, água, biodiversidade, quanto das expressões socioculturais diversificadas, através do redirecionamento da relação com a natureza. Essas iniciativas se fazem particularmente importantes quando se focaliza a elaboração de projetos, programas e políticas públicas voltadas para o desenvolvimento da agricultura familiar. A partir da emergência do debate sobre relação sociedade-natureza e sustentabilidade, não é mais possível encarar a atividade agrícola, especialmente quando se trata de formas familiares de produção, de maneira unifocal e somente pelas lentes do produtivismo. Essas iniciativas, que estão amplamente relacionadas com o compartilhamento de conhecimentos, especificidades locais, heterogeneidade e dinamismo da ação social, parecem Avenida Presidente Vargas, 417/9º. andar, sala 909 CEP 20071-003 - Rio de Janeiro – RJ CNPJ: 10.269.919/0001-39 Email: [email protected] indicar uma alteração nas trajetórias de desenvolvimento no espaço rural na região estudada. Através de constantes transposições de fronteiras rumo à agricultura de base ecológica, outras ações são colocadas em marcha, especialmente no que se refere ao compartilhamento de experiências e avanço na articulação de conhecimentos, fazendo germinar as redes de cooperação, tão caras aos processos de desenvolvimento rural que se distanciam do padrão ‘modernizante’. É importante salientar que essas redes passam pela mediação de atores diversos, ligados a organizações governamentais e não governamentais. Dessa maneira, a articulação entre a ação da extensão rural pública e as ações de organizações não governamentais torna-se imprescindível. Tal engajamento é fundamental no sentido de valorizar e/ou incentivar possíveis processos de desenvolvimento rural, fazendo com que se ampliem os espaços para discussão, disseminação e abrangência das práticas e conhecimentos com potencial inovador. Além disso, para a irradiação de um ambiente propício à emergência de processos que desconstruam o ‘convencional’, é necessário avançar também nos estudos e pesquisas. Nessa área, a interrelação dos conhecimentos técnico-científicos com os conhecimentos dos agricultores, especialmente no tocante ao desenvolvimento de métodos capazes de compreender e apreender desde procedimentos práticas agrícolas, até a construção de dispositivos coletivos entre os agricultores, abrangendo as estratégias de inserção de seus produtos diferenciados ao mercado, como é o caso dos orgânicos, representa um tema ainda pouco analisado Referências CARNEIRO, M. J. Agricultores familiares e pluriatividade: tipologias e políticas. In: COSTA, L. F. C.; BRUNO, R.; MOREIRA, R. J. (Orgs). Mundo rural e tempo presente. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 323-344. COTRIM, D. S.; GARCEZ, D.; MIGUEL, L. A. Litoral Norte do Rio Grande do Sul: Sob a perspectiva de diferenciação e evolução dos sistemas agrários. 2007. 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