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O ônibus-fantasma
de Pinheiros
Uma vez, quando a aula terminou,
uma menina chamada Hortênsia
disse para um aluno novo na sua
escola chamado Rodrigo:
– Se quiser, eu dou uma carona para você. Nosso carro é bastante grande.
– Não, não precisa – respondeu Rodrigo. – Estou acostumado.
Hortênsia insistiu:
– Acostumado com quê? Com andar a pé?
Rodrigo respondeu:
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– Não, você me entendeu mal. Disse que estou acostumado a
caminhar porque não moro muito longe.
– Em que direção?
– Pinheiros.
– Passo por lá. Faço questão de dar essa carona.
– Se insiste... Onde está seu carro?
– É um Mercedes. Deve estar no meio da quadra.
Então Rodrigo seguiu Hortênsia. Ele estava muito contente.
Seu pai trabalhava numa revenda de carros em Uberlândia e tinha
vindo para um estágio na “grande cidade”, como ele dizia. Rodrigo
tinha ficado triste, longe dos amigos. Sua mãe havia dito, cuidado,
Rodrigo, São Paulo é uma cidade muito difícil!
No caminho, Hortênsia encontrou a Gabriela, o Flávio, o
Geraldinho e a Márcia e repetiu a pergunta:
– Querem carona?
Rodrigo percebeu então que o convite não era assim tão especial. Ainda mais que, na calçada, ela estava convidando mais uns
três ou quatro. Doze, até agora. Muita gente. Devia ser uma limusine, como nos filmes. Vai ver, tinha até champanhe.
Ele observou durante algum tempo um vendedor descascar
laranja num aparelho esquisito, que ia despelando a fruta presa no
eixo. Esse eixo girava, enquanto o cabeçote, do outro lado, despelava
a laranja, numa fitinha de casca bem comprida, girando, girando,
até a laranja ficar sem roupa.
– Entre, Rodrigo – disse-lhe Hortênsia, sorridente.
Só então percebeu que se tratava de um ônibus. MercedesBenz. Entrou, com a impressão de ter perdido uma parte da história. Aquele convite estava cada vez mais esquisito! Mas ninguém
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parecia espantado. Alegres, contavam piadas, brincavam. De que
jeito esse ônibus levaria cada um para casa? Não moravam em lugares diferentes?
Pelo visto, mais gente não tinha entendido a razão daquela carona. O Felipe, por exemplo, levantou-se e deu o sinal para descer.
O ônibus não parou. Felipe gritou para o motorista.
– Eu dei o sinal!
O motorista respondeu:
– Estou com preguiça.
Felipe voltou a sentar, com o espanto no rosto. Rodrigo achou
que era hora de falar com a Hortênsia.
– Hortênsia, que negócio é esse? Eu moro em Pinheiros.
Minha casa fica nessa direção – e apontou para os lados da Teodoro
Sampaio –, mas o ônibus está indo noutra direção.
Ela riu.
– Cedo ou tarde ele passa onde você vai descer. Não se preocupe.
Rodrigo insistiu:
– A que horas?
– Como é que eu vou saber, Rodrigo?! Com esse motorista,
impossível prever alguma coisa.
– E você, não tem hora pra chegar em casa?
– Tenho. Mas não com esse motorista. Na última vez, fiquei
uma semana dentro deste ônibus, porque ele só parou em paradas
erradas. Chegamos perto de Santos. No fim, desci.
– Brincadeira! – ele disse, sentando. – Onde?
Ela fez cara de espanto.
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– Onde o quê?
– Que você desceu.
– No Rio Grande do Sul.
Será que ela estava brincando?
O resto do pessoal devia ter se acostumado. O cobrador já
começava a roncar, puxando todo o ar em volta. Tudo isso porque o
motorista havia dito que ele estava liberado nas próximas horas.
Como avisar em casa?
Depois de uns minutos, Rodrigo ficou esquentado e se levantou para tirar satisfações.
– Por que mentiu pra mim?
Hortênsia jogava, apostando dinheiro. Estava pondo na mesa a
correntinha de ouro do Sagrado Coração, valendo trinta paus.
– Eu não menti, garoto!
– Mentiu. Queria me dar carona numa Mercedes.
Ela riu.
– Num Mercedes. Masculino. E esse é um Mercedes-Benz.
Não é, Seu Ataulfo? – perguntou bem alto ao motorista.
Seu Ataulfo ergueu o polegar, dizendo que sim.
*
Seu Ataulfo passava agora por cima das poças de água da última chuva. Só para molhar as pessoas na calçada. Bastava ver uma
pessoa distraída que ele, vrapt, dava um banho.
Quando entrou na Marginal Pinheiros, Rodrigo achou que
não tinha mais jeito. Estava tudo perdido. Sua mãe ia morrer de
preocupação.
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Só recobrou a esperança quando o ônibus parou e a Márcia,
que ia jogar um ás de copas, olhou para fora e gritou:
– Puxa, é aqui que eu desço!
Ela correu e conseguiu descer na horinha em que a porta se
fechava.
Rodrigo, mais calmo, observou:
– Passou pela roleta e não pagou.
O cobrador ouviu.
– Não precisa pagar – e voltou a dormir.
Hortênsia embaralhou as cartas.
– Eu não disse que era carona? Se pagar, não é carona.
Rodrigo sentou ao lado de uma menina que estava calada durante todo o trajeto. Ele puxou conversa, pois ela não parecia ser
daquele grupo destrambelhado.
– Você é de onde?
– De Belo Horizonte.
– Está em São Paulo há quanto tempo?
– Três anos.
– E onde mora?
– Dentro deste ônibus, como todo mundo – ela disse, mexendo na mochila. – Quer uma bergamota?
– O que é bergamota?
– Ah, você não é deste ônibus. Bergamota é mexerica. Assim
que falam, no Rio Grande do Sul.
– Já visitou o Rio Grande do Sul?
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– Só da janelinha do ônibus. Um dia, Seu Ataulfo dormiu na
direção e atravessou o Paraná e Santa Catarina.
Potoca! Só podia estar contando potoca. Mas não disse nada.
Resolveu voltar ao assunto de antes.
– Não entendi. Você mora dentro deste ônibus, que anda sem
direção em São Paulo, mas vem de Minas Gerais?
Ela não pareceu surpresa com a pergunta. E respondeu como
se responde a alguém que tem dificuldades de entender que dois
mais dois é igual a quatro.
– Seu Ataulfo é de Belo Horizonte, sabe? Peguei este ônibus
de puro azar. Ele ficou uns dois meses rodando em Belo Horizonte, depois pegou a Fernão Dias e nunca mais voltou. Três anos
rodando por aí. Já estou desesperada – disse, mas não parecia tão
desesperada assim.
– E por que não desce?
– Não tenho dinheiro pra voltar. Nem sei se meus pais ainda
estão vivos. Um dia, espero, Seu Ataulfo pega por sorte a Fernão
Dias e volto pra minha cidade.
– Isso é relativo – disse Rodrigo –, ele pode ir pra Barbacena,
pra Governador Valadares ou Salvador. E se for para o Sul, vai dar
em Curitiba, Florianópolis ou Porto Alegre. Mais longe ainda:
Montevidéu, Buenos Aires ou Terra do Fogo.
Ela ficou séria:
– Fecha essa boca, trem danado! – exclamou, batendo três
vezes no encosto do banco da frente. – Fecha essa boca! Eu quero
voltar pra minha casa, em Belo Horizonte.
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Cheiro de café
Acordei mais cedo e não adiantou
porque acabei me atrasando pra
aula. Havia chovido e a goteira
tinha pingado a noite inteira em
cima do fogão. Nenhuma brasa.
Pelejei, mas não consegui acender o
fogo na lenha molhada. Fui então
pra escola de barriga vazia.
Gritei pra mamãe, ô, mãe, tô indo. Ela perguntou do quarto,
ocê tem aula hoje? Respondi com uma pergunta, e num tenho?
Ela disse, mas hoje? Saí depressa sem responder, queria encontrar a Claudinha no viaduto da Mogiana.
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Nem pude cuspir nas locomotivas, como sempre fazíamos,
porque a Claudinha não passou. Ou já tinha passado. E cuspir sem
ela não tem graça. Pensei, começou bem! Me deu um frio! Será
que isso está acontecendo só comigo?
Desci o viaduto, pra tomar a João Pessoa. Avistei Seu Altino.
Perguntei, onde está o pessoal? Ela levou um susto. Precisa me
assustar? Quem chega assim é fantasma. Que pessoal? Ué, a cidade está parada. Também, disse ele, num sábado como este.
Uai, sábado?
Voltei para casa e fui conferir se era sábado mesmo. Seu Altino
não era de confiança. Antes de olhar na folhinha, abri o quarto da
Cecília e da Carmem Lúcia. Elas estavam dormindo.
Droga, estava ferrado! Era sábado mesmo.
O Ricardo já saiu, mãe? Sim, foi trabalhar. E acrescentou, o
Carlos também foi trabalhar. Eu disse, basta o Ricardo, porque o
nome desse último eu não falo nem morto.
Entrava sol pela janela. Enxerguei o rosto de mamãe. Triste,
como nos dias anteriores, desde que papai tinha ido embora. Sempre perrengue, falando sozinha pelos cantos. Às vezes, de noite, eu
ouvia alguém chorando. Devia ser ela.
A mesa ainda estava limpa. Corri ao terreiro, catei alguns
gravetos e entrei novamente. Os gravetos também estavam úmidos. Eu só podia contar com uns palitos de fósforo graúdos, pedaços de papel pardo da padaria e uma longa experiência no trato com
fogão a lenha.
Logo uma chama tremelicou, assustada com
tanta fumaça. Criou coragem, me viu, e estendeu uma auréola ardente no pedaço de papel.
Soprei devagar e com paciência, reforçando o
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fogo com a chama de dois palitos riscados juntos. A fumaça se conteve um pouco, esperando saber quais eram meus planos.
Revisei o que ia fazer, atacando pelos flancos com um papel
que eu tinha e que usava em ocasiões especiais. Ele era mais fino e
pegava fogo mais fácil. Dessa vez a chama azulou. Controlei
meu sopro, pra animar o foguinho. Ele ficou todo animado.
Prossegui, calibrando a quantidade de ar nas bochechas
e o soltando devagarzinho. Ajeitei uma haste mais seca.
Mamãe exclamou do quarto, hum, mas que cheirinho gostoso
de café! Levei café pra ela. Na cama. Ela sentou com dificuldade.
Tinha os olhos vermelhos. Fiquei preocupado. Ela percebeu. Pra
me distrair, perguntou se eu tinha notícias da menina, aquela. Me
fiz de desentendido. Qual menina, mãe? Aquela. Eu disse, não quero falar nisso. Que especula, mãe! Ela riu e passou a mão na minha
cabeça.
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