ANA AMÉLIA GENIOLI – TEXTOS CRÍTICOS A quinta margem do papel A desenhista de traço primoroso que, no final da década de 1990, trocou o papel branco pelo papel fotográfico, volta ao suporte nesta exposição de 2006 na Galeria Eduardo H. Fernandes. Ana Amélia Genioli expõe desenhos e fotografias nos quais concilia habilmente as questões estéticas que sempre acompanharam sua produção: espelhamento, reflexo, movimento, transparências e opacidade. A síntese das questões de seu trabalho em ambas as linguagens de sua predileção (o desenho e a fotografia) foi possível graças a um outro interesse poético que veio se somar mais recentemente aos anteriores: a extinção da idéia de fronteira. Uma obra emblemática deste partido tomado pela artista é “Cidade Universitária In Natura”, que apresentou no projeto “Ocupação”, no Paço das Artes em 2005: fragmentos de terra extraídos de diferentes locais do campus da USP expostos com as respectivas “identificações” (ECA, MAC, FAU, FFLCH etc.), diferentes apenas do ponto de vista das categorias que dividem algo contínuo como o chão de uma cidade universitária. A imagem fala o corpo – Em 2001, Ana Amélia realizou uma exposição intitulada “Vitrini”, na galeria do SESC Paulista. A artista vinha de uma viagem a Nova York em que registrou a espacialidade caótica refletida nas fachadas de vidro das lojas e restaurantes da cidade. A fusão de objetos, pessoas, reflexos de carros e de pedestres –“tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, que me fez lembrar a hipótese de Benjamin de que os olhos estão preparados para ver as coisas de acordo com o tempo histórico”, conta ela– foi fixada em fotografias transpostas para os vidros da galeria na avenida Paulista. As imagens foram ampliadas de forma que mantinham algo da transparência dos vidros, permitindo ao visitante da exposição observar o exterior e, aos passantes na rua, vislumbrar o interior. A este elemento somavam‐se os novos reflexos que a superfície gerava, fundindo imagens das pessoas retratadas com a de pessoas ali presentes, fundindo o fluxo urbano de São Paulo ao de Nova York. O corpo fala o corpo – Em 2006, quando retoma os desenhos, a artista faz uma série de fragmentos de corpos, utilizando apenas pastel seco. Os desenhos foram embebidos em terebentina e deram origem a sobreposições de monotipias, impressões diversas sobre um mesmo papel, que tem as dimensões de um lençol. O corpo que estivera presente nas primeiras obras e também em séries de fotografias como aquela exposta em 2001 volta com o traço a um só tempo firme e esmaecido pela técnica de monotipia que faz deste corpo uma impressão de outro. A sensação de um corpo fluido é sugerida também pela terebentina, que confere transparência ao desenho, e pela consciência corporal da artista, que ocupa com delicados vestígios da forma humana um espaço destinado metaforicamente a abrigar um corpo –o papel‐lençol. O corpo que desenha pensa o espaço não apenas com a mente, mas com todo o corpo, que executa uma espécie de dança ao redor do papel, combinando coxas, pernas, peitos, braços que se abraçam. O corpo fala a linguagem (da imagem, do desenho e do próprio corpo) – Na série de fotografias que Ana Amélia realizou na praia, de movimentos do corpo com um tecido – este que pode ser metáfora do papel em branco–, o espelhamento, o reflexo e as transparências são obtidos, pela primeira vez na trajetória da artista, por meio da combinação de efeitos analógicos e digitais. Impossível não ver a sensualidade das duas séries apresentadas na galeria Eduardo H. Fernandes: um jogo se insinua no diálogo entre os desenhos e as fotos de tratamento preto‐e‐branco. A artista costumava buscar no mundo, que lhe opunha certa resistência, os espelhamentos que ela transformava em discurso poético; desta vez ela buscou na sobreposição de seqüências de imagens a voz de sua poética. Esta ação gerou novas relações, que transitam num entremeio desafiando os limites da imagem. E ultrapassa, desta maneira, mais uma fronteira da liberdade de criação. Texto de Juliana Monachesi | 2006 Corpos, linhas Começa neste dia 3, e vai até 3 novembro, uma exposição de desenhos e fotos de Ana Amélia Genioli na Galeria Eduardo H. Fernandes (Rua Harmonia, 145, SP). Recebi o catálogo pelo correio, e no começo os desenhos pareciam apenas rabisquinhos mais ou menos abstratos: Mas são fragmentos de braços e de pernas, superpostos sobre um papel que, informa a crítica Juliana Monachesi, têm as dimensões de um lençol. A superposição se decifra melhor quando a aproximamos das fotos que também fazem parte da mostra: Aqui, as imagens se tornam mais "legíveis", embora sigam o mesmo princípio: trata‐se de produzir não propriamente a ilusão de um movimento, mas como que a memória visual do movimento, aquilo que se fixou e se apagou instantaneamente da nossa percepção. O efeito é surpreendente, porque a transparência de um tecido, de uma pele (outro tecido, afinal, sobre nossos corpos) ganha as características de uma linha, de um desenho. Em geral, fotografias são "pinturas" da realidade: mostram volumes, cores, luzes. Ana Amélia Genioli faz com que sejam "desenhos" da realidade: traços, linhas, esboços ‐‐como se ainda fosse preciso, na verdade, que o real vivido a cada instante ganhasse, um dia, sua definitiva solidez. Texto de Marcelo Coelho | 02/10/2006 Ana Amélia Genioli e a Imagerie Contemporânea Soho, New York, setembro de 1999, alguns minutos da flanerie e eis que a fisionomia da metrópole contemporânea descortina‐se diante do olhar de Ana Amélia. A referência a Walter Benjamim é imediata e profícua. Benjamin soube como ninguém perceber nos escritos d Baudelaire e nos estudos sobre Paris, capital do século XIX, que o caráter da metrópole moderna, em constituição, traduzia‐se, sobretudo, através de suas “imagens”. Numa época de volatilização e dissolução da tradição, por um lado, e de equivalência mercantil, por outro, nada mais natural que as construções de ferro, os pavilhões de exposições, a multidão nas ruas, a moda e, sobretudo, as passagens e as vitrines parisienses repercutissem de forma marcante no imaginário coletivo, formando um solo propício à fantasmagoria da cultura moderna. Uma metrópole constituída como montagem dadaísta não poderia ter seu caráter capturado de forma linear e apolínea. Somente um olhar apto às fragmentações, justaposições e incongruências seria capaz de capturá‐lo; somente alguém que se “sentisse em casa” e “cúmplice” deste processo – em uma palavra, o flaneur – poderia dar voz a essa modernidade e, dialeticamente, superá‐la. Embora as “Vitrinis” de Ana Amélia nos remetam a esse universo, sua instigante contemporaneidade nos leva adiante. O espaço aqui apresentado não é mais o da utopia – moderna ou benjaminiana – mas, no dizer de Focault, o da heterotopia, isto é, um lugar onde os locais de determinada cultura podem ser representados, e, simultaneamente, contestados e invertidos. Suas vitrinas transformam‐se num instigante espelho onde a metrópole pode fragmentar‐se e assumir seu caráter imagético. Nesta Vitrini tornada espelho/écran, “lugar sem lugar algum”, onde o dentro se torna fora e vice‐versa, o universo das mercadorias justapõe‐se ao da metrópole, compartilhando sua forma‐publicidade. Ao lidar com os diversos mídia, das imagens metropolitanas à videográfica, passando pelo contraponto do congelamento fotográfico, esta vitrina/espelho/écran, lugar de projeção/reflexão, parece querer tornar‐se, nas mãos de Ana Amélia, o lugar de introjeção/reflexão do próprio destino da contemporaneidade. Eis que toda a imagerie contemporânea encontra sua melhor forma de expressão e questionamento. Uma sombra – constante e fugidia ‐, entretanto, insiste em se fazer notar em toda esta instalação: a do transeunte/espectador em busca de sua identidade. Esta parece ser a grande questão que o presente trabalho coloca. A busca de uma identidade, fragmentada e constituída por essas imagens. Diante do espelho lacaniano, essa imagerie traz mais inquietação do que esperança de reencontros. Ana Amélia não pretende responder a esses questionamentos. Ao contrario, ao refazer seu percurso inicial, transpondo essas vitrinas para uma outra metrópole, num interessante diálogo ‐ e outros diálogos poderão somar‐se a esse ‐, indica que outras temporalidades, outras heterotopias e outras linguagens tornam‐se a as novas fundações da subjetividade e da fantasmagoria da cultura contemporânea. Texto de Ruy Sardinha Lopes | 2001‐2002 (Filósofo, mestre e doutor pela Faculdade de filosofia da USP, professor de Estética e Historia da Arte) Inventando Corpus A obra da artista Ana Amélia Genioli tem sido marcada pela sutileza e pela percepção de modos particulares de ver/sentir experiências da vida. Em diferentes momentos, Ana transformou em arte punhados de terra, mensagens de amigos, o luto, imagens de cidades e pessoas sobrepostas. O seu desafio é dar materialidade a mapeamentos emocionais. Desta vez, em Inventando Corpus, a criação tem como ponto de partida linhas desenhadas em folhas de papel. Mas nada é o que parece. O filósofo tcheco Vilém Flusser costumava dizer que as linhas são discursos de pontos e que cada ponto é um símbolo de algo que existe. Por isso entendia que as linhas representavam o mundo ao projetá‐lo sucessivamente. Esta exposição poderia ser o exemplo ideal para a sua hipótese. A matéria‐prima parece a linha mas, de fato, são os deslocamentos e representações. Seriam estes discursos de mundos simbólicos? Ana trilha caminhos de indicialidades que fazem do observador um cúmplice do processo de criação, sugerindo ainda outras indagações e enigmas: Em que medida a imagem fragmentada de um corpo ativa uma certa imunidade a toda e qualquer noção de completude e inteireza? Quem desenha a linha: a mão ou o olho? O que acontece quando o espaço e o tempo se transformam em experiências de descontinuidade? Nas paisagens inventadas, o fragmento não limita ou amputa, mas aponta reentradas. A imagem que se vê exige um exercício de imaginação para que seja possível criar nexos de sentido entre a linha, os lugares fotografados e os corpos. A linha constrói a imagem, mas não permanece como traço estável paralisada residualmente a partir do gesto da artista. Usando a técnica do frottage, os desenhos migram pela folha de papel, escorrem para outra folha e finalmente pela parede criando uma cartografia de percepções. A dinâmica dessas migrações indica que o gesto não se completa no vestígio do movimento sobre a folha ou no enquadramento da imagem de algum lugar. Ao invés disso, cria espacialidades sem se aprisionar. Não há identidades claras, nem pontos de partida ou de chegada. Ao final, conclui‐se que é justamente o gesto que não se vê que se apresenta como momento poético do pensamento e nos resgata dos nossos lugares comuns. Texto de Christine Greiner (Professora do Departamento de Linguagens do Corpo da PUC‐SP nos cursos de Comunicação das Artes do Corpo e no Programa de Estudos Pós‐graduados em Comunicação e Semiótica) Ao vermos as fotos de Ana Amélia Genioli é impossível não nos recordarmos de Marcel Duchamp, com seu “Nu descendo a escada”, onde este objetivou a nudez clássica do corpo numa ação banal, cotidiana; flagrou‐o em seus instantâneos, a ação sendo congelada. Por sua vez, a artista nos revela um corpo biomórfico, corpo‐ação que dança, voa e flui na textura da areia que é papel, tecido; suporte de transparências que se interpenetram num espaço entre; espaços da ação vivente. Suas fotos exibem o corpo ‐ objeto como algo móvel, transitável, imagens diáfanas; instáveis; o deslocamento dentro da imagem que é sempre a soma de outras três conjugadas; o suporte é aqui a fusão de instâncias móveis que interpenetram‐se e resultam numa nova organização que se dilata no tempo. A organização resultante é o tempo expandido. O registro do movimento em escorço, ao redor de si mesmo, engolindo‐se; casulo, invólucro. Bólide espaço‐temporal. A imagem é um texto, lugar da imaginação, organicidade; a ação figura a palavra do corpo expandindo‐se e dilatando‐se no acontecimento, o tecido vira carne; matéria fluída, dimensionável e não mais um suporte plano e irredutível; as cartesianas implodem. Orla que beira o mar e casulo que abraça a si mesmo. Lençol freático da pele. Praia‐papel‐suporte. Conchas na orla. Texto de Daniella Samad “Vitrini” mostra fragmentações da metrópole Parece não ter havido direção suficiente na galeria SESC da avenida paulista, no último ano. As opções apresentadas, na maioria pouco criativas, acusam uma curadoria‐geral de caráter mais oscilante que o equilíbrio do grupo na tela “A jangada da Medusa”. Talvez o endereço esteja inaugurando um tempo novo com a instalação “Vitrini”, de Ana Amélia Genioli, 36. Trata‐se de 19 fotos sobre papel metalizado, que retratam vitrines em lugares nova‐iorquinos movimentados. Toda a esquina da Paulista com a rua Leôncio de Carvalho está recoberta destas imagens reflexíveis, induzindo a percepção visual dos pedestres à confusão. Dentro da Galeria há um novo ciclo de inversões e fragmentações da imagem do cotidiano das grandes metrópoles, seja no anverso das fotos das vitrines, no monitores de vídeo com imagens fugazes dos passantes na calçada, ou em dois amplos espelhos que multiplicam tudo isso. Texto de Alvaro Machado | Guia da Folha de 2002 
Download

ANA AMÉLIA GENIOLI – TEXTOS CRÍTICOS A quinta margem do