Oliveira e Martins
O Preço da Obesidade
Editorial
Rev Bras Cardiol. 2013;26(4):238-40
julho/agosto 2013
Editorial
O Preço da Obesidade
The Price of Obesity
Gláucia Maria Moraes de Oliveira1, Wolney de Andrade Martins2
O reconhecimento da obesidade como fator de
morbidade e mortalidade remonta às observações
empíricas atribuída aos Aforismos de Hipócrates de
onde se extrai que as pessoas naturalmente gordas
estão mais sujeitas à morte súbita do que as pessoas
magras. Os duros tempos de fome, miséria física e
científica que marcaram a história da humanidade,
sobretudo na Idade Média, induziram a se considerar
a obesidade como sinal de pujança, robustez, riqueza
e saúde. Isto se traduziu nas belas pinturas de mulheres
com colos extravagantes e quadris largos que
ilustraram o Renascimento. O conceito de magreza
como paradigma de beleza é subjetivo, cultural e
evolutivo. Sugere-se uma reflexão sobre os quadros
do pintor colombiano Fernando Botero, salvaguardado
o exagero crítico do artista.
A metodologia científica trouxe clareza à questão da
obesidade, que foi considerada fator de risco,
comorbidade e até mesmo entidade nosológica. Na
regra, a obesidade é reconhecida como problema
clínico, especialmente como fator de risco para as
doenças cardiovasculares (DCV) e muitos tipos de
câncer. Atualmente se reconhece o impacto da
obesidade sobre a doença coronariana aterosclerótica,
a hipertensão arterial, a síndrome metabólica e o
diabetes mellitus; as doenças osteoarticulares; as
complicações na gestação; o câncer de cólon,
endométrio, esôfago, estômago, leucemia, linfoma não
Hodgkin, mama, mieloma, ovário, pâncreas, reto,
tireoide e vesícula biliar. Interessante observar que o
leigo costuma relacionar a obesidade como fator de
risco para DCV, entretanto não a associa ao câncer. Na
prática clínica é comum ouvir a indagação se adoçante
causa câncer, mas não se ouve com a mesma
regularidade se obesidade está implicada com câncer.
Na população pediátrica a obesidade assume
magnitude assustadora, seja pelo crescimento
exponencial seja pela influência nos agravos outrora
pouco prevalentes neste segmento como a hipertensão
arterial e as dislipidemias. Leal et al.1 estimaram
prevalência de 9,5 % de sobrepeso e 3,8 % de obesidade
entre as crianças e adolescentes de Pernambuco, Brasil.
O excesso de peso esteve associado à maior renda
familiar, escolaridade materna, posse de bens de
consumo, residência em área urbana, ao excesso de
peso materno e ao menor número de filhos.
Projeta-se a frequência de 2,3 bilhões de indivíduos
com sobrepeso e 700 milhões de obesos no mundo em
2015. Nos Estados Unidos da América (EUA) a
obesidade cresce progressivamente e estima-se custo
de 147 bilhões de dólares/ano em doenças a ela
relacionadas2. No Brasil, a obesidade acompanha o
processo de desenvolvimento pari passu. Mesmo que
ultrapassados pelos norte-americanos e chilenos em
prevalência, os números absolutos no Brasil são
assustadores. Se há poucas décadas o país enfrentava
a desnutrição proteico-calórica como um desafio,
atualmente o sobrepeso ultrapassa a desnutrição em
28 vezes no sexo masculino e em 13 vezes no feminino2.
No período entre 1975-1985 e 2008-2009, o percentual
de indivíduos obesos acima de 20 anos aumentou mais
de quatro vezes entre os homens (de 2,8 % para 12,4 %)
e mais de duas vezes entre as mulheres (de 8 % para
16,9 %).
Pesquisas de orçamento familiar realizadas pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)3
em 1995/6 e 2002/3 indicaram aumentos de 100 % a
200 % na participação de alimentos industrializados
ultraprocessados como biscoitos, embutidos e
refrigerantes, e redução correspondente em alimentos
Faculdade de Medicina - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro, RJ - Brasil
Presidente da Sociedade de Cardiologia do Estado do Rio de Janeiro (biênio 2012-2013)
2
Faculdade de Medicina - Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói, RJ - Brasil
Editor da Revista Brasileira de Cardiologia (biênio 2012-2013)
Correspondência: Wolney de Andrade Martins
E-mail: [email protected]
Praia de Botafogo, 228 ala B sala 708 - Botafogo – 22250-040 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil
Recebido em: 01/07/2013 | Aceito em: 08/07/2013
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como feijão, arroz, leite, frutas e verduras 3. Os
alimentos ultraprocessados apresentam alta concentração
de açúcares, gorduras, calorias e sal por volume de
alimento, com pequena quantidade de fibra o que
favorece o aparecimento do sobrepeso e da obesidade.
Suas versões light lançadas pela indústria alimentícia
não são muito diferentes, pois mudam a fonte do
problema trocando o excesso de gordura por açúcares
ou diminuem pouco o conteúdo de sal ou gorduras
trans, que ainda permanecem acima do recomendado,
muitas vezes disfarçados com a adição de vitaminas e
sais minerais para que se tornem “mais saudáveis”.
Por esse motivo, vários países têm adotado medidas
legais para limitar a publicidade de alimentos. No ano
de 2007, Coca-Cola, PepsiCo, Nestlé, Danone,
Kellogg’s, Kraft, Unilever e Burger King se
comprometeram com a União Europeia a não fazer
propaganda para crianças menores de 12 anos, exceto
quando o produto atendesse a determinados critérios
nutricionais, bem como a não se engajar em
comunicações comerciais nas escolas primárias4. Nesse
contexto foi elaborado pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (ANVISA) 5 um instrumento
regulatório que proíbe publicidade no meio escolar de
produtos alimentícios com alto teor de açúcar, sal ou
gordura, além do uso de personagens infantis e
distribuição de brindes. Restringe também o horário
da exibição de peças publicitárias no rádio e na
televisão e obriga o uso de frases de advertência como
já ocorre com o cigarro5.
Na sequência, em 2010, o Brasil elaborou o Plano de
Ação Estratégica para o Enfrentamento das Doenças
Crônicas Não Transmissíveis (DCNT)6 para o período de
2011-2022, que define e prioriza os investimentos
necessários para preparar o país para a redução da
mortalidade prematura por DCNT em 2 % por ano na
população geral e nos grupos específicos. Essas
medidas foram ratificadas pela Organização Mundial
da Saúde (OMS)7 que determinou as metas globais
para a prevenção e o controle das DCNT com redução
relativa de 25 % na mortalidade por DCNT em 2025.
Há grande limitação no tratamento da obesidade, com
eficácia duvidosa dos fármacos e efeitos secundários
das técnicas cirúrgicas. Deve-se ter em mente que o
principal objetivo em tratar o obeso não é a redução
ponderal, e sim, a redução do risco de doenças
associadas. Sobre essa questão é relevante relembrar
que há normatizações para o tratamento da obesidade
e elas devem ser respeitadas.
Pacientes com DCV e/ou diabetes tiveram risco
aumentado de infarto do miocárdio e acidente vascular
encefálico com o uso da sibutramina segundo o estudo
SCOUT8. A prescrição da sibutramina foi restrita no
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Brasil e até abolida nos EUA. Precisamos lutar com as
armas disponíveis. O Ministério da Saúde (MS)
publicou em 19/3/2013 portaria9 que regulamenta
estratégias de ação para o tratamento da obesidade,
em especial a obesidade mórbida, desde a atenção
primária até a alta complexidade. O tratamento
cirúrgico é promissor dentro de suas indicações.
Nesta portaria recém-publicada9 o MS declara a
intenção de democratizar os procedimentos invasivos
e assumir o ônus da volumosa conta. Sabe-se que o
tempo gasto da publicação de uma norma no Diário
Oficial até sua efetiva implementação é longo e
tortuoso. Seu hospital tem quarto adaptado para obeso
mórbido? Leito apropriado? Balanças em leitos? Não
se precisa ir longe. Em seu consultório você tem
manguitos adequados para aferir a pressão arterial de
obesos? Tem balança que afere mais de 150 kg?
Precisamos nos adaptar às apresentações das doenças.
O paciente obeso com suas complicações será cada vez
mais frequente em nossa rotina de trabalho.
A Sociedade Brasileira de Cardiologia em associação
com a Sociedade Europeia de Cardiologia, Associação
Americana de Cardiologia, Sociedade Interamericana
de Cardiologia e Federação Mundial do Coração
assinaram um documento no final de 2012, denominado
Carta do Rio de Janeiro10, no qual se comprometem a
trabalhar em conjunto para redução da mortalidade
por DCV elencando uma série de medidas entre elas
a redução relativa de 10 % da prevalência de inatividade
física em adultos; a redução da ingestão média de sal
da população adulta para ≤5 g/dia ou 2000 mg/dia de
sódio; e a redução relativa de 15 % da ingestão de
ácidos graxos saturados, com o objetivo de atingir o
nível recomendado inferior a 10 % das necessidades
diárias de gordura com vistas à redução relativa da
prevalência de obesidade, entre outras.
Embora a obesidade seja um importante fator de risco
para o desenvolvimento das DCV, há um subgrupo
de obesos conhecidos como “obesos metabolicamente
saudáveis” que apresentam excesso de gordura
corporal e perfil metabólico favorável caracterizado
por elevada sensibilidade à insulina, pressão arterial
e perfil lipídico normais11,12. À proporção que o mundo
globalizado está se tornando obeso em sua maioria,
estudos propectivos demonstraram menor risco
cardiovascular associado a esse fenótipo. O conceito
do “paradoxo da obesidade” surgiu para fazer valer a
regra da excepcionalidade da própria regra. Em
algumas situações, como na insuficiência cardíaca, a
obesidade aparece como fator de proteção prognóstica.
As células de gordura visceral possuem taxas mais
altas de lipólise que as células de gordura subcutânea
com maior produção de ácidos graxos livres,
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adipocitocinas, interleucina-6, fator de necrose
tumoral-α e adiponectina. Todos esses fatores estão
relacionados à resistência à insulina. Provavelmente a
diferença entre obesos metabolicamente não saudáveis
e saudáveis seja o tipo de gordura armazenada. A
maior dificuldade tem sido encontrar um método
adequado e padronizado para identificar esses
indivíduos.
A atual prevalência da obesidade é elevada. Suas
consequências ao paciente são impactantes e
comprovadas. Quem são os obesos metabolicamente
saudáveis? Qual é o seu percentual dentro da crescente
população de obesos que se alimenta mal e se exercita
pouco? Como restringir o consumo de alimentos
ultraprocessados ricos em calorias?
Devemos conscientizar a população, mas também
precisamos de medidas regulatórias claras e eficientes.
Necessitamos de estudos voltados para essa nova
prevalência de obesidade que atua como uma mola
propulsora dos demais fatores de risco propiciando
incremento na morbimortalidade por DCV e câncer.
Por consequência o custo da obesidade para o sistema
de saúde é oneroso. A perspectiva do agravamento do
problema nas próximas décadas o torna ainda mais
relevante. Como lidar com esse problema é o nosso
desafio no mundo globalizado nos próximos anos.
Será possível atingir as metas propostas pela OMS?
Somente a união estratégica de forças entre a
comunidade, as esferas governamentais, as escolas e
as sociedades de profissionais da saúde poderão trazer
soluções viáveis para a diminuição desse importante
problema de saúde pública.
Palavras-chave: Obesidade; Obesidade mórbida; Fatores
de risco
Keywords: Obesity; Obesity, morbid; Risk factors
Potencial Conflito de Interesses
Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.
Referências
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do artigo - Revista Brasileira de Cardiologia