Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade
Associada ao programa de pós-graduação PROFLETRAS
da UPE-Garanhuns
N.° 17 - ESPECIAL - 2015 - ISSN: 2236-1499.
UPE/Garanhuns - PE – Brasil
D.O.I: 10.13115/2236-1499
ANAIS DO
VOLUME III
AUTORES DE M a Z
11 a 14 de maio de 2015
Universidade de Pernambuco – UPE
Campus Garanhuns
Ficha catalográfica
REVISTA DIÁLOGOS, n.° Especial 17 - III Encontro Nacional e II Encontro Internacional de
Literatura e Lingüística da Universidade de Pernambuco (UPE), 3 vols, campus Garanhuns.
(2015, Garanhuns, PE). Vol. III
Anais (recurso eletrônico) / III Encontro Nacional e II Internacional de Literatura e
Lingüística da Universidade de Pernambuco (UPE), 11 a 14 de Maio de 2015 – Garanhuns,
PE, UPE.
Disponível em: www.revistadialogos.com.br/anais
1. Letras – eventos 2. Lingüística 3. Literatura 4. Teoria Literária
ISSN: 2236-1499
CDU 869.0(81)
CDD B869
UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO - UPE
Campus Garanhuns
REITOR
Prof. Dr. Pedro Henrique de Barros Falcão
VICE-REITORA
Profª. Drª. Maria do Socorro de Mendonça Cavalcante
DIRETOR
Prof. Dr. Cloves Gomes da Silva Junior
VICE-DIRETORA
Profª. Ms. Rosângela Falcão
COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS
Profª. Drª. Jaciara Josefa Gomes
VICE-COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS
Profª. Ms. Dirce Jaeger
COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO
COORDENADORA
Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)
COMISSÃO ORGANIZADORA
Prof. Esp. Anderson de Souza Frasão (UFS)
Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra (UPE)
Profª. Ms. Dirce Jaeger (UPE)
Prof. Dr. Elcy Luiz da Cruz (UPE)
Prof. Esp. Erick Camilo da Silva Gouveia (UFS)
Profª. Drª. Jaciara Josefa Gomes (UPE)
Prof. Dr. Jairo Nogueira Luna (UPE)
Prof. Esp. José Aldo Ribeiro da Silva (UEPB)
Profª. Drª. Maria das Graças Ferreira (UPE)
Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)
COMISSÃO CIENTÍFICA
Profª. Drª. Ana Mafalda Leite (Universidade de Lisboa)
Prof. Dr. Carlos Reis (Universidade de Coimbra)
Profª. Drª. Jeane de Cássia Nascimento Santos (UFS)
Prof. Dr. Júlio Araújo (UFC)
Prof. Dr. Luiz Costa Lima (UERJ)
Profª. Drª. Rosângela Sarteschi (USP)
COMISSÃO EDITORIAL
Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra (UPE)
Prof. Dr. Jairo Nogueira Luna (UPE)
Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)
APOIO
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível superior – CAPES
Fundação de Amparo à Ciência e atecnologia do Estado de Pernambuco – FACEPE
SUMÁRIO
VOLUME I
PRÁTICAS DE LETRAMENTO: A LEITURA DELEITE COMO PROCEDIMENTO
ESTRATÉGICO NA FORMAÇÃO DE LEITORES.........................................................
Abda Alves Vieira de Souza (UFAL)
Maria Auxiliadora da Silva Cavalcante (UFAL)
23
GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LITERATURA: UMA EXPERIÊNCIA DE
LETRAMENTO LITERÁRIO............................................................................................ 30
Adriana Nunes de Souza (IFAL/UFAL)
ESTUDO DELEUZIANO DE LITERATURA CONTEMPORÂNEA: LITERATURA
MENOR E AGENCIAMENTO EM ANTÓNIO LOBO ANTUNES E
FERRÉZ..............................................................................................................................
Adriano Carlos Moura (IFF)
40
O FILME DENTRO DO FILME. TEATRO, TV E CINEMA: UM ESTUDO SOBRE A
METALINGUAGEM EM “LISBELA E O PRISIONEIRO”, DE OSMAN LINS............ 50
Adriano Siqueira Ramalho Portela (UFPE)
MUXE MARAVILHA E MULHER DEPOIS: DA GRAPHIC NOVEL À POESIA,
IDENTIDADE DE GÊNERO EM ANGÉLICA FREITAS...............................................
Ágatha Costa Salcedo (UFAL)
59
DECORAR OU APRENDER NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM................. 67
Alaíde Marie Correia Barros (IFAL)
Nádia Mara da Silveira (IFAL)
OS GÊNEROS DIGITAIS NO ENSINO DE LÍNGUA DE MATERNA..........................
Albanyra dos Santos Souza (UFRN/CERES/DCSH)
74
ORALIDADE E ARGUMENTAÇÃO EM FOCO: UMA EXPERIÊNCIA DIDÁTICA
COM O GÊNERO TEXTUAL JÚRI SIMULADO............................................................ 86
Alberto Felix da Hora (UPE)
POEMAS TIRADOS DE NOTÍCIAS, MAPAS, TABELAS... E OUTROS GÊNEROS
JORNALÍSTICOS: PROCEDIMENTOS LÚDICOS EM AULAS DE LITERATURA... 98
Alberto Roiphe (UFS)
INTERPRETANDO EM CONTEXTOS: UMA ANÁLISE DA PRESSUPOSIÇÃO
DISCURSIVA NO GÊNERO “FRASES”.......................................................................... 108
Aleise Guimarães Carvalho (S.E.E.-PB)
Alessandra Magda de Miranda (S. E.E.- PB)
A ESCRITA DEMOCRÁTICA E RUMOREJANTE DE UMA NOVELA
NACIONAL, EM A BICICLETA QUE TINHA BIGODES: ESTÓRIAS SEM LUZ
ELÉTRICA.......................................................................................................................... 119
Alice Botelho Peixoto (PUC Minas. CAPES)
A PRODUÇÃO DE TEXTOS EM SALA DE AULA: UM PROCESSO DE
RETEXTUALIZAÇÃO......................................................................................................
Aline Peixoto Bezerra (UERN)
131
A PALATALIZAÇÃO DAS OCLUSIVAS ALVEOLARES E A VARIÁVEL IDADE
EM MACEIÓ – AL.............................................................................................................
Almir Almeida de Oliveira (UFAL)
143
UTILIZANDO A MULTIMODALIDADE EM COMUNIDADE REMANESCENTE
QUILOMBOLA: NOVOS DESAFIOS?............................................................................
Aluizio Lendl-Bezerra (URCA/UERN)
Marcos Nonato de Oliveira (UERN/CAMEAM)
ESPELHAMENTOS IMPERFEITOS: OS REFLEXOS ENTRE OS
PERSONAGENS................................................................................................................
Amador Ribeiro Neto (UFPB)
Rafael Torres Correia Lima (UFPB)
155
164
CARPENTIER E A MÚSICA: ENTRE SONATAS, ROMANCES E ENSAIOS............. 176
Amanda Brandão Araújo Moreno (UFPE)
PRÁTICAS DE LETRAMENTO NOS ANOS INICIAIS: A FORMAÇÃO DE
LEITORES ATRAVÉS DO MOMENTO DA LEITURA DELEITE................................
Amara Rodrigues de Lima (SEEL – Recife)
184
METADE ROUBADA AO MAR, METADE À IMAGINAÇÃO:A CIDADE DO
RECIFE POR CARLOS PENA FILHO.............................................................................. 189
Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)
DIALOGISMO INTERDISCURSIVO E INTERLOCUTIVO: COMENTÁRIOS
ONLINE NO FACEBOOK..................................................................................................
Ana Carolina A. de Barros (UFPE)
O CONCEITO DE GÊNEROS TEXTUAIS NO ENSINO MÉDIO: O QUE DIZEM OS
LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA?....................................................
Ana Cátia Silva de Lemos
Maria Margarete Fernandes de Sousa
199
211
O PAPEL DA TEORIA BAKHTINIANA NO CONCEITO DE LÍNGUA NA
CONTEMPORANEIDADE................................................................................................ 222
Ana Cláudia Soares de Paiva (UNICAP)
QUESTÕES DE MULTIMODALIDADE EM CONTEXTO ESCOLAR: DESAFIOS
DO TRABALHO COM A IMAGEM................................................................................. 230
Ana Cláudia Soares Pinto (UFPB)
A PESQUISA EM METACOGNIÇÃO PARA UM ESTUDO DO GÊNERO
CRÔNICA NO ENSINO FUNDAMENTAL.....................................................................
Ana Lúcia Farias da Silva (UFRRJ)
239
LÍNGUA DISCURSIVA [E FORMAS DE VIDA] NOS MANUSCRITOS DE
SAUSSURE......................................................................................................................... 250
Ana Paula El-Jaick (UFJF)
DA LIBERDADE MASCULINA: REFLEXÕES SOBRE KAREN BLIXEN E ELENA
FERRANTE........................................................................................................................
Ana Paula Raposo (UFMG)
256
O USO DOS PROCESSOS EM TEXTOS LITERÁRIOS SOB A ÓTICA DA
LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL: UMA ANÁLISE DA VOZ DO
NARRADOR E DAS PERSONAGENS EM CONTOS MODERNISTAS.......................
Anderson de Santana Lins (CELLUPE -UPE)
Maria do Rosário B. da S. Albuquerque (CELLUPE -UPE)
266
GUERREIRO DO POVO BRASILEIRO? CONTRADIÇÕES,
DES/CONTRA/IDENTIFICAÇÃO, RESISTÊNCIA E MEMÓRIA NO DISCURSO
SOBRE EDUARDO CAMPOS..........................................................................................
André Cavalcante (UFPE)
277
POESIA E MITO EM LUCILA NOGUEIRA.................................................................... 287
André Cervinskis (UFPE)
O ENUNCIADO COMO ZONA DE DIÁLOGO ENTRE VOZES E VALORES: UMA
ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO JORNALÍSTICAS DA IMAGEM DE EDUARDO
CAMPOS NO PERÍODO PRÉ E PÓS MORTE................................................................
Andre Cordeiro dos Santos (UFPE)
294
O LIVRO DE LITERATURA INFANTIL NA SALA DE AULA: UM OLHAR PARA
A ESCOLHA FEITA PELO PROFESSOR DA EDUCAÇÃO INFANTIL E DO 1º
ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL............................................................................... 305
Andressa Silvestre Teixeira (UFRPE/UAG)
Leila Nascimento da Silva (UFRPE/UAG)
PEDRAS SOBRE RIOS: O LUGAR DO CORPO EM RAKUSHISHA DE ADRIANA
LISBOA............................................................................................................................... 317
Anne Louise Dias (PósLit/TEL/UnB)
A VOZ QUE AGORA FAL(H)A, OU A MEMÓRIA DE PORTUGAL NO CORPO
DO LIVRO E DO VELHO: UM ESTUDO SOBRE A MÁQUINA DE FAZER
ESPANHÓIS, DE VALTER HUGO MÃE.........................................................................
Annie Tarsis Morais Figueiredo (UEPB/PPGLI)
327
O “ESPELHO BAÇO E ESCURECIDO”: REFLEXÕES SOBRE A OBRA A HORA
DA ESTRELA....................................................................................................................... 336
Antonia Gerlania Viana Medeiros (UERN)
Roniê Rodrigues da Silva (UERN)
O ENSINO DE PRODUÇÃO DE TEXTO À LUZ DA CONCEPÇÃO DE ESCRITA
INTERACIONAL...............................................................................................................
345
Antonia Maria de Freitas Oliveira (UFRN)
INCONSCIENTE E SIMBÓLICO EM PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM.................. 355
Antonielle Menezes Souza (UFS)
Marcio Carvalho da Silva (UFS)
O USO DOS SINAIS DE PONTUAÇÃO COMO MARCAS DISCURSIVAS................
Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)
Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)
363
O HUMOR INTRANQUILO DE ANDRÉ SANT’ANNA................................................
Ari Denisson da Silva (UFAL/IFAL)
375
A CASA DOS BUDAS DITOSOS: OS LIMITES DA IRREVERÊNCIA...........................
Arturo Gouveia (UFPB)
383
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO AUTORAL NAS OBRAS DE VIRGINIA
WOOLF: O ENSAIO COMO FORMA LITERÁRIA E ESTRATÉGIA DE
EMPODERAMENTO DA AUTORIA FEMININA........................................................... 392
Asenati Araújo de Melo (UNEB)
Juliana C. Salvadori (UNEB)
USOS DA LÍNGUA(GEM) NA INTERNET: O QUE ESTUDANTES DE
GRADUAÇÃO PENSAM SOBRE AS PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NA
COMUNICAÇÃO VIA DISPOSITIVOS MÓVEIS?......................................................... 401
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)
Amanda Cavalcante de Oliveira Ledo (UFPE)
O MEDO E A FÚRIA ― MOVIMENTOS DE UMA POÉTICA DA PARTICIPAÇÃO. 413
Bianca Campello Rodrigues Costa (UFPE)
Bruno Eduardo da Rocha Brito (UFPE)
ENSINO DE ANÁLISE LINGUÍSTICA: REFLEXÕES DE BASE
SOCIOINTERACIONISTA................................................................................................ 423
Bruna Bandeira (UFPE)
AS VOZES DISCURSIVAS NO DEPOIMENTO DE PEDRO BARUSCO NA CPI DA
PETROBRAS......................................................................................................................
Brwnno Gabryel de Araújo Silva (UFPE)
Rosilene Felix Mamedes (UFPB)
435
A PERSONAGEM LIA DE MELO, DO ROMANCE AS MENINAS, DE LYGIA
FAGUNDES TELLES, COMO RESISTÊNCIA FEMININA À DITADURA MILITAR 446
Caio Victor Lima Cavalcanti Leite (UPE)
Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
A INTEGRAÇÃO IBERO-AMERICANA: O DISCURSO A FAVOR DE UMA
IDENTIFICAÇÃO..............................................................................................................
Camila da Silva Lucena (PPGL/UFPE)
AS MISSIVAS DA IMPRENSA NORTISTA: RETRATOS LITERÁRIOS DA SECA..
Camila M. Burgardt (UFPB)
O REGRESSO AO PASSADO E AS RAÍZES MÍTICAS NA OBRA O SÉTIMO
455
465
JURAMENTO......................................................................................................................
Camilla Rodrigues Protetor (UPE)
Amara Cristina de Silva e Barros Botelho (UPE)
NARRATIVAS HOMOERÓTICAS NOS COMPÊNDIOS DE HISTÓRIA
LITERÁRIA BRASILEIRA...............................................................................................
Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes (UFRPE/UFPB)
A METACOGNIÇÃO NA LEITURA E AS INFERÊNCIAS SOCIOCULTURAIS:
UMA EXPERIÊNCIA COM ACADÊMICOS DO CURSO DE TURISMO DA
UNEB..................................................................................................................................
César Costa Vitorino (UNEB/FVC)
SOBRE O SAGRADO E O PROFANO EM BALADA DE SANTA MARIA
EGIPCÍACA, DE MANUEL BANDEIRA.........................................................................
Cícero Émerson do Nascimento Cardoso (UFPB)
477
487
498
509
DE GÊNESIS A SHAKESPEARE: MISTICISMO E SIGNIFICAÇÃO DO NÚMERO
SETE.................................................................................................................................... 519
Clara Mayara de Almeida Vasconcelos (UFPB)
Eveline Alvarez dos Santos (UEPB)
ENSINO, ESCRITA E AUTORIA: A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO-AUTOR NO
CONTEXTO ESCOLAR....................................................................................................
Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)
Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)
FERDINAND DE SAUSSURE E EUGÊNIO COSERIU: PROPOSIÇÕES SOBRE O
TEXTO................................................................................................................................
Clemilton Lopes Pinheiro (UFRN)
DISCURSO E IDENTIDADE: ASPECTOS DA CONSTRUÇÃO POÉTICA EM
PATATIVA DO ASSARÉ..................................................................................................
Dalva Patricia de Alencar (URCA)
Romão Alisson de Almeida Morais (URCA)
528
540
551
FORMA E SUBSTÂNCIA: REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA, ORALIDADE E
ESCRITA A PARTIR DE SAUSSURE E DE HJELMSLEV............................................ 560
Dayanne Teixeira Lima (UFAL)
A EXPERIÊNCIA DO ENFRENTAMENTO NO ESPAÇO DA INTIMIDADE: UMA
LEITURA DO ROMANCE A PAIXÃO SEGUNDO G.H..................................................
Daysa Rêgo de Lima (PPGL/UERN)
DISCURSO CRONÍSTICO; IDEOLOGIA E MARGINALIZAÇÃO ÉTNICORACIAL. REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS EM ACD – VAN DIJK E
ALTHUSSER......................................................................................................................
Dayvison Bandeira de Moura (UA-PY)
Cacilda Rodolfo de Andrade ( UA-PY)
Edair Gonçalves (IFECT-SP)
OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA: RETRATO SÓCIOANTROPÓLOGICO
DO SERTANEJO NORDESTINO E DA GÊNESE DE ANTÔNIO CONSELHEIRO
571
578
COMO LÍDER MESSIÂNICO........................................................................................... 593
Deividy Ferreira dos Santos (UPE)
PROCESSO DE RETEXTUALIZAÇÃO EM SALA DE AULA: UM CAMINHO DE
APROPRIAÇÃO NA ESCRITURA DE GÊNEROS TEXTUAIS..................................... 605
Dennys Dikson (UFRPE/UFAL)
Wanessa Gomes Teixeira Maciel (UPE)
ANÁLISE DE GÊNEROS DA ESFERA JORNALÍSTICA NO CURRÍCULO DE
PORTUGUÊS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL DO ESTADO DE
PERNAMBUCO.................................................................................................................
Diana Pereira Costa Alves (UPE)
Ecia Mônica Leite de Lima Freitas (UPE)
616
ENSINO DE LITERATURA EM WEBQUEST: O IMAGINÁRIO E O CRIATIVO
EM ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS.......................................................................... 628
Diego Paulo da Silva (IFAL)
Nádia Mara da Silveira (IFAL)
ENTRE AS ESTRADAS QUE (NÃO) SE ABREM: TERRA SONÂMBULA,
LITERATURA E CINEMA................................................................................................ 639
Diogo dos Santos Souza (UFAL)
Victor Mata Verçosa(UFAL)
FORMAÇÕES DISCURSIVAS E IDENTIDADE DO SUJEITO PROFESSOR EM
“QUE RAIO DE PROFESSORA SOU EU?”, DE FANNY ABRAMOVICH..................
Djamara Virgínia Ferreira da Rocha Silva (UFCG)
Aloísio de Medeiros Dantas (UFCG)
DE SELFIE A MINICONTO MULTIMODAL: ENSINO DE GÊNERO DIGITAL EM
SALA DE AULA................................................................................................................
Dorinaldo dos Santos Nascimento (UFS)
Vanusia Maria dos Santos Oliveira (UFS)
648
659
LACUNAS E DISTORÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO “OFICINA DE
ESCRITORES”...................................................................................................................
Edilaine P. de Sousa (UPE)
Magna Kelly Sales (UPE)
670
VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM PERNAMBUCO: OCORRÊNCIAS LEXICAIS
PARA CIGARRO DE PALHA E TOCO DE CIGARRO.....................................................
Edmilson José de Sá (CESA)
684
O RISO IRÔNICO NA POESIA DE ANGÉLICA FREITAS............................................ 695
Eduarda Rocha Góis da Silva (UFAL)
HISTÓRIAS DE RESISTÊNCIA: MEMÓRIA E IDENTIDADE NA LITERATURA
INFANTO-JUVENIL DE GRAÇA GRAÚNA E INALDETE PINHEIRO......................
Eidson Miguel da Silva Marcos (UFRN)
Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)
O MICROCONTO: UM PRODUTO DA ROMANCIZAÇÃO.........................................
Elias Coelho da Silva (UFPB)
704
713
A DESAGREGAÇÃO HUMANA EM MAÇÃ AGRESTE, DE RAIMUNDO
CARRERO..........................................................................................................................
Eliene Medeiros da Costa (UEPB)
725
A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA EM LAÇOS DE FAMÍLIA, DE
CLARICE LISPECTOR...................................................................................................... 736
Elizabete Sampaio Vieira da Silva (PPGEL/UNEMAT)
Elisabeth Battista (UNEMAT)
ENTRE LENDAS E GUARANÁS: O IMAGINÁRIO SIMBÓLICO
BRASILEIRO...................................................................................................................... 746
Eliziane Navarro (PPGEL/UNEMAT)
Olga Maria Castrillon-Mendes (PPGEL/UNEMAT)
MAINHA, VOU NO SHOPPING: UM ESTUDO DA VARIAÇÃO DA LÍNGUA
NUMA PERSPECTIVA LINGUÍSTICA E GRAMATICAL............................................
Eloir Geneci Castro da Silva (UNICAP)
Carla Moreira de Paula (UNICAP)
756
A TÉCNICA MODERNA NA VISÃO DE HEIDEGGER: NOVAS PERSPECTIVAS
DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA NO CAMPO DA
LINGUAGEM..................................................................................................................... 764
Emmanuella Farias de Almeida Barros (UFPE)
AS GRAMÁTICAS E DICIONÁRIOS RENASCENTISTAS E O SABER
LINGUÍSTICO OCIDENTAL............................................................................................ 776
Enézia de Cássia de Jesus (UFAL)
AS DANÇAS DA LINGUAGEM, OS CAMINHOS DE UMA LEITURA POÉTICA....
Érica Thereza Farias Abreu (UFPE)
781
CIUMENTO DE CARTEIRINHA, DE MOACYR SCLIAR – UM JOGO FICTÍCIO E
INTERTEXTUAL............................................................................................................... 790
Everaldo Bezerra de Albuquerque (UFAL/PPGLL)
A LEITURA DE TEXTOS LITERÁRIOS: UMA ABORDAGEM PEIRCEANA...........
Expedito Ferraz Júnior (UFPB)
798
VOLUME II
O NEOLOGISMO EM CANÇÕES DE GILBERTO GIL.................................................
Fabiana Vieira Barbosa (UFRPE/UAST)
Adeilson Pinheiro Sedrins (UFRPE/UAST)
OS SENTIDOS DO DISCURSO DO ENSINO PROFISSIONAL COMO ACESSO AO
EMPREGO NO BRASIL....................................................................................................
Fabiano Duarte Machado (PPGLL-UFAL)
O SAGRADO NA POESIA FEMININA DE ADÉLIA PRADO E DIVA CUNHA.........
Felipe Assis Araujo (UFRN/CERES)
SOBRE CIMENTO E SANGUE: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS
ENTRE O NOVO BRUTALISMO E A LITERATURA BRUTALISTA.........................
804
816
828
840
Felipe Benicio de Lima (PPGLL/UFAL)
TRADUÇÃO MULTIMODAL: ASPECTOS ESTRUTURAIS DE ASSASSIN’S
CREED................................................................................................................................
Felipe Cezar Menezes (UNEB)
Juliana Cristina Salvadori (UNEB)
Adolfo Paiva de Andrade (UNEB)
CONSIDERAÇÕES SOBRE O HIPER-REALISMO DE ANDRÉ SANT’ANNA..........
Felipe de Castro Cruz (UFPB)
Jéssica Rodrigues Férrer (UFPB)
852
863
TENDÊNCIAS DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA...................... 871
Felipe Vigneron Azevedo (IFF)
LITERATURA E NATUREZA EM MANOEL DE BARROS.......................................... 883
Fernanda Bezerra de Aragão Correia (UFS)
“XANDRILÁ” SOB UM VIÉS SEMIÓTICO.................................................................... 894
Flávio Passos Santana (UFS)
A PRESENÇA DOS GÊNEROS TEXTUAIS NAS QUESTÕES DE MATEMÁTICA
NO ANTIGO ENEM........................................................................................................... 906
Francielle Santos Araújo (UFS)
Fabíola dos Santos Lima (UFS)
RECLUSÃO E LIBERDADE NA TRAJETÓRIA FICCIONAL DE MAYOMBE............
Francigelda Ribeiro (UFMG)
Lila Léa Cardoso Chaves Costa (UFPI)
916
ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS: UMA ABORDAGEM INTERTEXTUAL E
MULTIMODAL DO GÊNERO.......................................................................................... 924
Francilene Leite Cavalcante (UNICAP/IFAL)
Roberta Caiado (UNICAP)
O LETRAMENTO ACADÊMICO E O TRABALHO DOCENTE: OS CONFLITOS
VIVENCIADOS NA ELABORAÇÃO DE UM MATERIAL DIDÁTICO IMPRESSO
DA EAD..............................................................................................................................
Francineide Ferreira de Morais (UFPB\PROLING\GELIT)
RODAS DE CONVERSA COMO EVENTO DE LETRAMENTO PARA A
PRODUÇÃO E REFACÇÃO TEXTUAL NA EJA...........................................................
Francisca Aldenora Moreno Fernandes (UFRN)
Ana Maria de Oliveira Paz (PPgEL/UFRN)
O GÊNERO ENTREVISTA: UMA PROPOSTA DE RETEXTUALIZAÇÃO DA
FALA PARA A ESCRITA.................................................................................................
Francisca Fabiana da Silva (UFRN)
936
948
960
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ALGUMAS REFLEXÕES............................... 971
Francisco Canindé de Assunção (SABERES)
DO CORDÃO À WEB: O CORDEL-NOTÍCIA NA INTERNET..................................... 981
Francisco Leandro de Assis Neto (UEPB)
AS TRANSPARÊNCIAS DO TERROR............................................................................
Gabriel D. M. Moura Freitas (GELISC/CNPq/UFPB)
993
A UTILIZAÇÃO DO CONTO E SUAS IMPLICAÇÕES NAS PRÁTICAS DE
ESCRITA E REESCRITA DE TEXTOS EM SALA DE AULA....................................... 1.002
Gabriela Ulisses Fernandes (UNEAL)
A PERFOMANCE NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA DE MARCELINO
FREIRE...............................................................................................................................
Gérsica Cássia Ferreira Leite (UFPE)
1.011
ETHOS DO COTIDIANO FEMININO DE TEXTOS LITERÁRIOS DAS AUTORAS
CONTEMPORÂNEAS BRASILEIRAS IVANA ARRUDA LEITE E MARTHA
MEDEIROS......................................................................................................................... 1.024
Giovanna de Araújo Leite (BARÃO EAD - Ribeirão Preto/SP)
VOCÊ VIU TU, SENHOR? COMPETIÇÃO DE TRATAMENTO EM CARTAS DO
SERIDÓ E CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO...........................................................
Gisonaldo Arcanjo de Sousa (UFRN)
1.037
ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO À
LEITURA DE POEMAS LÍRICOS.................................................................................... 1.048
Helio Castelo Branco Ramos (IFPE)
INTENCIONALIDADE LINGUÍSTICA NAS CAMPANHAS PUBLICITÁRIAS EM
OUT-DOORS NAS CIDADES DE OLINDA E RECIFE..................................................
Heloisa Pedrosa de Araújo (UFPE)
1.061
RESUMO DE LEITURA: UMA ANÁLISE DO DOMÍNIO DO DISCURSO
TEÓRICO À LUZ DO ISD................................................................................................. 1.070
Hermano Aroldo Gois Oliveira (UFCG/PÓS-LE)
A VOZ DO SILÊNCIO INDÍGENA: O EXERCÍCIO DO PODER IDEOLÓGICO
SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE ATORES SOCIAIS..................................................
Ilka da Graça Baía de Araújo (UEG)
Gláucia Cândido Vieira (UFG/UEG)
GÊNERO E RELAÇÕES INTERÉTNICAS NA CONSTRUÇÃO FAMILIAR
AFRICANA EM O ALEGRE CANTO DA PERDIZ, DE PAULINA CHIZIANE.............
Ilka Souza dos Santos (UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
A ABORDAGEM SEMIÓTICA COMO MÉTODO PARA ENSINO DE ANÁLISE
DO TEXTO LITERÁRIO...................................................................................................
Ingrid Cruz do Nascimento (UFPB)
Dalva Sales Carvalho Cunha (UFPB)
1.083
1.096
1.109
O CURRÍCULO DE LÍNGUA PORTUGUESA COMO UM GÊNERO INSERIDO NO
CONTÊINER DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS.............................................................. 1.113
Isabela Bastos de Carvalho (IFF/CEFET-RJ)
PLANO PLURIANUAL DE ALFABETIZAÇÃO NO SISTEMA PRISIONAL NO
ESTADO DE SERGIPE: APLICAÇÃO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO INICIAL
DE ALFABETIZADORES E COORDENADORES DE TURMAS.................................
Isis Mota Rodrigues Dantas (SEED – Secretaria de Estado da Educação)
A VIDA ÍNTIMA DA MORTE SUBVERTIDA NA POÉTICA CONTEMPORÂNEA
DE HILDA HILST..............................................................................................................
Ivon Rabêlo Rodrigues (FAFIRE)
Edigar dos Santos Carvalho (UFPE)
REPRESENTAÇÕES LITERÁRIAS DA MILITÂNCIA POLÍTICA: NOS, OS DO
MAKULUSU, DE JOSE LUANDINO VIEIRA E UN FUSIL DANS LA MAIN, UN
POEME DANS LA POCHE, DE EMMANUEL DONGALA............................................
Jacqueline Fernanda Kaczorowski Barboza (USP)
OS LETRAMENTOS NO CIRCO DO FUXIQUINHO E O PAPEL DO PROFESSOR..
Jaécia Bezerra de Brito (UFRN/PROFLETRAS)
1.126
1.140
1.149
1.159
O ÍCONE METAFÓRICO PEIRCIANO NO POEMA MORTE E VIDA SEVERINA....... 1.170
Janicreis Gomes de Souza (UFPB)
Expedito Ferraz Júnior (UFPB)
A CONCEPÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM E O DISCURSO PEDAGÓGICO
DO PROFESSOR: UMA AULA MAGNA DE ARIANO SUASSUNA...........................
Janielly Santos de Vasconcelos(UFPB)
1.180
PRODUÇÃO DE CHAMADAS TELEVISIVAS: O ENSINO DA ESCRITA NUMA
PERSPECTIVA PROCESSUAL........................................................................................
Jária Suéldes Alves de Lima (UFRN)
1.190
O JOGO ENTRE AS REMINISCÊNCIAS E O DESVELAMENTO NOS POEMAS
DE BANDEIRA DE TEMÁTICA ONÍRICA....................................................................
Jefferson Cleiton de Souza (UFPE)
1.203
COLONIALISMO E PÓS-COLONIALISMO EM O ALEGRE CANTO DA PERDIZ,
DE PAULINA CHIZIANE.................................................................................................
Jeferson Rodrigues dos Santos (UFS)
Anderson de Souza Frasão (UFS)
1.211
REPRESENTAÇÕES DA MULHER AMAZÔNICA NO ROMANCE DE MILTON
HATOUM............................................................................................................................ 1.218
Joanna da Silva (UFAM)
INTERTEXTUALIDADE COMO METALITERATURA: ANÁLISE
COMPARATIVA DE VIDAS SECAS E “FAROESTE CABOCLO”................................
João Batista da Silva (UFRPE/UAG)
Nilson Pereira de Carvalho (UFRPE/UAG)
1.231
CHARGES SOBRE O CARNAVAL: UM RISO CARNAVALESCO?............................ 1.243
Jociane da Silva Luciano (UFRN)
PRODUÇÕES TEXTUAIS DE ALUNOS GRADUANDOS INICIANTES EM
LETRAS..............................................................................................................................
Joelma da Silva Santos (UFPB)
1.255
GÊNEROS TEXTUAIS E ANÁLISE LINGUÍSTICA COMO PROCESSO DE
ORGANIZAÇÃO LINGUÍSTICA E IDENTIDADE SOCIAL.........................................
John Hélio Porangaba de Oliveira (UNICAP)
1.268
A ESTÉTICA NEOBARROCA NA CANÇÃO DE CHICO CÉSAR: UM LEITURA
DE A PROSA IMPÚRPURA DE CAICÓ.......................................................................... 1.280
Jonathan Lucas Moreira Leite (UFPB-PPGL)
A AMBIVALÊNCIA DA CONFISSÃO NA ESCRITURA DE MIA COUTO................
José Aldo Ribeiro da Silva (UEPB)
1.287
ENSINO DE LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTOS NAS SÉRIES FINAIS:
PROCESSOS DE RETEXTUALIZAÇÃO COM O GÊNERO MEMÓRIAS................... 1.300
José Aurélio da Câmara (UFRN)
VIOLÊNCIA, REPRESSÃO E FORMA EM AVALOVARA.............................................. 1.312
José Helber Tavares de Araújo (UFPB)
O JOGO DAS PALAVRAS NO POEMA “MY SWEET OLD ETCETERA”, DE E. E.
CUMMINGS.......................................................................................................................
José Vilian Mangueira (UERN)
1.325
ANALISANDO O DISCURSO E O HUMOR NAS CHARGES: DO MATERIAL
LINGUÍSTICO À MATERIALIDADE DISCURSIVA..................................................... 1.335
José Wellisten Abreu de Souza (PROLING-UFPB)
EQUÍVOCOS E CONTROVÉRSIAS DO LIVRO DIDÁTICO SOBRE O ENSINO DE
GÊNEROS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL............................................................
Josefa Maria dos Santos (UPE)
Maria Alcione Gonçalves da Costa (UPE)
A TÉCNICA DO MONÓLOGO INTERIOR NA CONSTRUÇÃO DO SER DA
FICÇÃO EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS...................................................
Josivaldo Silva Menezes (UPE)
1.348
1.361
A IMPORTÂNCIA DAS TIC NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE
INGLÊS............................................................................................................................... 1.371
Joyce Rodrigues da Silva Magalhães (IFAL/UFAL-PPGLL/ObservU)
Adriana Nunes de Souza (IFAL)
O IMAGINÁRIO FICCIONAL EM “A MORTE DE D.J. EM PARIS” DE ROBERTO
DRUMMOND..................................................................................................................... 1.382
Juceli da Cruz Carneiro (FAFICA)
O TRATAMENTO DADO ÀS VARIEDADES LINGUÍSTICAS NOS LIVROS
DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS DO ENSINO FUNDAMENTAL (ANOS FINAIS)
APROVADOS PELO PNLD-2014..................................................................................... 1.393
Juciano Santos Soares da Silva (UFPE/FACEPE)
A PERSONAGEM ILUMINATA COMO A MANIFESTAÇÃO DA VOZ FEMININA
NA FICÇÃO DE LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA....................................................
Júlio César Martins de Sales (UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
1.406
IMAGENS DE NAÇÃO EM ODETE SEMEDO E CONCEIÇÃO EVARISTO..............
Karina de Almeida Calado (PUC-Minas)
1.417
NOVAS TECNOLOGIAS E FORMAÇÃO DOCENTE.................................................... 1.432
Karina Kelly Amâncio (IFAL)
UMA ANÁLISE DA TEORIA ARGUMENTATIVA EM AVALIAÇÕES EM LARGA
ESCALA NO BRASIL – SAEB E PROVA BRASIL........................................................ 1.438
Karine Alves David (UFRN)
VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO SOCIAL EM MARCELINO FREIRE: UMA ANÁLISE
CRÍTICA.............................................................................................................................
Karla Karine Claudino Tenório (UPE)
A INTERVENÇÃO DIDÁTICA NO PROCESSO DE PRODUÇÃO TEXTUAL DE
ALUNOS PARTICIPANTES DA OLIMPÍADA DE LÍNGUA PORTUGUESA-OLP....
Karolynne Kaya Maria Amorim Moura (PPGE)
Adna de Almeida Lopes (UFAL)
1.450
1.463
CUTUCAR, CURTIR, COMENTAR, COMPARTILHAR: UMA ANÁLISE DOS
RELACIONAMENTOS AFETIVOS NA CONTEMPORANEIDADE NA REDE
SOCIAL FACEBOOK......................................................................................................... 1.476
Kassios Cley Costa de Araújo (UnP)
PRODUÇÃO DE TEXTO NA CONTEMPORANEIDADE –UMA VISÃO SOBRE O
ENSINO DE LINGUAS NA ERA DIGITAL………………….……………………...…. 1.486
Kathia Maria Barros Leite (UFAL/IFAL)
Rita de Cássia Souto Maior (UFAL)
GÊNERO TEXTUAL COMO EIXO NORTEADOR DO ENSINO DE LÍNGUA
PORTUGUESA................................................................................................................... 1.498
Katiane Silva Santos (IFAL)
UMA ANÁLISE DE CONCEITOS E CONCEPÇÕES NOS REFERENCIAIS
CURRICULARES PARA O ENSINO MÉDIO DA PARAÍBA: A PRESENÇA DE
BAKHTIN...........................................................................................................................
Keila Gabryelle Leal Aragão (UFPB)
Ayanne Mayelle da Silva Ferreira (UFPB)
A LINGUAGEM DO PROBLEMA MATEMÁTICO.......................................................
Kelly Jane da Silva Tcham (PIBIC/IFAL)
Nádia Mara da Silveira (IFAL)
1.506
1.519
FACEBOOK E ENSINO DE GÊNEROS: UMA EXPERIÊNCIA MIDIÁTICA EM
REDE................................................................................................................................... 1.529
Laene Alves Pacheco Vaz (UPE)
Benedito Gomes Bezerra (UPE)
CRIADAS E MALVADAS: A IDENTIDADE VISUAL DAS LATINOAMERICANAS................................................................................................................... 1.541
Larissa de Pinho Cavalcanti (UFPE)
DESCONSTRUÇÃO E CONSTRUÇÃO DA REALIDADE EM “NOIVAS
PROIBIDAS DOS ESCRAVOS SEM ROSTO NA CASA SECRETA DA NOITE DO
TEMÍVEL DESEJO”..........................................................................................................
Laura Fernanda Vicente de Souza (FAFICA)
1.553
GÊNEROS DISCURSIVOS COMO FORMAS DE CONTEXTUALIZAÇÃO NO
ESPAÇO VIRTUAL: O CASO DO MOVIMENTO OCUPE ESTELITA........................
Laura Jorge Nogueira Cavalcanti (UFPE)
1.564
O USO DOS RECURSOS COESIVOS NA PRODUÇÃO DE TEXTOS DO
GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO EM INGLÊS: PROBLEMAS ENFRENTADOS
PELO APRENDIZ..............................................................................................................
Leane Mayara da Silva Santos (UNEAL)
Delma Cristina Lins Cabral de Melo (UNEAL)
1.575
MECANISMOS DE COESÃO REFERENCIAL EM PRODUÇÕES ESCRITAS: UMA
ABORDAGEM NO CONTEXTO ESCOLAR................................................................... 1.587
Leonildo Leal Gomes (UFRN)
GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS E MANUAIS DO PROFESSOR: QUAL O
TRATAMENTO DADO ÀS QUESTÕES CONTEXTUAIS?........................................... 1.596
Lílian Noemia Torres de Melo Guimarães (UFPE)
BARROQUISMOS NA POESIA DE DRUMMMOND....................................................
Lindjane Pereira (UFPB)
Líllian Régis (UFPB)
A EXPERIÊNCIA DE LEITURA E O LEITOR EM FORMAÇÃO NO PRIMEIRO
CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL...........................................................................
Luana Machado (UFAL)
Léa Maria da Silva Borges (UFAL)
APOCALIPSES DA MODERNIDADE: O FIM DO MUNDO EM ENSAIO SOBRE A
CEGUEIRA E 2666.............................................................................................................
Lucas Antunes Oliveira (UFPE)
1.608
1.617
1.625
O CORVO DE EDGAR ALLAN POE – UMA ANÁLISE CONTRASTIVA DAS
TRADUÇÕES DE MACHADO DE ASSIS E FERNANDO PESSOA............................. 1.637
Lucélia Aparecida de Ávila Carvalho (IFTO)
UM CRIME DELICADO SOB A ÓTICA PÓS-MODERNA............................................ 1.648
Luciana Bessa Silva (FALS)
A ÁFRICA QUE HÁ EM NÓS... IMPRESSÕES E EXPERIÊNCIAS
COMPARTILHADAS NO ENSINO FUNDAMENTAL..................................................
Luciana Maria Carvalho Medeiros dos Santos (UFRN)
Valdenides Cabral de Araújo Dias (UFRN)
1.659
UM ESTUDO SOBRE MARCADORES DISCURSIVOS NO GÊNERO
COMENTÁRIO DE BLOG FUTEBOLÍSTICO PERNAMBUCANO.............................. 1.671
Lucineudo Machado Irineu (UNILAB)
Walison Paulino de Araújo Costa (UFRPE)
A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM O ESPELHO DIAMANTINO –
PERIÓDICO DE POLÍTICA, LITERATURA, BELAS ARTES, TEATRO, E MODAS
DEDICADO ÀS SENHORAS BRASILEIRAS.................................................................
1.679
Lucirley Alves de Oliveira (UFPE)
A REPRESENTAÇÃO FEMININA NA ESCRITA DE ANA MIRANDA......................
Luiz Renato de Souza Pinto (IFMT)
AS LITERATURAS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS NA SALA DE AULA –
UM NOVO FAZER PEDAGÓGICO.................................................................................
Lygia Maria Andrade Figueira dos Santos (UFRRJ)
Viviane de Araújo Nascimento (UFRRJ)
1.689
1.697
VOLUME III
CONTRIBUIÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA
PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO E A FORMAÇÃO DO LEITOR.......................
Mabel Cristina Azevedo dos Santos (PROFLETRAS – UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
1.707
O GÊNERO BLOG PEDAGÓGICO E O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: POR
UMA PRÁTICA EDUCOMUNICATIVA DE LEITURAS DIALÓGICAS DA MÍDIA
POLÍTICA........................................................................................................................... 1.718
Manassés Morais Xavier (UFCG)
Maria de Fátima Almeida (UFPB)
LITERATURA AFRICANA DE LÍNGUA PORTUGUESA: UMA POSSIBILIDADE
DE DIÁLOGO ENTRE BRASIL E ANGOLA..................................................................
Marcela de Melo Cordeiro Eulálio (POS-LE/ UFCG)
Josilene Pinheiro-Mariz (POS-LE/ UFCG)
1.729
A INFLUÊNCIA DA LÍNGUA MATERNA NA AULA DE LÍNGUA
ESTRANGEIRA: OS MARCADORES CONVERSACIONAIS E A ALTERNÂNCIA
DE LÍNGUA.......................................................................................................................
Marcelo Augusto Mesquita da Costa (UFPE)
Kazue Saito Monteiro de Barros (UFPE)
1.741
O TRABALHO COM O GÊNERO POESIA, O TEXTO E A ORALIDADE NO
ENSINO..............................................................................................................................
Márcia Nadja Oliveira de Medeiros Galvão (UFRN)
1.752
MR. POTTER E A VOICELESS DO SUJEITO COLONIAL: IDENTIDADE, RAÇA E
MARGINALIDADE EM JAMAICA KINCAID...............................................................
Márcia Oliveira (UFPE)
1.762
O ETHOS QUE QUEREMOS E O ETHOS QUE PODEMOS.......................................... 1.772
Márcia Regina Curado Pereira Mariano (DLI – UFS)
CULTURA: VARIEDADES DA LÍNGUA NA CONCORDÂNCIA VERBAL E
INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA...................................................................................... 1.783
Márcione Teles de Melo Barros (ULHT)
CAMINHADO POR TERRAS HABITADAS POR FANTASMAS: A
PEREGRINAÇÃO DO NARRADOR NA OBRA ‘OS ANÉIS DE SATURNO’.............
Marcos Eduardo de Sousa (UFOP)
1.794
OS NOVOS REALISMOS NOVOS EM PRODUÇÕES LITERÁRIAS DE LÍNGUA
INGLESA............................................................................................................................
Marcus V. Matias (UFAL)
1.800
O FEEDBACK COLABORATIVO NA PRODUÇÃO DO GÊNERO E-MAIL: UMA
EXPERIÊNCIA COM ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL II..............................
Maria Angela Lima Assunção (UFRN)
1.812
SEQUÊNCIA DIDÁTICA POR GÊNEROS TEXTUAIS: UMA PROPOSTA PARA O
LETRAMENTO..................................................................................................................
Maria Aparecida Barbosa da Silva (UFPE)
Erivaldo José da Silva (UFPE)
SOLIDÃO E DESAMPARO EM OS CUS DE JUDAS DE ANTÓNIO LOBO
ANTUNES..........................................................................................................................
Maria Aparecida da Costa (UERN)
José Juvêncio Neto de Souza (UERN)
1.823
1.833
DO PRETEXTO PLÁSTICO À VERDADE PLÁSTICA: ANÁLISE DIALÓGICA DO
DISCURSO ESTÉTICO – POESIA, PINTURA E OUTROS GÊNEROS – LIÇÕES DE
ESPANHA........................................................................................................................... 1.841
Maria Bernardete da Nóbrega (UFPB)
O GÊNERO TEXTUAL CONTO COMO FERRAMENTA ARTICULADORA NAS
PRÁTICAS DE ESCRITA E REESCRITA EM SALA DE AULA................................... 1.851
Maria Claudicélia Curvelo da Silva (UNEAL)
A BUSCA DA IDENTIDADE CULTURAL NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO
DAS PERSONAGENS EM MÁRIO DE ANDRADE.......................................................
Maria da Conceição José de Sousa (UNEMAT)
MUNDOS LENDÁRIOS: LENDAS NEGRAS E URBANAS NO CONTEXTO DA
SALA DE AULA................................................................................................................
Maria das Graças da Costa (UFCG)
Ana Rafaela Oliveira e Silva (UFRN)
EVENTOS DE LETRAMENTO: O USO SOCIAL DA LEITURA E DA ESCRITA
NA SALA DE AULA.........................................................................................................
Maria das Vitórias dos Santos Medeiros (UFRN)
Maria Marlene dos Santos (UFRN)
1.859
1.866
1.875
MOVIMENTOS DE CONSTRUCÃO DA IDENTIDADE FEMININA NO GÊNERO
PUBLICITÁRIO DA NATURA: PERSPECTIVAS DIÁLOGICAS................................. 1.887
Maria do Carmo R. da Silva (UFPB)
Julia Cristina de L. Costa (UFPB-PROLING)
A ESTETIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA NA LITERATURA BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA: UMA LEITURA DE O MATADOR DE PATRÍCIA MELO........ 1.897
Maria Fernandes de Andrade Praxedes (UEPB)
MEMÓRIA E LITERATURA: TRAUMA, ESQUECIMENTO E PÓS-MEMÓRIA NA
REPRESENTAÇÃO DO MASSACRE DOS ÍNDIOS EM A LENDA DOS CEM, DE
GILVAN LEMOS...............................................................................................................
1.909
Mariá Gonçalves de Siqueira (UFPE)
ANÁFORAS ENCAPSULADORAS NA VOZ DO NARRADOR DE MENINO DE
ENGENHO.......................................................................................................................... 1.920
Maria José Cavalcanti de Andrade (UNICAP)
MUDANÇAS GRAMATICAIS DOS ITENS “E”, “AÍ”, “AGORA” NA FALA E
CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO.............................................................................. 1.929
Maria José de Oliveira (IFRN- Caicó/ UFPB-PROLING)
Camilo Rosa da Silva (UFPB-PROLING)
ANA CRISTINA CESAR: A CONSTRUÇÃO DE UMA DICÇÃO AUTORAL............. 1.942
Maria Lúcia Colombo (UNIR/IFRO)
Sônia Maria Gomes Sampaio (UNIR)
“A ESCRAVA ISAURA” E “ROSAURA, A ENJEITADA”: IMAGENS QUE SE
CONFUNDEM NA OBRA DE BERNARDO GUIMARÃES........................................... 1.952
Maria Rosane Alves da Costa (UPE)
ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO
DISCURSO JORNALÍSTICO............................................................................................
Maria Sirleidy de Lima Cordeiro (UFPE)
1.963
LETRAMENTO DIGITAL: PARA TC DE VZ EM KNDO NA AULA DE
PORTUGUÊS...................................................................................................................... 1.974
Maria Solange de Lima Silva (FCU/UNIFUTURO)
MAIS DO QUE “SENTIDO FIGURADO”: O EFEITO METAFÓRICO SEGUNDO
MICHEL PÊCHEUX..........................................................................................................
Mariana da Silva Gouveia (UFCG)
1.981
AQUILINO RIBEIRO E GUIMARÃES ROSA: PROPOSTAS LITERÁRIAS EM
DIÁLOGO........................................................................................................................... 1.988
Marília Angélica Braga do Nascimento (IFRN/UFC)
A VARIAÇÃO FONÉTICA DO [R] DO PORTUGUÊS BRASILEIRO NA FALA
DOS NATIVOS DE LÍNGUA INGLESA.......................................................................... 2.000
Marília Gomes Teixeira (UFPE)
UMA PEDAGOGIA PARA UM PAÍS MULTILÍNGUE..................................................
Marinázia Cordeiro Pinto (UFRRJ)
Michele Cristine Silva de Sousa (UFRRJ)
2.010
O TRANSPOSITOR SEM: CRITÉRIOS PARA DETERMINAÇÃO DO VALOR
MODAL EM ORAÇÕES ADVERBIAIS REDUZIDAS................................................... 2.021
Marta Anaísa Bezerra Ramos (UEPB)
Camilo Rosa Silva (UFPB)
UMA BREVE ANÁLISE DISCURSIVA EM MÚSICAS CRISTÃS...............................
Max Silva da Rocha (UNEAL)
José Bezerra da Silva (FACESTA)
2.033
DICIONÁRIO ELETRÔNICO: UMA PROPOSTA PARA O ENSINOAPRENDIZAGEM DE LÍNGUA....................................................................................... 2.044
Mayara Oliveira Feitosa (UFS)
Elaine Vieira Gois (UFS)
ANGÚSTIAS NO INFÉRTIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE “NOS HAN DADO LA
TIERRA” DE JUAN RULFO…………………………………………….…...………….
Mercia Paulino Nicolau da Silva (UFPE)
ANÁLISE DIALÓGICA DO FILME FAHREINHEIT 451...............................................
Micheline Barros Chaves (UEPB)
DISCURSOS SOBRE O TRABALHO DOCENTE: O QUE DIZEM OS
PROFESSORES EM FORMAÇÃO INICIAL A RESPEITO DA DOCÊNCIA...............
Mirelle da Silva Monteiro Araujo (UFPB)
2.052
2.062
2.075
A CRIAÇÃO DE ESTRATÉGIAS PERSUASIVAS NA CONSTRUÇÃO DE AULAS
ARGUMENTATIVAS........................................................................................................ 2.087
Nádia Mara da Silveira (IFAL)
O PROCESSO DE SUMARIZAÇÃO EM POSTAGENS DO FACEBOOK: O CASO
DA SÉRIE “JEAN COMENTA”........................................................................................
Nadiana Lima da Silva (UFPE)
Monique Alves Vitorino (UFPE)
DISCUTINDO A LEITURA A PARTIR DAS INICIATIVAS NA CIDADE DE
SERROLÂNDIA/BA..........................................................................................................
Naylane Araújo Matos (UNEB)
Juliana C. Salvadori (UNEB)
RETRATOS DA DESCOLONIZAÇÃO: O RETORNO DE DULCE MARIA
CARDOSO..........................................................................................................................
Nefatalin Gonçalves Neto (UFRPE/USP)
2.098
2.114
2.126
ATRAVÉS DA LITERATURA: LITERATURA SHAKESPEARIANA.......................... 2.138
Patrícia Gonzaga da Silva (UNEAL)
Rosangela Nunes de Lima (UNEAL)
LEITURAS DE TEMAS POLÊMICOS NA SALA DE AULA: POR QUE NÃO
FAZER?............................................................................................................................... 2.146
Patrícia Lira Guedes de Oliveira (UFPB)
A LÍNGUA EM INTERAÇÃO: UM ESTUDO DE CADEIA DE
GÊNEROS EM CONTEXTO DE CONCURSO PÚBLICO.............................................. 2.158
Patrícia Silva Rosas de Araújo (PROLING/UFPB)
Manassés Morais Xavier (UFCG)
A MOBILIZAÇÃO DE LINKS EM MATERIAL DE FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSOR DO ENSINO BÁSICO..........................................................................
Patricio de Albuquerque Vieira (UEPB)
2.168
LETRAMENTO CRÍTICO E O ENSINO DE INGLÊS: REFLEXOS DENTRO E
FORA DA SALA DE AULA.............................................................................................. 2.179
Paula Tenório dos Santos (IFAL)
A MECÂNICA, A POTÊNCIA E O ATO ENFÁTICO OU A PRODUÇÃO TEXTUAL
BARRETIANA...................................................................................................................
Paulo Alves (UFPB)
OLHARES SOBRE O FEMININO: A CONSTRUÇÃO DE UM DOCUMENTÁRIO
POR ALUNOS DO ENSINO MÉDIO DENTRO DE UMA EXPERIÊNCIA DE
ESTÁGIO SUPERVISIONADO........................................................................................
Pedro Felipe de Lima Henrique (UFPB)
Frederico de Lima Silva (UFPB)
2.186
2.198
ANÁLISE CRÍTICA DO CONTO “A CHINELA TURCA” SOB O VIÉS DA
ESTÉTICA DA RECEPÇÃO.............................................................................................. 2.210
Pedro Santos da Silva (UFS)
POLÍTICAS LINGUÍSTICAS EDUCACIONAIS NO ESTADO DE PERNAMBUCO:
INTERPRETAÇÕES DOS PROFESSORES ACERCA DOS PARÂMETROS DO
ESTADO.............................................................................................................................
Rafaela Cristina Oliveira de Andrade (UFPB)
Terezinha de Jesus Gomes do Nascimento (UFPB)
2.216
“A PROSA DOS MEUS VERSOS”: SENTIDOS DO REAL NA POESIA LÍRICA
MODERNA......................................................................................................................... 2.229
Raquel Brandão do Sêrro (Universidade de Coimbra)
A MODALIDADE COMO ESTRATÉGIA DISCURSIVA: DO ENFOQUE
SISTÊMICO-FUNCIONAL AO DA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA.................... 2.240
Rebeca Sales Pereira (UFC)
A ABORDAGEM DOS GÊNEROS DISCURSIVOS EM SALA DE AULA................... 2.252
Renata Xavier Moreira (UFPB)
CARTÃO-POSTAL PUBLICITÁRIO: MARCAS TEXTUAIS E CONSIDERAÇÕES
SOBRE O GÊNERO...........................................................................................................
Renato Lira Pimentel (UFPE)
PERGUNTAS DO ALUNO AO PROFESSOR: FERRAMENTAS DE
APRENDIZAGEM E INTERAÇÃO..................................................................................
Renato Suellisom da Silva Medeiros (UFRN)
Marise Adriana Mamede Galvão (UFRN/DLC)
A NOÇÃO DE EXISTÊNCIA EM LA VIE EN CLOSE, DE PAULO LEMINSKI...........
Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS)
2.259
2.266
2.277
CULTURA DIGITAL E ENSINO...................................................................................... 2.286
Rosana Cardoso Gondim (UNEB)
REPRESENTAÇÃO DAS MINORIAS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA:
VIOLÊNCIA E (DES) ENCONTROS URBANOS............................................................ 2.297
Rosana Meira Lima de Souza (UFPE)
TODA NUDEZ (NÃO MAIS) SERÁ CASTIGADA: O DESNUDAMENTO DO
FEMININO EM NELSON RODRIGUES.......................................................................... 2.308
Rosana Trevisol Seibt (IFAL)
A PARTICULARIDADE ESTÉTICA NA OBRA UMA APRENDIZAGEM OU O
LIVRO DOS PRAZERES (1969), DE CLARICE LISPECTOR.......................................... 2.320
Rosilene Pimentel Santos Rangel (UFAL/ESTÁCIO FASE)
PRÁTICAS DE ESCRITA NO LETRAMENTO ESCOLAR: OS TEXTOS DA
DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA EM LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS DO
ENSINO MÉDIO................................................................................................................
Rosivaldo Gomes (UNIFAP/UNICAMP)
Eloiny Ptra Brasil Lazamé (UNIFAP)
2.328
A MULHER, O TRABALHO E AS NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES:
ASPECTOS TEÓRICOS MATERIALISTAS E DISCURSIVOS NO DISCURSO
MIDIÁTICO........................................................................................................................ 2.344
Samuel Barbosa Silva (UFAL)
ESTUDO ARGUMENTAL DO VERBO ARRUMAR........................................................ 2.354
Sandro Luis de Sousa (IFRN/UFPB)
A ESCRITA DE ANA CRISTINA CESAR: UMA POÉTICA NEOBARROCA.............
Sara de Miranda Marcos (UPE)
2.366
DEIXA IR MEU POVO: GÊNERO E CULTURA............................................................
Sarah da Silva Barretto (UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
2.379
ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: A IMPORTÂNCIA DE FALAR, OUVIR, LER E
ESCREVER TEXTOS EM LÍNGUA PORTUGUESA NAS AULAS DE
PORTUGUÊS...................................................................................................................... 2.388
Shania Jéssika Cavalcante Rodrigues (IFAL)
FRICÇÕES DAS VOZES LABIRÍNTICAS EM A DANÇA DOS CABELOS, DE
CARLOS HERCULANO LOPES......................................................................................
Shantynett Souza F. M. Alves (UNIMONTES)
2.400
O INTERDISCURSO COMO RELAÇÃO CONSTITUTIVA ENTRE FDS: O CASO
BOLSONARO E OS DIREITOS HUMANOS................................................................... 2.407
Sheila Alves de Oliveira (UFPE)
TEMPO, TRANSCENDÊNCIA, ENVELHECIMENTO: UMA LEITURA DA
CRÔNICA “NOS TRILHOS DO TEMPO” DE CAIO FERNANDO ABREU................. 2.418
Sidileide Batalha do Rêgo (UERN)
Antonia Marly Moura da Silva (UERN)
A RELAÇÃO SENSORIAL ENTRE O CORPO DO LEITOR E O TEXTO
LITERÁRIO: UMA ABORDAGEM REFLEXIVA ACERCA DO LETRAMENTO
LITERÁRIO NO CONTEXTO UNIVERSITÁRIO–
...........................................................
Silvio Nunes da Silva Júnior (UNEAL)
ESCRITA MULTIMODAL: UMA PROPOSTA DE MULTILETRAMENTO NO
ENSINO FUNDAMENTAL QUILOMBOLA...................................................................
Soraya Conceição Branco (URCA/UDCS)
Aluizio Lendl-Bezerra (URCA/ UDCS)
(RE) LENDO O ARQUIVO – A PROPÓSITO DAS BASES DOCUMENTAIS DO
2.426
2.434
DISCURSO “OFICIAL”.....................................................................................................
Sóstenes Ericson Vicente da Silva (UFAL)
Maria Virgínia Borges Amaral (UFAL)
TECENDO OS FIOS DA MEMÓRIA: PALAVRA E MEMÓRIA NOS ROMANCES
DE MIA COUTO................................................................................................................
Suelany C. Ribeiro Mascena(UFPE)
MÍNIMO, MÚLTIPLO E INCOMUM: O CONTO DE VERONICA STIGGER.............
Susana Souto Silva (UFAL)
2.442
2.454
2.464
ALFABETIZAÇÃO E/OU LETRAMENTO: COMO FUNCIONA A
APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ESCRITA..................................................................... 2.472
Tamiris de Almeida Silva (IFAL)
Adriana Nunes de Souza (IFAL)
MODELO PARA DESARMAR: A ESCRITURA DE WALY SALOMÃO..................... 2.481
Tazio Zambi de Albuquerque (IFPB/USP)
SEMIOSES NÃO VERBAIS COMO TRAÇOS CONTEXTUALIZADORES DE
MICROCONTEXTO EM SALA DE AULA...................................................................... 2.489
Thaís Ludmila da Silva Ranieri (UAST/UFRPE)
O RESSUSCITÓRIO DE ODORICO-PARAGUAÇU E SUAS OUTRAS GENTES,
UMA ESCRITA PALIMPSESTICA..................................................................................
Thais Rabelo de Souza (UFPE/CAPES)
UM OLHAR ATENTO SOBRE O COTIDIANO FRAGMENTADO E O FAZER
LITERÁRIO CONTEMPORÂNEO: MARIO LEVRERO, DO DISCURSO VACÍO A
NOVELA LUMINOSA.........................................................................................................
Thays Albuquerque (UEPB)
O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO ATRAVÉS DO RELATO DE
FUNDO BIOGRÁFICO: UMA LEITURA DE AVÓDEZANOVE E O SEGREDO DO
SOVIÉTICO, DE ONDJAKI..............................................................................................
Thiago da Camara Figueredo (IFPE/UFPE)
LETRAMENTO BUROCRÁTICO: PRÁTICAS DISCURSIVAS E GÊNEROS
TEXTUAIS NA ESFERA ADMINISTRATIVA ESTATAL............................................
Valfrido da Silva Nunes (UFAL)
A SUBJETIVIDADE DO NARRADOR ORAL NA PÓS-MODERNIDADE..................
Vanessa de Santana Vila Flor (UNEB)
2.501
2.508
2.516
2.525
2.536
LUANDA: CENÁRIO AFETIVO DA DISTOPIA PÓS-COLONIAL: UMA LEITURA
DAS OBRAS DE AGUALUSA E ONDJAKI.................................................................... 2.549
Vanessa Riambau Pinheiro (UFPB)
SMARTPHONE, GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA:
INTERAÇÕES MIDIÁTICAS NO APLICATIVO WHATSAPP.....................................
Vera Lúcia de Siqueira Lira (UPE)
SOB A TRIDIMENSIONALIDADE DA ANÁLISE DO DISCURSO CRÍTICA, A
LEITURA DE MUNDO COM BASE NOS GÊNEROS JORNALÍSTICOS....................
2.559
2.570
Vera Lúcia Santos Alves (FASJ)
A ESCRITA PROCESSUAL E O FEEDBACK COLABORATIVO ENTRE PARES
NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA EM TURMA DO 6º ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL............................................................................................................... 2.581
Vilma Abdias de Lima Bezerra (UFRN)
SER EMPREGADO DOMÉSTICO NO BRASIL É SER ESCRAVO: UMA
METÁFORA SISTEMÁTICA DA SEGUNDA ABOLIÇÃO...........................................
Vinícius Nicéas do Nascimento (UFPE)
LITERATURA ERÓTICA: OU ISTO É ERÓTICO OU AQUILO É
PORNOGRÁFICO EM HILDA HILST.............................................................................
Wanderly Alves Ferreira (UPE)
José Laécio de Oliveira (UPE)
Jairo Nogueira Luna (UPE)
2.592
2.601
LÉXICO REGIONAL/POPULAR DE ZÉ VICENTE DA PARAÍBA: GLOSSÁRIO
DA CANÇÃO “DESTINO DE VAQUEIRO”.................................................................... 2.612
Wellington Lopes dos Santos (UFPB)
CAMINHAR PARA DENTRO DE SI MESMO: A METALITERATURA EM
CONTOS DE MIA COUTO...............................................................................................
William Duarte Ferreira (UFRPE/UAG)
Nilson Pereira de Carvalho (UFRPE/UAG)
MOTIVAÇÕES SOCIOFONÉTICAS DO FONEMA LATERAL E FRICATIVO
PALATAL: CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM DE ELE..........
Zaine Guedes da Costa (UFPE)
Rafael Alves de Oliveira (UFPE)
O VERBETE DE DICIONÁRIO COMO GÊNERO DISCURSIVO: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA.....................................................................................................................
Zilda Maria Dutra Rocha (UERN)
Antônio Luciano Pontes (UERN)
2.623
2.634
2.645
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1707
CONTRIBUIÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA
PORTUGUESA PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO E A
FORMAÇÃO DO LEITOR
[Voltar para Sumário]
Mabel Cristina Azevedo dos Santos (PROFLETRAS – UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
Introdução
Atribui-se ao ensino de Língua Portuguesa a missão de, entre outras expectativas, a de
tornar estudantes alfabetizados em um processo que se espera ocorrer nas primeiras séries do
Ensino Fundamental sendo atribuída às séries subsequentes, a formação de estudantes leitores
para quem o ato da leitura seja incorporado ao cotidiano como uma prática prazerosa.
Nesse sentido, são perceptíveis ações intencionais por parte do Ministério da Educação
para incentivo à leitura. Como parte dessas ações está o fato de enviar as escolas acervos
bibliográficos destinados a leitura dos estudantes. Outra ação diz respeito à instituição dos
Parâmetros Curriculares Nacionais que subsidiam o trabalho docente e a construção de
materiais didáticos, dos quais, os livros didáticos. Dentre essas orientações encontra-se a
utilização do texto como “unidade básica do ensino” e a “heterogeneidade textual” (PCN,
1998, p. 23 e 26) o que inclui os textos literários. Nesse processo o livro didático configura-se
como protagonista, visto que, na realidade das escolas públicas, esse é um instrumento
consolidado no apoio didático ao professor e estudantes na formação de leitores.
Em nossa sociedade os textos literários gozam de prestígio visto seu caráter
sociocultural e estético. Sociocultural por estar presente em sociedade que, por sua vez,
valoriza e referenda como importante meio de registro cultural e histórico. Estético pela
capacidade de emocionar, sensibilizar, permitindo ao leitor identificar-se com as imagens que
cria a partir da interação que se realiza no processo de leitura, sendo estas algumas das
características que o diferencia do texto não literário.
Dessa forma, vemos a importância do texto literário consolidada na sociedade e nos
documentos oficiais que regem a educação no país. Nosso questionamento recai sobre o uso
no âmbito escolar do texto literário a partir do livro didático, para formação de leitores e se a
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1708
utilização do trato pedagógico sugerido pelos autores desses livros tem contribuído
acertadamente na efetivação do objetivo pretendido para as séries finais do Ensino
Fundamental: a formação de leitores. Esses são, portanto, os dois temas principais analisados
no presente trabalho.
2. Livro didático – algumas considerações
Os livros fazem parte das sociedades. Estão presentes em distintos momentos e
lançado mão com propósitos diversos: registro da história da humanidade; descobertas
científicas; para perpetuar as culturas preservando a memória às novas gerações; para o
registro de contas; para socializar histórias que emocionam, encantam, surpreendem; ainda
para o registro de acordos socialmente firmados: casamentos, divórcios, registro de
nascimento e óbito, escrituração de imóveis, dentre tantas outras possibilidades.
Todavia, o livro para o qual nos voltamos é o livro didático. Surge então uma pergunta
bastante pertinente: o que o diferencia dos demais livros? Talvez para um professor essa não
seja uma questão tão difícil de ser respondida, já que se trata de um, dentre os instrumentos de
seu trabalho. Outros tantos, alheios ao magistério, poderiam sentir certa dificuldade com a
resposta. Assim, consideramos salutar algumas reflexões acerca do livro didático, objeto de
nosso interesse neste trabalho.
A característica fundamental diz respeito ao seu propósito pedagógico, ou seja, a
utilização por professores e estudantes, em âmbito escolar, no processo de ensino e
aprendizagem. É voltado para as diversas séries/ciclos, nas diferentes modalidades: ensino
fundamental, médio e EJA, contemplando todas as disciplinas do currículo escolar. É uma
obra bastante diversa que utiliza linguagem verbal: sugestões de filmes, indicações de sites,
textos de diversos gêneros; e linguagem não verbal: gráficos, tabelas, fotografias, ilustrações,
imagens de obras de arte. Toda essa diversidade tem o intuito de favorecer a aprendizagem do
estudante.
Mas, afinal, como surgiu este livro cheio de peculiaridades? Conforme estudos de
Zilberman (2007, p. 245), o livro didático é um dos “gêneros literários mais antigos do
Ocidente”. Remonta ao século IV a. C. tendo sido “redigido por Anaxímenes de Lampsaco”,
intitulado “Retórica para Alexandre” e apontado como o “livro didático mais típico daquela
época”. O estudo contido no livro didático era “predominantemente o conhecimento da língua
e da literatura”.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1709
Pensar o livro didático nos remete ao ensino formal ministrado nas escolas e a história
da educação em nosso país. Como é sabido, historicamente o ensino escolarizado esteve
voltado às classes dominantes sendo seus professores também oriundos da mesma classe com
“condições intelectuais e materiais” de preparar seu próprio material didático (Bezerra, 2010,
p. 44). Ser professor era gozar de prestígio e valorização social. É interessante notar as
características dos estudantes e professores desse período: fazem parte da classe socialmente
mais favorecida; apresentam um grau de letramento elevado e com adequação a norma
padrão.
Segundo estudos de Bezerra (2010, p. 44 e 45), a partir da década de 50, devido
pressão social, a escola passa a expandir o número de vagas e acolher cada vez mais
estudantes oriundos “de outras camadas sociais”. Temos assim um aumento na demanda, com
estudantes apresentando letramentos distintos à norma padrão. Essa nova realidade resultou
na contratação de professores que “não detinham uma formação ampla, nem conhecimentos
mais profundos da língua”, sendo essa a razão para o surgimento do livro didático no cenário
da educação brasileira como o é hoje, pois, os professores devido às lacunas em sua formação
já não dispunham de condições para confecção de seu próprio material pedagógico, sendo
essa missão atribuída aos autores dos livros didáticos. É nesse cenário que o desprestígio da
profissão se inicia.
Na atualidade o livro didático é alvo de uma complexa e contraditória discussão acerca
de sua contribuição para educação nacional. Há estudiosos que se tem debruçado sobre o
tema, como ZILBERMAN (2007), RANGEL (2013), BEZERRA (2010) entre outros, muitos
dos quais apontam os desencontros entre o que os documentos oficiais orientam quanto à
educação pretendida em nossa nação e o que está posto nos livros didáticos. Certamente as
discrepâncias observadas, foram um dos motivos pelo qual o MEC a partir de 1996 formou
uma comissão para análise das obras que se inscrevem no PNLD - Programa Nacional do
Livro Didático.
A avaliação dos livros, feita por essa comissão, resulta em um Guia do PNLD com
orientações detalhadas que justificam as coleções postas como aprovadas. Todavia, é
importante ressaltar que essa avaliação não é soberana, não garante a qualidade que se espera
nem seu uso eficiente. Desde 1985 cada escola tem autonomia de junto aos professores
escolher a coleção que mais se adéqua a sua realidade e ao Projeto Político Pedagógico da
instituição.
A despeito de todas as críticas, a cada edição do PNLD os números têm comprovado
um aumento significativo de recursos destinados a aquisição e distribuição do livro didático
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1710
em território nacional. Conforme portal do MEC em 2011 foram investidos R$ 184 milhões
na aquisição dos livros didáticos destinados ao Ensino Médio; em 2014 a previsão de
investimentos era de R$ 333.116.928,96 um acréscimo que representa um aumento de mais
80%. É oportuno salientar que a partir do Decreto 9.154, de 19 de agosto de 1985 o referido
custeio passou a ser de responsabilidade exclusiva do Ministério da Educação. Além de
atender o Ensino Fundamental e Médio, o programa passou mais recentemente a contemplar
também a Educação de Jovens e Adultos – EJA. O livro didático, paradoxalmente, torna-se o
material pedagógico mais acessível em nossos dias.
3. O ensino da língua materna
Atentando ainda para os fatos históricos e sob a égide de estudos em Lajolo (1993, p.
53) percebemos que até a metade do século XIX o ensino da língua vernácula não esteve
presente no “currículo da escola brasileira”. O ensino de língua materna era preterido, pois,
supunha-se que a instrução já ocorria em casa, sendo privilegiado o “latim e as línguas
estrangeiras” (ZILBERMAN, 2007, p. 247). Esse fato resultou em protestos veementes por
parte de intelectuais, vindo à mudança a estabelecer-se segundo Zilberman (2007, p. 247 e
248) por razões políticas a partir das “revoluções burguesas” que, devido à influência da
Revolução Francesa exigia um “padrão linguístico homogêneo”, passando a eleger a língua
materna como “objeto de conhecimento e difusão entre os escolares”. Assim, apenas nas
“últimas décadas do século XIX, a disciplina de Língua Portuguesa passou a integrar os
currículos escolares brasileiros”, Soares (2001) in Bezerra (2010, p.39). Contudo, a língua da
classe dominante é que foi privilegiada passando o ensino escolarizado a determinar o tipo de
língua a ser veiculada em sociedade. Outro aspecto que se mostra preponderante é o estudo da
gramática normativa (BEZERRA, 2010).
Em nossos dias o ensino da Língua Portuguesa vem sendo questionado acerca do
histórico favorecimento da gramática normativa e suas implicações. Esse ensino,
normalmente descontextualizado, associado à realização de atividades escolares mecânicas e
sem significado para o estudante, tem apresentado resultados negativos constatados
empiricamente, mas, sobretudo, através de mecanismos oficialmente utilizados em larga
escala, as chamadas avaliações externas. Tendo como ponto de partida os mecanismos oficiais
de mensuração da qualidade da educação em nosso país como a Prova Brasil e SAEB, em
nível nacional; e SAEPE, em nosso Estado, por exemplo, é possível constatar que nossos
estudantes não desenvolveram as competências propostas para cada série/ciclo. Esses dados
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
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resultam na implantação de políticas públicas que tem como objetivo minimizar as
discrepâncias encontradas.
Dentre os esforços depreendidos pelo poder público, encontra-se a criação dos
Parâmetros Curriculares Nacionais em 1998, tendo como objetivo não a padronização, mas,
ser um documento norteador ao trabalho docente cujas concepções de aprendizagem se fazem
presentes nas avaliações externas.
Tratando da disciplina de Língua Portuguesa, apresenta
orientações que visam desconstruir o ensino descontextualizado e mecânico, pondo-se como
uma síntese das novas pesquisas no campo do ensino da língua. Dessa forma, subsidiado pelas
novas pesquisas, passa a defender um “projeto educativo comprometido com a
democratização social e cultural atribuindo à escola a função e a responsabilidade de
contribuir para garantir a todos os alunos o acesso aos saberes linguísticos necessários ao
exercício da cidadania” (PCN, 1998, p. 19). O documento atenta ainda para a pluralidade de
culturas existentes e as variedades linguísticas, bem como, para o letramento que se
caracteriza pela participação em práticas sociais que requerem o uso da leitura e escrita.
Ainda concernente ao ensino da língua materna, recomenda que o texto seja a unidade
mínima com o qual deve ser trabalhado não apenas questões gramaticais, mas, ressaltada as
questões discursivas da língua. Abre ainda um leque de possibilidades de gêneros discursivos,
dentre os quais, circulam os textos literários:
Os textos a serem selecionados são aqueles que, por suas características e usos,
podem favorecer a reflexão crítica, o exercício de formas de pensamento mais
elaboradas e abstratas, bem como a fruição estética dos usos artísticos da linguagem,
ou seja, os mais vitais para a plena participação numa sociedade letrada. (PCN,
1998, p. 24).
Sendo a escola, para muitos estudantes, o principal senão, único local em que terão
oportunidade de contato direto com o texto escrito, cabe a escolha criteriosa dos textos que
melhor possibilitem despertar o prazer pela leitura de modo a formamos leitores no Ensino
Fundamental. Dessa forma, a chegada do estudante ao ensino médio, onde serão exigidas
leituras mais densas e complexas, não lhe causará estranheza.
4. O livro didático de Língua Portuguesa e o texto literário
A escolarização do texto literário é um fato inevitável e necessário, visto que à escola
é atribuída, não apenas a missão do ensino da leitura e escrita, mas, a formação de leitores de
modo a favorecer o letramento. Os questionamentos em voga concentram-se na qualidade do
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trabalho que se tem desenvolvido no interior das salas de aula e ao trato dado ao texto literário
nos livros didáticos. A ênfase na utilização do texto literário em ambiente escolar apresenta
pelo menos duas razões, embora não únicas:
A primeira diz respeito ao texto literário em si, pois, ultrapassa a instrumentalização
das práticas pedagógicas de leitura e escrita, contribuindo também para a formação cultural do
indivíduo (COSSON, 2014). É possível mencionar não uma superioridade em relação aos
textos não literários, mas, uma singularidade em sua forma e essência que, sem dúvida
alguma, o torna um importante instrumento de formação de leitores e construção de
identidades pela influência humanizadora nele presente.
Acerca disso Cosson (2014, p. 30) menciona:
Na escola, a leitura literária tem a função de nos ajudar a ler melhor, não apenas
porque possibilita a criação do hábito de leitura ou porque seja prazerosa, mas sim, e
sobretudo, porque nos fornece, como nenhum outro tipo de leitura faz, os
instrumentos necessários para conhecer e articular com proficiência o mundo feito
linguagem.
Temos no âmbito escolar, outras duas questões igualmente importantes: a seleção dos
textos e o trato pedagógico que lhes são dispensados. Cosson (2014) considera que em nossos
dias há pelos menos três critérios de seleção, o que se centra nas obras canônicas; aquele que
defende obras contemporâneas e o critério da diversidade que abrange uma pluralidade de
autores, gêneros e obras. Buscando apontar um equilíbrio no que em dado momento
assemelha-se a um emaranhado de ideias, o autor defende uma harmonia entre essas três
linhas de concepções de modo que cada uma contribua no processo de seleção textual.
A segunda razão diz respeito à importância do cânone que se apresenta como o
guardião de nossa herança e identidade cultural, com o qual o estudante deve dialogar para
conhecimento e maturidade leitora. Ele poderá ainda aceitar ou refutá-lo, todavia, não deveria
jamais ignorar seu conhecimento, visto sua importância cultural. A contemporaneidade das
obras, por sua vez, não garante o sucesso pretendido na formação de leitores. Para Cosson
(2014, p. 34) há uma distinção entre o que é uma obra contemporânea e uma obra atual,
embora muitas vezes tratadas como sinônimos. Segundo o autor, obra contemporânea é a que
foi “escrita e publicada” no tempo do leitor; obra atual é aquela que tem um significado para o
leitor em seu tempo, “independente da época de sua escrita e publicação”. É possível,
portanto, ter uma obra contemporânea que não seduz o leitor enquanto que esse mesmo leitor
pode ser seduzido por uma obra para ele atual, por despertar seu interesse, mesmo publicada
haja períodos passados. O terceiro critério que busca privilegiar a diversidade textual ampara-
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1713
se na recomendação dos PCN’s de heterogeneidade. Entretanto, corre-se o risco de privilegiar
a quantidade em detrimento da qualidade que se faz necessária, se o critério preponderante
estiver baseado apenas na pluralidade. Assim, por si só, esse não é um critério seguro na
escolha dos textos.
Dessa forma, Cosson (2014, p.35-36) propõe:
[...] combinar esses três critérios de seleção de textos, fazendo-os agir de forma
simultânea no letramento literário. Ao selecionar um texto, o professor não dever
desprezar o cânone, pois é nele que encontrará a herança cultural de sua
comunidade. Também não pode se apoiar apenas na contemporaneidade dos textos,
mas sim em sua atualidade. Do mesmo modo, precisa aplicar o princípio da
diversidade entendido, para além da simples diferença entre os textos, como a busca
da discrepância entre o conhecido e o desconhecido, o simples e o complexo, em um
processo de leitura que se faz por meio da verticalização de textos e procedimentos.
É assim que tem lugar na escola o novo e o velho, o trivial e o estético, o simples e o
complexo e toda miríade de textos que faz da leitura literária uma atividade de
prazer e conhecimento singulares.
Cosson (2014) define que o incentivo a leitura por si só não é suficiente. As
intervenções pedagógicas são essenciais, instigando os estudantes ao crescimento e
maturidade leitora que ocorre a partir da exposição a textos que os desafiem. Assim, deve-se
partir do que já é objeto de conhecimento e apreciação dos estudantes para leituras mais
complexas. O sucesso pretendido na formação de leitores perpassa, pois, pela escolha
adequada dos textos e as intervenções pedagógicas do professor que, espera-se, seja também
um leitor.
No livro didático, a presença do texto literário ocorre com algumas especificidades:
em menor número que os não literários; muitas vezes fragmentados (fenômeno que ocorre
com maior frequência nos livros destinados ao ensino médio); dentre os textos literários, o
poema é mais recorrente; com um trato didático que evoca mais questões linguísticas que
literárias. A título de pesquisa, tomamos duas coleções para uma breve análise, nos
delimitando ao volume destinado ao 6º ano do Ensino Fundamental. Vale salientar que ambas
foram aprovadas no PNLD/2013 e que ainda hoje vem sendo utilizadas nas escolas públicas.
A primeira coleção tem por título Português Linguagens e é de autoria de William
Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, foi editado pela Editora Saraiva e já se
encontrava na 7ª edição, no ano de 2012.
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A obra demonstra atentar para heterogeneidade sugerida nos PCN’s, trazendo uma
gama de textos: contos, crônicas, poemas, anúncio publicitário, tirinhas, textos informativos,
cartazes, piadas, cartum, texto jornalístico, romance e fábulas. No total geral estão dispostos
na obra 209 textos distribuídos em quatro unidades, cada uma com três capítulos. Desse
montante, 41 são literários representando 19,62% e 168 textos não literários o que
corresponde a 80,38%. Os números evidenciam a predominância dos textos não literários
havendo uma diferença de 60,76%.
A segunda coleção tomada para análise é de autoria de Ana Triconi Borgatto,
Terezinha Bertin e Vera Marchezi, tendo por título Projeto Teláris. No ano de 2012 estava em
sua 1ª edição.
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1715
O livro contém 119 textos, distribuídos em sete capítulos. Ao longo da obra é possível
encontrar: tirinhas, anúncio, poema, crônica, conto, literatura de cordel, romance e HQ.
Dentre os 119 textos dispostos na obra, 32 são literários, representando 26,89% e 87 textos
não literários, representado 73,11%. A segunda coleção analisada também confere aos textos
não literários presença majoritária. Os números ratificam o desfavorecimento, quando aponta
uma diferença de 46,22%.
Nos dois livros tomados para análise é possível detectar uma predileção pelos poemas,
sendo este gênero textual o mais presente quantitativamente além de, em sua maioria, ser
posto na íntegra. Outro gênero que aparece de forma integral é a fábula tendo em comum aos
poemas, o fato de ser uma narrativa curta. Textos mais longos costumam ser postos nos livros
didáticos de maneira fragmentada, como no caso dos romances, contos e crônicas.
Fato evidenciado pela análise dos livros é que estes não demonstram compromisso
exclusivo com a formação de leitores, pelo contrário, manifestam nitidamente um empenho
no que diz respeito ao ensino da língua. As atividades propostas em sua maioria trazem
abordagens que simultaneamente contemplam questões linguísticas e literárias, sendo que a
primeira em maior número. Fato que chama atenção ao livro didático Projeto Teláris é que os
poemas, maioria dos textos literários presentes na obra, apresentam 6,25% das atividades com
propostas que abordam concomitante questões linguísticas e literárias e 93,75% de atividades
com abordagem exclusivamente linguística. O que causa espanto é que o gênero poema por si
só, já evoca a reflexão literária sendo no caso, totalmente ignorada.
Dados como os demonstrados nos remetem a preocupação quanto a qualidade do livro
didático e a garantia do acesso ao texto literário, sobretudo se atentarmos para o fato que
grande parte dos estudantes das escolas públicas terão no universo escolar o principal, senão,
único meio de acesso ao texto. Rangel (2007, p. 28) afirma que frequentemente “a escola e o
livro didático de português tem significado [...] um veto à fruição da leitura e à formação do
gosto literário, quando não tem representado, pura e simplesmente, um desserviço à formação
do leitor.”
Torna-se, portanto, imperiosa a necessidade de atentarmos para a escolha dos textos e
de modo criterioso eleger aqueles que melhor representam a tradição, o atual e a diversidade,
contudo, sem abrir mão da qualidade literária. Tornar estudantes leitores é, sem dúvida, uma
tarefa ousada, mas, possível pela intervenção pedagógica e uso adequado dos mecanismos que
estão dispostos aos professores e estudantes.
5. Considerações finais
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Ao longo dos anos a educação escolarizada foi se ampliando de modo a estar
disponível a todas as camadas sociais. Passou então a ser vista como instrumento de acessão
social a partir da aquisição de determinados conhecimentos dentre os quais, o domínio da
leitura e escrita.
Em nossos dias saber ler e escrever, apenas, não é suficiente. Há um chamado às
escolas para o que se convencionou denominar de letramento, que trata do uso social em
situações cotidianas das práticas da escrita e leitura. Para que ocorra o letramento é
imprescindível um trabalho pedagógico que ultrapasse as práticas mecânicas usadas durante
muitos anos inclusive no que diz respeito ao uso do livro didático.
O texto literário tem sido apontado por pesquisadores Cosson (2014), Rangel (2007),
Zilberman (2007), como imprescindível ao processo de letramento e formação de leitores.
Contudo, é possível perceber que os livros didáticos utilizados nas escolas públicas de nosso
país carecem ainda de adequações visto que acabam por relegar o texto literário a segundo
plano, tanto na quantidade de textos dispostos nas obras, quanto no trato linguístico presentes
nas atividades propostas em detrimento aos aspectos literários.
Nas últimas décadas muito se tem pesquisado acerca do livro didático e melhoras tem
sido observadas, contudo, é notório que há uma necessidade de mudança que certamente não
ocorrerá em um prazo curto, sendo razoável concluir que o livro didático estará em constante
construção. Ainda assim, no âmbito escolar, ele é o principal instrumento pedagógico na
aquisição dos conhecimentos formalmente constituídos, tendo sido investidas quantias
significativas pelo Ministério da Educação em sua aquisição. Dessa forma, percebemos que
mais que esperar que haja uma mudança radical na constituição dos livros didáticos, há de se
aliar ao trabalho proposto por seus autores, intervenções pedagógicas suscitadas pelos
professores no intuito de corroborar para a formação de leitores, especialmente o leitor
literário.
Embora não abordado neste trabalho, visto sua amplitude, a formação dos professores
é de fundamental importância, sendo pertinente como bem sugere Rojo (2008, p. 30),
“revisões curriculares dos Cursos de Letras e das disciplinas de Prática de Ensino”, bem como
na efetivação de formação continuada em serviço que atentem para esse objetivo. Como
mencionamos no decorrer do trabalho, ser professor leitor é o requisito mínimo na missão
ousada de contribuir para a formação de leitores dos textos literários. Em suma é necessário
que se tenha uma intimidade com a leitura para a escolha adequada dos textos a serem
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apresentados em sala de aula, e uma habilidade com os direcionamentos necessários ao
trabalho reflexivo com o texto que não se conquista, senão, através da maturidade leitora.
Referências
BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental:
língua portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
BEZERRA, Maria Auxiliadora. Ensino de língua portuguesa e contextos teóricometodológicos. In.: DIONISIO, Angela P., MACHADO, Anna R., BEZERRA, Maria
Auxiliadora (org.) Gêneros textuais e ensino. São Paulo. Parábola Editorial, 2010. Cap. 2, p.
39-49.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2014.
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6 ed. São Paulo. Editora
Ática, 1993.
RANGEL, Egon de Oliveira. Letramento literário e livro didático de língua portuguesa: “os
amores difíceis”. Et al: PAIVA, Aparecida. MARTINS, Aracy. PAULINO, Graça.
VERSIANI, Zélia. (org.) Leitura e letramento espaços, suportes e interfaces. Belo Horizonte.
Autêntica/CEALE/FaE/UFMG, 2007. Cap. 9, p. 127-145
ROJO, Roxane. Modos de transposição dos PCNS às práticas e sala de aula: progressão
curricular e projetos. In: ROJO, Roxane (org). A prática de linguagem em sala de aula:
praticando os PCNs. Campinas. São Paulo. Mercado de Letras, 2008. Cap. 3, p. 27-38.
ZILBERMAN, Regina. Letramento literário: não ao texto, sim ao livro. Et al: PAIVA,
Aparecida. MARTINS, Aracy. PAULINO, Graça. VERSIANI, Zélia. (org.) Leitura e
letramento espaços, suportes e interfaces. Belo Horizonte. Autêntica/CEALE/FaE/UFMG,
2007. Cap. 18, p. 245-266.
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O GÊNERO BLOG PEDAGÓGICO E O ENSINO DE LÍNGUA
MATERNA: POR UMA PRÁTICA EDUCOMUNICATIVA DE
LEITURAS DIALÓGICAS DA MÍDIA POLÍTICA
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Manassés Morais Xavier (UFCG)
Maria de Fátima Almeida (UFPB)
Introdução
Objetivamos, neste artigo, oriundo das atividades proporcionadas pelo Projeto de
Extensão “Lendo blogs políticos nas aulas de Língua Portuguesa do ensino médio”
(PROBEX/UFCG/2014), discorrer acerca da influência que o blog pedagógico intitulado
“Leituras da mídia política: você faz?” acarretou para a formação de leitores críticos e
reflexivos através do trabalho com a leitura da mídia política nas Eleições 2014 para
Presidente e Governo do Estado da Paraíba.
Para tanto, nos apoiamos nas contribuições teóricas de autores como Almeida (2013),
Bakhtin/Volochínov (2009), Ribeiro (2007), Miller e Shepherd (2012), Xavier (2013), dentre
outros.
O projeto foi desenvolvido entre os meses de setembro a novembro de 2014 numa
turma de segundo ano do ensino médio da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio
Nenzinha Cunha Lima, localizada em Campina Grande/PB. Utilizando o blog “Leituras da
mídia política: você faz”, criado com o fim pedagógico de nortear e instigar nos alunos a
formação crítica e reflexiva no que concerne à leitura da esfera do jornalismo político
contemporâneo, foram postadas matérias extraídas das editorias políticas de blogs
jornalísticos e de outros veículos midiáticos e, em seguida, os alunos participantes produziram
comentários escritos relacionados às leituras. Além disso, a fim de fomentar os comentários
escritos no blog, também foram feitas discussões orais sobre os conteúdos publicados nessa
ferramenta digital.
Leitura e ensino de leitura
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1719
Para o senso comum o ato de ler implica tão somente a decodificação de termos
linguísticos, tendo uma visão da leitura como uma ação pronta e acabada. Essa acepção é
transportada, na maioria das vezes, para o ensino da leitura no meio escolar. A consequência,
como sabemos, é enxergar no aluno um sujeito passivo, que está apto a decodificar,
memorizar e reproduzir o que lhes é transmitido. Acreditamos, porém, que esta visão de
ensino de língua e mais especificamente de leitura não contribui para a aprendizagem do
aluno. São por essas razões que concordamos com as ideias de Almeida (2013) ao afirmar que
no processo de leitura acionamos o autor que traça o seu dizer pensando no leitor e este, por
sua vez, enquanto sujeito situado num dado espaço sociocultural, observa no texto não apenas
as palavras já ditas, mas também as mensagens implícitas que o mesmo possui. Eis, então, que
surge novos fatores que permeiam a leitura. A interação passa a acontecer entre
autor/texto/leitor. Com esta interação as possibilidades de interpretação podem ser inúmeras,
visto que o leitor, carregado de ideologias, pode compreender e ver no texto elementos que
não estão propriamente visíveis na materialidade linguística.
Possenti (2001), apud Almeida (2013), nos apresenta os três estágios fundamentais da
leitura. O primeiro deles, denominado de leitura filológica, tem o autor como o centro do
saber. No segundo, o texto ocupa posição de destaque e no terceiro o leitor passa a fazer parte
da tríade que interage na leitura. Para além disso, Almeida (2013) nos expõe a visão dialógica
da linguagem. Nesta, a leitura é um processo de interação entre autor/leitor e texto,
proporcionando ao aluno um nível elevado de compreensão acerca daquilo que é lido. Assim,
o processo de leitura na sala de aula envolve o leitor, o texto e o professor, tendo a leitura
como fator de construção de sentido. Logo, o professor não é apenas o transmissor de
conteúdo, nem tampouco o aluno é apenas o receptor. Essa relação exige o conhecimento
prévio de ambas as partes e o professor passa a ser um mediador em sala de aula, auxiliando
na aprendizagem (FREITAS; XAVIER, 2014).
O ensino da língua – especificamente – da leitura, portanto, leva em consideração o
trabalho com os gêneros discursivos, como aponta Bakhtin/Volochinov (2009), sendo
necessário despertar no aluno a compreensão da língua em seu funcionamento. Nessa
perspectiva, a escola deve atribuir o ensino da linguagem para as diversas situações
comunicativas. E o professor é o meio pelo qual o aluno tem contato com as variadas
situações de enunciação. As relações dialógicas durante a leitura possibilitam, assim, a
construção de conhecimento. Sobre tais relações dialógicas Fiorin (2008) nos esclarece que
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1720
o enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o discurso de outrem, que
está presente no seu. Por isso, todo discurso é inevitavelmente ocupado, atravessado,
pelo discurso alheio. O dialogismo são as relações de sentido que se estabelecem entre
dois enunciados. (FIORIN, 2008, p. 19)
Compreendendo os gêneros discursivos como fontes dialógicas, é possível que o aluno
atente para o atravessamento de enunciações presentes no discurso de um dado enunciador,
visto que todo discurso é ocupado pelo discurso de outrem. Vendo o processo de leitura
permeada pela dinamicidade, o sujeito aluno torna-se, também, construtor de sentidos.
A mídia e suas marcas ideológicas
Pensar na leitura da mídia implica considerar esta última como sendo uma fonte
ideológica de poder. Sob essa ótica, podemos afirmar que a mídia (seja a do jornal impresso,
da TV, do Rádio, da internet) funciona como um meio de construção social, uma vez que
através dela os valores da sociedade se estabelecem.
Especialmente nos dias atuais, a mídia que ganha maior visibilidade é aquela que está
ligada ao meio eletrônico. Com a ascensão do computador e consequentemente da internet, é
raro conhecer pessoas que não tenham acesso ao mundo virtual. Logo, é possível dizer que o
sujeito aluno constitui uma relação intrínseca com a mídia, em suas diferentes nuances,
tornando-se um ser apto a interagir comunicativamente com a sociedade. Como afirma Pereira
e Xavier (2007), citados por Xavier e Nascimento (2010),
esses alunos são sujeitos que promovem interações através do discurso eletrônico e,
nesse sentido, reconhecem a importância, seguida da necessidade, de hoje em dia se
evidenciar ações de linguagem via computador. O uso da linguagem mediado pelo
computador é uma realidade que chegou e já se consolidou nas práticas sociais (...)
Esse fato nos faz corroborar a afirmação de que as práticas comunicativas, realizadas
em ambiente virtual, estão cada vez mais tomando espaço e condicionando as pessoas
a agirem socialmente através de seus recursos. Por isso, o letramento digital é algo que
precisa ser constantemente utilizado nas atividades mais corriqueiras do mundo
moderno. (PEREIRA; XAVIER, 2007, CD-ROM sem numeração de página)
A importância da mídia na modernidade advém do fato de que a busca de informação
está cada vez mais intensa e a propagação do conhecimento é fator primordial para o
desenvolvimento de uma sociedade.
Nessa direção, é indubitável a presença da carga
ideológica que a mídia carrega. “A mídia contribui com a formação da opinião pública e,
consequentemente, com as mudanças de condutas/comportamentos sociais” (XAVIER;
NASCIMENTO, 2010, p. 103).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1721
A educomunicação
Um dos fatos mais interessantes na discussão da relação entre leitura e mídia é a
atuação no campo da Educomunicação. Tal área busca o diálogo entre Educação e
Comunicação a fim de
enfatizar a produtividade da utilização de meios da esfera midiática como suportes
didáticos. A ênfase está na preocupação em desenvolver no aluno a capacidade de se
posicionar criticamente diante da sua realidade social. (XAVIER; NASCIMENTO,
2010, p. 26)
Nesta perspectiva, unem-se a escola e a mídia para a propagação de um conhecimento
multi e transdisciplinar, em que as experiências de vida tanto dos professores como dos alunos
influem na compreensão e formação de leitores ativos e emancipados.
Proporcionar essa visão ampla no meio Educacional desmistifica a ideia de ensino
pautada tão somente na transmissão de conteúdos de uma dada disciplina. Com a
Educomunicação surge o intuito de transformar o sujeito aluno em um cidadão ativo e
consciente de seus direitos e deveres através dos meios midiáticos. Corroborando, assim, para
a aprendizagem, conforme Xavier e Nascimento (2010),
a Educomunicação constitui-se numa abordagem do uso das diferentes mídias fina
Educação, na tentativa de oportunizar uma aprendizagem significativa. Ela representa
uma prática pedagógica mediatizada que oferece um processo de elaboração do
conhecimento pautado na interação entre professor, alunos e mídia. (XAVIER;
NASCIMENTO, 2010, p. 26)
Incitar nos sujeitos/alunos o interesse e a leitura do jornalismo digital, particularmente
o de cunho político, sugere a formação de sujeitos críticos dentro do âmbito social. São por
estas razões, que acreditamos ser de fundamental importância a utilização de recursos
midiáticos no ensino. Particularmente, em se tratando de Língua Portuguesa, é essencial ter
um ensino de língua que admita que os usos linguísticos se estabelecem em função de
processos interativos de linguagem, dialógicos por natureza.
Concordamos com Xavier e Nascimento (2010) quando afirmam que
oportunizar a interface entre Educação e Comunicação configura práticas pedagógicas
que tentam articular o uso dos meios e da cultura midiática à escola, na tentativa de
promover dentro do espaço da didatização de saberes a leitura crítica do mundo e de
suas possíveis representações. (XAVIER; NASCIMENTO, 2010, p. 48)
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1722
Nessa perspectiva, a escola, enquanto espaço de socialização e de didatização do
conhecimento é o cerne de práticas pedagógicas que influem na ligação da cultura midiática
com a educação. Tendo o trabalho docente pautado numa perspectiva Educomunicativa, o
âmbito escolar passa a fazer do sujeito-aluno um coparticipante no processo de ensinoaprendizagem, uma vez que o mesmo torna-se um leitor crítico dos gêneros discursivos.
O gênero blog e a visão dialógica da linguagem
Com as várias mudanças que a sociedade vem passando, igualmente se mudam os
paradigmas, os valores, os gostos, a cultura e, em consequência, surgem também novos
gêneros “ligados às necessidades comunicativas dos falantes, imprimindo as possibilidades de
interação social, que refletem a dinamicidade dos discursos cotidianos retratados através dos
inúmeros usos da língua” (XAVIER, 2013, p. 174).
O blog, enquanto gênero situado no âmbito do letramento digital, advém do termo
Weblog (Web = tecido, teia, rede, usado para designar o ambiente da Internet e log = diário de
bordo). Inicialmente, o blog era utilizado apenas como um diário pessoal. Contudo, com o
passar dos anos esse gênero ganhou mais adeptos e passou a ocupar diferentes funções na
sociedade. Tem-se assim blogs pessoais, jornalísticos, políticos, pedagógicos etc. Este último
está voltado para uma espécie de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, essa ferramenta é
tomada como palco de discussões e fonte de informações para muitos setores.
Miller e Shepherd (2012), ao abordar o blog enquanto gênero, apresentam
características básicas do mesmo, a saber: o conteúdo semântico genérico, os traços sintáticos
ou formais e o valor pragmático como ação social. Os autores ainda acenam para as quatro
funções da autoexposição no blog: o autoesclarecimento, a validação social, o
desenvolvimento de um relacionamento e o controle social. Mediante as características e
funções apresentadas vemos que o gênero em questão propicia um novo modo de leitura, uma
vez que a relação que se estabelece não ocorre apenas entre um leitor, um texto e um autor.
Mas, a leitura, bem como as relações interativas, coadunam-se num contínuo processo de
dinamicidade.
Corroborando com as ideias de Ribeiro (2007), percebemos que, também no meio
digital, ler não é uma tarefa simples. “Qualquer leitor precisa mobilizar muitos conhecimentos
para empreender a leitura de qualquer texto; e a compreensão acontece de maneira muito
hipertextual” (RIBEIRO, 2007, p. 225). No blog, assim como nas outras esferas digitais, as
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1723
relações textuais estão conectadas das mais diversas maneiras, exigindo o leitor um maior
grau de mobilização diante do processo de leitura.
Essas discussões nos fazem compreender de forma mais clara a visão dialógica da
linguagem do Círculo de Bakhtin. Levando em conta essa perspectiva teórica alçamos voos na
direção, bem como no entendimento de que
há variadas formas de manifestação e interação linguísticas mediadas pela
palavra ou não [...] O modo como as pessoas se comunicam apresenta
mudanças significativas desde a invenção da escrita alfabética ao
aparecimento de formas discursivas atualmente conhecidas e estudadas a
partir da concepção de gêneros textuais. (XAVIER, 2013, p. 176)
Assim, percebemos que a linguagem é compreendida como um meio de interação
social. Nesse contexto, os sujeitos, carregados de ideologias passam a interagir uns com os
outros e a construir sentidos mediante os espaços sócio-históricos que ocupam.
A vivência didático-dialógica realizada
Com a criação do blog intitulado “Leituras da mídia política: você faz?”, entre os
meses de setembro a outubro de 2014, iniciamos as atividades na Escola Estadual de Ensino
Fundamental e Médio Nenzinha Cunha Lima, localizada em Campina Grande/ PB. A partir da
ascensão do período eleitoral pudemos unir os processos de leitura juntamente com os
aparatos da mídia, através das tecnologias digitais, para comungar na formação de leitores
críticos, reflexivos e emancipados frente aos acontecimentos que permeiam a sociedade.
Os encontros eram semanais, com aproximadamente duas horas para o
desenvolvimento das atividades. Como podemos ver na imagem abaixo, a visualização do
blog por parte dos alunos era constante, evidenciando, portanto, o interesse nas discussões e
nas leituras subsidiadas nesse gênero:
O trabalho pedagógico com a leitura da mídia política foi paulatinamente suscitando
discussões entre os discentes, fazendo com que os mesmos utilizassem dos recursos
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1724
midiáticos com a finalidade de compreender as relações discursivo-dialógicas que permeiam a
esfera do jornalismo político. Sob essa ótica, pudemos, na esfera escolar, construir
conhecimentos vinculados à práticas sociais situadas e ideologicamente organizadas.
Fonte: http://leiturasdamidiapolitica.blogspot.com.br/ Acesso em 13/05/15
Na imagem acima visualizamos o layout do blog, juntamente com as últimas
postagens que foram feitas no mesmo. Comungamos com Ribeiro (2007) ao afirmar que em
ambientes como esse “é possível interagir sem muita dificuldade, graças à maneira como os
textos, imagens e informações se apresentam” (RIBEIRO, 2007, p. 228). Nesse sentido, os
alunos são atraídos pelos hipertextos que a ferramenta propicia, interatuando continuamente
por meio do letramento digital.
A seguir, apresentamos imagens que contemplam, no blog pedagógico, a postagem de
matérias e os seus respectivos comentários:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1725
Fonte: http://leiturasdamidiapolitica.blogspot.com.br/ Acesso em 13/05/15
Fonte: http://leiturasdamidiapolitica.blogspot.com.br/ Acesso em 13/05/15
No ciberespaço, a partir da inserção do blog pedagógico como metodologia de ensinoaprendizagem de leitura, os alunos ganham vez e voz, passando a ser co-construtores do
conhecimento. Os comentários apresentados na figura anterior evidenciam essa coconstrução. Os textos, sejam eles em formas verbais, visuais ou audiovisuais, não estão
pospostos com a finalidade de extrair alguma competência linguística do aluno, mas os
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1726
mesmos são utilizados, primordialmente, para suscitar a discussão, bem como a reflexão
acerca dos discursos, ideologias e valores de sujeitos e instituições presentes na sociedade
(MILLER; SHEPHERD, 2012).
Os leitores, em nosso caso, os alunos de ensino médio, desenvolveram práticas de
leitura que iam além da simples decodificação dos textos. Diante da grande massa de notícias
oriundas do jornalismo sobre a disputa eleitoral para Presidente da República, bem como a
disputa para Governo do Estado da Paraíba, os sujeitos leitores foram se posicionando e
acenando para o uso da forma linguística num dado contexto, vendo aquilo que torna um
signo adequado às condições de uma situação concreta (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2009).
Através de comentários escritos, os alunos participantes evidenciavam a importância
que tem o cidadão crítico na sociedade contemporânea: “[...] o povo tem o poder nas mãos e
não toma a consciência da importância desse ato e acabam votando em qualquer um, daí
surge as ‘balas perdidas’”.
O uso do jornalismo digital na escola, através da leitura das editorias políticas
publicadas no blog, propiciou a construção de sentidos no ciberespaço. Os alunos passaram a
ficar “antenados” aos aparatos da mídia política, demonstrando entendimento no que se refere
aos liames do dito e do não dito das instituições midiáticas contemporâneas: “Nem é preciso
olhar tão atentamente para perceber que a Veja e a IstoÉ são contra o PT e até difamam
Dilma e Lula. Nas duas capas podemos ver que está escuro ao fundo e focando no expresidente e na atual, também existem frases insinuativas. A primeira capa que é a da Veja
diz que ‘Eles sabem de tudo’ o que sugere uma acusação e na capa da IstoÉ diz que tudo não
passa de ‘Uma campanha montada na mentira’, acredito que da maneira como foi escrito
atacou os Petistas e com certeza influenciou muita gente a votar no candidato tucano
acredito também que na mídia a imparcialidade não é botada em prática e muitas vezes
acaba não tendo bons resultados”.
Conseguimos constatar que a forma de leitura dos textos do jornalismo político
extrapola o campo estruturalmente linguístico, isto é, a partir dos recursos disponibilizados
pelo ciberespaço, intercâmbios culturais, bem como ideológicos, entram em cena. Os alunos
conseguem, discursivo-dialogicamente, enxergar o implícito que está no texto. Por meio das
opiniões, introduzidas a partir de comentários no blog, verificamos o desenvolvimento dos
discentes no decorrer no Projeto.
Vemos que o blog “Leituras da Mídia Política: você faz?” serviu como uma estratégia
didático-discursiva capaz de instigar nos alunos participantes um teor crítico e reflexivo
mediante a leitura de textos tanto da política nacional, evidenciando abordagens da disputa
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1727
presidencial, como também da política local, abarcando textos que retratam a disputa para
Governo da Paraíba: “Como sabemos o portal correio é aliado ao reeleito governador da
Paraíba Ricardo Coutinho e no seu artigo fala sobre a superação de RC e elogia-o pela
vitória nas urnas [...] A política é um jogo de vira voltas onde os candidatos que certamente
já estariam eleitos podem ser surpreendidos. Na política nada é certo até que se cabe a
apuração das urnas”.
Considerações finais
Acreditamos que a Educomunicação é uma área que aborda, de forma exemplar, os
liames imprescindíveis da leitura, da mídia e do ensino. Sob essa ótica, trabalhar o ensino da
leitura pautando-se na Educomunicação e nas relações dialógicas da linguagem apresentadas
por Bakhtin/Volochinov (2009) pressupõem ver o professor, bem como o aluno como agentes
ativos nas relações de ensino/aprendizagem. É perceptível, portanto, as abrangentes
contribuições destas perspectivas para o ensino de Língua Portuguesa, uma vez que se
desmitifica a noção de língua vista apenas como uma estrutura separada da via social de cada
indivíduo. Os trabalhos com a leitura e a interpretação passam a girar em torno de uma
perspectiva discursiva, fazendo com que os alunos possam utilizar novas estratégias
inferenciais no processo de leitura.
Desse modo, ao utilizar dos aparatos midiáticos, as aulas tornar-se-ão atrativas e o
interacionismo fará parte do espaço escolar. Assim, ter-se-á uma ação docente pautada não
mais em um Paradigma Tradicional, mas sim em um Paradigma Construtivista, no qual o
aluno torna-se sujeito ativo no processo de ensino-aprendizagem.
Nesse sentido, as questões que envolvem o processo de ensino-aprendizagem são
muitas, e a cada dia novas metodologias e recursos vão surgindo para auxiliar nesse processo.
Hoje, entre as Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação - TDICs, o blog se
apresenta como sendo uma ferramenta de fácil acesso, instigante e interativo, capaz, portanto,
de fomentar nos alunos o desejo de inserir-se no âmbito digital.
Logo, oportunizar no contexto de ensino médio, a criticidade frente à esfera do
jornalismo político constitui uma ação tanto de inovação no que concerne ao ensino de língua,
bem como de inclusão digital, visto que, os alunos adentram num espaço em que podem, de
diversas maneiras, se constituírem enquanto sujeitos emancipados, capazes de perceber as
ideologias que perpassam as tendências editoriais da grande massa midiática. Sob essa ótica,
acreditamos que as novas tecnologias digitais, juntamente com os meios da esfera midiática
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1728
convergem para uma educação inclusiva enfocada na formação de cidadãos conscientes e
ativos na sociedade.
Referências
ALMEIDA, Maria de Fátima. O desafio de ler e escrever na escola: experiências com a
formação docente. João Pessoa: Ideia Editora, 2013.
BAKHTIN, Mikhail Mikhalovich; VOLOCHÍNOV, Valentin Nikolaevich. Marxismo e
Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 13.
ed. São Paulo: Hucitec, 2009.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.
FREITAS, Diana Barbosa de; XAVIER, Manassés Morais. Leitura, mídia e ensino de Língua
Portuguesa: reflexões teóricas. In.: Congresso Nacional de Educação (CONEDU). Campina
Grande - PB: Realize, 2014.
MILLER, Carolyn. R.; SHEPHERD, Dawn. Blogar como ação social: uma análise do gênero
webblog. In: DIONÍSIO, Angela Paiva; HOFFNAGEL, Chambliss (orgs.). Gênero textual,
agência e tecnologia: estudos. São Paulo: Parábola Editorial, 2012, p. 59-86.
RIBEIRO, Ana Elisa. Kd o prof? Tb foi navegar. In.: ARAÚJO, Júlio César. (Org.). Internet
& Ensino: novos gêneros, outros desafios. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007, p. 221-243.
XAVIER, Manassés Morais. O gênero blog: interação e possibilidade didático-pedagógica.
In: SILVA, Marinalva Freire; SANTOS, Neide Medeiros (orgs.). Assim se faz literatura...
João Pessoa: Ideia, 2013, p. 174-189.
XAVIER, Manassés. Morais; NASCIMENTO, Robéria. Nádia. Araújo. Jornalismo digital na
escola: narrativas de uma prática educomunicativa. Campina Grande, PB, 2010. 209 f.
Monografia (Trabalho de conclusão de curso). Universidade Estadual da Paraíba, Campina
Grande, PB, 2010.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1729
LITERATURA AFRICANA DE LÍNGUA PORTUGUESA: UMA
POSSIBILIDADE DE DIÁLOGO ENTRE BRASIL E ANGOLA
[Voltar para Sumário]
Marcela de Melo Cordeiro Eulálio (POS-LE/ UFCG)
Josilene Pinheiro-Mariz (POS-LE/ UFCG)
1 Introdução
“Na África, cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima”
Amadou Hampâté Bâ
As palavras do historiador Amadou Hampâté Bâ refletem a importância da oralidade
na cultura africana, uma vez que, por meio da oralidade, os anciãos passam seus ensinamentos
e contam suas histórias armazenadas em sua memória aos mais jovens. Por serem muito
sábios, esses velhos1 são, metaforicamente, chamados de bibliotecas. Isso nos faz lembrar que
existem diferenças e semelhanças entre as distintas culturas e, no que diz respeito ao valor da
oralidade, a cultura africana se distingue da cultura brasileira, já que o povo brasileiro, na
maioria das vezes, nem respeita muito seus anciãos, nem mesmo valoriza a oralidade, embora,
querendo ou não, os use.
Mas, em se tratando de cultura, o que, realmente, significa cultura? Algumas pessoas
têm o termo cultura como sinônimo de intelectualidade; contudo, na verdade, cultura é um
comportamento implícito que rege as diversas áreas presentes na nossa sociedade, como:
política, educação etc.
Tendo em vista isso, a distinção ou a semelhança entre as sociedades estão explicadas:
cada sociedade possui seu modo de educar, sua política, sua economia, entre outras coisas,
embora alguns povos possuam modos semelhantes de educar, de governar, etc, o que gera a
aproximação cultural dos povos. Tanto as semelhanças quanto as diferenças entre as
Na África, não existe o termo “idoso”, por isso, os anciãos também são chamados de velhos, já que, nesse
continente, tal termo não é pejorativo como no Brasil. Uma discussão mais aprofundada a respeito do tratamento
dado ao idoso pode ser encontrada em Provérbios sobre o idoso nas relações Brasil e África, no qual Eulálio e
Pinheiro-Mariz (2014, p. 127-157) analisam a partir dos provérbios o quão diferente é, na África e no Brasil,
esse lugar social do idoso.
1
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1730
diferentes culturas podem gerar o que denominamos intercultura, isto é, o diálogo cultural
entre as culturas distintas.
Uma vez visto o poder da oralidade na África acima, vimos a possibilidade de um
diálogo cultural entre Brasil e Angola que pode ser realizado por meio da literatura oral que
traz muito da cultura de uma sociedade, uma vez que é o povo quem reproduz os textos orais,
como provérbio, mito, lenda, conto, dentre outros. Sendo assim, objetivamos, no presente
trabalho, promover um diálogo intercultural entre Brasil e Angola, observando as
semelhanças e diferenças culturais entre essas realidades por meio dos contos orais O Marido
da Mãe d’água, inserido no livro Contos Tradicionais do Brasil de Câmara Cascudo e O
kianda e a rapariga, presente no livro intitulado Contos populares de Angola, de Viale
Moutinho.
Para embasarmos nossa pesquisa, debruçar-nos-emos nas noções sobre cultura, de
Santos (2006); interculturalidade, de Jullien (2009); literatura africana e conto oral, na
perspectiva de Leite (2012); e, a de Literatura Comparada, na visão de Coutinho e Carvalhal
(2006), dentre outros.
Finalmente, para facilitarmos a leitura do presente trabalho, nós o organizamos em seis
partes, dentre as quais, temos, inicialmente, a introdução, momento no qual apresentamos
brevemente o objetivo do presente texto; a Literatura oral, tópico no qual falaremos da
Literatura e, em especial, da literatura africana e da oralidade, chegando, desse modo, à
literatura oral, na qual temos o conto oral, objeto do nosso estudo. Ainda enfatizamos cultura
e interculturalidade, momento no qual falaremos um pouco sobre o conceito de cultura e de
interculturalidade, conceitos fundamentais no processo de análise da presente pesquisa; a
interculturalidade por meio do conto oral, tópico no qual faremos a análise dos contos
angolano e brasileiro, procurando, ao relacionar os textos com suas respectivas culturas,
observar as semelhanças e diferenças entre Brasil e Angola. Nas considerações finais, faremos
uma breve retomada do trabalho destacando aspectos importantes da discussão realizada; e,
por fim, apresentamos as referências, nas quais mostraremos todas as bases teóricas utilizadas
ao longo do trabalho em processo.
2 A Literatura oral
Para discutirmos literatura oral, precisamos, primeiramente, discutir o conceito de
literatura. Afinal, o que é literatura? Por certo, são muitos os conceitos sobre a literatura. Mas,
destacamos a visão de Terra (2014), no qual ele ressalta que o termo literatura originou-se da
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1731
palavra littera que significa letra. Isso fez com que a literatura, historicamente, fosse
associada apenas aos textos escritos. Contudo, e ainda conforme o autor, se por literatura
tivéssemos apenas os textos escritos, os poemas homéricos, como a Ilíada e a Odisseia, não
poderiam ser considerados literatura, uma vez que antes de serem registrados na forma escrita
foram propagados oralmente.
Tendo em vista essa contradição, Terra (op. cit.) afirma que o conceito de literatura
tem variado muito nas discursões teóricas, por isso, ele nos apresenta duas concepções para a
literatura. A primeira considera literária a linguagem especial que se distancia da linguagem
ordinária. Portanto, nesse caso, temos como literatura apenas os textos clássicos. Já a segunda
concepção toma como base para a literariedade do texto os aspectos exteriores a ele (aspectos
sociais, ideológicos, culturais e históricos). Sendo assim, conforme essa concepção, uma obra
se configura literária quando é reconhecida institucionalmente. Logo, podemos considerar, de
acordo com tal concepção, o cordel como gênero literário já que é um texto sobrecarregado de
cultura.
Nessa perspectiva, lembramo-nos que, ainda que segundo o autor em questão, as
narrativas se materializam em textos verbais ou não verbais, orais ou escritos, que nos faz
recordar os gêneros orais como: mito, lenda e conto oral, que são narrativas orais e, carregam
em si, muito da cultura do povo que os propaga. Entretanto, depois de propagados, esses
textos são, normalmente, escritos por algum autor que ouve as histórias do povo
transcrevendo-as. Como exemplo de texto oral transcrito temos os contos orais presente nas
antologias, como Contos Populares de Angola, de Viale Moutinho e Contos tradicionais do
Brasil, de Câmara Cascudo.
Após sabermos que existem narrativas orais que são transcritas e aqueles que surgem
da escrita, poderíamos concluir que existem dois tipos de literatura: literatura escrita e
literatura oral. Na literatura escrita, temos textos como o romance, o poema, a crônica e o
conto, só para citar alguns; e, na literatura oral, temos os provérbios, as lendas, os mitos, e os
contos, dentre outros. Mas, falando em oralidade, como surgiram os textos orais? Mas, qual a
origem da oralidade na literatura?
Na antiguidade, as pessoas não tinham o hábito de escrever, mas contavam histórias e
recitavam poemas. Entretanto, com o passar do tempo, surgiu a necessidade de registrar o que
se dizia, visto que, como se diz em latim: verba volant, scripta manent2. Um exemplo de
textos, cuja origem partiu da oralidade são os poemas homéricos que, como já foi dito acima,
2
A palavra voa, a escrita permanece.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1732
eles eram apenas recitados, e com o passar do tempo surgiu a necessidade de registrá-los,
utilizando-se, assim, a escrita.
Seguindo essa perspectiva, pensamos na cultura africana que tem a forte presença da
tradição oral que é perpetuada pelo povo de gerações em gerações. Nos países africanos, há o
costume de o ancião, o homem mais velho da comunidade, sentar-se com os mais jovens ao
redor da fogueira e contar suas histórias e seus ensinamentos. Por muito tempo, essas histórias
permaneceram apenas na tradição oral. Entretanto, com a modernidade e as mudanças que as
novas tecnologias levaram à sociedade, houve a necessidade de registrar essas histórias. Por
isso, existem na África, diversas antologias de contos orais africanos contados pelo povo.
Vale salientar que, embora a tradição oral seja muito forte na cultura africana, existe
também a literatura escrita, na qual tem-se autores de renome internacional como, por
exemplo, Mía Couto, Eduardo Agualusa, Paulina Chiziane, apenas para citar alguns dos mais
estudados no Brasil. Em outras palavras, o que precisa ser dito é que na África existe, como
em qualquer outro continente, a literatura escrita; todavia, considerando a forte tradição oral, a
literatura oral também é forte o que gerou obras culturais muito ricas como as antologias de
contos orais: Contos populares de Angola, de Viale Moutinho e Sikulume e outros contos, de
Emílio Braz. Conforme lemos a seguir:
Em primeiro lugar, lembramos que uma das características das culturas africanas
tradicionais, a sua característica fundamental, é a oralidade. Enquanto, no quadro da
escrita, as fontes de valores são os “autores” e as suas obras, o que cria reflexos
culturais que levam os pensadores a negar qualquer réstia de pensamento onde não
encontrem obras escritas, devemos hoje reconhecer que a oralidade pode produzir
obras culturais muito ricas. [...] Quando falamos de oralidade como característica do
campo cultural africano, pensamos numa dominante e não numa exclusividade.
(AGUÉSSY, 1977, p.108, apud LEITE, 2012, p.20):
Observando as palavras de Aguéssy acima, vemos o quão forte a Literatura oral é no
continente africano, sendo não só uma exclusividade, mas, sobretudo, uma literatura
dominante. Embora a oralidade seja preponderante nesse continente, a literatura oral sofreu
preconceitos por parte dos estudiosos evolucionistas, visto que, como diz Leite (2012), ela:
[...] era encarada como uma manifestação primária, simples, não sujeita a trabalho
reflexivo, e um produto de uma comunidade, enquanto a literatura escrita revelava o
oposto, final conclusivo de um processo de desenvolvimento complexo, e resultante
do trabalho de um só autor. (LEITE, 2012, p.22)
Em outras palavras, a literatura escrita era mais valorizada devido ao fato de os textos
serem originados de um só autor, e, por isso, seria um trabalho mais complexo. Entretanto, ao
elucidar isso os estudiosos não percebiam a riqueza cultural presente nos textos orais, como
por exemplo o conto oral que é perpassado de gerações em gerações e reproduzido por um
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1733
povo que introduz nesse texto a sua cultura. Isso faz com que o gênero oral, nesse caso, o
conto oral seja um instrumento de transmissão de conhecimento e de cultura como nos afirma
também Leite (2012) ao discorrer sobre o gênero em questão.
Ora, talvez mais do que qualquer outro gênero, o conto oral é universal e comum a
todas as culturas e continentes. O fato de uma parte das sociedades africanas
continuar a ser fundamentalmente camponesa e agrícola, e manter as tradições orais
como forma de preservação da sua bagagem cultural, não significa que o conto, a
forma mais popular de transmissão de conhecimento e de cultura, seja
necessariamente a forma “natural” ou “essencial” de reconhecimento da africanidade
literária. (LEITE, op. cit., p. 26)
É exatamente por ser a forma mais popular e rica no que diz respeito à cultura e
conhecimento de um povo, como diz a autora em questão quem afirma também que o conto
oral é “um instrumento narrativo ‘africano’ por excelência”, que esse gênero constitui o
corpus de análise do presente trabalho. No entanto, para realizarmos a análise do presente
trabalho, precisaremos comparar dois contos orais, dentre os quais temos O marido da mãe
d’Água, conto brasileiro e O Kianda e a rapariga, conto angolano. Para compararmos esses
contos e, consequentemente, encontrarmos as semelhanças e diferenças entre as suas culturas
de origem utilizaremos a Literatura comparada, cuja função é, de acordo com Carvalhal e
Coutinho (2006):
Investigar como as nações aprenderam umas com as outras, como elas se elogiam e
criticam, se aceitam e rejeitam, se imitam ou distorcem, se entendem ou interpretam
mal, como elas abrem os corações ou se fecham umas às outras, mostrar que as
individualidades, como períodos inteiros não são mais do que elos de uma cadeia
longa e multifilamentada que liga passado e presente, nação a nação, homem a
homem – estas, em termos gerais, são as tarefas da história da Literatura
Comparada. (CARVALHAL; COUTINHO, 2006, p. 54)
Ou seja, por meio da comparação dos contos orais em questão veremos quais as
semelhanças e diferenças entre a cultura brasileira e a cultura angolana. Entretanto, para
compararmos as duas culturas em processo precisamos saber o que realmente é cultura e
como se dá o diálogo entre as distintas culturas como veremos no próximo tópico.
3 Cultura e interculturalidade
Temos como objetivo no presente trabalho realizarmos um diálogo cultural entre
Brasil e Angola. Mas, o que significa cultura? Muitas vezes, ao falarmos de cultura
associamo-la a intelectualidade, o que significa um grande erro, visto que, na verdade,
independente do nível de intelectualidade da pessoa ela tem cultura, seja ela um agricultor ou
um médico. Na realidade, a cultura é nada mais do que um comportamento implícito que rege
as mais diversas áreas da nossa sociedade como: política, educação, religião, economia, entre
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1734
outras, além das nossas próprias ações (SANTOS, 2006). Muitas vezes, tomamos um choque
com as ações que o povo de um determinado país toma em dada situação.
Isso acontece porque cada povo tem a sua forma de educar, conforme seus hábitos,
seus costumes, assim como, suas crenças que nos lembram as diferentes religiões existentes
no mundo, por exemplo. Um povo com uma crença religiosa como o Bantu (religião
africana), por exemplo, tem hábitos e costumes diferentes de um povo, cuja religião é o
cristianismo. Além disso, podemos pensar na política, lembrando que o povo governado por
um monarca, como, o povo inglês tem concepções de mundo diferentes do povo que escolhe o
seu representante político como no presidencialismo, forma de governo do Brasil. Esses
comportamentos, hábitos e costumes são compreendidos como cultura.
Para entendermos melhor tal conceito, baseamo-nos nos estudos de Santos (2006),
segundo os quais, existem duas concepções básicas de cultura: a primeira concepção refere-se
a todos os aspectos de uma realidade social, enquanto a segunda diz respeito ao
conhecimento, às ideias e crenças de um povo. Assim, vemos que, na primeira concepção, a
cultura é concebida como algo mais geral, fazendo referência às características gerais de
determinado povo, seja na maneira pela qual a sociedade se organiza, seja pelos seus aspectos
materiais.
Já no que diz respeito à segunda concepção, a cultura é vista como algo mais
específico, que considera as maneiras de agir de determinado povo, atendendo ao
conhecimento, ideias e crenças do mesmo. Dessa vez, há uma limitação em que o povo pode
ser entendido como grupo de pessoas que praticam uma determinada religião, tendo, portanto
conhecimentos e comportamentos específicos daquela religião. No entanto, embora tenhamos
percebido que as concepções apresentadas se diferenciam pelo fato de uma ser mais geral e
outra mais específica, ressalte-se que elas estão, de certo modo, interligadas, uma vez que não
podemos falar da forma como um grupo age sem falar da sociedade no geral.
Nessa perspectiva, vemos que cada povo tem seus hábitos e seus costumes regidos por
um comportamento implícito que, como já foi dito, resulta no que chamamos de cultura.
Logo, podemos também perceber que, segundo alguns códigos de sociedades distintas,
algumas culturas se distanciam bastante, ao mesmo tempo em que outras se aproximam,
tornando-se mais semelhantes.
Esse ponto de intercessão de semelhanças e/ou diferenças presentes nas culturas
promovem que chamamos de interculturalidade, ou seja, a chance de aproximar determinadas
culturas, observando no que elas se assemelham e no que se diferenciam. Algumas culturas
aproximam-se por meio da sua religião, a exemplo das sociedades cristãs, enquanto outras se
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1735
aproximam pela sua política social, a exemplo das sociedades capitalistas ou socialistas.
Muitas sociedades apresentam o modo de vida capitalista, valorizando o benefício de uns em
detrimento de outros. Entretanto, independente das semelhanças, é preciso aprender,
sobretudo, com as diferenças. Em vez de priorizar o universalismo – a igualdade culturalpodemos observar o quão interessante é o multiculturalismo, no qual temos culturas distintas
e, por consequência, muito a aprender com o diálogo cultural entre essas culturas por meio
das diferenças, como nos mostra Jullien (2009), ao afirmar que o diálogo cultural é o meio
pelo qual resistimos a universalização cultural, como podemos ver nas palavras do autor.
Esse diálogo que recoloca as culturas entre si no canteiro de obras, incluindo a
ocidental, nos confrontos diversos impelidos a se multiplicar, e isto em primeiro
lugar mediante a tradução, não é apenas a única maneira sensata de deter o clash
que vemos hoje entre civilizações – entendo aqui “por civilização” a cultura
instaurando-se em seu modo histórico. Pondo em ação a defasagem, recolocando em
tensão, isto é, ainda mais explicitamente, re-fissurando com seu dia as
universalidades fechadas para nele libertar a exigência de superação própria do
universal, esse dia-logo é também a única maneira inteligente – logos – de resistir à
uniformização ambiente; e – devo dizê-lo também? – a todo tédio do mundo
vindouro. (JULLIEN, 2009, p. 202).
Considerando-se essas reflexões, por mais que defendamos a multiculturalidade,
existem momentos em que as diferenças predominam, uma vez que é difícil vermos a cultura
do outro sem marginalizá-la e violenta-la nem que seja verbalmente, como podemos ver nas
palavras de Costa (1998, p. 65) “se as culturas são singulares e constituem os seus
significados em uma semântica e léxico próprios, parece impossível falar de uma cultura, a
partir de outra, sem praticar alguma forma de violência, sem imposição de sentidos”.
3
A interculturalidade por meio do conto oral
Após termos feito a discussão sobre Literatura, Literatura africana, Literatura oral,
Conto oral, Cultura e Interculturalidade, concretizaremos, neste tópico, o objetivo de
comparar o conto brasileiro O marido da mãe d’Água e o conto angolano O Kianda e a
rapariga, realizando um diálogo cultural entre Brasil e Angola. Para isso, nos basearemos na
Literatura Comparada, cuja função já foi discutida nos tópicos anteriores, segundo Carvalhal e
Coutinho (2006), bem como nas culturas brasileira e angolana em questão. Vejamos, então,
abaixo a análise dos contos que será realizada por meio de excertos dos textos.
4.1 Diálogo cultural por meio das semelhanças
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1736
Ao lermos os dois contos, o brasileiro e o angolano, vemos que ambos trazem
elementos do folclore, sendo que, o conto brasileiro O marido da mãe d’Água traz elementos
do folclore brasileiro, enquanto que o conto angolano O Kianda e a rapariga traz elementos
do folclore quimbundo. No primeiro conto, a história é narrada em torno do relacionamento
da mãe d´água, conhecida sereia do folclore brasileiro, e de um pescador. Já no conto
angolano, a história é narrada em torno do relacionamento do gênio da água que preside o
mundo dos peixes chamado Kianda e uma moça comum.
Sendo assim, vemos que a história narrada nos dois contos giram em torno dos seres
considerados os “deuses” da água, conforme as lendas folclóricas, se tornando desse modo
uma semelhança cultural, embora os deuses sejam diferentes, visto que, no Brasil temos a
Mãe d’água, conhecida como sereia e em Angola, o Kianda.
Além do fato de os contos trazerem os deuses da água casados com seres humanos
comuns, temos outra semelhança: tanto no conto brasileiro quanto no conto angolano, os
cônjuges dos “deuses” descumprem com sua palavra. Isto é, no conto brasileiro, para poder
casar com o rapaz pescador, a mãe d’água deu uma condição que seria: o rapaz nunca
arrenegar da sereia nem dos outros animais que vivem no mar. Contudo, o rapaz descumpriu
com sua palavra arrenegando a sua esposa o que ocasionou uma consequência: além de sumir
da vida do pescador, a mãe d’água elevou o nível do mar até cobrir a casa onde eles moravam,
como podemos ver nos dois excertos abaixo, dentre os quais o excerto 1 traz a promessa do
rapaz e o excerto 2 traz a desobediência e a consequência.
Excerto 1.: −
Quer casar comigo? – disse a Mãe-d’Água.
O rapaz nem titubeou:
− Quero muito!
A Mãe-d’Água deu uma risada e continuou:
− Então vamos casar. Na noite da quinta para sexta-feira, na outra lua, venha
me buscar. Traga roupa para mim. Só traga roupa de cor branca, azul, ou verde. Veja
que não venha alfinete, agulha ou cousa alguma que seja de ferro. Só tenho uma
condição para fazer. Nunca arrenegue de mim nem dos entes que vivem no mar.
Promete?
O rapaz, que estava enamorado por demais, prometeu tudo e deixou a Mãed’Água, que desapareceu nas ondas e cantou até sumir-se.
Excerto 2:
O mal-agradecido, sentando numa cadeira, de cara franzida, não tendo o que dizer,
começou a resmungar.
− Benfeito! Quem me mandou casar com mulher do mar em vez de gente da
terra? Benfeito. É tudo mistérios, cheio de histórias. Coisas do mar ... hi... eu te
arrenego!
Logo que disse essas palavras, a Mãe-d’Água deu um gemido comprido e
ficou da cor da cal da parede. Levantou as duas mãos e as águas do mar avançaram
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1737
como um castigo, numa onda grande, coberta de espuma, roncando como um bicho
feroz. O rapaz, morrendo de medo, deu uma carreira de veado; subindo um monte
perto da casa. Lá de cima se virou para ver. Casa, varanda, cercado, animais, tudo
desaparecera. No lugar estava uma lagoa muito calma, pegada a um braço de mar.
Ao longe ouviu uma cantiga triste, triste como quem está se despedindo do mundo.
Nunca mais viu a Mãe-d’Água.
(CASCUDO, 2004, p.74)
Já no conto angolano, o filho do Kianda e de sua mulher morreu, então, ele disse a ela
que não permitisse que a sogra dele fosse ao enterro, contudo, a esposa não o obedeceu, o que
também gerou uma consequência: o Kianda fez com que a aldeia do povo da sua mulher
desaparecesse, deixando mato onde haviam casas, como podemos ver nos excertos abaixo,
dentre os quais o excerto 1 traz a ordem do Kianda e o excerto 2 traz a desobediência e a
consequência.
Excerto 1:
Dentro em breve, a esposa ia ser mãe. A criança, porém, morreu logo depois de
nascer.
O marido falou:
− O meu filho morreu e não consintas que a minha sogra apareça ao funeral.
Excerto 2: Aconteceu, no entanto, o contrário, pois a sogra chegou quando ele
estava a dançar.
Ao vê-la, Kianda disse à esposa:
− Eu não tinha recomendado para não deixar vir a tua mãe ao funeral?
A seguir apanhou o kalunbungu3 e deitou-o no chão. As casas todas entraram
na caixa mágica, e onde havia uma aldeia ficou apenas mato.
(MOUTINHO, p. 26)
Finalmente, após observar as semelhanças entre os contos que são propagados nas culturas
brasileira e angolana, apresentando um pouco das realidades em questão, veremos quais as
diferenças presentes nesses textos que também, propiciam um diálogo cultural.
4.2 Diálogo por meio das diferenças
No que diz respeito às diferenças, pudemos observar que, embora ambos os contos
tragam as lendas folclóricas, essas lendas apresentam diferenças que concordam com a
realidade presente em cada cultura. No conto brasileiro, há a presença da sereia que é a mãe
d’água e, consequentemente, a deusa da água e os peixes que são pescados pelo rapaz com a
ajuda os poderes da sereia. Então, vemos que há a presença de dois elementos da natureza. No
que diz respeito aos poderes da sereia, vemos que além de ter feito aparecer muitos peixes
para o rapaz pescar, ela também se vingou dele quando foi arrenegada, elevando o nível do
mar até cobrir a casa, como vimos no excerto 2 do conto brasileiro no tópico anterior.
3
“Kalunbungu é uma caixa mágica, donde se poderá retirar desde casas a vestidos, de jóias a
comida...”(MOUTNHO, 2000).
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1738
No conto angolano, também há a presença do Kianda que para o folclore quimbundo é
o deus da água que preside o mundo dos peixes como já foi dito. Contudo, além do Kianda há
outros elementos do folclore quimbundo que constituem o conto e o mundo da narrativa em
questão, como o Kalunbungu que é uma caixa mágica utilizada pelo Kianda; Di-kishi que é
um monstro antropófago que tem duas cabeças e é animado pela crueldade e, por fim, Makishi que é o povo dos Di-kishi, isto é, dos monstros. Vimos no excerto 2 do conto em análise
quando o Kianda usou o Kalunbungu. Agora, veremos no excerto abaixo a presença dos
elementos restantes: Di-kishi e Ma-kishi.
Excerto 3:
Kianda foi dar a um sítio onde havia uma grande rocha com uma porta.
Entrou pela rocha dentro e a mulher, não o tornando a ver, voltou para a casa
de sua mãe.
A mãe veio a falecer assim como toda a gente, com a exceção da mulher do
Kianda.
Estava esta sozinha em casa quando veio um Di-Kishi raptá-la.
Passado algum tempo a mulher deu à luz uma criança normal, isto é, de uma
só cabeça.
Tempos depois a mulher ia ter outro filho.
O Di-kishi ameaçou-a:
− Se tiveres outro filho com uma cabeça, eu reunirei a minha gente para te
comer!
A segunda criança nasceu com duas cabeças.
A mulher tomou nos braços o seu primogênito e fugiu.
Procurou abrigo nas casas que encontrou, mas logo Di-kishi que sentia a
presença de seres humanos, entrando na casa encontrou a mulher adormecida e
devorou-a assim como ao filho.
A casa transformou-se numa casa de Ma-kishi.
(MOUTINHO, 2000)
Finalmente, após ter analisado os dois contos, vimos que, embora os dois tragam
elementos do folclore de suas respectivas realidades, o conto angolano traz mais elementos do
folclore enriquecendo o conto com mais elementos ficciosos, enquanto que o conto brasileiro
se prende a mãe d’água que é o elemento folclórico abordado no conto. A forte presença dos
elementos do folclore quimbundo no conto angolano se dá devido ao fato de na literatura oral
africana haver sempre esse apego aos elementos da natureza que aqui aparecem por meio do
folclore. Em Angola, a religião influenciadora é o Bantu que considera esse elementos da
natureza sagrados, o que justifica a forte presença desses elementos na tradição oral.
Considerações finais
Tendo em vista o objetivo do presente artigo, isto é, analisar o conto oral brasileiro O
marido da Mãe d’Água e o conto oral angolano O Kianda e a rapariga, observando as
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1739
semelhanças e/ou diferenças entre as realidades nas quais esses contos são produzidos e
reproduzidos, percebemos que tal objetivo concretizou-se, visto que, por meio da comparação
entre esses textos, identificamos semelhanças e diferenças entre as culturas brasileira e
angolana. Vimos que ambas as culturas possuem o folclore com suas respectivas lendas
adequadas a suas realidades, uma vez que, conforme a observação dos contos, vimos que na
cultura brasileira não há um apego tão grande aos elementos da natureza quanto na cultura
angolana que, mesmo de forma fictícia, mostra o poder desses elementos.
Isto nos fez entender não só a função da Literatura Comparada que é investigar a
relação existente entre diferentes culturas, nações e homens, mas, sobretudo, vimos o quão
importante é observar e aprender com as diferenças culturais. Percebemos também que a
oralidade não serve único e exclusivamente para a comunicação verbal, mas também, como
uma forma de conservação da identidade cultural de um povo. É por meio dos contos, por
exemplo, da velha ama ou do velho sábio, o griot, que a identidade cultural africana é
preservada (JOLLES, 1976).
Pensando nessa carga cultural presente na literatura oral e, no caso do presente
trabalho, dos contos orais analisados, fez-se necessário analisar os textos retomando a cultura
que os circunda. Em outras palavras, ao analisarmos o conto O marido da Mãe d’Água, conto
brasileiro, retomamos a cultura brasileira, enquanto que, ao analisarmos o conto oral angolano
O Kianda e a rapariga, retomamos a cultura angolana. Por isso, após observarmos esses
contos com base na Literatura Comparada, que propiciou a interculturalidade, vimos o quão
importante é esse diálogo cultural que reforça que somos, de todas as formas, iguais. As
diferenças e semelhanças encontradas por meio desse diálogo servem para que percebamos
que, mesmo diferentes, devemos viver em sociedade de modo harmônico. Vemos, portanto,
que a literatura oral é uma das responsáveis por nos dar esse suporte em uma sociedade pósmoderna.
Referências
CASCUDO, Luís Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. 13. ed. São Paulo: Global, 2004.
COUTINHO, Eduardo F., CARVALHAL, Tania Franco. Literatura Comparada: textos
fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
COSTA, Marisa Vorraber. Currículo e política cultural. In: O currículo nos limiares do
contemporâneo. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1740
JOLLES, André. Formas Simples. São Paulo: Cultrix, 1976.
JULLIEN, François. O diálogo entre as culturas do universal ao multiculturalismo. trad.
André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
LEITE, Ana Mafalda. Oralidades e Escritas pós-coloniais: estudos sobre literaturas africanas.
– Rio de Janeiro: edUERJ, 2012.
MOUTINHO, Viale. Contos populares de Angola: Folclore quimbundo. São Paulo: Landy,
2000.
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006.
TERRA, Ernani. Leitura do texto literário. São Paulo: Contexto, 2014.
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1741
A INFLUÊNCIA DA LÍNGUA MATERNA NA AULA DE
LÍNGUA ESTRANGEIRA: OS MARCADORES
CONVERSACIONAIS E A ALTERNÂNCIA DE LÍNGUA
[Voltar para Sumário]
Marcelo Augusto Mesquita da Costa (UFPE)
Kazue Saito Monteiro de Barros (UFPE)
Questões preliminares
Em aulas de língua estrangeira de uma forma geral, existe uma preocupação em
utilizar a língua alvo sempre que possível, principalmente em abordagens mais comunicativas
(communicative approaches). É comum, no entanto, que em aulas de LE haja momentos em
que a língua materna é acionada por alunos e professores, mesmo que seja por curtos
períodos. Partindo da análise de transcrições de 20 aulas de língua inglesa, em turmas de
níveis básico 1 e avançado 1, do Núcleo de Línguas e Culturas da UFPE, este trabalho busca
identificar de que formas interactantes sinalizam momentos de alternância de código (code
switching) em aulas de inglês como LE. O fenômeno da alternância é ainda pouco estudado
em situação de sala de aula, assim como praticamente inexistem estudos, nesse contexto,
sobre marcadores conversacionais que sinalizam alternância de códigos – assim, pode-se dizer
que o estudo justifica-se por haver escassez de pesquisa nessa área específica.
O referencial teórico da pesquisa conta com estudos de diferentes vertentes da análise
de interações, sobretudo, a Análise da conversação de linha etnometodológica e a
Sociolinguística interacional – Barros
(1991), Topical Organization in the classroom:
internal structure and conversational markers; Gumperz (1982), Discourse Strategies; Auer
(1998), Code-Switching in Conversation – que adotam uma perspectiva interacionista para
discutir questões de variação, alternância entre línguas e funções de marcadores discursivos.
A metodologia é de caráter qualitativo e o enfoque, rigorosamente empírico, é indutivo:
buscou-se analisar as funções das mudanças e de certos marcadores que interferiam nas
alternâncias de língua.
Os resultados indicam que muitas mudanças são prefaciadas por marcadores que
sinalizam alternância de língua. Os marcadores são utilizados tanto em língua materna
(Português) quanto em Inglês. Já a função específica do marcador é sensível ao nível do
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1742
conteúdo (básico ou avançado), ao tópico abordado e dependem da intenção no momento da
interação. Observou-se que nem sempre as mudanças de língua são meramente por falta de
conhecimento da língua alvo, já que em níveis avançados também eram utilizados marcadores
que sinalizavam mudanças e funções exclusivas de mudança de língua.
1. Code-Switching na interação (CS)
Os estudos sobre o fenômeno do CS apresentaram muitas controvérsias e
reformulações ao longo dos anos e, por isso, muitas definições e análises podem ser
encontradas sobre ele. As primeiras que fazem menção ao fenômeno o tratam como uma
forma de fuga ao “padrão” ou uma forma subpadrão (HAUGEN, 1962 apud SOUZA, 2000),
como agramatical, isto é, a explicação para uma troca de língua é basicamente psicológica.
O primeiro uso do termo data de 1954 e foi utilizado por Vogt (1954) com o intuito de
demonstrar como essas mudanças estão no domínio extralinguístico, isto é, são muito mais
característicos do psicológico do indivíduo. Um uso similar do termo encontra-se em
Jakobson (1977), porém com uma teoria muito mais ampla e sólida do ponto de vista teórico
do que o primeiro. Para Jakobson, a troca de código não se restringe apenas à troca de língua,
mas ela pode acontecer também nas interações de indivíduos monolíngues, algo que Gumperz
ampliou bastante e chamou de alinhamento interacional (footing), no qual os indivíduos
mudam as suas formas de se relacionar, o seu discurso, e se “adaptam” ao do interlocutor, ou
vice-versa. A perspectiva de Jakobson não está baseada na interação, a comunicação para ele
parte mais de uma ordem cognitiva, isto é, está ligada a processos realizados mais
mecanicamente, como o das máquinas que codificam e decodificam mensagens.
Por isso, o indivíduo faz uso de uma linguagem específica para cada momento: com
função referencial, expressiva, conativa, fática, poética e metalinguística. Dessa maneira, é
possível perceber que a linguagem está em um nível emissor-receptor, não existe uma troca
mais elaborada: o locutor envia uma determinada mensagem para o interlocutor e este deve
“traduzir” essa mensagem em uma das seis funções comunicativas.
Estudos mais atuais demonstram que o CS tem funções bastantes específicas nas
interações, tais como dar pistas (GUMPERZ, 1982) ao interlocutor sobre seus desejos e
objetivos. O CS auxilia na interpretação de valores (poder) atribuídos à interação, regula a
negociação de papéis (footing), entre outras funções.
Aos poucos a noção de CS foi sendo modificada, entretanto muitos estudos ainda são
estruturados com ênfase na gramática dessas línguas utilizadas alternadamente. Um desses
estudos foi o de Poplack (1984) que analisou duas comunidades em contato, uma delas foi a
comunidade do East Harlem, de Nova York, composta de porto-riquenhos falantes de Inglês e
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1743
Espanhol. A outra comunidade, na verdade duas, foi sobre o contato do Inglês e do Francês
em duas províncias do Canadá: Ontario e Quebec. O estudo de Poplack possui tanto aspectos
qualitativos como quantitativos; contudo, é visível uma preocupação maior com o léxico e em
delimitar as diferenças entre borrowing (empréstimo) e as palavras que podem realmente ser
consideradas como mudança ou CS, além da quantificação dos tipos de CS no corpus
coletado.
Mais do que analisar tipos e palavras, é necessário situar as características contextuais
daquela interação, além de estabelecer as motivações para fazer CS de uma determinada
comunidade. Além dessas condições de realização do fenômeno, pode ser importante estar
atento à própria concepção de bilinguismo que se está adotando para analisar o CS.
Neste trabalho, a prioridade não é trabalhar com modelos prontos ou seguir
características esperadas ou pré-estabelecidas, mas trabalhar com os dados de forma
interpretativa, baseando-se nos modelos estudados apenas de maneira parcial, já que o caso
estudado é diferente de casos específicos de bilinguismo e por ser a língua utilizada para fins
de aprendizado. A referência maior é sem dúvida a pesquisa de Blom & Gumperz (1998),
Gumperz (1982a, 1982b) e Auer (1998) que priorizam as funções das mudanças e não regras
a serem aplicadas.
Os autores estudaram um caso bem específico que acontecia em uma comunidade da
Noruega em que se falavam duas línguas oficiais: Bokmal e Nynorsk. Porém, os nativos
constantemente utilizavam em seus diálogos cotidianos uma variante: o Ranamal. Nos
estudos dos autores foi constatado que as mudanças não eram reconhecidas pelos próprios
falantes que, ao serem entrevistados, diziam não utilizar o Ranamal. Mas, nas gravações, foi
possível recuperar facilmente diversas passagens utilizadas neste dialeto. Blom & Gumperz
chegaram a uma tipologia coerente com os dados que obtiveram o que auxiliou na sua
interpretação e nos resultados encontrados.
3. Sobre marcadores conversacionais (MC)
O estudo dos marcadores conversacionais não é novo. Como lembra Schiffrin (2001),
desde os primeiros estudos nos anos oitenta, os marcadores têm sido estudados em
diferentes perspectivas teóricas, em variados ramos da linguística e áreas afins, e no
contexto de várias línguas. Os gêneros textuais e contextos interativos também são diversos:
há estudos em narrativas, entrevistas políticas, consultas médicas, jogos, mídia escrita,
jornais, conversas radiofônicas etc (SCHIFFRIN, 2001: 54). No contexto de sala de aula,
estudos incluem, por exemplo, o de De Fina (1997) sobre o marcador “bien” no discurso em
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1744
sala de aula, em que se atribui duas funções ao marcador, como item de transição e como
avaliador; o de Chaudron & Richards (1986) em que os autores argumentam que os
marcadores discursivos são essenciais para uma correta compreensão das aulas, tese
praticamente consensual entre os estudiosos da área.
Num estudo sobre marcadores de ações tópicas (BUBLITZ, 1988) Barros (1991)
busca demonstrar que os marcadores conversacionais (cuja classificação obedece a critérios
metacomunicativos/interacionais) podem ser sistematicamente relacionados às estruturas e
ações tópicas (cuja identificação depende de critérios semânticos), constituindo-se, assim,
num instrumento eficaz de delimitação de unidades discursivas.
Nos dados da pesquisa de Barros, as grandes mudanças (macromudanças) no tópico
são sinalizadas 100% das vezes e as pequenas mudanças (micromudanças), 68.18%, ou seja,
considerando só esses dois tipos de ações, se verifica que 84.09% das ações tópicas são
sinalizadas por marcadores conversacionais. Contabilizando também as marcas de
suspensões e de reintroduções encontradas na pesquisa original se obtém um total de 80
ações, das quais 60 são marcadas, i.e., um total de 73.17%. Parece ficar demonstrado,
portanto, que os marcadores conversacionais são frequentemente utilizados para indicar
ações tópicas.
O marcador de macromudança mais comum é bom, que ocorre 84.62% das vezes. Na
literatura sobre marcadores, o “well” - que parece ser o correspondente do “bom” em inglês
- tem sido apontado como sinalizador de descontinuidade, marcando que uma nova fase da
aula, um novo tópico, etc, vai ser introduzido (STUBBS, 1983; SCHEGLOFF & SACKS,
1973; SINCLAIR & COULTHARD, 1975). Os trabalhos que apontam o well como
introdutor de resposta despreferrida, quando o falante sinaliza reconhecer que a resposta que
se segue não satisfaz completamente a pergunta que lhe foi feita, também ratifica o caráter
disjuntivo do marcador. E os estudos sobre o “well” como oferta de fechamento de tópico
(GOLDBERG, 1980, entre outros), é mais uma evidência dessa propriedade discretiva do
bom.
Uma vez que bom tem essa conotação de disjunção, não é surpreendente que seja o
marcador mais frequente de macromudanças, i.e., de uma ação tópica complexa que
pressupõe o fechamento de um tópico e a introdução de outro.
Dentre os marcadores mais comuns de micromudanças se encontram, por ordem de
frequência: “e”, “então”, “mas”, “além disso”, “porque”. Ou seja, são marcadores que,
como preposições, advérbios, conjunções, etc também enfatizam uma continuidade (adição,
consequência, relação de causa e efeito, de oposição etc), sendo, portanto adequados na
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1745
sinalização de micromudanças. São os links ou conectores, na terminologia de Keller e
Taba-Warner (1976).
Embora não tenham sido abordados nesses breves comentários, os marcadores de
suspensões e reintroduções na pesquisa original (cf. Barros, 1991) também ratificam que os
marcadores conversacionais não são desprovidos de significado, como, às vezes, pode
parecer. Quando marcadas, as suspensões são assinaladas por marcadores disjuntivos, do
tipo olha, escuta e quase sempre há mudança no tom de voz (mais baixo) e no ritmo do
enunciado (mais rápido). Reintroduções são prefaciadas por marcadores disjuntivos ou
continuativos. Nos dados, o professor utiliza marcadores disjuntivos após suspensões
bastante longas, como forma de sinalizar que considera a digressão acabada. Os marcadores
continuativos foram empregados após suspensões curtas e localizadas, quase sempre breves
explicações de um termo mais técnico. Nesses casos, o professor parece querer evitar a
quebra no desenvolvimento tópico: marca a suspensão falando bem rápido e logo reintroduz
o tópico com um marcador continuativo.
A análise da coocorrência entre sequências tópicas e tipos de marcadores fornece outra
evidência dessa conotação disjuntiva/continuativa que os marcadores conversacionais
parecem guardar: sequências de transição, suspensões e codas, ou seja, sequências que
consistem em quebras no desenvolvimento tópico, são prefaciadas por marcadores
disjuntivos. Resumos, expansões e sumários que promovem a progressão tópica, são
introduzidos por marcadores continuativos.
No presente trabalho, busca-se o objetivo análogo de verificar se e como interactantes
assinalam mudanças de código através do uso de marcadores discursivos. Reconhecendo
que a quantidade de pesquisas em tão diversas áreas e perspectivas torna difícil uma
definição consensual do termo “marcador conversacional” aqui optou-se pelas clássicas
conceituações de Fraser e Schiffrin. Fraser (1999:950), que define marcadores discursivos
como expressões pragmáticas que geralmente vêm de classes gramaticais específicas:
conjunções, advérbios, preposições, que sinalizam uma relação entre o segmento que eles
introduzem e o segmento anterior. Schiffrin (1987a) vê a classe como englobando
conjunções (por exemplo, “and”, “but”, “or”), interjeições (como “oh”), advérbios (“now”,
“then”), e partículas lexicalizadas (tais como “y’ know” e “I mean”). A autora (2001:58)
sintetiza sua definição a partir do estudo de 1987a:
First, I tried to specify the conditions that would allow a word to be used as a
discourse marker: syntactically detachable, initial position, range of prosodic
contours, operate at both local and global levels, operate on different planes of
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1746
discourse (Schiffrin 1987a:328). Second, I suggested that discourse markers were
comparable to indexicals (Schiffrin 1987a:322-325) … or, in a broader
sociolinguistic framework, contextualization cues (Schiffrin 1987b). Finally I
propose that although markers have primary functions (…) their use is
multifunctional. It is this multifunctionality on different planes of discourse that
helps to integrate the many different simultaneous processes underlying the
construction of discourse, and thus helps to create coherence.
Aqui procuramos não enfatizar a influência de uma mudança de língua ao conteúdo
simplesmente estrutural, mas funcional, já que podem em muitas vezes perder o significado se
utilizadas em outro contexto. Porém, muitas mudanças são precedidas por marcadores, tanto
na língua Inglesa como na língua Portuguesa. Os marcadores interativos mais comuns da
língua Inglesa foram “So”, como uma introdução do que se vai falar ou para dar continuidade
a um tópico; “Okay?”, como forma de reforço do que foi dito e buscando saber se o outro
compreendeu, ou ainda para concluir um tópico; e as palavras de afirmação “Yes”, que
normalmente vinham seguidas de palavras ou frases em Português. Já os marcadores em
Português, aqui chamados de cognitivos, eram muito mais sinalizações de surpresa “Ah!” ou
mesmo alongamentos de vogais que sinalizavam hesitações “é:”, “a:”.
Os marcadores funcionam muito mais como introdutores da mensagem, já que nem
sempre possuem qualquer significado literal. O caso da palavra “so” (então) é um exemplo
disso. Era muito comum observar essa palavra na fala da professora do básico, para introduzir
a sua fala ou mesmo manter seu turno. Não era difícil observar essa palavra entre outras em
Português que logo a seguiam. A própria palavra em Inglês às vezes também sinalizava uma
hesitação, com pausas que eram seguidas também de mudanças para o Português.
O exemplo abaixo mostra a palavra “so” seguida de uma micropausa no momento que
a professora explica uma atividade. Quando esta percebe que não está sendo compreendida
ela recorre ao Português:
1.
Exemplo 1 (aula 1 – Básico 1)
T: What’s the situation? A, B, C, D. The 1. B. Ah! Yeah. Okay, okay. (Percebe que os alunos não estão
entendendo) In English, onde eles estão? O que é que está acontecendo? Okay, so (…) então, qual a
situação? You tell me what’s the situation? Pois isso vai dizer o que vai acontecer. Então, letter 1
what’s the situation?
Esse caso está na primeira categoria de mudanças instrucionais, a de explicação da
atividade ou o comando que o professor (T) dá antes da atividade se realizar realmente. Esse
exemplo é bem curioso, pois o marcador é utilizado primeiramente em Inglês, seguido de
palavras em Português (marcadas em negrito), e depois é invertido, sendo falado em
Português, seguido de palavras em Inglês. Dificilmente poderíamos encaixar o exemplo
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1747
partindo da premissa de Myers-Scotton (1998) que trabalha com regras pré-estabelecidas: será
que a professora fez essas mudanças de forma consciente? Recorrer ao Português foi sua
primeira opção? A própria mistura de línguas durante a interação também sugere que a
professora quer se manter no Inglês, já que ela volta ao Inglês ao final, mas ela quer também a
compreensão da turma a todo momento. Apenas com um estudo mais elaborado a partir de
uma análise cognitiva poderia revelar esse dado com certeza, como foi relatado também na
pesquisa de Gumperz (1982a)
As hesitações estão normalmente em Português e muito raramente em Inglês. Já os
marcadores destacados anteriormente (“So”, por exemplo) podem aparecer nas duas línguas e
possuem funções equivalentes (marcadores).
4. Análise de alguns dados e conclusões
As categorias de mudanças ou CS da pesquisa totalizam 12, mas diante do escopo
deste trabalho serão exploradas apenas algumas que possuem marcadores que influenciam na
interação. Nem sempre uma mudança é precedida, concluída ou é ela mesma um marcador; e
nem os marcadores pressupõem mudanças estilísticas ou de língua como é o caso. As
mudanças se organizam basicamente em dois grandes grupos: instrucionais e interacionais. As
primeiras são exclusivas do professor e são essenciais para a compreensão do que é
trabalhado na aula; por outro lado, as interativas, são realizadas por ambos alunos e
professores e não necessariamente tem conexão direta com o conteúdo da aula.
O exemplo 1 acima descreve uma mudança instrucional, as duas primeiras são
interativas e última possui mudanças tanto interativas como instrucionais: a primeira sinaliza
uma mudança para manutenção de turno, em que a o próprio code-switching é o marcador; o
exemplo seguinte mostra uma mudança para tradução seguida de outras para manutenção do
turno e que finaliza com um não ao final que é quase um backchannel, mas seria mais um
início de paráfrase explicativa que fica subentendida. Abaixo serão analisadas em detalhe
cada um dos exemplos:
1.
2.
3.
Exemplo 2 (aula 2 – Avançado 1) manutenção de turno
Contexto: a professora pede aos alunos que leram os textos dizerem sobre o que se trata para os alunos
que não leram em casa.
S2: I remember that she (P2s) went to the speed dating.
(S2: Eu lembro que ela (P2s) foi para um encontro rápido.)
T: And do you remember how it worked?
(T: E você lembra como ele ocorreu?)
S2: É: (…) you talk to a person for about three years (…) three minutes(…)
(S2: É: (…) você fala com uma pessoa por mais oumenos três anos (...) três minutos (...))
Nas fronteiras da linguagem ǀ
4.
5.
1748
S1: (Risos) Three years?
(S1: (Risos) Três anos?)
T: Three years is a relationship. (Risos)
(T: Três anos é um relacionamento. (Risos))
No exemplo acima, o marcador de hesitação é considerado tanto uma mudança para o
português, como também um marcador de hesitação. A manutenção do turno é uma das
funções dessa mudança. No caso o aluno não terminou de falar e usa o alongamento. Esse tipo
de marcador é presente na fala do professor e em ambos os níveis, o que foi um fato curioso
de observar.
Exemplo 3 (aula 1 – Básico 1) tradução
T: So, now please open your notebooks. Draw this. É um papel, pode escrever em um papel. Okay?
Desses números que a gente acabou de ouvir (repete números), okay?
(T: Então, agora por favor abram seus cadernos. Desenhem isso. É um papel, pode escrever em um
papel. Certo? Desses números que a gente acabou de ouvir (repete números), certo?
2.
S3: These numbers?
(S3: Esses números?)
3.
T: Aleatoriamente. Okay? At ramdom, escolha esses números e coloque no papel.
(Aleatoriamente. Certo? Aleatoriamente, escolha esses números e coloque no papel.
(Alunos escrevem os números no papel)
4.
T: Okay?
5.
S6: (chama a professora) escolher desses números?
(T: Certo?)
6.
T: É, aleatoriamente.
7.
Ss: (Inaudível)
8.
T: Sorry?
(T: Como?)
(Alunos escrevem novamente)
9.
T: Finish?
10.
Ss: NO!
(T: Terminaram?
Ss: NÃO!)
11.
T: No? You finish?
(T: Não? Vocês terminaram?)
(alunos continuam escrevendo)
12.
T: Okay, so this is a bingo. It’s a bingo, okay? Se vocês tiverem vocês marcam, okay?
13.
Ss: AH!
(T: Certo, então isto é um bingo. É um bingo, certo? Se vocês tiverem vocês marcam, certo?
Ss: AH!)
14.
T: Everybody knows the rules? When you complete the chart you say “bingo!”, okay? Can I start?
(T: Todos sabem as regras? Quando vocês completarem o quadro vocês dizem “bingo!”, certo? Posso
começar?)
15.
Ss: Yes.
(Ss: Sim)
16.
T: Yes? Okay. Can I?
(Sim? Certo. Posso?)
17.
S3: I do not understand.
(S3: Eu não entendo.)
18.
T: É: (…) do you know a bingo?
(T: É: (…) você conhece um bingo?
19.
S3: Yes, but (…) é: (…) the same numbers?
(S3: Sim, mas (…) é: (…) os mesmos números?)
20.
T: I’m sorry?
(T: Como?)
1.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1749
21.
22.
23.
24.
S3: É: (...) we (inaudível)
T: Vocês colocaram aleatoriamente. Eu vou falar.
S3: Si. (Sobreposição de vozes – inaudível)
S3: Eu coloquei todos os números.
(S3: Éééé (...) Nós (inaudível)
T: Vocês colocaram aleatoriamente. Eu vou falar.
S3: Si (Sobreposição de vozes
inaudível)
S3: Eu coloquei todos os números.)
25.
T: Oh! Really? Sorry. I’m sorry.
(T: Oh! Sério? Desculpe. Me desculpe.)
26.
S3: I choose?
(S3: Eu escolho?)
27.
T: Você escolhe e coloca um em cada (quadrado).
28.
S3: Six numbers?
(S3: seis números?)
29.
T: Yes. Six numbers and you put it in the chart. I’m sorry.
(T: Sim. Seis números e você os coloca no quadro. Me desculpe.
30.
S3: Não.
(Professora dá mais um tempo para alunos corrigirem)
–
Este último exemplo foi escolhido por possuir inúmeros marcadores e mudanças
durante um único tópico que se desenvolveu em uma explicação sobre a atividade do jogo, no
caso o bingo. Os alongamentos de hesitação por ambos aluno e professor; as repetições e
“traduções” do “okay” (HEISLER, 1986) em explicações mais extensas, para saber se os
alunos estavam realmente entendendo; e finalmente o “não” final que não significa uma
negação, mas sim um “tudo bem” ou “sem problemas”.
Essa mudança foi escolhida para mostrar que as funções ativadas por mudanças de
língua ou CS não são excludentes e podem estar presentes em único tópico e acontecer de
maneira muito fluida e rápida acompanhados por inúmeros marcadores como é o caso do
exemplo que possui marcadores interativos (“não”, “okay”) e cognitivos (hesitações): os
comandos da professora e resposta dos alunos acontece muito rápido e a atividade não demora
para acontecer sem problemas, apesar da falta de compreensão inicial.
O CS como foi exposto não é um erro e nem acontece apenas por falta de fluência do
aluno e muito menos do professor no idioma, pelo contrário, essas mudanças constroem
sentidos diversos compartilhados e negociados no curso natural da interação.
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1752
O TRABALHO COM O GÊNERO POESIA, O TEXTO E A
ORALIDADE NO ENSINO
[Voltar para Sumário]
Márcia Nadja Oliveira de Medeiros Galvão (UFRN)
Introdução
Quando falamos, adaptamo-nos à situação comunicativa, e mesmo quando não
procuramos nos adequar, o meio, por si só, já nos conduz a uma mudança de comportamento
na maneira como interagimos verbalmente, seja na escrita, seja na fala. Em face dessa
assertiva, verificamos que na escola, os indivíduos, mesmo levando variações, modos e
entonações próprios do seu cotidiano, em determinados momentos, agem de forma
diferenciada de outras esferas sociais.
Nas últimas décadas, muito se tem discutido sobre o ensino da oralidade na escola,
todavia, um expressivo número de pessoas tem deixado os bancos escolares com problemas
para se comunicar adequadamente nas esferas sociais em que se exige uma comunicação mais
específica ou rebuscada, seja no emprego das palavras, seja na adequação do tom, do ritmo ou
da cadência da voz.
Neste sentido, este trabalho tem como objetivo descrever um conjunto de atividades
que envolveram o gênero poesia e a oralidade, numa turma de 5º ano do Ensino Fundamental
de uma escola pública. A escolha por uma sequência didática deveu-se ao caráter modular das
atividades, que ofereceu um trabalho mais exato com a oralidade na sala de aula, sem, no
entanto, restringi-lo ao ensino sistemático. Esta sequência didática proporcionou momentos de
ludicidade, prazer, reflexão e aperfeiçoamento da leitura de poesias que não se restringem ao
ambiente escolar.
Assim, essa prática pedagógica se justifica, uma vez que cria contextos precisos de
produção oral e escrita, como também efetua exercícios variados, que permitem aos alunos
apropriarem-se de noções, técnicas e dos instrumentos necessários à expansão de sua
capacidade oral.
As atividades orais foram entremeadas com escritas, para proporcionarem uma análise
no modo de exteriorizar o poema. Essa ação-reflexão-ação deveu-se a conceitos mencionados
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1753
por Dolz e Schyneuwly (2004), que acertadamente observam a transitoriedade da palavra
pronunciada, que requer um controle do próprio comportamento no ato da produção, por meio
da escrita, memorização ou gravação da fala.
A teoria utilizada adveio dos estudos de pesquisadores tais como: Pinheiro (2002),
Dolz e Schneuwly (2004), Moisés (2007), entre outros, que dão confirmação ao sucesso
alcançado com essa prática.
Com essa sequência didática os professores poderão refletir sobre sua prática, as
inúmeras probabilidades de trabalhar com a oralidade, como também poderão fazer de sua
prática de ensino um instrumento de inserção social.
Para melhor compreensão dessa sugestão de sucessão de atividades organizamos esse
instrumental com a introdução, a teoria que dá embasamento à prática, o relato da sequência
didática que foi trabalhada na sala de 5º ano, e por fim as considerações finais acerca da
temática pesquisada e as referências consultadas.
A poesia, o texto e a oralidade no ensino
Ao pensarmos nas palavras de forma isolada, na sua essência, nos deparamos com a
imaginação criadora dos tempos mais remotos. Ao criar as palavras o homem também foi
desenvolvendo meios para utilizá-las em diversas situações. Neste sentido, o homem, ser
racional, mas contraditório, também é um ser emotivo. Na raiva, no amor, no
deslumbramento, no fervor, nas reflexões, o uso da palavra, desde os primórdios, ganhou
significados, sons secretos, encantos e cantos que saíam e chegavam aos sonhos fazendo os
indivíduos trilharem os caminhos do tempo com o diferencial da poesia. Do inexprimível até
as palavras mágicas, a poesia nos tem presos e encantados aos segredos do mundo.
Para Otávio Paz (1982, p. 15), a poesia “é conhecimento, salvação, poder, abandono”.
Esse gênero literário vem libertando o mundo vazio do ser humano. O tédio, o desespero, a
angústia, que podem impedir uma transformação positiva do homem, encontram na fruição da
leitura poética caminhos diferentes nos quais podemos encontrar respostas para nossas
indagações.
Glória Kirinus ao discorrer sobre poesia e os rumos da sociedade, numa conferência,
no Seminário Potiguar Prazer em Ler (2007, p. 23), preconizou:
Por que os cidadãos deste planeta tardam tanto para consultar os poetas? Um pouco
vates, os poetas já vaticinaram esperanãs e revoluções; um pouco feiticeiros, eles já
descobriram na fórmula alquímica das palavras a quintessência da expressão da
alma; um pouco sacerdotes, muitos já religaram a sua voz pessoal com o anseio
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1754
religioso da fraternidade universal. E, finalmente, um pouco crianças, eles já
brincaram de faz de conta fazendo arte num poema, num conto, em qualquer contexto. Equilibrando lucidez e distração, prepararam sonoridades, imagens e
significados no pequeno cosmos do recém-criado.
Nesse âmbito de faz de conta e de criação, Ariano Suassuna (1975, p. 18) declara que
a poesia seria o espírito criador que se encontra por trás de todas as artes literárias, sejam estas
realizadas através da prosa ou do verso. Assim, poesia é "o ritmo e a imagem, principalmente
a metáfora". Eliot (1972, p. 43) ainda acrescenta dizendo que: "A poesia é uma constante
lembrança de todas as coisas que só podem ser ditas em uma língua, e que são intraduzíveis".
Já para Kirinus (2007), as pessoas negligenciam o poder da poesia, não querem ver
que aprofundados estudos teóricos de parte de filósofos, psicólogos e pensadores de toda
ordem, insistem na relação íntima que existe entre o conhecimento, a leitura de mundo e a
poesia, como também entre o brincar e criar. Além dessa carência de conhecimento
coadunado com o dizer poético, também estamos necessitados do trabalho com o texto, bem
como da retórica, prática que vem sendo esquecida em milhares de salas de aula espalhadas
em nosso país.
Nos estudos sobre a língua, entre os diversos conceitos que circulam, o texto é
abordado como um sistema de práticas sociais e cognitivas, nas quais os interlocutores agem e
expressam suas intenções em situações historicamente situadas. Neste sentido, o texto oral,
escrito ou multimodal é visto como um tecido estruturado ou entidade de comunicação
significativa sócio-histórica, que reconstrói o mundo e pode inserir o indivíduo em diversos
domínios comunicativos.
Segundo Antunes (2010), para conferir unidade na composição de um texto o mais
necessário é perceber o que se tem a dizer, a quem dizer, com que finalidade, com que
precaução, em função de quais resultados, entre outros aspectos comunicativos. Logo, a
configuração convencionada de cada gênero, as respostas às determinações pragmáticas de
cada situação, a habilidade de sequenciar partes de um texto, ultrapassa as injunções
estabelecidas pelas estruturas gramaticais. Por isso a importância de se trabalhar a poesia
tanto no aspecto do gênero, levando em consideração suas características, quanto no aspecto
do texto, de forma lógica na qual o leitor/produtor adquira conhecimento e faça desse
aprendizado algo relevante para si, mudando a sua concepção de mundo.
Conforme Val (2004), sob a ótica funcional de atuação sociocomunicativa, o texto, em
sua produção e recepção, nos mais diversos contextos socioculturais, depende de fatores
pragmáticos para que se construam sentidos, seja na intenção do produtor, nas imagens de si,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1755
do outro e do tema, arquitetados por cada um dos interlocutores, seja no espaço de percepção
visual e acústica comum na comunicação face a face.
Dessa forma, delimitados os contextos e seus participantes, o texto deve ser percebido
como unidade semântica, formal e material, isto é, ele precisa ser reconhecido como um todo
significativo, integrado em seus constituintes linguísticos para que possa ter sua atuação
informacional e comunicativa.
A partir desses conceitos, depreendemos que os textos devem ser trabalhados na
escola, em seus aspectos internos e externos, pois promovem a interpretação, haja vista o
nicho significativo de o texto ser cultura, história e sociedade.
Com relação à retórica, a oralidade também tem suas distinções para diversas
situações (palestra, seminário, diálogo familiar, contação de histórias), fazendo-se necessário
o aperfeiçoamento das diferentes práticas discursivo-sociais. Seja na simplicidade cotidiana,
seja em situações mais complexas que exigem a norma culta, quando lemos pelo prazer de
externar sentimentos e sentidos (sejam eles líricos, satíricos, sacros, ou de outra ordem) sem
cobranças ou imposições, ou quando lemos para interagir com o outro, construímos e
reconstruímos nossas maneiras de ver o mundo.
Dessa maneira, o aperfeiçoamento das práticas discursivas pode se concretizar na
coexistência do falar e ouvir dos gêneros poéticos, que poderão proporcionar à criança e ao
adolescente o exercício das habilidades linguísticas exigidas nas várias instâncias das relações
humanas.
Portanto, a comunicação oral não se esgota somente na utilização de meios
linguísticos ou prosódicos; vai utilizar também signos de sistemas semióticos não
linguísticos, desde que codificados, isto é, convencionalmente reconhecidos como
significantes ou sinais de uma atitude. [...] é assim que, ao longo da interação
comunicativa vê confirmar ou invalidar a codificação lingüística (SCHNEUWLY,
DOLZ, 2004, p. 161).
As atividades lúdicas proporcionadas pela leitura, produção e verbalização de poesias
desenvolvem o plano verbal e vocal, como também o plano gestual dos recursos
extralinguísticos (postura, gestos, silêncios, mímica facial, como também a posição dos
locutores e interlocutores). É importante ressaltar essa evidência da prática discursiva da
oralidade no gênero poético, porque a recitação de poemas garante uma articulação entre a
escrita e a oralidade e enriquece a comunicação, ao possibilitar o acréscimo dos múltiplos
recursos extralinguísticos.
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1756
Pensando na formação do indivíduo como um ser múltiplo e complexo, percebemos
que exercitar a produção poética e a oralidade, sem didatizar esse processo, pode proporcionar
uma aprendizagem de qualidade, ao criar espaços para uma visão mais holística do aluno, que
poderá construir novos significados para os poemas e conhecimentos apresentados. Enfim, a
leitura oral do texto poético produzido pelo aluno, oportuniza para ele e demais educandos a
construção das linhas e entrelinhas da poesia. Seus aspectos em aberto geram reflexões a
partir de significados existentes na própria poesia e na relação com outros contextos. Se
deixarmos a poesia se perder nos caminhos da escola, perderemos a oportunidade de nos
encontrar.
A aplicação prática – sequência didática
O trabalho com a oralidade requer questionamentos sobre alguns conceitos arraigados
na formação dos educadores. É possível ensinar a oralidade? Qual a função da oralidade, se
todos nós já sabemos falar desde a mais tenra idade? A escola tem de fato, trabalhado a
oralidade?
A oralidade se apresenta, no campo do currículo, como um dos eixos didáticos de
menos tradição escolar. Segundo alguns pesquisadores, isso se dá por algumas razões: poucas
pesquisas de investigação nesse campo; desconhecimento dos educadores da importância do
trabalho com a oralidade; práticas pedagógicas equivocadas, entre outras posturas. Com base
nisso, é importante que antes de quaisquer procedimentos pedagógicos, o professor deva ter
consciência de que trabalhar as práticas de oralidade não é simplesmente reunir um grupo de
alunos e promover uma discussão aleatória sobre um ou outro tema e, sim, propiciar-lhes de
forma consciente gêneros próprios da oralidade como debates, mesas-redondas, seminários
dentre outros.
Em outras palavras, para ser considerado um trabalho com a oralidade, o professor
deve deixar claro para os alunos que, por exemplo, assim como o debate regrado, a mesaredonda é um gênero oral e dela participam pessoas preparadas para discorrer sobre um tema,
há um moderador (aquele que abre o evento, apresenta o tema e as pessoas convidadas para
falar), que esse evento tem uma funcionalidade e organização próprias. Ao proceder dessa
forma, o professor está mostrando para os discentes que os textos orais têm, assim como os
textos escritos, uma organização, e o mais relevante: têm a mesma importância e não podem
ser negligenciados. A esse respeito, Costa (2013, p. 8) apud Marcuschi (2005), assevera:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1757
Devemos esclarecer que pensar a estruturação didática do oral envolve dimensões de
produção e compreensão de gêneros orais formais e informais, de modo a englobar
as competências ligadas à situação de produção e realização desses gêneros, a
organização dos turnos conversacionais, a compreensão das regras de convívio
social, o trato das relações entre o oral e a escrita, as variações que sofre a língua em
função dos diferentes condicionantes, bem como a reflexão sobre o que fazemos
quando usamos a língua modalidade oral.
Assim como está posto, os pesquisadores propõem não uma supremacia das práticas
orais, mas um tratamento de equidade entre as práticas da leitura/ escrita.
Sendo assim, reconhecendo a importância de um trabalho efetivo nas escolas
envolvendo as práticas de oralidade, segue a descrição de uma sequência didática proposta em
uma sala de 5º ano.
Para dar início ao desenvolvimento da sequência didática, primeiramente, o professor
explicou a razão de se trabalhar com o gênero poema, sua importância e por que desenvolvêlo, nesse caso, não apenas devido ao gosto pelo texto poético, mas, sobretudo, para
desenvolver as habilidades do falar em público e da recitação próprias do gênero. Ainda na
aula, houve a discussão sobre o termo ‘poesia’, presente não apenas no texto poético, porém
em outros gêneros, assim como foram feitos à turma os seguintes questionamentos: O que é
poesia? As poesias são usadas somente nas aulas de Língua Portuguesa? Por que usar poesias
ao ensinar Língua Portuguesa? O que é preciso saber para diferenciar poesia de outros
gêneros textuais? Quais as características da poesia? Só podemos usar as poesias na
oralidade? Quais poesias mais lhes agradam, por quê? É fácil recitar poesia, por quê?
Essa série de questionamentos serviu de referência ao professor para dar
prosseguimento à atividade, posto que, partindo dos conhecimentos prévios dos discentes, há
como melhor planejar as demais aulas. Após esse primeiro momento, através de slides, a
professora apresentou ao grupo poemas variados e os leu em voz alta para apreciação. Acerca
dos benefícios da leitura em voz alta, Pinheiro (2002, p. 32), afirma:
Ler em voz alta é um modo de acertar a leitura, de adequar a percepção a uma
realização objetiva. Portanto, não é tarefa ligeira. É preciso ler e reler o poema,
valorizar determinadas palavras, descobrir as pausas adequadas, e o que não é fácil,
adequar a leitura ao tom do poema.
Baseado nessa assertiva, é importante ressaltar que quando o autor menciona a
importância da leitura em voz alta, não apenas se refere ao professor, mas também à postura
do aluno.
Com a finalidade de incentivar a primeira produção do gênero, o professor colocou na
lousa três temáticas: animais, amor e objetos. Para essa atividade, não foram exigidas
peculiaridades do gênero, todavia, deve-se ressaltar que as primeiras produções são
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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parâmetros para o educador saber o nível da turma com relação ao domínio ou não do gênero.
No tocante à relevância dessa primeira produção, Dolz e Schneuwly (2004, p. 87), nos dizem:
A produção inicial tem um papel central como reguladora da sequência didática,
tanto para os alunos quanto para o professor. Para os alunos, a realização de um
texto oral ou escrito concretiza os elementos dados na apresentação da situação e
esclarece, portanto, quanto ao gênero abordado na sequência didática. Ao mesmo
tempo, isso lhes permite descobrir o que já sabem fazer e conscientizar-se dos
problemas que eles mesmos, ou outros alunos, encontram.
Para esses autores, após a primeira produção, o professor desenvolverá os módulos,
que são as atividades sistematizadas, para que no final do processo os alunos tenham atingido
os objetivos propostos. Para essa sequência com foco na oralidade através do gênero poema,
foram organizados 32 momentos, estruturados por 10 módulos e distribuídos em 30 aulas.
O primeiro módulo “Abrindo os ouvidos para poesia”, teve a duração de duas aulas e a
professora apresentou mais uma vez muitos poemas de autores distintos e, trabalhou as várias
características do gênero tais como: definições, características estruturais, além das temáticas
existentes em cada um deles e os recursos linguísticos próprios do gênero. Na sequência,
cada discente escolheu um poema e justificou a escolha.
O segundo módulo “Aprendendo a gostar de poesia”, comportou duas aulas e foram
entregues à turma alguns poemas para que o aluno lesse à vontade e, em seguida, recitasse.
Ainda na mesma sequência, os alunos falaram das sensações despertadas pelos poemas
declamados.
O terceiro módulo “Pesquisando poesia”, com duração de quatro aulas, oportunizou
aos discentes pesquisarem poemas distintos e, como atividade de arte, todos os ilustraram.
Para finalizar, apresentaram-nos e montaram um Mural literário.
O quarto módulo “Montando antologias poéticas” perdurou quatro aulas e se deu nas
bibliotecas públicas da cidade onde os alunos pesquisaram sobre Cecília Meireles e Vinícius
de Moraes. Para mais conhecimento sobre o gênero, tanto relacionado ao aspecto estrutural,
quanto no que diz respeito ao ritmo, rima e musicalidade, os educandos organizaram uma
antologia poética contendo capa, biografia e poemas ilustrados. Após esse momento, os
grupos socializaram as suas respectivas antologias.
O quinto módulo “Vivendo a essência da poesia”, aconteceu em duas aulas, foi
destinado à seleção de poemas para o sarau poético, assim como o ensaio para o evento, ou
seja, os alunos leram em voz alta os poemas, observando a entonação, o ritmo, a musicalidade
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1759
e cadência, próprios do texto. Com relação à preocupação do trabalho com esses elementos,
Pinheiro (2002, p. 33) nos assevera:
Alguns poemas são captados mais profundamente após a realização oral. Sabemos
que é polêmica a questão da realização oral do poema. Mas, para o trabalho de sala
de aula, ler em voz alta é muitas vezes indispensável e carece, portanto, de preparo.
Assim, o autor quer nos dizer que esse contato do discente com a beleza da poesia não
deve ser feito de modo aleatório.
O sexto módulo “Confeccionando peças poéticas”, com duração de quatro aulas, foi
organizado para a ilustração dos poemas que formaram o varal poético. A turma foi dividida
em grupos, que confeccionaram e estilizaram peças de roupa em papel (blusa, short, vestido,
calça, saia, entre outras) e, em seguida, recitaram os poemas escolhidos anteriormente para
esse fim. No que tange a essa diversidade de atividades, Dolz e Schneuwly (2004, p. 89)
reiteram:
Além da alternância, bem conhecida, de um trabalho com toda a turma, em grupos
ou individual, o princípio essencial de elaboração de um módulo que trate de um
problema de produção textual é o de variar os modos de trabalho. Para fazê-lo,
existe um arsenal bastante diversificado de atividades e de exercícios que relacionam
intimamente leitura e escrita, oral e escrita, e que enriquecem consideravelmente o
trabalho em sala de aula.
O sétimo módulo “Escrevendo sobre a viagem”, que se prolongou por quatro aulas, foi
destinado à visitação da Associação Casarão da Cultura Potiguar, mais conhecida como
“Casarão de Poesia” (Organização não governamental, Biblioteca Comunitária e espaço
cultural), localizada na cidade de Currais Novos-RN. Após essa visita, a professora abriu
espaço para que todos registrassem e socializassem a experiência, assim como recitassem
poemas de autores encontrados no Casarão.
O oitavo módulo “Poetando com as palavras”, aconteceu em duas aulas, foi quando os
alunos passaram realmente à produção dos primeiros poemas individuais. Após a orientação
da reescrita realizada pela professora, os alunos fizeram a socialização.
O nono módulo “Debatendo e produzindo poesia” ocorreu durante três aulas, teve
como penúltima ação da sequência, a discussão sobre a experiência de se trabalhar com o
gênero poema, e em seguida, os alunos foram orientados a produzirem o seu primeiro livro de
poemas. Para Dolz e Schneuwly (2004, p. 90):
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1760
A sequência é finalizada com uma produção final que dá ao aluno a possibilidade de
pôr em prática as noções e instrumentos elaborados separadamente nos módulos.
Essa produção permite, também, ao professor realizar uma avaliação somativa.
O décimo módulo “A poesia na escola” que perdurou por três aulas, foi para expor as
atividades trabalhadas ao longo da sequência, bem como o Sarau Poético, momento em que
todos os alunos escolheram um poema e recitaram-no. Houve também a dramatização dos
poemas: Leilão de Jardim de Cecília Meireles e O velho e a flor de Vinícius de Moraes. Na
produção final “Compartilhando poesias”, ocorreu a culminância das atividades com a
exposição dos livros de poemas produzidos pelos alunos.
Considerações finais
Ao concluir a sequência didática com resultados positivos constatamos que a turma
procurou aperfeiçoar o timbre, o ritmo e entonações nos momentos em que trabalhamos para
o sarau.
Com esse comportamento diferenciado na recitação, os discentes perceberam que a
maneira como nos expressamos oralmente pode fazer a diferença na recepção dos nossos
interlocutores. No caso das poesias, podemos expressar indignação, amor, carinho, tristeza,
ironia, alegria, entre outros sentimentos.
Neste sentido, o trabalho com o texto e a oralidade mostrou ao aluno que o emprego
das palavras, o tom, o ritmo ou a cadência da voz podem produzir diversos sentidos em
diferentes situações comunicativas nas diversas esferas sociais.
A escolha pela sequência didática para o aperfeiçoamento da leitura de poesias
confirmou que o uso de módulos na prática pedagógica, além de facilitar a avaliação
concedeu ao alunado uma autoavaliação, além de momentos lúdicos, reflexivos e aprazíveis.
Reafirmando conceitos sobre a transitoriedade da palavra pronunciada e do controle do
próprio comportamento no ato da produção verificamos que, em face das mudanças no tempo
e nos diversos espaços, faz-se necessária a continuidade das pesquisas sobre a oralidade e as
práticas pedagógicas que potencializem a capacidade de comunicação do aluno do Ensino
Fundamental.
Referências
ANTUNES, I. Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola, 2010.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1761
CAVALCANTE, C. B; SANTOS, Carmi Ferraz; MENDONÇA, Márcia. Diversidade textual:
os gêneros na sala de aula. In: Trabalhar com texto é trabalhar com gênero? Belo Horizonte:
Autêntica, 2007.
DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ Michèle; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas para
o oral a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY,
Bernard (Orgs.) Gêneros orais e escritos na escola. 3 ed. Campinas, SP: Mercado das Letras,
2004.
ELIOT, T. S. A essência da poesia: estudos e ensaios. Rio de Janeiro: Artenova, 1972.
KIRINUS, Glória. Seminário Potiguar Prazer em Ler. 2007.
MACIEL, Débora Costa. Oralidade e ensino: saberes necessários à prática docente. Recife:
EDUPE, 2014.
MARCHUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: A. P.
Dionísio; A. R. Machado; M. A. Bezerra. Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: RJ:
Editora Lucerna, 2005.
MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia & Utopia: sobre a função social da poesia. São Paulo:
Escrituras Editora, 2007.
PAZ, Otávio. Poesia e Poema. In: O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro. Ed.
Nova Fronteira, 1982.
PINHEIRO, Hélder. Poesia na sala de aula. Campina Grande: Bagagem, 2002.
RAMOS, Jânia M. O espaço da oralidade na sala de aula. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
SUASSUNA, Ariano. Iniciação à estética. Recife: UFPE, 1975.
VAL, Maria das Graças Costa. Redação textualidade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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1762
MR. POTTER E A VOICELESS DO SUJEITO COLONIAL:
IDENTIDADE, RAÇA E MARGINALIDADE EM JAMAICA
KINCAID
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Márcia Oliveira (UFPE)
Introdução
A literatura pós-colonial contribuiu de forma direta para a inserção de autores, textos e
temáticas extremamente relevantes na contemporaneidade, levando em consideração as
‘minorias’ antes silenciadas1. A escritora Jamaica Kincaid, nascida na Antígua em 1949 e
residente nos Estados Unidos desde a adolescência, é um exemplo de escritora preocupada
com as configurações socioculturais que se desenvolvem principalmente a partir de meados
do século XX; Kincaid aborda em sua obra a perspectiva de personagens com experiência de
colonização, que vivem suas consequências, e, por essa razão ainda continuam a habitar um
espaço de marginalidade. Este estudo tem como objetivo principal analisar o romance Mr.
Potter (2002) a fim de estabelecer a força da ‘não voz’ do sujeito colonial, tendo em vista que
a subalternidade silencia os indivíduos de maneira cruel e quase irreversível; entendemos que
o fato de o romance não ser narrado pelo senhor Potter, comprova nossa teoria de que a
violência física e epistêmica da experiência colonial emudece o indivíduo a ponto deste não
ser capaz de fazer-se ouvir.
Através do suporte teórico de autores como Frantz Fanon, Albert Memmi, Aníbal
Quijano, Gayatri Spivak, Roland Walter, entre outros, buscamos compreender como a
identidade desse indivíduo se desenvolve levando em consideração a exclusão social
vivenciada no cotidiano e nas relações humanas. A reflexão sobre questões relacionadas à
raça, condição social e econômica, nível educacional e espaço geográfico pode revelar a
extensão da colonialidade do poder nas sociedades com histórico de colonização, tornando-se
uma ferramenta para o combate da subalternidade desse sistema. A análise do romance Mr.
1
A crítica pós-colonial também representa um papel importante para as novas conjecturas contemporâneas, já
que pode ser vista “como abordagem alternativa para compreender o imperialismo e suas influências, como um
fenômeno mundial e, em menor grau, como um fenômeno localizado.” (BONNICI, 2012, p. 20)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1763
Potter pode, portanto, ser um instrumento para o entendimento da obra kincaidiana e seus
paradigmas. A narrativa revela pontos de intersecção com outros textos da autora afrocaribenha, e ao mesmo tempo também revela pontos que a distanciam de algumas temáticas
trabalhadas por Kincaid. Nessa perspectiva o romance em questão parece ocupar um espaço
ímpar para o aprofundamento da questão identitária em cenários de subalternidade e
marginalidade.
Contextualizando Mr. Potter
Um estudo aprofundado da obra da escritora caribenha Jamaica Kincaid2 exemplifica o
desejo de desconstrução da essência tradicionalista do discurso colonial/patriarcal (uma vez
que um é complementação do outro). Por essa razão muitos dos textos kincaidianos têm como
protagonistas mulheres, que rompem o silêncio e desconstroem estereótipos através de suas
vivências e com escolhas que nada têm a ver com o papel da mulher enquanto ser frágil e
incapaz. Entre essas obras destacam-se Annie John (1985), Lucy (1990) e The autobiography
of my mother (1996).
Mr. Potter representa, nesse aspecto, uma mudança significativa em relação a outras
narrativas de Kincaid. Justin Edwards (2007) afirma que a obra kincaidiana possui dois temas
principais: a desigualdade de gênero e as consequências da colonização. De fato a maioria de
seus textos abordam de forma profunda e problemática essas duas questões, pensando a partir
da necessidade de descolonização do corpo e da mente; nesse aspecto Kincaid mescla as
experiências pessoais para dar maior dinamismo às experiências coletivas relatadas em seus
textos.
O romance Mr. Potter difere dessas narrativas no que diz respeito à questão de gênero,
uma vez que a narrativa conta a história de um protagonista homem, além do fato de nenhuma
mulher ter importância real para o desenrolar da história; em diversos momentos fica claro
que Roderick Potter – ou apenas o senhor Potter – apesar de fazer sucesso com as mulheres,
não era capaz de amar nenhuma delas, muito menos amar suas próprias filhas. Aqui vale uma
reflexão para o trecho: “so unloved he was, but he did not know it so he could not miss love,
2
Nossa dissertação de mestrado defendida em 2012 na Universidade Federal de Pernambuco é intitulada “O
Feminismo Pós-colonialista de Jamaica Kincaid: rumo à liberdade”, tendo como foco de análise as temáticas
relacionadas à desigualdade de gênero e as questões acerca da colonização, além do fato das tensões
familiares das protagonistas (e numa visão ampla as tensões da própria experiência pessoal de Kincaid)
estarem entrelaçadas com as tensões de cunho social.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1764
for it had never been part of his very being”3 (KINCAID, 2002, p. 43), o personagem parece
estar impossibilitado de amar porque ele não sabe nada sobre nenhuma forma de amor em sua
experiência pessoal, sua infância foi uma jornada para aprender a se defender e ter as
ferramentas para a sobrevivência, tudo que seja além disso lhe é desconhecido.
Mesmo não tendo o foco na questão da mulher negra na sociedade, o romance mantem
sua atenção para outro foco temático de Kincaid: o universo da colonização e seus efeitos.
Devemos levar em consideração o desejo da escritora em legitimizar as vozes silenciadas pela
opressão colonial4. O uso constante de narrações em 1ª pessoa funciona como forma de
legitimação das personagens, de suas experiências, escolhas e trajetórias. O discurso do ‘eu’
também identifica a busca por liberdade. Sabemos que a colonização se fundamenta a partir
da ideia de que “o colonizado é um débil” (MEMMI, 1989, p. 79), um selvagem, sendo por
isso ‘naturalmente’ inferior em relação ao colonizador; este, por outro lado, percebe o
colonizado como o ‘outro’, dessa forma o colonizador busca legitimação de seu discurso de
superioridade, ao tomar para si a condição de único civilizado busca internalizar a ideia de
dependência; só a descolonização das mentes será capaz de desconstruir esse discurso e tudo
que ele sustenta; de maneira geral as personagens kincaidianas saem à procura de
independência e legitimação. Mais uma vez o romance aqui analisado afasta-se do modelo
comumente usado por Kincaid: a narração é feita em terceira pessoa e conta a história de um
indivíduo que é completamente passivo no que diz respeito à sua condição de inferioridade e
subalternidade, afinal “his past never holding a different future”5 (KINCAID, 2002, p. 57). A
narração é feita por uma mulher, e logo o leitor descobre que é uma das filhas do senhor
Potter, que após saber de sua morte começa a contar sua história; apesar de não ter uma
relação afetiva com o pai a narradora reconhece a necessidade de aprofundar-se no universo
do senhor Potter para dar-lhe voz, e também para entender suas raízes. Sua identidade está,
inegavelmente, ligada à história do seu pai e de tudo o que essa história representa (em termos
históricos).
Algo que continua presente na escrita de Kincaid é a desconstrução de inúmeras
‘verdades culturalmente estabelecidas’ a partir de um relato que visa refletir uma realidade
‘desconhecida’ da História Oficial. Poderíamos afirmar que na obra de Kincaid “The
3
Todas as traduções neste trabalho são de minha autoria: “tão mal amado ele era, mas ele não sabia disso e
por isso não podia sentir falta do amor, pois isso nunca tinha sido parte do seu ser”
4
Esse desejo por legitimação funciona em duas frentes: primeiramente oferecem à escritora a possibilidade de
trabalhar as suas tensões pessoais, mas também é uma busca por legitimação mais ampla, que engloba o nível
coletivo.
5
“o passado dele nunca proporcionou um futuro diferente”
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1765
mystified notions of home and family are removed from their romantic, idealized moorings, to
speak of pain, movement, difficult, learning and love in complex ways”6 (DAVIES, 1994, p.
21); a leitura da obra kincaidiana apresenta uma complexidade que se explica por uma
perspectiva intimista dos sentimentos – geralmente conflitantes – das personagens, o romance
analisado é construído a partir do amor de uma filha pelo pai, um amor que nunca foi
correspondido. Ao mesmo tempo em que cresce aprendendo a odiar o pai (graças ao ódio da
mãe) a narradora nutre ainda um desejo secreto de ser reconhecida por ele. Além disso as
relações sociais apresentadas nas narrativas mostram que muitos dos conflitos que são
gerados têm a ver com o lugar que as personagens ocupam, seja na família ou na sociedade.
Ao falar sobre a vida do pai a narradora explica que o sofrimento tornou-se lugar
comum: “And this way suffering became normal, and in this way suffering became life itself,
and any interruption in this suffering, be it justice and happiness, or more suffering and
injustice, was regarded with hostility and anger and disappointment.”7 (KINCAID, 2002, p.
58-59) É possível, portanto, compreender a existência do senhor Potter como sendo uma
existência sem sentido, esquizofrênica a ponto de não haver chance real de criar laços com
outras pessoas. Para Roland Walter “Kincaid articula o efeito do complexo enredo da
desapropriação e do deslocamento na psique dos habitantes da ilha” (2009, p. 176), no
contexto de Mr. Potter poderíamos afirmar que o personagem não é capaz de raciocinar sobre
sua própria realidade e, sem entender a si mesmo, aceitando-se e amando-se a alienação de
sua psique leva a uma indiferença total em relação aos outros.
A memória é o grande ponto-chave para entender as construções narrativas de
Kincaid. Através da reflexão acerca do passado a escritora não apenas analisa fatos que
explicam as dificuldades familiares, mas vai além, e possibilita ao leitor compreender os
fluxos históricos responsáveis por uma vivência esquizofrênica que impossibilita a construção
de uma nova história. Se ao contar nossas próprias histórias damos a nós mesmos uma
identidade (LARROSA in SILVA, 1994), é pensando no passado e problematizando-o que
nos tornamos capazes de entender o presente; para entender o não-amor do pai Elaine reflete
sobre os maus-tratos que ele viveu na infância por sua família adotiva (após a mãe tê-lo
abandonado e cometido suicídio).
Se entendermos que o ato de recordar como “um complexo processo seletivo que
6
“As noções mistificadas de casa e da família são retiradas de suas amarrações românticas, idealizadas, para
falar-se de dor, de movimento, de dificuldade, aprendizado e amor em formas complexas”
7
“E desta forma o sofrimento tornou-se normal, e desta forma o sofrimento se tornou a própria vida, e qualquer
interrupção deste sofrimento, seja por justiça e felicidade, ou mais sofrimento e injustiça, seria encarado com
hostilidade e raiva e decepção.”
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1766
(re)codifica imagens e pensamentos – que dá acesso à memória é um ato de resistência à
perda, expropriação, desterritorialização e desarraigamento sofridos pelos afro-descendentes
pan-americanos” (WALTER, 2009, p. 20) poderemos facilmente fazer um paralelo pela
necessidade de Elaine em narrar a história do pai, fazendo isso apenas quando descobre que o
mesmo morreu, a narradora tenta criar uma conexão que nunca foi estabelecida com o genitor,
e faz isso não apenas para escrever o pai no mundo, mas para de alguma forma, fazer parte
deste mundo. Em Mr. Potter vemos a memória criar todo um universo que explica a trajetória
do pai de Elaine em primeiro plano, e a trajetória da própria Elaine em segundo plano.
Como dissemos outrora o romance narra a história de Roderick Potter, nascido em
1922 na vila de English Harbour. Ele é filho único por parte de mãe, sendo que o pai teve 11
filhos com mulheres diferentes, não tendo contato com nenhum deles. Apesar do livro ser
intitulado com seu nome, quem narra a história é uma de suas filhas, Elaine (nascida em
1949). Aqui já é possível perceber o quanto a escrita de Jamaica Kincaid se caracteriza por
sua condição autobiográfica: assim como a narradora Elaine (nome verdadeiro da escritora,
nascida no mesmo ano da narradora) Kincaid também não conviveu com o pai, que se separou
da mãe antes mesmo dela nascer, não participando em nada de sua criação; o senhor Potter
(Potter é o sobrenome verdadeiro de Kincaid) e o pai da escritora também têm a mesma
profissão: chofer. Segundo Carole Boyce Davies (1994) a subjetividade autobiográfica que
muitas vezes acompanha a escrita da mulher negra tem como objetivo desmistificar noções
estabelecidas através de um discurso que é, ao mesmo tempo, articulado e geograficamente
definido. Não há dúvida de que o fato de crescer sem a presença de um pai acaba deixando
sequelas profundas que vão aparecendo no romance de forma decisiva, constituindo-se em um
trauma que ecoa com grande intensidade em toda a narrativa.
A voiceless de Mr. Potter: colonialidade do poder e subalternidade
Kincaid visa dar voz àqueles que foram silenciados, e o senhor Potter é, sem dúvida,
uma dessas pessoas. No prefácio de Pode o subalterno falar? Almeida afirma que
o processo de fala se caracteriza por uma posição discursiva, uma transação entre
falante e ouvinte e, nesses sentido, conclui afirmando que esse espaço dialógico de
interação não se concretiza jamais para o sujeito subalterno que, desinvestido de
qualquer forma de agenciamento, de fato, não pode falar (SPIVAK, 2010, p. 15)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1767
De fato não é dado ao senhor Potter o direito à fala; portanto o silêncio do personagem
é uma forma de opressão: “the world would not allow them to do so, speak of the shadows in
which they lived, the world would first shudder and then shatter into a million pieces of
something else before it would allow them to do so”8 (KINCAID, 2002, p. 114). A linguagem
funciona como parte do processo de um colonialismo muito mais amplo, pois gera uma
subordinação mais profunda (uma vez que só a subordinação material não é capaz de
perpetuar a marginalização dos sujeitos).
A narrativa demonstra que socialmente o protagonista do romance não tem nenhum
tipo de importância, e sua história de dominação só é contada porque sua filha resolve fazê-lo.
Ele não tem direito à fala, muito menos à escrita (já que é analfabeto – fato que é mencionado
inúmeras vezes) e já que “A escrita se apresenta como um novo combate: luta com as
palavras, com a censura interna” (FIGUEIREDO, 2013, p. 88), ou ainda como nos lembra
Cixous (1975) a escrita é um trampolim para o pensamento subversivo, Mr. Potter se
apresenta enquanto busca por uma voz que não é apenas individual (comprovado pelo desejo
da narradora em prestar uma homenagem ao pai desconhecido inscrevendo ele no mundo) é,
antes de tudo o desejo de encontrar uma voz que exemplifique coletivamente o que o senhor
Potter representa enquanto indíviduo colonizado com uma história perdida.
“Falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura” (FANON, 2008, p. 50), é
também carregar o peso dessa cultura. Vemos em Mr. Potter que a ‘não-voz’ do personagem
passa pela impossibilidade de resistir. Essa impossibilidade gera consequências que
interferem diretamente na forma como o senhor Potter vê o mundo e a si mesmo. O pai de
Elaine tinha muitos problemas de comunicação e a narradora parece compreender que além
das dificuldades em se expressar a vida do pai é composta de uma existência solitária: “he
was all alone in the world, the world that refused to bear any trace of capriciousness of
history, the world that had passed away”9 (KINCAID, 2002, p. 39-40), em alguns momentos
ela se solidariza com este ser tão desconhecido (que de certa forma reproduzia o
comportamento de abandono do pai), tendo consciência de que ela não fora amada justamente
por causa desta impossibilidade do pai. Não ser capaz de criar laços é parte dos efeitos da
violência epistêmica10, sendo assim pensemos que “o mais claro exemplo disponível de tal
violência epistêmica é o projeto remotamente orquestrado, vasto e heterogêneo de se
“o mundo não permitiria que eles o fizessem, falar das sombras em que eles viviam, o mundo primeiro tremeria
e quebraria em um milhão de pedaços em qualquer coisa antes de permitir que eles fizessem”
9
“ele era sozinho no mundo, o mundo que se recusou a dar qualquer traço de capricho da história, o mundo que
havia falecido”
10
Termo usado por Spivak (2010) para especificar a forma de exercer o poder simbólico.
8
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1768
constituir o sujeito colonial como Outro” (SPIVAK, 2010, p. 60), alterando inclusive a
própria subjetividade do indivíduo, inviabilizando qualquer possibilidade de uma existência
normal.
No livro Afro-América: diálogos literários na diáspora negra das Américas Roland
Walter afirma que o senhor Potter é vítima de um jogo criado e jogado por outros, sendo ele
apenas uma peça a ser conduzida; Walter também pontua que “Em Mr. Potter, Jamaica
Kincaid continua problematizando os efeitos que a colonização continua exercendo na
chamada pós-colonialidade antilhana”, além disso “o livro problematiza esta voiceless póscolonial, ou seja o paradoxo de ter e não ter uma voz enquanto legado principal da
colonialidade” (2009, p. 183). A voiceless é um indicativo claro que a interação hierárquica
que acontece entre colonizador e colonizado – mesmo pós-colonização – deixa marcas
profundas que continuam agindo no indivíduo de forma silenciosa. Nesse caso o romance
abre para uma reflexão bastante pertinente sobre a condição do ser colonizado: “Mr. Potter
himself says nothing, nothing at all. How sad it is never to hear the sound of your own voice
again and sadder still never to have had a voice to begun with”11 (KINCAID, 2002, p. 189),
aqui fica claro que não é uma impossibilidade física que impede o pai de Elaine fazer sua voz
ser ouvida, é um impedimento sócio-histórico-cultural.
É nesse contexto que o conceito de subalternidade desenvolvido por Gayatri Spivak
(2010) ganha força, segundo a estudiosa o subalterno não tem fala porque o mesmo não
possui representatividade por causa de seu status social. Essa subalternidade está intimamente
ligada ao colonialismo e às suas consequências. É por essa razão que esse legado precisa ser
entendido e problematizado, para que, de alguma forma, seja superado. Não basta apenas
desocupar o território e proclamar a independência, é preciso lutar contra o colonialismo que
infecta a mente e as relações sociais dos sujeitos, visto que “o problema da colonização
comporta assim não apenas a intersecção de condições objetivas e históricas, mas também a
atitude do homem diante dessas condições.” (FANON, 2008, p. 84)
Aníbal Quijano (1997) centrou seus estudos pensando a partir da incorporação do
pensamento colonialista na sociedade pós-colonial. Sua teoria sobre a colonialidade do poder
surge daí. Ele explica a colonialidade do poder tendo em conta que a mesma
é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder
capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da
população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e
“O senhor Potter não dizia nada, absolutamente nada. Quão triste é nunca ouvir sua própria voz e mais triste
ainda nunca ter uma voz para começar”
11
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
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opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjectivos, a
existência social quotidiana da escala societal. (in SANTOS & MENESES,
2010, p. 73)
Para o autor peruano a colonialidade foi gerida dentro do colonialismo, no entanto
tornou-se muito mais profunda e fatal, conseguindo perpetuar na sociedade mesmo quando o
colonialismo do território termina. Na análise de Mr. Potter a colonialidade se manifesta na
maneira como o pai de Elaine internalizou a ordem estrutural da sociedade em que vivia,
sendo, dessa forma, conduzido por forças que estavam além de seu entendimento: “Mr. Potter
drove along and nothing crossed his mind and the world was blank and the world remained
blank”12 (KINCAID, 2002, p. 34); essa materialização da colonialidade passa também pela
forma como a sociedade trabalha a representação do indivíduo, transformando as relações
sociais a partir da exploração, dominação, hierarquização e conflito.
Segundo Fanon o colonialismo destrói a essência, pois “Ao colonialismo não basta
encerrar o povo em suas malhas, esvaziar o cérebro colonizado de toda forma e todo
conteúdo. Por uma espécie de perversão da lógica, ele se orienta para o passado do povo
oprimido, deforma-o, desfigura-o, aniquila-o” (1968, p. 175). O romance Mr. Potter revela
esse lado cruel e faz constantemente uma conexão do destino do senhor Potter com o ano de
1492 (data da chegada de Cristóvão Colombo ao que eles passaram a chamar de Novo
Mundo), problematizando a versão oficial da colonização. Kincaid, assim como Elaine, busca
apropriar-se da história a partir de um pensamento que desconstrua o passado, criando uma
narrativa que reflita sobre a necessidade de um pensamento e um fazer descolonial
(MIGNOLO, 2003). Mr Potter se inicia com a frase “And that day the sun was in its usual
place, up above and in the middle of the sky”13 (KINCAID, 2002, p. 3) e o que poderia ser
uma escolha simples para começar o texto mostra ser muito mais do que isso, já que a frase é
repetida algumas vezes, demonstrando que tudo continuava do mesmo jeito, que a vida estava
no seu lugar habitual – fato que será modificado adiante, quando a narradora afirma “The day
into which Mr. Potter had died was so much the opposite of the day into which the sun was
always in the middle of the sky; the sun was blotted out, blotted out by an eternal basin of
rain, and that basin had, by accident, been inverted”14 (idem, p. 182) o leitor é levado a
pensar sobre como a morte do senhor Potter gera um abalo para a narradora, que passa a
“O senhor Potter dirigiu e nada passou por sua mente e o mundo estava em branco e o mundo permaneceu em
branco”
13
“E naquele dia o sol estava em seu lugar habitual, acima e no meio do céu”
14
“No dia em que o senhor Potter morreu era o oposto do dia em que o sol estava sempre no meio do céu; o sol
estava apagado, apagado por uma bacia de chuva eterna, e a bacia tinha, por acidente, sido invertida.”
12
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1770
perceber que, de certa forma, a figura do pai era também o centro de seu universo e o centro
de sua história, enquanto indivíduo e enquanto parte de um povo. É a partir dessa perspectiva
que Kincaid exemplifica a possibilidade real de desenvolver o pensamento e o fazer
descolonial.
Considerações finais
Acreditamos que Kincaid abre espaço em sua obra para politização do que é
comumente considerado pessoal, no sentido de não só transformar o privado em público, e
vice-versa, mas também problematizar essas noções. Assim em Mr. Potter, por exemplo, a
história pessoal do filho ilegítimo e órfão por parte de mãe, que por sua vez gerou uma série
de filhas ilegítimas, apresenta um significado que vai além da questão familiar, um
significado que é histórico no sentido de que todos esses filhos ilegítimos são filhos de uma
colonização.
Se é verdade que a literatura “não tem compromisso com a verdade, nem pessoal nem
histórica, ela ‘instaura-se numa decisão de não-verdade: dá-se explicitamente como artifício,
comprometendo-se porém a produzir efeitos de verdade como tal reconhecíveis’ (Foucault,
1992, 126)” (FIGUEIREDO, 2013, p. 154), Mr. Potter, romance com traços autobiográficos,
possibilita a Jamaica Kincaid traçar uma análise sobre como o histórico, o político e o
sociocultural estão entrelaçados numa rede muito mais complexa do que faz pensar os
discursos da História. É contando a história de um pai ausente que descobrimos as crueldades
de seu passado (pessoal e social); é dando voz à trajetória de um ser sem voz que Elaine
encontra sua própria voz. Por fim, é buscando o entendimento sobre o pai que Elaine encontra
sua própria identidade.
Referências
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Nas fronteiras da linguagem ǀ
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O ETHOS QUE QUEREMOS E O ETHOS QUE PODEMOS
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Márcia Regina Curado Pereira Mariano (DLI – UFS)
Introdução
No VI Elfe, ocorrido na Universidade Federal de Alagoas, em 2012, apresentamos o
trabalho intitulado “Brasil: o país do futebol?” (MARIANO, 2014), em que analisamos as
imagens discursivas do Brasil e dos brasileiros construídas e/ou reforçadas nos discursos de
Paulo Coelho e do ex-presidente Lula na cerimônia de escolha do país-sede da Copa 2014, em
2007, na Alemanha, e no discurso da presidente Dilma Rousseff na cerimônia de sorteio das
eliminatórias da Copa, em 2011, no Rio de Janeiro. 2007 era o primeiro ano do segundo
mandato do presidente Luís Inácio da Silva, o Lula, e o Brasil alcançou, nesse mesmo ano,
um aumento de 6,0% no PIB, o mais alto desde 1986, sendo superado apenas por 7,6% em
2010, ainda durante esse governo, mesmo com a crise econômica mundial de 20091. No
ranking das maiores economias mundias, em 2007, o Brasil ocupava a 10ª posição.
Acompanhando um crescimento econômico mundial desacelerado, de 2011 a 2013 a
economia do país ficou em 3,9; 1,8 e 2,7%2 respectivamente, ocupando a 6ª posição no
ranking das maiores economias em 2011, ano em que a presidente Dilma, eleita para seu
primeiro mandato em 2010, discursou na cerimônia de sorteio das eliminatórias da Copa
20143.
Na ocasião, observamos a diferença entre o ethos dito e o ethos mostrado nesses
discursos. Enquanto o primeiro tentava fixar novos ethé do Brasil e dos brasileiros para o
mundo, somando às imagens prévias e estereotipadas (“Brasil, o país do futebol, das pessoas
alegres, sensuais, receptivas e festeiras”) novas características desse povo e desse país
impulsionado por um desenvolvimento econômico promissor e por mudanças sociais, o ethos
1
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/03/1608988-entenda-os-dados-do-pib-brasileiro-e-arevisao-pelo-ibge.shtml – Acesso em 09/04/2015
2
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/03/1608988-entenda-os-dados-do-pib-brasileiro-e-arevisao-pelo-ibge.shtml – Acesso em 09/04/2015
3
http://www.mercadocomum.com/site/artigo/detalhar/o-crescimento-do-pib-brasileiro-tem-sido-umailusatildeo-de-otica-economica – Acesso em 09/04/2015
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
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mostrado, evidenciado pelo modo de dizer, por sua vez, revelou que pouco mudara nos ethé
do Brasil e dos brasileiros. Antes, mostrou um discurso relutante, inseguro, como que de
alguém que se encontra na busca de uma identidade ou, no máximo, na transição entre uma e
outra. As inúmeras repetições evidenciaram um orador que precisava provar ao mundo e a si
mesmo o poder fazer a Copa 2014, e figuras de comunhão, que provocaram o riso, serviram
para reforçar o estereotipado bom humor e a erotização do brasileiro.
Em 2013 e 2014, nos meses que antecederam a Copa 2014 e mesmo durante o evento,
várias manifestações populares contrárias à realização do mundial no Brasil se espalharam
pelo país. A projeção de crescimento para o ano era de 0,24%4, no entanto, no dia 27 de março
de 2015, o IBGE divulgou os dados relativos ao PIB de 2014 e anunciou que o Brasil tivera
apenas 0,1 % de crescimento, pior resultado desde 2009, em que o crescimento foi apenas de
0,2%5, mas no ranking das economias mundias, o Brasil manteve, em 2014, a 7ª posição.
Tendo em vista essa mudança no contexto econômico, social e político brasileiro, de
2007 a 2014, analisamos, neste artigo, alguns dos discursos proferidos por Dilma Rousseff
antes, durante e depois da realização da Copa 2014 no Brasil e retomamos a análise e os
resultados apontados por nós em Mariano (2014), com o objetivo de observar a construção
dos ethé do país e dos brasileiros nesses discursos encontrados em sites da internet, como
youtube e portais de notícia, e transcritos quando necessário. Perguntamo-nos, então: será que
foi possível defender e reforçar a imagem de país próspero e estável propagada em 2007 e
2011 por Paulo Coelho, Lula e pela própria presidente? Será que o ethos de país do futebol e
de um povo alegre e festeiro ainda persistem discursivamente como um meio de persuasão
eficaz? Qual a influência do contexto em geral para a construção do ethos de um país?
Partindo dessas questões, e sob a égide dos estudos retóricos e discursivos, é que pretendemos
desenvolver nosso trabalho e analisar o corpus delimitado.
1. O ethos que queremos: a nação competente
Aristóteles apresenta em sua Retórica três meios de persuasão “supridos pela palavra
falada”, “dependentes da arte”, ou seja, construídos pelo orador com vistas à persuasão de um
auditório: o ethos, o pathos e o logos, relacionados, de um modo geral, respectivamente, ao
caráter pessoal do orador, às paixões e disposições do auditório e ao próprio discurso. O ethos
4
http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,mercado-projeta-crescimento-do-pib-de-0-24-em2014,1587206 – Acesso em 09/04/2015
5
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/03/1608988-entenda-os-dados-do-pib-brasileiro-e-arevisao-pelo-ibge.shtml – Acesso em 09/04/2015
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diz respeito, portanto, à imagem que o orador constrói de si. De acordo com o estagirita, a
persuasão pode se dar “quando o discurso é proferido de tal maneira que nos faz pensar que o
orador é digno de crédito.”, visto que “Confiamos em pessoas de bem de modo mais pleno e
mais prontamente do que em outras pessoas.”. Segundo o filósofo, “Esse tipo de persuasão,
semelhante aos outros, deve ser conseguido pelo que é dito pelo orador, e não pelo que as
pessoas pensam de seu caráter antes que ele inicie o discurso.” (ARISTÓTELES (384-322
a.C.) 2011, p. 45)
Já Maingueneau (2005, p. 71), retomando a noção de ethos, afirma que não podemos
ignorar o fato de que o enunciatário forma imagens discursivas do enunciador, representações,
antes mesmo que ele tome a palavra, tendo em vista que o ethos está “crucialmente ligado ao
ato de enunciação”. Quando o enunciador é uma pessoa pública ou uma autoridade, então, a
não construção dessa imagem prévia é impossível, pela exposição dada pela mídia, por
exemplo. Assim, ao lado da noção de ethos discursivo, ele propõe a noção de ethos prédiscursivo, a imagem prévia do orador que pode ser confirmada ou refutada em cada
enunciação.
Segundo Amossy (2005), essa imagem prévia que o auditório faz do locutor é
importante, mas essa importância não deixa de lado a definição do ethos como de uma
“construção”, já que o discurso é o lugar em que o orador vai relacionar o ethos prévio à
imagem discursiva de si e confirmar, reelaborar, adaptar, atualizar ou transformar a imagem
anterior ao discurso. Deste modo, o ethos, ligado à enunciação, é a soma “das características
que se relacionam à pessoa do orador” e da “situação na qual esses traços se manifestam”
(p.127), não sendo “nem puramente exterior (institucional) nem puramente interna
(linguageira)” (p.136).
Para essa imagem prévia do orador, muitas vezes, o auditório se baseia na doxa, em
conhecimentos e imagens em comum, verdadeiras ou não, o que liga o conceito de ethos
prévio ao de estereótipo (AMOSSY, 2005, p.125-126). Nos discursos analisados por nós em
2014, as imagens estereotipadas do “Brasil, país do futebol” e dos brasileiros amantes desse
esporte, alegres, simpáticos, criativos e acolhedores são exploradas pelos oradores, mas a
estas se acrescenta a imagem de sujeitos competentes, que podem realizar mais uma Copa do
Mundo:
(Paulo Coelho – 30/10/2007) o que a gente vê na seleção brasileira... nós vamos ver
no POvo brasileiro... a capaciDAde... de trabalhá em COMUM... mesma coisa que
os jogadores fazem no campo...e tem o mesmo objetivo... o trabalho ÁRduo do
brasileiro... pra se atingir esse objetivo... a capacidade de soNHAR... e sobretudo a
capacidade de ser criativo... então... levá a copa do mundo... pro Brasil... é levá
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também a despertá de novo essa emoção... essa é uma emoção que nós temos apesar
de já termos ganho CINco vezes... 6
(Lula – 30/10/2007) […] vocês verão no Brasil a capacidade que teremos de
construir bons estádios... mas […] o que mais irá empolgar ... […] não será os
estádios... mas será... o comportamento... EXtraordinário... do povo brasileiro... o
tratamento que esse povo dará... estejam certos... que marcará... a história ... das
copas do mundo... eu estou aqui meio dividido... um pouco presiDENte... um pouco
aMANte do futebol... e o povo brasileiro... é mais ou menos igual eu... ou seja... o
futebol.... não é pra nós apenas um esporte... é mais... o futebol... é uma paixão
nacional...[...]7
(Dilma – 30/07/2011) […] o Brasil... continua... a ser identificado como o país do
futebol... e isso nos envaidece... nós brasileiras e brasileiros... aMAmos o futebol...
ganhamos CINco copas do mundo e aqui... nasceram muitos dos maiores craques de
todos os tempos... a começar... pelo maior deles... o nosso querido Pelé...[...] os que
nos derem o prazer... de sua visita... terão a oportuniDAde de conhecer... um povo
alegre... generoso... solidário... que sabe receber a TO::dos de maneira calorosa... um
povo que A::ma o futebol... mas que também... Ama a liberdade a justiça social e a
paz... […]8
Observa-se, nos fragmentos acima, que os títulos de campeão do Brasil em copas
anteriores são utilizados como argumentos de autoridade, enquanto nossas características
cordiais são usadas para persuadir o auditório pela emoção, palavra que aparece nos discursos,
assim como paixão e amor. Entretanto, ressalta-se a competência do país e do seu povo para
sediar o evento.
Essa tentativa de reelaborar ou completar os ethé do Brasil e dos
brasileiros, tentando provar essa competência, é reforçada nos discursos de Lula e Dilma,
após o país ter sido escolhido como sede da Copa:
(Lula – 30/10/2007) […] nós estamos aqui assuMINdo... enquanto nação... uma
responsabilidade... enquanto esTAdo brasileiro... para provar ao mundo... que nós
temos uma economia crescente estável... que nós somos um dos países... que está
com sua estabilidade conQUIstada... somos um país que temos muitos problemas
sim mas somos um país com homens determinados a resolvermos esses problemas
[...]
(Dilma – 30/07/2011) […] temos hoje... uma economia estável e em crescimento...
nos últimos Oito anos... elevamos para a classe média... quarenta milhões de
brasileiros... somos um país que promove a inclusão social... e que tem... na
diversidade étnica cultural e religiosa... uma de suas maiores riquezas... e que
convive RESpeitosamente com o meio ambiente... por isso... hoje o Brasil... é
admiRA::do por muito mais do que o futebol.... sua música... e suas festas
populares...[...] vocês encontrarão um país MU:ito bem preparado... para realizar... a
Copa do Mundo... com toda a infraestrutura necessária... com um eficiente sistema
de transporte... uma avançada tecnologia de comunicação e com muita segurança...
[…]
6
http://terratv.terra.com.br/templates/channelContents.aspx?channel=2666&contentid=184164 – Acesso
em 01/09/2012
7
http://terratv.terra.com.br/templates/channelContents.aspx?channel=2666&template=5-55&contentid=184180 - Acesso em 01/09/2012
8
http://www.youtube.com/watch?v=ePgHBalBtM8 – Acesso em 28/04/2015
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A sensualidade (ou sexualidade) do povo brasileiro, também componente dos
estereótipos que nos são destinados, vem no discurso de Paulo Coelho para aumentar a
comunhão com o auditório, predominantemente masculino: “[…] a emoção do futebol é
totalmente atípica... eu já vi pessoas ficarem cinco horas... discutindo... sobre um jogo... e
nunca vi ninguém ficá discutindo horas cinco horas sobre uma relação sexual...
consequentemente... pelo menos a emoção do futebol dura mais (risos da plateia)”.
Já no discurso de Lula, a imagem prévia individual de homem simples, de origem
humilde, que pode ser estendida também à imagem geral dos brasileiros, é explorada para
estabelecer paixões e causar o riso, reforçando a simpatia do/pelo povo brasileiro, em um
discurso marcado pela eunoia, em que o orador/o brasileiro parece gritar: amai-me!9:
(Lula – 30/10/2007)[...] mas se o Brasil já foi capaz de realizar uma em 1950...
quando eu tinha apenas 4 anos e 6 meses de idade (risos)... imagina o que o Brasil
não pode fazer... quando eu já terei 69 anos de idade... […] eu que sou amante do
futebol... quando vejo o Beckenbauer aqui e saber que eu... e certamente os
brasileiros que gostam de futebol... têm no Beckenbauer um dos maiores jogadores
que o mundo produziu (aplausos)... só não é maior... porque Deus quis que o Brasil
produzisse o Pelé (risos e aplausos)... então eu quero... quero dizer a vocês... estejam
certos... que o Brasil saberá... ORgulhosamente... fazer a sua lição de casa... e
realizar uma copa do mundo... pra argentino nenhum colocar defeito (risos e
aplausos)...
Ao final, em Mariano (2014), chegamos, dentre outras, às seguintes considerações:
[...] o ethos dito, nesses discursos, constrói-se com o louvor e o elogio ao Brasil e aos
brasileiros, evidenciando um país e um povo competentes: o Brasil é campeão no
futebol, tem uma economia estável, tem belezas naturais, promove a inclusão social,
o respeito às diferenças e ao meio ambiente. Os brasileiros, por sua vez, são
apaixonados por futebol, trabalhadores, sonhadores, criativos, disciplinados,
educados, etc.
Contudo, o que vale é o ethos evidenciado pelo modo de dizer, e este mostra,
pelo conhecimento do esporte e pela própria posição que assume diante de auditórios
tão complexos, um país campeão, experiente em Copas do Mundo, e um país em
desenvolvimento que tenta se firmar discursivamente como um país capaz, estável e
confiável em todos os setores. Já os brasileiros, mostram-se inseguros. Tentam levar
o mundo (e si próprios) a acreditar que serão capazes de fazer uma boa Copa em
2014, como indicam as repetições e paráfrases que afirmam essa capacidade (vamos
provar, fiquem tranquilos, estejam certos...); são apaixonados por futebol (como se
9
Para Aristóteles (2011), “A confiança suscitada pela disposição do orador provém de três causas, as
quais nos induzem a crer em uma coisa independente de qualquer demonstração: a prudência, a virtude e a
benevolência.” (p.122). Vemos em Barthes (1975, p. 203-204), que a prudência, ou phronesis, “é a qualidade
daquele que delibera com acerto, e o conjunto delas constitui a própria autoridade pessoal do orador”; já a
virtude, ou arete, “é a mostra de uma franqueza que não teme consequências e exprime-se com o auxílio de
palavras diretas, marcadas de lealdade teatral”; e, por fim, a benevolência, ou eunoia, já que “importa não
chocar, não provocar, ser simpático, entrar numa cumplicidade complacente para com o auditório. Em suma,
enquanto fala e vai desenvolvendo o protocolo das provas lógicas, o orador deve igualmente repetir sem cessar:
“Segui-me (pronesis), estimai-me (arete) e amai-me (eunoia)”.”
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vê na repetição dessa afirmação, nos adjetivos e na entonação quando se fala de
futebol nos discursos); são erotizados (na comparação entre sexo e futebol);
extrovertidos, engraçados, provocadores, simpáticos, emotivos e passionais (no uso
de exemplos subjetivos e nas Figuras de Argumentação e Retórica, de um modo
geral); informais (nos aspectos linguísticos utilizados); gratos aos “heróis” do
futebol, orgulhosos de suas conquistas e ressentidos de suas derrotas (no uso de
fatos, exemplos, e argumentos de autoridade); esperançosos e ambiciosos (no próprio
compromisso firmado de realizar a Copa). (MARIANO, 2014, p. 180)
2. O ethos que podemos: o país dividido
Conforme já comentamos no início deste artigo, em 2013 e 2014, uma série de
manifestações contrárias à realização da Copa do Mundo no Brasil surgiram em várias
cidades do país, com cartazes que diziam: “Não vai ter Copa”; “Queremos escolas padrão
Fifa” etc. Não era só esse o motivo dos protestos, mas é o que nos importa aqui, na medida
em que ele foi decisivo para o modo como a presidente Dilma Rousseff encaminhou (ou como
foi encaminhada) sua participação nos eventos relacionados à Copa.
A Copa das Confederações é como que um aquecimento para a Copa do Mundo.
Realizada também a cada quatro anos, no país que sediará a Copa seguinte, nela disputam seis
campeões continentais, mais o país-sede e o atual campeão do mundo. Aqui no Brasil, ela se
realizou em 2013, também no mês de junho, em que tradicionalmente acontece a Copa do
Mundo. Já na abertura desse evento, Dilma Rousseff havia sido vaiada pela torcida, no
Estádio Nacional Mané Garrincha, em Brasília, o que levou o presidente da Fifa (também
vaiado) Joseph Blatter a perguntar: “Amigos do futebol brasileiro, onde está o respeito e o fair
play, por favor?”10.
Diante desse contexto e desse histórico, a Fifa optou por não haver discurso de Dilma
Rousseff nem na abertura da Copa 2014 e nem no seu encerramento. A presidente já havia
falado sobre a Copa em ocasiões anteriores, como em uma entrevista a jornalistas em JaciCE11,em 13/05/2014. Com afirmações subjetivas como “Nunca fui a um estádio ver jogo da
Copa, porque para mim nunca foi fundamental. Mas assisti à Copa com meus amigos” e
diminutivos como ”cervejinha” e “pipoquinha”, a presidente usou uma fala mais informal,
arriscada para sua posição de mulher-presidente, para aliviar a tensão do momento político e
econômico. Esse, no entanto, não foi esquecido, e nessa mesma entrevista Dilma Rousseff
mostrou descontentamento em relação às manifestações e preocupação com uma possível
10
http://esportes.terra.com.br/futebol/copa-das-confederacoes/dilma-e-blatter-sao-vaiados-e-presidenteda-fifa-pede-fair-play-a-fas,12dd29f4e294f310VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html – Acesso em 27/04/2015
11
http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2014/05/13/quem-quiser-manifestar-nao-podeatrapalhar-a-copa-diz-dilma.htm – Acesso em 27/04/2015
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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interferência delas na realização da Copa.
Numa perspectiva semiótica, o enunciador, Dilma Rousseff, ocupando uma função de
sujeito-destinador, continua modalizado pelo poder fazer (a Copa), como no seu discurso de
2011, mas seu querer fazer é prejudicado por parte da população brasileira, que se
transformou no anti-sujeito que pede a não realização da Copa. O poder fazer também se
refere a controlar as manifestações, com a ajuda de sujeitos coadjuvantes (polícias Federal e
Estaduais), o que pode ser caraterizado como uma manipulação por intimidação. A
manipulação ainda se apresenta de outras formas: por provocação: por meio do uso da regra
da justiça e do argumento da reciprocidade (“Nós sempre fomos bem recebidos em outras
Copas, bem tratados. Vamos agora tratar bem. Antes de qualquer coisa, é preciso atitude e
postura.”); por tentação: através do argumento da justiça (“Não é uma festa para alguns
poucos, é uma festa para todos os brasileiros."); do uso da definição ("Democracia não
significa vandalismo, nem prejuízo para uma parte da população”) e de figuras de comunhão
(“Assistir em conjunto é algo que todos nós fizemos na vida.[...] Pode até ter um na família
que não goste, mas outros ligam, tomam seu chopinho, fazem pipoquinha.”). Com atores,
sujeitos, modalizações e paixões diferentes, temos, em 2014, uma história diferente daquelas
de 2007 e 2011.
Em Mariano (2014), lembramos que Perelman e Tyteca, retomando os gêneros da
retórica antiga, ressaltam a importância da autoridade ou do ”prestígio” do orador no gênero
epidítico, aquele das celebrações e do louvor (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005,
p.58), ao qual aproximamos os discursos analisados na ocasião (de Paulo Coelho e Lula
(2007) e o de Dilma (2011)). Observando melhor tais discursos (ou de um outro ponto de
vista) e estes que trazemos agora, porém, vemos que suas funções estão mais relacionadas a
questões políticas do que à simples enaltação do Brasil e dos brasileiros, na medida em que as
ações futuras dos sujeitos Brasil e brasileiros (realizar a Copa 2014) envolvem a economia do
país e uma série de responsabilidades públicas (construção de estádios e hotéis; recepção dos
turistas; garantia de segurança e mobilidade; organização do evento etc.). Assim, os discursos
são mais políticos do que cerimoniais, e a função política legítima de dois dos nossos oradores
dos discursos analisados corrobora com essa afirmação.
Segundo Fiorin (2013, p. 24-25), “O discurso político propõe ao enunciatário a
atribuição de um poder fazer e um poder ser ao enunciador.”, ou seja, “o enunciador é um
destinatário da principal modalidade em jogo.”. Esse enunciador-destinatário coloca-se, pois,
como um “simples executante” a serviço de um destinador social, que pode ser uma nação ou
um partido, por exemplo, de acordo com o pesquisador. Nessa relação entre sujeitos, a
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verdade do discurso depende tanto de sua adequação à realidade quanto da confiança que o
enunciatário tem nesse enunciador, fruto de uma imagem prévia que o primeiro tem do
segundo.
Barros (2013) aponta como a principal característica do discurso político ser um
“discurso do poder”, na medida em que o enunciador (o sujeito político) é modalizado pelo
poder e que seu discurso busca esse poder ou busca preservá-lo, reforçá-lo ou fazê-lo
reconhecido. (BARROS, 2013, p.72-73). Embora a presidente não tenha discursado na
abertura e no encerramento, o que mostra que a democracia mexe com as questões de poder,
os discursos de Dilma Rousseff em 2014, referentes à Copa e aqui analisados, são claramente
políticos, enunciados por um sujeito político, que se apresenta tanto como um “sujeito do
poder” quanto como um “sujeito do saber”, este último necessário para parecer confiável.
Esse poder e esse saber são expressos por Dilma Rousseff em várias ocasiões
diferentes: em pronunciamento em cadeia de rádio e televisão, em 10/06/2014, dois dias antes
do início da Copa no Brasil; em um evento em Brasília, no dia 13/06, e no dia 14/07, em
pronunciamento de despedida da Copa no Brasil, com a presença de Joseph Blatter e Valdimir
Putin, presidente da Rússia, onde será realizada a próxima Copa, em 2018. Nessas três
ocasiões, a presidente destacou os pontos positivos na organização do evento e nas melhorias
no país para receber a Copa, elogiou os brasileiros, sua capacidade de superação, sua
determinação. Voltou ao estereótipo do “Brasil, país do futebol”, e, no uso da hipérbole,
caracterizou essa edição do mundial como a “Copa das Copas”, “a maior Copa da história”
etc, tudo para conseguir convencer, principalmente, aqueles contrários a sua realização que
sim, ela era possível.
A repetição de características positivas dos brasileiros (generosos, carinhosos...)
funciona como figura de presença e busca manipular os próprios por sedução. A regra de
justiça e o argumento de reciprocidade aparecem novamente, como no discurso feito em JaciCE, afinal, quem quer ser injusto ou ingrato? O Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, assume a
representação de um poder divino conclamado como argumento de autoridade, mas com a
função de estabelecer a comunhão com um auditório amplo, composto por pessoas pacíficas e
não pacíficas, mas imaginado particular, cristão, em sua maioria. Os argumentos de
quantidade aparecem para reforçar esse saber fazer e esse poder fazer:
(Dilma – 10/06/2014) “ A partir desta quinta-feira, os olhos e os corações do mundo
estarão voltados para o Brasil, acompanhando a maior Copa da história. Pelo menos
três bilhões de pessoas vão se deixar fascinar pela arte das 32 melhores seleções de
futebol do planeta. […] A Seleção Brasileira é a única que disputou todas as Copas
do Mundo realizadas até hoje. Em todos os países, sempre fomos muito bem
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recebidos. Vamos retribuir, agora, a generosidade com que sempre fomos tratados,
recebendo calorosamente quem nos visita. Tenho certeza de que, nas 12 cidadessede, os visitantes irão conviver com um povo alegre, generoso e hospitaleiro e se
impressionar com um país cheio de belezas naturais e que luta, dia a dia, para se
tornar menos desigual. Amigos de todo o mundo, cheguem em paz! O Brasil, como
o Cristo Redentor, está de braços abertos para acolher todos vocês.”12
(Dilma – 13/06/2014) “[...] nós ontem...demonstramos...que nós conseguimos
superar TO::dos os obstáculos...para realizar a copa...e que eu tenho certeza... nós
vamos fazer a melhor copa de todos os tempos...[...]”13
(Dilma – 14/07/2014) “o Brasil se orgulha muito por ter feito...mais uma
vez...palco/por ter sido mais uma vez palco da maior celebração de esportes do
mundo...e:: especialmente por ter sido palco do futebol esse esporte que nos encanta
e nos emociona...muita emoção foi vivida nos estádios e em todas as 12 cidadessede...fazendo deste campeonato um momento especial na vida de milhões e milhões
de pessoas e fazendo desta a copa das copas...e também estou certa de que todos que
vieram para o Brasil as seleções...os turistas...as delegações...levarão de volta a
experiência de ter conhecido...um belo país...um povo carinhoso e receptivo...[...]”14
A euforia do país economicamente estável, de 2007 e 2011, deu lugar a uma prestação
de contas aos brasileiros e à busca de comprovação, por meio de argumentos de quantidade,
de que muitos haviam feito previsões equivocadas sobre a incapacidade do país de sediar a
Copa, sobre os gastos a ela destinados etc. Os pronunciamentos tomaram ares de ironia e
revanchismo e expuseram um país dividido ideologicamente:
(Dilma – 10/06/2014) “[...] Os pessimistas diziam que não teríamos Copa porque
não teríamos estádios. Os estádios estão aí, prontos. Diziam que não teríamos Copa
porque não teríamos os aeroportos. Praticamente, dobramos a capacidade dos nossos
aeroportos [...] Chegaram a dizer que iria haver racionamento de energia.[...]
Chegaram também ao ridículo de prever uma epidemia de dengue na Copa em pleno
inverno no Brasil! […] Tem gente que alega que os recursos da Copa deveriam ter
sido aplicados na saúde e na educação. Escuto e respeito essas opiniões, mas não
concordo com elas. [...]os investimentos nos estádios, construídos em parte com
financiamento dos bancos públicos federais e, em parte, com recursos dos governos
estaduais e das empresas privadas, somaram R$ 8 bilhões. Desde 2010, quando
começaram as obras dos estádios, até 2013, o governo federal, os estados e os
municípios investiram cerca de 1 trilhão e 700 bilhões em educação e saúde. […] O
Brasil que recebe esta Copa é muito diferente daquele país que, em 1950, recebeu
sua primeira Copa. Hoje, somos a 7ª economia do planeta [...]. Nos últimos anos,
nosso país promoveu um dos mais exitosos processos de distribuição de renda, de
aumento do nível de emprego e de inclusão social. Reduzimos a desigualdade em
níveis impressionantes, levando, em uma década, 42 milhões de pessoas à classe
média e retirando 36 milhões de brasileiros da miséria.[...]”
(Dilma – 13/06/2014) “AH:::...eu não sei se você lembra disso agnelo (então
governador do DF)...teve uma revista que disse que seu estádio só ficaria pronto em
12
Transcrição disponível em http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-o-planalto/discursos/discursos-dapresidenta/pronunciamento-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-em-cadeia-de-radio-e-televisao-sobre-acopa-do-mundo-2014 – Acesso em 27/04/2015
13
http://tvuol.uol.com.br/video/dilma-responde-a-xingamentos-na-abertura-da-copa-veja-pronunciamento04020D1C306CDC815326 – Acesso em 27/04/2015
14
http://www.esporte.gov.br/index.php/institucional/futebol-e-direitos-do-torcedor/copa2014/noticias2/48167-presidenta-deseja-sucesso-a-copa-da-russia-2018-e-faz-convite-para-os-jogos-olimpicosrio-2017 – Acesso em 27/04/2015
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1781
2021...teve gente que azarou de tudo quanto é jeito...a nossa... a nossa...copa do
mundo[...]”
Pela primeira vez nos discursos analisados, o uso da primeira pessoal do singular não
teve a intenção de fazer rir, mas Dilma Rousseff a utilizou com o objetivo de se defender e de
reafirmar sua posição de poder e sua história, que lhe rende o status de autoridade. Em evento
em Brasília, no dia 13/06/2014, a presidente falou sobre os xingamentos que recebera durante
a abertura da Copa, na Arena Corinthians, em São Paulo, escancarando o país cindido
politicamente e ideologicamente:
(Dilma – 13/06/2014) “quero dizer pra vocês que eu não vou me deixar perturbar
por agressões verbais...(aplausos) não vô...não vô me deixar...perturbar (continuação
dos aplausos; ela agradece)...não vou me deixar portanto atemorizar...não vou me
deixar atemorizar...por xingamentos...que não POdem ser seQUER escutados pelas
crianças e pelas famílias...ALIÁS...na minha vida pessoal...eu quero lembrar que eu
enfrentei situações do MAis ALto grau de dificuldade...situações que::: que
chegaram ao limite FÍsico... eu suportei não foi agressões verbais...foi agressões
FÍsicas... suportei... suportei agressões físicas que eu quero dizer pra vocês quase
insuportáveis...e a/e nada me tirou do meu rumo...nada me tirou dos compromissos
nem do caminho que eu tracei pra mim mesma...quero dizer e reiterar pra vocês e
pra todos que estão nos assistindo...não serão os xingamentos que vão me intimidar
e me aterrorizar...EU NÃO ME ABATEREI POR ISSO...NÃO ME ABATO E
NEM ME ABATEREI [...]”
Segundo Montanari (2013, p. 94), “o conflito nasce e se inicia no momento em que há
a percepção de um impedimento no fazer, ou de uma vontade de fazer. “Eu” (ou “nós”) - em
geral ator em uma cena social – faço, procuro, ou quero fazer alguma coisa, e penso que o
outro sujeito esteja me impedindo ou me obstaculando.” Nesse sentido, a realização da Copa
do Mundo no Brasil se mostra como um dos principais pontos de conflito entre brasileiros em
2013 e 2014, no mínimo, visto que ainda hoje, em 2015, essa questão retorna em muitos
discursos.
Considerações finais
Pudemos observar, a partir das análises dos discursos de Dilma Rousseff, proferidos
em 2014, e da retomada dos de Paulo Coelho, Lula e Dilma Rousseff, de 2007 e 2011, que a
imagem prévia de país do futebol e de povo alegre e receptivo é aproveitada na construção do
ethos discursivo, e que funciona como uma estratégia eficaz de comunhão com o auditório, na
medida em que desperta ainda a simpatia do/no pathos. Essa imagem prévia, no entanto, é
acrescida de outras imagens no ethos dito. De modo geral, nos discursos analisados, procura-
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1782
se firmar o ethos da competência, da estabilidade econômica, da responsabilidade necessárias
para o poder fazer a Copa. O ethos mostrado, por sua vez, evidencia, num primeiro momento,
um povo e um país inseguros sobre sua própria capacidade para esse fazer e, num segundo
momento, como reflexo de um contexto social mais amplo (político, econômico, de gênero...),
um povo e um país divididos entre aqueles que acreditam nessa capacidade e aqueles que não
acreditam, escancarando um país em conflito de identidade (gerado por conflitos ideológicos).
Segundo Montanari (2013, p.96) “O conflito desencadeia-se motivado por frustração 'por
reconhecimento', ligada a um papel e identidade.” Assim, estamos, nesses discursos, diante de
oradores, um país e um povo em busca de seus ethé.
Referências
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campos. In: AMOSSY, R. (org.) Imagens de si no discurso – a construção do ethos. São
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Tomasi. In: FULANETI, Oriana N. e BUENO, Alexandre M. (orgs.). Linguagem e política –
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retórica. Trad. de Maria E. de A.P. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005. [original de
1958].
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1783
CULTURA: VARIEDADES DA LÍNGUA NA
CONCORDÂNCIA VERBAL E INTERVENÇÃO
PEDAGÓGICA
[Voltar para Sumário]
Márcione Teles de Melo Barros (ULHT)
Introdução
As variantes da concordância verbal, encontrada na fala e na escrita do português
brasileiro, embora ocorra em diferentes níveis sociais, é discriminadora nas salas de aula. A
escola pauta o seu ensino na variedade culta da língua, tanto escrita como falada, e norteia-se
pela gramática normativa que busca prescrever regras gramaticais de uma língua como única
forma correta, assim o verbo deve concordar em número e pessoa com o seu sujeito.
Muito já foi falado sobre concordância verbal, sobretudo na modalidade falada da
língua, e neste trabalho o enfoque maior será na modalidade escrita, sob a luz da Teoria da
Variação Laboviana. O objetivo deste trabalho é perceber a presença de variantes linguísticas
em textos de alunos sendo justificadas ou não pela presença das variantes extralinguísticas.
Segundo Souza (2009) é no interior da sala de aula que se concretizam a diversidade
cultural na linguística, na fala e na escrita dos alunos. Diante dessa afirmação de estudo as
categorias eleitas para dar suporte à pesquisa são: cultura, língua e ensino de português, as
quais darão base à pesquisa empírica.
Cultura/Estudos culturais e sociedade
De acordo com Williams (2011), que tem uma contribuição teórica importante nos
estudos culturais, a cultura é uma categoria chave que conecta a análise literária com a
investigação social, sendo uma rede que se constitui de práticas da vida cotidiana, e o
indivíduo juntamente com a sociedade são os protagonistas da ação, um precisa do outro para
acontecer. Assim
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1784
A cultura, então, é tanto estudo quanto busca. Não é apenas o desenvolvimento da
‘cultura literária’, mas de todos os lados de nossa humanidade. Tampouco é uma
atividade relacionada apenas com indivíduos, ou alguma parte ou seção da
sociedade; ela é, e deve ser essencialmente geral (WILLIAMS, 2011, p. 139).
Williams (2011) entende que a cultura não pode ficar limitada a alguns povos ou
regiões, mas deve atingir a todos, acreditando que ela modifica o espaço, de modo que não se
pode atribuir valores melhores ou piores à cultura, menosprezando uma e supervalorizando a
outra, o caminho é reconhecê-las como diferentes, porém, importantes em adequações de uso
dela para fins particulares ou não, como é o caso das instituições de ensino e, sobretudo para
entender a sociedade.
Nesse contexto, Cevasco (2003, p. 111) acrescenta que “a cultura, mais do que um
mero efeito da superestrutura, é um elemento fundamental na organização da sociedade e,
portanto, um campo importante na luta para modificar essa organização”.
Além disso, para a autora, outra forma de ver a cultura é salientar que ela guarda
tradições antigas importantes de cada época, para valorizá-las em contextos diferentes no
futuro, pensando na cultura como um meio de realmente guardar essas tradições para gerações
posteriores. É por isso que as regras normalmente não são modificadas, afirma a autora, uma
coisa que fica bem evidente no estudo de cultura, é que o sentido das palavras acompanha as
transformações sociais ao longo da história.
Segundo Silva (2009, p. 8), os estudos culturais podem ser identificados por
domínios de interesse particular, e que nenhuma lista pode identificar os tópicos dos quais
eles podem tratar,
entender os estudos culturais é empregar as estratégias tradicionais pelas quais as
disciplinas assinalam seus territórios e pelas quais os paradigmas teóricos marcam
sua diferença: reivindicando um domínio particular de objetos, desenvolvendo um
conjunto singular de práticas metodológicas, seguindo uma tradição fundadora e
utilizando um léxico particular.
Os estudos culturais se aproveitam de quaisquer campos que forem necessários para
produzir o conhecimento exigido por um projeto particular, eles têm sido vistos como uma
espécie de processo, uma alquimia para produzir conhecimento útil sobre o amplo domínio da
cultura humana.
O mundo globalizado e diversificado permite um novo olhar às mudanças, o homem
muda o espaço que vive constantemente,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1785
Trata-se de uma sociedade que vive após o fim da natureza um mundo em que a
modernização não fica confinada a uma área geográfica, mas se faz sentir
globalmente tem várias consequências para a tradição. A tradição e a ciência por
vezes se mesclam de maneiras estranhas e interessantes (GIDDENS, 2000, p. 53).
As comunidades estão pegando a herança e ré embalando como espetáculo, é o caso
dos prédios restaurados, que são esplendidos, em que a tradição vivida pelos povos naquele
ambiente em alguma época jamais poderá ser vista novamente, isto afirma Giddens (2000, p.
55) dizendo que “a tradição deveria ser defendida de uma maneira não tradicional – e esta
deveria ser seu futuro”. Não se podem negar rituais, que são defendidos pelas instituições,
para que estas sejam sempre justificadas e continuar apoiadas, como é o caso da fé, que é
amparada por alguns e não por todos.
Nesse sentido Bakhtin (2009, p. 39) afirma que “a valorização social que,
implicitamente, expressa a posição de um de “nós”, que remete à família, ou à tribo, ou à
nação, ou à classe social, ao dia, ano ou a uma época inteira em que a valorização social
determinada se inscreve”.
Essas valorizações de família, dia, época, ficam implícitas no dia a dia, porém são
verificáveis como naturais, e passam a fazer parte da cultura de um povo. Ainda segundo o
autor as formas artísticas têm um caráter hierárquico, tanto na forma quanto no conteúdo,
indissoluvelmente ligados, a expressão da valorização social se manifesta.
Língua, sociedade e preconceito
Pensar sobre a língua nesse contexto cultural, é uma questão que perpassa por
variedades consideradas populares e sem prestígio social, e por uma variedade apreciada pela
sociedade que é considerada padrão e com prestígio. Os estudos da linguagem começaram no
século III A.C. no Egito, e os estudiosos da literatura clássica estavam preocupados em
preservar na maior pureza a língua grega, dessa forma resolveram descrever as regras
gramaticais da época, e assim elas serviriam de modelo para todos (BAGNO, 2004).
Uma das funções sociais da linguagem é marcar e apresentar a identidade do indivíduo
e de seu status, afirma Bagno (2011, p. 145-146) “a língua pode servir de meio para sublinhar
uma distinção social e, inversamente, uma solidariedade de uns em relação aos outros”. Para o
autor, a língua possui analogia com outros meios simbólicos. A roupa serve para vestir, e a
língua serve para comunicar-se, e as duas servem para a percepção dos outros. Isso quer dizer
que, “num dado estágio do desenvolvimento de uma língua, algumas partes admitem mais
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1786
variações que outras”. Dessa forma, ele afirma que falar com distintas variantes no discurso, é
uma escolha dentro da natureza do contexto que o falante se encontra.
É nessa perspectiva de língua padrão e de prestígio como sendo indispensável na
educação, que a pedagogia tem o seu papel primordial que é o de intervir para o crescimento
de todos e não de alguns, já que ela detém o saber e o poder de quem a domina. É preciso
desmistificar a ideia de culturas de certo e errado na língua para que as classes desfavorecidas
também possam participar, e para tanto, é preciso que a língua seja falada com as expressões
culturais do indivíduo e escrita baseada em uma forma comum aceita pela comunidade, para
depois estruturá-la baseada nas regras de gramáticas, já que os alunos serão cobrados pela
sociedade por uma língua comum baseada em regras pré-estabelecidas.
Se a escola, enquanto instituição de ensino–aprendizagem e valorização da língua, não
entender que todos os alunos têm o direito de se comunicarem e tem o direito de saber a base
comum sem preconceitos e estereótipos, ela não estará fazendo nada, simplesmente estará
contemplando alguns com o direito de dominar a língua e consequentemente o poder. E os
outros ficarão à margem, assim afirma Souza (2009).
A relação entre a linguagem e o meio social em que ela está inserida é importante para
entender os processos de comunicação e seus diferentes mecanismos. Mesmo sendo a fala um
ato individual, ela é dotada de todos os fenômenos sociais que a cercam, pois se assim não o
for, correrá o risco de ficar a mercê de seus próprios dilemas interiores inexplicáveis como
afirma Bakhtin (2009, p. 64):
A teoria freudiana abdica de aspectos sociológicos e dialéticos e o seu método
permanece de caráter subjetivo, pois explica os conflitos do comportamento humano
do interior em vez de validar a experiência objetiva externa. Ao transferir para o
inconsciente os elementos da consciência, conservando dela a diversidade de objetos
e a precisão lógica, “a psicanálise permanece integralmente fiel à ótica da
experiência subjetiva interna” e não pode enfrentar os problemas complexos e
extremamente graves da produção do sentido que são indissociáveis da realidade
exterior. Ao isolar a situação sociocultural como um elemento exterior, o
subjetivismo freudiano mantém o paciente prisioneiro das fontes interiores do
sentido e anula a compreensão do seu pensamento como uma operação ideológica
concreta.
Para Bakhtin (2009) não se pode negar os fatores externos à fala como meio
importante para justificá-la. A teoria freudiana deseja explicar o ser humano de dentro para
fora, onde na realidade deveria estudar os fenômenos exteriores que influenciam o
comportamento de todos, e geram conflitos muito maiores e determinantes para a vida social.
Labov (2008, p. 140) ressalta que a língua é de grande interesse social, e que a
variação em si, não exerce influencia no desenvolvimento das comunidades, nem afeta nas
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1787
perspectivas do povo, “pelo contrário, a forma do comportamento linguístico muda
rapidamente à medida que muda a posição do falante. Essa maleabilidade da língua sustenta
sua grande utilidade como indicador de mudança social”.
As pessoas se comportam linguisticamente segundo o autor, de acordo com suas
posições sociais, e não o inverso. Labov (2008, p. 150) complementa afirmando que com “[...]
o conceito de língua como uma forma de comportamento social, fica evidente que qualquer
avanço teórico na análise do mecanismo da evolução linguística contribuirá diretamente para
a teoria geral da evolução social”. Para o autor fica claro que o uso da língua em sociedade
pode ser ampliado para um estudo complexo das sociedades, onde a linguística pode ser
reinterpretada observando sempre a função e a mudança social. Pois seus comportamentos
influenciam diretamente em suas falas e suas escritas, não se defende o que não se conhece.
O falante precisa entender que a norma padrão é apenas uma variante da língua e,
segundo Bagno (2011), entender que essa norma deve ser ensinada e aprendida para que haja
uma uniformização na escrita formal e para que haja comunicação em eventos formais de fala.
De acordo com Bagno (2011, p. 47), não existe nenhuma variante nacional, regional
ou local que seja intrinsicamente melhor, mais pura, mais bonita, mais correta que outra, pois,
Toda variedade linguística atende às necessidades da comunidade de seres humanos
que a empregam. Quando deixar de atender, ela inevitavelmente sofrerá
transformações para se adequar às novas necessidades. Toda variedade linguística é
também o resultado de um processo histórico, com suas vicissitudes e peripécias
particulares.
É preciso, de acordo com o autor, abandonar essa ânsia de tentar atribuir a um único
local ou a uma única comunidade de falantes o “melhor” ou o “pior” português e passar a
respeitar igualmente todas as variedades da língua, que constituem um tesouro precioso da
cultura. Assim, entender que língua e sociedade estão ligadas entre si de maneira
inquestionável.
Ensino de língua portuguesa
Para Antunes (2007, p. 82) ensinar português é ir além da nomenclatura gramatical,
ela deve ser um ponto de passagem, e não um fim. Para o ensino fundamental, é importante
que a exploração da terminologia gramatical seja pouca, e que sejam explorados a
contemplação e atuação na linguagem. A terminologia deve assegurar ao aluno o uso da
norma de prestígio da língua, dando adequação aos termos. Fora disso, não tem sentido a
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1788
fixação de nomenclatura, pois “ela esconde pretensões sutis de sonegar aos alunos a
oportunidade da reflexão crítica e lúcida sobre o real funcionamento da linguagem e sobre o
que isso significa na vida das pessoas”.
Assim, Bernstein (1971) propõe uma pedagogia diferenciada proporcionando uma
reflexão sobre a prática discursiva onde todos são diferentes, que aprendem de maneiras
diversas, e assim precisam ser tratados diferentes. A diferença é algo natural, inerente ao ser
humano, por isso nada justifica todos serem tratados da mesma forma. Para o autor é preciso
reconhecer a diversidade e que o sujeito criança ou não se desenvolve dentro de uma cultura
familiar com costumes e valores, totalmente diferenciados. Dessa forma é de suma urgência
que se faça uma prática pedagógica tendo como base os determinantes da diversidade,
adentrando na realidade educacional, social, política, ética e constituinte de cada indivíduo.
Para Bagno (2007, p. 52), o pior no ensino de português é querer que o aluno escreva e
fale da mesma forma, como se fosse uma única configuração. Muitos gramáticos e professores
durante muito tempo corrigindo os alunos, como se isso pudesse anular o fenômeno da variação,
tão natural e tão antigo na história das línguas. Assim o autor afirma que “é preciso ensinar e
escrever de acordo com a ortografia oficial, mas não se pode fazer isso tentando criar uma língua
artificial e reprovando como erradas as pronuncias que são resultado natural das forças internas
que governam o idioma”.
É preciso escrever uma gramática da norma culta brasileira em termos simples,
claros e precisos, com um objetivo declaradamente didático-pedagógico, que sirva
de ferramenta útil e prática para professores, alunos e falantes em geral. Sem essa
gramática eu nos descreva e explique a língua efetivamente falada pelas classes
cultas, continuaremos à mercê das gramáticas normativas tradicionais, que chamam
erradamente de norma culta uma modalidade de língua que não é culta, mas sim
cultuada: não a norma culta como ela é, mas a norma culta como deveria ser,
segundo as concepções antiquadas dos perpetuadores do círculo vicioso do
preconceito linguístico (BAGNO, 2007, p. 114).
Enquanto essa gramática não chega, é preciso combater o preconceito nas aulas de
português, com mudanças de atitude, onde cada professor “recuse com veemência os velhos
argumentos que visem menosprezar o saber linguístico individual de cada um de nós”, e essa
mudança de postura deve não repetir alguma coisa, mas refletir sobre ela (BAGNO, 2007, p.
115).
A sociolinguística variacionista
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1789
De acordo com Mollica e Braga (2012, p. 10), a sociolinguística estuda a língua em
uso no seio das comunidades de fala, voltando à atenção para os aspectos sociais e
linguísticos. Assim:
O papel da mudança linguística é fundamental para os estudos sociolinguísticos. Os
problemas teóricos envolvidos referem-se aos processos de encaixamento, avaliação
e implementação. Antes de tudo, o linguista deve compreender como se caracteriza
uma determinada variação de acordo com as propriedades da língua, verificar seu
status social positivo ou negativo, entender o grau de comprometimento do
fenômeno variável no sistema e determinar se as variantes em competição acham-se
em processo de mudança, seja no sentido de avanço, seja no de recuo da inovação.
Ainda para Mollica e Braga (2012), a língua encontra-se em mudança de acordo com o
número de variantes envolvidas no processo da linguagem, principalmente no aspecto social
que a envolve. A sociolinguística também fica responsável de investigar o grau de
estabilidade da variação, entendendo que elas são contextualizadas.
A sociolinguística contribui dando possibilidade a língua de ser um marco social nas
comunidades, influenciando diretamente o ensino, conscientizando a escola em favor de um
trabalho que leve o aluno a conhecer e usar a norma culta da língua portuguesa de forma a
acrescentá-la ao português que já possuía.
De acordo com Labov (2008), as bases teóricas que amparam o pensamento
sociolinguístico sobre a variação e a mudança linguística, configuram um rompimento da
identificação de estruturalidade com homogeneidade linguística. No que se refere ao princípio
da homogeneidade, a perspectiva sociolinguística opõe-se ao que propõe o modelo gerativista
e estruturalista, que se fundamenta no emprego das regras categóricas que podem ser
analisadas fora de seu contexto social. A partir do pensamento sociolinguístico, a língua deixa
de ser vista como sistema autônomo e sem história, e as regras passam a ser vistas como
passíveis de variação.
Metodologia
Com base nos pressupostos da Teoria da Variação ou Sociolinguística Quantitativa,
analisou-se, no presente estudo, o fenômeno das variantes linguísticas presentes na
concordância verbal na modalidade escrita da língua, em redações escolares, estabelecendo-se
as variantes linguísticas e extralinguísticas que determinam a opção dos usuários da língua por
uma ou por outra variante.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1790
A pesquisa foi realizada em uma única escola no interior do estado de Pernambuco no
Brasil. A maioria da população é da zona rural e preserva suas características próprias de
subsistência, dentre elas, a agricultura. Foi utilizado o método aleatório simples para que a
amostra tivesse 30% do total e correspondesse a 253 alunos. Destes foram selecionados 10 (2
alunos do 3° ano, 4 alunos do 2° ano e 4 do 1° ano do ensino médio entre semi-integral e
regular) que tiveram maior significância na problemática estudada, onde o critério foi
observar os que apresentassem em seus textos um número considerável de variantes. Os dados
do atual estudo foram coletados em três etapas: questionário, proposta de redação e entrevista.
As variantes analisadas na pesquisa foram: a) Posição do sujeito em relação ao verbo
(anteposto e posposto); b) Distância entre o núcleo do sujeito e o verbo (zero, uma e duas); c)
Paralelismo nível – clausal (último elemento, ausência de plural); d) Animacidade; e)
Saliência fônico – gráfica (vogal acentuada); f) Modo tempo verbal (presente, pretérito e
futuro).
Análise e discussão dos dados
Chega-se em um denominador comum sobre as respostas dadas pelos entrevistados,
onde 03 deles acreditam que as aulas de língua portuguesa só se efetivam quando voltadas
para a sistematização do conteúdo pautado em regras da Gramática Normativa, onde o ensino
e a aprendizagem se dão através de contextos baseados em certo e errados cobrados pela
sociedade e pelos exames, enquanto 02 dos entrevistados defendem aulas menos
gramatiqueiras e mais linguistas voltadas para textos e interpretações em diferentes contextos,
contanto que o aluno saiba no fim empregar adequadamente as regras e as palavras em seus
contextos diversos, adequados a situações de uso em uma base sólida, que é a gramática
normativa. Assim, mesmo aqueles professores que defendiam os diversos gêneros acabaram
se rendendo ao sistema formal, onde não importa o meio mais o fim, que é a gramática
normativa e suas regras (quadro 1).
Quadro 1 - Síntese geral das categorias eleitas / entrevista com os 5 professores
Categorias
Língua, escrita e sociolinguística a serviço
da educação.
Diferentes
situações
para
diferentes
Número de
professores
Subcategorias
03
Gramática Normativa / Norma culta
05
Diferentes níveis de linguagem / Norma
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gramáticas.
1791
culta como padrão
Influências extralinguísticas na língua e
poder.
Regras de concordância e estratégias
pedagógicas.
03
Unidade linguística padrão: Norma culta
03
Ensino sistemático / Norma culta
Ficou evidente nessa análise bivariada que não são os fatores extralinguísticos que
influem na presença de variantes linguísticas escritas pelos alunos. Ficou definido na fala dos
professores entrevistados que a base de suas aulas estão na gramática normativa, mesmo
quando os alunos trazem expressões e culturas próprias de sua região. O professor acaba
levando o aluno a aprender e a memorizar as regras de concordância para utilizar nas
situações que for necessário. Principalmente por serem (alunos) cobrados pela sociedade a
terem uma linguagem mais formal sem variantes presentes, principalmente em suas
escritas.Para os professores os alunos escrevem com variantes por não estarem internalizando
a gramática normativa e não por terem influências externas a eles (quadro 2).
Quadro 2 - Presença extralinguística nas variantes linguísticas das 253 redações
Variantes estudadas
1- Posição do sujeito em relação ao verbo
Sujeito anteposto ao verbo
Sujeito posposto ao verbo
2- Distância entre o núcleo do sujeito e o
verbo
Zero sílaba
Uma sílaba
Duas sílabas
3- Paralelismo Nível clausal
Marca de plural no último elemento
Ausência de marca de plural o último
elemento
4- Animacidade
(+ animado ) ( + humano)
(- animado) (+ concreto)
(- animado) ( - concreto)
5- Saliência Fônico gráfica
Nasalização da vogal acentuada
6- Modo tempo verbal
Presente do indicativo
Pretérito perfeito do indicativo
Futuro do presente
Número
de casos
Presença extralinguística
86
197
00
00
38
85
130
00
00
Série do aluno
58
195
00
Série e trabalho
125
24
104
00
00
Local onde estudou e escolaridade da mãe
127
123
33
97
Sexo, idade, série, regime escolar, trabalha,
renda familiar, escreve texto uma vez por
semana,escolaridade do pai
Sexo,regime escolar,onde estudou
00
00
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1792
Se nos reportarmos aos 253 alunos pesquisados podemos afirmar que de acordo com
os dados quantitativos encontrados e analisados, os alunos escrevem com variantes não por
causa das influências extralinguísticas, mas pelo caminhar dos resultados esses alunos estão
confirmando as respostas dadas pelos professores, quando afirmam que só baseados em regras
da gramática normativa conseguirão diminuir as variantes. E que as influências nada
conseguirão afetar a fala e a escrita quando as regras forem fixadas, apenas os alunos
conseguirão adaptar-se ao uso de diferentes variantes e isso se dará de forma consciente.
Considerações finais
Os objetivos que nortearam este estudo foram: a) Explicar a relação entre a língua e o
contexto cultural em que ela está inserida; b) Perceber a presença de diferentes variantes
linguísticas na concordância verbal; c) Determinar quais contextos extralinguísticos exerce
influência na escrita dos textos dissertativos dos alunos; d) Entender pela linguagem dos
professores de que forma acontece o ensino de língua portuguesa. Diante destes objetivos
surgiu o seguinte questionamento: “Quais variantes sociais extralinguísticas determinam o
aparecimento de variantes linguísticas nos textos dos alunos”?
Com base nos resultados obtidos nas respostas dadas pelos alunos no questionário
sócio cultural não existe relevância das variantes extralinguísticas serem responsáveis pelo
grande número de variantes linguísticas encontradas na concordância verbal dos textos
argumentativos dos alunos. Isto é, não houve um resultado significativo para a presença ou
ausência de variantes serem justificadas pela vida social do aluno, pelo sexo, idade ou série ou
mesmo por suas opiniões a respeito dos professores e suas aulas de língua portuguesa.
Percebeu-se dessa forma que as influências sociais não são o fator determinante para o
aluno escrever com ou sem variantes, e que para o professor as aulas de língua portuguesa são
o marco dessa postura, onde escrever textos, ler e fazer compreensões em sala é que são
responsáveis para o aparecimento das variantes ou não.
Não se pode deixar de levar em consideração a presença extralinguística na hora que o
aluno escreve um texto, sua idade, sua escolaridade e até o seu status social acabam
influenciando na sua prática na escola e em sua vida social, até mesmo em sua fala. Dessa
forma fica de responsabilidade do professor perceber essas influências e adaptá-las ao
processo de ensino e de aprendizagem, já que os resultados apontaram para um caminho
norteador de gramática normativa. Os professores entendem que só através do ensino da
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1793
gramática pura e de suas regras é que o aluno saberá entender o uso das diversas variantes e
saberá então adaptá-las em diferentes situações. E não o contrário, entender e aceitar as
variantes para adaptá-las ao contexto culto da escrita e da fala.
Referências
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caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
BAGNO, Marcos. Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa. 4. ed. São Paulo:
Parábola Editorial, 2004.
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 49. ed. São Paulo: Edições
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BAKHTIN, Mikhail Mikhalovich. Bakhtin e o círculo. São Paulo: Contexto, 2009.
BERNSTEIN, Basil. Comunicação verbal e socialização. In. COHN, Gabriel (Org.).
Comunicação e indústria cultural. São Paulo: Nacional, 1971.
CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre estudos culturais. São Paulo: Boitempo, 2003.
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LABOV, William. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
MOLLICA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luiza. Introdução à sociolinguística: o tratamento
da variação. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2012.
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SOUZA, Cristiane Maria Campelo Lopes Landulfo. Cultura de aprender: investigando as
crenças e as ações dos alunos de língua italiana. 2012. 169 f. Dissertação (Mestrado em
Língua e Cultura) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2012. Disponível em: <
https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/8619/1/Cristiane%20Maria%20C%20L%20L%20de
%20Sousa.pdf>. Acesso em: 2 ago. 2012.
WILLIAMS, Raimund. Cultura e sociedade: de Coleridge a Orwell. Petrópolis: Vozes, 2011.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1794
CAMINHADO POR TERRAS HABITADAS POR
FANTASMAS: A PEREGRINAÇÃO DO NARRADOR NA
OBRA ‘OS ANÉIS DE SATURNO’
[Voltar para Sumário]
Marcos Eduardo de Sousa (UFOP)
Como já tivemos oportunidade de afirmar em outras ocasiões e seguindo a linha de vários
críticos literários (CATLING; HIBBIT, 2011; LONG; WHITEHEAD, 2004), consideramos o autor
alemão, autoexilado na Inglaterra, W. G. Sebald como uma das vozes mais distintas da passagem do
século XX para o século XXI. Ele publicou quatro textos literários em prosa: Vertigem: Sensações
(SEBALD, 2008b), Os emigrantes: quatro narrativas longas (SEBALD, 2009), Os anéis de
Saturno: uma peregrinação inglesa (SEBALD, 2010), e, Austerlitz (SEBALD, 2008a) – os livros
estão apresentados em ordem de publicação no idioma original –, além disso, publicou ainda livros de
poema e obras críticas ensaísticas, sendo o livro Guerra aérea e literatura (SEBALD, 2011) seu
texto ensaístico mais famoso, e versa sobre os bombardeios aliados sobre as cidades alemãs durante a
Segunda Guerra Mundial.
Dentre as características da prosa sebaldiana, quatro elementos merecem especial destaque: o
hibridismo textual; a presença da viagem, da peregrinação; a inserção de imagens ao longo da obra; e,
o forte aspecto intertextual. Em minha dissertação intitulada “Nossa história que consiste quase só
em calamidades”: a memória e o esquecimento na obra “Os anéis de Saturno” de W. G. Sebald
(SOUSA, 2014) abordei, em alguma medida, cada um dessas características; já no presente trabalho,
dedicarei somente a questão da viagem, e mais especificamente, a viagem pelos locais abandonados.
Cabe aqui mencionar uma afirmação de Júlia Bussius quanto à escrita sebaldiana, “(...) a viagem
parece ser o modo de Sebald organizar seu pensamento, é a linha de raciocínio para estruturar as
narrativas (...)” (BUSSIUS, 2010, p. 11). A viagem acaba atuando como elemento que torna possível a
concatenação das histórias, ou seja, ela pode ser vista como o elemento motriz para as narrativas, pois,
“são nelas (em seu interior), com elas (histórias que servem de ‘guia’ ao narrador) ou mesmo por elas
(como elemento desencadeador) que a narrativa é construída.” (SOUSA, 2014, p. 36).
No presente trabalho terei como foco algumas particularidades da viagem, da peregrinação na
obra Os anéis de Saturno, um dos pontos centrais que será abordado é o fato de os locais percorridos,
quase sempre a pé, ou seja, sem se utilizar de nenhum tipo de veículo, pelo narrador sebaldiano, na
grande maioria das vezes, serem caracterizados como desolados, abandonados. São locais que
possuíam alguma relevância histórico, sócio ou cultural e que atualmente foram destituídos dessa
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1795
importância. São lugares que possuem a marca da ruína, da destruição e ao perpassar esses lugares o
narrador possibilita que emerjam memórias associadas a eventos ocorridos nessas localidades. Em sua
obra, Sebald aborda, prioritariamente, eventos de um passado ocultado, esquecido – que foram muitas
vezes negligenciados. E mesmo nos casos em que são tratados eventos que estão impregnados na
memória coletiva de um local ou mesmo uma nação, o narrador debruça-se sobre aquilo que é deixado
de lado – como em sua visita ao memorial de Waterloo – o Monumento do Leão –, em que seu olhar
foca nos processos de falseamento que são colocados em prática para estruturar aquela atração
turística (SOUSA, 2014). Como o narrador nos diz em sua visita:
Por que fui então a Waterloo, não sei mais dizer. Mas me lembro que desci no ponto
de ônibus e passei por um descampado e por um conjunto de casas precárias que, no
entanto, se erguiam altas até chegar ao vilarejo, que consistia exclusivamente de
lojas de suvenir e restaurantes baratos. Não havia sinal de visitantes naquele dia
cinzento de véspera de Natal. Não se via sequer uma excursão escolar. Mas, como
que a despeito desse completo abandono, uma pequena tropa com trajes
napoleônicos marchava ao som de tambores e pífanos pelas duas ou três ruas (…)
(SEBALD, 2010, p. 128–129).
Podemos quase qualificar o narrador como turista, ou pelo menos a base para a suas viagens
remetem a do turista, em 'sentido clássico'. Como já afirmamos em outro texto,
(...) Jonathan Culler (1988) em seu estudo que pensa o turismo como um sistema
semiótico, [afirma que] o turista é interessado por todos os sinais, já que atribui a
esses sinais a característica de ser a ossificação de uma prática cultural, daí suas
associações entre práticas prosaicas, de um dado local (como o transporte por
gondolas em uma cidade cheia de canais), como sinais culturais. Em contraposição,
temos que o olhar do narrador de Os anéis de Saturno busca não um denominador
comum para categorizar o grupo, mas sim, as idiossincrasias que tornam possíveis a
erupções de dados tipos de memórias da e a partir daquelas pessoas
encontradas/visitadas. (SOUSA, 2014, p. 41).
Talvez o narrador de Os anéis de Saturno guarde uma certa semelhança com o turista, mas
com uma ressignificação importante quanto ao colecionar souvenires, ele ‘coleta’ fragmentos de
memórias: memórias banidas, memórias esquecidas – ou mesmo 'apenas memórias prosaicas'.
Ao tratar da viagem na obra, é necessário abordar o outro conceito chave que está presente no
texto, a ideia de peregrinação. Ela já aparece no subtítulo da obra uma peregrinação inglesa. Antes de
tudo vamos trazer uma definição desse conceito, para, a partir disso, pensarmos como ele se relacionar
ou mesmo se apresenta na obra. Historicamente, a ideia de peregrinação está fortemente associada à
proposição de descolar-se até um local sagrado, mas não somente isso, pois engloba também “as
dificuldades e [os] impedimentos encontrados pelo peregrino ao longo do seu trajeto [já que essas] são
as expiações necessárias para alcançar o contato com o transcendente (FERREIRA, 2005)” (SOUSA,
2014, p. 38). Devemos considerar também, como afirma Rebecca Solnit a “(...) peregrinação é quase
universalmente incorporada à cultura humana com um significado literal de jornada espiritual, e o
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1796
ascetismo e o esforço físico são geralmente entendidos universalmente como significando
desenvolvimento espiritual” (SOLNIT, 2002, p. 46, tradução nossa).
No entanto, como creio ter sido possível pelo menos vislumbrar até agora, a peregrinação do
narrador sebaldiano não se caracteriza pelo aspecto sacro, já que ao fim não há nenhum alívio,
nenhuma estabilidade e nenhuma purificação;
o que o narrador alcança em suas viagens por locais habitados por fantasmas é a
recuperação ou mesmo uma espécie de salvação das memórias desses locais. Se há a
renovação de algo, sem dúvidas esse algo é o reerguimento dos locais que antes
estavam banidos da memória. (SOUSA, 2014, p. 40).
Imagem das ruínas de um moinho de vento
Foto que aparece na página 40 do livro Os anéis de Saturno: uma peregrinação inglesa (2010)
Essa obra sebaldiana, assim como o conjunto de sua obra em prosa – mencionado
anteriormente –, carrega na sua temática a presença da angústia. O narrador vai, ao longo de toda a
narrativa, relatando histórias que possuem a marca da destruição, de modo que temos ao fim, a
impressão que temos é que a história humana pode ser vista como uma catástrofe contínua, ou, nas
palavras de Bernardo Carvalho (2005), “a inconsciência da autodestruição inexorável a que o ser
humano está condenado” (p. 146), essa narrativa é construída na e pela consciência da fragmentação
do mundo.
Dessa sedimentação de eventos angustiantes (no sentido freudiano, em que Freud (2010) no
ensaio “Além do princípio de prazer” caracteriza a angústia como “um estado como de expectativa do
perigo e preparação para ele, ainda que seja desconhecido” (p. 169) ), a impressão que acabar por
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tomar conta do leitor é de que se produz mais e mais ansiedade. Como o narrador de Enrique VilaMatas (2011), na obra “El mal de Montano”, afirma sobre sua leitura da obra Os anéis de Saturno de
Sebald:
Às vezes, esse narrador [de Os anéis de Saturno] não sabia se estava “mesmo na
terra dos vivos ou em outro lugar”. Deus que angústia. […] A visão de que pequenas
populações, paisagens e ruínas solitárias, encontrava com vestígios de um passado
que remetia a totalidade do mundo. Sua peregrinação pela costa carecia de alegria,
luz e vivacidade. Para um homem morto – parecia dizer o narrador –, o mundo
inteiro é um grande funeral. (p. 42).
Desse modo, espero ter, pelo menos, possibilitado vislumbres de como o narrador, na obra
sebaldiana, e mais especificamente em Os anéis de Saturno, utiliza-se da viagem/peregrinação tanto
como elemento estruturante como elemento temático. Esse narrador consegue produzir um efeito de
resistência contra o processo de aceleração da modernidade, ao utilizar-se daquilo que podemos
chamar de estratégias antieconômicas na narrativa, ou seja, a digressão (LONG, 2009), ao se utilizar
desse processo de histórias dentro de histórias, numa concatenação, muitas vezes, vertiginosa.
Palavras Finais
O caminhar do narrador sebaldiano atua em pelo menos três frentes como mecanismo de
resistência contra os processos de aceleração da modernidade: 1) retomada da memória de lugares que
foram esquecidos, buscando restituir seu valor, ou ao menos minimizar os efeitos desse esquecimento;
2) reduz o efeito de aceleração do tempo, ao escolher, preferencialmente, formas de transporte que
vão na contramão de um processo de otimização do tempo, e, valorizando assim meios que podemos
chamar de mais reflexivos e imersivos; 3) mitigar os processos de desmantelamento dos espaços
geográficos, construindo uma unidade, mesmo que a posteriori, e traçando uma linha narrativa,
mesmo que essa linha narrativa seja a de “nossa história que consiste quase só em calamidades...”
Referências
BUSSIUS, Julia Teixeira. “E o que resta não destrói a memória”: história, memória e ficção
na obra de W. G. Sebald. 2010. Dissertação (Mestrado em História) - Departamento de
História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-31082010-144951/en.php>.
Acesso
em: 9 abr. 2011.
CARVALHO, Bernardo. “O mais radioso dos dias.” In: O mundo fora dos eixos: crônicas,
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CATLING, Jo; HIBBIT, Richard. Introduction. In: Saturn’s Moon: W. G. – A Handbook.
London: Legenda, 2011. p. 1–13.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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CULLER, Jonathan. The semiotics of tourism. In: Framing the sign: criticism and its
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FERREIRA, Júlia Dias. O modelo da Peregrinação: exemplos literários e artísticos de
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de Literatura Medieval. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005. p. 167–
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2014.
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer [1920]. In: História de uma neurose infantil:
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LONG, J. J. W. G. Sebald: The Ambulatory Narrative and the Poetics of Digression. Amsterdamer
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LONG, J. J.; WHITEHEAD, Anne. Introduction. In: LONG, J. J.; WHITEHEAD, Anne
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SEBALD, W. G. Austerlitz. Tradução de José Marcos Mariani De Macedo. São Paulo:
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SEBALD, W. G. Guerra aérea e literatura: com ensaio sobre Alfred Andersch. Tradução de
Carlos Abbenseth; Frederico Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SEBALD, W. G. Os anéis de Saturno: uma peregrinação inglesa. Tradução de José Marcos
Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SEBALD, W. G. Os emigrantes: quatro narrativas longas. Tradução de José Marcos Mariani
De Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SEBALD, W. G. Vertigem: sensações. Tradução de José Marcos Mariani De Macedo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008b.
SOLNIT, Rebecca. The uphill road to grace: some pilgrimages. In: Wanderlust: a history of
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SOUSA, Marcos Eduardo de. “Nossa história que consiste quase só em calamidades”: a
memória e o esquecimento na obra “Os anéis de Saturno” de W. G. Sebald. 2014.
Dissertação (Mestrado em Letras) - Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade
Federal de Ouro Preto, 2014.
VILA-MATAS, Enrique. El mal de Montano. In: El mal de Montano. Barcelona: Editorial
Anagrama, 2011. p. 13–101.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1799
OS NOVOS REALISMOS NOVOS EM PRODUÇÕES
LITERÁRIAS DE LÍNGUA INGLESA
[Voltar para Sumário]
Marcus V. Matias (UFAL)
Partindo das análises e conceitos literários sobre um novo tipo de realismo que
avulta nas produções contemporâneas brasileiras, o chamado Novo Realismo Novo,
inicio uma investigação sobre como (ou se) essa mesma estética realista pode ser
percebida também na produção literária contemporânea em língua inglesa. Como ponto
de partida, escolhi o conto “The shared patio”, da escritora e artista multimídia
estadunidense Miranda July. Essa obra, a qual faz parte do livro No one belongs here
more than you (2007), foi escolhida devido a sua forte filiação a uma das vertentes do
Realismo: o Fantástico.
Neste caso, porém, trata-se de um fantástico que sofre alterações na
contemporaneidade, assumindo uma configuração que pode ser definida, segundo os
conceitos do crítico argentino Jaime Alazraki (2001), como pertencente ao
Neofantástico. Também recorro ao filósofo Jean-Paul Sartre e seu conceito de
Fantástico Contemporâneo (1968), através do qual correlaciono a obra de July com
esse movimento de renovação do realismo que acontece na atualidade.
No entanto, situar os contos de July nas características do Neofantástico e nos
novos realismos novos, exige, em primeiro lugar, uma discussão sobre esse fenômeno
de renovação do realismo e as contribuições do Novo Realismo Novo e do
Neofantástico para a literatura contemporânea. Essa análise comparativa justifica-se
pelo desejo de observar se as produções literárias na atualidade e de vertente realista
podem estar em convergência em ambas as línguas.
Por esse viés de observação e comparação formais e estéticas trago as
produções literárias do brasileiro Fernando Bonassi, com seu conto “Natureza morta em
São Paulo” (2001), o qual se encontra dentro da estética mais realista dos Novos
Realismos Novos, e seu romance Subúrbio (2006), o qual traz elementos insólitos na
narrativa. Das obras de Bonassi, Subúrbio é a que está em maior convergência com os
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1800
contos da estadunidense Miranda July, além de enfatizar as expressões dos utopismos
literários como outro ponto em comum entre elas. A distopia, aliás, é entendida nesta
análise como uma das principais características dos Novos Realismos Novos, uma vez
as narrativas nesse gênero se passam em regiões violentas e/ou periféricas. Essas obras,
assim expostas, mantêm um enfoque também na distopia, por meio do vazio existencial
e do fenômeno da violência (seja ela física ou psicológica), ambos característicos dos
centros urbanos.
Os novos realismos novos e o fantástico em Miranda July
Ao longo do século XX o realismo nas artes se configurou de diversas formas,
ora se opondo ao realismo do século XIX (SALES, 2012) ou sendo um desdobramento
deste, através de movimentos de vanguarda como o surrealismo, o realismo fantástico,
ou realismo regional (para citar apenas alguns), ora se adaptando às novas realidades
sociais, como, por exemplo, ao enfatizar o aumento da violência nos centros urbanos.
Esta última originou, no Brasil, uma nova estética realista inaugurada por Rubem
Fonseca, a qual passou a ser conhecida como “brutalismo”, e seguiu até os seus
desdobramentos contemporâneos, por meio de uma estética hiper-realista distópica
(MATIAS, 2013).
Na passagem para o século XXI uma renovação do realismo começou a ganhar
contornos mais nítidos, motivada pela crescente produção da literatura em resposta a
grande demanda de realidade, principalmente, por parte da mídia, engendrando o
dinamismo compulsivo da informação em tempo real, a televisão interativa e o
fenômeno dos reality shows, nos quais pessoas anônimas são transformadas em
celebridade quase que instantaneamente.
Na literatura a situação passou a ser igualmente sintomática, com o aumento
das biografias, reportagens históricas e relatos de viagens. O efeito colateral desse
fenômeno de realidades efêmeras é, segundo Karl ShØllhammer (2011), uma espécie de
cegueira diante de uma realidade mais próxima e sua real complexidade. Esta relação
entre realidades distintas é, inclusive, um elemento que está presente em uma das
definições do Neofantástico, como veremos a seguir, e que cria um elo entre os contos
de July e os Novos Realismos Novos.
Com efeito, a cegueira social apontada por ShØllhammer, se constrói
principalmente por meio das relações midiáticas, provocando um excesso de informação
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1801
e a efemeridade dos fatos, o que, a meu ver, acaba distorcendo a noção tempo-espacial
das relações com o outro e desenvolvendo uma amnésia sócio-histórica.
Desse modo, na tentativa de escapar dessa naturalização do caos urbano e de
sua violência, a produção literária de escritores do novo realismo novo passa a enfatizar
mais o aspecto estético e transformador da linguagem e da expressão artística,
privilegiando o efeito afetivo e sensível em detrimento da questão representativa.
Segundo ShØllhammer essa escrita renovada “é a reconfiguração estética da realidade,
sem, contudo, voltar às técnicas de verossimilhança descritiva ou da objetividade
narrativa dos escritores realistas do século XIX” (2011, p. 53). Vejamos um exemplo
disso, com o miniconto de Fernando Bonassi, chamado “Natureza morta em São
Paulo”:
Ecos de sirenes. Vozes de prisão. Gatos com ratos mortos na boca. Ratos
mortos com formigas na boca. Crianças chorando abertamente. Homens
feitos chorando escondidos. Talheres raspando pratos. Televisão no fim.
Camas suspensas por latas de óleo. Rostos em terror espiando nas janelas.
Dez milhões de preces inomináveis por dentro dos travesseiros. Cristos de
louça. Toalhas plásticas. Cravos e espinhas. Penicos e bacias. Escapamentos
furados, traques, tiros. Pilhas gastas. Nem pomada. Nem droga. Nem foda.
Nem preguiça. Nem um saco de lixo pra chutar. (BONASSI, 1999, Folha de
São Paulo)
É possível perceber a ambientação do miniconto em um cenário caótico e
violento, por meio da força do apelo sensorial, como imagens e sons, e uma linguagem
ágil. Esta estratégia narrativa provoca um efeito de realidade singular, como se
estivéssemos diante de um vídeo ou de uma história em quadrinhos, criando, assim,
uma convergência com o paradigma da imagem na contemporaneidade. Além disso, os
pontos que separam as frases podem ser análogos aos espaços vazios entre os quadros
sequenciais das narrativas gráficas, nos dando o tempo necessário para elaborarmos o
elo/ação que liga uma cena a outra. Nas palavras de ShØllhammer,
Na extrema redução das frases, a realidade é fixada pela nominação
instantânea dos objetos, das coisas, dos restos [...] é nesse tipo de
miniaturização que se cristaliza o cenário narrativo [...] O autor reafirma o
aspecto predominante das narrativas complexas atuais, isto é, fragmentadas e
descentradas” (SHØLLHAMMER, 2011, p.64)
Já em Subúrbio, Bonassi utiliza neste romance a técnica de fragmentação
associada a uma narrativa muitas vezes insólita, por meio da organização dos (curtos)
capítulos e das descrições sinestésicas das experiências etílicas de seu protagonista: um
velho que vive trancado na frustração de seu mundo vazio e sem sentido aparente,
rodeado por um contexto comum e trivial, dos quais emerge situações insólitas:
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1802
Na terceira dose. Na hora em que o velho pousou o copo no balcão.
Justamente nessa hora foi que ele ouviu o som distante e abafado. No
momento em que o fundo de vidro maciço do copo bateu contra o balcão,
contra o alumínio. A vibração... A vibração que se seguiu foi sendo
comunicada de um material para o outro: do alumínio pra madeira que lhe
dava forma, aos tijolos que os sustentavam e depois pro chão, pra terra
fervilhante. Da terra essa espécie de terremoto concentrado subiu pelo
cascalho, pelo cimento e pelas lajotas até as pernas do velho, fechando o
circuito. (BONASSI, 2006, p. 23)
Por meio do apelo sensorial, o insólito se configura e causa um estranhamento
característico das obras do realismo fantástico, sem, no entanto, se filiar ao terror ou ao
monstruoso, como ocorre nas produções fantásticas tradicionais. É precisamente essa
desconfiguração do modo tradicional do gênero, e redirecionamento para questões de
natureza humana, que Jaime Alazraki define como sendo uma das estratégias do
Neofantástico. Tal renovação apresenta, portanto, alguns desdobramentos expressivos
em relação à sua vertente canônica. Segundo Alazraki, os elementos literários e
estéticos (formais e temáticos) do Neofantástico
Não são intentos que buscam devastar a realidade conjurando o sobrenatural
– como se propunha o gênero fantástico no século XIX -, são os esforços
orientados em intuí-la e conhecê-la mais, para além dessa fachada
racionalmente construída. [...] [Denomina-se relatos] Neofantásticos porque
apesar de pivotear ao redor de um elemento fantástico, estes relatos se
diferenciam de seus avós do século XIX, por sua visão, intenção e modus
operandi. (ALAZRAKI, 2001, p. 28)
Trata-se então de uma dinâmica narrativa, cujo foco está na camada mais
oculta de uma realidade que é mascarada por outra, sendo esta primeira (a ocultada) a
mais expressiva e complexa. Logo, podemos inferir que por visão, entende-se o ato de
perceber tal realidade encoberta, a qual é análoga, no mundo histórico, às estratégias
sociais de manipulação e controle da sociedade, por meio do controle da informação e
do conhecimento. Como resultado, o que Alazraki chama de “intenção” pode ser
entendido como o efeito das narrativas Neofantásticas ao mostrar esse outro mundo por
meio de metáforas, sendo o modus operandi a utilização do insólito como elemento que
provoca o contraste entre as diferentes realidades.
Com base nessa definição de Neofantástico chegamos às obras de July.
Partindo da apresentação de alguns elementos do Novo Realismo Novo e,
principalmente, seguindo através do Subúrbio, de Bonassi, percebo uma primeira
ligação entre essas produções e as obras de Miranda July. Esta ligação se dá por meio de
uma expressão do insólito cujo foco incide mais sobre a condição humana do que sobre
as questões sobrenaturais extraordinárias.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1803
Em se tratando do conto de July, apesar de também haver experimentações
narrativas em “The shared patio”, as ousadas construções estruturais fragmentadas
presentes nos minicontos dos autores brasileiros não estão no corpo do texto dessa
autora, mas em seu conteúdo. A mais significante delas é a ambiguidade na forma como
os diálogos e os pensamentos se constroem na narrativa: não há aspas distinguindo um
do outro, criando, assim, uma incerteza sobre os fatos narrados.
O modo como a protagonista experimenta um tipo de delírio insólito ao ter que
se confrontar com uma realidade pungente e inóspita, também contribui com a
ambiguidade narrativa. Nesse caso, mais do que uma fuga, a protagonista projeta um
mundo paralelo que a salve e amenize a frustração causada pela solidão e pelo vazio
existencial, mantendo, no entanto, um contexto trivial e comum. Analogamente, tal
situação pode ser percebida no mundo histórico como o sintoma de uma realidade
urbana contemporânea, na qual os indivíduos coexistem em relações de exclusão e/ou
apagamento social, como, por exemplo, não conhecer seu próprio vizinho ou não se
importar com a dor do outro.
Esse tipo de violência social é nomeada por Ângela Dias (2008) como
crueldade melancólica, segundo a qual a dor é provocada pela ausência do olhar do
outro. Se nossa identidade é, em grande parte (senão totalmente) definida pelo olhar do
outro, ao termos esse olhar negado também acabamos por ter nossa identidade
violentada. É precisamente aí que reside a crueldade melancólica, por meio da negação
do outro, o que, para Dias, é semelhante a uma espécie de enlutamento sem a
experiência do luto.
Esse efeito estético faz com que o livro de contos de July, No one belongs here
more than you (2007), seja uma obra intrigante desde o seu início. Na verdade, desde a
capa da edição que analiso, para ser mais preciso: à primeira vista, parece ser apenas
uma capa comum de uma edição comum. Mas quando a tocamos, imediatamente nos
percebemos surpreendido por sua textura e esse estranhamento aliado a surpresa é
precisamente o que sentimos ao ler os contos de July, especialmente na obra “The
shared patio”.
Este que é o conto de abertura de No one belongs here more than you, nos
apresenta uma jovem solitária e de classe social não muito favorável que acaba de se
mudar para um condomínio de apartamentos. Como o título anuncia, este condomínio
tem um pátio compartilhado: local onde a trama germina e as ações são desenvolvidas
em um universo delirantemente esperançoso. O pátio é também o elemento na narrativa
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1804
que engendra o primeiro estranhamento, porque em vez de o “compartilhar” ser algo
bom e positivo, ele será justamente motivo de angústia. Este sentimento nos revela o já
mencionado problema nas relações sociais, os quais levarão a criação de uma realidade
insólita como um lugar seguro. Daí a filiação deste conto com o Neofantástico e com os
utopismos: uma projeção extraordinária de uma dada realidade em contraste com uma
situação negativa “real”.
O elemento desencadeador da trama é a paixão que a protagonista passa a
nutrir por seu vizinho coreano, a qual só se realiza na criação de uma realidade paralela,
onde se desenvolve um caso amoroso entre ambos: o conto começa nos alertando já na
primeira linha “It still counts, even though it happened when he was unconscious”. Este
início, aliás, confirma outra relação com o Neofantástico, por meio do modus operandi.
Segundo Alazraki, ao contrário do fantástico tradicional, no qual o insólito vai se
construindo ao longo da trama até chegar ao seu clímax, no Neofantástico a trama já
acontece no imbricado jogo do estranhamento. Além disso, a criação de outra realidade
também converge com os princípios do Neofantástico: a realidade segundo a
percebemos é vista como uma cobertura de outra realidade, que só pode ser percebida,
em contraste, por meio de situações nonsense.
Em de “The shared patio”, esse nonsense ocorre, não por acaso, em um dia de
outono (uma estação indefinida), quando a protagonista encontra seu vizinho no pátio
compartilhado e vai ao seu encontro. Após uma breve conversa ela entra em uma
espécie de delírio ou dimensão extraordinária, ao perceber que seu vizinho sofreu um
ataque epilético. Durante o período de suspensão da primeira realidade, a protagonista
vive o que para ela é uma situação de romance e carinho compartilhado entre ambos e
que só vai ser quebrada quando a esposa dele chega ao local. Em vez de tal ruptura a
trazer de volta para a primeira realidade, ela passa a transitar ambas as situações: a
“real” e a “insólita”. Tudo em uma espécie de sequência onírica, na qual a transição
entre a realidade e seu imaginário ocorre naturalmente. Como pode ser visto no
fragmento abaixo:
Seu apartamento era muito calmo. Eu fui na ponta dos pés por toda a sala de
estar até a cozinha e pressionei meu rosto contra o freezer, respirando os
cheiros complexos de suas vidas. Eles tinham fotos de crianças em sua
geladeira. Eles tinham amigos, e esses amigos tinham dado à luz mais
amigos. Eu nunca tinha visto nada tão íntimo como as fotos dessas crianças.
Eu queria pegar o saco plástico em cima da geladeira, mas eu também queria
olhar para cada criança. Um deles se chamava Trevor e ele teria uma festa de
aniversário naquele sábado. Por favor, venha! dizia o convite. Nós vamos ter
o tempo de uma baleia! e havia a foto de uma baleia. Era uma baleia de
verdade, uma fotografia de uma baleia real. Olhei para seu minúsculo olho
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1805
sábio e perguntei onde o olho estava agora. Estaria viva e nadando, ou teria
morrido há muito tempo, ou estava morrendo naquele exato momento?
Quando uma baleia morre cai através do oceano, lentamente, ao longo de um
dia. Todo mundo a vê cair, como uma estátua gigante, como um prédio, mas
devagar, devagar, devagar. Eu foquei toda a minha atenção no olho; Eu tentei
chegar perto da foto, em direção à baleia real, a baleia que estava morrendo, e
eu sussurrei, Não é culpa sua. (JULY, 2007, p.9 – grifo meu)1
O fragmento acima define a presença do insólito em seu desfecho na narrativa,
que é quando os devaneios da protagonista, ocorridos enquanto seu vizinho está em seu
colo durante um momento de apagão por conta do ataque epilético, são perturbados pela
chegada da mulher dele. Em pânico, mas energicamente, a esposa manda a protagonista
pegar um remédio em cima da geladeira no apartamento do casal. Apesar do clima
tenso, a protagonista se deixa levar por impressões e sensações melancólicas provocadas
pelas fotos na geladeira, como que se estivesse adentrando outra realidade que a desvia
da situação “real” de emergência, tal qual uma fuga dessa realidade.
Parte desse efeito de transição é provocado através da construção da narrativa.
Como foi exposto anteriormente, July não utiliza aspas para distinguir a voz de quem
narra e os pensamentos da protagonista, o que nos leva a uma grande ambiguidade
provocada pela sensação de estarmos constantemente entre o turbilhão de seus
pensamentos, seus diálogos e o que é narrado. O efeito disso é uma indefinição sobre o
que acontece no contexto ficcional e o que é apenas desejado ou imaginado, o que
enfatiza o insólito no Neofantástico: a existência de realidades oblíquas. A linguagem
comum que compõe a narrativa é habilmente balanceada pela minúcia nos detalhes,
muitas vezes extremos, o que estabelece sua tradição com o realismo.
Além da forma ambígua com a qual ela leva seu público leitor a um estado de
suspensão entre a realidade narrada e o extraordinário, há uma ironia sutil e ao mesmo
tempo ácida na composição de sua antagonista, levando a crer que apesar da “realidade”
ser percebida como uma ameaça, a protagonista consegue lidar com ela de forma sóbria,
consciente e reativa:
Vincent tem uma namorada chamada Helena. Ela é grega, com cabelos
loiros. É tingido. Eu ia ser gentil e não mencionar que ele é tingido, mas eu
realmente não acho que ela se importe com isso. Na verdade, acho que ela
está indo para o tipo tingido, com as raízes do cabelo à mostra. E se ela e eu
fossemos amigas íntimas. (JULY, 2007, p.2 – grifo meu)
1
No original esta expressão é “We'll have a whale of a time!”. Por sua relação com o sentido e com a
continuação do texto, decidi manter a expressão, através de uma tradução direta, embora não faça muito
sentido se comparada com seu equivalente em português “Vamos no divertir muito!” a qual seria a
recomendada.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1806
Ao descrever a esposa do vizinho como uma grega, cujo nome ironicamente é
Helena, há uma menção implícita à beleza da mulher e, ao mesmo tempo, ao sentimento
de inferioridade e, portanto, de vulnerabilidade da protagonista em relação a ela. No
entanto, como que por uma espécie de vingança sarcástica, a protagonista nos revela o
embuste em tal beleza ao observar que os cabelos loiros de sua rival são tingidos. Essa
descrição aparentemente trivial de uma beleza falsa vai, de fato, reafirma a presença do
simulacro dentro da própria narrativa, por meio da revelação de uma realidade
mascarada por outra. Nesse jogo entre as realidades, o desmascarar parece ser
inevitável, pois não há grandes resistências em se revelar o simulacro, uma vez que,
segundo a protagonista, as raízes pretas tendem a ficar à mostra.
O fato de que a personagem é extremamente vulnerável é outro elemento
igualmente expressivo e de filiação com o Realismo. De alguma forma, a sua
vulnerabilidade cria uma identificação com a vulnerabilidade dentro de cada um de nós
a tornando reconhecível, tangível e aceitável. Daí o efeito dessa narrativa de nos fazer
refletir, no mundo histórico, sobre a realidade pungente e mascarada pelas atuações
sociais. Nas palavras de Mark Flanagan:
Os personagens de Miranda July são tão sem medo de ser humanos, que
chega a doer. Mas a partir da dor, a magia surge, e é nessa magia que está a
essência do que significa ser humano [...] Nada de mais realmente acontece
nessas histórias, mas July encontra esses espaços entre a vida real que
estamos vivendo e a esperança de que as coisas aconteçam para nós.
(FLANAGAN, 2015)
Apesar de Flanagan não ter, aparentemente, nenhuma relação teórica com o
Neofantástico, ele utiliza termos como “magia” e frases como “essência do ser humano”
e “nada de mais realmente acontece nessas histórias”, as quais em muito se aproximam
da definição do que vem a ser o fantástico de Alazraki: uma história cuja magia
ficcional é descrita em ações triviais do cotidiano (“nada de mais realmente acontece”),
tentando revelar uma realidade oculta. Além disso, “The Shared patio” também traz
elementos que o filiam a uma vertente existencialista do fantástico (“essência do ser
humano”), definida por Jean-paul Sartre como Fantástico Contemporâneo, cuja ênfase
está no vazio existencial, criando, assim, um elo com o fenômeno da distopia.
Segundo Sartre, o Fantástico Contemporâneo é uma tentativa de “retorno ao
humano”, afastando-se das fadas, duendes, seres transcendentais e das disciplinas
metafísicas, as quais se acreditava que poderiam desviar-nos da condição humana. Em
contraste com o Fantástico Contemporâneo, sua versão tradicional “buscava[-se] criar
um mundo que não fosse este mundo [...] O objeto assim criado se referia apenas a si
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1807
mesmo [...] impunha-se apenas por sua própria densidade” (SARTRE, 2005, p.137).
Assim sendo, o humano no Fantástico tradicional é apenas o meio através do qual se
revela um mundo fantástico: por meio de sua transcendência ao longo da narrativa. Já
em sua forma contemporânea ocorre o inverso: é através do meio (do extraordinário)
que se revelará, por contraste, o humano, sendo este, portanto, o fim almejado e não
mais o insólito em si e em sua própria densidade.
Já não há senão um único objeto fantástico: o homem. Não o homem das
religiões e do espiritualismo, engajado no mundo apenas pela metade, mas o
homem-dado, o homem-natureza, o homem-sociedade [...] aquele que se
barbeia na janela [...]. Esse ser é o microcosmo, é o mundo, toda a natureza: é
somente nele que se mostrará toda a natureza enfeitiçada. (SARTRE, 2005, p.
138)
O extraordinário, o insólito, nesse sentido, tal como descrito acima, passa a
servir ao propósito de revelar o homem, tendo que se domesticar e recusar os mundos
transcendentes. No entanto, o mundo fantástico, seus componentes ou a matéria que o
define, apesar de estar em uma posição de subserviência ao humano, teima em cumprir
sua função, pois a matéria é indisciplinada, desordenada e caótica, inviabilizando a
tentativa de atingir um fim (SARTRE, 2005). Nas palavras de Márcio Sá, “ao não
atingir o fim almejado, qual seja o próprio humano, esse não poderá jamais ser definido.
Assim, o meio acaba por destruir o fim” (2003, p. 56).
Daí a relação do Fantástico Contemporâneo com o vazio existencial que define
tão precisamente a condição filosófica das protagonistas de July, se configurando,
inclusive, pelo viés da crueldade melancólica, aquela cuja definição está na ausência do
olhar do outro. Em “The shared patio”, aliás, o nome da protagonista não nos é
revelado, o que pode ser visto como esse apagamento identitário.
As conexões e transformações que os personagens de July procuram ao lidar
com a dificuldade nos relacionamentos sociais, os quais nunca funcionam bem,
enfatizam as suas paisagens interiores tão dolorosamente expostas. A melancolia e o
pessimismo, contrastantes em uma realidade ficcional inicialmente utópica e que
compõe a primeira camada da narrativa, revelam a dinâmica entre ambas as realidades
mencionadas anteriormente: a que mascara e se apresenta como utópica, e a que é
mascarada para depois se desvelar de forma distópica. Esse dinamismo forma um
movimento entre a esperança e o desânimo que marca bem a personalidade das
protagonistas desta escritora estadunidense.
Assim, ao analisar a maneira sóbria, precisa e, em certo grau, engraçada que
July retrata a crueldade da solidão ou o mundo estranho que seus personagens trazem no
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1808
interior de si mesmos, eu percebi que estava diante de um exemplo do gênero fantástico
contemporâneo e que ele tem o encaixe preciso com os temas do Novo Realismo Novo:
sua forma deslizante, trivial e comum na mudança entre realidades e o modo como os
personagens lidam com a dinâmica dessas realidades. Além disso, há também a
exteriorização de um vazio existencial, revelando uma crueldade presente nas obras
realistas renovadas, por meio de uma realidade distópica.
A violência presente nessa crueldade melancólica é outro elemento que liga
minha análise sobre o Fantástico renovado com os conceitos de Novo Realismo Novo
expostos até agora. Desse modo, as investigações sobre os novos realismos e sobre os
utopismos, são consideradas em uma perspectiva comparativa transversal, oferecendo
um panorama mais amplo das expressões utópico-literárias dentro dos novos realismos,
incluindo aí o Neofantástico, em ambas as línguas envolvidas nestas produções.
Essas investigações, apesar de ainda recentes, já apresentam contribuições para
a análise e o entendimento dos fenômenos literários da atualidade e em convergência
com os novos paradigmas sociais, através de estudos e publicações de autores como
Karl SchØllhammer (2011), António Pedro Pita (2012), Renato Cordeiro Gomes (2012)
e Izabel Margato (2012). As análises desses autores apontam para a reconfiguração
estética do realismo, provocada pelo imediatismo da comunicação/relação social e pela
hibridização das fronteiras entre o real e o ficcional na produção literária
contemporânea. Nessas produções, destacam-se as obras dos brasileiros Fernando
Bonassi e Marcelino Freire, para as quais acrescento os estadunidenses Miranda July e
Chuck Palahniuk, cuja relação com os Novos Realismos Novos venho a estruturar ao
longo desta pesquisa que apenas se inicia.
Em relação à forma como Miranda July percebe a complexidade na existência
humana, em No one belongs here more than you, concluo com as palavras de Wang:
July captura essa dolorosa qualidade linda e brilhantemente em cada um dos
contos nesta coleção, um pacote de histórias bem amarrado e coeso, cada
uma das quais oferece um pouco de dor e reconhecimento, implicação de que
somos, de fato, as pessoas que pertencem a esta mundo. (J.W. Wang , 2009)2
Talvez seja aí que resida a beleza artística e estética em seus contos: a forma
sóbria com a qual July consegue refletir e interagir com as adversidades que permeiam
as relações, cada vez mais ambíguas (e por que não, caóticas) que povoam os grandes
2
July captures this aching quality beautifully and brilliantly in each of the short stories in this collection,
a tight and cohesive bundle of stories, each of which offers a little hurt and recognition, implication that
we are, in fact, the people who belong in this world.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1809
centros urbanos na atualidade. Sublimar essas relações ou viver em sua tangente é o
questionamento que poderemos levantar através desses contos fantásticos.
Referências
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fantástico. Madrid: Arco/Libros, 2001.
BONASSI, Luiz Fernando. Natureza morta. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/paywall/login.shtml?http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilu
strad/fq1711199910.htm , 1999. Acesso em: julho de 2014.
_______. Subúrbio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
DIAS, Ângela. Cenas da crueldade: ficção e experiência urbana. In: DALCASTAGNÈ,
Regina (org.). Ver e imaginar o outro: alteridade, desigualdade, violência na literatura
brasileira contemporânea. Vinhedo – São Paulo: Editora Horizonte, 2008.
FLANAGAN, Mark. “About entertainment”. Disponível em:
http://contemporarylit.about.com/od/shortfiction/fr/nooneBelongs.htm, 2015. Acesso
em: março de 2015.
GOMES, Renato. Por um realismo brutal e cruel. In: MARGATO, Izabel; GOMES,
Renato (Org.). Novos realismos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
JULY, Miranda. The shared patio. In: JULY, Miranda. No one belongs here more than
you. New York: Scribner, 2007.
MATIAS, Marcus V. Cicatrizes urbanas: narrativas da violência na ficção detetivesca.
2013. 163 f. Tese (Doutorado em Língua Inglesa e suas Literaturas) – Faculdade de
Letras, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2013.
PITA, António Pedro. O Neo-realismo entre a realidade e o real. In: MARGATO,
Izabel; GOMES, Renato (Org.). Novos realismos. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2012.
SALES, Michelle. Um olhar para o realismo – Da geração 70 aos novos realistas. In:
MARGATO, Izabel; GOMES, Renato (Org.). Novos Realismos. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2012.
SÁ, Márcio Cícero de. Da literatura Fantástica (teorias e contos). 2003. 141 f.
Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
SARTRE, Jean-Paul. Situações I. Tradução: Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify,
2005.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1810
SCHØLLHAMMER, Karl. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011.
WANG, J.W. “The Southeast Review”. Disponível em:
http://southeastreview.org/2009/03/miranda-julys-no-one-belongs-here-more-thanyou.html, 2009. Acesso em: 22 de novembro de 2014.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1811
O FEEDBACK COLABORATIVO NA PRODUÇÃO DO
GÊNERO E-MAIL: UMA EXPERIÊNCIA COM ALUNOS DO
ENSINO FUNDAMENTAL II
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Maria Angela Lima Assunção (UFRN)
Introdução
A escrita, por ser uma prática que envolve sujeitos cujas interações acontecem em
diferentes esferas sociais, não pode ser concebida como um mero exercício escolar, a partir de
um tema proposto pelo professor. Escrever envolve funções diferentes, de acordo com a
intenção comunicativa de cada escritor e, para atender a esses objetivos, existem os diversos
gêneros textuais que são produzidos diariamente, com os mais variados propósitos, e
veiculados em diferentes suportes, de acordo com a especificidade de cada um.
Pesquisas desenvolvidas nas últimas décadas apontam para a eficácia do trabalho com
os gêneros textuais e, nessa perspectiva, a escrita como um processo de construção surge
como uma proposta para melhorar o desempenho dos estudantes. No entanto, as atividades de
linguagem centradas nos gêneros constituem uma experiência relativamente nova e até
desconhecida em muitas escolas.
Diversos estudiosos afirmam que o texto deve ser o objeto de ensino de Língua
Portuguesa, como Geraldi (2006 [1986]), Schneuwly; Dolz (2004), Antunes (2014) e tantos
outros. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), inspirados na literatura acadêmica dos
anos 80 que aborda essa temática, também defendem essa ideia embora as orientações e
referenciais contidos nesses documentos tenham gerado dúvidas sobre o modo como pensar o
ensino dos gêneros e como encaminhá-lo de maneira satisfatória, conforme observam (ROJO;
CORDEIRO, 2004).
A partir dessas constatações surgiu esta proposta pedagógica direcionada para
estudantes do Ensino Fundamental (EF) de uma escola pública do RN, com o objetivo de
auxiliá-los na produção do gênero textual e-mail. Paralelamente à aplicação da Sequência
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1812
Didática1 (SD), desenvolveu-se uma pesquisa de cunho qualitativo, usando como corpus os
textos elaborados pelos alunos desde a primeira versão (manuscrita) à versão ‘final’ (digital).
Foram selecionados, para a análise, 10 textos – identificados como texto 1 (T1), texto 2 (T2),
[...] e texto 10 (T10), sendo seus autores referenciados como Aluno 1 (A1), Aluno 2 (A2), [...]
e Aluno 10 (A10), respectivamente.
A transposição didática desse gênero, elaborada na perspectiva da escrita processual
buscou apoio teórico-metodológico em estudiosos como Bakhtin (2011 [1992]), Marcuschi
(2008; 2010), Soares (2009), Oliveira (2010), Paz (2010), Koch (2012), Abaurre (2012),
Fernández (2012), Passarelli (2012), dentre outros, cujas orientações nortearam a organização
e o desenvolvimento deste estudo.
Por fim, a avaliação dessa prática apontou para resultados exitosos, considerando-se o
retorno positivo da turma à proposta apresentada, apesar do estranhamento inicial de alguns
alunos, ao assumirem a posição de leitores críticos da sua produção textual, tendo em vista
que a escrita processual, especialmente o feedback colaborativo constitui-se uma experiência
nova na turma.
A escrita processual - algumas considerações
Em virtude da abrangência do uso da escrita, que gradativamente deixou de ser
privilégio de escritores consagrados para constituir-se uma prática abrangente nas sociedades
letradas, muitos pesquisadores têm se dedicado ao estudo desse processo no intuito de melhor
compreendê-lo e assim poder oferecer subsídios para o aperfeiçoamento dessa prática social.
Dentre as várias concepções que permeiam o meio acadêmico, sob diferentes perspectivas,
Koch (2012) explica que o modo pelo qual se concebe a escrita está associado ao modo pelo
qual se entende a linguagem, o texto e o seu autor.
A autora destaca três abordagens distintas: a) a escrita com foco na língua: associada à
concepção de linguagem como sistema acabado, que origina o texto como produto; b) a
escrita com foco no escritor: concebe a língua como representação do pensamento e percebe o
sujeito como senhor de suas ações, originando a noção de texto como expressão do
pensamento de quem escreve, sem considerar a interação com o leitor; c) a escrita com foco
1
“Conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou
escrito” (Dolz; Noverraz e Schneuwly, 2004, p. 97).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1813
na interação: produzida a partir do diálogo entre escritor e leitor, vistos como sujeitos ativos
que constroem o texto (KOCH, 2012).
Com a mudança de concepção da escrita como produto acabado para a escrita como
processo surgiram novas instruções que objetivam auxiliar os aprendizes na (difícil?) tarefa de
produzir textos. Assim, o ato de escrever reveste-se de significado quando o escritor percebe
que está escrevendo para alguém e o seu texto tem um propósito comunicativo. Isso gera a
necessidade de escolher o gênero adequado, selecionar as ideias, organizá-las, revisá-las,
enfim, usar estratégias que facilitem o diálogo entre os interlocutores.
As atividades escolares, sobretudo no que se refere à escrita, precisam ser bem
planejadas, orientadas adequadamente para não perderem de vista a natureza interacional da
linguagem. Antunes (2014, p. 33) adverte que “somente na escola, a gente escreve para
ninguém,
a
gente
escreve
sem
saber
para
quê,
inclusivamente
frases
soltas,
descontextualizadas, [...] a gente esvazia a linguagem de suas autênticas funções”. Essa
realidade, ainda predominante em muitas escolas, tem gerado desinteresse pelas atividades de
produção textual e consequentemente, o baixo desempenho linguístico de muitos estudantes.
Para Soares (2009, p. 23 – 24) pode-se compreender “a abordagem processual da
escrita como uma sequência de estágios organizados em três momentos distintos: a préescrita, a escrita e a pós-escrita ou revisão”. Cada um deles envolve atividades específicas que
têm a finalidade de auxiliar o autor na construção do texto, levando em consideração o seu
propósito comunicativo e a receptividade do interlocutor.
Ainda sobre essa abordagem Passarelli (2012) assinala que os pesquisadores definem
o processo de escrita de diversas maneiras e, em consonância com as ideias de Geraldi (2006
[1986]) ela faz referência ao trabalho com os gêneros como uma alternativa para viabilizar o
ensino da produção de textos sob o enfoque da escrita processual. Essa concepção de escrita
encontra-se também nos PCNs, quando orientam que o aluno “analise e revise o próprio texto
em função dos objetivos estabelecidos, da intenção comunicativa e do leitor a que se destina,
redigindo tantas vezes quantas forem as versões necessárias para considerar o texto produzido
bem escrito” (BRASIL, 1998, p. 52). Dessa forma o aluno passa a ter uma posição crítica
diante do seu texto ao assumir o papel de revisor.
A partir de modelos que concordam com essa abordagem de produção textual a
pesquisadora apresenta um roteiro estruturado em quatro etapas, assim denominadas:
planejamento, tradução das palavras em ideias, revisão e reescrita, e editoração. Essas etapas
são controladas pelo que a autora chama de guardião do texto – que funciona como um
elemento de vigilância durante todo o processo da escrita (PASSARELLI, 2012), levando o
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1814
autor a refletir, tomar novas decisões, fazer alterações até dá ao texto um formato adequado
para atender a necessidade comunicativa daquele momento.
Durante o planejamento procede-se à seleção de informações que serão utilizadas no
texto. Na tradução de ideias em palavras, o escritor produz a primeira versão do texto, onde
faz o registro das ideias, tentando organizá-las. A revisão e reescrita do texto é feita a partir
de várias releituras, que dão lugar a várias versões; diferente de ‘passar a limpo’ essa etapa
requer uma postura crítica diante do texto. Por fim segue-se à editoração, etapa em que o
escritor dá o acabamento ‘final’ ao texto, que poderá ser compartilhado com outros leitores ou
encaminhado a um professor-corretor.
A escrita processual do gênero e-mail: relato de experiência
A SD organizada elaborada para trabalhar o gênero e-mail na perspectiva da escrita
processual, com ênfase no feedback colaborativo, realizou-se na Escola Estadual Aristófanes
Fernandes, localizada na cidade de Santana do Matos – RN. Constataram-se na turma única
do 8º Ano – EF, dentre outros problemas relacionados à produção textual, dificuldades na
utilização do gênero já mencionado, considerando-se os seus diferentes fins sociais, o que
gerou a necessidade de se elaborar essa proposta como forma de minimizar o problema.
A turma foi cadastrada no Sistema Integrado de Gestão da Educação (SIGEduc) com
uma matrícula inicial de 39 alunos (no início do ano letivo 2014); no momento da intervenção
(novembro de 2014) o total era de 35 alunos, com idades entre 13 e 16 anos, (exceção de
apenas dois alunos, um com 12 e outro com 17 anos); desse total, 27 residem na zona urbana
e 08, na zona rural; 33 possuem endereços eletrônicos cadastrados nestes provedores:
https://www.hotmail.com/, https://mail.google.com/mail/ e http://email.bol.uol.com.br/.
O gênero e-mail como proposta de produção textual
Os gêneros textuais são considerados recursos que auxiliam os alunos a
desenvolverem habilidades e competências de leitura e escrita, pois favorecem o
desenvolvimento da linguagem que, para Bakhtin (2011 [1992]), é formada a partir dos
diferentes gêneros. Pesquisas recentes apontam para a negligência da escola com relação ao
trabalho com a diversidade de gêneros, o que tem contribuído para acentuar nos estudantes
(de diferentes níveis de ensino) as dificuldades no uso da fala ou da escrita em situações mais
elaboradas. Essas limitações decorrem, segundo Antunes (2014), do fato de a escola não
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1815
incluir no seu currículo atividades que priorizem a língua em uso, gerando desinteresse pelas
atividades escolares.
Nessa perspectiva o e-mail apresenta-se como uma das possibilidades para a escola
trabalhar a língua em uso, visto que se trata de um gênero bastante difundido na sociedade.
Surgiu nos EUA entre 1972/3 como um serviço (eletronic mail) que resultou num gênero e
atualmente é um dos mais praticados na escrita (MARCUSCHI, 2008). É considerado um
gênero emergente em relação à carta o que se confirma nas características comuns aos dois
gêneros: o vocativo, o texto, a despedida, a assinatura e o endereço para o envio da
mensagem; a linguagem pode ser formal ou informal de acordo com o grau de intimidade
entre os interlocutores e/ou a finalidade da comunicação.
De acordo com Fernández (2012, p. 97) “El correo electrónico, en inglês e-mail
(eletronic mail), es una vesrsión digital del correo postal. Es un recurso de red (generalmente
internet) que permite a los usuarios enviar y recibir mensajes mediante sistemas de
comunicación
electrónicos”.
A
estrutura
do
e-mail
baseia-se
na
forma
[email protected], onde nome corresponde ao usuário; @ mostra que as informações
são de um endereço eletrônico; provedor indica a empresa que viabiliza o acesso à internet
(hotmail, gmail, bol, yahoo...); com representa comercial e, br, Brasil.
O e-mail atende a vários propósitos comunicativos, como convidar, notificar, solicitar,
reclamar, comprar, relatar, denunciar, dentre outros que surgem da necessidade de interação
entre as pessoas. Facilita a comunicação tornando-a rápida e eficiente, porém apresenta
algumas limitações: o envio da mensagem pode falhar se houver erro na digitação do
endereço eletrônico; a escrita e a leitura da mensagem dependem de acesso à internet; requer
uso de computadores ou similares. Abaurre (2012) assinala que a difusão das novas
tecnologias tem contribuído para a gradativa substituição das cartas escritas pelos e-mails,
embora as pessoas que não têm acesso à internet continuem escrevendo e enviando cartas
pelo correio.
Sendo assim a escola deve trabalhar com gêneros que tenham utilidade para os
estudantes, a fim de dar significado ao ato de escrever. É importante lembrar que a produção
de textos concretos, com propósitos e interlocutores definidos contribui também para motivar
os alunos a escreverem na escola. Paz (2010, p. 154) esclarece que “para executar quaisquer
tarefas de escrita, o sujeito necessita estar disposto a realizá-las voluntariamente ou a atender
demandas requeridas pelas diversas instâncias sociais, como escola, trabalho, religião, dentre
outras”.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1816
O feedback colaborativo
Dentre as etapas que compõem a escrita processual a revisão ou avaliação é essencial
para que o texto, mediante intervenção dos leitores, e várias alterações feitas pelo autor,
alcance o padrão desejado para o momento, mediante o propósito comunicativo e o
interlocutor. Em sala de aula essa tarefa pode ser realizada pelo próprio autor (autoavaliação), pelo professor ou pelos colegas que, procedem à leitura do texto em construção
com uma atitude crítica e responsiva a fim de auxiliar o escritor a melhorar as versões
posteriores.
Existem diferentes conceitos de feedback, sendo que a definição mais adequada para o
contexto pedagógico, segundo Soares (2009, p. 50), encontra-se no Dicionário MerriamWebster por se referir à “revisão parcial dos efeitos de um processo [...]; transmissão de
informação avaliativa ou corretiva sobre um evento, ou um processo, para a fonte original ou
aquela que controla esse processo”. Por ser um instrumento que orienta o estudante no
aperfeiçoamento do seu texto reveste-se de fundamental importância para a produção escrita.
A ênfase nesta proposta é para o feedback colaborativo ou revisão colaborativa Soares
(2009) também chamado de avaliação horizontal (Oliveira 2010). Esse tipo de feedback
caracteriza-se como uma ação interventiva entre os colegas durante a etapa de revisão textual
com a finalidade de dar aos estudantes a oportunidade de assumirem um papel mais ativo
diante das atividades de escrita, tornando-se leitores críticos
dos seus próprios textos,
diminuindo o grau de dependência dos professores nas tarefas de revisão textual.
Descrição das atividades
Para a realização desta proposta adotou-se como estratégia metodológica uma SD
conforme o modelo apresentado por Dolz; Noverraz; Schneuwly (2004) organizada em três
módulos. O objetivo geral da proposta foi estudar o gênero e-mail na perspectiva da escrita
processual, utilizando o feedback colaborativo. Para a consecução desse objetivo mais amplo
foram traçados os seguintes objetivos específicos:
 Conversar sobre o gênero e-mail, fazendo um levantamento dos conhecimentos
prévios, dificuldades, expectativas e outros aspectos.
 Identificar as características e função social do gênero em estudo.
 Produzir um e-mail, em situação concreta de uso, considerando as etapas da escrita
como processo.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1817
 Utilizar o feedback colaborativo como forma de reforçar a interação entre os
estudantes e aperfeiçoar a versão final do texto.
O quadro a seguir apresenta uma síntese da SD desenvolvida no decorrer de dez aulas
de cinquenta minutos, composta de três módulos, subdivididos em momentos distintos que
aconteceram em espaços diferentes (sala de aula, sala de multimeios e laboratório de
informática) de acordo com a seleção dos recursos didáticos necessários para facilitar a
realização das atividades propostas.
Módulo 1
1º momento
Sala de aula
2º momento
Sala de multimeios
3º momento
Laboratório de
informática
Módulo 2
1º momento
Planejamento
(Sala de aula)
2º momento
Tradução das ideias
(Sala de aula)
3º momento
Revisão
(Biblioteca)
4º momento
Editoração
(Lab. de Informática)
Módulo 3
Quadro 1 - Descrição da Sequência Didática
O gênero textual e-mail e suas funções sociais
Levantamento dos conhecimentos prévios dos alunos por meio de
conversa e aplicação de um questionário sobre o uso do e-mail.
 Conversa com os alunos sobre a relação entre os
gêneros textuais carta e e-mail; requisitos necessários
para o envio da carta e do e-mail.
 Exposição, em slides, de uma síntese das principais
informações: identificação, caracterização e funções
sociais do gênero e-mail.
 Apresentação do gênero e-mail em situação concreta de
uso, seguindo-se às orientações sobre a produção desse
gênero textual.
 Tempo livre para os alunos acessarem seus e-mails,
orientados pela professora.
 Orientação para a produção do e-mail na perspectiva da
escrita processual (PASSARELLI, 2014) e explicação
do material sugerido por Soares (2009) adaptado de
Hyland (2003) sobre o feedback colaborativo.
Produzindo e-mail na perspectiva da escrita processual
Conforme as orientações dadas no módulo anterior os alunos
(individualmente) iniciaram a etapa de planejamento do e-mail cuja
finalidade era solicitar que a professora adiasse o ensaio de uma peça
teatral, justificando o motivo da inconveniência da data marcada.
Após entenderem o propósito do texto, os alunos passaram a
registrar, (individualmente) em seus cadernos, as ideias que lhes
ocorreram por ocasião do planejamento.
Após a orientação da professora os alunos se organizaram em duplas
e iniciaram as leituras, seguidas de comentários e sugestões, à medida
que percebiam aspectos a serem melhorados nos textos (conforme
roteiro adaptado pela professora para auxiliá-los nessa tarefa; se
necessário também poderiam utilizar dicionários).
Em duplas, os alunos (um por vez) acessaram seus e-mails,
preencheram as informações como endereço eletrônico e assunto em
suas respectivas caixas e digitaram o texto na janela de mensagem
principal. Conforme o feedback dado pelo colega, o autor do e-mail
fez as alterações sugeridas e foi orientado a proceder com a leitura
crítica do texto, antes de clicar no botão enviar.
Avaliando o Feedback Colaborativo
Na aula seguinte, após o envio da versão digital do e-mail, procedeuse à avaliação em forma de conversa com os alunos sobre a escrita
Nas fronteiras da linguagem ǀ
Avaliação
(Sala de Aula)
1818
processual considerando estes questionamentos motivadores:
O que acharam sobre a escrita seguindo essas etapas?
Em qual dessas etapas tiveram mais dificuldades?
O feedback do colega ajudou a melhorar o texto?
O que acharam da experiência de revisar o próprio texto?
Resultados e discussões
No primeiro módulo da SD a troca de experiências sobre o gênero textual em estudo,
foi um momento produtivo em virtude da participação dos alunos durante as discussões, o que
permitiu a percepção de suas potencialidades e limitações quanto ao uso do e-mail. O
questionário aplicado revelou que todos os alunos acham necessário possuir um e-mail pelos
seguintes motivos: acessar as redes sociais, interagir com amigos e familiares, realizar
compras online, e fazer cadastro no SIGEduc. A maioria dos alunos usava o e-mail apenas
para fazer login no facebook, e por isso não sabia utilizá-lo em outras situações.
O uso do gênero em situação concreta gerou muitas dúvidas que foram esclarecidas
pelos colegas mais habilidosos no uso do e-mail e também pela professora. Muitos alunos
não conseguiram acessar seus e-mails, por não lembrarem as senhas; alguns o fizeram, porém
sentiram dificuldades de explorar os diferentes campos e recursos disponíveis, verificar as
mensagens na caixa de entrada, spam, etc.; não conseguiram realizar tarefas como preencher
as informações necessárias para enviar o e-mail, escrever o texto no campo específico ou
anexar um arquivo.
Na realização das oficinas do segundo módulo percebeu-se o estranhamento dos
alunos em relação às etapas que deveriam seguir na produção do texto (planejamento,
tradução de ideias, revisão e editoração), por não estarem familiarizados com essa concepção
de escrita. A princípio não queriam seguir essas etapas, sob a justificativa de ser algo
desnecessário, perda de tempo, etc., sendo necessária uma intervenção da pesquisadora para
mostrar a importância dessa sequência. Assim, os alunos aceitaram o desafio e iniciaram a
produção textual.
Percebeu-se que, nas etapas de planejamento e tradução de ideias, as dificuldades dos
alunos referiam-se ao modo de colocar as ideias no papel e organizá-las. Surgiram vários
questionamentos, sobre a organização das ideias, forma de tratamento, uso de abreviaturas. Já
na etapa de revisão eles afirmaram não ter competência para revisar o texto do colega, temiam
cometer erros e, ainda enfatizaram que a correção das atividades era tarefa do professor.
Estabeleceu-se um diálogo com os alunos a fim de encorajá-los a realizarem a revisão e
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1819
quando perceberem que essa responsabilidade também cabia a eles prosseguiram com as
leituras dos textos e troca de ideias.
Constatou-se também que fazer a leitura crítica do texto e dar um feedback ao colega,
foi mais um desafio para a turma. Os alunos conseguiram identificar, segundo Soares (2009):
erros ortográficos, atos falhos e erros de acentuação. Poucos alunos concentraram seus
comentários em aspectos mais relevantes como clareza das ideias, por exemplo. Os alunos
que deram o feedback escrito fizeram o que a autora identifica como correção direta, mais
preocupada com os aspectos formais (SOARES, 2009).
Apesar das limitações já comentadas pode-se afirmar que o feedback do colega
contribuiu, ainda que de maneira tímida, para o aperfeiçoamento da versão ‘final’ do e-mail.
Vários alunos apresentaram alterações na versão final, como o Aluno 5 que não colocou o
vocativo na primeira versão, mas na versão digital ele fez essa alteração, conforme sugerido
pelo colega, como se vê neste fragmento do e-mail.
A5: “Bom Dia, Professora!”
“Venho comunicar que não poderei comparecer ao ensaio da peça”.
Outro aspecto positivo refere-se à mudança de atitude da maioria dos alunos,
constatada pela demonstração de interesse pela atividade, embora só no final do processo de
produção do e-mail. Os estudantes perceberam os benefícios da escrita processual após
compreenderem que a primeira versão de um texto não está pronta para ser avaliada com a
finalidade de atribuição de notas ou conceitos.
Quanto à concepção de escrita, observou-se que muitos alunos consideram a escrita
escolar uma tarefa difícil, em decorrência do medo que têm de cometerem erros, como afirma
o Aluno 1 no e-mail enviado à professora em resposta à pergunta: “Escrever na escola é fácil
ou difícil?” após uma conversa informal na sala sobre o que achavam do ato de escrever.
A1: “Difícil pelo fato de ter medo de erra alguma coisa.”
A justificativa mais recorrente para as respostas dos alunos que consideram a escrita
uma atividade difícil relaciona-se ao medo de cometer ‘erros’ que, na concepção deles,
referem-se aos aspectos ortográficos à pontuação e acentuação gráfica, principalmente. Por
outro lado, poucos estudantes afirmaram que escrever é um trabalho fácil, e para eles essa
facilidade decorre da prática constante da leitura, como se constata na fala do Aluno 5:
A5: “Para Mim É Fácil, Pois Leio Muitos Livros, e isso Facilita!”
Quanto à avaliação que a turma fez da prática da escrita processual, os alunos
assumiram posicionamentos diferentes: uns afirmaram que no início viram como perda de
tempo seguir todas as etapas, reescrever o texto, mas no final perceberam que isso era
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1820
necessário; alguns consideraram a proposta interessante, mas frisaram que essa prática pode
comprometer os outros conteúdos, pois requer mais tempo; outros assentiram ser muito
interessante para o desenvolvimento da escrita.
Com relação ao feedback colaborativo a maioria da turma enfatizou que inicialmente
achou muito estranho: entenderam como uma transferência de responsabilidade da professora
para eles; grande parte da turma achou válido esse trabalho, afirmando que as sugestões do
colega ajudaram, porém a revisão do texto sem a participação do professor não era confiável;
por outro lado, alguns afirmaram que aprenderam bastante na troca de ideias, pois os colegas
conseguiram perceber erros que eles haviam cometido e isso ajudou a melhorar a versão final
do e-mail; houve também aqueles alunos que permaneceram com a posição inicial de que
revisar o texto cabe exclusivamente ao professor.
Considerações finais
Percebe-se que a predominância do caráter formal e mecânico que caracteriza a
(re)produção escrita na escola, tem contribuído para desmotivar o aluno a escrever, em virtude
da ausência de um propósito comunicativo concreto, levando-o a conceber a escrita como
uma atividade sem significado. No âmbito escolar a escrita não deve se limitar a uma prática
desvinculada das demais atividades de linguagem vivenciadas pelos alunos em suas interações
sociais diárias.
Os depoimentos dos alunos sobre a concepção que têm da escrita mostram que o medo
de cometerem erros é um dos motivos que os leva a não gostarem de escrever na escola. A
preocupação deles concentra-se nos aspectos linguísticos, principalmente os ‘erros’
ortográficos e ‘erros’ de pontuação.
Essas evidências comprovam a necessidade de os professores adotarem a prática da
escrita processual desde os primeiros anos de ensino, encorajando os alunos a serem leitores
críticos de suas produções textuais, ainda que os resultados desse trabalho não sejam
percebidos de imediato; como toda mudança demanda tempo, mudar um paradigma há muito
adotado nas escolas é uma tarefa de longo prazo, visto que requer uma base teórica que
sustente essa prática e muita perseverança.
Referências
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produções escritas: analisar, avaliar, comentar. São Paulo: Moderna, 2012.
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São Paulo: Martins Fontes, 2011[1992].
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quarto ciclos do Ensino Fundamental: Língua Portuguesa/Secretaria de Educação
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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. 3 ed. São
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digitais: novas formas de construção de sentido. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2010.
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ROJO, Roxane; CORDEIRO, Glaís Sales. IN: SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim.
Gêneros orais e escritos na escola. (Trad.) Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas,
São Paulo: Mercado das Letras, 2004.
SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. (Trad.)
Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas, São Paulo: Mercado das Letras, 2004.
SOARES, Doris de Almeida. Produção e revisão textual: um guia para professores de
português e de línguas estrangeiras. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1822
SEQUÊNCIA DIDÁTICA POR GÊNEROS TEXTUAIS: UMA
PROPOSTA PARA O LETRAMENTO
[Voltar para Sumário]
Maria Aparecida Barbosa da Silva (UFPE)
Erivaldo José da Silva (UFPE)
1. Introdução
Frente às tentativas, muitas vezes, mal sucedidas do fazer pedagógico em salas de aula
da educação básica, o professor encontra dificuldades e desestímulo. Isso ocorre,
provavelmente, por dois motivos. Primeiro porque não encontramos relatos docente que
confessem a facilidade de acesso à referencial teórico que trate do tema aqui desenvolvido, a
saber: Sequência Didática (doravante SD) como proposta de ensino e aprendizagem ancorada
em gêneros textuais/discursivos; segundo porque, a despeito do pouco investimento na
educação como um todo, o próprio professor ainda se mantém, em boa parte de sua vida
profissional, numa inércia investigativa nociva a sua prática docente.
Quer por um motivo, quer por outro, o fato é que não se pode mais relegar ao acaso o
sucesso da relação professor-aluno em sala de aula. É preciso, urgentemente, acordar para
uma atividade de trabalho que desinstale ambos (docente e discente) de seus lugares quase
improdutivos no que toca à proposta dos documentos oficias da educação em língua materna.
Nesses documentos, a exemplo dos PCN (1998), há a sugestão, em linhas gerais, da formação
de um sujeito crítico e consciente de seus direitos e deveres, sabendo lidar com a
complexidade de circunstâncias sociais que lhe atravessam diariamente.
Nesse contexto, a intenção deste artigo se desvela em oferecer uma proposta de
trabalho em sala de aula, que não contemple a necessidade isolada do aluno em aprender um
dos quatro eixos de ensino, mas sim que englobe, ao mesmo tempo e sistematicamente,
leitura, oralidade, produção textual e análise linguística. Por isso, não teria como sugerir tais
procedimentos sem falar em letramento, aqui visto como processo norteador de inserção do
aluno nas variadas práticas de leitura e escrita.
Nas palavras de Rojo (2008, p. 586), a necessidade está em trabalhar os letramentos
críticos e protagonistas (ênfase da autora). E, nesse cenário, entendemos se enquadrar bem os
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1823
gêneros aqui sugeridos para a SD (música, filme e entrevista) dentro da temática do
preconceito racial. Ainda para a mesma autora (2008, p. 581)a perspectiva também é a de
letramentos múltiplos e situados(ênfase acrescida). Assim, acreditamos que a proposta da SD
enaltece o trabalho com gêneros textuais, ao mesmo tempo em que devolve o sentido da
atividade escolar, já em alguns casos esquecidos.
O corpus desta pesquisa se constitui de três exemplares de gêneros como já
mencionado e podem ser todos consultados em links na internet, o que facilita o acesso para o
aluno. Tais gêneros foram elegidos por conta de seu potencial discursivo-argumentativo,
considerando-se a temática aludida. E, embora sejam sugeridos pelo professor para as
atividades, nada deve obstar os alunos, no decorrer do processo, de apontar outros gêneros de
mesma natureza discursiva.
Esta pesquisa mostra-se relevante para todos os profissionais de letras e professores de
língua materna, considerando-se que contribui para a divulgação de um projeto de aula não
tradicional nem preso a receios do fazer docente. O desafio enfrentado aqui é do aluno porque
não deve mais se prender a meros exercícios enfadonhos, que não ultrapassam a
metalinguagem da língua, mas também é – ainda mais- do professor porque se deve
compreender sujeito inspirador do desbravamento de novas práticas.
2. Práticas docente para o letramento
O ensino da leitura e da escrita de textos na escola ainda são desafios para a prática do
professor de língua portuguesa, tendo em vista ainda a ausência de bons materiais didáticos;
conforme Lopes-Rossi (2011) “há uma escassez de caracterizações de gêneros discursivos
aplicáveis ao ensino”. Nesse contexto, entendemos que o trabalho com SD, na escola, oferece
subsídios ao docente para superar obstáculos no que se refere ao processo de ensino e
aprendizagem.
Apresentamos, nesse trabalho, uma sequência de atividades baseada na proposta de
Schneuwly, Dolz et al. (2004). Para os referidos autores, “uma sequência didática é um
conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero
textual oral ou escrito” (2004, p. 82). Essas atividades devem ser trabalhadas na escola,
através da mediação do professor.
O professor em sua prática deve proporcionar atividades prazerosas. A leitura, por
exemplo, só deve acontecer por prazer (Solé, 1998). Ainda sobre isso, os PCN de língua
portuguesa alerta que “quanto à metodologia, o professor deve se preocupar não só com a
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1824
diversidade tipológica, mas também com a seleção de procedimentos de leitura em função dos
objetivos e interesses dos sujeitos e das características do gênero” (1998, p.70).
A organização das atividades em SD tem o objetivo de oportunizar aos alunos práticas
de linguagens tipificadas, ou seja, de ajudá-los a dominar os diversos gêneros textuais que
circulam em sociedade, preparando-os para usar a língua nas mais variadas situações sociais e
oferecendo-lhes instrumentos eficazes para melhorar suas capacidades de leitura e escrita
(Dolz, Noverraz e Schneuwly, 2004).
Para Lopes-Rossi (2011), a atividade de leitura associada aos gêneros “contribui para a
formação de um cidadão crítico e participativo na sociedade”. Soares (2006) destaca que a
leitura, como competência do letramento, não se opõe à escrita e suas habilidades se
complementam. Afirma a autora que tanto o ato de ler quanto o ato de escrever apresentam
habilidades lingüísticas e psicológicas, cognitivas e metacognitivas.
Estratégias de leitura são operações regulares usadas para abordar o texto de forma
consciente e inconsciente. Ela delimita as estratégias de leitura em cognitivas e
metacognitivas (Solé, 1998; Kleiman, 2004). Para kleiman, nas estratégias metacognitivas, o
leitor determina de forma consciente um objetivo para a leitura e avalia constantemente a
compreensão. Com esse controle, o leitor saberá dizer para que está lendo e o que não está
entendendo. As estratégias cognitivas, ao contrário, se dão quando os procedimentos usados
para atingir algum objetivo de leitura são usados inconscientemente pelo leitor.
A maioria das práticas escolares de leitura ainda são puramente mecânicas, ou seja,
são atividades de decifração do código linguístico escrito. Ler é compreender
verdadeiramente; sem compreensão, não há leitura. “Compreender um texto é ter acesso a
uma das leituras que ele permite, é buscar um dos sentidos possíveis oferecido por ele,
determinado pela bagagem sociocultural que o leitor traz consigo”. (DELL’ISOLA, 2001,
p.36). Seja por via da leitura, ou seja pelo contato com as experiências sociais, entendemos
que a interação se faz necessária para uma compreensão profícua.
Solé (1998) afirma que as estratégias de leitura não devem ser trabalhadas na escola
como técnicas precisas, receitas infalíveis ou habilidades específicas. O que caracteriza a
mentalidade estratégica é a capacidade de representar e analisar os problemas e a flexibilidade
para encontrar soluções. Em outras palavras as estratégias surgem de objetivos planejados em
nosso processamento cognitivo, os quais são acompanhados por um plano de ações a fim de
atingi-los. Durante a leitura, os objetivos são avaliados e sujeitos a mudanças, caso o sentido
do texto não seja construído.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1825
Sobre as estratégias, Solé (1998, p.89) nos apresenta um conjunto delas para serem
realizadas antes, durante e após a leitura. Elas são processadas e construídas em conjunto,
dentro de uma prática guiada pelo professor, o qual oferece andaimes necessários para que os
alunos possam utilizá-las e dominá-las progressivamente.
Para antes da leitura Solé apresenta seis estratégias: ideias gerais; motivação para a
leitura; objetivos da leitura; revisão e atualização do conhecimento prévio; estabelecimento de
previsões sobre o texto e formulação de perguntas sobre ele. Para a autora é durante a leitura
que o leitor mais compreende e se esforça. Com relação a esse processo, a estudiosa apresenta
três estratégias – tarefas de leitura compartilhada, leitura independente, erros e lacunas de
compreensão –, as quais, segundo ela, servem para construir uma possível interpretação do
texto e para resolver problemas que surgem no seu decorrer. Ainda indica três estratégias a
serem ativadas após a leitura: identificação da ideia principal, elaboração de resumo e
formular e responder perguntas. Diante disso, podemos garantir que não há outro lugar melhor
do que a escola, que nos garante uma educação sistemática, para desenvolver as estratégias
descritas acima.
3. Metodologia
Neste estudo, a sequência por nós apresentada foi desenvolvida em torno do tema
Preconceito Racial. Tal sequência pode ser aplicada em uma turma do 9º ano, por apresentar
relevância na formação dos alunos que, neste período escolar, já devem contar com um
potencial crítico e argumentativo sobre os temas da vida em que se veem inseridos.
É possível desenvolver a sequência em torno de algumas estratégias de leitura
considerando as dificuldades de compreensão leitora apresentadas pelos alunos nessa
escolaridade. Acreditamos que a SD associada às diversas estratégias e aos gêneros textuais
se constitui em um conjunto de instrumentos facilitadores do processo ensino e aprendizagem
e na formação de um leitor proficiente, que domine as principais habilidades e competências
de compreensão leitora e as práticas do letramento. Nesse contexto, trabalhar SD por meio de
gêneros nos remete a prática do letramento escolar (Bagno, 2002).
Assim, nosso foco é aprimorar as competências de leitura, de oralidade, de compreensão
e de escrita de textos a fim de despertar nos alunos maior prazer por esses exercícios
sociocognitivos-discursivos, dinamicamente situados, a partir dos gêneros, sobretudo
argumentativos, praticando-os como atividade dialógica e social. Para tanto, nossos objetivos
diante desta proposta é instigar o aluno a:
Nas fronteiras da linguagem ǀ
I-
1826
Dominar as principais habilidades e competências de compreensão leitora através de
estratégias;
II-
Compreender o texto não só em sua revelação linguístico-sintática, mas ainda em
suas entrelinhas inferenciais;
III- Utilizar bem a escrita nas situações concretas de uso.
Frente a SD pensada, planejamos as atividades para serem desenvolvidas por etapas
distribuídas em 06 horas-aula, através da mediação do professor. Para cada etapa, formulamos
objetivos para melhor direcionar nosso trabalho. Acreditamos que essas atividades
desenvolvem as principais competências e habilidades de letramento nos mais diversos
contextos de uso dos textos.
Segundo os PCN, a proposta de ensino de língua portuguesa deve se efetivar a partir das
práticas de leitura e produção de texto. Isso significa que o texto é o eixo norteador do
processo de ensino e aprendizagem.
Assim, ao tomarmos os gêneros textuais como
instrumentos para a SD apresentada, estamos atendendo às orientações dos Parâmetros
Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, os quais nos afirmam que
a unidade básica do ensino só pode ser o texto. Os textos organizam-se sempre
dentro de certas restrições de natureza temática, composicional e estilística, que os
caracterizam como pertencentes a este ou aquele gênero. Desse modo, a noção de
gênero, constitutiva do texto, precisa ser tomada como objeto de ensino. (PCN
1998, p.70).
A SD planejada inclui conteúdos a serem trabalhados a partir de procedimentos em sala
de aula por meio de leitura deleite, filme, leitura e compreensão de textos impressos, estudo
do gênero textual entrevista, produção oral e escrita a partir de debates sobre os textos
trabalhados e reflexão acerca da análise lingüística.
Para as atividades serem processadas é interessante que se tenha o mínimo de acesso a
alguns recursos didáticos e tecnológicos como aparelho de som, TV, DVD, lousa e textos
xerocados. Vejamos agora a SD propriamente.
4. Esquema da Sequência Didática
4.1 Apresentação da situação de comunicação
Objetivos:
 Ler por prazer e refletir sobre o preconceito racial.
 Estabelecer o primeiro contato com o tema através do gênero letra de música –
“Racismo é burrice” (Gabriel, o Pensador) e do Filme: Homem de Honra.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1827
Estrat Estratégia Proposta: Traçar objetivos para a leitura
Procedimentos:
i-Entregar aos alunos o texto impresso (Racismo é burrice).
ii- Escutar a música atenciosamente.
iii-Apresentar a proposta e os procedimentos da sequência aos alunos. (É
fundamental que o aluno saiba por que vai ler, como vai ler e para que vai ler.
Responder a essas perguntas pode aumentar a motivação do leitor sobre o
material a ser lido.).
iv- Assistir a recortes do filme mas diretamente relacionado ao tema.
v- Refletir e discutir o filme.
Recursos: Aparelho de som, TV e DVD.
Tempo previsto: 2 horas-aula
Sinopse do Filme Homem de Honra
Carl Brashear (Cuba Gooding Jr.) veio de uma humilde família negra, que vivia em
uma área rural em Sonora, Kentucky. Ainda garoto, no início dos anos 40, já adorava
mergulhar, sendo que quando jovem se alistou na Marinha esperando se tornar um
mergulhador. Inicialmente Carl trabalha como cozinheiro que era uma das poucas
tarefas permitidas a um negro na época. Quando resolve mergulhar no mar em uma
sexta-feira acaba sendo preso, pois os negros só podiam nadar na terça-feira, mas sua
rapidez ao nadar é vista por todos e assim se torna um "nadador de resgate", por
iniciativa do capitão Pullman (Powers Boothe). Quando Brashear solicita a escola de
mergulhadores encontra o comandante Billy Sunday (Robert De Niro), um instrutor de
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1828
mergulho áspero e tirânico que tem absoluto poder sobre suas decisões. No princípio
Sunday faz muito pouco para encorajar as ambições de Brashear e o aspirante a
mergulhador descobre que o racismo no exército é um fato quando os outros aspirantes
brancos - exceto Snowhill (Michael Rapaport), que por isto foi perseguido por Sunday
- se negam a compartilhar um alojamento com um negro. Mas a coragem e
determinação de Brashear impressionam Sunday e os dois se tornam amigos quando
Brashear tem de lutar contra o preconceito e a burocracia militar, que quer acabar com
seus sonhos de se tornar comandante e reformá-lo.
Título Original: Men of Honor; País de Origem: EUA; Gênero: Drama; Duração: 128 Minutos; Ano de Lançamento: 2000
4.2Aprofundando a compreensão do tema
Objetivos:
 Instigar os conhecimentos prévios do leitor.
 Refletir sobre o que está lendo, antecipando sentidos, levantando hipóteses e
previsões, permitindo durante a leitura confirmá-los ou não.
 Inferir sentidos a partir do texto, relacionando as informações implícitas ao
conhecimento de mundo.
Estratégias Propostas: Ativar os conhecimentos prévios
Antecipar sentidos no texto
Procedimentos:
i-Apresentar aos alunos o gênero textual entrevista “Uma guerreira contra o racismo”
(Sueli Carneiro) e questioná-los oralmente sobre o título e o gênero textual: o que
vocês entendem por esse título? O que é ser uma guerreira? Vocês conhecem alguma?
Quem será esta guerreira que está contra o racismo? será que ela é uma mulher
branca? Ou será que é negra? E vocês, são contra ou a favor do racismo?
ii- Estabelecer relações entre os conhecimentos do leitor com os do texto e do autor
através da estrutura do gênero (função social e contexto de circulação): o texto que
vamos ler é uma entrevista. Vocês sabem o que é uma entrevista? Lembram de
alguma? Onde? Já foram entrevistados alguma vez? Após o diálogo, considerando as
provocações propostas, o professor pode explicar mais sistematicamente, o que é uma
entrevista.
iii- Gerar hipóteses pessoais, refletir constantemente sobre o que está lendo e constatar
as previsões feitas antes: o texto confirmou nossas hipóteses sobre “Uma Guerreira
Contra o Racismo”? Comente. O preconceito racial descrito no texto é como
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1829
pensávamos? O que é diferente?
iv- Ativar o leitor a construir o(s) sentido(s) do texto mediante a fusão dos
conhecimentos textuais e de mundo: Quem são as classes mais privilegiadas a que o
texto faz referência? No texto o negro escravo era tratado como objeto de trabalho
humano. Quais as consequências para os negros de hoje? No final do texto Sueli
Carneiro faz um comentário: “Do ponto de vista histórico é um fato muito recente,
uma experiência que para cicatrizar ainda leva muito tempo” De qual fato e de qual
experiência a entrevistada está falando?
Recursos: cópias xerocadas da entrevista.
Tempo previsto: 2 horas- aula
4.3Atividades de produção e análise linguística
Objetivos:
 Produzir um texto dissertativo-argumentativo em norma padrão da língua
portuguesa sobre o tema Preconceito racial, atentando para o uso de expressões
lingüísticas adequadas ao tema.
Estratégias Propostas:
Produzir um texto sobre a temática a partir dos conhecimentos
adquiridos nas sequências didáticas anteriores.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1830
Identificar a ideia principal e a intencionalidade da entrevistada
no uso de alguns termos linguísticos.
iii-
Procedimentos:
i - Após redigir o texto, propor que os estudantes troquem entre si as produções textuais
e sinalizem no texto dos colegas algumas incoerências sintático-semânticas;
ii- Mediar a reescrita dos textos dos alunos;
iii-Priorizar, na produção escrita, o uso consciente dos elementos lingüísticos
argumentativos para alcançar a coerência temática;
iv se necessário, realizar a segunda reescrita dos textos
Recursos: folha de papel padronizada para a produção textual, uso de dicionário
e caneta esferográfica azul ou preta.
Tempo previsto: 2 horas-aula
5. Considerações finais
A proposta busca atender ao desenvolvimento das práticas de letramento em sala de
aula, bem como contribuir para o processo de ensino e aprendizagem voltado à concepção de
língua em uma perspectiva sócio-dialógica, ao contemplar os elementos constituintes dos
gêneros textuais, assim como suas intencionalidades e propósitos discursivos, muitas vezes,
não explícitos em sua superfície.
O trabalho com gêneros implica a fusão dos conhecimentos advindos dos eixos de
ensino da língua materna e, por isso, mostra-se de grande relevância. Ao abordar na sala de
aula o gênero associado ao seu conteúdo temático, sua composição, função social e contexto
de circulação, o docente, em sua prática, favorece através desses elementos, subsídios para a
formação de um leitor proficiente que constrói sentido(s) e compreende a função do texto em
seu processo sócio-histórico.
Dessa forma, as atividades pedagógicas se realizadas visando à realidade dos alunos,
da comunidade escolar e do próprio professor, com base nos gêneros e nos documentos
norteadores da educação, provavelmente, serão tidas como atividades necessárias e
inspiradoras para outros conhecimentos.
Referências
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Editorial, 2002, p. 54-58.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino
Fundamental – Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.
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P. A produção da leitura. Belo Horizonte: Formato Editorial, 2001, pp. 25-40.
DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michele; SCHNEUWLY, Bernard. Seqüências didáticas para
o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ,
Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução de Roxane Rojo e Glaís Sales
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KLEIMAN, Angela. Oficina de leitura: teoria e prática. 10. ed. Campinas, SP: Pontes, 2004.
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de textos. In: Gêneros textuais: reflexões e ensino. KARWOSKI, Acir Mário, GAYDECZKZ,
Beatriz, BRITO, Karim Siebeneicher. (org.) 4 ed. São Paulo, Parábola Editorial, 2011, p. 6973.
ROJO, Roxane. Letramento múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo, Parábola Editorial,
2009, p.27-39.
_______.O letramento escolar e os textos da divulgação científica: a apropriação dos gêneros
do discurso na escola. Linguagem em (dis)curso, 2008,Dez. v.8,n° 3,p.581-612. Disponível
em:http://www.academia.edu/1494672/o_letramento_escolar_e_os_textos_da_divulgacao_cie
ntifica_-_a_apropriacao_dos_generos_de_discurso_na_escola. Acesso em: 04/05/2015.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6ª ed. Porto Alegre: ArtMed, 1998.
SOARES, Magda. Letramento: Um Tema em Três Gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
SUELI Carneiro: uma guerreira contra o racismo (Entrevista Explosiva). Caros Amigos. São
Paulo, ano III, n. 35, p. 24-29, fev. 2000.
http://www.filmesonlinegratis.net/assistir-homens-de-honra-dublado-online.html
http://gabriel-o-pensador.letras.kboing.com.br/letra/letra/320955/racismo-e-burrice/
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SOLIDÃO E DESAMPARO EM OS CUS DE JUDAS DE
ANTÓNIO LOBO ANTUNES
[Voltar para Sumário]
Maria Aparecida da Costa (UERN)
José Juvêncio Neto de Souza (UERN)
Introdução
O escritor português António Lobo Antunes tem como marca em seus romances o
resgate da memória como fio condutor da narrativa. É como se o escritor planejasse recuperar
ou resgatar um tempo perdido a partir do processo mnemônico. Observamos essa estratégia já
em seu livro de estreia, Memória de elefante (1979), referência direta ao ditado popular que
indica quem tem boa memória fazendo uma comparação com a memória do elefante. No
entanto, a memória resgatada nos textos de Antunes é cheia de espaços vagos, nunca contida
em sua completude, podemos ainda entender a memória em Antunes como tática narrativa.
Conforme afirma, Felipe Cammaert, a narrativa de António Lobo Antunes, fala de uma
“escrita da memória”, para ele “a memória constitui um dos pilares do universo antuniano
[...]” (2011, p. 300), compreendemos, pois, que a memória se apresenta como eixo central na
obra desse escritor, como uma espécie de catarse, elemento perceptível no romance Os cus de
judas - Obra que realça a fragmentação europeia do século XX, bem como apresenta uma
fragmentação do sujeito português e os efeitos negativos da guerra colonial sobre esse sujeito.
Conforme postula Miguel Real, os escritores contemporâneos portugueses trazem em
sua narrativa um “modo de satisfação de uma pulsão íntima do autor” (2012, p.186), isso
implica compreender que mesmo o escritor narrando uma situação particular de seu país ou de
alguma questão histórica, como Lobo Antunes faz em Os cus de judas, vale registrar que o
romance contemporâneo extrapola o engajamento social e revela um sujeito complexo e que
tenta uma espécie de resolução de suas questões íntimas, a partir de um debate sobre uma
questão real. Isto é, a necessidade de escrita vai além da necessidade de um dever histórico,
como se o ato de escrever livrasse, de alguma maneira, o escritor de sua solidão de alma.
Os cus de judas, romance de nome inusitado, de António Lobo Antunes, faz
referência a uma expressão popular na língua portuguesa, que alude a lugares ermos e longes,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1833
no caso específico da obra em debate, faz menção a cidades ou lugarejos situados em Angola,
onde o médico militar, personagem central do romance, vai para combate. O romance em foco
está dentro de um conjunto de obras de António Lobo Antunes que Ana Paula Arnaut (2012)
definiu, a partir de entrevistas concedidas pelo escritor, como ciclo da “Aprendizagem”.
Nesse ciclo, segundo a estudiosa, são contemplados os romances com temática
autobiográfica, destacando as questões familiares, bem como a relação direta do autor com a
guerra.
Os cus de judas narra a história de um homem que tenta, a partir da memória, e de sua
via-sacra solitária, resgatar ou compreender seu passado e se situar no presente, numa busca
por si mesmo e por seu espaço/lugar no seu país, ou especificamente na cidade de Lisboa após
voltar da guerra. Percorrendo um caminho solitário, esse sujeito é levado à angústia do
desamparo e da descrença no mundo e nas pessoas, principalmente as pessoas de sua família,
que o empurraram para o inferno da guerra, destruindo sua vida e sua ilusão com a
humanidade. O romance é narrado em primeira pessoa pela personagem principal que é um
médico militar revivendo suas experiências, tendo como pano de fundo a guerra colonial em
Angola. A narrativa foca as memórias do médico em três momentos de sua vida: a infância; o
tempo em que permaneceu na guerra; e o retorno a Lisboa. Desse modo, percebemos
fragmentos da infância como lugar de felicidade, passando pela transformação de adolescente
a homem, bem como sua passagem pela barbárie da guerra pela independência de Angola; até
sua volta ao país natal, lugar que não sente mais como seu: “Lisboa principiou a afastar-se de
mim num turbilhão cada vez mais atenuado de marchas marciais em cujos acordes
rodopiavam os rostos trágicos e imóveis da despedida, que a lembrança paralisa nas atitudes
do espanto”. (ANTUNES, 2010, p. 18)
Composto por um texto fragmentado, o romance de Lobo Antunes não permite uma
incursão suave pelas suas trilhas, pelo contrário, o fragmentado do texto exige um esforço
maior do leitor avisado e muita coragem ao leitor desavisado. Nos cenários da guerra a
personagem a todo tempo se sente solitária e encerrada em uma situação de horror,
inquietação, luta pela sobrevivência bem como luta com seus fantasmas internos, além de uma
constante convivência com o medo. Seus primeiros dias nos chiumes, como eram chamados
os pequenos acampamentos espalhados nos locais ermos de Angola, denominados como “cus
de judas do leste”, o narrador depara com a solidão e desamparo, aflorados e corporizados de
maneira complexa, ligados às batalhas, às condições precárias de alojamento e,
principalmente, à perdas decorrentes da guerra. O medo da morte que rondava era constante, a
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1834
cada pessoa que morria naquela luta inglória fazia com que o narrador se conscientizasse de
que ele poderia ser o próximo:
[...] grandes caixões repletos de féretros ocupavam uma parte do porão, e o jogo um
pouco macabro, consistia em tentar adivinhar, observando os rostos dos outros e o
nosso próprio, os seus habitantes futuros de perfil póstumo, que a nossa fantasia do
desaparecimento dela dignificava. [...] No fundo, claro, é a nossa própria morte que
tememos na vivência da alheia e é em face dela e por ela que nos tornamos
submissamente cobardes. (ANTUNES, 2000, p. 24)
Éramos peixes, percebe, peixes mudos em aquários de pano e de metal,
simultaneamente ferozes e mansos, treinados para morrer sem protestos, para nos
entendermos sem protestos, nos caixões da tropa, nos fecharem a maçarico lá dentro,
nos cobrirem com a bandeira nacional e nos reenviarem para a Europa no porão dos
navios, de medalha de identificação na boca com o intuito de nos impedir a
veleidade de um berro de revolta. (ANTUNES, 2010, p. 99)
O médico escapa da morte na guerra, no entanto, não deixa de ser sua vítima, pois
embora saia sem mutilações físicas, fica para sempre com lembranças e tormentos
psicológicos provocados pelos acontecimentos em terras africanas. A busca da memória serve
ao narrador de consolo de um tempo feliz. Isso pode ser percebido quando ele reconstrói a
partir de fios trazidos do passado sua infância como lugar venturoso, “Do que eu gostava mais
no jardim Zoológico era do rinque de patinagem sob as árvores e do professor preto muito
direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer,
rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas [...]. (ANTUNES, 2010, p. 07). Memórias
de coisas tolas e inocentes aparecem como bálsamo para um presente de vazios. Vazios
trazidos por uma adolescência solitária de masturbações recorrentes e vigiada por uma família
arraigada de moral religiosa, machismo de uma sociedade que via o exército como
instrumento na construção da identidade masculina.
- Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem.
Esta profecia vigorosa, transmitida ao longo da infância e da adolescência por
Dentaduras postiças de indiscutível autoridade, prolongava-se em ecos estridentes
nas mesas de canasta, onde as fêmeas do clã forneciam à missa dos domingos um
contrapeso pagão a dois centavos o ponto, quantia nominal que lhes servia de
pretexto para expelirem, a propósito de um beste, ódios antigos pacientemente
segregados. (ANTUNES, 2010, p. 13)
Na África, o narrador sente revolta de seu país e raiva de sua família por estar
encerrado naquele lugar, perdendo sua identidade e seus valores próprios em uma guerra
inútil. Na intenção de um expurgo, uma catarse, ele se lembra de sua família, retrógrada, que
proibia, inclusive, a leitura do canto nono de Os lusíadas, o que nos leva a uma associação
com um país tradicional e obsoleto nas ideias e ideais: “Entenda-me: sou homem de um país
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1835
estreito e velho, de uma cidade afogada de casas que se multiplicam e reflectem umas às
outras nas frontarias de azulejo e nos ovais dos lagos, e a ilusão de espaço que aqui conheço
[...]”. (ANTUNES, 2010, p. 31). O reacionarismo da família destaca, mais ainda, quando o
narrador se depara com algumas questões morais e comportamentos podados, fazendo com
que o sujeito se sinta morto para dar lugar ao espectro de um homem, uma morte metafórica,
pois no lugar de se transformar em homem, o médico morre em vida, aplaudido pela família:
De modo que quando embarquei para Angola, a bordo de um navio cheio de tropas,
para me tornar finalmente homem, a tribo, agradecida ao Governo que me
possibilitava, grátis, uma tal metamorfose, compareceu em peso no cais,
consentindo, num arroubo de fervor patriótico, ser acotovelada por uma multidão
agitada e anônima semelhante à do quadro da guilhotina, que ali vinha assistir,
impotente, à sua própria morte. (ANTUNES, 2010, p. 14)
A questão da morte em vida, da solidão, da busca por si é cara à literatura
contemporânea portuguesa, a memória vivida ou sonhada, imaginada, por vezes, aparece
como fio condutor da busca da identidade, de um lugar para que o sujeito se encontre, se sinta
vivo. Conforme Gobbi, “a ficção é capaz de mostrar quão tênue é o limite entre o vivido e o
sonhado”. (2007, p171). Desse modo, o presente e o passado se encontram em Os cus de
judas, se misturam na tentativa de uma compreensão do sujeito de si mesmo. A personagem
busca no presente vazio, o passado da guerra e o passado de sua infância, essas memórias
juntam-se em uma mistura de sentimentos, perturbando o narrador, formando um puzzle em
sua cabeça confusa:
Estás a dormir a sesta e não quero que o acordem, declarei eu para os soldados, o
capelão cirandava em torno da urna a desenhar cruzes com os dedos, o tenente
resmungava Caralho de guerra caralho de guerra caralho de guerra, sou paisano de
novo por uns dias e viajo na geografia mansa do teu corpo, no rio da tua voz, na
sombra fresca das tuas palmas, na penugem de peito de pomba do teu púbis, mas eu
e Xana e tu chuva de sábado é que somos ainda a verdade, o choro súbito da nossa
filha na noite dos lençóis a acordar-nos, os biberões esquecidos na cozinha em noites
de angustias e de esperança, não, oiça, hoje, quando me deito, o futuro é um
nevoeiro fechado sobre o Tejo sem barcos [...]. (ANTUNES, 2010, p. 87)
No entanto, no presente percebemos que não há mais a presença dessa filha e nem o
calor do corpo dessa esposa. A separação da esposa, a solidão, a distância da filha, são temas
recorrentes, já que tudo isso foi causado pela ausência do médico à sua terra em decorrência
do período da guerra, “As madrugadas, de resto, são o meu tormento, gordurosas, geladas,
azedas, repletas de amarguras e de rancor”. (ANTUNES, 2010, p. 33). Com isso, a solidão e
sensação de desamparo se apresenta a todo tempo ao personagem. É importante registrar que
esta solidão é colocada de várias maneiras. Primeiro, a personagem se casa e em quatro meses
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1836
já embarca para a guerra, isso enfraquece a relação matrimonial que a princípio foi mantida
por alguns poucos encontros. Posteriormente o narrador perde a gravidez da esposa e o
nascimento da filha, “Meu casamento terminará sem grandeza nem glória, após vários meses
lancinantes de reencontros e separações, que me retalharam de angústia os destroços de um
longo inverno de aflição”. (ANTUNES, 2010, p. 107). (p.70)
Outro fato na narrativa que demonstra a extrema solidão da personagem é o desejo
sexual a todo tempo sendo saciado sozinho, em constantes sessões de masturbação:
A masturbação era a nossa ginástica diária, êmbolos encolhidos nos lençóis gelados
à maneira de fetos idosos que nenhum útero desibernaria, enquanto, lá fora, os
pinheiros e a névoa se confundiam numa trama inextricável de sussurros úmidos,
sobrepondo à noite a noite pegajosa dos seus troncos, açucarados do algodão de feira
popular da bruma (ANTUNES, 2010, p. 15).
[...] a guerra tornou-nos em bichos, percebe, bichos cruéis e estúpidos ensinados a
matar, não sobrava um centímetro de parede nas casernas sem uma gravura de
mulher nua, masturbávamo-nos e disparávamos, o mundo-que-o-português-criou são
estes luchazes côncavos de fome que nos não entendem a língua, a doença do sono,
o paludismo, a amebíase, a miséria [...]. (ANTUNES, 2010, p. 123)
Assim percebemos um homem que busca no fio da memória truncada a revisão de sua
vida inútil e vazia como a guerra em Angola. A melancolia pela velhice e consolo na infância
são mesclados em imagens confusas: “Em cada manhã, ao espelho, me descubro mais velho:
a espuma de barbear transforma-me em um Pai Natal de pijama [...] Mas por vezes, em certos
sábados que o sol obliquo alegra de não sei que promessas, suspeito-me ainda sorrindo um
reflexo de infância [...]. (ANTUNES, 2010, p. 66), nessa situação de solidão e desolação o
tempo da infância volta à memória do narrador como lugar de felicidade e amparo.
Apreendemos, ainda no texto, muita ironia expressada na fala do narrador em relação à
cidade de Lisboa, “Lisboa começa a tomar forma, acredite, na distância, a ganhar
profundidade e vida e vibração, Luanda enevoada subiu ao meu encontro...”. (ANTUNES,
2010, p. 92). Isso reforça os resquícios da guerra na alma do narrador e a amargura, desolação
e solidão, levando o sujeito a revoltar-se por não ter ajudado seu país; e ainda ter se
transformado em uma assombração, tanto no cenário de atrocidades da guerra como em
Lisboa.
As recordações do rompimento do convívio familiar, feito com o aval dessa mesma
família, como se aquela convivência fosse algo nocivo, são lembranças que magoam o
médico. A guerra não o tornou homem, conforme pregava sua família, mas marcou a sua vida
de forma grave: “Agora, Sofia, que sou homem, moro só, e o porteiro me cumprimenta de
véneas respeitosas, assalta-me por vezes a certeza esquisita de ser um peixe morto neste
aquário de azulejos, cumprindo um ritual diário entre o espelho e o bidé [...]”. (ANTUNES,
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2010, p. 145). A situação de guerra, juntamente com outras memórias perturbadoras, marcam
para sempre a vida do narrador que não se recupera de imagens fortes apresentadas em um
cenário de infelicidades:
[...] há onze meses que só vejo morte e angústia e sofrimento e coragem e medo, [...]
há onze meses que não sei o que é um corpo ao pé do meu corpo e o sossego de
poder dormir sem ansiedade, tenho uma filha e não conheço, uma mulher que é o
grito sufocado do amor num aerograma [...] tenho vinte e tal anos, estou a meio da
minha vida e tudo me parece suspenso à minha volta como as criaturas de gestos
congelados que posaram para os retratos antigos. (ANTUNES, 2010, p. 77)
Ficar em Angola, longe de sua terra, de sua família e em meio a um ambiente hostil de
guerra desola por muitas vezes o narrador que demonstra sempre uma grande solidão e
desamparo diante do mundo e de si mesmo: “Ancorado na baía, o navio que nos trouxera
duplicava o reflexo na água preparando a partida: ia regressar sem mim ao Inverno e ao
nevoeiro de Lisboa onde tudo prosseguia irritantemente na minha ausência com o ritmo do
costume [...]”. (ANTUNES, 2010, p. 10). O sujeito percebe que a cidade continuará
funcionando mesmo sem sua presença, ou seja, a guerra precisava dele, mas sua cidade, sua
família e seu país sobrevivem sem ele.
Percebemos que quando o médico volta a Lisboa, na tentativa de se encontrar, ele
empreende outras formas de buscas; enquanto quando estava em guerra, solitário, buscava
alivio na masturbação, de volta a Lisboa se relaciona com todos os tipos de mulheres que
encontrava na noite, numa caça frenética por preencher tantos vazios:
Acordei algumas vezes em quartos de pensão manhosa sem haver entendido sequer
como para lá entrara, e vesti-me em silêncio buscando os sapatos sob um soutien de
rendinhas pretas no intuito de não perturbar o sono de um vulto qualquer enrolado
nos lençóis, e de que percebia somente a massa confusa dos cabelos. De fato, e
consoante as profecias da família, tornara-me um homem: uma espécie de avidez
triste e cínica, feita de desesperança cúpida, de egoísmo, e da pressa de me esconder
de mim próprio, [...]. (ANTUNES, 2010, p. 11)
O médico se depara com uma indagação de sua transformação, pois havia ele se
tornado homem de verdade e que tipo de homem seria esse, assim sendo, teria dessa maneira
se cumprido a profecia da família, ou apenas perdera a identidade que estava se formando.
Assim, se sentindo um estranho em terra, ele se depara com um Portugal diferente, e com uma
população indiferente à sua estada naquela guerra macabra: “Vocês vêm de Angola
convencidos que são uns grandes homens mais aqui não é o mato, seu tropa”. (ANTUNES,
2010, p. 35). Dessa forma, compreendemos que o narrador é apontado sempre como intruso e
sem lugar; na África era o soldado da metrópole que foi dizimar africanos, voltando a seu país
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1838
não se reconhece português, assim sendo, fica evidente que à guerra foi o estopim da
degradante vida do homem que perde sua identidade e direito de cidadão português.
Em sua vida pós-guerra, em uma rotina solitária e vazia; em uma cidade, cinzenta e
inóspita, onde vive numa espécie de exílio mental, a personagem mistura as lembranças a
grandes ingestão de uísque, vodca e lamentações inúteis, olhares empalidecidos nos telhados
do quarto, materializando uma paz camuflada pelo álcool, e uma alma perturbada e repleta de
sofrimento, aflição, dor, mágoa, ódio e solidão. Em períodos racionais a personagem ironiza e
questiona de uma forma geral a vida:
Esta espécie de jazigo onde moro, assim vazio e hirto, oferece-me, aliás, um
sensação de provisório, de efêmero, de intervalo, que, entre parênteses, me encanta;
posso ainda considerar-me um homem para mais tarde, e adiar indefinidamente o
presente até apodrecer sem nunca haver amadurecido, de olhos brilhantes de
juventude e de malícia como os de certas velhas de aldeia. (ANTUNES, 2010, p. 53)
Vemos, portanto, um homem solitário e que resolve não lutar mais contra sua solidão,
se rende a ela, se deixa consumir, “Mas não podíamos urinar sobre a guerra, sobre a vileza e a
corrupção da guerra: era a guerra que urinava sobre nós os seus estilhaços e os seus tiros, nos
confinava à estreiteza da angústia e nos tornava em tristes bichos rancorosos, [...].
(ANTUNES, 2000, p. 179). Observamos, pois, um narrador solitário, entregue à sua condição,
aceitando o apagar das luzes, o fim de uma vida iniciado desde sua passagem pelos “cus de
judas”, aqueles lugares ermos em confins de África.
Outro uísque? Convém prevenirmo-nos contra essa noite prestes a empalidecer sem
aviso, a dar lugar a uma manhã demasiado nítida, demasiado clara, em que as nossas
silhuetas imprecisas, fabricadas para a indulgente cumplicidade da penumbra, se
dissolverão como o perfume dos frascos antigos, de que se escapa o cheiro doce das
paixões defuntas, convém muralharmo-nos de álcool para nos defendermos do
revelador da claridade, exibindo aos nossos próprios olhos, na crueza implacável dos
espelhos, feições amarrotadas pela ausência de sono, a piscarem as pálpebras foscas
sob a desastrosa desordem dos cabelos. (ANTUNES, 2010, p.127)
O médico se torna um homem solitário cuja companhia mais agradável era o copo de
uísque e as pessoas sem rosto, esparsas dos bares na cidade de Lisboa.
Considerações finais
O romance Os cus de judas é uma oração à solidão e ao desamparo, nele percebemos
uma personagem perdida em sua cidade natal após voltar da guerra. Nesse processo de vida
solitária e sem rumo a personagem mergulha em uma auto análise, que a obriga a fazer um
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balanço sobre sua vida, concluindo que sempre esteve sozinha. Ou seja, a guerra aparece
como o estopim para o desencadear de sua solidão, no entanto, o que se percebe é que mesmo
sem guerra ela estaria fragmentada em um tempo em que todos se entregam a alguma busca e
que as lutas e guerras servem, por vezes, para o sujeito fazer valer sua vida. Percebemos bem
essa proposta nessa passagem do romance: “Deserta Deserta DESERTA, a locutora da rádio
da Zâmbia perguntava Soldado português porque lutas contra os teus irmãos mas era contra
nós próprios que lutávamos [...]”. (ANTUNES, 2010, p. 101). Desta feita, constatamos ao
final da obra um narrador desolado com seu fado, caminhando para um final de vida sem
significado, culminando com sua impotência sexual, o que vem metaforizar sua falha em vida
e o máximo de sua solidão, ele não pode mais nem mesmo sentir prazeres carnais provocados
por ele próprio:
Pela alminha de quem lá tens entesa-te, supliquei a mirar de viés a minha pila morta,
não me deixes ficar mal e entesa-te, pela tua saúde entesa-te, entesa-te, fada-se,
entesa-te [...] a rapariga parou de me beijar, apoiou-se no cotovelo como as figuras
dos túmulos etruscos, passou-me a mão na cara e perguntou O que é que não vai
bem, Olhos Azuis?, e eu encolhi os ombros, rodei até ficar de bruços no lençol e
desatei a chorar. (ANTUNES, 2010, p. 96)
O narrador imerso em sua solidão irreversível, agora vai conviver com suas fraquezas,
seus desejos insaciados guardados em uma memória de desolação fortalecida pelos mais
sombrios e torturantes sentimentos aflorados na guerra, bem como os sentimentos por sua
vida medíocre percebida em um tempo que não se tem como voltar e recuperar.
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1840
DO PRETEXTO PLÁSTICO À VERDADE PLÁSTICA:
ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO ESTÉTICO – POESIA,
PINTURA E OUTROS GÊNEROS – LIÇÕES DE ESPANHA
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Maria Bernardete da Nóbrega (UFPB)
Esta comunicação se propõe a analisar a densidade dialógica do discurso estético:
poesia, pintura e outros gêneros via retomadas enunciativas verbi-voco-visual-tátil entre a
palavra/a imagem/o poeta/o pintor: Murilo Mendes/Picasso. Constitui a composição de
recortes angulares sobre a Série Pictórica da obra "Tempo Espanhol", de Murilo Mendes
(1994): Lições de Espanha. A textualidade expõe a preponderância da ordenação plástica do
discurso pela seleção de signos que indexaram o código pictórico. Os movimentos discursivos
demarcam itinerários. Delimitam gestos de leitura que nos orientam para os postulados
formulados Bakhtin/Volochinov (1981), Bakhtin (1981, 1997, 1998), Barros (1999), Brait
(1994, 2001), Roudaut (1988), Cumming (1998), Greimas (1976, 1979, 1981), Geninasca
(1975), Sena (1963). A análise do discurso estético expõe como são modulados os discursos
poéticos e pictóricos na densidade da leitura visual do objeto. A leitura se perfaz através de
recortes, montagens - o poema, o quadro - modulados nos gestos produtivos do poeta Murilo
Mendes em interação com o pintor Picasso. O discuro estético re-compõe a trajetória das
múltiplas
linguagens em interação: itinerários A leitura se perfaz através de recortes,
montagens - o poema, o quadro - adstritos à modulação explícita nos gestos produtivos do
poeta. Na perspectiva do "superolhar", o ver para além da palavra, foca a repercussão poética
no processo de seleção e relação, de índices remissivos ao idioleto do poeta Murilo Mendes.
A sua poética se configura como o estilo de contrastes pela construção e densidade dialógicas
em que o signo pictural é absorvido pelo discurso poético. O Fazer essencializa o discurso da
arte, na dimensão da didática da criação: construir e destruir.
...à imagem da Espanha
...o pretexto plástico
POEMA
PICASSO
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1841
Quem pega a vida à unha como tu?
Só mesmo Espanha, tua mãe e mestra.
Paris formou o espaço da tua técnica,
Mas Espanha te deu o estilo de contrastes,
O gosto de regressar ao centro do problema,
De investigar a matéria da vida
E atingir o osso:
Construindo e destruindo ao mesmo tempo.
*
Situas o objeto inimigo,
Súbito assimilado.
As cores são de inventor, não de colorista.
A natureza morta
Retoma a lição espanhola:
Os elementos do quadro são “dramatis personae”
Que se cruzam no silêncio fértil.
Roma, Grécia ou África
Te servem de pretexto plástico:
O corpo extrai da vida
Sua força pessoal e polêmica.
*
Feito à imagem da Espanha, tu, Picasso,
Soubeste fundir a força e a contenção.
Na densidade intersemiótica do discurso estético, o estilo de contrastes: o poema, o
quadro parece instaurar uma nova composição. Tal estrutura vem definir a dimensão da
interação verbal e não-verbal como poepicturalidades surpreendidas no movimento de
semiose a partir do qual a imagem parece se deter e hesitar nos interstícios sígnicos da
expressão estética do momento em que a realidade se faz/ torna a verdade, na dialética da
criação. Por isso mesmo se faz passagem. Transição.
El papel de la pintura – dice Picasso , para mí, no es pintar el movimiento, poner la
realidad em movimiento. Su papel, para mí, es más bien detener el movimiento. Hay
que ir más lejos que el movimiento para detener la imagen. Si no, se corre detrás de
ella.Tan solo en esse momento, para mi, está la realidad (HÉLÈNE PARMELIN,
1968: 15).
Na ordenação plástica dos versos, Murilo Mendes compõe a estrutura do objeto a
partir de uma seleção de palavras através das quais condensa a superposição de imagens e
acopla a multiplicidade de sentidos que parece expressar a densidade estética da obra de
Picasso. Delineia o percurso pictural que traça o espaço e delimita o tempo intersectado nesse
diálogo poepictórico. O processo de transtextualidade se visualiza no engate da semantização
desse dizer e desse fazer pelas unidades visuais do poema: Picasso, a vida, Espanha, Paris,
Roma, Grécia ou África; o objeto, as cores, a natureza (morta), os elementos (do quadro), o
corpo, sua força (pretexto plástico). A lição (espanhola): o estilo de contrastes. A princípio, a
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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estratégia de construção do objeto é evidenciada pelo efeito de cláusula que emoldura o
poema:
PICASSO
Espanha
Espanha
Picasso
O poema constrói o quadro, em duas dimensões apoiadas na dialética –
Picasso/Espanha. O Poeta expõe as identidades entre o pintor que encarna o espírito hispânico
e, “... à imagem da Espanha”, transpõe os limites de uma única tradição... para produzir o
gesto iconoclasta de quebrar uma tradição ao rejeitar a representação realista seguida desde o
Renascimento. Esta postura tem se consagrado como uma característica do artista Picasso que
avança na medida em que, dialeticamente progride, através de retornos estratégicos e por
expor uma comparação perfeitamente refletida e extremamente diversificada com a tradição.
Espanha é isso: diversidade e essência. Picasso absorveu el duende e construiu um
estilo marcado pela oposição academia versus el duende (Lorca, F. G. 1957, p. 36.
Conferência). Aprendeu a magia de misturar cores e formas, linhas e volumes, real e irreal,
racionalidade e irracionalidade para produzir essa fusão: força e contenção. Lições de
Espanha que permeiam toda a sua trajetória.
O termo PICASSO abre o poema com o título e fecha-o com uma exaltação a Picasso
no penúltimo verso a demarcar as fronteiras do texto. Assim percebido na sua totalidade, esse
recurso parece revelar o processo de – Situar o objeto inimigo,/Súbito assimilado – para
submetê-lo à segmentação do todo em suas partes, no próprio limite de seu dizer e fazer.
Nesta moldura, Murilo Mendes superpõe a imagem de Espanha – mãe e mestra do pintor, a
qual abre o primeiro plano: Quem pega a vida à unha como tu? / Só mesmo Espanha, tua mãe
e mestra.  e fecha-o com a imagem de Espanha, no último plano, agora, numa síntese de
todo o efeito de identidade construída pelo processo do aprendizado e de assimilação dos
ensinamentos da mãe e mestra: “Feito à imagem da Espanha, tu, Picasso, / Soubeste fundir a
força e a contenção”.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
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Se olharmos por este ângulo, o poeta parece modular este gesto produtivo de traçar um
perfil dentro do outro, na dialética imagética do olhar que oscila entre um e o outro: Picasso/
Espanha/ Espanha/ Picasso. Um é o espelho do outro e/ou modelo, que é o mesmo
multifacetado na pedagogia do verbo, à imagem e semelhança da didática pictórica.
O poeta segrega o poema PICASSO, numa montagem triádica, em três planos – três
estrofes, as quais se superpõem na composição do objeto:
POEMA
PICASSO
I
 o estilo de contrastes,
......................................
II
 o pretexto plástico,
.....................................
III
 à imagem da Espanha.
........................................
O primeiro plano, com um total de oito versos, se configura como um painel o qual
parece revelar a densidade da estética de Picasso em toda sua diversidade e essência, em que
se concentra a delimitação das extremidades do itinerário estético do Pintor. Espanha e Paris.
Paris formou o espaço da tua técnica
Mas Espanha te deu o estilo de contrastes.
(O grifo é nosso)
O poema delimita essa trajetória de Picasso, em que Espanha e Paris desempenharam
um papel bem diferente. Observemos o adversativo que enlaça os dois versos acoplados,
como um operador metalinguístico a demarcar a dialética da criação postulada nessa
pedagogia da arte:
as lições de Paris – o espaço da técnica.
as lições de Espanha – o estilo de contrastes.
Lições que Picasso traduz em todas as fases de sua produção, em especial no período
que demarca os limites do corpus, desta Série Pictórica, Estudos Nº 5 Murilo Mendes/ Picasso
que abrange o arco do tempo de 1907 a 1937, período este, evocado pelas referencias de
Murilo Mendes, na obra Tempo Espanhol (1994, p. 616).
Na superposição de planos, Murilo Mendes coloca a Espanha no primeiro, em sua
dimensão de mestra. As lições de Espanha não cabem num único verso. O poeta as enumera
na expansão que se intensifica até o fim da estrofe, precisamente nos últimos quatro versos:
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(...) Espanha te deu o estilo de contrastes,
O gosto de regressar...,
De investigar...,
E atingir o osso:
Construindo e destruindo ao mesmo tempo.
O Poeta delimita as dimensões de um Fazer que se referencializa no aprendizado de
Picasso em cada um desses países, a estabelecer-lhe as regras de construção do objeto: o
primeiro plano contém um total de oito versos, o segundo, onze e o terceiro, apenas dois.
Sob a égide desse estilo de contrastes, Murilo Mendes traça uma linha para além do
poema em direção à vida e à obra de Picasso remetendo seu olhar a duas dimensões: crítica da
vida, crítica da arte.
A vida de Picasso e sua trajetória artística se confundem com a história da arte do
século XX. E, a leitura de Murilo Mendes recoloca fatores que evidenciam, na estética
picassiana, algumas nuanças que delimitam o seu tom: a ruptura, como princípio mais
evidente; a negação, como parâmetro gerador de outras modalidades de ver e a invenção, na
tortuosidade do seu traço, como a fluidez do Ser à procura de si e/ou da verdade plástica.
Tudo isso parece colidir com os cânones estéticos historicamente assimilados, a demonstrar
essa inconformidade expressa em signos pincelados como a epifania enunciadora do novo.
Esse movimento artístico em direção ao novo começa a ser traçado com o objetivo de afastarse da representação naturalista a fim de se conseguir plasmar, de modo simultâneo, sobre a
superfície do quadro, o objeto assimilado em múltiplos ângulos. Trata-se de um modo de
expressão em que o artista fraciona o elemento da realidade, interessado em representar e,
depois, o expressar através de planos superpostos e simultâneos. Esse novo modo de
expressão estética originou-se na França, em 1908, quando Henri Matisse contemplou um
quadro de Georges Braque (Case l’Estaque), que representava casas cuja aparência cúbica lhe
chamou a atenção. À frase de Matisse recorreu o crítico francês Louis Vauxcelles, que
corroborou com esta formulação crítica, também a postular que a obra estava reduzida a
cubos.
A origem desse movimento artístico está baseada, segundo os estudiosos, em fontes
muito distintas: por uma parte, o impacto que causou nos círculos artísticos de Paris a
escultura africana, e por outra, a influência do pintor francês Paul Cézanne e sua tendência a
reduzir os volumes dos objetos reais a elementos essenciais como o cilindro, o cubo e a
esfera. Ele evitou descobrir a forma, pois a considerou como uma manifestação no espaço. A
estes antecedentes há que se agregar à reação contra o fauvismo, tendência pictórica na qual a
expressão da cor era um dos aspectos mais sobressalentes.
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Os criadores que iniciaram as experimentações cubistas foram Pablo Ruiz Picasso e
Georges Braque. Simultaneamente as investigações desenvolvidas por Picasso, Braque
haviam realizado uma série de paisagens de L’Estaque, caracterizados pela escassez de
colorido e um volume facetado, à base de planos inclinados, que se apresentam em Paris na
exposição que deu origem à denominação: cubismo.
Para Picasso, a verdadeira estrutura do ser é o irracional. Para deter esse hiato do que
é, não-sendo, ele decompõe a figura até a instância primeira e última do ser absoluto que se
destrói/constrói na fragmenticidade de sua verdadeira estrutura: a irracionalidade da
racionalidade imagética. A imagem do não-ser que se pinta ser, que se produz ser. Obraprima.
SÉRIE ARLEQUIM
Fig. 46
ARLEQUIM, 1915
Paris, outono de 1915.
Óleo sobre tela, 183,5 x 105,1 cm; Zervos II**, 555; DR 844.
New York, Museum of Modern Art.
PABLO PICASSO.
A obra está segregada em módulos que, dialeticamente, se interceptam no movimento
de ser assim, móbiles pictóricos que se identificam na composição do cenário. As superfícies
de cor, em uniformidade com a peça, parecem titubear sem qualquer ligação com o fundo
preto da tela que as enquadra.
A montagem das unidades visuais se realiza numa consolidação, em cujo vértice a
perpendicularidade do recorte da margem do quadro faz enunciar o seu modo de resolução na
centralização espacial. A evocação à insustentabilidade do ser, envolto na ambiguidade que a
figura carrega em si mesmo, parece corroborada pela posição oscilante das peças, ao evocar
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1846
também a mobilidade do traçado do traje do Arlequim, de padrão losangular, o qual tanto
pode remeter ao processo de colagem em pintura como a um padrão abstrato.
O movimento pendular sugere existir uma força centralizada no centro da tela e uma
outra força à esquerda, que atrai a atenção de seus atores, visto que a posição do Arlequim e
seu duplo e da figura do plano de fundo está voltada para a posição contrária ao sentido
normal – da direita para a esquerda – o sentido da escrita. Tal posição contradiz os princípios
de leitura da pintura.
A linha definidora do eixo da tela, ao invés de estar colocada na parte central do X,
onde se poderia cruzar, ao partir-se da extremidade esquerda superior da tela em direção ao
seu oposto, extremo direito inferior, e, no sentido inverso, ao partir-se da direita superior à
esquerda inferior.
No entanto, o ponto centralizador da tela está fixado no núcleo ocular do Arlequim
que sustém e dirige toda a dinâmica da ação pictural. Jogo de hipnose e jogo de dissimulação
da montagem de cena que poderia movimentar-se no sentido quadrangular, retangular e/ou
diagonal, mas o fazem no sentido triangular, talvez para delimitar racionalmente a tríade de
sua composição: dois pintores e seu duplo, ele mesmo, Picasso, em seu autorretrato esboçado
na tela a qual segura o Arlequim Pintor.
A metalinguagem da arte que pinta o Ser-Narciso, que a faz ser espelho onde a sua
miragem se diz em auto-reflexividade. Pintor/Pintura, visível/invisível, limites entre universos
que o Arlequim sustém em suas mãos. Um é a contraface do outro. Passagem, travessia que se
recorta em cores. Isso nos remete à paradoxalidade joyciana: “inelutável modalidade do
visível”, posto no parágrafo do capítulo em que se abre a trama gigantesca de Ulisses (Joyce,
1922 apud Didi-Huberman, 1998):
Inelutável modalidade do visível (ineluctable modality of the visible): pelo menos
isso se não mais, pensado os meus olhos. Assinaturas de todas as coisas está aqui
para ler, marissême e maribodelha, a maré montante, estas botinas carcomidas.
Verdemuco, azulargênteo, carcoma: signos coloridos: Como? Batendo com sua
cachola contra eles, com os diabos. Calvo ele era milionário, maestro de color che
sanno. Limite do diáfano em. Por que em? Diáfano, adiáfano. Se se pode por os
cinco dedos através, é porque é uma grade, se não uma porta. Fecha os olhos e vê.
(J. JOYCE, Ulysses, 1922, cf. trad. de Antônio Houaiss, Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1966, p. 41-2. Apud, DIDI-HUBERMAN, Georges, 1998, p. 29).
O contraste de linhas, formas e cores, sentidos, que se intercepta em verticalidade,
horizontalidade, diagonalidade e movimentos pendulares não compromete a unificação das
imagens que, na sua força de equilíbrio, sustém-se no seu núcleo, o olho do pintor Arlequim.
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Movimento que é corroborado pelas extremidades dos módulos, acentuado também pela base
que sugere sapatos, cuja ponta suspensa no ar parece tratar-se de posição indicativa do ato
mesmo de mover-se. Estilização do caminhar performativo do Arlequim. A harmonia e o
ritmo da figura, como um todo, apresenta uma ordenação plástica que adquire leveza e se
sobrepõe ao fundo preto que se faz interceptar no vermelho – pelo fragmento imagético do
braço do Arlequim – e, também, no azul – pela sua face estilizada, em cujo contraste
branco/preto define-o o olho, os dentes e os dedos das mãos que seguram as telas.
A sensação de fechamento visual da forma obtém-se pela autonomia das partes que se
compactuam em módulos, numa superfície plana de unidades intercaladas. Essa mobilidade
permite a completude do todo configurado numa ordem estrutural que se vem apresentar na
revelação metalinguística do exercício da composição em série do Arlequim: tudo se perfaz
na ambiguidade do gesto produtivo de ser ele mesmo, Picasso, in absentia, o ponto – de
chegada – da cena, em primeiro plano. Tudo começa e termina nele mesmo – o pintor que se
projeta em suas personagens prediletas – Arlequim. Parece evocar Georges Didi-Huberman
(1998, p. 76) “um engodo da satisfação: ele fixa o objeto do ver, fixa o ato – o tempo – e o
sujeito do ver”.
A montagem dos atos de aparição da imagem denota as camadas de cores/tintas que se
superpõem em seu jogo de cena. Cada cartela/módulo de cor parece corresponder a uma
ordem/entrada de figuração sem quebrar o ritmo e a continuidade na dinâmica dessa
“commedia del arte”. O fundo denuncia a cumplicidade da luz em destacar o que está em
cena.
O escuro remete, também, ao espaço interior do artista pesquisando zonas de sombra
para reproduzir, na sua inventiva iconicidade pictural, o espaço/tempo de transição em cujo
liame ele próprio personifica a dialética da arte e o enigmático universo do avesso, pela
recorrência às imagens do circo, alusão metafórica à magia do riso.
A identidade no plano do olhar faz-se perceber através de formas reiteradas na linha
circular do olho das imagens do pintor de fundo, do pintor Arlequim e se recria em traços
sutis na íris do autorretrato, ele próprio, também pintor, que no disfarce pictural põe o perfil
inconfundível de ser ele mesmo máscara: Picasso. Ainda há vestígios dessa linha circular no
elemento visual que parece representar o ombro do Arlequim, assim deduzido pela identidade
cromática – cor preta e também se acentua na curvatura do braço do pintor de fundo – cor
branca e, finalmente, em outro segmento interposto entre o Arlequim e sua tela, o que nos faz
remeter ao ombro da figura de fundo. Na contiguidade de suas partes, o todo se refaz e se
torna uma unidade objeto/espaço. Ambos estão unificados pela cor preta, como se o recuo na
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1848
enigmaticidade da própria personagem do Arlequim o remetesse a um tempo de memória,
tempo de velação, ocultação.
Nessa perspectiva se ilumina a ideia da semelhança e/ou proximidade tela/pintor, pois
o artista recua para, talvez, esconder-se de si mesmo e revelar o seu duplo: alteridade.
Pintor/Arlequim: Mito. Assim, de se dar a ver (Didi-Huberman, 1998):
O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências visíveis a pares de que se apoderam
unilateralmente do “dom visual” para se satisfazer unilateralmente com ele. Dar a
ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação
de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo o olho traz
consigo sua névoa, além das informações de que poderia num certo momento
julgar-se o detentor. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 77).
Na dialética das formas a sua pregnância se faz arte, portanto, operação de sentidos:
perfectividade e discursividade [Arlequin (Roma) e Os Três Músicos (Grécia)]. Na
intersecção de planos, o Poeta articula as tensões entre o dizer e o fazer – poético e pictórico,
onde se desvela não somente o estilo de um e de outro artista, mas, sobretudo, o estilo que se
consolidou como o estilo de contrastes. Um estilo que ficará indissoluvelmente ligado a esses
artistas. Uma produção polêmica. Na dialética, Picasso versus vida, Picasso versus objeto
inimigo de seu próprio fazer: construir destruindo ao mesmo tempo.
Nessa tensão criadora, Murilo Mendes concilia, mediante lições, a pedagogia da
poesia e da pintura, em suas múltiplas etapas de construção. Tudo isso parece condensado a
uma montagem paratática, na qual cada ação corresponde ao movimento do gesto produtivo
do objeto, a saber: pegar/colar – a vida; regressar – ao centro; investigar – o problema:
matéria da vida; atingir – o osso; construir/destruir – as simultaneidades; situar/delimitar – o
objeto inimigo; retomar – a lição espanhola; cruzar (os elementos do quadro) no silêncio
fértil; servir-se do pretexto plástico (Roma, Grécia ou África); extrair (da vida)  sua força
pessoal e polêmica; fundir (à imagem da imagem de si, o real/Espanha)  o seu traço/marca
pessoal. Em suma, corroboramos com a perspectiva bakhtiniana sobre a densidade dialógica
do discurso estético:
A obra é um elo na cadeia da comunicação verbal; do mesmo modo que a réplica
do diálogo, ela se relaciona com as outras obras-enunciados: com aquelas a que
ela responde e com aquelas que lhe respondem, e, ao mesmo tempo, nisso
semelhante à réplica do diálogo, a obra está separada das outras pela fronteira
absoluta da alternância dos sujeitos falantes (BAKHTIN, 1997, p. 298).
Referências
BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas do Método
Sociológico na Ciência da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981.
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______. Estética da criação verbal / Mikhail Bakhtin; [tradução feita a partir do francês por
Maria Ermantina Galvão G. Pereira; revisão da tradução Marina Appenzeller]. – 2. ed. – São
Paulo: Martins Fontes, 1997. – (Coleção Ensino Superior).
ECO, Umberto. A estrutura ausente: introdução à pesquisa semiológica. 3ed., (Tradução
Pérola de Carvalho). São Paulo: Perspectiva, 1976.
LORCA, F. G. Teoría y juego del duende. In: Obras Completas. Madrid: Tercera edición,
1957, p. 36.
MURILO MENDES, 1901-1975. Poesia completa e prosa, volume único/Murilo Mendes;
organização e preparação do texto Luciana Stegagno Picchio.  Rio de Janeiro: nova Aguilar,
1994. (Biblioteca Luso-Brasileira. Série Brasileira).
PARLEMIN, Hélène. Habla Picasso. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, S. A., 1968.
SENA, Jorge de. Metamorfose. Lisboa: Morais. Círculo da Poesia, 1963.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1850
O GÊNERO TEXTUAL CONTO COMO FERRAMENTA
ARTICULADORA NAS PRÁTICAS DE ESCRITA E
REESCRITA EM SALA DE AULA
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Maria Claudicélia Curvelo da Silva (UNEAL)
Introdução
Este estudo tem como objetivo evidenciar a relevância do trabalho com os gêneros
textuais, uma vez que estão presentes diariamente no cotidiano dos indivíduos, sejam eles
escritos ou orais. Há uma vasta diversidade de gêneros, sendo assim, a prática de ensino, de
certa forma, é facilitada, conduzindo o professor a estabelecer uma relação com os gêneros
mais conhecidos pelos discentes, utilizando-os em benefício do ensino em sala de aula, para
que haja uma interação no processo de ensino aprendizagem.
A proposta para essa pesquisa é o gênero conto, que visa proporcionar aos docentes
um possível gênero para utilizar em suas aulas. Visto que, o referido apresenta significantes
peculiaridades que contribui na prática de ensino. Uma vez que consta de um gênero
predominantemente narrativo, com um conteúdo de forma mais concisa se comparado a
novela e ao romance, apresenta personagens e sempre exibe um conflito no qual norteia toda a
trama. Dessa forma, facilita a interação docente e discente sobre o texto, pois quando se trata
de um texto mais extenso o aluno tende a ficar despeço, não se identificando na aula.
Tal gênero é bastante notável, por apresentar situações que estão frequentemente
interligadas à vida dos indivíduos, nas quais normalmente possuem caráter significativo e que
o contista transforma, conduzindo-as à realização do belo, um acontecimento que não se tinha
nenhuma beleza literária passa-se a ter a partir dos efeitos metafóricos e construções verbais
utilizadas pelo o autor. Prendendo de forma significativa a curiosidade do leitor.
Como sistematização para esse estudo, optou-se para uma pesquisa de natureza
qualitativa, visto que se observou uma intensa necessidade de estudar o gênero conto, dado
que apresenta uma dinamicidade pertinente para se trabalhar em sala de aula.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
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Neste artigo estão explícitos quatro (04) tópicos, são eles, Formação do professor,
Elucidação ao gênero, Gênero específico conto com intuito de evidenciar características
auxiliares para a pratica de escrita e reescrita de textos e por ultimo as Considerações finais.
Formação do professor
Antes de dar início ao tema propriamente dito, é oportuno frisar sobre algumas
indagações fundamentais para que se possibilite o entendimento sobre o referido.
Primeiramente partindo para o âmbito do conhecimento etimológico da palavra FORMAR,
concebida do vocábulo latino formare (dar o ser e a forma, organizar, estabelecer) esta parte
para algo mais interno de cada indivíduo, transformando-o por completo. Sendo assim, a
formação parte de questões particulares que o profissional considera como fundamentais para
seu projeto de aperfeiçoamento como docente.
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses quefazeres
se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo
buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei,
porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando,
intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o
que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade.
(FREIRE, 1996, p.16).
A necessidade de integrar teoria e prática é imprescindível ao que concerne o ensino e
aprendizagem eficiente. De modo que o professor pesquisador acrescente em sua realidade
conhecimentos adquiridos a partir de leituras, mantendo um pensamento reflexivo e crítico.
Leituras as quais os impulsionarão ao desenvolvimento de suas aptidões e consequentemente
ao ensino efetivamente mais produtivo.
Educar é colaborar para que professores e alunos - nas escolas e organizações transformem suas vidas em processos permanentes de aprendizagem. É ajudar os
alunos na construção da sua identidade, do seu caminho pessoal e profissional, do
seu projeto de vida, no desenvolvimento das habilidades de compreensão, emoção e
comunicação que lhes permitam encontrar seus espaços pessoais, sociais e
profissionais e tornarem-se cidadãos realizados e produtivos (MORAN, 1995, p. 13).
Refletir sobre a educação implica relaciona-la a formação docente e a prática
pedagógica de modo que mantenha um nível de qualidade. De modo que a qualificação dos
professores é essencial para que haja uma aprendizagem eficaz. Visto que educar, abrange as
diversas esferas no que tange o projeto de vida do ser humano. Desde o desenvolvimento
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intelectual e individual até a elevação profissional. A educação é a base mais sólida para
concretização dos méritos previstos...
Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o
dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os das classes
populares, chegam a ela - saberes socialmente construídos na prática comunitária mas também, como há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a
razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos.
(FREIRE, 1996, p. 16)
Em suma é fundamental que os educadores, juntamente com a escola estabeleçam uma
abordagem a partir da realidade prática, na qual os alunos estão inseridos. De modo que haja
uma reflexão e aproveitamento dos saberes já adquiridos pelos discentes, relacionando-os a
atividades escolares para que mantenham um aprendizado mais concreto e eficaz. Dessa
forma o aluno poderá a partir da junção dos conhecimentos desenvolver as aptidões
necessárias para se tornar um leitor e consequentemente um escritor.
Elucidação ao gênero
Os gêneros textuais são unidades verbais orais e/ou escritas que apresentam sentido
em sua composição, evidenciados de forma histórica, sendo encontrados no cotidiano dos
indivíduos de uma sociedade, uma vez que são altamente vinculados com os emissores e
receptores que os produzem. Os gêneros expressam constantemente as intenções que
predominam a comunicabilidade. São eminentemente dinâmicos, maleáveis e repentinos. Eles
se transfiguram, se entrelaçam, aparecem e desaparecem adaptando-se às novas necessidades
da sociedade.
Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto
mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é
possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação singular da
comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de
discurso. (BAKHTIN, 2003, p. 285)
Sendo assim, é fundamental o conhecimento e saber distinguir os diversos gêneros
textuais, uma vez que alguns possuem características semelhantes. Por exemplo: uma
reportagem pode conter narração, descrição e normalmente é dissertativa. Havendo uma
combinação, formando um novo gênero no qual cada um possui uma variedade, não tendo
modelos fixos. Dessa forma, se modificam de acordo com a evolução social, com o advento
de novos gêneros principalmente com o surgimento da internet que constantemente influencia
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no modo de comunicação dos indivíduos, principalmente dos jovens. É oportuno salientar que
não é obrigatório o conhecimento de todos os gêneros, pois há uma extensa diversidade.
“[...] são atividades discursivas socialmente estabilizadas que se prestam aos mais
variados tipos de controle social e até mesmo ao exercício de poder”. Pode-se dizer,
portanto, que os gêneros textuais constituem formas de ação social que refletem todo
o processo que envolve a comunicação. (MARCUSCHI, 2008, p.161).
Neste sentido, os gêneros estão presentes constantemente nas interações comunicativas, e
frequentemente os indivíduos fazem escolhas de quais irão utilizar nas distintas situações de
comunicabilidade que estão expostos. Buscando sempre selecionar o gênero adequado para
cada situação. É importante que se faça uma leitura minuciosa dos gêneros presentes,
principalmente no dia-a-dia, e assim, saber distinguir principalmente as informações nas quais
se fundamentam os gêneros para que se possa fazer uso deles.
Gênero específico, conto.
O gênero conto é infelizmente pouco discutido pela maioria dos docentes em sala de aula,
o que o torna ainda mais relevante de fazer-se uma reflexão, visto que é evidente a sua
contribuição para o ensino aprendizagem. Tal gênero é responsável por narrar
acontecimentos, fatos reais, apresenta-se de forma mais concisa se comparado aos demais
gêneros como novela e romance, tornando-o adequado para exprimir o conflito de forma mais
sucinta, facilitando a compreensão pelos discentes. Produzido em variados ambientes e
expõem diversificadas temáticas, nas quais prevalece à ficção, trata-se de situações do
cotidiano, o que relaciona a realidade com a vida imaginária. O gênero conto causa certa
discussão e falta de entendimento entre os teóricos quando se trata de sua definição, mas há
uma necessidade em sua decifração e Júlio Cortázar em seu ensaio “Alguns aspectos do
conto” evidencia vontade de entender o referido.
Mas se não tivermos uma ideia viva do que é o conto, teremos perdido tempo,
porque um conto, em última análise, se move nesse plano do homem onde a vida e a
expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me for permitido o
termo; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma síntese viva ao mesmo que
uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma
fugacidade numa permanência. Só com imagens se pode transmitir essa alquimia
secreta que explica a profunda ressonância que um grande conto tem em nós, e que
explica também por que há tão poucos contos verdadeiramente grandes.
(CORTÁZAR, 2006, p. 150-151).
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1854
O conto se consolidou através do momento em que, histórias eram contadas de forma
oral e com o passar do tempo foram transpassando tais dados orais para escritos de modo que
os seus escritores começam a se preocupar com aspectos estéticos e com fim criativo, fazendo
uso de elementos que enriqueciam toda a obra. O contista é um indivíduo notável é um ser
único, pois a partir de olhares minuciosos concretiza-se uma oportunidade inventiva. Como
afirma Alfredo Bosi, “o contista é um pescador de momentos singulares cheios de
significação. Inventar, de novo: descobrir o que os outros não souberam ver com tanta clareza,
não souberam sentir com tanta força” (1995, p. 9).
Através destas situações ocorre à
realização do belo, um acontecimento que não se tinha nenhuma beleza literária passa-se a ter
a partir dos efeitos metafóricos e construções verbais utilizadas pelo o autor. Prendendo de
forma significativa a curiosidade do leitor.
“Um conto é uma narrativa curta. Não faz rodeios: vai direto ao assunto. No conto
tudo importa: cada palavra é uma pista. Em uma descrição, informações valiosas;
cada adjetivo é insubstituível; cada vírgula, cada ponto, cada espaço – tudo está
cheio de significado. [...]
(FIORUSSI, 2003, p.103)
O conto apresenta uma composição discursiva com elementos que normalmente
norteiam todo o gênero, mas vale ressaltar que essa sistematização varia de conto para conto.
Nem sempre possuem todos estes elementos abaixo relacionados:

Personagem - seres que participam destes fatos;

Tempo - o momento em que acontece;

Espaço - lugar que acontecem estes fatos;

Enredo - a história narrada compreende as sequências dos fatos;

Conflito - resulta sempre da oposição de forças envolvendo o leitor;

Clímax- ápice do conflito, momento que o leitor não sabe o rumo da história;

Desfecho - solução e conclusão dos fatos.
A linguagem presente neste gênero deve ser utilizada de uma forma mais acessível e
com metáforas representativas, de modo que facilite a compreensão do leitor. O diálogo
também é uma característica relevante quando se trata do conto, pois os maiores conflitos são
gerados através da interação entre os personagens. A partir do diálogo há desavenças,
discórdias, ação dessas forças maiores descaracterizando o gênero.
Logo abaixo, destaca-se o conto de Machado de Assis, no qual abordarei uma
breve sequência da narrativa. Apresentados de acordo com os elementos norteadores da
trama, visto que é indispensável saber identifica-los.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1855
O conto é composto por quatro personagens principais, responsáveis por transpor
significativa a trama. São eles os precursores desta esplendida obra. Praticam a ação e estão
envolvidos em todas as situações. Estão presentes também os personagens secundários, que
estão em torno dos referidos.
Principais: Vilela, Camilo, Rita e a Cartomante
Secundários: Amiga de Rita, Mãe de Camilo, príncipe Dinamarques
Época na qual ocorrem os fatos, sendo estes de âmbito cronológico, sendo destacadas
datas.
No ano de 1869
Onde ocorrem os fatos, tendo participação primordial na trama, uma vez que mantem
uma constante relação com as ações praticadas pelos personagens.
Botafogo
A trama foi consolidada, a partir do momento em que se inicia o triangulo amoroso, o
conflito está explícito entre a esposa (Rita) casada com (Vilela) mais que se sentia atraída pelo
o amigo do esposo (Camilo).
A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral,
quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di feminina: eis o que ele
aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros,
iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às
noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas.
Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele,
que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas.
A partir deste momento, dá-se inicio ao conflito, pois Camilo percebe que as atitudes
que ele juntamente com Rita praticava, já havia curiosos que sabiam do ato consumado do
adultério. Ambos perdem o sossego e começam a temer a descoberta de Vilela.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e
dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas,
começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo
respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As
ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse
também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do
marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1856
Esse trecho relata o ápice do conflito, momento o qual Camilo pressupõe que Vilela
descobre todo o caso. Ficando Camilo com medo, sem rumo, não sabendo de certo o que o
marido queria tratar com ele. Desespero era o sentimento que prevalecia em Camilo.
No dia seguinte na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: “ Vem já, já, à
nossa casa; preciso falar-te sem demora”. Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo, na
rua, advertiu que teria sido mais natural chama-lo ao escritório; por que em casa? Tudo
indicava matéria especial, e a letra, fosse a realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula.
Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.
– Vem já, já, à nossa casa, preciso falar-te, sem demora, - repetia ele com os olhos no
papel.
Neste, destaca-se o epílogo da trama, tamanha curiosidade e inquietação de Camilo
resulta de forma verossímil a descoberta perante o esposo e amigo. Por fim, o inevitável
acontece, a trágica morte de Rita e logo em seguida a de Camilo.
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma
saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror:
— ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela
gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
Nesta perspectiva, destacou-se a abordagem exemplificada dos elementos norteadores
da narrativa. Evidenciando a sua total relevância no que diz respeito a organização do gênero.
Considerações finais
No decurso deste trabalho, foi possível a percepção da importância de utilizar os
gêneros textuais como ferramenta para a pratica do ensino aprendizagem. Uma vez que estão
presentes em toda as esferas no cotidiano da sociedade, tornando familiar para os discentes,
proporcionando um melhor desenvolvimento das aulas. Já que uma das maiores dificuldades
enfrentadas pelos docentes é exatamente a falta de interesse pela leitura e escrita de texto. O
que exige uma presença efetiva do professor no direcionamento de novas metodologias para o
ensino em sala de aula, ou seja, adaptando o ensino aos aprendizes. Alias o professor é o
mediador do ensino aprendizagem.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1857
O trabalho com o gênero conto é, sem dúvida, um grande parceiro no processo de
escrita e reescrita de textos. Além de facilitar o ensino e trabalho do professor prende a
atenção dos discentes, tornando a aula dinâmica e produtiva. Deixando, de certa forma, o
ensino tradicional, mas também dando espaço para o ensino mais prazeroso, o qual prevalece
o saber a partir de práticas diárias tornando o ensino aprendizado mais efetivado.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Ática, 2003.
BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1994.
CORTAZAR, Júlio. Alguns aspectos do conto. in: Valise de Cronópio. São Paulo:
Perspectiva, 1974.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes indispensáveis à pratica educativa. São
Paulo: EGA, 1996.
FIORUSSI, André. In: Antônio de Alcântara Machado et alii.De conto em conto. São Paulo;
Ática, 2003.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São
Paulo: Parábola, 2008.
MORAN, José Manuel, MASETTO, Marcos & BEHRENS, Marilda. Novas tecnologias e
mediação pedagógica. 13ªed. São Paulo: Papirus, 2000.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1858
A BUSCA DA IDENTIDADE CULTURAL NO PROCESSO DE
CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS EM MÁRIO DE
ANDRADE
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Maria da Conceição José de Sousa (UNEMAT)
A busca pela a afirmação da nossa autonomia literária inicia-se por volta de 1800 e
que ironicamente teve um pioneirismo estrangeiro. Foram os ingleses Robert Southey e John
Armitage, o francês Ferdinand Denis, e bárbaro Friedrich Philip Von Martius que fundaram a
crítica literária e a historiografia romântica brasileira. Em 1826 Denis em Resumé de l’historie
littéraire du Portugal, suivi Du resumé de l’historie Du Brésil sugere-nos a necessidade de
termos além de uma independência política, que teria sido recém conquistada, termos também
uma independência literária. Foi, portanto, no Romantismo que se acentuou essa necessidade
de autonomia literária. Buscando essa afirmação e representação nacional surge alguns
projetos como, por exemplo, o indianismo, nacionalismo e regionalismo.
O desejo pela representação do “ser nacional” torna o índio e o sertanejo, personagens
emblemáticas da nossa literatura. Temos isto no Romantismo com o projeto regionalista.
Porém, a afirmação de uma literatura nacional não poderia ainda ser estabelecida, pois a
maioria dos escritores buscava afirmar a nacionalidade da nossa literatura com os olhos ainda
voltados para os modelos europeus. Para Antonio Candido (2000), no Romantismo e na prosa
regionalista, o índio e o negro eram representados de forma idealizada para resolver o
constrangimento que a nossa ambiguidade cultural causava, assim, “o índio era europeizado
nas virtudes e costumes; a mestiçagem ignorada”. Já no Modernismo, o negro e o mulato são
“definitivamente encorpados como tema de estudo, inspiração, exemplo”. Com o Modernismo
“o primitivismo é agora fonte de beleza e não mais empecilho à elaboração da cultura”.
Todavia, tal afirmação só seria possível por intermédio de uma “consciência criadora
nacional” de base popular e folclórica que o Modernismo daria uma grande contribuição para
nossa “brasilidade”. (COSTA, 1982). O segundo tempo modernista (1924 – 1928) contribuiria
para isso, já que trouxe de volta a discussão dos elementos que constituiriam a nossa
“brasilidade” como uma entidade nacional no cenário mundial. De acordo com Sirlei Silveira
(1999, p. 34) “na ótica modernista desse momento caberia à inteligência criadora estudar e
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1859
conhecer o Brasil, a fim de compreender a sua realidade interna, para então definir os traços
básicos da unidade nacional”. Ora, e Mário de Andrade buscava esses traços primitivos que
comporiam a identidade nacional, resultando assim, nas suas pesquisas etnográficas e
folclóricas como meio de encontrar peculiaridades da nossa identidade.
A concepção de “nacionalidade” para Mário de Andrade supera a ideia de indianismo,
regionalismo, exotismo, nacionalismo ou patriotismo. Vai muito além. Para ele a busca pela
“entidade nacional” ou “consciência nacional”, dar-se-ia pela “vivência-reconhecimento”, ou
seja, só poderíamos nos reconhecermos como nação se vivêssemos a nossa cultura
efetivamente como ela é, e não como queiramos que ela seja. Segundo o próprio Mário de
Andrade (1927), nacionalismo “é antes de tudo o entrosamento na verdadeira cultura
nacional”, e esse entrosamento só poderia acontecer através do contato com a tradição cultural
popular para um reconhecimento. Nesse sentido, a literatura popular torna-se o fator
primordial para o conhecimento do povo brasileiro. Quanto à concepção nacionalista de
Mário de Andrade, Telê Porto Ancona Lopez destaca que:
Nacionalismo para Mário, já em 1925, é uma etapa de conhecimento, de autoconhecimento nacional, que futuramente deverá ser suplantada pela integração das
artes brasileiras na universalidade. Nessa hora, porém, não cuida da segunda etapa, a
universal. (LOPEZ, 1972, p. 204).
Despreocupou-se, portanto, do universal como, por exemplo, de personagens como as
de Shakespeare ou as de Balzac, já que a análise destas resultaria em uma síntese individual e
não nacional. E prendeu-se ao nacional, pois acreditava que o universalismo nas artes cultas
só seria possível levando o Brasil ao autoconhecimento, fazendo-o chegar primeiro ao
nacionalismo e consequentemente ao universalismo.
Mário de Andrade faz um bom proveito dessa “vivência-reconhecimento” com a
cultura popular, quando faz disto, seu projeto estético de criação literária. Cabe aqui ressaltar
que quando falamos do popular como projeto estético de Mário, queremos dizer que ele usa
aspectos da cultura popular (linguagem, lendas, crendices, ética popular, folclore) a fim de
explicar as contradições da nossa identidade cultural, como afirma Telê Porto Lopez:
Mário de Andrade como artista ou como teórico do papel a ser desempenhado pelo
artista, em toda a sua trajetória literária, nunca mistura atribuições de povo com
atribuições de intelectual. A este compete analisar, dar ao povo uma consciência
crítica, para que ele possa chegar a soluções capazes de eliminar as contradições que
o atingem. (LOPEZ, 1972, p. 249).
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1860
Já que, uma das questões centrais do seu projeto estético-ideológico seria a busca da
nossa identidade cultural. Verificamos, portanto, essa preocupação em toda a sua carreira
literária e ensaística, já que se via questionado pelas relações identitárias, tanto nos aspectos
específicos, quanto nos aspectos gerais.
Para Mário de Andrade (1983, p.18), no que se refere à nossa cultura, o maior
problema atual (1925) do Brasil estava “no acomodamento da nossa sensibilidade nacional
com a realidade brasileira”, realidade que não é só feita de ambientes físicos e dos enxertos de
civilização que vicejam nele, mas também “a nossa função histórica para conosco e social
para com a humanidade”. Pois, para ele a relação entre culturas diversas não se repulsam,
apesar dos confrontos culturais, mas, se completam.
Movido obcecadamente por essa vivência-reconhecimento, passou a observar,
pesquisar, examinar, “viver” tudo aquilo a que se referia à singularidade da cultura popular
brasileira, pois acreditava que esse seria o caminho para o autoconhecimento do povo
brasileiro e para a renovaçãoda Literatura Brasileira dentro de sua realidade. De acordo com
Telê Porto Lopez:
Mário de Andrade entra em contato com a Literatura Popular em duas áreas
distintas: o Folclore propriamente dito, quando pesquisa documentos ao vivo ou
registrados em trabalhos de folcloristas, etnógrafos e sociólogos; a literatura culta,
quando capta as composições populares e as recria em romances, contos e poemas.
(LOPEZ, 1972, p. 201).
Transfigurando a cultura popular para suas obras, Mário de Andrade contribuía para o
tão desejado auto-reconhecimento do povo brasileiro.
No seu processo de criação temos aquilo que Lopez (1972, p. 203), entre outros,
chamou de nacionalismo estético e aquilo que ele próprio denominou de constatação da
constância cultural brasileira como ele mesmo afirma em um texto publicado no Diário
Nacional (1927), referindo-se à sua personagem Carlos (Amar, verbo intransitivo) “Ele não
chega a manifestar o estado bio-psíquico do indivíduo que se pode chamar de moderno. Ele é
apenas uma apresentação, uma constatação da constância cultural brasileira”.
Delimitando nossos estudos a Amar, verbo intransitivo e Macunaíma, podemos
observar, a constatação da constância cultural brasileira e o nacionalismo estético, uma vez
que, foram abordados elementos da cultura popular brasileira na construção dessas obras, a
fim de mostrar-nos o objetivo nacionalista do seu autor moderno.
Em suas obras, Mário de Andrade faz o uso do caráter analítico na construção das
personagens, discriminando assim, as características psicológicas brasileiras, preocupando-se
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1861
com o caráter do brasileiro numa dinâmica nacional. Pretendia, pois, buscar uma identidade
nacional. Mário de Andrade queria assim como Macedo em A Moreninha e Manuel Antônio
Almeida, ser analítico, transformar o universal em particular.
Em Amar, Verbo Intransitivo, Mário de Andrade faz uma abordagem da nossa
identidade cultural na construção da personagem Carlos e da influência de uma alemã
(Fräulein) na sua formação, o que reforça a ideia da nossa diversidade cultural, mas, o mais
importante, é a dificuldade humana nos confrontos culturais. Podemos observar esse
confronto cultural através da fala do narrador:
Mas não tem dúvida: isto da vida continuar igualzinha, embora nova e diversa, é um
mal. Mal de alemães. O alemão não tem escapadas nem imprevistos. A surpresa, o
inédito da vida é pra ele uma continuidade a continuar. Diante da natureza não é
assim. Diante da vida é assim. Decisão. Viajaremos hoje. O latino falará:
Viajaremos hoje! O alemão fala: Viajaremoshoje. Ponto final. Pontos-deexclamação... É preciso exclamar pra que a realidade não canse. (ANDRADE, 1995,
p. 54).
Podemos ainda observar, os estereótipos de ambas as culturas (Alemã e Brasileira), a
cultura alemã “taxada” por sua “rigidez” e a brasileira por seu “relaxamento”.
Observando o caráter psicológico de Carlos, podemos notar que ele é dotado de
individualismo, indivíduo puro, tradicional, que por vezes se mostra brincalhão e outrora
sujeito às normas (normas burguesas), o que não parece ser nenhuma novidade uma vez que o
próprio Mário de Andrade já havia mencionado isto, “Carlos, indivíduo puro, indivíduo que
se sujeita às grandes normas, eu creio que pude coroar a sátira com uma evocação que vai
além dos simples valores hedonísticos”. (ANDRADE, 1995, p. 154). Contudo, é lúcido aqui
dizer, que Carlos é a representação do “tradicionalismo “cultural” brasileiro burguês
octocentista”, mas, que nos remete o nacionalismo e a constatação da constância cultural
brasileira, abordados por Mário de Andrade.
No que se refere a Carlos ser brincalhão, nos faz lembrar, de Macunaíma. Carlos
gostava de brincar (brincadeira inocente, mas às vezes, perversa) com sua irmã. Macunaíma
também, mas vale salientar que Macunaíma brincava com sua cunhada, mas “já na meninice
fez coisas de sarapantar”.
Em Macunaíma, houve uma tentativa de traçar o retrato brasileiro, por meio de lendas,
folclore, crendices, costumes, culinária, fauna, flora, tradições e falares das diferentes regiões
brasileiras e a nossa (des)caracterização na configuração da personagem Macunaíma que era
índio, mas nasceu negro e que ao longo da narrativa torna-se branco, passando a representar
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1862
nosso “herói” com traços tipicamente brasileiro (preguiçoso, esperto, sensual, malandro e às
vezes grotesco).
Comentando a respeito de elementos constitutivos da nossa nacionalidade, Eduardo
Jardim de Moraes observa que:
Na composição de Macunaíma e em seus escritos críticos da época nota-se o
cuidado rigoroso de efetuar o levantamento do material que torna possível traçar o
perfil do Brasil. Era intenção de Mário de Andrade em sua perspectiva analítica, ao
justapor os variados elementos culturais presente na esfera nacional, chegar à
definição de um elemento comum que qualificasse todos como pertencentes ao
mesmo patrimônio cultural. (MORAES, In BERRIEL, 1990).
Entretanto, podemos dizer que Mário de Andrade não teve a intenção de
“universalizar” a identidade nacional em um ser, mas mostrar a diversidade de “retalhos” que
a constitui. Cabe aqui lembrar a imagem arlequinal que tanto Mário de Andrade gostava de
usar para representar o ser brasileiro.
Macunaíma mistura o popular com o erudito, conforme Alfredo Bosi (2003), o
“cruzamento de perspectiva que enforma a rapsódia”, ou seja, temos aí dois lados do romance,
um é a maneira que o civilizado ver o primitivo, e o do primitivo que satiriza a burguesia. De
acordo com Antonio Candido:
Mário de Andrade, em Macunaíma (a obra central e mais característica do
movimento), compendiou alegremente lendas de índios, ditados populares,
obscenidades, estereótipos desenvolvidos na sátira popular, atitudes em face do
europeu, mostrando como a cada valor aceito na tradição acadêmica e oficial
correspondia, na tradição popular, um valor recalcado de que precisava adquirir
estado de literatura. (CANDIDO, 2000, p. 120).
Macunaíma (Macunaíma) demonstra também, a nossa pluralidade cultural e racial (era
para ser índio, mas nasce preto e depois se torna branco), isto nos remete ainda o primitivo
que se (en)desencanta com a civilização, mas, que não se incomoda em deixar para trás a sua
cultura e que incorpora sem “nenhum caráter” traços da cultura européia. Cabe aqui destacar,
que podemos ter essa “visão” tanto em Macunaíma quanto em Carlos (Amar, Verbo
intransitivo), visão esta, de incorporação de traços da cultura europeia, no caso de Carlos a
Alemã.
Compreendemos ainda que há uma relação entre Carlos (Amar, verbo intransitivo) e
Macunaíma (Macunaíma) que é a paixão de “brincar” do brasileiro. Ora, Amar, verbo
intransitivo nos conta a história de uma professora de amor que foi contratada pelo pai (o
Senhor Sousa Costa) do adolescente Carlos, para “ensiná-lo” a “amar”, pois temia os riscos
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1863
que o filho poderia correr ao ter uma iniciação sexual numa sociedade que lhe oferecia riscos,
tais como, vícios e “doenças venéreas”. Portanto Carlos “aprende a amar”, ou seja, a
“brincar”, pois assim como Macunaíma (Macunaíma) gostava de “brincar”. Entretanto,
Macunaíma teve sua iniciação sexual, mais cedo que Carlos, não com uma professora, mas
com alguém que já sabia “brincar” e que depois ao se apaixonar por Ci, a mãe do mato,
precisa da ajuda de seus irmãos Maanape e Jiguê para poder “brincar” e brincando se
apaixonam. Porém, o fato de Ci ser o seu “amor primeiro” não o impede de desejar e brincar
com outras icamiabas. Manifesta aí a paixão de brincar, como traço característico da nossa
identidade cultural, que de acordo com Gatto (2004 p. 208), “fez-se tema para Mário de
Andrade afinar o nacionalismo”.
Ao observar a relação existente entra as personagens Carlos (Amar, verbo intransitivo)
e Macunaíma (Macunaíma) podemos relatar a aproximação cultural entre ambas, em que
extrapola os limites de uma obra, não em nome de uma personalidade, mas de uma causa: a
identidade cultural brasileira. Todavia, ao observarmos a relação surge a possibilidade de a
personagem Macunaíma ser uma “versão” aprofundada da personagem Carlos, esteticamente
falando, levando-nos assim, a refletir sobre o universo de personagens de um autor e
acreditarmos que no processo de construção de personagens de um autor, há o que
poderíamos chamar de núcleo e que ele atrai tudo para seu centro. Conforme Gatto:
Por um lado, dizer que o processo de criação de personagens em Mário de Andrade
se resume à busca da identidade cultural do brasileiro seria um despropósito, tendo
em vista suas múltiplas facetas (“trezentos, trezentos e cinquenta”); por outro,
apreciando Macunaíma como um Carlos abrasileirado ao paroxismo, levantamos
outras possibilidades, de passagem: não serão todos os personagens de um autor, por
fim, um único personagem sempre mais e mais aprofundado segundo os interesses
do ficcionista? Não teria um autor, no seu infinito universo de personagens, tipos e
caricaturas (planas e redondas), um núcleo que como um polo magnético atrai tudo
para o seu centro? Sem uma resposta pronta para uma questão tão ampla e
complexa, podemos inferir, circunscritos à pouca amplitude das nossas reflexões,
que tal núcleo em Mário de Andrade seria a identidade cultural do brasileiro e o
centro, o nacionalismo estético. (GATTO, 2004, p. 209)
Se Carlos (Amar, verbo intransitivo) e Macunaíma (Macunaíma) são frutos desse
nacionalismo estético e representação da constatação da constância cultural brasileira, não
seríamos levianos em acreditarmos que Macunaíma seria a versão aprofundada de Carlos, no
que se refere à estética de criação e projeto ideológico do criador – Mário de Andrade. Sem
uma resposta ainda concreta para tamanha complexidade, cabe aqui mencionar que a
totalidade na arte implica substituir à totalidade extensiva do real, a totalidade intensiva da
essencialidade na coerência estética da obra de arte. Iracema não é simplesmente um
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1864
anagrama de América, bem como Clara dos Anjos não é somente uma jovem negra vitimada
pelo destino em um mundo reacionário e preconceituoso, mas ela é a representação artística,
como caráter épico, de todas as mulheres negras.
E Carlos, e Macunaíma constituem-se nesse brasileiro típico que, em termos de nacionalidade,
refletem a perspectiva crítica do modernismo brasileiro de Mário de Andrade.
Referências
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______. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Rio de janeiro: Agir, 2007.
______. Entrevista e depoimentos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983.
______. A propósito de Amar, verbo intransitivo- 1927. In: ____. Amar, verbo intransitivo –
Idílio. 16.ed. Belo Horizonte: Villa Rica, 1995. p. 153-155.
BOSI, A. Céu, inferno – Ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Duas Cidades,
2003.
CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. 10ª Ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2000.
COSTA, M. M. O modernismo segundo Mário de Andrade. In: COSTA, Marta Moraes et al.
Estudos sobre o modernismo. Curitiba: Criar, 1982. P. 11- 43.
GATTO, D. A tragédia na ficção de Mário de Andrade. Assis, 2004. 366f. Tese (Doutorado
em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
LOPEZ, T. P. A. Uma difícil conjugação. In: ANDRADE, M. Amar, verbo intransitivo,
Idílio. 16.ed. Belo Horizonte: Villa Rica, 1995. P. 9-44.
______. Mário de Andrade: Ramais e Caminhos. São Paulo: Duas Cidades, 1972.
RICUPERO, Bernardo. A independência literária. In: O romantismo e a idéia de nação no
Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins Fontes, 2004.
SILVEIRA, Sirlei. O Brasil de Mário de Andrade. Campo Grande: UFMS, 1999.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1865
MUNDOS LENDÁRIOS: LENDAS NEGRAS E URBANAS NO
CONTEXTO DA SALA DE AULA
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Maria das Graças da Costa (UFCG)
Ana Rafaela Oliveira e Silva (UFRN)
1
A leitura enquanto processo de interação e aprendizagem em sala de aula
A leitura ao longo dos anos passou por várias reformulações no ambiente de sala de
aula e, de acordo com essas, a posição do aluno e do professor também se reformulou e
ganhou conotações de interação e liberdade de expressão do conhecimento de mundo e da
imaginação. Além disso, as estratégias de leitura também ganharam significativo espaço nos
contextos escolares – oficinas, leitura compartilhada, comentários acerca da leitura realizada,
entre outros, as quais permitem aos alunos e professores interagirem entre si e com o texto
lido.
Em face disso, entendemos que,
a leitura está se tornando uma atividade central da aula, ocorre diariamente e, com
isso, os professores têm mostrado aos alunos sua importância. As crianças podem
conhecer diversos gêneros textuais, escritores e suas obras, valorizar diferentes
estilos e apreciar textos de qualidade, previamente selecionados pelo professor, que
compartilha com elas os critérios de sua escolha. (PEREIRA, 2013, p. 01).
Compreendemos também que essa centralidade da leitura em sala de aula não se
restringe apenas as aulas de língua portuguesa, mas amplia-se para outras disciplinas a fim de
que o aluno perceba que o ato de ler não é exclusividade de apenas uma disciplina ou do
espaço escolar. A leitura constitui um elo fundamental entre a sociedade, a escola e o aluno
enquanto ser pertencente a um contexto sociocultural eminentemente grafocêntrico cuja
realização depende de práticas de leitura constantes.
No entanto, ressaltamos que,
ler fluentemente não significa compreender o que se lê, pois é possível ler
rapidamente sem entender o assunto de que trata o texto. A leitura de um texto
requer conhecimento de seu propósito por parte dos alunos, já que fluência também
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1866
tem a ver com a intenção da leitura: para que ler, quais estratégias poderão ser
utilizadas e o que se espera ao final. E é importante expor aos alunos esses
propósitos em cada atividade. Costumamos "tomar" um texto sempre com uma
intenção e esta não necessariamente está vinculada ao gênero. (PEREIRA, 2013,
p.02).
Observamos também que,
o leitor que ainda está preso à decifração dificilmente consegue entender o que
aborda o texto lido, pois não utiliza as estratégias mais adequadas para a
compreensão. É necessário um trabalho que o ajude a ir além da leitura "palavra a
palavra" ou "sílaba a sílaba" para buscar outros meios de identificação que permitam
tornar a leitura mais fluente, utilizando paralelamente os processos de decifração e
compreensão. (PEREIRA, 2013, p. 02).
Diante disso, para resolver os problemas existentes em sala de aula referentes à leitura,
professores têm elaborado oficinas de leitura nas quais um gênero textual/discursivo é
trabalhado em relação à estrutura, compreensão leitora oral e escrita, leitura e interpretação.
Em face das considerações acima apresentadas, este artigo tem por objetivo descrever
os procedimentos e resultados da oficina de leitura “Lendas Negras e Urbanas no Contexto de
Sala de Aula” desenvolvida com alunos do 6° ao 9° ano do ensino fundamental da Escola
Estadual Isabel Oscarlina Marques da cidade de Santa Cruz/RN. A referida oficina foi
conduzida pelas então graduandas Ana Rafaela Oliveira e Silva e Maria das Graças da Costa,
na graduação de Letras - UFRN – Campus de Currais Novos, sob a orientação da profa. Dra.
Márcia Tavares Silva.
A seguir discutiremos mais especificamente sobre a formação leitora por meio da
organização de oficinas em sala de aula, metodologia que orientou o presente trabalho,
subsidiada pelos escritos de Cosson (2006).
2
Formação de leitores e o trabalho com oficinas
O prazer na leitura é um dos pontos de referência na organização de nossa oficina.
Sobre essa importância do prazer na constituição do leitor literário, torna-se interessante
retomar o que diz Jauss acerca do prazer estético:
a determinação do prazer estético de si no outro pressupõe, por conseguinte, a
unidade primária do prazer cognoscente e da compreensão prazerosa, restituindo o
significado, originalmente próprio ao uso alemão, de participação e apropriação.
(JAUSS apud LIMA, 2002, p. 98).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1867
Outro fator decisivo para a escolha dos textos para compor nossa experiência de
leitura e interpretação foi a preponderância do “maravilhoso”, tratada por Coelho (1991. p.
50) como “um dos elementos mais importantes da literatura destinada às crianças” pois, para a
psicanálise, os “significados simbólicos” presentes em textos com estes aspectos relacionamse aos dilemas enfrentados pelos homens durante o processo de amadurecimento emocional.
Para a literatura é reservado um espaço precário na escola, tendo em vista a
sobreposição de outras disciplinas e supervalorização de ensinamentos didáticos nesse
ambiente de ensino. No entanto, esquece-se muitas vezes o poder formativo da leitura, e não
apenas da leitura orientada pelos manuais didáticos, mas também a leitura espontânea, aquela
que cativa o leitor pelo simples prazer de ler, de conhecer outros universos, de partilhar com
personagens fictícios suas dores, angústias e prazeres.
Diante disso, compreendemos a relevância da leitura para a formação dos alunos,
para a evolução destes como indivíduos melhores. Ainda mais, percebemos a relevância dessa
mudança para a própria sociedade, que muito ganhará com a melhoria no ensino de literatura,
contribuindo para o desenvolvimento de leitores críticos e atuantes, capazes de ler o mundo,
de ir além do óbvio.
Jouve (2002) trata em seu livro A leitura, sobre efeitos da escolha do gênero sobre o
leitor, para ele “a obra define seu modo de leitura pela sua inscrição num gênero e seu lugar
na instituição literária” de tal modo que “o gênero remete para convenções tácitas que
orientam a expectativa do público”.
Percebemos, portanto, que a escolha do gênero a ser trabalhado em sala de aula deve
ser muito bem planejada, de acordo com os objetivos almejados pelo professor e também pela
instituição escolar. Contudo, é importante que aspectos como a própria vivência dos alunos,
seus interesses e escolhas sejam considerados, no sentido de adequar as escolhas escolares ao
alunado, sempre na intenção de resgatar o gosto pela leitura. Depois desse passo inicial tão
relevante, é possível partir para etapas mais complexas, com gêneros outros, sem pular
momentos necessários e decisivos na constituição do leitor literário.
Sobre esse crescimento e construção do ledor, Eco (1985) destaca que “o leitor parte
das estruturas mais simples para chegar às mais complexas: dessa forma atualiza
sucessivamente as estruturas “discursivas”, “narrativas”, “actanciais” e “ideológicas”. Essa
performance do leitor de atualizar os diferentes níveis de um texto torna evidente a existência
de uma competência possuída pelos leitores e que compreende o conhecimento de um
“dicionário de base”, “regras de co-referência”, capacidade de detectar as seleções contextuais
e circunstanciais, a capacidade de interpretar o “hipercódigo retórico e estilístico”, uma
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1868
familiaridade com “cenários comuns e intertextuais”, e, enfim, um visão ideológica. (ECO,
1985 apud JOUVE, 2002).
Nesse contexto, o aluno não pode ser visto como sujeito passivo, com visão
determinada e definida por si só, mas sim, um ser que possui características particulares que o
especificam, que os tornam únicos. Os saberes intrínsecos desse público vão determinar seus
gostos, seus interesses e desinteresses por determinada leitura, destarte torna-se necessário
conhecer o educando para propor leituras realmente coerentes e eficientes para sua
constituição como leitor.
É possível então concluir com Jauss que, graças à leitura, as obras literárias têm uma
importância muito grande na evolução da mentalidade do aluno: podem, em certos casos, préformar os comportamentos, motivar uma nova atitude, ou transformar as expectativas
tradicionais. (JOUVE, 2002).
No que concerne a inserção dos temas referentes a cultura Africana e Afro-Brasileira
em sala de aula, torna-se relevante considerar a Lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003, a partir
da qual consolida-se a obrigatoriedade do trabalho sobre História e Cultura Afro-Brasileira,
tanto nas disciplinas de História, Educação artística e também Literatura. Nesse sentido,
buscamos atender a esse parâmetro e contextualizá-los de modo positivo com os conteúdos de
Língua Portuguesa, considerando relações interdisciplinares e os objetivos almejados por
nossa oficina.
Como nos mostra Oliva (2003), a cultura africana não pode ser restrita apenas aos
contos, tendo em vista que, como demarca o próprio conceito de cultura, temos englobados os
aspectos referentes a danças, comidas, músicas, manifestações religiosas, cultura oral e,
somado a esse acervo, os contos tradicionais. Sendo assim, selecionamos as lendas como
norte para nosso trabalho, contudo, procuramos incluir aspectos mais amplos acerca da
cultura Africana, atentamos para o trabalho com música, a construção de um acervo
imagético, pontos sobre expressões religiosas e ambientação.
A escolha da prática da leitura como ponto norteador do projeto de intervenção deu-se
a partir da constatação das dificuldades apresentadas pelas turmas observadas nas atividades
de estágio anteriores. Diante disso, objetivamos auxiliar no decorrer do projeto na superação
de dificuldades como:

Desconhecimento da cultura e literatura Africana e Afro-Brasileira;
 Falta de interesse pela leitura;
 Dificuldades em interpretar e compreender textos escritos;
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1869
 Problemas com a construção de textos e compreensão de sua estrutura;
 Desconhecimento acerca do gênero lenda e suas características principais;
 Dificuldades na interação e participação na aula;
 Falta de interesse por aulas que envolvam a prática da leitura.
Nessa perspectiva, baseamo-nos nas problemáticas presentes nas turmas de 6° e 9°
ano do ensino fundamental observadas durante atividades de estágio, para auxiliar na
construção de atitudes que possam solucionar ou minimizar as dificuldades constatadas. Por
meio da verificação dessas dificuldades partimos para a busca de soluções práticas, utilizando
os conteúdos discutidos nas aulas da graduação.
No tópico seguinte apresentaremos de modo mais direto o trabalho desenvolvido na
oficina de leitura, com destaque para os conteúdos e metodologias de cada encontro.
Esperamos assim construir uma clara compreensão do andamento do trabalho que foi
desenvolvido, seus objetivos e resultados.
3
Uma proposta de leitura através do gênero lenda
Na oficina de leitura - Mundo lendários: lendas negras e urbanas no contexto de sala
de aula - trabalhamos o gênero textual/discursivo lenda, sobretudo, as lendas negras e
urbanas, porque entendemos que o referido gênero atua de modo positivo e estimulante, além
de despertar o interesse e participação do alunado.
Nessa perspectiva, é relevante justificar o porquê da escolha por lendas africanas e
urbanas. A esse respeito, trabalhamos lendas africanas em sala de aula em virtude de que,
na cultura africana, a fala ganha força, forma e sentido, significado e orientação para
a vida. A palavra é vida, é ação, é jeito de aprender e ensinar. O poder da palavra
garante e preserva ensinamentos, uma vez que possui uma energia vital, com
capacidade criadora e transformadora do mundo. (VIEIRA, s.d, p. 01).
Além disso,
a matriz africana mantém parte de sua essência pela tradição de contar e vivenciar
histórias míticas, consideradas práticas educacionais que chamam a atenção para
princípios e valores, para o autoconhecimento, socialização de saberes e convivência
comunitária. (VIEIRA, s.d, p. 01).
Desde que o homem aprendeu a falar sentiu a necessidade não apenas de se comunicar
ou atribuir significados ao mundo que o cercava, mas de explicar como determinados
fenômenos aconteciam. Para tanto, misturavam fatos reais e imaginários na perspectiva de
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1870
conferir veracidade ao que era explicado e/ ou representados. Dessa forma nasceram às
lendas, que ao longo de gerações foram transmitidas oralmente e, por isso, adquiriram novas
alterações, conceituada como “uma narrativa imaginária que possui raízes na realidade
objetiva. É sempre localizável, isto é, ligada ao lugar geográfico determinado”. (Dicionário de
Teoria Folclórica, 1977 apud LÓSSIO, s.d.).
Diante disso, é possível perceber que o gênero discursivo/textual lenda, em contextos
de sala de aula, fornece ao professor diversas maneiras de trabalhar as dificuldades do aluno
no tocante a leitura e interpretação de texto, reconhecimento da estrutura textual, oralidade e
escrita. Nessa perspectiva, na oficina de leitura aqui apresentada tivermos como objetivos
trabalhar com lendas, sobretudo africanas e urbanas, porque entendemos que ao mesmo tempo
em que estas possuem as características já mencionadas, são diferentes em diversos aspectos,
principalmente o aspecto cultural. Sendo assim, compreendermos que as lendas africanas
remetem exclusivamente a países do continente africano, bem como, a seus elementos
linguísticos, culturais e sociais, enquanto que as lendas urbanas tem uma abrangência maior
em virtude dos meios de comunicação de massa, podem ser antigas e contemporâneas, e
algumas têm temáticas atuais.
Temos assim ferramentas a favor de atitudes inovadoras. Os estudos teóricos sobre
recepção de textos, assim como o maior acesso a literatura, são aspectos que fortalecem a
implementação de posturas novas, em que se torna possível à aplicação desses conceitos a um
cenário real, aliado a metodologias atuais e embasadas nos conhecimentos sobre tal temática.
Baseamos nosso planejamento da experiência de leitura no modelo de oficina.
Através dessa técnica que consiste em “aprender a fazer fazendo”, pretendemos levar o aluno
a construir pela prática seu conhecimento (COSSON, 2006. p. 48). Antes disso, efetivamos
uma sondagem na escola determinada para a realização do trabalho, no intuito de considerar
aspectos referentes ao espaço dado à literatura, o tratamento da literatura em sala de aula e a
relação dos alunos com textos literários, na intenção de definir o estado inicial desse leitor e
os resultados obtidos ao final da pesquisa.
Em nosso trabalho nos aproximamos do modelo de sequência expandida apresentada
por Cosson (2006, p. 77-96) constituída pelas seguintes etapas:
1º motivação: consiste em uma atividade de preparação, de introdução dos alunos no universo
das narrativas a serem lidas;
2º introdução: apresentação do autor e dos textos, aproveitando os conhecimentos prévios
dos alunos;
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1871
3º leitura: planejamento da efetivação da leitura, dividida entre atividades intra e/ou
extraclasse, estabelecimento de prazos para realização dessa leitura;
4º interpretação: apreensão das narratias, seguida de outras atividades de interpretações
secundárias (após as atividades de contextualização);
5º contextualização: subdividida em contextualização teórica, contextualização histórica,
contextualização
estilística,
contextualização
poética,
contextualização
crítica,
contextualização presentificadora, contextualização temática;
5º expansão: construção de relações textuais com outros textos.
Abaixo um quadro resumido com as principais atividades realizadas durante a oficina
Lendas negras e urbanas no contexto de sala de aula:
Tabela 1. Autoria própria.
Um trabalho de leitura através do gênero lendas
Objetivos principais:
Trabalhar no aluno sua capacidade de interpretação textual; desenvolver nos alunos o
senso crítico, o posicionamento ativo diante de suas práticas de letramento assim como
o gosto pela leitura; estimular a capacidade de interação e troca de experiências entre os
alunos e o professor; incentivar o aluno a ativar seus conhecimentos de mundo no
momento da leitura e na ocasião possibilitá-los a construir novos conhecimentos por
meio da exploração dos gêneros textuais em estudo; construir, de forma lúdica, a
compreensão de textos advindos da oralidade e identificar as marcas que os definem
como tal.
Sequência de aulas
Atividades realizadas
1 º aula
Conteúdo: conceito de lenda
Metodologia: questionamentos acerca dos conhecimentos prévios dos
alunos, apresentação da oficina, objetivos e conceitos básicos.
2 º aula
Conteúdo: leitura e interpretação
Metodologia: leitura compartilhada e análise participativa da primeira
lenda Tsui’goab ou A batalha contra a Morte; delimitação dos
aspectos mais relevantes da lenda: personagens, tema, tempo e espaço.
3 º aula
Conteúdo: oralidade e expressão
Metodologia: discussão com a turma e apresentação dos trabalhos.
4 º aula
Conteúdo: análise e interpretação
Metodologia: leitura e análise da lenda Quem perde o corpo é a
língua; realização de exercício interpretativo; leitura da lenda A
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1872
menina e o barril.
Conteúdo: desconstruindo e construindo uma lenda
5 º aula
Metodologia: apresentação do livro Pequeno ABC das expressões
afro-brasileiras de cordel e uso do material como apoio para a
construção das lendas, resgatando expressões presentes no livro;
produção em grupo de uma lenda simples baseado nos aspectos
abordados nas aulas anteriores, usando como fonte o vídeo Hungu.
Conteúdo: consolidando aprendizagens
6 º aula
Metodologia: leitura e apresentação dos trabalhos feitos pelos alunos;
realização de discussões;
Conteúdo: lendas urbanas e sua relação com as lendas de origem
7 º aula
africana
Metodologia: discussão com a turma acerca do conhecimento dos
textos sobre as lendas urbanas; leitura de uma lenda urbana e
delimitação de seus aspectos mais relevantes.
8 º aula e 9º aula
Conteúdo: síntese dos conteúdos estudados
Metodologia: construção de resumos sobre as lendas vistas e sobre os
conceitos norteadores das leituras, no intuito de produzir uma
exposição sobre as lendas.
10º aula
Conteúdo: conclusão e avaliação da oficina
Encerramento
Metodologia: realização de discussão com a turma sobre as
experiências de leitura proposta no decorrer da oficina e no que isso
interferiu em suas práticas de leitura e interpretação; reflexão acerca
da importância da leitura para o desenvolvimento pessoal e
intelectual; encerramento com uma mini sessão de cinema com o
filme Besouro: nasce um herói.
A experiência foi realizada com alunos do 6º ao 9º anos do ensino fundamental,
tendo em vista o nível de leitura almejado para a efetivação das atividades de leitura a partir
dessa narrativa, considerando sua extensão, assim como a faixa etária e as discussões que
poderiam ser realizadas. As atividades de leitura e análises foram desenvolvidas de forma
fragmentada, distribuídas em dez encontros, em que cada encontro consistiu na leitura,
análises de cada lenda e exercícios interpretativos.
Os participantes da oficina tiveram acesso ao material a ser lido de modo gradativo,
no decorrer dos encontros. Mesclamos atividades de leitura individual, em grupo e leituras
orais em sala. Assim foi possível captar, por meio de discussões e relatos dos mesmos, as
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1873
experiências de leitura e percepções de cada sujeito diante do contato com o gênero
trabalhado. As discussões com os participantes ocorreram após o encerramento de cada etapa
de leitura.
O espaço escolar, apesar de todas as limitações, promove uma das mais ricas
experiências no âmbito da leitura: a leitura compartilhada. Esse fator favorável proporcionou
a averiguação da relação entre a leitura individual e a leitura compartilhada, tendo em vista
que, no decorrer da oficina, mesclamos atividades envolvendo essas duas modalidades de
leitura. A atividade atuou de modo bastante positivo por nos possibilitar a averiguação das
transformações ocorridas na realidade desses alunos, seus posicionamentos e posturas diante
das atividades realizadas. Além disso, pretendia-se compreender as referências dos alunos a
respeito do contexto apresentado nas narrativas lidas, tendo em vista o distanciamento
temporal dessas produções e os aspectos sociais intrínsecos nas obras.
Um dos aportes teóricos utilizados para orientação de nosso projeto foi os Parâmetros
Curriculares Nacionais do terceiro e quarto ciclo do ensino fundamental (PCN’s), recorrendose, portanto, ao conceito de leitura como “processo no qual o leitor realiza um procedimento
ativo de compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento
sobre o assunto, sobre o autor, de tudo que sabe sobre a linguagem”. Sendo assim, através da
prática da leitura, como orientam os PCN’s (1998, p. 69), pretendíamos incentivar nos alunos
atendidos pelo referido projeto o gosto pela leitura, de modo a apresentar atividades variadas e
motivadoras, buscando sempre abordar aspectos referentes à obra, autor e funcionalidades do
gênero trabalhado.
4
Considerações finais
A sala de aula como espaço de leitura não costuma ser uma constante em escolas públicas,
percebe-se a não consideração desse ambiente como um promissor para a realização de atividades
literárias levando-se em conta a oganização da estrutura curricular, o pouco tempo destinado a
essa prática e a falta de ferramentas. Uma das alternativas viáveis para solucionar essa
problemática é a criação de oficinas de leitura, ambientes preparados para a realização dessas
propostas e propícios a um envolvimento do alunado na efetivação dessa experiência.
É realmente possível construir um ambiente capaz de aproximar esse leitor da
literatura almejada e valorizada pela escola. No entanto, é importante destacar a
impossibilidade de realizar esse trabalho em alunos que não tiveram ainda a oportunidade de
dar o primeiro passo nessa caminhada tão árida e recompensadora.
Percebe-se que, mesmo nos casos em que a escola e o próprio docente incentivam a
leitura em seus alunos, a imposição de leituras fechadas e já delimitadas acaba por desanimar
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1874
esse leitor. Para a formação de um leitor real, é necessário que haja liberdade de escolha, ou
que, no mínimo, sejam consideradas questões referentes à identificação desse público para
com as obras. Foi essa postura que assumimos na realização de nosso trabalho.
Referências
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COELHO, N. N. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. 5. ed. São Paulo: Ática, 1991.
COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
JOUVE, C. V. A leitura. São Paulo: UNESP, 2002.
LIMA, L. C. (Org.). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. 2 ed. rev. ampl. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
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literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos (UCAM. Impresso), Rio de Janeiro, v. 25, n.3, p.
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Julho, 2013. Seção Fundamental 1. Disponível em:
<http://revistaescola.abril.com.br/fundamental-1/importancia-leitura-sala-aula-fluencialeitora-748409.shtml?page=0>. Acesso em: 10 de abril de 2015.
VIEIRA, V. M. Ler a África para compreender o mundo. Lego cursos. S.d. Seção Artigos.
Disponível em: <http://www.legocursos.com.br/new/artigos-detalhe.php?id=23>. Acesso em:
10 de abril de 2015.
Filmografia:
BESOURO: Nasce um herói. Diretor: João Daniel Tikhomiroff. Produção: Vicente Amorim.
– Brasil, 2009. Distribuidora Buena Vista Home Entertainment, Estúdio Pixer.
HUNGU. Nicolas Brault. The National Film Board of Canada. 2008, 9 min 9 s.
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1875
EVENTOS DE LETRAMENTO: O USO SOCIAL DA LEITURA
E DA ESCRITA NA SALA DE AULA
[Voltar para Sumário]
Maria das Vitórias dos Santos Medeiros (UFRN)
Maria Marlene dos Santos (UFRN)
Introdução
Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa qualitativa realizada em sala de aula.
Seu objetivo principal é descrever a aula como um evento de letramento e mostrar algumas
práticas de leitura e de escrita que foram desenvolvidas nesse evento. A descrição da análise
fora embasada nos quatro elementos de Hamilton (2000) participantes, domínio/ambiente,
artefatos e atividades. Para tanto, buscamos uma concepção de letramento como prática
social, a qual é constituída a partir de significados, valores e usos atribuídos à escrita pelos
grupos sociais. Com base nesta concepção definimos letramento, práticas de letramentos e
eventos de letramento. Também mostramos a diferença entre alfabetização e letramento, os
modelos de letramento autônomo e ideológico, a relação entre letramento escolar e social e o
processo de pedagogização. Como fundamentação teórica utilizamos os estudos de autores
(as) como Mortatti (2004) e Street (1984-2003) entre outros. Como essa noção de letramento
se insere nos estudos de Street (2003) ele argumenta que pesquisa em NLS, ao mudarem a
visão sobre letramento, sugere que práticas de letramentos variam de um contexto para outro,
de uma cultura para outra e ainda existem efeitos de diferentes letramentos em diferentes
condições.
Costa (2010) afirma que para os estudiosos do NLS, a concepção de um
significado social do letramento precisa estar fundamentada em um trabalho de campo
cuidadoso sobre as funções que as atividades e as habilidades de leitura e de escrita exercem
na vida social.
Segundo Costa (2010), inicialmente, essa noção traz como referência uma concepção
de letramento-modelo ideológico (Street, 1984) - não como um fenômeno universal, mas
como um conjunto de práticas sociais ligadas à escrita em instituições e contextos
socioculturais específicos, para objetivos específicos. A escola é entendida assim como um
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1876
contexto específico, com finalidades específicas ao conjunto de práticas sociais de leitura e
escrita.
Para complementar a ideia de letramento de Street (2003), Costa (2010) acrescenta que
estudos desenvolvidos por um grupo de pesquisadores da universidade da Califórnia, grupo de
Santa Bárbara, dentre eles Castanheira, Crawford, Green e Dixon concebem o letramento
como um fenômeno social que é definido e redefinido em cada grupo e, por contraste e
diferenciação, entre vários grupos tornando-se visível nas ações e orientações de seus
participantes, bem como nas responsabilidades que assumem ou atribuem aos outros, na
aceitação ou rejeição de respostas ou engajamentos que têm com diversos textos. A partir
dessa concepção, examinam a construção coletiva de práticas de letramento em um
determinado grupo e as possibilidades que se tornam disponíveis aos participantes para se
tornarem letrados de uma maneira particular ao grupo a que pertencem.
Para Costa (2010), a pesquisa de Castanheira, Crawford, Dixon & Green (2001)
demonstra que nessa perspectiva o estudo do letramento pode tornar visível alguns dos
aspectos deste fenômeno ao examinar como membros de um grupo, uma cultura particular,
constroem e reconstroem práticas de leitura e escrita como parte de sua vida cotidiana.
Heath (1983) corrobora, afirmando que a aula como evento de letramento tem que ser
entendida como um macro-evento por tomar a escrita como um eixo estruturador das
interações que são vivenciadas na sala de aula. No interior da aula, realiza-se um conjunto de
atividades mediadas pelo texto escrito, que podemos chamar de micro-eventos.
Com base nessa afirmação, analisar os eventos de letramento, na sala de aula segundo
Costa (2010) significa, então, descrever as regras a eles subjacentes, levando em conta a
situação de interação (os sujeitos e seus objetivos, o referente ou objeto da interação), o
material escrito (os gêneros textuais e seus suportes), e modos de relação com esse material
escrito. Para compreender a lógica e os significados desses eventos, alcançando-os a categoria
de práticas de letramento, é necessário situá-los no contexto histórico das práticas culturais e
da instituição que os produzem (nesse caso, a escola), assim como confrontá-las com as
relações de poder.
Assim, é nesse contexto que procuramos trazer nossas reflexões acerca de letramento,
práticas de letramento e eventos de letramento, mostrando a implicação que se dá nesse
processo, em que a leitura e a escrita deixam de ser compreendidas como atividade
meramente escolar para se desenvolverem como práticas sociais.
2 Contextualização da pesquisa
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1877
Metodologicamente, esta investigação se respalda nos princípios da pesquisa
qualitativa, permitindo a inserção do pesquisador no meio a ser pesquisado. Além disso, nela
pode-se fazer uso das observações e aplicações de instrumentos que ajudam na coleta dos
dados, possibilitando a descrição das práticas de leitura e escrita envolvidas na pesquisa.
Nesse sentido, Godoy (1995, p.25) afirma que esse tipo de investigação tem como
propósito o exame detalhado de um ambiente, de um sujeito ou de uma situação em particular.
Além do mais a autora acrescenta que a pesquisa qualitativa tem como objetivo compreender
as relações e as atividades dos sujeitos no seu cotidiano.
Diante disso, procuramos construir um corpus para análise com o objetivo de fazer
uma descrição do evento de letramento (aula) para saber como se dá o uso da leitura e da
escrita na sala de aula e também saber que práticas de letramento estão envolvidas nesse
evento.
Para a coleta dos dados, primeiramente, tivemos uma conversa com a professora para
agendar a sala e a data da aula. No dia oito de outubro de dois mil e treze no primeiro horário
do sexto ano B da Escola Municipal Presidente Emílio Garrastazu Médici da cidade de Sítio
Novo/RN, realizamos as observações de campo e as anotações para relatar as práticas de
letramento identificadas na sala de aula.
Quanto ao campo de pesquisa, escolhemos uma unidade da esfera institucional escolar,
um estabelecimento de ensino da rede pública municipal a Escola Presidente Emílio
Garrastazu Médici da cidade de Sítio Novo-Estado do Rio Grande do Norte. A unidade
analisada conta com gestão democrática e atende em média a uma clientela de 530 alunos que
se divide entre a zona urbana e rural. A cada ano vem obtendo sucesso devido ao
desenvolvimento do trabalho pedagógico realizado de forma sistemática e dinâmica em todos
os seguimentos da escola.
As ações são organizadas em consonância com a coordenação pedagógica e o corpo
docente, que tem em seu quadro efetivo 30 profissionais, fazendo uso de uma pedagogia que
está voltada para a utilização de projetos. O trabalho com projetos facilita a construção do
conhecimento e permite que o aluno se desenvolva com autonomia, tornando-se um agente
responsável por sua própria formação e transformação social.
O grupo de colaboradores que estão envolvidos na pesquisa é composto por uma
professora que se insere na faixa etária de quarenta e cinco anos e quarenta alunos, os quais
estão inseridos em uma faixa etária entre onze e quatorze anos. Em relação à escolaridade a
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1878
professora possui graduação em letras e os alunos estão cursando o sexto ano B do Ensino
Fundamental II.
Na experiência de sala de aula, percebemos que as vivências variam entre a professora
e os alunos, e entre alunos e alunos. Para descrever suas práticas de leitura e escrita na sala de
aula, os referidos colaboradores serão mencionados como professora e alunos.
Para analisar as práticas de leitura e escrita em estudo, optamos, como corpus, as
anotações que foram feitas na observação de campo. A importância dessa pesquisa está
relacionada ao fato de que ao descrever o evento de letramento (aula) em sala de aula ela
estará contribuindo para o conhecimento mais amplo sobre letramento, práticas de letramento,
eventos de letramento, letramento escolar e social entre outros conceitos que estão inseridos
nessa esfera institucional escolar que é a escola.
3 Fundamentação teórica
Partindo da concepção de letramento de Street (2003), Mortatti (2004) afirma que
Letramento está diretamente relacionado com a língua escrita e seu lugar, suas
funções e seus usos nas sociedades letradas, ou, mais especificamente,
grafocêntricas, isto é, sociedades organizadas em torno de um sistema de escrita e
em que esta, sobretudo por meio do texto escrito e impresso, assume importância
central na vida das pessoas e em suas relações com os outros e com o mundo em que
vivem. (MORTATTI, 2004, p. 23)
Para a autora se trata de um tipo de sociedade baseada em comportamentos individuais
e sociais que supõem inserção no mundo público da cultura escrita, isto é, uma cultura cujos
valores, atitudes e crenças são transmitidos por meio da linguagem escrita e que valoriza o ler
e o escrever de modo mais efetivo do que o falar e o ouvir.
Neste sentido, leitura e escrita são processos diferentes que envolvem diversas
habilidades e conhecimentos, mas também diferentes processos de ensino e aprendizagem que
podem ser entendidos em uma dimensão individual e em uma dimensão social.
Considerando as dimensões individual e social do letramento Mortatti (2004) afirma
que as mais recentes perspectivas de abordagem de letramento em países de língua inglesa,
também incorporadas em estudos brasileiros, vêm destacando, entre os novos instrumentais de
análise, dois modelos de letramento, o” modelo autônomo” em confronto com o “modelo
ideológico”, e dois componentes básicos do fenômeno do letramento, os” eventos de
letramento” e as “práticas de letramento”.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1879
A autora ainda acrescenta que o binômio modelo autônomo-modelo ideológico foi
proposto por Street (1984) e que nessa mesma obra ele desenvolveu o conceito de práticas de
letramento. Além disso, afirma que o conceito de evento de letramento foi proposto por Heath
(1982 e 1983). Mortatti diz que no modelo autônomo, a tendência é enfocar a dimensão
técnica e individual do letramento e considerar as atividades de leitura e escrita como neutras
e universais, independentes dos determinantes culturais e das estruturas de poder que as
configuram, no contexto social. Enquanto o modelo ideológico enfoca a dimensão social do
letramento.
Como a autora, percebemos que nas diferentes versões do modelo ideológico, leitura e
escrita são consideradas atividades eminentemente sociais, que variam no tempo e no espaço
e dependem do tipo de sociedade, bem como dos projetos políticos, sociais e culturais e que
não existe, assim, um único tipo de letramento.
É com base nessa afirmação que Mortatti (2004) define que letramento é, sobretudo,
um conjunto de práticas sociais em que os indivíduos se envolvem de diferentes formas, de
acordo com as demandas do contexto social e das habilidades e conhecimentos de que
dispõem. Ela ainda acrescenta que letramento é o que as pessoas fazem com as habilidades e
conhecimentos de leitura e escrita, em determinado contexto, e é a relação estabelecida entre
essas habilidades e conhecimentos e as necessidades, os valores e as práticas sociais.
No entanto, ela afirma que somente o fato de ser alfabetizada não garante que a pessoa
seja letrada; e somente o fato de viverem em uma sociedade letrada não garante a todas as
pessoas formas iguais de participação na cultura escrita.
Pode-se considerar, assim, que a alfabetização e a escolarização, bem como a
disponibilidade de uma diversidade de material escrito e impresso, em nosso contexto atual,
são condições necessárias, mas não suficientes, para o letramento, tanto do ponto de vista
individual quanto social.
A autora continua acrescentando que nessa dimensão social, são também plurais os
eventos de letramento e as práticas de letramento, duas faces de uma mesma realidade. E cita
a definição de eventos de letramento de Heath (1982, p. 93), na qual os eventos de letramento
são situações em que a língua escrita é parte integrante da natureza da interação entre
participantes e de seu processo de interpretação. Essa interação pode ocorrer oralmente, com a
mediação da leitura ou da escrita, estando os interlocutores face a face, ou à distância, com a
mediação de um texto escrito.
Também cita a definição de práticas de letramento de Street (1995, p. 2) como os
comportamentos exercidos pelos participantes num evento de letramento e as concepções
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1880
sociais e culturais que o configuram, determinam sua interpretação e dão sentidos aos usos da
leitura e/ou escrita naquela particular situação.
Nesse contexto, Mortatti (2004) nos mostra que o letramento é um continuum que
envolve um processo permanente, cujo produto final não se pode definir nem pré-fixar. Então,
ela ressalta que é importante advertir que por introdução do letramento no âmbito das práticas
escolares não se deve entender a mera substituição de “alfabetização” por “letramento”, nem a
alfabetização como pré-requisito para o letramento, equívocos por vezes observados nesses
contextos. A relação entre esses termos e os correspondentes processos é bastante complexa e
envolve diferentes problemas e preocupações, em especial a relação entre letramento social e
letramento escolar e o processo de pedagogização do letramento.
Diante dessa relação, a autora faz uma distinção entre letramento escolar o que ocorre
na escola e não é sinônimo de alfabetização e letramento não-escolar o que ocorre fora da
escola, mas é também social, pois o contexto escolar é parte do contexto social. Essa distinção
entre letramento escolar e letramento social vem sendo explicada fundamentalmente com base
nos conceitos de práticas e eventos de letramento que são múltiplos e diversos e fazem parte
naturalmente das experiências vividas pelas pessoas e grupos sociais, em sociedades letradas.
Diferentemente, porém, do que ocorre na vida cotidiana, a escola, ao automatizar as
atividades de leitura e escrita, cria eventos e práticas de letramento, mas com natureza,
objetivos e concepções que são específicos do contexto escolar.
Com isso, Mortatti (2004) afirma que ocorre, assim, a pedagogização do letramento,
ou seja, um processo no qual práticas sociais de letramento se tornam, numa sequência ideal e
predeterminada, práticas de letramento a ensinar, posteriormente, ensinadas, e, finalmente,
adquiridas.
Para a autora, não se pode, portanto, considerar a alfabetização como um pré-requisito
para o letramento, nem reduzir letramento a um conceito escolarizado. Apesar dos problemas
envolvidos, porém, não se pode também separar radicalmente o letramento escolar do
letramento social, porque sendo ambas as partes do mesmo contexto social, hipoteticamente
as experiências de leitura e escrita na escola acabam por habilitar a participação em
experiências extraescolares de letramento. Assim como também não se pode separar
radicalmente o letramento da alfabetização, escolarização e nem, tampouco, da educação.
4 Análise da aula como evento de letramento
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1881
O evento de letramento (a aula) a ser descrito se dá no ambiente escolar, inserindo-se
na esfera institucional escolar, na qual suas práticas se enquadram em um domínio social em
que os sujeitos vistos como agentes desempenham papeis sociais que exigem e definem os
diferentes letramentos.
Diante disso, a análise a ser descrita está embasada teoricamente nos elementos de
Hamilton (2000): participantes, domínio/ambiente, artefatos e atividades. Segundo a autora,
os participantes compreendem pessoas que podem ser vistas interagindo com textos escritos.
O domínio se caracteriza como as circunstâncias físicas imediatas nas quais o evento acontece
e, além disso, considera seu sentido e propósito sociais. Sua efetividade se dá por meio de
artefatos que são definidos como ferramentas, materiais e acessórios envolvidos na interação,
inclusive os textos que resulta nas atividades, estas compreendem as ações realizadas pelos
participantes para que as práticas e eventos de letramento sejam desenvolvidos.
Nessa perspectiva, a sala de aula observada é constituída de quarenta alunos, dentre
eles vinte e duas são meninas e dezoito são meninos, entre onze e quatorze anos, enturmados
no sexto ano B do Ensino Fundamental II da Escola Municipal Presidente Emílio Garrastazu
Médici. Vinte e oito alunos residem na zona rural e doze na zona urbana do município de
Sítio Novo/ RN. Três meninas e dois meninos são repetentes, um aluno não frequentou a
escola no ano anterior e outro frequentou a EJA no ano anterior.
Para caracterizar as práticas de letramento foram tomadas como referência as seguintes
perguntas: Qual a rotina das aulas? Quais atividades constituem as aulas? Quais microeventos de letramento caracterizam a aula? O que, como e para que se lê e se escreve na sala
de aula?
A partir da observação da aula foi construído um quadro de micro-eventos que
representa o modo de organização das aulas dessa turma. Um exemplo do mapa construído
para este momento da pesquisa pode ser encontrado no anexo um. Uma primeira análise nos
permite algumas considerações sobre a rotina das aulas pela recorrência de elementos que
permitem visualizar uma rotina: a distribuição do tempo, a organização física da sala e os
tipos de atividades estruturadoras das interações. Essa rotina pode ser resumida: (i) arrumação
da sala; (ii) chamada; (iii) cópia do conteúdo no quadro de giz; (iv) leitura oral pela
professora; (v) leitura oral pelos alunos;(vi) momento para os conhecimentos linguísticos.
A sala de aula está sempre organizada em fileiras para a realização das atividades de
leitura e escrita que ocorrem em sua maioria individualmente. Os alunos permanecem
sentados, podendo se levantar para apontar lápis, ir ao banheiro, tomar água e para se dirigir à
professora. A professora normalmente fica em frente à turma quando se dirige ao coletivo
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1882
para orientar e circula entre as carteiras, enquanto os alunos copiam o conteúdo do quadro de
giz. Somente a leitura oral é realizada em alguns momentos tanto pela professora quanto pelos
alunos e coletivamente, mas a organização da sala continua a mesma. De modo geral, a
professora define e coordena tudo que é realizado na sala de aula.
A análise da descrição das sequências mediadas pelo texto escrito e organizadas em
torno de objetivos estabelecidos pela professora, explicitamente ou não, aqui nomeadas de
micro-eventos foram agrupadas em três práticas: práticas de leitura, de escrita e de
conhecimentos linguísticos.
Os micro-eventos constitutivos das práticas de leitura são: a leitura oral do conteúdo
copiado e a leitura coletiva. A primeira está presente em alguns momentos da aula observada
e teve como objetivo a prática da leitura em voz alta. A segunda foi observada apenas duas
vezes.
Para aula ser compreendida como um evento de letramento, buscamos identificar nos
micro-eventos descritos os seguintes elementos: Quem lê? Para quem? O que lê? Para quê?
Quando? Onde? Como?
A partir desses questionamentos, percebemos que nesses micro-eventos, quem lê
oralmente são alunos e professora. A professora geralmente faz a leitura oral dos conteúdos
escritos no quadro de giz, objetivando mais a prática escrita. Ela faz uma leitura que se
apresenta como modelo a ser seguido. O conteúdo pode ser lido coletivamente, ou os alunos
fazem a leitura oral individualmente.
O que é lido? Quanto ao suporte, são conteúdo de uma gramática e de livros didáticos
que foram escritos no quadro de giz e copiados pelos alunos. Não foi utilizado nenhum
gênero, apenas o conteúdo gramatical “as classes de palavras”.
Para que se lê? Percebemos que o objetivo das leituras realizadas na perspectiva da
professora é a leitura para aprender ler e ganhar fluência. Por isso a leitura oral é a mais
utilizada na sala pelos alunos.
Na perspectiva dos alunos, a leitura é utilizada apenas para cumprir uma tarefa escolar
proposta pela professora. Alguns alunos demonstraram interesse em fazer a leitura oral e a
coletiva.
Quando essas leituras foram realizadas? Onde? As práticas de leituras foram realizadas
no espaço da sala de aula que permanece organizada em fileiras de carteiras individuais. As
práticas de leitura também ocorrem depois da prática de escrita, pois a aula é iniciada com a
cópia do conteúdo gramatical que depois será lida. A sequência e o tempo de duração da aula
demonstram que a escrita do conteúdo no quadro de giz ocupa grande espaço da aula.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1883
Como professora e alunos leem? A professora sempre faz a leitura oral dos conteúdos
escritos. Essa leitura é bem expressiva e parece servir como modelo para os alunos.
Normalmente ela pede aos alunos que acompanhem a leitura dos conteúdos.
Os alunos leem oral e coletivamente de acordo com a solicitação da professora. Eles
realizam a leitura oral e coletiva dos conteúdos que copiam do quadro de giz. Essa leitura
também tem a participação da professora. Os alunos realizaram leituras diferenciadas de
acordo com seu nível, mas observamos que muitos precisam melhorar principalmente aqueles
que ainda não conseguem ler.
As práticas de escritas tiveram um foco, a cópia do conteúdo gramatical do quadro de
giz. Esta prática esteve presente em toda aula observada e era uma das atividades mais longas.
Além disso, em alguns momentos a cópia do conteúdo se alongava e outros micro-eventos ia
se desenvolvendo paralelamente.
Para a aula ser compreendida com um evento de letramento, buscamos identificar nos
micro-eventos os seguintes elementos: Quem escreve? Para quem? O que escreve? Para que
escreve? Quando? Onde? Como?
Quem escreve na aula? Quando? Onde? Como? Alunos e professora escrevem.
Durante a aula a professora escreve no quadro de giz o conteúdo gramatical a ser copiado
pelos alunos nos cadernos.
Os alunos apresentam ritmos muito diferentes no tempo destinado a cópia dos
conteúdos. A professora vai adequando a sua escrita ao nível da turma, sempre espera que os
alunos terminem para poder iniciar o novo conteúdo.
O que escrevem? Para quê? Copiam os conteúdos gramaticais na maior parte da aula.
A cópia é a prática de escrita mais frequente.
As práticas de conhecimentos linguísticos foram identificadas quando a professora
apresenta as dez classes de palavras, conceituando-as e exemplificando-as no quadro de giz
com a participação oral dos alunos. Havendo uma interação entre professora e alunos.
Fazendo uma relação da análise descrita e analisada com os elementos de Hamilton
(2000) participantes, domínio/ambiente, artefatos e atividades, percebemos que cada elemento
desses está representado na análise da seguinte forma: os alunos e a professora são os
participantes do evento, o espaço físico da sala de aula e as cadeiras enfileiradas representam
o domínio/ambiente, o quadro de giz, lápis, a caderneta, giz, esponja, cadernos, livro didático
e a gramática são os artefatos utilizados pela professora e pelos alunos e por último as
atividades que são representadas pelas leituras oral e coletiva realizadas pelos alunos, pela
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1884
cópia do conteúdo gramatical e pela participação dos alunos em responder as perguntas da
professora, criando um momento de interação entre ambos.
5 Considerações finais
Com base no exposto percebemos que este trabalho tem muita relevância para os
profissionais da área de educação, principalmente para os professores de Língua Portuguesa
que veem a leitura e a escrita como práticas sociais. Sua importância está atrelada ao fato de
que nele buscamos descrever a aula como um macro-evento, no qual foram desenvolvidos
micro-eventos de letramento de uma sala de aula e que situações de interação foram mediadas
pelo texto escrito.
Outro aspecto importante é que a análise do evento descrito embasada nos quatro
elementos de Hamilton (2000) participantes, domínio/ambiente, artefatos e atividades, nos
permite fazer uma reflexão desses elementos, associando-os com as nossas práticas de leitura
e escrita que são desenvolvidas no nosso cotidiano escolar e com isso temos a oportunidade
de aprofundar nossos conhecimentos a respeito dessas teorias. Além disso, os estudos de
Mortatti (2004) nos facilita a compreensão de alguns termos como letramento, alfabetização,
práticas de letramento e eventos de letramento entre outros que são relevantes para o nosso
contexto escolar atual.
Assim, concluímos que essa pesquisa de caráter qualitativo só veio a nos acrescentar,
pois a partir dela somos capazes de compreender os processos internos e externos que estão
inseridos num evento de letramento, identificá-los e ao mesmo tempo distingui-los das
práticas de letramentos.
Referências
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de escrita do secretário escolar. In: MEDEIROS, Maria Assunção Silva, MEDEIROS, Célia
Maria de. (org.). Estudos linguísticos diferenciados: da linguística ao ensino de língua
materna. Natal: EDUFRN, 2013, p.409-436.
CASTANHEIRA, M. L., CRAWFORD, T., DIXON, C. (2001) Interactional Ethnography:
An Approach to Studying the Social Construction of Literate Practices. Linguistic and
Education 11(4), 2001: 353-400.
COSTA, Vânia Aparecida. Práticas de letramento em sala de aula de assentamento de
reforma agrária. Belo Horizonte, FAE/UFMG (Tese de doutorado),2010.
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GODOY, Arilda S. Pesquisa qualitativa: tipos fundamentais. Revista de Administração de
Empresas, v. 35, n.3, maio/jun., 1995, p. 20-29.
HAMILTON, Mary. Expanding the new literacy studies: using photographs to explore
literacy as social practice. In BARTON, David, HAMILTON, Mary & IVANIC, ROZ
(Orgs.). Situated literacies. London: Routledge, 2000. P. 16-33. Tradução a partir da versão
preliminary do prof. Sandro dos Santos (UERN).
HEATH, S. B. (1983) Ways with words: language, life, and work in communities and
classroom. New York: Cambridge University Press.
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Educação e letramento. São Paulo: UNESP, 2004.
STREET, B. V. (1983) Literacy in theory and practice. New York: Cambridge University
Press.
STREET, B. V. (2003). What’s “new” in New Literacy Studies? Current Issues in
Comparative Education, Teachers College, Columbia University, ALL RIGHTS RESERVED
Current Issues in Comparative Education Vol. 5(2).
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1886
MOVIMENTOS DE CONSTRUCÃO DA IDENTIDADE
FEMININA NO GÊNERO PUBLICITÁRIO DA NATURA:
PERSPECTIVAS DIÁLOGICAS
[Voltar para Sumário]
Maria do Carmo R. da Silva (UFPB)
Julia Cristina de L. Costa (UFPB-PROLING)
Início do diálogo...
Em uma época de profundas e rápidas transformações, em que há um predomínio da
“cultura da imagem”; a mídia mediante seus textos (verbal e não verbal) exerce um papel
fundamental na sociedade, ela funciona como um instrumento de poder, moldando e
legitimando valores e crenças. Temos, por exemplo, as capas de revistas, os anúncios
publicitários, programas televisivos dentre outros, que se prestam a múltiplos diálogos, seus
signos e dizeres se movem, tecem, moldam, entrecruzam, escamoteiam e constroem vários
significados e atuam em diferentes instâncias enunciativas. Como é o caso, por exemplo, da
campanha publicitária que escolhemos para análise, o material da Natura (empresa brasileira
do segmento de cosméticos), mais especificamente, a campanha publicitária Natura Plant (Ó,
cabelo, cabelo meu!), anúncio de 60 segundos, veiculado em 2011 (e exibido até os dias
atuais), em emissoras televisivas e, principalmente, no canal de Youtube.
Nesse trabalho foram utilizados dois tipos de investigação: 1) a pesquisa bibliográfica
a partir da seleção de textos acerca dos conceitos de dialogismo, gênero do discurso e de
identidade e outros; 2) e a pesquisa documental para o levantamento e análise do corpus.
Para realizar essa análise, recorreremos às contribuições teórico-metodológicas da
Análise Dialógica do Discurso (ADD), buscaremos, assim, no conjunto do pensamento
bakhtiniano (compreendido como os escritos de três intelectuais M. Bakhtin, V. N.
Voloshinov e Pavel N. Medvedev), princípios e categorias que possam dar suporte à análise
do corpus. Utilizaremos especificamente a produção de Bakhtin/Voloshinov ([2011]1929),
Bakhtin ([1988]1935), além da contribuição de pesquisadores brasileiros, como: Faraco
(2009), Sobral (2009), Brait (2009), entre tantos outros que trabalham com pesquisas voltadas
para os estudos discursivos. E, ainda, para alcançar nossos objetivos recorreremos à teoria
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1887
geral dos Estudos Culturais sobre o conceito de identidade, que será um instrumento essencial
para a realização de nossa pesquisa.
Para a apresentação do trabalho, esse artigo está dividido em três partes. Na primeira,
expomos acerca da concepção da identidade e das práticas enunciativas. Na segunda,
discorremos sobre os gêneros discursivos. Na terceira, contextualizamos o cenário no qual
coletamos o corpus analisado, em seguida, analisamos esse material, e por fim, tecemos as
considerações finais com os resultados possíveis nesse estágio das análises.
1. Identidade e práticas enunciativas
Têm ocorrido, nos últimos anos, sobretudo a partir dos estudos culturais, diversos
estudos e distintas pesquisas sobre “Identidade”. Esta temática tem papel central no trabalho
de Hall (2006), Silva (2008), Gregolin (2008) e Bauman (2005), referências obrigatórias no
estudo que visa a entender esse complexo e multifacetado assunto.
Hall (2008) define a questão da identidade como processo sociocultural produzido
nos diferentes gêneros e discursos sociais em uma dada sociedade. Esse autor salienta que a
identidade também é construída através da diferença e dentro do discurso, sendo, por isso,
necessário
[...] compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais
específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por
estratégia e iniciativas específicas. Além disso, elas emergem no interior do
jogo de modalidades específicas de poder e são, assim, mais o produto da
marcação da diferença e da exclusão do que do signo de uma unidade
idêntica, naturalmente construída [...] (2008, p. 109)
Na mesma perspectiva, Silva (2000) afirma que as práticas discursivas desempenham
papel fundamental na construção dos sujeitos, de sua marca identitária e dos lugares que
ocupam. Compreendemos, a partir disso, que o discurso tanto contribui para a constituição
identitária, formação do sujeito, quanto para sua formação discursiva. E mais ainda, a questão
da identidade, para Silva (2000), não se fundamenta na identificação, antes é constituída pela
diferença, pela alteridade, na relação eu-outro, no entrechoque das relações sociais, pela
resistência ao que não é, assim como aquilo que lhe falta, no modo como se concebe e é
afetado pelo outro. É nessa perspectiva que surge o confronto da relação entre identidade e
diferença. No entender de Hall (2008):
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1888
Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que é apenas por meio
da relação com o Outro, relação com aquilo que não é, com precisamente aquilo que
falta com aquilo que tem sido chamado exterior constitutivo, que o significado
“positivo” de qualquer termo e, assim, sua “identidade” poder ser construída. (grifos
do autor) (2008, p.110)
Para esses autores, o sujeito é constituído a partir da alteridade, ou seja, pela presença do
outro e, também, a partir das posições que ele ocupa nas mais variadas esferas da vida social,
quando adquire contornos diferentes, conforme o contexto sócio-histórico de que participa.
Em direção semelhante Bakhtin (2011), em Estética da Criação Verbal, diz que
quando contemplo alguém situado fora e adiante de mim, nossos horizontes
concretos efetivamente vivenciáveis jamais coincidem. Porque em qualquer situação
ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre
verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver: as
partes de seu corpo inacessíveis a seu próprio olhar (a cabeça, o rosto e sua
expressão), o mundo atrás dele, toda uma série de objetos e relações que, em função
dessa ou daquela relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e
inacessíveis a ele. Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na
pupila dos nossos olhos. (BAKHTIN 2011, p. 21)
Nesse excedente de visão há certa carência, porque, segundo Bakhtin (2011), o que
vejo predominantemente no outro, só o outro vê em mim mesmo. Desse modo, “a princípio
eu tomo consciência de mim através dos outros: deles eu recebo as palavras, as formas e a
tonalidade para a formação da primeira noção de mim mesmo”. (BAKHTIN, 2011, p. 373).
Para Ponzio (2008), isso é a grande revolução bakhtiniana, o outro como condição sine qua
non para a construção identitária do eu.
Considerando essa perspectiva apontada, podemos dizer que Bakhtin (2011) parte do
princípio de que a alteridade é imprescindível para a constituição identitária do sujeito. Sendo
assim, segundo o pensador russo, o eu é constituído nas/das relações com o(s) outro(s).
2. Breves considerações sobre os gêneros discursivos
Dentre as mais variadas formas de comunicação e relações sociais, destacam-se os
gêneros discursivos. Bakhtin (2011) os define como sendo tipos relativamente estáveis de
enunciados, estes em seu pensamento, são relacionados com as diversas atividades
desenvolvidas no cotidiano da vida social de um determinado indivíduo e consequentemente
na língua, levando em consideração que a linguagem é essencialmente social e histórica, os
gêneros acontecem, portanto, na linguagem e por ela, isto é, na vida do falante.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1889
Sendo assim, a proporção de variedades que essas atividades atingem na língua
corresponde à diversidade de gêneros existentes, ou melhor: quanto maior as variedades das
atividades humanas, maior a quantidade de gêneros existentes. Diante desse fenômeno da
heterogeneidade dos gêneros dos discursos (orais e escritos), Bakhtin (2011, p. 263) propõe
uma divisão binária dos gêneros em: 1) Os primários (orais ou simples) corresponderiam a
ações cotidianas como: o relato familiar, a carta, a ordem militar padronizada, o repertório
bastante diversificado dos documentos oficiais, o universo das declarações públicas. 2) Os
secundários (escritos ou complexos) seriam os referentes às variadas formas de exposição
científica e todos os modos literários como: o romance, o teatro, o discurso científico, o
discurso ideológico, etc.
É importante destacar que os gêneros secundários absorvem os gêneros primários no
processo de formação daqueles, ou seja, por exemplo, em um texto teatral, podemos inserir
um relato da vida familiar do autor. Compreendermos esta classificação e inter-relação é
fundamental para a elucidação da natureza do enunciado, visto que ela se dá pela análise dos
gêneros primários e secundários na vida. Portanto, a relação dos tipos relativamente estáveis
de enunciados com a vida e com a língua são indissolúveis.
Observando
um
dos
enunciados concretos, ressaltamos o anúncio publicitário, podemos dizer que ele pode ser
classificado como um gênero discursivo secundário, uma vez que é caracterizado pelo
hibridismo de duas diferentes materialidades linguísticas: a verbal e a visual. De acordo com
Martins (1997, p.41) “o anúncio é uma mensagem que visa exercer ação psicológica sobre
receptores para conseguir deles uma mudança comportamental em relação ao objeto
oferecido: uma ideia ou um serviço.”
Nesse sentido, segundo Bakhtin, a língua penetra na vida através dos enunciados
concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na
língua (2011, p. 265).
Considerando esse panorama teórico, passemos, então, na seção
seguinte, a análise dos dados.
2. Identidade e representação do sujeito no anúncio publicitário da Natura: Ó! cabelo,
cabelo meu!
Para efeito de análise, selecionamos especificamente, o anúncio Natura Plant (Ó!
cabelo, cabelo meu!) lançado em 20111 (e exibido até os dias atuais)2.
1
2
Para ter acesso à primeira versão do anúncio: disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ec6SierHciI
Ver o (re)lançamento do anúncio: https://www.youtube.com/watch?v=_YMwRhBDmNI
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1890
A Empresa Natura (firma brasileira da área de perfumes e de cosméticos), em uma de
suas campanhas publicitárias, veiculou essa linha de produtos, Natura
Plant, esses
comésticos que a marca oferece destina-se à mulher brasileira, especificamente aos seus
diversos tipos de cabelos.
Figura 8: Abertura do anúncio
Na abertura do anúncio, destacam-se, no centro, a logomarca e o tema da empresa
(“Bem Estar Bem”), entre um visual de diferentes cores de tampas que a linha traz, conforme
cada tipo de cabelo, para cada tipo de mulher, para cada tipo de “sujeito”, configurando os
diversos e diferentes “eus”. Já na parte final do comercial da empresa, encontramos o seguinte
enunciado (slogan): Natura Plant: você muda, a gente cuida.
Sendo assim, convocamos, inicialmente, à leitura da letra da música, reproduzida logo
abaixo, nesse conjunto verbo-visual a ser analisado.
Ó, cabelo, cabelo meu,
tão belo, tão poderoso,
tão eu
Rebelde, às vezes,
às vezes dócil,
crespo, liso, ondulado, pixaim
Jeitoso assim
de qualquer jeito
solto, preso, molhado
cheiroso, brilhante e macio
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1891
Cabelo meu,
tão belo, tão poderoso
retrato fiel de quem sou eu
Comprido, como deve ser
curto, se ficar melhor
da cor que nasceu
da cor que eu quis
Cabelo
de fio a fio
em cada olhar
eu vejo um elogio
Ó cabelo, cabelo meu
se você não fosse meu
eu não seria tão eu
Natura Plant. Você muda, a gente cuida.
Não podemos perder de vista que a materialidade verbal, nesse caso, o gênero letra de
música, está inelutavelmente amalgamado ao não verbal, às imagens, aos diversos e diferentes
sujeitos e papeis sociais que aparecem no comercial. Há, nesse caso, um jogo entre o verbal e
o não verbal, esses elementos dialogam entre si, constroem e estabelecem diversos efeitos de
sentidos.
Podemos, então, perceber que a letra da música mescla-se com os elementos visuais,
permitindo que o significado das partes possibilite a compreensão do todo através da relação
presente no (inter) intradiscurso. Como observamos no dizer de Brait (2009):
em determinados textos ou conjuntos de textos, artísticos ou não, a
articulação entre os elementos verbais e visuais forma um todo indissolúvel,
cuja unidade exige do analista o reconhecimento dessa particularidade. São
textos em que a verbo-visualidade se apresenta como constitutiva,
impossibilitando o tratamento excludente do verbal ou do visual e, em
especial, das formas de junção assumidas por essas dimensões para produzir
sentido (BRAIT, 2009, p. 143).
Logo abaixo, escolhemos alguns enunciados para destacar esta relação dialógica, bem
como as relações exotópicas num diálogo permanente entre “eu-para-mim” e “outro-paramim”, demonstrando essa construção discursiva da identidade da mulher brasileira, através do
que cada uma é, diferenciando e, ao mesmo tempo, revelando o que falta a outra ser.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1892
Figura 9: Diferentes sujeitos, distintas identidades.
Isso é evidenciado na sequência de 16 perfis femininos, várias mulheres diferenciadas
quanto à cor, à raça, à idade e à profissão, revelando através dessa representação a diversidade
étnica e estética da mulher brasileira. Ou seja, a identidade se constrói não pela igualdade,
mas pela diferença encontrada no outro: “sou branca, não sou negra; sou de origem japonesa,
não portuguesa; sou atriz, não sou recepcionista; sou recepcionista, não sou radialista.
Observe, por exemplo, a imagem abaixo:
Figura 10: Cinthia Keller, recepcionista
Podemos acrescentar que, na materialidade imagética do anúncio, essas diferenças se
ampliam e, ratificam a individualidade na diversidade, além disso, revela a forte inter-relaçäo
que as mulheres, especificamente as
brasileiras, têm
com o cabelo, como elemento
constitutivo da identidade feminina: [...] Ó cabelo, cabelo meu, tão belo, tão poderoso, tão eu
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1893
[...], “Cabelo meu, tão belo, tão poderoso [...] retrato fiel de quem sou eu [...]”. Visto que os
enunciados refletidos ao dizer essas particularidades propõem: “eu sou bela e poderosa”
porque o outro é “rebelde, liso, pixaim” etc. permitindo que eu seja o que sou a partir do que o
outro é ou o que ele não é, ou do que me/lhe falta. E, nessa perspectiva, o sujeito-enunciador
se revela com uma autoestima tamanha: “tão eu”.
Segundo Bakhtin (2011), nesse caso: estamos talvez diante de dois processos de
subjetivação do “eu-para-mim” e do “eu-para-o-outro”, ou seja, desse eu que se constitui pela
alteridade e que reconhece essa condição. Como sugere em: “[...] Cabelo de fio a fio em cada
olhar eu vejo um elogio [...]”
Conforme o ponto de vista dialógico, verificamos que: assim como o sujeito enunciador se constitui no/pelo outro nas inúmeras possibilidades de uso em que a língua nos
dispõe; assim também, através dessas construções intersubjetivas, nascem, ou são produzidos
efeitos de sentidos diversos (outras vozes) tanto quanto são diversos os sujeitos. Vejamos
mais uma imagem:
Figura 11: Raquel, 26 anos, Designer de interiores
Desde o início, a começar pelo título: “Ó, cabelo, cabelo meu”, que a letra
interdiscursivamente dialoga com o conto de fadas, Branca de Neve e os sete anões. O texto
publicitário parafraseia esse conto, temos como exemplo o intertexto: “Espelho, espelho meu,
há alguém mais bela do que eu?” Outro diferencial que caracteriza a atualização dos dizeres
do conto: o cabelo (o outro) é quem fala quem é belo: “tão belo, tão poderoso”,
diferentemente do conto de fadas.
Esses discursos da beleza se entrelaçam e marcam a exaltação do “belo” e do “eu”
trazendo nessa subjetividade a voz interior (eu-para-mim). Nesse movimento de
autocontemplação (espelho), vemos que o outro, partícipe, é o cabelo: “Ó cabelo, cabelo meu
se você não fosse meu eu não seria tão eu”. Faraco (2009, p. 96), baseado no pensamento
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1894
bakhtiniano, diz que “nunca estamos sozinhos frente ao espelho, um segundo participante está
sempre implicado no evento da contemplação”.
Observamos, ainda, não podemos esquecer o caráter extremamente persuasivo do
discurso publicitário Natura, que tenta dissuadir seu público consumidor (feminino ou
qualquer que faça a opção pelo uso da linha Natura Plant), a adquirir os produtos anunciados.
Figura 12: Produtos da linha Natura Plant
Sendo assim, o discurso publicitário se revela num jogo enunciativo, linguisticamente
representado na tentativa de aproximação e identificação com esse outro, o consumidor
feminino. Observamos que as figuras de linguagem (metonímia e da acentuada
personificação) auxiliam nessa construção do sentido do texto.
O sentido que perpassa todo o gênero anúncio publicitário diz respeito à metanoia (ser
transformado). Parece ser isso que o anúncio quer provocar, uma mensagem carregada de
expressividade, de valor axiológico “Natura Plant: você muda, a gente cuida”. Pressupõe que
quem possibilita essa mudança de condição são os produtos Natura Plant. Portanto, fazer crer
que com o uso vai revelar alguém tão “belo, poderoso, tão eu” (único), não simplesmente
porque já o é, mas, porque a própria escolha/uso (da linha) fará essa diferença.
Breves conclusões por enquanto
No que se refere aos resultados, verificamos que o anúncio, na campanha publicitária,
produz efeitos enunciativos para a construção do sujeito, revelando vozes e discursos que
permeiam o universo feminino que fazem uso da linha Natura Plant. Observamos também
que, o gênero, presente nas diversas camadas e esferas sociais, constitui-se como uma base de
utilização da língua(gem) visto que faz parte do cotidiano e da constituição dos sujeitos desde
os tempos mais remotos.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1895
Referências
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Curitiba: Criar, 2009.
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__________. Quem Precisa da Identidade? In: SILVA, T. T. (Org.) Identidade e Diferença: a
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(Org.) Identidade e Diferença: as perspectivas dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
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Campinas-SP: Mercado das Letras, 2009.
SOUZA, Tânia C. Clemente de. A análise do não verbal e os usos da imagem nos meios de
comunicação. Ciberlegenda Número 6, 2001. Disponível em: www.uff.br/mestcii/tania1.htm.
Acesso em 06/08/08.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1896
A ESTETIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA NA LITERATURA
BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: UMA LEITURA DE O
MATADOR DE PATRÍCIA MELO
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Maria Fernandes de Andrade Praxedes (UEPB)
Palavras iniciais
A visibilidade da violência no contexto atual coloca a literatura e a sociedade em
situação-limite, naquilo que se pode chamar de representação da realidade. No Brasil, desde a
colonização, a violência é histórica e sempre foi marcada pelas relações de poder e pela
desigualdade social. Esses fatores são responsáveis pela inumana inserção do sujeito no
contexto atual, alinhando o reconhecimento das diferenças e das irregularidades sociais.
Essa dissonante realidade manifesta-se na literatura brasileira contemporânea, em
obras como Cidade de Deus, de Paulo Lins, Estação Carandiru, de Drauzio Varella, Capão
Pecado, de Ferrèz, Mundo perdido e O matador, de Patrícia Melo, cujos enredos versam
sobre a perturbação do ser humano diante da dissipação dos valores éticos e da ausência de
perspectiva de vida numa sociedade capitalista, onde o dinheiro e o poder parecem ser os
únicos valores estáveis de sobrevivência.
Apoiado nas proposições teórico-críticas de Dias, Pellegrini, Dalcastagnè (2008),
Diógenes (1998) e Cocco (2014), este trabalho reflete acerca da violência na literatura
brasileira contemporânea a partir da leitura de O matador de Patrícia Melo. Partindo da
premissa de que o cromo da violência exposto na narrativa dá um tom de ficção testemunhal,
asseverada no ícone de uma sociedade opressiva e sádica.
1. Violência, cultura e juventude
Caracterizar a cultura no atual contexto social exige uma reflexão de como o indivíduo
se coloca diante da diversidade de expressões culturais. Mas afinal o que significa, do ponto
de vista da acepção, o termo cultura? Segundo dicionário Aurélio, ela pode ser caracterizada
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como “ato, efeito ou modo de cultivar. O complexo dos padrões de comportamento, das
crenças, das instituições, das manifestações artísticas, intelectuais, etc., transmitidos
coletivamente, e típicos de uma sociedade” (HOLANDA, 2004, p. 197). A cultura é um
sistema de representação das relações coletivas que se dá através do compartilhamento de
patrimônios comuns como a língua, a religião, as artes, o trabalho, os esportes, as festas, entre
outros.
A teoria moderna, a partir do pensamento antropológico, reconhece que acultura
abrange as dimensões da linguagem, do simbolismo, do espaço, do tempo e da cognição. Essa
abordagem intensificou-se nos anos 80, motivando críticas pelo uso acrítico, explicando tudo
e qualquer coisa através do conceito de cultura. Porém, para seus defensores o grande valor
desses estudos foi precisamente chamar a atenção para a dimensão simbólica que permeia a
organização e os seus grupos.
A “cultura da violência” representa uma forma de expressão, principalmente da
juventude das camadas menos favorecida da sociedade. A pobreza e a exclusão acabam
levando muitos jovens a tensões e conflitos existenciais. Sobre esse aspecto comungamos com
a ideia de que “a juventude é o segmento que mais catalisa as tensões sociais como também as
exterioriza; a juventude é a vitrine dos conflitos sociais. Ela não apenas os expressa de forma
mais espontânea e transparente, até mesmo desordenada, como, de certo modo, os caricatura.”
(DIÓGENES,1998, p. 162). A profusão da violência tem provocado a instalação do niilismo
desde cedo em crianças descrente do futuro, catalisando cada vez mais esses conflitos em
razão da experiência de discriminação, pobreza e exclusão.
Nesse sentido, “a ausência de valores sociais balizados por uma ideia de consenso, de
constituição de diferentes capazes de forjar identidades coletivas, impulsiona jovens de
diferentes cidades do mundo às práticas da violência.” (DIÓGENES, 1998, p. 163). Ainda,
segundo o autor, a condição de pobreza e o sentimento de exclusão, são experiências
dolorosas, mobilizadoras da violência dos jovens. Assim, a expressão da juventude, por meio
de atitudes violentas, de certa forma, pode ser compreendida como afirmação da sua
invisibilidade e da sua exclusão social.
A falta de perspectiva de trabalho e de condições mínimas de vida gera o desvio de
valores éticos e morais do homem, sobretudo dos mais jovens.
O desemprego ou as
condições precárias de trabalho, ao que parece, “amplifica as diferentes formas de exclusão,
produzindo um número crescente de vidas descartáveis, sem nenhum roteiro futuro de
inclusão.” (COCCO, 2014, p. 49). Os sujeitos inseridos nesse contexto constituem a realidade
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de uma nação que vive um processo de exclusão, cuja modulação corresponde à clivagem
entre o ser e o existir no mundo.
Estabelecer uma relação da cultura com a violência é, antes de tudo, pensar as
dimensões do fenômeno da violência, atentando para a sua representação na cultura brasileira
a partir de uma interpretação da realidade contemporânea. Nesse sentido, cabe perguntar se a
violência é fruto dos tempos modernos que impulsionam a constituição de sujeitos a partir da
cultura do consumo. Esses conflitos têm levado alguns estudiosos a defenderem a ideia de
fragmentação da identidade do sujeito a partir de uma concepção sociológica. Isso se deve ao
fato de que é possível distinguir velhas e a novas identidades. Partindo desse pressuposto,
Hall defende que:
A questão da identidade está sendo extensamente discutida na teoria social. Em
essência, o argumento é o seguinte: as velhas identidades, que por tanto tempo
estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e
fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado.
Assim a chamada “crise de identidade” e vista como parte de um processo mais
amplo de mudanças, que está deslocando as estruturas e processos centrais das
sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos
uma ancoragem estável no mundo social. (HALL, 2011, p. 7).
Percebe-se que não é mais concebível pensar uma identidade unificada, por isso seria
interessante desapropriar a singularidade do termo para uma pluralização – IDENTIDADES.
Se novas identidades são construídas consequentemente surgem novas culturas, pois uma
coisa não se dissocia da outra. Nesse processo, as mudanças de comportamento abalam as
referências de sujeito social. Ora, se ambas se sobrepõem não há como negar que a violência
nasce da desestruturação social, e que esta estimula, de alguma forma, a violência. No embate
entre o SER e o TER, o crime se “justifica” pela desigualdade, pelo desemprego, pelos baixos
salários, pela ineficiência da educação, da saúde, da segurança e de tantas outras questões.
A violência urbana, muitas vezes, ganhar força a partir das relações de poder, de lutas,
de conflitos e da experiência de viver em uma sociedade, cuja discriminação social separa e
classifica os sujeitos. Todos esses aspectos ainda são resquícios do processo de colonização e
dominação “imolado” pelo Brasil.
Segundo Chauí (1980), entender o papel da violência esbarra, logo de partida, com o
mito da cordialidade e da não-violência do brasileiro. Sobre esse aspecto, Oliven (1982)
lembra da violenta repressão dos movimentos populares, como o Quilombo dos Palmares, a
Cabanada, a Balaiada, Canudos, Contestado, os Muckers e a Revolta da Chibata. O autor
destaca, ainda, que as manifestações de violência no cotidiano brasileiro foi extirpado depois
de 1964, quando a violência começa a ser considerada um problema nacional, associada
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1899
sobretudo ao aumento da delinquência da classe baixa, ignorando o caráter repressivo dos
órgãos de segurança.
Refletindo sobre essa questão, Schollhammer (2008) faz um mapeamento da violência
no Brasil entre os anos 60 até o momento atual, apontando a onda de balas perdidas no Rio de
Janeiro e São Paulo, as guerras entre facções do tráfico de drogas, chacinas, ataques a ônibus,
assassinato de crianças e jovens, fuzilamento de policiais, surgimento de milícias entre outros
crimes bárbaros que chocaram e chocam o Brasil.
Contudo, é preciso fazer uma retrospectiva entre os anos 50 e 70 para compreender a
visibilidade da violência no Brasil, buscando entender a relação violência, cultura e literatura.
De acordo com Schollhammer (2008), as duas décadas mencionadas no parágrafo anterior
foram marcadas pela esperteza e rebeldia, ou seja, pela malandragem e desordem o que
resultou no medo e na aparição da violência:
O medo da violência e sua aparição nos discursos sobre a realidade brasileira
começa já na década de 1950, mas ganha plena visibilidade apenas nos anos 70.
Nesse primeiro momento, a representação da violência está marcada por dois
componentes sócio-políticos determinantes. [...] Em poucas décadas, o Brasil
transformara-se de agrário e coronelista num país predominantemente urbano, com
todos os problemas sociais decorrentes de uma urbanização problemática. Em 1960,
45% da população brasileira residia em áreas urbanas e até o final do século esse
número cresceu para 78%. Surgiu uma nova realidade suburbana que, já nos anos
1950, começou a ser retratada em obras pioneiras do Cinema Novo de Nelson
Pereira dos Santos, o Rio Zona Norte e Rio 40 Graus. Por outro lado, a violência foi
nos anos 60 e 70 associada à condição política da chamada “revolução de 1964”,
cujo rótulo romântico encobria um golpe militar que interrompeu o processo
democrático, dando início a um longo período de autoritarismo político e de lutas
clandestinas contra o Regime. (SCHOLLHAMMER, 2008, p. 59).
Pode-se perceber que o Brasil ao longo de sua história foi marcado pela cultura do
medo e da repressão. O tema da violência sempre esteve em discussão, seja através dos meios
de comunicação de massa, seja por meio da literatura, ganhando destaque nas diferentes
esferas comunicativas e nas diferentes expressões culturais como cinema, teatro e música.
Contudo, vale destacar, as muitas tentativas romantizadas de camuflar a violência na década
de 60, um regime perverso que maquiava a realidade de um período político opressor e tirano.
Considerando que arte produz ideologias e que por esta razão está vulnerável a
condicionamentos sociais, políticos e culturais, a literatura é um veículo de disseminação de
temas que coadunam com a organização de ordem social, e isso ocorre desde a experiência
colonial, cujas manifestações de arte já extraíam a cultura do colonizador e do colonizado
dentro de um sistema dicotômico de forças, poder e obediência, de fé e violência. No tocante
a literatura contemporânea essa extração se torna mais evidente em função de o leitor atual ter
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1900
mais visibilidade da situação social do momento, através da publicização dos meios de
comunicação de massa.
Para Diógenes (1998), a mídia alardeia e cria estereótipos, reforçando o estigma da
população em relação aos jovens pobres das periferias, o que pode construir discursos e
práticas homogeneizantes, isto é, colocando todo e qualquer jovem periférico dentro da
fenomenologia da violência. Esta é disseminada por esses meios e está presente na literatura
contemporânea, e para ficar com algumas dessas produções destaca-se as narrativas
cinematográficas da década de 60, com Dalton Trevisan, José J. Veiga, Osman Lins, Rubem
Fonseca, estes como precursores do desenvolvimento do tema, Ferrèz, Drauzio Varella, Paulo
Lins e Patrícia Melo. Ainda refletindo sobre a representação da violência e sua relação com a
cultura, isto é, com o contexto de produção, Pellegrini destaca:
É inegável que a violência, por qualquer ângulo que se olhe, surge como constitutiva
da cultura brasileira, como elemento fundante a partir do qual se organiza a própria
ordem social e, como consequência, interfere também na experiência criativa e nas
expressões simbólicas, aliás, como acontece, com caraterísticas particulares, na
maior parte das culturas de extração colonial. Nesse sentido, a história brasileira,
transposta em temas literários, comporta uma violência de múltiplos matizes, tons e
semitons, que pode ser encontrada desde as origens, tanto em prosa quanto em
poesia: a conquista, a ocupação, a colonização, o aniquilamento dos índios, a
escravidão, as lutas pela independência, formação das cidades e dos latifúndios, os
processos de industrialização, o imperialismo, as ditaduras. (PELLEGRINI, 2008,
p. 42).
A violência, de acordo com as propositivas da autora, não nasce efetivamente na
literatura contemporânea, ela é resultado de uma situação fundante do berço do capitalismo, e
tem raízes nos diversos acontecimentos que marcaram o povo brasileiro. Contudo, é na
literatura contemporânea brasileira que eclode a estetização da violência, trazendo à tona a
preocupação com os problemas ligados às desigualdades sociais, à descriminação, ao
preconceito e ao racismo.
A percepção de que as irregularidades sociais corroboram a formação da identidade do
sujeito e traz à tona as realidades manifestadas nas diversas camadas sociais, fez com que a
“Time Magazine” tenha incluído a roteirista, dramaturga e escritora Patrícia Melo entre as
cinquenta líderes latino-americanos do novo milénio, seu destaque no cenário nacional e
internacional se deve pela capacidade de metamorfosear a celeridade dos acontecimentos e a
violência dos grandes centros urbanos em narrativas que se aproximam da película
cinematográfica.
Entre as obras de Patrícia Melo se destacam: Acqua toffano (1994), primeiro romance
publicado, seguido de O matador (1995), Elogio da Mentira (1998), Inferno (2000), Valsa
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1901
Negra (2003), Mundo Perdido (2006), entre outras obras. Desde a década de 90, Melo vem
chamando a atenção pelo talento de transformar a realidade em narrativas cinematográficas,
como é o caso da obra O matador, cujo enredo imprime uma crítica à sociedade
contemporânea. Para Pellegrini (2008) o desenvolvimento da literatura sempre buscou a
expressão criativa consoante com a perplexidade da experiência literária que evoluiu e hoje
tem como pano de fundo a violência.
2. A estetização da violência e a distorção moral em O matador
Em O matador, Patrícia Melo retoma a temática da violência urbana empreendida pelo
escritor Rubem Fonseca, entre as décadas de 70 e 90. A obra tematiza a violência como pano
de fundo do enredo, a partir dos sucessivos assassinatos banais cometidos pelo narradorpersonagem. A distorção dos valores éticos e a descrença no futuro faz do jovem protagonista
um matador de aluguel imbatível, um exterminador impiedoso, que mata e enterra até a
própria esposa.
A perturbação do jovem se revela logo nas primeiras páginas, ora Máiquel deseja
construir uma família e ser um homem bom, ora exprime o desejo de ser um matador e mudar
de vida. Essa mudança começa pela aparência física, era preciso mudar o visual para se sentir
mais forte e ao mesmo tempo visível à sociedade. A identidade do matador é indefinida, por
isso era necessário dispor de outra imagem simbólica para ter mais visibilidade. Para sentir-se
uma pessoa instável diante do contexto da contemporaneidade, Máiquel nega seu modo de ser
e existir, se acha feio e sem graça e resolve mudar:
Sempre me achei um homem feio. Há muitas curvas em meu rosto, muita carne
também, nunca gostei. Meus olhos de sapo, meu nariz arredondado, sempre evitei
espelhos. Naquele dia foi diferente. Fiquei admirando a imagem daquele ser humano
que não era eu, um loiro, um desconhecido, um estranho. Não era só o cabelo que
tinha ficado mais claro. A pele, os olhos, tudo tinha uma luz, uma moldura de luz.
De repente todos os meus traços tornaram-se harmônicos, a boca, que sempre fora
caída, continuava caída, o nariz continuava redondo, as pálpebras inchadas, porém
tudo isso era bobagem porque havia algo maior, mais importante, a moldura.
(MELO, 2009, p. 10).
Mudar a cor do cabelo representa para Máiquel o nascimento de um outro ser humano,
iluminado e visível, sua vida começa a tomar contorno e definição, a crise de identidade,
marcada pela recusa de dois mundos – o interior e o exterior, começa a ser dissolvida. Para
Hall (2011), a identidade, na concepção sociológica, é vista como algo que preenche o espaço
entre o “interior” e o “exterior”, entre o mundo pessoal e o público. O narrador-personagem
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1902
preencher esses dois espaços, pois a tinta não tingiu apenas os cabelos do rapaz, o lado
exterior, tingiu, também, a confiança de si mesmo, o lado interno: “aquela tinta tingiu alguma
coisa mais profunda dentro de mim. Tingiu a minha autoconfiança, o meu amor-próprio. Foi a
primeira vez, em vinte e dois anos, que olhei no espelho e não tive vontade de quebrá-lo com
um murro” (MELO, 2009, p. 11).
O primeiro crime foi o estopim para as atitudes bárbaras que nem mesmo o matador as
compreendia. A motivação para o primeiro assassinato é banal é irônica – Máiquel chega ao
bar com os cabelos pintados e se irrita profundamente com a crise de risos de Suel: “você está
achando graça, Suel? É engraçado, porra, parece um gringo. Vai ver que você pensa que sou
veado. Porra, você chega aqui parecendo um gringo, achei engraçado, porra. Qual o
problema?” (MELO, 2009, p. 15). O ódio somado a uma terrível dor de dente leva o jovem a
uma atitude extrema: “amanhã, às seis horas, em frente ao bar do Tonho vamos fazer um
duelo” (ibidem).
A mente estonteada de Máiquel chama atenção e choca o leitor, que por algum
momento acredita na mudança de atitude do matador. Essa esperança ocorre em função do
reconhecimento do próprio jovem acerca de sua barbárie ideológica. Quando está a caminho
do bar onde marcara o duelo, a impressão que se tem é que ele vai mudar de ideia: “aquele
cara vai aprender a não sair por aí chamando os outros de veado, eu disse. Ele não te chamou
de veado, chamou de gringo. É a mesma coisa. Veado e gringo são a mesma coisa. Também
não sei de onde eu tirei isso” (MELO, 2009, p. 17). Contudo, o crime acontece da forma mais
sanguinária, como se matar fosse tão natural quanto viver “Suel ficou de costa para mim e
saiu gingando, de mãos dadas com a namorada. Pode atirar, ele gritava, me mate pelas costas.
Dei o primeiro tiro, Suel voou no chão, deve ter morrido na hora. [...]”. Para quem nunca
havia matado alguém, Máiquel já mostra seu lado desumano e a atira mais uma vez: “dei
outro tiro sem mirar e acertei a cabeça de Suel. [...]. Até isso acontecer, eu era apenas um
garoto que vendia carros usados e torcia para o São Paulo Futebol Clube. (MELO, 2009, p.
18). Percebe-se que a violência chegar a tomar uma ordem regular das coisas, a ponto de o
próprio leitor encarar com naturalidade os crimes publicizados e estetizados pelas industrias
da cultura, principalmente da mídia, cujo objetivo parecer ser o da espetacularização.
Para Pellegrini (2008) a representação da violência é uma realidade irrecorrível, que
acaba funcionando para o leitor em função da representação de uma determinismo cego que
oblitera qualquer resistência, como é o caso da aceitação da desigualdade social que gera o
crime. A priori, Máiquel se apresenta para o leitor como um cara normal, que quer ter uma
vida correta, casar, ter filhos e trabalhar, mas ele não consegue e é atraído pelo mundo do
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crime, do dinheiro fácil, da luxuria e pela influencia de quem detém o poder de persuadir. É o
que fica patente na relação do jovem com o Dr. Carvalho: “meu dente doía para caralho.
Quanto o senhor cobra para arrancar este dente? Eu posso tratar, ele disse. Eu não tenho
dinheiro. Você não precisa pagar. Gostei de você. Gostei do que você fez com Suel. Aquele
preto filho da puta merecia morrer. (MELO, 2009, p. 37).
O destino coloca frente a frente dois mundos distintos – Máiquel e o Dr. Carvalho, o
primeiro pobre e cansado de não SER e não TER nada na vida, o segundo rico e com sede de
vingança – acabar com os ladrões da redondeza e com o cara que desgraçou a vida de sua
filha “eu tenho uma filha de quinze anos, uma florzinha, acabaram com ela. Estupraram a
minha filha quando ela voltava do colégio” (MELO, 2009, p.37). Ezequiel era o estuprador
da filha do dentista, que Máiquel deveria matá-lo como pagamento do tratamento dos dentes
podres.
O assassinato de Robinson, morto por engano, pois Máiquel seria o alvo, foi fator
motivacional para Máiquel seguir a carreira de matador – aceita a proposta de Silva,
empresário da região, para matar um garoto que cometia pequenos furtos na região. Durante
dias ele resistiu em matá-lo, pois prometera a si mesmo não matar criança, mas o ódio que
sentiu pela morte do primo o levou a procurar o empresário e acerta o valor do crime, e saiu à
caça do menino: “Neno pediu pelo amor de Deus para não matá-lo. Mas eu não acreditava
mais em Deus. [...]. Eu vou te matar, [...] eu vou te matar porque, a partir de agora, eu sou o
matador. Eu sou grade, o cachorro, o muro, o caco de vidro afiado, eu sou o arame farpado, a
porta blindada”. (MELO, 2009, p. 109).
A dicotomia entre ricos e pobres é evidenciada de forma irônica na crítica que Melo
faz a dois mundos distintos - poder e pobreza. Máiquel sai da posição de miserável e
coitadinho para se tornar o rolo compressor, a fortaleza imbatível, o justiceiro da região,
segundo a concepção dos próprios moradores da periferia. É interessante perceber a relação
que o matador faz entre o seu perfil criminoso e os recursos utilizados pela elite para se
proteger dos bandidos. Máiquel é metamorfoseado na “grade”, no “cachorro”, no “muro”, nos
“cacos de vidros”, no “arame” e na “porta blindada”, nada poderá contê-lo, ele está decidido a
ser de fato o matador. A ironia nas palavras de Máiquel exterioriza sua forma de ser e existir
em um mundo de pobreza e desigualdade social, agora era imbatível, blindado a qualquer mal
que tentassem contra ele.
O ápice da crueldade de Máiquel ainda estava para ser revelado. Embora pouco falasse
da filha Samanta, que teve com Cledir, ele sempre teve a esposa como exemplo de mulher
fiel, dedicada e boa mãe, mas isso não o fez uma pessoa mais sensível “ela começou a berrar
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1904
comigo, eu ouvia tudo, entendia tudo, ela estava assustada, o ódio começou mesmo na boca e
explodiu no cérebro e explodiu nas minhas mãos e eu apertei o pescoço de Cledir, apertei,
apertei, apertei e só parei quando ouvi o osso do pescoço se partir. (MELO, 2009, p. 109).
O bandido desenhado por Patrícia Melo representa a ganância, o egoísmo e a busca
pela ascensão. Érica, ex-namorada de Suel, que se tornou esposa de Máiquel após a morte de
Cledir, vai embora com um pastor da igreja, levando consigo a filha de Máiquel e uma certa
quantia em dinheiro. O matador vai preso pela morte da esposa, mas quando sai da cadeia seu
único desejo é encontrar a filha e matar Érica e o pastor, enredo que resulta em outro livro da
autora, Mundo perdido (2006). Sobre essas tramas, Schollhammer (2008) afirmar que o Brasil
é retratado, satiricamente, através do olhar de Máiquel, em que o tema central já não é mais a
violência senão e decomposição moral da corrupção, do oportunismo e da desaparição de
estruturas e instituições sociais sólidas. A relação do matador com ele mesmo e com mundo
revela sua crise pessoal intermediada pela crise social, política e econômica do Brasil. Nesse
sentido, Dalcastagnè (2008) lembra que a violência física ou simbólica, costuma intermediar
nossa relação com o outro, destituindo-lhe a humanidade e afastando-o sempre mais da nossa
existência.
Uma ironia que chama atenção na narrativa diz respeito à afetividade que Máiquel
mantém com os animais. Primeiro com o porco que ganhou de presente quando matou Suel, e
depois com o cachorro que ele atropela durante uma fuga em Mundo perdido (2006). Segundo
Schollhammer (2008), esse laço afetivo com o vira-lata torna-se o último e patético resquício
de humanidade para Máiquel.
Esse conflito de identidade diante do “interno” e “externo” é extremamente irônico em
O matador, e talvez seja isso que aproxima tanta a literatura da realidade atual.
Comportamentos como os de Máiquel não estão distante da nossa realidade, são inúmeros os
casos de jovens que enveredam pelo mundo do crime, motivados pelo tráfico de drogas,
guerras entre facções, acertos de conta, vingança, crimes encomendados e tantas outras
formas de violência. Para Dias (2008) a estreita relação que a literatura contemporânea tem
mantido com a vida urbana vem configurando uma recorrente perplexidade diante da
experiência histórica, ficcionalizada como absurda e inverossímil.
A vida de Máiquel é marcada pelas diferenças de classe: “fiquei com vergonha de
abrir a boca, meus dentes todos fodidos, o Dr. Cravalho, com seu jaleco branco, seus sapatos
brancos, suas mãos cheirando a Lux Luxo, ia ficar enojado ao ver toda aquela podridão”
(MELO, 2009, p. 34). Segundo Dias (2008) essa tendência documental da literatura brasileira
contemporânea constitui a referência óbvia à compulsão pelas situações-limite na vida social.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1905
Para a autora, desde o surgimento de Cidade de Deus, de Paulo Lins, seguida por Estação
Carandiru de Drauzio Varella, Memória de um sobrevivente de Luiz Alberto Mendes e
Capão Pecado de Ferrèz, narrativas cuja tônica é o esforço testemunhal dos narradores, que
denunciam a desumana inserção social vivenciada pelo homem contemporâneo.
Uma leitura atenta de O matador revela como essas questões são patenteadas por meio
de uma linguagem espontânea, por vezes agressiva, ao mesmo tempo em que apresenta
características obsessivas da torpeza extrema do homem: “um homem para matar, aquilo me
incomodava. O pau não queria entrar, ele cuspiu na boceta dela. Cuspiu na cara também,
enquanto gozava. [...] Ezequiel [...], sem expressão nenhuma. Não tinha cara de fodedor.”
(MELO, 2009, p. 39).
A relação de Máiquel com o Dr. Carvalho o coloca em uma situação de poder, ele
deixar de ser apenas o sujeito da ação para tornar-se parte de uma engrenagem social. Os
crimes agora são encomendados, o narrador recebe propostas “irrecusáveis” para matar.
Diante das ofertas, o jovem, sem muitas expectativas, pois não consegue ascender com os
empregos de faxineiro, porteiro e atendente de balcão que lhe são oferecidos, percebe que
matar lhe rende fama e recompensas financeiras, além de uma vida confortável. Contudo, a
ascensão do matador dura pouco tempo, depois da prisão pela morte da esposa, foge da cadeia
e os “sócios” do crime, o matador perde tudo, inclusive a segunda esposa e a filha que teve do
primeiro casamento. Resta-lhe agora vingar-se de Érica e matar o pastor.
Considerações finais
Diante de um mundo corrompido pelas desigualdades sociais, a marginalidade emerge
hoje como uma diretriz de organização formal da crueldade expandida nos grandes centros
urbanos. O crescimento desordenado das cidades resultou no engessamento urbano,
consequentemente isso acarreta a desestruturação do espaço, aumentando os problemas de
ordem social, econômica e cultural. Essa situação, articulada ao atual cenário, nos permite
dialogar com a crítica social vinculada na literatura brasileira contemporânea.
A literatura produz ideologias e está condicionada a fatores sociais, políticos,
históricos e culturais de seu tempo e contexto social. A partir da leitura da obra O matador de
Patrícia Melo, sitiada pelo crime banal e cruel, desenho de um país desajustado socialmente,
onde a barbárie urbana é “justificada” em função dessa desigualdade, percebe-se que a
estetização da violência toma como base os problemas sociais e os grupos marginalizados.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1906
A história de Máiquel coaduna com a história de muitos jovens que vivem à margem
da sociedade e não aceitam as condições de desigualdade que lhes são impostas e acabam por
assumir uma postura que contradiz os valores éticos e morais, se envolvem com droga, tráfico
e crimes, e se deixam dominar pela ilusão de ter uma vida melhor. Em O matador, Máiquel,
como uma representação dos sujeitos das multidões periférica carrega consigo o peso do
estereótipo de ser pobre e morador da periferia, fruto do abandono social e das mazelas
presentes na sociedade brasileira, que busca um meio de sobreviver da forma mais cruel.
Assim, entende-se que a literatura brasileira contemporânea tem assumido o papel de
representar a voz dos excluídos e marginalizados nos espaços urbanos. Portanto, espera-se
que a partir dessas reflexões surjam novos questionamentos e novas discussões sobre a
violência no Brasil, e a sociedade como um todo tome consciência de que só a igualdade de
direito pode minimizar o caos e que não seja mais preciso justificar a existência da violência
em função daquilo que é de direito de todos, mas que é subtraído – dignidade, moradia,
comida, emprego, educação e saúde gratuita de qualidade.
Referências
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caderno de literatura e ensaios, nº 11. São Paulo: Brasiliense, 1980, pp.16-24.
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hip hop. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1998.
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Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1907
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Brasil contemporâneo. In:____. Ver e imaginar o outro: alteridade, desigualdade, violência
na literatura brasileira contemporânea. São Paulo: Horizonte, 2008, p. 57-77.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1908
MEMÓRIA E LITERATURA: TRAUMA, ESQUECIMENTO E
PÓS-MEMÓRIA NA REPRESENTAÇÃO DO MASSACRE DOS
ÍNDIOS EM A LENDA DOS CEM, DE GILVAN LEMOS.
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Mariá Gonçalves de Siqueira (UFPE)
Introdução
A memória são as vivências que o sujeito guarda ao longo da vida e, que são
constituídas pela percepção que ele tem do mundo. Essa percepção se organiza de maneira
relacional, na qual “nossa memória dirige à percepção recebida as antigas imagens que se
assemelham a ela e cujo esboço já foi traçado por nossos movimentos.” (BERGSON, 1999, p.
115). Assim, de acordo com a ideia de Bergson (1999), há uma recriação dessa antiga
percepção, que pode se transformar em uma nova imagem ou se constituir como uma
imagem-lembrança de mesma tipologia. Dessa forma, se organiza um movimento em que a
rememoração da imagem busca informações mais profundas, que de início estariam afastadas
da memória, mas são resgatadas para compor uma melhor projeção da nova imagem. Com
isso, se realiza um processo no qual a memória fortalece e enriquece a percepção e esta, cada
vez mais, amplia o seu número de lembranças complementares. Diante desse processo
individual de construção da memória, trazemos a visão de Halbwachs (2006), que além de
expor sobre a memória individual, apresenta e discute sobre a memória coletiva. Tal autor faz
uma distinção entre esses tipos de memória, mas acredita que mesmo a memória sendo
individual, ela é coletiva no sentido de nossas experiências vividas fazerem parte de uma
coletividade na qual as lembranças de outrem nos faz lembrar das nossas. Assim, o teórico
afirma que jamais estamos sozinhos “porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade
de pessoas que não se confundem.” (HALBWACHS, 2006, p. 30). Percebemos que, para ele,
o aspecto social é bastante relevante na reconstrução da memória, sendo essencial para o
processo mnemônico do sujeito.
Diante dessa perspectiva social da memória, podemos inferir que ela serve à
Literatura, no sentido de ser a base para se construir narrativas tanto individuais quanto
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1909
coletivas. A Literatura é a instância na qual se recria e narra as lembranças de um individuo
que está inserido em determinada conjuntura social. Semelhante à ficção, a memória literária
é a representação da memória pessoal e, ao mesmo tempo, coletiva de um sujeito escritor. É
de suma importância ressaltar que compreender a literatura como o espaço da memória, ou
seja, como atividade criadora de imagens, com capacidade de construir específicas
configurações da identidade coletiva, não que dizer que há uma redução do objeto literário ao
estatuto de objeto histórico, nem muito menos adotar a leitura enviesada de que a ficção, por
ter como parâmetro a realidade, expressa um recorte fiel dela. Sustentamos que há uma
reelaboração da memória individual e coletiva, mediada pela instância da ficcionalidade,
constituindo, assim, a memória literária.
A partir disso, o objetivo do presente trabalho é investigar como a representação da
memória de um massacre indígena pode retratar o apagamento da história, revelar os traumas
causados por ele e ainda apresentar seus resquícios em gerações futuras, no romance A lenda
dos cem, de Gilvan Lemos.1 O intuito da análise é também verificar o modo de reelaboração
ficcional das crenças indígenas como memória cultural de um povo, que, em um processo de
aculturação, traz consigo o esquecimento de sua história.
Os Xacuris é a tribo indígena representada por Gilvan, no romance. No entanto, a
narrativa tem como personagem principal Pedro, mais conhecido como Peto, um descendente
dessa tribo. A trama contada por um narrador heterodiegético, gira em torno da história de
Pedro querer se vingar do homem que encomendou a morte de seu pai, quando ele era ainda
uma criança. Por meio disso é que se conhece a história de seus antepassados e, com isso, a
história da tribo. De início não fica evidente que Pedro descende dos índios, mas ao longo da
diegese percebemos que a sua história se entrecruza com a dos Xacuris. Nisso, é narrada a
história do surgimento da tribo, lenda que dá nome ao romance, e que é contada pelo pai
velho da tribo. Há o processo de aculturação dos índios, que envolve a ganância das
personagens Dr. Menezes e Mr. Robder, que em busca de mais terras para implantar as suas
indústrias, promovem um massacre para se apossar do território dos Xacuris.
Representação e aculturação dos índios
1
Gilvan Lemos nasceu em 1928, em uma cidade do interior de Pernambuco chamada São Bento do Una. Aos
vinte e um anos vem morar em Recife, local onde até hoje reside. Autor de um consistente trabalho literário, suas
obras mais conhecidas são: Emissários do diabo (1968), O anjo do quarto dia (1981), A lenda dos cem (1995) e
Morte ao invasor - (1977). Tem vinte e cinco livros publicados: doze romances, sete livros de contos e seis
novelas. Com essa diversidade de gêneros narrativos, o escritor tem como influências literárias muitos autores da
geração de 30, entre eles: Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Érico Veríssimo. Diante desse quadro, ele é
considerado pela crítica como um herdeiro dessa geração, sendo um dos últimos representantes dessa tendência
neo regionalista.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1910
Faz-se necessário, a priori, apresentar a forma como a tribo dos Xacuris é
representada por Gilvan Lemos. O autor pernambucano figura índios já aculturados, em que
as suas memórias culturais se misturam com as dos brancos, como podemos verificar nesse
trecho “Desde a colonização, os Xacuris tinham sofrido influências alienígenas, seus
costumes há tempos vinham se deteriorando. Comemoravam o Torém assim como,
oportunamente, folguedos do carnaval e do dia de São João.” (GILVAN, 1995, p 36). Ou seja,
os festejos culturais provenientes de uma tradição, seja ela indígena ou não, eram
comemorados pelos índios sem nenhuma distinção.
Todavia, o Torém, único festejo que havia sobrado da cultura dos índios, era encarado
com bastante seriedade, tanto pelos índios que ainda viviam na tribo, quanto pelos que haviam
abandonado o local para viver entre os brancos. Nessa cerimônia apenas os Xacuris podiam
estar presentes, sendo excluída qualquer pessoa que fosse proveniente de mestiçagem. Por ser
esse o único ritual mantido pela tribo, havia um sigilo das práticas ritualísticas que aconteciam
durante o Torém, o que causava bastante curiosidade entre as pessoas da cidade próxima à
aldeia. Contudo, os índios mantinham o segredo e não se corrompiam diante de nenhuma
proposta: “Através de dinheiro, bebida, promessas tentadoras, forçavam-lhe confissões, os
Xacuris resistiam.” (LEMOS, 1995, p. 37). Isso porque o Torém significava para eles a
manutenção de suas raízes, assim, “Apegavam-se ao último refúgio de suas tradições,
levariam ao túmulo, como bandeira, a essência do que o Torém significava para eles.”
(LEMOS, 1995, p. 37).
Diante dessa manifestação cultural dos Xacuris, utilizamos o conceito de memória
cultural, da Aleida Assmann. A autora afirma que a memória cultural permanece viva ao
longo do tempo, e supera o tempo de vida dos sujeitos, nisso, “Os mortos podem se
comunicar com os vivos e os vivos podem se comunicar com as próximas gerações.”
(ASMANN, 2013, p. 6). Podemos ver isso no romance quando Nacha sempre conta sobre o
Torém para seu filho, e mesmo o ritual não mais sendo realizado porque os demais índios
foram mortos no massacre, a memória cultural de Nacha ainda sobrevive com ela.
Outro sinal de aculturação dos índios é retratado pelas vestes e pela organização da
aldeia indígena. Sobre as roupas, os índios residentes na tribo se vestiam como os da cidade
“O traje deles era o comum, da cidade, com pequenas variações.” (LEMOS, 1995, p. 13),
inclusive o próprio pai velho da tribo se vestia conforme os brancos, “O velho Olímpio Pichá
não chegava a descer do cavalo. [...] Calças e paletó do mesmo brim, botinas, chapéu de
massa – o seu era de massa -, abas sem quebras, lenço vermelho no pescoço.” (LEMOS, 1995,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1911
p. 14). Em se tratando da organização da aldeia, tinha as cabanas feitas de madeira e com
telhado de palha, próximas umas as outras. O que o narrador compara com as casas das
pessoas menos abastadas da vila “Iguais às do povo pobre da cidade” (LEMOS, 1995, p. 35).
O curioso é que no centro dessa organização de cabanas tinha uma igreja de alvenaria, mas
não só ela era assim “Depois da igreja, a escola era a única construção de alvenaria, coberta
de telhas, que havia no povoado.” (LEMOS, 1995, p. 35).
Assim, percebemos que as únicas casas que eram de alvenaria não fazia parte da
cultura dos índios. Inclusive, a prática de ir à escola era reproduzida não porque se sabia da
importância dos estudos, mas por pura reprodução da atitude dos brancos “[...] embora
Olímpio não tivesse plena consciência de que e para que isso serviria, mas o queria, certo de
que era correto querer, visto ser assim que os brancos, na cidade, preparavam seus curumins
para a vida.” (LEMOS, 1995, p. 38).
Diante desse processo de aculturação, há uma atitude imperialista por parte dos
brancos, que são chamados de galegos, no romance. Essa prática de domínio convocada no
romance fica patente quando há a tomada das terras onde se situava a aldeia dos índios e ainda
a exploração da mão de obra deles. É a partir dessa situação que ocorre o massacre dos índios
Xacuris, pois mesmo eles tendo a posse da terra por direito, “Suas posses de terra, garantidas
pela assinatura do Imperador, pegavam metade da cordilheira do Iurubá, desciam
atravessavam o Añun até se perder de vista” (LEMOS, 1995, p. 39), os índios não são
respeitados e tem as suas terras tomadas. Compreendemos aqui que há a memória de um
passado colonial, o que, de certa forma, é comum na Literatura pós colonial, recriar essa
história de dominação, que a história oficial nem sempre apresenta. Nisso, estamos em
consonância com Walter (2010), quando ele assevera que:
[...] em geral, toda a literatura pós-colonial trabalha a (não-) história nacional com o
objetivo de revelar nela o que Aníbal Quijano chama de “colonialidad del poder” e,
neste processo de conscientização desconstrutiva contribuir para a sedimentação da
consciência em memória coletiva. (WALTER, 2010, p.2)
Assim, a Literatura como representação de uma memória coletiva é o lugar para se
problematizar essas questões, que a memória histórica nem sempre revela. Dessarte, os
autores pós coloniais proporcionam ao povo colonizado, sua inserção em uma história que lhe
pertence, que é sua por direito, significando, assim uma retomada de sua identidade cultural e
social.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1912
Dessa forma, a Literatura é também o espaço para a memória recriar uma resistência
contra a violência pós colonial. Assim, Gilvan Lemos se vale disso para reelaborar essa
realidade de maneira mítica. Isso é o que percebemos na narrativa analisada, em que a história
da origem da tribo dos Xacuris é explicada pela lenda que nomeia o romance – A lenda dos
cem. A lenda conta a história dos Xacuris numa época muito remota em que só existiam os
índios e que, com a chegada dos brancos, começa a desdita da tribo. Os Xacuris são
escravizados, mas um índio, dos cem que foram aprisionados, consegue fugir. Ele se chama
Môque e arquiteta um plano para libertar os seus companheiros. Na lenda o Moquê, sozinho,
enfrenta os colonizadores e liberta os Xacuris, em situações mágicas com requintes
sobrenaturais.
Vale salientar que essa contação da lenda, no romance, para os índios se dá um dia
antes da batalha contra os brancos, o que além de contar a história de seus ancestrais, serve
ainda para encorajar os que ainda estão em dúvida para lutar contra os poderosos, que querem
tomar suas terras. Com isso, atinamos que não há uma inocência na contação da lenda, ela
cumpre um objetivo, que é o de promover uma resistência diante da atitude imperialista dos
brancos e o aspecto mítico se dá na fé em Moquê, pois Moquê, salvador dos índios, é dotado
do poder de libertação porque é “[...] filho único do Pai da Mata, que é o nosso Deus Tupã.”
(LEMOS, 1995, p. 84).
É relevante ressaltar o momento da narração dessa lenda, pois a voz narrativa é da
personagem mais idosa, a do pai velho da tribo, pois “O pai-velho deles era exímio contador
de história. (LEMOS, 1995, p. 79). Diante disso, podemos perceber que a memória dos mais
velhos é respeitada dentro da aldeia, o que coaduna com o que Bosi (1983) expõe sobre a
hipótese psicossocial da memória, em que o idoso é a figura que apresenta uma historia social
mais desenvolvida, isso porque ele viveu diversas experiências ao longo do tempo,
adquirindo, consequentemente, mais lembranças. A autora ainda faz um paralelo com o
pensamento de Halbwachs sobre a memória como função social e afirma que, no contexto
social, o velho, não sendo mais um membro ativo na comunidade, adquire uma nova função, a
de lembrar. Nesse sentido o ancião se torna a memória da família e que, em alguns casos,
como nas tribos primitivas “os velhos são guardiões das tradições” (BOSI, 1983, p.23), como
acontece no romance com o pai-velho Olímpio Picha.
Apagamento da memória
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1913
Nisso, o dia da luta chega e o massacre é inevitável. As armas dos índios diante das
dos brancos foram ineficazes, o que ocasionou o extermínio de quase toda a tribo, restando
apenas os que fugiram quando viram que não adiantava lutar contra o poder bélico dos
galegos, “Do Dr. Meneses, doze capangas armados de fuzis. Mr. Rodber, a título de
solidariedade, trouxera as metralhadoras com os respectivos artilheiros.” (LEMOS, 1995,
p.96). A barbárie é orquestrada pelos dois poderosos da cidade, Dr. Meneses e Mr.Rodber,
que têm consciência de seu poder, mas mesmo assim atacam sabendo que os índios não têm
armas suficientes para vencê-los, “- Vamos mesmo massacrá-los? / - Por que não? Não
querem assim? [...]” (LEMOS, 1995, p. 102). Assim, se realiza a matança, porém é do
interesse dos poderosos que esse acontecimento não venha à tona para os moradores da
cidade, para não se indisporem com uma eventual denúncia desse crime. Com isso, é
necessário o apagamento dos rastros dessa chacina e o Mr. Rodber é assertivo: “- Mande hoje
mesmo limpar o local, Meneses.” (LEMOS, 1995, p. 105). Porém, quando é questionado a
respeito do apagamento, a personagem afirma: “- Num instante se faz isso. Limpar tudo,
enterrar os mortos. Ora, pra quê! Quer deixar pistas, Meneses?” (LEMOS, 1995, p. 105). De
fato eles conseguem que não se tenha conhecimento do que aconteceu com a tribo, há um
apagamento da história dos índios “Acabada a carnificina, no mesmo dia mandaram limpar o
vale onde os índios moravam, enterrar os mortos, derrubar suas moradas, apagar a marca de
sua existência.” (LEMOS, 1995, p.160), afinal “Morto, o povo esquece. (LEMOS, 1995,
p.188). Assim, podemos atinar como o esquecimento da memória pode ser orquestrado por
razões político-sociais. Segundo Ricoeur (2007), esse esquecimento da memória é mediado
pela função narrativa dos acontecimentos, em que quem narra escolhe o que vai ser narrado,
pois não é possível recuperar as lembranças em sua completude. Isso ocorre porque o ato de
narrar contém em si a necessidade de ser seletivo. Nesse caso, a memória se torna ideológica,
mediante essa situação que a seletividade narrativa oferece, visto que quem seleciona é um
sujeito inserido em contextos político, social e ideológico. Isso se torna uma emboscada
quando os dominadores detém a escolha dos elementos e, assim, compõem uma narrativa
oficial de exclusão dos dominados, sendo essa “uma forma ardilosa de esquecimento,
resultante do desapossamento dos atores sociais de seu poder originário de narrarem a si
mesmos.” (RICOEUR, 2007, p. 455).
No entanto, o apagamento não é total, já que há a lembrança dos índios por parte de
um dos personagens do romance. Trata-se do Sr. Mardônio, amigo do pai velho Olímpio
Pichá e pai do filho de Nacha, neta do velho índio. Ele é o único que detém viva a memória
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1914
do massacre e questiona o desaparecimento dos índios, pois outras testemunhas do acontecido
foram silenciadas pelos poderosos como podemos ver nesse excerto:
“E as autoridades não tomaram nenhuma providência. Inquérito? Pra quê? Não tinha
havido nada. Só não explicaram como os Xacuris desapareceram da face da terra, da
noite para o dia. Se mudaram, diziam. Pra onde? Aí se calavam. Não tinham mesmo
o que dizer... E as pessoas insuspeitas, de que falei, foram por sua vez caladas.
(LEMOS, 1995, p. 160).
Mesmo com os questionamentos do Sr, Mardônio, o massacre é mais uma dúvida na
mente dos moradores, do que uma certeza. Já que não há pistas do que realmente aconteceu,
nenhum rastro aparente da violência cometida. Essa história do massacre vem à tona quando
um promotor chega à cidade para investigar o acontecido, mas na vila o crime é visto como
sendo uma invencionice “- Ô Mardônio, mas aquela história que você me contou, ninguém
aqui confirma. Dizem que é invenção dos comunistas.” (LEMOS, 1995, p. 159).
Compreendemos aqui, que há um posicionamento político na justificativa que se dá para
apagar a tragédia dos índios. Em verdade, durante todo o romance essa questão sociopolítica
se faz presente, tanto na situação narrada – os ricos capitalistas contra os índios – quanto no
próprio discurso do narrador, pois assim como Oliveira (2000), acreditamos que “É nítida a
posição do narrador. Na verdade, parece nos estar sugerindo de que lado devemos ficar.”
(OLIVEIRA, 2000, p. 80). Atinamos que não há um posicionamento neutro por parte do
narrador, há uma ideologia que contamina, influencia – não determina – o discurso da
instância narrativa.
Trauma e memória
Diante dessa discussão sobre a memória e a representação de um massacre indígena, é
válido trazer considerações acerca das consequências traumáticas que esse crime trouxe para
os personagens que sobreviveram. Nacha é uma personagem que traz consigo os traumas
desse acontecimento. Ela sente a culpa de ter fugido e deixado os seus semelhantes para trás e
também o trauma de ter presenciado e visto a violência cometida com a sua tribo, como
vemos a seguir:
“E ela corria mais e mais. Exausta parou no alto, dali podia ver. E viu. O seus
tomavam baleados como arribaçãs na espera [...] Um redemoinho de gente caindo,
só caindo, caindo. Seu pai, sua mãe. Pai-velho, os meninos, Nita. Prima Isabel...
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1915
Todos estavam lá. Nacha os traíra. Oh! Deus, não os veria jamais.” (LEMOS, 1995,
p 107).
É nesse sentido, que utilizamos as ideias de Seligman-Silva (2008) sobre o remorso de
sobreviver a um desastre. O autor julga que como os genocidas objetivam exterminar todo o
grupo, os sobreviventes são o testemunho de seu crime. Com isso, os que sobreviveram além
de sentirem o pavor de estarem vivos, ainda “vive o sentimento paradoxal da culpa da
sobrevivência.” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 75).
Nessa culpa de ter sobrevivido a uma tragédia, há o trauma de transformar em discurso
o ocorrido para outras pessoas. Isso porque as palavras parecem não traduzir o terror do
trauma vivido. Há uma impossibilidade de narrar o acontecido devido ao fato da divergência
entre as palavras, que são de uso comum para todos e a experiência traumática vivenciada,
que é individual.
Nesse sentido, em consonância com as ideias de Assmann (2011),
acreditamos que as “Palavras não podem representar essa ferida memorativa do corpo.”
(ASSMANN, 2011, p.278).
Esse pensamento coaduna com a atitude de Nacha, no romance. Ela, ao encontrar o
índio que seria seu futuro marido, tenta contar o que aconteceu e, nesse momento, fica patente
uma certa resistência em verbalizar a sua experiência traumática para o outro:
Nacha grunhiu, parecia um arroto seu grunhido. Antônio Panta levantou a vista para
ela, que limpava os olhos disfarçadamente:
- Tudo acabado. As casas, as gentes. Um magote de arribaçã caçada, correndo e
morrendo. Sua mãe, seu irmão, meus pais, pai-velho Olímpio... Todo mundo.
- Hem?
Nacha prosseguiu, sufocada, sincopada, o terror nos olhos miúdos, um tremor na voz
e nas mãos. (LEMOS, 1995, p. 112).
Com isso, notamos que de início narrar o acontecido é algo impossível para Nacha,
tanto é que ela, ao invés de falar, solta um grunhido, algo tão sobre-humano quanto o ato
violento a ser narrado, assim, a experiência de Nacha se torna inarrável, pois se constitui
como um trauma para ela.
No entanto, Nacha, ao longo da narrativa, até consegue contar o que aconteceu, mas
repete constantemente as mesmas palavras sempre que lembra a situação traumática. Umas
das pessoas que mais escutava a repetição era seu filho, João Panta, que em determinada parte
do romance conta que Nacha o prendia “para contar as histórias da comunidade, findando
sempre com a da gente dela caindo baleada feito arribaçã na tocaia: tudo acabado. As casas,
as gentes. Um magote de arribaçã caindo, correndo [...]” (LEMOS, 1995, p. 132). Até na
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1916
velhice, quando encontra seu tio sobrevivente e passa a viver com o seu bando, a lembrança
do massacre ainda vive na sua memória e ela repete a situação “- você precisa ouvir Nacha.
Ela não esquece o que aconteceu naquele dia. Às vezes a gente pega ela falando sozinha: Um
magote de arribaçã correndo e morrendo, sua mãe, seu irmão...” (LEMOS, 1995, p. 264). Essa
repetição parece mecânica, ela se utiliza das mesmas palavras para contar o que lhe aflige, não
consegue construir um discurso que seja articulado, de refletir sobre a situação traumática,
reproduz a mesma construção linguística para contar a sua experiência, pois “O trauma
estabiliza uma experiência que não está acessível à consciência e se firma nas sombras dessa
consciência como presença latente.” (ASSMANN, 2011, p. 277). Nesse sentido, o trauma por
estar no inconsciente, se define como uma memória de um tempo que não passa, de uma
situação que é estável e, no caso de Nacha, essa estabilidade da vivência traumática se traduz
por meio da repetição das mesmas palavras para, só assim, conseguir narrar o seu trauma.
Pós memória
Diante desse quadro de extermínio que é representado no romance, além das vítimas
que sobreviveram, há os descendentes dos sobreviventes, que são expostos a uma história na
qual não vivenciaram, mas que a conhecem por meio dos relatos de seus parentes. Como é o
caso de João Panta, um mameluco, filho de Nacha e do Sr. Mardônio, que revive o massacre
através da memória traumática que a mãe sempre repete. Essa situação é problematizada por
Marianne Hirsch, que cunha o termo “pós-memória” para definir essa condição. Para ela, o
vínculo entre descendentes que são do mesmo grupo ou a ligação entre outras pessoas que se
identificam e se unem com indivíduos que sofrem opressão e flagelos, abarcam o conceito de
pós-memória. Dessa maneira, Hirsch afirma que “A pós-memória caracteriza a experiência
daqueles [...] cujas próprias estórias tardias são deslocadas pelas histórias das gerações
previas, moldadas por eventos traumáticos que eles podem nem compreender nem recriar.”
(HIRSCH APUD WALTER, 2013). Essa situação é interessante no sentido de ser exatamente
o que ocorre com a personagem João Panta. Ele não respeita a lenda que explica o nascimento
da tribo Xacuris, sente raiva dessa narrativa que conta a origem de seus antepassados e
acreditava que essa memória traumática da sua mãe não fazia parte da sua vida, como
podemos observar nesse trecho:
Queria lá saber dessa gente castrada que não fora capaz de conservar o que era dela.
Onde estava o tal do Moquê, que não os ajudara? Môque usn tomates.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1917
João Panta nem queria ouvir falar dessa gente, assim como duma cidade chamada
Santana da Serra, berço geral do povo que fora massacrado no vale do Iurubá. Não
tinha nada com aquilo. (LEMOS, 1995, p. 132) [Grifo nosso].
Isso porque ele não viveu o momento da luta contra os galegos, nem mesmo a
contação da lenda tão reverenciada pelos Xacuris, que ocorreu antes do massacre. Nisso,
inferimos, a partir das ideias de Hirsch, que a personagem não compreende o motivo da luta
dos Xacuris e, assim, não recria o sofrimento nem o trauma da sua mãe, causado pelo
extermínio de sua gente. Diante desse quadro de rejeição de uma memória, há um rechaço por
parte de João Panta de ser descendente de índio, que muda até de nome, quando vai acertar
um emprego com um coronel, na tentativa de apagar a sua ascendência indígena, “João Panta
não queria dar o Panta. [...] – João Correia, respondeu. Daí nascera seu novo sobrenome, no
qual passara a esconder-se das origens.” (Lemos, 1995, p. 133). Isso só mostra o quanto João
Panta renega a memória de seu grupo social, pois ele não se identifica como índio, não se
comove com o trauma que é sempre repetido pela sua mãe. No entanto, além de não se
reconhecer como índio, ele também não se reconhece como branco, etnia pela qual ele
também nutre uma profunda raiva. Nisso, João Panta, na sua condição de mestiço, se encontra
em um entre lugar, onde renega tanto a memória dos índios quanto a dos brancos.
Considerações finais
Para concluir, percebemos que esse romance traz em si diversos tipos de memórias
reelaboradas ficcionalmente, o que permitiu problematizar e explorar alguns conceitos chaves
para entender a memória como construto mental que tem seu espaço legitimado na escrita
literária. Como a memória está extremamente relacionada à imaginação percebemos que uma
parcela do imaginário artístico do autor, se baseia nas suas experiências e na sua visão de
mundo para construir seus universos ficcionais e, assim, recriar suas memórias, apresentando
uma expressiva carga memorialista em sua produção literária. Nisso, acreditamos que o objeto
literário é fruto da memória individual do escritor, mas que traz consigo uma memória
coletiva, no sentido de o autor não ser um ente isolado do mundo, ele é um ser social, que
vive em sociedade, e que compartilha essa vivência por meio da memória literária.
Referências
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Campinas: ed. Unicamp, 2011.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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Campinas, 2013.
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Paulo: Martins Fontes, 1999.
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lembrança dos velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983.
HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva e memória individual in: HALBWACHS,
Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
LEMOS, Gilvan. A lenda dos cem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.
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construção da figura indígena em A lenda dos cem de Gilvan Lemos. Dissertação.
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SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma – A questão dos testemunhos de catástrofes
históricas. Psic. Clin., Rio de Janeiro, Vol. 20, N. 1. 2008.
WALTER, Roland. Traços-memórias na literatura das américas: Margaret Atwood, Linda
Hogan, Maryse Condé e Benedicto Monteiro. Revista Alea, vol. 15. N. 1. Rio de Janeiro,
2013.
______. Literatura, História e Memória no Contexto Pós-Colonial. Revista Eutomia, ano 3. Ed
1. Recife, 2010.
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1919
ANÁFORAS ENCAPSULADORAS NA VOZ DO NARRADOR
DE MENINO DE ENGENHO
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Maria José Cavalcanti de Andrade (UNICAP)
1. Introdução
Nesta investigação, focaremos o estudo das anáforas encapsuladoras na voz do
narrador do romance Menino de engenho, de José Lins do Rego. Sabemos que de acordo com
Koch & Elias (2012, p.132) “O processo que diz respeito às diversas formas de introdução, no
texto, de novas entidades ou referentes é chamado de referenciação.” A partir do processo de
retomada do referente de forma anafórica, deter-nos-emos no estudo das anáforas
encapsuladoras por compor um dos objetos de estudo desse trabalho.
A teoria polifônica de Oswald Ducrot (1987) será o arcabouço teórico utilizado para o
estudo das vozes que surgem e por vezes se entrecruzam no discurso. Assim, o narrador do
romance, utiliza uma linguagem carregada de marcas de subjetividade, consolidando que a
língua se constroi no discurso pelos sujeitos.
Os referentes estabelecidos no próprio discurso são fortalecidos pelos encapsuladores,
que, dotados de potencial argumentativo, são estratégias de progressão textual. Enfim, o texto
progride, caminha e de forma clara, intensificando o que fora dito previamente através dos
objetos-de-discurso.
As anáforas encapsuladoras são recursos de progressão textual e interessante é
observarmos que quando elas são utilizadas na voz do narrador revelam a dinâmica da vida,
consolidando as memórias, os sentimentos e o aprendizado que fizeram parte da história do
menino de engenho.
Efetiva-se a importância das expressões anafóricas que são utilizadas pelo narrador,
pois, conforme Koch (2011b), elas encapsulam as informações-suporte contidas em
segmentos precedentes do texto, sintetizando-as na forma de um substantivo-predicativo.
Desse modo, as expressões anafóricas são analisadas através de fatores linguísticoenunciativos à medida que elas evidenciam não apenas a voz do narrador, mas também outras
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1920
vozes que surgem no discurso. É válido pontuar que as anáforas encapsuladoras muito têm a
revelar do autor, do narrador, do locutor e finalmente do enunciador.
A obra referendada foi selecionada para essa pesquisa, pois, é uma narrativa de cunho
memorialista, que remete ao passado através das memórias do narrador Carlos, o neto do
coronel Zé Paulino. Associando o romance a um dos objetos de pesquisa, temos uma analogia
que se dá mediante às anáforas serem recursos que retornam ao que foi dito anteriormente.
Daí, tanto no romance memorialista quanto no encapsulamento anafórico há um movimento
de retroação, ou seja, de volta, de retorno ao antecedente, ao que estava posto. No caso da
narrativa, trata-se de narrar o que fora vivido, experimentado pelo menino Carlos. Há,
portanto, uma retroação. Reportando-nos às anáforas encapsuladoras, elas sumarizam um
contexto precedente e também criam, elaboram, inauguram novos referentes a partir da
recategorização desses referentes.
Assim sendo, o objetivo geral desse estudo é investigar a polifonia das vozes que se
apresentam nas expressões anafóricas utilizadas pelo narrador em alguns trechos do romance
Menino de engenho.
2. Menino de engenho: contexto literário
A obra Menino de engenho permite o estudo sobre o projeto literário da geração de
1930, focando o ciclo da cana-de-açúcar do Nordeste brasileiro. É uma narrativa
memorialista, pois, propicia ao narrador expressar, por meio de suas memórias, as lembranças
de acontecimentos que se presentificam na narrativa, revelando aspectos sentimentais bastante
significativos da vida de Carlos, o narrador.
O autor narra o seu lugar social, o dia-a-dia do engenho do seu avô, personificado no
senhor de engenho e a obra ganha realidade através da descrição dos espaços e a fala das
personagens. O narrador da obra enternece os leitores, misturando com perfeição elementos
da ficção e da realidade. É o que vemos em
As lembranças do protagonista dão vida a uma realidade econômica, política e social
que foi se desgastando ao longo do tempo. A dificuldade de se acostumar à vida no
engenho do avô cria inúmeros episódios destinados a sensibilizar o leitor, que sofre
junto com esse menino desgarrado, que andava triste “por debaixo das árvores da
horta, ouvindo sozinho a cantoria dos pássaros”. Na cena final, embarcado no trem
que o levaria para a cidade, novo momento de ruptura: “Os olhos se encheram de
lágrimas. Cortava-me a alma a saudade do meu engenho. (ABAURRE; PONTARA,
2005, p.547).
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1921
De acordo com Moisés (2004, p.280), as memórias visam reconstruir o passado, com
base nas ocorrências e nos sentimentos gravados na memória. Por meio dessa “reconstrução”
do passado na narrativa memorialista há uma retroação no tempo ficcional de modo a resgatar
o que está armazenado na memória.
A dinamicidade da vida do narrador é observada na obra citada. E o menino Carlos
rememora como os anos que vivera no engenho do seu avô contribuíram para que ele
adquirisse a experiência de vida que possuía quando atravessou as portas do colégio.
A narrativa cria tempos ficcionais para situar o que está sendo narrado. As narrativas
mimetizam o ritmo do relógio, do calendário. Em outras situações, o tempo é filtrado pelas
vivências subjetivas do personagem e do narrador.
No romance em pauta, eis que o tempo psicológico opera uma ruptura na sucessão
cronológica. É um tempo imune à regularidade do tempo histórico. Relaciona-se, ao fluxo de
consciência. Submete-se a idas e vindas sem sujeitar-se a regularidade cronológica.
3. Anáforas encapsuladoras e compreensão textual: alguns apontamentos
É válido destacar que as anáforas encapsuladoras são responsáveis pela retomada e
recategorização de referentes e ainda, que a retomada anafórica é uma das mais utilizadas
estratégias de progressão referencial. O encapsulamento é constituído mediante uma seleção,
dentre uma infinidade de possibilidades de combinações de palavras. Com isso, salientamos
que no contexto de uso, as anáforas encapsuladoras escolhidas pelo produtor textual
asseguram a sumarização das informações expressas no texto precedente, evidenciando seu
potencial argumentativo.
Vejamos a definição de encapsulamento segundo Koch (2011b).
Esta é uma função própria particularmente das nominalizações que, ao encapsularem
as informações-suporte contidas em segmentos precedentes do texto, sintetizam-nas
sob a forma de um substantivo-predicativo, atribuindo-lhes o estatuto de objetos-dediscurso. (KOCH, 2011b, p.93-94).
A autora postula que trata-se de anáforas “complexas” que nomeiam referentes
textuais abstratos como estado, fato, evento, atividade, questão, etc. o encapsulamento
sumariza a informação que foi dada previamente de modo que há a exigência da realização
lexical no co-texto pelos nomes-núcleo ora supracitados.
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1922
As informações-suporte segundo Apothéloz & Chanet (1997 apud Koch 2011b) são
conjuntos de informações expressas no texto precedente. Por meio da estratégia da
nominalização essas informações erigem-se em objetos-de-discurso. A nominalização atribui
o estatuto de referente ou objeto-de-discurso a um conjunto de informações anteriores que não
possuíam tal estatuto, assinalando, simultaneamente, uma mudança de nível e uma
condensação da informação. Como expressão anafórica, a nominalização é uma forma
linguística – o substantivo-predicativo.
Para Cavalcante (2013, p.127), anáfora encapsuladora é uma estratégia anafórica na
qual uma expressão referencial resume um conteúdo textual e inclui outros conhecimentos
que se tem sobre o que está sendo referido.
As anáforas fazem remissão a elementos anteriormente colocados no texto e
constituem um princípio de construção textual, haja vista que o texto vai sendo organizado
por operações cognitivas, tais como o encapsulamento. A anáfora encapsuladora permite ao
produtor textual construir uma rede de relações referenciais sobre o tema em pauta e além
disso, ela sumariza o discurso precedente,interpretando-o.
Para Conte (2003, p.178), o encapsulamento anafórico é um recurso coesivo pelo qual
um sintagma nominal funciona como uma paráfrase resumidora para uma porção precedente
do texto. Esta porção de texto, por sua vez, pode ser de extensão e complexidade variada ,
quer seja um parágrafo inteiro, quer seja apenas uma sentença. Concebe-se a paráfrase como a
interpretação de um texto com palavras próprias, levando-se em consideração o pensamento
original.
Nessa pesquisa, destacamos a importância das expressões anafóricas na voz do
narrador de Menino de engenho, o que contribuirá para a detecção das vozes que se
apresentam na voz do narrador, ponto que será discutido a seguir.
4. Polifonia e enunciação
O campo de estudo da enunciação é amplo e abrange diversos construtos teóricometodológicos identificados pelos nomes de seus autores. É assim que podemos mencionar a
teoria de Émile Benveniste, e neste estudo, nos deter na Teoria da Enunciação de Oswald
Ducrot.
Ducrot, na condição de aluno de Benveniste, recebeu influências de seu mentor no que
se refere à filosofia analítica, à vinculação da linguagem aos estudos saussurianos e à
enunciação.
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1923
O autor considera que existe na significação dos enunciados, uma espécie de diálogo.
Para ele, “a enunciação é o acontecimento histórico que constitui a aparição de um enunciado
(é uma realidade concreta), o qual se distingue da frase, entidade abstrata.” (PAVEAU;
SARFATI, 2006, p.185). Ademais, a concepção de sentido sobre a qual o autor fundamenta
seu trabalho consiste em considerar o sentido como uma descrição da enunciação. O
enunciado é uma realidade concreta, o sentido é uma descrição da enunciação e existe um
diálogo na significação dos enunciados.
De acordo com Bakhtin, o dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem e a
condição de sentido do discurso. Barros & Fiorin (2003,p.3), comentam que para Bakhtin, só
se pode entender o dialogismo interacional pelo deslocamento do conceito de sujeito, ou seja,
“O sujeito perde o papel de centro e é substituído por diferentes (ainda que duas) vozes
sociais, que fazem dele um sujeito histórico e ideológico.” Evidencia-se, portanto, a relação
entre o “eu” e o “tu” ou entre o “eu” e o “outro” no texto.
Sob a perspectiva da polifonia de Bakhtin, há multiplicidade de vozes e consciências
independentes interagindo no romance.
Essas vozes e consciências não são objeto de discurso do autor, são sujeitos de seus
próprios discursos. A consciência da personagem é a consciência do outro, não se
objetifica, não se torna objeto da consciência do autor, não se fecha, está sempre
aberta à interação com a minha e com outras consciências e só nessa interação revela
e mantém sua individualidade. (BEZERRA, 2013, p.195).
Nesse aspecto, a pluralidade de vozes no discurso direciona para a constituição do
sentido do enunciado, haja vista que fios dialógicos vão sendo tecidos com a finalidade de
compreensão dos textos.
Ducrot, no entanto, utiliza o termo polifonia diferentemente de Bakhtin que o aborda
dentro do universo enunciativo de um texto. (BARBISAN e TEIXEIRA, 2002). Ducrot trata
a polifonia pelo viés linguístico, apontando para a possibilidade enunciativa por meio de
diferentes vozes, diferentes pontos de vista em um enunciado.
Ducrot (1987, p.178) critica e substitui a teoria da unicidade do sujeito da enunciação,
pois discorda da posição “‘um enunciado – um sujeito’, que permite empregar a expressão ‘o
sujeito’, pressupondo como uma evidência que há um ser único autor do enunciado e
responsável pelo que é dito no enunciado.” Desse modo, identifica o sujeito falante, os
locutores e os enunciadores.
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1924
Segundo Neveu (2008, p.193), Oswald Ducrot define o sujeito falante como um ser
empírico (o indivíduo que produz o enunciado), o locutor como um ser do discurso (aquele
que diz eu) e o enunciador como aquele a quem é atribuída a responsabilidade do ato da fala.
Em Ducrot (1987, p.182), observamos que o locutor é um ser que, no próprio sentido
do enunciado é apresentado como a alguém a quem se deve imputar a responsabilidade deste
enunciado. Com razão, a responsabilidade do enunciado deve-se ao locutor, desde que ele é
um ser do discurso e é o que diz eu, ou seja, é o que pronuncia no discurso.
Teceremos algumas considerações acerca da polifonia das vozes que se cruzam na voz
do narrador em alguns trechos da obra Menino de engenho.
5. Discussão sobre a polifonia das vozes nas anáforas encapsuladoras em Menino de
engenho
Veremos como o narrador Carlos, do romance Menino de engenho fez uso dos
encapsulamentos para se enunciar ou enunciar outro (o avô). Para isso, selecionamos dois
exemplos para a discussão.
[1]
A morte de minha mãe me encheu a vida inteira de uma melancolia desesperada. Por
que teria sido com ela tão injusto o destino, injusto com uma criatura em que tudo
era tão puro? Esta força arbitrária do destino ia fazer de mim um menino meio
cético, meio atormentado de visões ruins. (REGO, 2010, p.28). (Grifos nossos)
Percebemos que em “esta força arbitrária” temos um encapsulamento anafórico que
sumariza um trecho do texto precedente na citação acima, o que nos leva a compreender:
Primeiro, que “esta força arbitrária” recupera do co(n)texto a evidência em que o
próprio narrador coloca em pauta a morte de sua mãe e que tal acontecimento iria fazer de si
um menino meio cético, meio atormentado de visões ruins. Então, esta força arbitrária
encapsula o que a morte da mãe provoca no menino Carlinhos/no homem Carlos que no texto
se apresentam na figura do narrador.
Em seguida, que o retorno ao passado no fragmento enfatiza o encapsulamento na
memória de curto prazo, ou seja, não há um distanciamento entre o encapsulador e o referente
precedente.
Posteriormente, percebemos que é análogo o fato de a narrativa memorialista contar
algo retornando ao passado e a própria anáfora retomar o dito anteriormente.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1925
É interessante verificarmos em Ducrot (1987) que a enunciação se constitui pelo
aparecimento de um enunciado. É justamente através do enunciado, produto da enunciado,
produto da enunciação que percebemos a força da expressão anafórica “esta força arbitrária”
que pertinentemente é utilizada pelo narrador para atribuir a responsabilidade de tal “dizer” ao
enunciador. No exemplo dado, o narrador/enunciador apresenta o sentido como uma
qualificação da enunciação. É realmente o que o narrador/enunciador transmite, o que ele
representa para ele a tal força arbitrária, que sentidos carrega essa expressão anafórica, que
expressão figura nessa voz que fala.
[2]
À tarde, estava o meu avô sentado na sua cadeira, perto da banca, no alpendre,
quando chegaram Maria Pia e a mãe. Vinham todas duas chorando. A velha correu
logo para a Tia Maria, ajoelhando-se aos seus pés.
- Proteja a minha filha, Maria menina.
O meu avô ordenou que acabasse com aquela latomia. E mandou buscar um livro
que havia debaixo do santuário. (REGO, 2010, p.65). (Grifos nossos).
Observamos no fragmento acima que o encapsulamento se dá em “aquela latomia”.
Quando o produtor textual faz esse encapsulamento para argumentar, ele colabora com a
progressão textual. Em “aquela latomia”, verificamos o potencial argumentativo de latomia,
que significa ruído, barulho. Segundo o dicionarioinformal.com.br, “latomia é uma briga de
cão com gato. Um late e outro mia.” Na verdade, o sentido expresso pela referida anáfora
encapsuladora é bastante amplo, pois a latomia inicia-se desde o choro das duas mulheres, a
corrida da velha para obter ajuda de Tia Maria, o ajoelhar-se aos pés desta pedindo-lhe para
proteger Maria Pia, sua filha. O fato é que a menina havia colocado a culpa da sua “desonra”
em Chico Pereira, um moleque da bagaceira, um cambiteiro. Na verdade, o autor da desonra
foi o filho do coronel e não o moleque Chico.
A
expressão anafórica aquela latomia apresenta a força ilocutória do narrador
quando se refere à voz do avô do menino Carlinhos, pois fora o velho coronel Zé Paulino que
ordenara que a mãe de Maria Pia parasse com toda aquela cena desde o choro às súplicas para
proteger sua filha de Chico Pereira.
A respeito de um desdobramento de vozes, vimos em Ducrot (1987, p.185), que é
possível que uma parte de um enunciado atribuído a um primeiro locutor seja imputado a um
segundo locutor. O autor observa que num romance, o narrador principal pode inserir no seu
relato o relato que lhe fez um segundo narrador. Comprovamos esse postulado quando o
narrador Carlos insere em seu relato o relato do seu avô.
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1926
O enunciador de aquela latomia é o avô do Carlos. Há, portanto, um jogo de vozes no
trecho da narrativa que apenas é compreendido pelo contexto em que se apresenta. O sentido
é situado, haja vista que o locutor é o autor das palavras e o enunciador é o agente dos atos
ilocutórios.
6. Considerações finais
As discussões a partir da análise das anáforas encapsuladoras na voz do narrador de
Menino de engenho convictamente demonstram a importância do papel dos encapsulamentos
e como se situam as cadeias anafóricas na dimensão do discurso.
Assim, nessa análise, buscamos evidenciar pontos que enfocassem a temática para
uma reflexão sobre o assunto. Ressaltamos que a função das anáforas não se limita apenas a
resumir, a sumarizar, mas fortalecer o que foi dito com vistas a novos olhares para se
compreender o dito. Nesse estudo, notamos que os encapsulamentos se dão de maneira a
perceber a importância das vozes que se apresentam no contexto. O autor, o narrador, o
locutor e o enunciador são figuras que comprovam que o dito e o compreendido requer do
leitor conhecimento de mundo sobre o que está sendo enunciado.
Finalmente, a obra Menino de engenho possibilitou-nos adentrar pelas portas do texto
literário e fez-nos perceber o quão significativo é o estudo que foca a Ciência Linguística e
que pode ser consolidado em quaisquer gêneros textuais.
Referências
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Brasileira: tempos, leitores e leituras. São Paulo: Editora Moderna, 2005.
BARBISAN, Leci Borges; TEIXEIRA, Marlene. Polifonia: origem e evolução do conceito
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BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. 5 ed. São Paulo:
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DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Revisão técnica da tradução: Eduardo Guimarães, SP:
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KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Argumentação e linguagem. 13. ed. São Paulo: Cortez,
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PAVEAU, Marie-Anne; SARFATI, Georges-Élia. As grandes teorias da linguística: da
gramática comparada à pragmática. Trad. M.R. Gregolin et al. São Carlos: Claraluz, 2006.
REGO, José Lins do. Menino de engenho. 102ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1928
MUDANÇAS GRAMATICAIS DOS ITENS “E”, “AÍ”,
“AGORA” NA FALA E CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO
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Maria José de Oliveira (IFRN- Caicó/ UFPB-PROLING)
Camilo Rosa da Silva (UFPB-PROLING)
Introdução
Durante muito tempo, os itens “e”, “aí” e “agora” vêm sendo categorizados de forma
inconsistente pela maioria de nossos gramáticos que os relacionavam apenas às funções de
conjunção aditiva, advérbio de lugar e advérbio de tempo, respectivamente. Porém, estudos
mais recentes vêm flagrando usos dos mencionados itens em construções que atestam o
exercício desses em funções outras, fato que contesta a visão defendida pela tradição.
Assim, este artigo averigua o uso dos itens mencionados na função de adversativos
em uma amostra de dados de fala do habitante de Natal-RN e sugere implicações para o
ensino.
Para isso, utilizamos dados de fala capturados no corpus Discurso e Gramática da
cidade de Natal – D&G (FURTADO DA CUNHA, 1998), em uma investigação que se
configura pelo modelo funcionalista norte-americano, ou linguística centrada no uso, em
acordo com Givón (1995, 1998, 2001, 2005); Tomasello (1998, 2003); Hopper e Traugott
(1993, 2003); Traugott e Heine (1991); Heine e Kuteva (2007); Bybee (2006, 2010).
Como metodologia, o ponto de partida é uma revisão panorâmica de literatura,
contemplando a origem e conceitos tradicionais de cada um dos itens, com o propósito de
observar como eles são categorizados na gramática, para depois analisar os usos desses como
adversativos em amostras de relatos de opinião e narrativas de experiência pessoal em dados
contextuais do D&G. Com base nisso, sugerimos aplicações dos resultados do estudo para
fundamentar aulas de português.
O trabalho se estrutura nessa introdução; referencial teórico; os itens “e”, “aí”, “agora”
na gramática; os itens “e”, “aí”, “agora” na fala do natalense; sugestões para o ensino e
considerações finais.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1929
Na seção seguinte, discutiremos conceitos relevantes para a análise, os quais
constituirão o arcabouço teórico deste trabalho.
Referencial teórico: alguns conceitos
As ideias defendidas pela linguística funcional ou na linguística centrada no uso
(BYBEE, 2010), nomenclatura americana, constituem a moldura deste trabalho.
A linguística funcional é um modelo que vem se tornando eficaz para as análises
linguísticas, sobretudo, porque se caracteriza pelo estudo da língua contextualizada,
considerando-se aspectos sociointeracionais linguísticos e extralinguísticos.
Olhando por essa perspectiva, a gramática é concebida como estrutura em constante
transformação, vinculada ao discurso e assim sendo, as análises por esse ângulo devem
priorizar a língua em situação de uso, ou seja, a língua em intercomunicação. (FURTADO DA
CUNHA; BISPO; SILVA, 2013).
A corrente funcionalista vem se aliando aos trabalhos da linguística cognitiva de
Lakoff, Langacker, Foucannier, de modo que as construções linguísticas passam a ser
concebidas como esquemas cognitivos ou procedimentos relativamente automatizados, os
quais se utilizam da comunicação.
Desse modo, pontos como rejeição à autonomia da sintaxe, incorporação da semântica
e da pragmática; não distinção entre léxico e gramática; uso determinando a gramática
caracterizam as duas correntes que se configuram como um modelo rotulado de linguística
centrada no uso (LCU).
Para a LCU, a gramática apresenta um formato composto pela estruturação de fatores
cognitivos e comunicativos da língua, conforme Tomasello (1998); a língua é uma estrutura
que emerge à medida que vai sendo usada.
Em decorrência disso, elege como objeto de estudo o trabalho com dados reais de fala
“on line”; concebe os universais linguísticos como resultado dos universais psicológicos e
socioculturais; inspira-se na cognição humana- no trato com o mundo; contempla temas que
dizem respeito à emergência e regularização de padrões de uso no nível da proposição; orienta
análises que entrelaçam a fonologia, morfologia e sintaxe no discurso multiproposicionaltodos esses pontos relevantes para se observar a mudança linguística.
Na metodologia, a tendência que se evidencia é a essencialmente qualitativa com
suporte quantitativo.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1930
Na seção próxima, expomos a análise panorâmica dos itens e, aí, agora e destacamos
o seu exercício em funções adversativas, analisando formas e funções na fala do habitante de
Natal.
Os itens “e”, “aí”, “agora” na gramática
Começaremos discutindo a origem dos itens, depois comentaremos os resultados de
um rastreamento de como os mesmos são categorizados pelas gramáticas tradicionais e como
ocorrem nos dados de fala do natalense com o propósito de formular reflexões a respeito do
que pode mudar em relação à história desses.
Para verificarmos o tratamento dado aos itens “e”, “aí”, “agora” na gramática
tradicional, observamos como os mesmos são categorizados em Saconni (1990),
Bechara(2006), Cunha (1986), Cegalla(1997), Paschoalin; Spadoto(2010), cujo resultado será
exposto no quadro seguinte:
Quadro 1: Categorizações apresentadas pelos gramáticos tradicionais
Gramáticos itens
e
aí
agora
Cunha(1986)
conj. aditiva
adv. lugar
adv. Tempo
Saconni(1990)
conj.
aditiva adv.lugar
adv. tempo (suplementa)
(suplementa)
Bechara (2006)
conj. aditiva
adv. lugar
adv. Tempo
Cegalla(1997)
conj.aditiva
adv.lugar
adv. tempo (locução de
situação (à parte)
Paschoalin;
conj. aditiva
adv.lugar
adv. Tempo
Spadoto (2010)
Fonte: elaboração própria.
Conforme o exposto, o item “e” é categorizado como conjunção aditiva por todos os
gramáticos consultados, muito embora Saconni (1990) teça alguns comentários à parte, os
quais fazem alguma reflexão sobre a sua multifuncionalidade.
Com relação ao “aí”, verificamos que todos os autores pesquisados o categorizam
apenas como advérbio de lugar.
No que diz respeito ao “agora”, observamos que o mesmo é considerado um advérbio
de tempo, muito embora autores como Saconni(1990) e Cegalla(1997) o apresentem em
situações à parte como adversativo e como palavras de situação.
Desse modo, em linhas gerais, a tradição defende uma posição de inconsistência e
conflitos em relação à categorização dessas palavras em classes, haja vista que a acolhem
como fenômenos estáticos, fechados a modificações.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1931
Vejamos, agora, a origem desses itens e as suas manifestações em outras funções na
fala do habitante de Natal.
Os itens “e”, “aí”, “agora” na fala do natalense
1E
Estudos de Barreto (1999) mostram que a origem da conjunção e remete à conjunção
latina et, que, por sua vez, provém do advérbio eti= além de (indo-europeu).
Ainda no latim, a forma sofreu recategorização, passando a indicar a cópula de
elementos e com esse valor semântico se fixou como conjunção, dando entrada na língua
portuguesa e outras línguas românicas.
O e, apesar de sua condição predominantemente aditiva, desempenha várias funções
na organização discursiva. Sua história multifuncional não é recente.
Cunha (1986) já enumerou os vários matizes assumidos pelo item: adversativo,
concessivo, consecutivo, conclusivo, final, explicativo, interjetivo, entre outros.
No corpus em análise, o item também apresenta manifestações multifuncionais;
entretanto, interessam a este trabalho as ocorrências em que o termo adquire o valor
adversativo, considerando adversativas as orações que codificam informações, as quais se
opõem no fluxo discursivo.
Conforme expressam os dados da amostra, o item funciona como adversativo em
ocorrências detentoras da marca do conector de adversidade, articulando-se em segmentos
tópicos e oracionais.
No nível do segmento tópico, as informações se conectam, entretanto, antes do
conector, o interlocutor faz uma pausa, interrompe o fluxo do pensamento, para então
processar o segundo segmento que dá continuidade ao primeiro, como mostram as ocorrências
seguintes:
(1)
... e com pena de morte ... antes de:: qualquer pessoa ... cometer algum
crime ... de assassinato ... ele ... pelo menos eles pensariam ... “não ... eu vou pagar
por isso com a minha vida” ... e sem pena de morte não ... eles levam uns anos de
cadeia ... têm bons advogados ... você sabe que ... até pra criminosos ... os
advogados ... né? tem bons advogados ... de repente sai da cadeia ... mata do mesmo
jeito ... (D & G, oral, p.108)
(2)
... pessoas sequestram ... de repente você ... a família fica ainda com a
esperança que ... a pessoa esteja viva ... né? e eles ficam embromando ...
embromando ... depois tá morto ... e os pedaço cada um de um lado ... isso é um
crime muito bárbaro ... e vai continuar ... você vai ver ... vai continuar cada vez mais
esses crimes ... (D & G, oral, p.108)
Essa posição intersegmental tópica é a que predomina na fala do natalense, sobretudo,
na amostra ora analisada, cujas construções adversativas contraem elo através do e.
Em (1), há uma comparação implícita entre o comportamento das pessoas com a
aplicação da pena de morte e sem a aplicação dela. O e conecta uma informação que nega o
segmento posto anteriormente, gerando a controvérsia, gerada pela força semântica das
preposições com/ sem.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1932
Mas a adversidade se manifesta também pela força do segmento mais forte e de
saliência mais ativada do que o primeiro. É o que se exemplifica na ocorrência (2). O fato de a
família ter esperança contracena com a “embromação” dos sequestradores, cuja ação culmina
para o desfecho fatal da morte do sequestrado, o que gera a quebra de expectativa, a diferença.
O segundo e do mesmo exemplo atua também em uma relação básica gerada pela
crença na diferença. O falante admite um fato (crime muito bárbaro), mas essa asseveração
não é suficiente para impedir que o crime continue a acontecer. A expectativa emanada da
norma cultural humana é que, se o crime é considerado bárbaro, talvez isso acionasse o
espírito humanitário das pessoas para agirem de modo contrário, mas não é o que acontece
porque, de qualquer forma, o crime vai continuar.
Ao se articularem as informações entre orações, os conectores interligam segmentos
em maior grau de integração, sem margens para pausas (TAVARES, 2007). Vejamos:
(3) ... aí fiquei quase esse tempo todinho que passei no hospital numa cadeira de
roda ... tinha medo de ... de ... de ... de levantar e num poder andar ... interessante ...
num sentia dor nenhuma mas eu ... eu tinha medo num sei por que ... (D & G, oral,
p.7)
Em (3), a oposição se materializa no caso em que o falante põe o enunciado para, em
seguida, se pressupor o possível contraste, situação em que o e engata uma relação entre a
expectativa positiva que o interlocutor teme não acontecer. Geralmente, o ato de levantar pode
levar ou não o ser humano a andar, e dessa forma, mesmo com todas as condições favoráveis,
estabelece-se um temor de que isso possa não acontecer, configurando, pois, o caráter de
adversidade entre os enunciados.
O e ainda se apresenta em início de turno, posição semelhante a do mas na função de
assaltar o turno. Essas ocorrências, porém, são restritas a um número bem pequeno, no corpus
em análise.
(4) e sem pena de morte não ... eles levam uns anos de cadeia ... têm bons
advogados ... você sabe que ... até pra criminosos ... os advogados ... né? tem bons
advogados ... de repente sai da cadeia ... mata do mesmo jeito ... como o crime de
Daniela Perez foi muito ... cho/ chocou todo mundo ... né?
E: hum hum ...
I: e têm pessoas que é contra ... contra ... contra esse ... essa pena ... de morte aqui
no Brasil ... ( D & G, oral, p.108)
Na ocorrência (4), o fato do crime de Daniela Perez ter chocado o mundo inteiro não é
suficiente para que as pessoas se manifestem a favor da implantação da pena de morte no
Brasil. Então, o informante assalta o turno por meio do e para mostrar que a força da
asseveração do argumento anterior nega a consecução implícita. Daí, observa-se a quebra de
expectativa.
2 Aí
Busca-se a história do aí em trabalhos de Tavares (2003, 2007), os quais envolvem a
análise de e, aí, daí, então em relações retroativo-propulsoras.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1933
Segundo a autora, aí provém da forma arcaica I (ou HI), à qual se juntou em processo
aglutinativo a um prefixo a (intensificador/enfático). O i deve sua origem ao IBI latino, cuja
significação é “nesse lugar” e “nesse momento”.
Como se percebe, já em sua origem, o termo assumiu papéis de múltiplos usos, uma
vez observado que provém de referências locativas e temporais.
Tavares (2003) aponta a seguinte trajetória para a evolução da forma: dêixis locativa >
anáfora locativa > anáfora temporal > sequenciação retroativo-propulsora ou a passagem
pode acontecer da anáfora locativa para a sequenciação.
A autora argumenta que os papéis desempenhados pelo aí não acabam na
sequenciação, mas esse pode ser um ponto de onde convergem as funções outras assumidas
pelo item no período pós-sequenciação.
Dentre as funções assumidas encontram-se o aí com marcas da adversão, ou nas
palavras da autora, “exibindo um contraste, uma antítese entre as informações conectadas, e
possivelmente, disputando espaço com outras formas adversativas como mas, só que, já e
agora”.
No corpus do D&G, o destino da forma não é diferente. Além de assumir funções
semelhantes às apontadas por Tavares, disputa vagas na adversidade, competindo e buscando
espaço entre informações antitéticas, conforme notamos a seguir:
(5) ..eita ... ele vai já falar alguma coisa” ... aí num falava nada ... aí quando foi ... eu
tava assim de costa ... aí quando ele passou ... aí eu olhei ... menina ... todos dois se
olharam juntinhos ...
(D & G, oral, p.152)
Vale registrar que a maioria das ocorrências conectadas pelo aí com força adversativa
se materializa a partir de um enunciado positivo contrariado pelo enunciado que traz alguma
marca de negação.
Em (5) aí introduz um enunciado que contrasta com seu enunciado anterior, cuja
contraposição é assinalada não só pela presença do “num”, mas também pelas duas
expressões de valores semânticos opostos (alguma coisa x nada). Daí, pois, registra-se a
diferença entre o dito e o contradito.
As ocorrências acima são uma amostra de como a adversidade marcada pelo aí se
manifesta no discurso de Natal.
3 Agora
Para explicar a origem do item agora recorremos a Martelotta (2004), que, por sua vez,
recorre a Machado (1977) para mostrar que o item provém do sintagma nominal latino hac
hora (esta hora, neste momento), sendo que o hac (=por aqui) representa o advérbio espacial
dêitico, estabelecendo uma relação de proximidade entre os falantes.
Baseados no Índice do Vocabulário do Português Medieval, Houaiss, Vilar e Franco
(2004) compartilham do mesmo pensamento e vão mais adiante traçando uma linha evolutiva
do termo do século XIV ao século XVI, assim demonstrada: agorra > aguora > haguora.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1934
Rodrigues (2002) explica que a origem do termo remete a “nunc”, forma que deu
origem a hac hora e hora e posteriormente agora, ora e hora, posição confirmada pelas
ocorrências do latim mais antigo, presentes em exemplos de Cícero, Virgílio e Plauto:
Nunc
>
hac hora > agora
hora
> ora e hora
No português contemporâneo, em seu uso canônico, a forma assume o valor de neste
momento, advérbio dêitico temporal.
Segundo Votre; Cezário; Martelotta (2004) a fusão entre noções de espaço e tempo já
se manifesta na língua, através de vários outros casos.
É relevante considerar que esta trajetória assinalada pela forma originária “esta hora”,
“neste momento”, marca uma passagem de advérbio espacial dêitico para advérbio dêitico
temporal e posteriormente para o campo discursivo. Esse percurso corrobora a percepção de
que ocorreu uma mudança trajetorial espaço > (tempo) > texto, conforme Heine; Claudi;
Hünnemeyer, (1991).
No Corpus D&G de Natal, o item registra ocorrências do elemento em funções mais
conectivas ou discursivas. Confiramos um exemplo:
(6)
I: a informação é imediata ... agora ... uma coisa que me preocupa ... hoje
em dia na TV ... é .. os programas infantis principalmente ... eu vejo que as crianças
elas ... assistem e copiam esse modelos da TV né... ( D&G, oral p.70).
Em (6), apesar do movimento de parada, de pausa reflexiva, para então projetar o
pensamento para frente, com força de informação nova, nesse transcurso de conversa o
informante compartilha com o ouvinte ideias que, de certa forma, se opõem à declaração
inicial. Ele começa declarando que a informação é imediata, porém contra-argumenta,
apontando que os programas infantis influenciam o comportamento das crianças,
configurando-se uma dicotomia do bem contra o mal. A força do argumento contextual
compensatório contracena com um contraponto que gera a preocupação. Isso leva a crer que
existe uma relação de adversidade entre as partes enunciativas que contraem elo com o agora,
cujo valor contextual contrapõe-se às informações sentenciais anteriores. Basta verificar a
possibilidade de a construção ser parafraseável pela forma mas, eleita por muitas pesquisas o
protótipo-base da categoria dos adversativos.
Dessa forma, verifica-se que há uma liberdade de estruturação entre as formas,
quando partem para o discurso, numa demonstração de que o processo de categorização dos
itens linguísticos é maleável, de modo que no transcurso da fala os elementos lexicais estão
sujeitos a assumir posições variáveis, postura contrastante com os preceitos ditados pela
gramática tradicional.
Sugestões para o ensino
Furtado da Cunha e Tavares (2007, p. 34) analisando a língua na perspectiva
funcionalista acreditam que
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1935
um dos papéis do professor de língua materna é o de atuar como orientador do
processo de construção e re-construção do saber gramatical dos alunos,
incentivando-os a experienciarem a língua em suas múltiplas faces, em situações de
uso real.
Trazendo a reflexão para uma situação mais específica de tratamento dos conectores,
Tavares (2007, p. 108) chama a atenção para que se trabalhe uma maior diversidade de
conectores em gêneros diversos, e propõe algumas atividades que devem ser estimuladas pela
escola:
(...) Por exemplo, os alunos podem comparar os usos dados a conectores
coordenativos na fala e na escrita, em textos lidos e/ou escritos pela turma, orais e
escritos de diferentes gêneros- textos jornalísticos variados (de mídia falada e
impressa), receitas, histórias em quadrinho, contos, e-mails, etc. A fala de membros
da própria comunidade (incluindo os alunos) pode ser gravada e analisada levandose em conta os diferentes gêneros que aparecerem.
Nesse âmbito, propõe também que os alunos trabalhem semelhanças e diferenças no
emprego de conectores coordenativos em sequências e gêneros variados e na articulação de
mais de um nível de articulação textual. Acreditamos que as evidências de preferência pelo
uso de um ou outro conector em uma dada situação da comunidade linguística poderão
fornecer pistas para que o aluno perceba qual é o conector mais adequado a cada contexto de
uso.
A esse respeito, Tavares (2007, p.109) ainda acrescenta:
Ao dominarem um leque maior de possibilidades de seqüenciar partes do texto e
suas especificidades de uso, os alunos estarão mais bem munidos para evitar a
repetição constante de um só item.
Antunes (2007), por sua vez, também traz a sua contribuição para um estudo mais
eficaz dos conectores, chamando a atenção para se focalizar esses itens relacionais que
marcam o encadeamento entre partes do texto, mediante o reconhecimento das relações e de
suas funções (lógica, argumentativa, discursiva), considerando a atividade “um saber da mais
alta relevância para administrar as possibilidades de organização do texto” (p. 133).
É importante citar o que a autora diz a respeito dos itens em estudo:
São elementos sinalizadores- pistas- para irmos encontrando a direção
argumentativa, inclusive, do texto. Esse saber seria bem mais útil que, simplesmente,
saber dizer se a conjunção é coordenativa ou subordinativa ou se a expressão é
adjunto adverbial ou não. (Infelizmente, já se perdeu tempo demais com essa
inutilidades! (...))
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1936
Diante disso, acreditamos que o primeiro passo a ser adotado para orientar uma
aplicação metodológica advinda da teoria aqui em foco será orientar o processo de
aprendizagem de um item ou construção a partir de textos, nos seus diversos gêneros e
modalidades. Por um lado, devemos sugerir ao aluno atividades de escuta de textos orais e
leitura de textos escritos, objetivando a ampliação progressiva de conhecimentos discursivos,
semânticos e gramaticais que se envolvem na produção do sentido. Por outro lado, promover
a construção e reconstrução de textos variados, adequando-os às múltiplas situações
contextuais requeridas pela ordem social. Veja o que diz Antunes em relação ao assunto
(2007, p.138):
A proposta (...) é que o texto seja analisado: no seu gênero, na sua função, nas suas
estratégias de composição, na sua distribuição de informações, no seu grau de
informatividade, nas suas remissões intertextuais, nos seus recursos de coesão, no
estabelecimento de sua coerência e, por causa disso tudo, só por causa disso tudo,
repito, os itens da gramática comparecem.
Dessa forma, para que esses aspectos produzam efeitos na prática pedagógica,
acredita-se que estratégias devem ser moldadas com base na visão dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (2001, p. 49), os quais definem como objetivo de ensino das línguas
desenvolver no aluno os domínios da expressão oral e escrita em situações funcionais.
No caso das construções adversativas, deve-se promover a reflexão sobre a origem e
multifuncionalidade dos diversos conectores que se envolvem com a adversidade, em
sincronias diferentes. Posteriormente, mapear cada função ou subfunção assumida, em
contextos orais e escritos e promover atividades de percepção do uso dos referidos itens em
situações que o identifiquem como funcionalmente múltiplos. É interessante que o aluno
perceba como as formas funcionam quando postas em uso.
Nesse contexto, o papel do professor parece ser o de mediador de situações-problemas,
trabalhos de pesquisa, através dos quais o aluno possa fazer deduções, hipotetizar, interpretar
recursos cognitivos e projeções conceituais evocadas pelas situações enunciativas, e,
sobretudo, conscientizar-se das relações entre forma – função/forma, uma vez considerado
que a gramática está em constante reconstrução - gramática emergente (HOPPER, 1998).
Vale a pena acrescentar a esse pensamento a afirmação de Antunes (2007, p. 138):
Evidentemente, o domínio desses pontos exige professores com uma sólida
formação lingüística, o que equivale a dizer com um grande conhecimento das
questões relativas ao funcionamento do léxico, da gramática e das práticas cognitivotextuais com que efetivamos o jogo complexo de nossa atividade comunicativa.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1937
Convicto desse entrelaçamento entre forma e função e vice-versa, o aluno deve se
conscientizar de que o estudo das formas em foco não podem se reduzir ao trabalho estanque
de categorizar classes morfológicas ou categorias sintáticas desvinculadas da intenção
comunicativa. Torna-se relevante introduzir a teoria dos protótipos como forma de categorizar
as construções, a partir da relação de aproximação ou distância do protótipo-base, uma vez
considerado que a recorrência do uso pode produzir regularidades e apontar as tendências das
mencionadas construções para assumir algumas categorizações, ao invés de imprimir rótulos
preexistentes, fragmentados.
Acreditamos que uma alternativa viável para uma aprendizagem mais eficaz do
fenômeno em estudo pode ser a proposição de exercícios que envolvam a substituição de um
item por outro de sentido semelhante, no mesmo contexto, como forma de explorar a riqueza
de meios que conduzem à produção de sentido.
Outro trabalho possível, nesse âmbito, é o uso do item em diferentes funções, inclusive
em exercícios de conexão de partes maiores do texto (orações, parágrafos) e remontagem de
histórias. Ainda, nesse âmbito, cogitamos obre a proposta de entrevistas com os próprios
colegas para organizar corpora que possibilitem ao aluno um trabalho de interface entre as
tendências de uso da forma nas modalidades de língua oral x escrita.
Todas essas atividades são sugestões que se pressupõem relevantes para uma
compreensão mais sistemática da dinâmica da língua que falamos. Poderá ser adaptável para o
estudo de outros itens gramaticais, especificamente os conectores.
Considerações finais
Os dados revelam que o “e”, “aí”, “agora”, apesar de exercerem outras funções
gramaticais na língua, e não serem citados pela maioria das gramáticas tradicionais como
possíveis itens que disputam vagas na adversidade, são notificados nos dados como
conectores adversativos.
Ao observar a origem dos itens, percebemos que eles (e, aí, agora) trazem em sua
história um passado de natureza adverbial. Mesmo exercendo outras funções na língua,
manifestam-se na organização discursiva.
É válido citarmos que o contraste geralmente acontece através de um segmento
posterior negando o segmento anterior, segmento mais forte se impondo ao segmento base;
posto e pressuposto; positivo/negativo; expectativa/ contraexpectativa.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1938
Ademais, registrarmos que a leitura dos dados resulta na percepção de uma distância
entre o tratamento que as gramáticas tradicionais dedicam aos conectores adversativos e o uso
que da língua fazemos. Diante da percepção de que mudanças se operam nos itens
pesquisados, sugerimos, pois, a necessidade de uma reformatação das abordagens de nossas
gramáticas em relação ao tratamento dos itens objetos deste estudo, ou adaptação para os
estudos que levamos para a sala de aula, no sentido de se incluir um trabalho a partir da leitura
e produção de texto com conectores variados e gêneros também diversos, em um processo de
busca da construção e reconstrução do saber, selecionando-se estratégias de pesquisa que
provoquem a hipotetização, deduções, interpretações e, sobretudo, favoreçam a percepção e
estudo das formas e funções sob uma perspectiva reflexiva.
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1941
ANA CRISTINA CESAR: A CONSTRUÇÃO DE UMA DICÇÃO
AUTORAL
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Maria Lúcia Colombo1 (UNIR/IFRO)
Sônia Maria Gomes Sampaio2 (UNIR)
Introdução
Ana Cristina Cesar figura como uma das poetas mais importantes da literatura
brasileira. A sua poesia aborda, assim como a de seus contemporâneos, a questão
autobiográfica e o registro das experiências dos acontecimentos cotidianos, contribuindo para
a dessacralização da poesia. As reflexões desse texto são concernentes ao trabalho da
construção autoral da poesia de Ana Cristina.
Na seção Apresentando a cena há uma breve contextualização do período e da poesia
nos anos do surgimento da literatura dita “marginal”, período em que surge a poesia de Ana
C.. E na seção Contracenando com Ana C. apresentamos um panorama biográfico de Ana C.
e discutimos as características que constroem a dicção autoral da sua poesia, por meio da
discussão de conceitos como performance e encenação/exposição da intimidade, além da
análise de alguns poemas sob essas perspectivas.
Apresentando a cena
No Brasil, os anos 60 foram marcados pela profunda repressão da Ditadura Militar
Brasileira. Em 1968, após a promulgação do AI-5, o Brasil sofreu o mais duro golpe contra a
democracia e a liberdade de expressão. O Estado detinha o poder de controlar, por meio da
censura, repressão e imposição, toda e qualquer produção cultural. Nesse período, então,
Mestranda da Universidade Federal de Rondônia – Unir, Programa de Pós-Graduação Mestrado
Acadêmico em Estudos Literários – PPG/MEL com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – Capes e Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia –
IFRO campus Colorado do Oeste. Email: [email protected]/ [email protected]
2
Profª. Drª. do Departamento de Línguas Vernáculas e do Mestrado Acadêmico em Estudos Literários–
Unir/Porto Velho. Email: [email protected]
1
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1942
instaurou-se um clima tenso entre o governo e os diversos setores da sociedade,
principalmente as classes intelectuais e artísticas.
Os campos artístico e literário eram fiscalizados constantemente, por isso, artistas e
intelectuais criaram subterfúgios para produzir seus textos e músicas, utilizando a metáfora,
os trocadilhos e alguns códigos, a fim de ocultar, muitas vezes, os descontentamentos e
afrontas ao regime da época. No final da década de 60, surge o Movimento Tropicalista,
liderado por Gil, Caetano, Betânia e o seu grupo, com uma proposta de denúncia social, cujas
canções objetivavam o protesto a toda repressão política vivida naquele período.
Nos anos 70, em meio a esse período turbulento, surge um grupo de poetas que decide
abandonar as temáticas sérias e filosóficas e investe na reinvenção do fazer poético,
introduzindo em suas obras o cotidiano, em um tom confessional, utilizando a linguagem
coloquial e, principalmente, propondo uma nova maneira de produzir e divulgar as suas obras.
Esse grupo ficou conhecido como os “poetas marginais” ou a “Geração do mimeógrafo”, pois
munidos de mimeógrafos, reproduziam suas obras e as vendiam de mão em mão,
privilegiando o contato com o leitor. Essa alternativa fez com que o grupo estivesse à margem
do mercado editorial da época, e também pudesse driblar o sistema político, propagando seus
ideais. Essa maneira despojada e informal é, hoje, avaliada como um importante momento de
dessacralização da poesia brasileira, embora ainda haja críticas muito duras a respeito da
possível não qualidade da poesia desses grupos.
Essa geração ganha notoriedade com a publicação do livro 26 Poetas Hoje, de Heloísa
Buarque de Hollanda, que continha a seleção de poemas de 26 representantes da poesia
marginal. A autora fala sobre a importância dessa publicação e das razões que a motivaram a
essa escritura:
O que interessa é que, por volta de 1972-1973, surgiu, assim como se fosse do nada,
um inesperado número de poetas e de poesia tomando de assalto nossa cena cultural,
especialmente aquela freqüentada pelo consumidor jovem de cultura, cujo perfil, até
então, vinha sendo definido pelo gosto da música, do cinema, dos shows e dos
cartoons. Esse surto poético, que a cada dia ganhava mais espaço, só podia portanto
ser visto como uma grande novidade. Além disso, nos anos 60, marcados pela
intensidade da vida cultural e política no país, a produção literária, ainda que
fecunda, ficara um pouco eclipsada pela força e originalidade dos movimentos
artísticos de caráter mais público como o cinema, o teatro, a MPB e as artes
plásticas. Tínhamos, portanto, uma dupla novidade: a literatura conquistava um
público em geral avesso à leitura e conseguia recuperar seu interesse como produto
original e mobilizador na área da cultura. Atraída por esta ostensiva presença da
poesia, comecei a me interessar por este fenômeno que, na época, foi batizado com o
nome poesia marginal, sob protestos de uns e aplausos de outros. (HOLLANDA,
1988, p. 256).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1943
O livro continha a seleção de poemas de 26 representantes da poesia marginal, que
ganham notoriedade. Compõem a antologia, além de Ana Cristina Cesar, os poetas: Adauto,
Afonso Henriques Neto, Antônio Carlos de Brito, Antônio Carlos Secchin, Bernardo Vilhena,
Carlos Saldanha, Chacal, Charles, Eudoro Augusto, Flávio Aguiar, Francisco Alvim, Geraldo
Eduardo Carneiro, Isabel Câmara, João Carlos Pádua, José Carlos Capinan, Leila Miccolis,
Leomar Fróes, Luiz Olavo Fontes, Ricardo G. Ramos, Roberto Piva, Roberto Schwarz,
Torquato Neto, Vera Pedrosa, Waly Salomão e Zulmira Ribeiro Tavares.
Outro autor que se dedica à poesia marginal é Carlos Alberto Messeder Pereira. Em
1981, publica Retrato de época, abordando diferentes grupos da geração do mimeógrafo,
baseado nas formas de “edição”, como: Nuvem cigana, Folha de rosto, Frenesi e Vida de
artista. No livro aparecem três autores independentes: Eudoro Augusto, Afonso Henriques
Neto e Ana Cristina Cesar.
A poesia “marginal” ganhou espaço nas ruas, nas discussões acadêmicas e chega aos
dias de hoje institucionalizada, com parte de sua produção publicada por grandes editoras. A
CosacNaify publicou as obras completas e/ ou reunidas de nomes como Cacaso, Chacal e
Francisco Alvim; a Editora da Unicamp publicou nomes menos conhecidos, mas igualmente
importantes como Zuca Sardan e Nestor Perlonguer. E também com nomes consagrados,
vistos como os mais importantes.
Nesse sentido, Ana Cristina Cesar, escritora atuante tanto na produção quanto na
crítica literária, é um nome incontornável, tamanha a sua importância desde os anos 1980 na
produção poética brasileira contemporânea. Há muitas ressalvas quanto à denominação “poeta
marginal” à Ana C., pois a sua escrita prima pela elaboração, influência das suas leituras na
adolescência e juventude, como por exemplo: Walt Whitman, Katherine Mansfield, Virginia
Woolf, T.S. Eliot, Silvia Plath, Rimbaud, Baudelaire, Fernando Pessoa, Clarice Lispector,
Guimarães Rosa entre outros.
Contracenando com Ana C.
Tracemos a partir de agora um panorama biográfico sobre a poeta: Ana Cristina Cruz
Cesar, Ana C. como ficou conhecida, nasceu em 22 de junho de 1952, em Copacabana, no
Rio de Janeiro. Em 1975, concluiu a graduação em Letras pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e tornou-se mestre em Comunicação pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ), em 1979. Na Universidade de Essex
(Inglaterra), em 1980, fez um Master of Arts sobre tradução literária. Ana C. publicou seu
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primeiro livro, Literatura não é documento, em 1980. E contribuiu com jornais e revistas,
além de trabalhar como tradutora. Em 1979, com produções independentes, publicou seus
livros de poemas Cenas de abril e Correspondência Completa. Em 1981, publicou Luvas de
pelica (poesia e prosa) e, em 1982, publicou seu último livro, A teus pés, que é a junção dos
últimos três acrescido de novos poemas.
Em 1983, os jornais noticiaram a tragédia: Ana C. comete suicídio saltando do décimo
terceiro andar de um edifício de Copacabana. As publicações não terminam aqui. Surgiram
publicações póstumas de textos que, segundo Leone, se concentravam ainda mais na autora
do que na obra, ressaltando as características físicas (2008, p. 65, grifos meus) e também
impregnando os textos de saudades, pois os resenhistas eram amigos, familiares e colegas.
Alguns, segundo Leone (2008, p. 66), deixavam-se afetar diretamente pela morte, como
Armando Freitas Filho, que escreve recorrendo ao momento do suicídio e/ou ao tom cruel do
não perdão do vazio deixado pela morte da amiga, e insiste na imagem do suicídio cantando a
morte na construção poética do livro De Cor, por exemplo, de 1988. Outros, como Sebastião
Uchoa Leite, recorrem ao “jogo da memória e a relação entre escritura e morte” (p. 69). E,
ainda, ressalta o jogo da presença/ausência citando poemas de Cacaso e Uchoa Leite, que
evocam a presença de Ana por meio de rememorações e trabalham com a questão da
ausência, que se faz presença.
A poesia de Ana C. singulariza-se e alcança notoriedade no panorama da literatura
brasileira do século XX, demarcando de maneira irônica, ambígua, no corpo de seus versos, a
relação limítrofe entre experiência e experimento, elaboração e espontaneidade, vida e
literatura. São nesses espaços antitéticos da literatura que se faz a poesia de Ana Cristina
Cesar. E concordando com Armando Freitas Filho, na apresentação do livro Poética:
De repente, como que andando na contramão da sua geração, de braço dado com ela
em alguns costumes, mas escrevendo com mão diferente um texto cuja mancha
gráfica incorporava sem cerimônia a prosa, Ana Cristina apareceu – esfinge clara e
singular – sem temer a rejeição, procurando outro leitor e propondo uma nova leitura
em nada complacente, muito pelo contrário, uma leitura desafiada. (In. CESAR,
2013, p. 8)
A poesia de Ana Cristina aparece nos anos 70, fazendo um “entrecruzamento entre
poesia e outras modalidades discursivas” (GARRAMUNO, 2012, p. 185). A sua proposta
inclui nos poemas a incorporação da prosa, a aproximação com a escrita dos diários, as cartas,
a dinamização do tamanho dos versos, o atravessamento de outros idiomas, desenhos tornamse parte da sua obra entre outros. Outra característica importante é o estabelecimento de uma
possível interlocução com o seu leitor. O seu foco não é a revelação instantânea, mas
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1945
transformação do leitor em um possível interlocutor, fazendo-o ler, reler, refletir, indagar-se e
participar da interlocução, enquanto ela performatiza, expõe e encena a intimidade.
A poética de Ana C. não é a mera transcrição daquilo que acontece em sua vida, mas
uma performance, que constrói um simulacro de espontaneidade, que não se dá pelo descuido
formal, mas, ao contrário, por um depuramento da linguagem. Essa performance pode ser
vista nos termos de Paul Zumthor, considerado o fato de que, aqui, o corpo, previsto na
concepção de performance, também se apresenta nas palavras, nos versos que se movimentam
de modo inesperado, criando jogos de sentidos pela disposição que se apresentam. Zumthor
afirma que “A performance se situa num contexto ao mesmo tempo cultural e situacional”, é
um fenômeno que sai desse contexto ao mesmo tempo em que nele encontra lugar. Algo se
criou, atingiu a plenitude e, assim, ultrapassa o curso comum dos acontecimentos” (2000, p.
36).
O corpo no poema “Arpejos”, incluído em Cenas de abril, pode ser reconhecido como
corpo real, de carne e osso, e como corpo que performatiza por meio das palavras. Essa
performance estabelece um jogo com os campos semântico e lexical, em que o primeiro,
sempre ligado aos sentidos, é performance e o segundo, que restringe ou demarca um
contexto, aproxima-se da inserção do cotidiano, quando referenda os vocábulos coceira,
moléstia, pele e irritação no poema.
Arpejos
1
Acordei com coceira no hímen. No bidê com espelhinho examinei o local. Não
surpreendi indícios de moléstia. Meus olhos leigos na certa não percebem que um
rouge a mais tem significado a mais. Passei pomada branca até que a pele (rugosa e
murcha) ficasse brilhante. Com essa murcharam igualmente meus projetos de ir de
bicicleta à ponta do Arpoador. O selim poderia reavivar a irritação. Em vez decidi
me dedicar à leitura.
(In. CESAR, 2013, p. 26).
A cena descrita no poema, desencadeada pela “coceira no hímen”, performatiza uma
proximidade com o interlocutor. O quadro íntimo e doméstico apresentado não está tão
explícito, não é tão biográfico como nos induz a pensar. Isso é um pseudo-acontecimento, ele
não necessariamente acontece na vida, mas está no jogo de cena do poema. A exposição
exacerbada do corpo físico e o escancaramento dos detalhes referentes ao gênero íntimo
podem ser entendidos como o jogo de aproximação com o interlocutor. Envolto em uma
esfera de intimidade, o interlocutor aguarda o desfecho da cena descrita. Porém, a revelação
não vem, porque o segredo já foi exposto logo nos primeiros versos. A performance aqui
consiste na ilusão do interlocutor em ser próximo. Ele é sempre levado a acreditar que o
desfecho ainda está por vir. E, como num teatro de sombras em que as imagens são
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desfocadas, a autora desfoca o olhar do interlocutor do hímen - que remete ao íntimo, ao
privado, ao secreto-, para a ação corriqueira do cotidiano “ir de bicicleta à ponta do
Arpoador”- remetendo à ideia do público. No verso final, “Em vez decidi me dedicar à
leitura”, a autora é incisiva em afastar o seu interlocutor. A leitura aqui apresenta-se como
ponto chave do afastamento com esse interlocutor, pois ao ler nos distanciamos do mundo ao
nosso redor e, consequentemente, nos privamos de nos relacionar naquele momento. A autora
leva o interlocutor do privado para o público, mas ao retornar ao privado, ela o desconsidera,
o ignora.
Outra questão relevante é a da autobiografia na poesia de Ana C. A inserção de fatos
cotidianos nos poemas, o estabelecimento da interlocução com o leitor e a exposição da
intimidade, rendeu-lhe a fama de uma poesia intimista e autobiográfica, fama essa recusada
pela própria Ana C., segundo Marcos Siscar. Ele afirma que ao passar para o poema a vida se
perde ou se transforma, pois há a criação de uma nova realidade. E chama a atenção: “o
poema é uma mímesis produtiva, e não uma tradução de algo que o precede: a realidade ou a
Verdade metafísica da experiência” (SISCAR, 2011, p. 15, grifos meus). O texto poético não
apresenta a sinceridade, “no sentido da continuidade entre o que se sente/pensa e o que se diz:
é nisso que insiste Ana C.” (SISCAR, 2011, p. 50).
Ainda sobre a autobiografia, Duque-Estrada (2009) afirma que o gênero durante mais
de dois séculos, embora à margem da literatura tradicional, teve seu lugar incontestável, mas
depois de um certo momento perdeu a “legitimidade, transformando-se em uma escrita
bastarda, sem álibi, desacreditada, e, mais do que isto, impossível”. Essa descrença na
impossibilidade da autobiografia deve-se ao fato de haver uma manipulação da verdade,
exagerando, mentindo ou até mesmo omitindo fatos. No próprio livro Devires
Autobiográficos, há uma citação de Blanchot (1971) que corrobora com essa impossibilidade
na autobiografia:
há alguma coisa a ser dita que não se pode dizer: não é necessariamente um
escândalo, pode ser algo bastante banal – uma lacuna, um vazio, uma área que se
esquiva da luz porque a sua natureza é a impossibilidade de ser trazida à luz, um
segredo sem segredamento cujo selo quebrado é a própria mudez. (Duque-Estrada,
2009, p.21)
Algumas verdades têm suas raízes no silêncio e a linguagem perde o caráter mediador
e expressão de sentidos. Duque-Estrada (2009) discute, em seu texto ainda, que a
reinterpretação, descentralização e reinscrição do sujeito são estratégias da crítica da
subjetividade, que vão além da liquidação ou apagamento do sujeito, e que a “desconstrução
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1947
do sujeito” abre a “compreensão de uma subjetividade em devir, de processos de subjetivação
que não atendem a nenhuma finalidade preconcebida, pois que elas só se processam no
acontecer contínuo e aleatório da própria vida”.(2009, p. 38-39). Segundo a autora, nesses
escritos, há uma constante tensão entre subjetividade e objetividade. Para corroborar essa
afirmação, ela aponta uma afirmação de Eliane Zagury, que diz que a autobiografia é “uma
escrita sempre em desequilíbrio, dotada de um caráter crítico no sentido de “ser em crise”, ou
seja, o sujeito vive uma “constante tensão entre a subjetividade e a objetividade”, no qual “o
sujeito sendo o seu próprio objeto, como que caminha sobre uma perna só” (2009, p. 48).
No caso de Ana Cristina Cesar, ainda segundo Siscar (2011, p.14), seria ingênuo
pensar em uma poesia “puramente (ou higienicamente) construída”. Dessa forma, podemos
perceber o processo de construção de uma dicção autoral, pois não é o discurso biográfico em
voga na geração marginal e não é apenas teatro (ilusão), podemos pensar em uma
reconfiguração dessa encenação/exposição da intimidade, que pode ser entendida como um
jogo entre autor e leitor. Nesse jogo, o leitor é levado a pensar que é íntimo do autor, e tende a
acreditar que há uma revelação fidedigna dos acontecimentos reais, devido à estratégia
poética de encenação da intimidade, que perpassa pela técnica de introdução dos elementos
cotidianos, estabelecendo, assim, o jogo de aproximação/afastamento do leitor, que Siscar
(2011, p.15) apresenta como “traço ético da encenação da intimidade, e no qual está envolvida
uma política da alteridade”.
Garramuno (2012) também reflete sobre a questão do eu na obra de Ana C., afirmando
a insistência de uma escrita marcada pelo “eu”, uma exacerbada exposição da intimidade e
dos desejos, que, na verdade, não revelam o eu ou a biografia, mas ressaltam “a posição
crítica de Ana Cristina diante do subjetivismo da geração marginal e de sua confiança no eu e
na experiência”. (GARRAMUNO, 2012, p. 162)
Dessa forma, podemos supor que a poética de Ana C. denota o distanciamento
entre o que se escreve e o que se vive. Veja, por exemplo, este poema de A teus pés:
O tempo fecha.
Sou fiel aos acontecimentos biográficos.
Mais do que fiel, oh, tão presa! Esses mosquitos
que não largam! Minhas saudades ensurdecidas
por cigarras! O que faço aqui no campo
declamando aos metros versos longos e sentidos?
Ah que estou sentida e portuguesa, e agora não
sou mais, veja, não sou mais severa e ríspida:
agora sou profissional.
(CESAR, 2013, p. 79).
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O sujeito do poema afirma “Sou fiel aos acontecimentos biográficos/Mais do que fiel,
oh, tão presa! sugerindo que uma escrita relacionada a uma simples descrição da realidade a
encarcera em uma prisão, que a priva de inovar, de criar, causando, assim
desconforto/incômodo à poeta, corroborando com a ideia de Siscar (2011) e com Garramuno
(2012).
No poema “sete chaves”, de A Teus Pés, percebemos o direcionamento ao outro,
explicitando a interlocução:
sete chaves
Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha grande história
passional, que guardo a sete chaves, e meu coração bate incompassado entre gaufrettes. Conta mais essa história, me aconselhas como um marechal-do-ar fazendo alegoria. Estou tocada
pelo fogo. Mais um Roman à clé?
Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher moderna.
Nem te conheço.
Então:
É daqui que eu tiro versos, desta festa – com arbítrio silencioso
e origem que não confesso – como quem apaga seus pecados de
seda, seus três monumentos pátrios, e passa o ponto e as luvas.
(CESAR, 2013, p. 81)
Do ponto de vista estrutural, notamos a prosa na composição poética. O texto aparece
fragmentado e marcado por vozes distonantes. Há a presença de um interlocutor, que é
convidado para um chá das cinco, onde um segredo será revelado. O jogo do segredo e da
revelação que atrai o leitor está novamente posto. Há uma pergunta, Mais um Roman 'a cle?,
mas a resposta não vem, é interrompida ou atravessada por um pensamento “Eu nem
respondo. Não sou dama nem mulher moderna./ Nem te conheço.”. No início do poema
instaura-se uma encenação da intimidade, que nos leva a acreditar na revelação de um
segredo, mas que fica guardado a sete chaves, pois o que há é a construção de uma falsa
intimidade com o leitor. Na sequência dos versos, a referência a uma festa, nos leva a pensar
que a festa é esse jogo de segredo e revelação, de aproximação e afastamento do interlocutor,
desses sujeitos que se alternam, ora mostram-se íntimos, sempre prontos a revelar-se
integralmente, entregar-se totalmente e ora, de súbito, mostram-se arredios e esquivam-se
passando o ponto e as luvas, afastando o interlocutor definitivamente da revelação anunciada.
Reconhecemos em outro poema de Ana C., a questão da interlocução que não só se
dirige ao leitor como o inclui como personagem do seu texto. Observemos o fragmento de um
poema de A teus pés:
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[…]
E a última, eu já te contei?
É assim.
Estamos parados.
Você lê sem parar, eu ouço uma canção.
Agora estamos em movimento.
Atravessando a grande ponte olhando o grande rio e os três
barcos colados imóveis no meio.
Você anda um pouco na frente.
Penso que sou mais nova do que sou.
Bem nova.
Estamos deitados.
Você acorda correndo.
Sonhei outra vez com a mesma coisa.
Estamos pensando.
Na mesma ordem de coisas.
Não, não na mesma ordem de coisas
É domingo de manhã (não é dia útil às três da tarde).
Quando a memória está útil.
Usa.
Agora é sua vez.
Do you believe in love...?
Então está.
Não insisto mais.
(CESAR, 2013, p. 78)
Notamos uma interlocução em dois níveis: no primeiro, detectamos a referência direta
ao outro pelo uso dos pronomes “te”, “você”, “sua”, além de interrogações. Percebemos
novamente, a tentativa de aproximar o leitor pelo artifício do despertamento da curiosidade, –
E a última, eu já te contei?; no segundo, há a inclusão desse leitor/interlocutor como
personagem do texto, a quem Ana se dirige, alguém íntimo com quem ela vivencia situações
cotidianas, como Estamos parados./Você lê sem parar, eu ouço uma canção./Agora estamos
em movimento. Nesse poema citado, identificamos outra característica da poética de Ana C., a
o uso de outros idiomas na composição dos seus poemas.
Considerações Finais
Podemos considerar que a questão autobiográfica e a inserção do cotidiano na poesia,
tão em voga na época, apresentam na poesia de Ana Cristina Cesar um caráter performático,
que se constituirá como construção da dicção autoral da sua poética. A encenação/exposição
da intimidade encontrada nos seus versos, remetem à ideia de reconfiguração, pois a poesia
não é uma transposição literal da vida para o papel, mas é o espaço de reinvenção e de
recriação. A autora trabalha com as questões do cotidiano, e por meio delas, encena a
exposição da intimidade estabelecendo, assim, uma relação de aproximação e afastamento
com o interlocutor. Essa relação com o interlocutor é controlada pela autora, por meio do jogo
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1950
de segredo e revelação. O interlocutor, movido pela curiosidade, deixa-se envolver nessa
esfera de intimidade e aguarda o desvendamento, porém nem sempre ele vem, na maioria das
vezes, o seu olhar é levado para outro foco.
Referências
CESAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
DUQUE-ESTRADA, Elizabeth Muylaert. Devires Autobiográficos: a atualidade da escrita
de si. Rio de Janeiro: NAU/Editora PUC-Rio, 2009.
FREITAS FILHO, Armando. “Apresentação”. In. CESAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013.
GARRAMUNO, Florencia. A experiência opaca: literatura e desencanto. Trad. Paloma Vidal.
Rio de Janeiro:EdUERJ,2012.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2007.
LEONE, Luciana di. Ana C.: as tramas da consagração. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Retrato de época: Poesia marginal anos 70. Rio de
Janeiro: Editora MEC/Funarte, 1981.
SISCAR, Marcos. Ana Cristina Cesar por Marcos Siscar. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2011.
Coleção “Ciranda da poesia”.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trads. Jerusa Pires Ferreira, Suely
Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000
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“A ESCRAVA ISAURA” E “ROSAURA, A ENJEITADA”:
IMAGENS QUE SE CONFUNDEM NA OBRA DE BERNARDO
GUIMARÃES
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Maria Rosane Alves da Costa (UPE)
1. Introdução
Na literatura brasileira, o negro enquanto personagem literário só começou a surgir
após 1850, quando foi abolido o tráfico de escravos em nosso país. Isso demonstra o
preconceito que permeava nossa sociedade e que ainda “está arraigado em nossa experiência
em virtude de séculos de escravidão” (Brookshaw, 1983, p. 12).
A economia brasileira da época dependia do escravo, que era visto como um ser
inferior ao branco, já que na sociedade do período predominava uma histórica simbologia das
cores preta e branca, na qual “a raça branca aparece como criação original de Deus, feita à sua
perfeição, enquanto que a negra era a tentativa frustrada de imitação feita pelo demônio”
(Brookshaw, 1983, p. 15). Assim, o negro sempre estava ligado a coisas negativas, ao passo
que o branco refletia os valores positivos. No campo literário, percebemos que essa visão
estereotipada só veio a se propagar e refletir na produção artística da época, sendo transposta
para as páginas dos romances a partir de meados do século XIX.
Os romances A escrava Isaura (1875) e Rosaura, a enjeitada (1883), do escritor
Bernardo Guimarães, têm como temática a escravidão e são obras que partilham de diversas
características comuns, tanto em relação à maneira deformada como foi retratada a sociedade
escravocrata quanto na composição superficial dos personagens, sendo consideradas obras
bastante sinônimas.
As protagonistas dessas obras, Rosaura e Isaura, são brancas, dotadas de qualidades
“superiores” e, mesmo sendo escravas, projetam os valores da branquidade, sendo retratadas
segundo o padrão estético europeu. Temos aí uma forte influência da ideologia do
branqueamento, a qual predominou no Brasil na segunda metade do século XIX e início do
século XX, e tinha como ideal o retorno à cor branca, ou seja, o clareamento da cor e dos
traços dos afro-ameríndios. As narrativas em questão apresentam enredos bastantes sinônimos
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e superficialidade na tessitura dos personagens, apresentando figuras que praticamente se
repetem.
2. Reflexos do branqueamento na tessitura dos personagens
Segundo Candido (2011), enredo e personagem são dois dos elementos que compõem
o romance e que estão intimamente ligados numa relação de dependência. Assim sendo, “o
enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo. Enredo e
personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os
significados e valores que o animam.” (2011, p. 53).
Assim, podemos afirmar que os romances bernardianos deixam a desejar no que se
refere à verossimilhança que os constitui. Isso ocorre porque, segundo Candido (2011), a obra
de ficção não pode ser igual à realidade, mas deve ser coerente, aceitável diante dos padrões
da vida corrente, já que a leitura do romance depende da aceitação da verdade da personagem
por parte do leitor. Logo, é completamente inverossímil a composição de personagens que
são escravas e, ao mesmo tempo, são brancas e educadas, pois “o que julgamos inverossímil,
segundo padrões da vida corrente, é, na verdade, incoerente, em face da estrutura do livro”
(Candido, 2011, p. 76).
Assim, somos levados a refletir sobre a maneira como esses romances “abolicionistas”
foram estruturados, pois as obras bernardianas aqui referidas deixam transparecer um
“idealismo ingênuo ou contraditório, visto que não se trata de protesto contra o sistema
escravocrata senão contra o cativeiro de jovens belas e educadas” (Moisés, 1985, p.199).
Assim temos as descrições de Isaura e Rosaura, respectivamente:
A tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma
nuança delicada, que não saberes dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada
(...). Na fronte calma e lisa como mármore polido, a luz do acaso esbatia um róseo e
suave reflexo; di-la-íeis misteriosa lâmpada de alabastro guardado no seio diáfano o
fogo celeste da inspiração. (GUIMARÃES, 2001, p. 14).
A tez do rosto e das mãos era de um moreno algum tanto carregado; mas quem
embebesse o olhar curioso pelo pouco que se podia entrever do colo, por baixo do
corpilho do vestido, bem podia adivinhar que era o sol, que a tinha assim crestado, e
que sua cor natural era fina e mimosa como a do jambo. (GUIMARÃES, s/d, p. 03).
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É claramente notável que tanto Rosaura quanto Isaura eram brancas e dotadas de
qualidades “superiores”, o que é um fato bastante inverossímil. Dessa forma, o intuito da
sociedade branca do período abolicionista era banir negros e indígenas do Brasil, tanto social
como biologicamente, fato que se daria por meio do “encorajamento à imigração europeia,
pela seleção sexual e pelo abandono das massas escuras da população aos perigos de doenças,
alcoolismo e desnutrição” (Brookshaw, 1983, p. 77). Assim, acreditava-se que o país se
branquearia em três ou quatro séculos e que teríamos uma raça pura e um país livre do atraso
econômico ocasionado pelos negros.
Segundo Abreu (2013), as duas obras tem em comum não somente o fato das
protagonistas serem brancas e escravas, mas também a ausência de críticas explícitas à
escravatura, já que a injustiça a que se faz referência é a escravização de jovens tão
excepcionais como Rosaura e Isaura, e o que está em jogo não é a condição de escravo, mas a
exposição de pessoas brancas a esta condição. Portanto, o negro aparece não como sujeito de
sua história, mas como um objeto idealizado e branqueado, que nega sua origem e cultura.
Nos dois romances, Bernardo não faz nenhum tipo de menção ao modo como
realmente era a vida dos negros e aos castigos pelos quais passavam, ocultando essa dura
realidade e preocupando-se apenas com as sentimentalidades de Rosaura e Isaura, como se o
sofrimento dos milhares de africanos escravizados se resumisse aos melodramas presentes nas
duas narrativas. Deste modo cabe salientar que essa visão fragmentada do sistema
escravocrata só vem a contribuir ainda mais com a falta de totalidade das duas narrativas, já
que falta “referência, estabelecimento de relação entre um traço e outro traço, para que o todo
se configure, ganhe significado e poder de convicção” (Candido, 2011, p.79).
De acordo com Brookshaw (1983), a inserção de protagonistas negras e dotadas de
qualidades “superiores” colocaria em dúvida a estrutura social e étnica da época, visto que a
beleza e a inteligência eram valores reservados aos brancos, enquanto aos negros restava
apenas o enquadramento em diversos estereótipos. Esse branqueamento visível em A escrava
Isaura e Rosaura, a enjeitada elucida o preconceito de raça e cor vigente na sociedade
brasileira do século XIX, sugerindo a imagem daquele em que deveria se transformar o negro
para ser aceito socialmente, ou seja, um ser de alma branca.
3. A composição dos personagens: imagens sinônimas
De acordo com Candido (2011), os personagens podem ser classificados de dois
modos principais: os seres íntegros e facilmente delimitáveis e os seres complicados. Os seres
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1954
que pertencem ao primeiro tipo são “marcados duma vez por todas com certos traços que os
caracterizam” (2011, p. 60) e os que pertencem ao segundo “não se esgotam nos traços
característicos, mas têm certos poços profundos, de onde pode jorrar a cada instante o
desconhecido e o mistério” (2011, p.60). As personagens das narrativas bernardianas
pertencem ao primeiro grupo.
Essas personagens facilmente delimitáveis são “apresentadas por meio de traços
distintivos, fortemente escolhidos e marcados; (...) Estes traços são fixados de uma vez para
sempre, e cada vez que a personagem surge na ação, basta invocar um deles” (2011, p.61). É
seguindo sobre este viés que discorreremos sobre os principais personagens dos romances
bernardianos em questão, tendo em vista que os dois apresentam “um universo psicológico de
concepção essencialmente romântica, redutível a poucas situações e tipos fundamentais,
esquematizados a partir das representações mais correntes de herói, heroína, pai e vilão”
(Candido, 2000, p. 213).
As personagens desses romances são construídas em torno de uma só ideia ou
qualidade, fato que nos permite a elaboração de um quadro comparativo entre as principais
figuras dos dois romances aqui analisados. O critério para esta comparação é a sinonímia que
um personagem apresenta com o outro, dando uma ideia de repetição dos enredos.
Personagens de “A
Personagens de
Característica que os
escrava Isaura”
“Rosaura, a enjeitada”
aproxima
Isaura
Rosaura
Mocinhas
da
história,
escravas
brancas
e
que
de
origem
nobre
são
amadas
por
homens
da
história,
brancos;
Álvaro
Carlos
Mocinhos
jovens de boa família que
amam escravas;
Malvina
Adelaide
Mulheres de bom coração,
mas que tratam mal suas
escravas por ciúmes de
seus maridos;
Geraldo
Frederico
Jovens regidos pela razão;
aconselham seus amigos a
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1955
não se envolverem com
escravas, mas acabam se
rendendo à beleza destas;
Leôncio
Bueno de Moraes
Vilões da história, homens
de má índole e que tentam
seduzir escravas;
Comendador Almeida
Major Damásio
Figuras que proporcionam
bem-estar financeiro a uma
parte
dos
outros
personagens
Miguel
Conrado
Pais das mocinhas, homens
de bom caráter e que lutam
pela
liberdade
de
suas
filhas;
De início, vamos nos deter a Rosaura e Isaura, pois muito além das semelhanças já
descritas, as escravas bernardianas ainda comungam de muitos outros pontos comuns. Em
primeiro lugar, é relevante discutirmos sobre a origem das duas mulatas, as quais são frutos da
união de um ser “superior” com um ser “inferior”, sendo sorteadas com traços e peles que, ao
mesmo tempo em que evidenciam a descendência branca, não denunciam a presença de
sangue africano. Isaura é filha de uma escrava (Juliana) e de Miguel, que embora pobre, era
branco, livre e “tinha o trato e a linguagem de um homem polido e de acurada educação”
(Guimarães, 2001, p. 04).
Já Rosaura é filha de pais livres, Adelaide, filha de um rico fazendeiro, e Conrado, um
mulato que trabalhava como capataz, mas que ao longo da trama acaba se tornando um grande
capitalista. Ela torna-se escrava devido a um engano ocorrido em sua infância, quando sua
mãe, ainda solteira, engravida e dá a luz às escondidas, abandonando-a. Essa descrição torna
evidente que estamos diante de figuras nobres, que se encontram sobre a linha de
comportamento mencionada por Brookshaw (1983) e que pertencem ao grupo que colaboraria
para o branqueamento da população brasileira, o mulato, que junto ao branco acabaria por
concretizar o retorno à cor branca. Essa linha de comportamento
não é uma barra colorida, pois pode ser atravessada pelo preto, ou pelo mulato, ao
atravessá-la, porém, tornam-se exceções do estereótipo, implicitamente impedidos
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1956
de mostrar qualquer vestígio de sua cultura anterior em troca de sua assimilação.
(BROOKSHAW, 1983, p. 17)
Outro ponto marcante é a maneira como as “duas moreninhas” de Guimarães
(Candido, 2000, p. 213) se tornam objeto de desejo de muitos homens, sendo assediadas e
cobiçadas ao longo de toda a narrativa.
As personagens do romance Rosaura, a enjeitada são transpostas dos personagens de
A escrava Isaura, se enquadrando nas personagens transpostas de modelos anteriores de
Candido, que são “transpostas de modelos anteriores, que o escritor reconstitui indiretamente”
(2011, p.71); no caso de Guimarães, as personagens são construídas a partir de um
personagem já existente, que de modo indireto influencia na composição dessa nova
personagem. Podemos observar isto a partir dos personagens Geraldo e Frederico, os quais
são praticamente idênticos. Geraldo “era um homem de trinta anos, bacharel em Direito e
advogado altamente conceituado, (...) uma inteligência de bom quilate, firme e esclarecida,
um caráter sincero” (Guimarães, 2001, p.83), no entanto, ao descobrir que a amada de Álvaro
era uma escrava, aconselhou-o a deixá-la, pois não passava de uma cativa. Porém, ao
conhecer a beleza de Isaura, Geraldo se rende e confessa que ela possui uma beleza
indescritível, anormal para sua condição. Assim, torna-se coerente a afirmação de Brookshaw,
quando diz que o negro tendia para a feiura, ao passo que só os europeus poderiam ser bonitos
(1983, p.34).
Alguns anos mais tarde, em Rosaura, a enjeitada, Guimarães compõe Frederico, um
jovem de bom senso, juízo reto, inteligente e estudante de direito. Esse personagem
praticamente refaz os passos de Geraldo, pois incentiva Carlos a esquecer de Rosaura quando
toma conhecimento da condição desta, no entanto, volta atrás em sua opinião quando conhece
a escrava e se dá conta da beleza da mesma. Frederico também fica indignado pelo fato de
uma jovem bonita e branca como Rosaura ser somente uma escrava, já que “o belo não é
compatível com o escravo” (Abreu, 2013, p. 55).
Outro exemplo são as personagens Adelaide e Malvina. Fica claro o processo de
produção dessas personagens quando Guimarães, em 1883, compõe Adelaide com
praticamente as mesmas características de Malvina, criada em 1875, fazendo com que ambas
executem ações praticamente iguais.
Podemos notar a repetição da ação quando Adelaide começa a sentir ciúmes de seu
marido com Rosaura e passa a dar um tratamento frio e indiferente à escravinha. O mesmo já
havia ocorrido em A Escrava Isaura, onde Malvina descobre o interesse de Leôncio por
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1957
Isaura e começa a tratá-la com malevolência. O que chama atenção nesse caso é que mais uma
vez as duas escravas partilham ações típicas de mocinhas românticas, pois ambas rejeitam
seus senhores, preferindo serem castigadas a ter qualquer tipo de contato sexual com eles.
4. Os mocinhos e os vilões num contexto escravocrata
A apresentação dos mocinhos dos nossos romances escravocratas ocorre de modo
bastante idealizado. Álvaro e Carlos possuem muitos pontos comuns, pois os dois se
apaixonam por escravas (brancas), são de boa família e lutam para que suas amadas se tornem
livres, já que ambas são figuras excepcionais que não merecem ser cativas devido à sua
beleza. Os dois rapazes são, desde o início, descritos como moços inteligentes, puros, de bom
coração e distintos, ou seja, são delimitados como sendo verdadeiros príncipes encantados.
Eles possuem tudo o que se espera de um herói romântico, o que é perceptível em suas
descrições, Carlos e Álvaro, respectivamente:
...apresentava um tipo inteiramente diverso; era um verdadeiro filho do Brasil e da
província de Minas; assemelhava-se a um napolitano. Estatura regular, cabelos e
olhos escuros, tez clara e levemente colorida, olhar cintilante e profundo revelavam
nele imaginação viva, natureza ardente e apaixonada (GUIMARÃES, s/d, p. 114).
Era de estatura regular, esbelto, bem-feito e belo, mais pela nobre e simpática
expressão da fisionomia do que pelos traços físicos, que entretanto não eram
irregulares. (...) Alma original, cheia de grandes e generosas aspirações.
(GUIMARÃES, 2001, p. 81).
É impressionante que esses dois jovens venham a se apaixonar por escravas,
entretanto, há uma explicação para tal fato. Seus objetos de paixão não eram quaisquer negras,
eram duas mulheres desenhadas à imagem do branco e com características psicológicas de
branco e que, infelizmente, eram cativas. No momento em que eles descobrem que Isaura e
Rosaura não passam de escravas, se decepcionam, chegam até a por em dúvida seus próprios
sentimentos, tendo vergonha de terem sido iludidos. Isso põe em dúvida o caráter
abolicionista das duas obras, visto que as mesmas acabam transmitindo uma visão
preconceituosa em relação aos escravos, deixando transparecer uma mentalidade
completamente racista.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1958
Porém, em histórias com estruturas como essas, o herói permanece bom e justo até o
fim, e é por isso que ambos encontram meios de libertá-las para que vivam seu grande amor
sem que isso simbolize uma vergonha. Carlos, apesar de ainda não ser formado e ter
estabilidade financeira, tem a sorte de ter um sogro rico, o qual proporciona a liberdade a
Rosaura. Já Álvaro, de maneira providencial, é um advogado rico que compra a liberdade de
Isaura, já que o pai dela não possui recursos financeiros para isto.
NA Escrava Isaura, um dos personagens mais importantes para o desenvolvimento da
trama é Leôncio, o vilão da história. Ele é apresentado como alguém que tinha “a alma
corrompida e o coração estragado por hábitos de devassidão e libertinagem” (Guimarães,
2001, p.19) e que vem a se tornar o algoz de nossa pura escrava Isaura, assediando-a,
perseguindo-a e negando-lhe a liberdade. Já o vilão de Rosaura, a enjeitada, Bueno de
Morais, apesar de ter maneiras simpáticas, possuía “inteligência um pouco menos que
medíocre” (Guimarães, s/d, p. 9). Tanto Leôncio quanto Morais usaram o casamento como
um meio de ascensão social e representaram uma ameaça à integridade e pureza das duas
escravas, tentando seduzi-las e comprometendo a estabilidade do seio familiar. Como se não
bastasse, de maneira providencial, os dois vilões ainda acabam morrendo para que as
escravinhas possam ser felizes. Ao longo dos dois romances o mau caratismo dos dois só vem
a aumentar, caracterizando-os de uma vez por todas como malfeitores e comprovando o que
diz Moisés (1985) quando afirma que nos romances de Guimarães “bons e maus se destacam
desde cedo e para sempre numa dicotomia que não deixa margem a dúvidas” (1985, p.200).
Temos, por fim, os pais das heroínas, os personagens Miguel e Conrado, os quais são
capazes de qualquer esforço e sacrifício para conseguir libertar suas filhas. O pai de Isaura,
Miguel, é um homem humilde, de origem portuguesa e que durante muitos anos foi feitor na
fazenda do comendador Almeida. Ele trabalha sem cessar a fim de conseguir o dinheiro
suficiente para a alforria de Isaura, ato sem sucesso graças a Leôncio, que se recusa a libertar
a donzela. A figura de Conrado aparece de forma semelhante, já que ele era o capataz da
fazenda do Major Damásio. O que os distingue é que Conrado era mulato, não branco, fato
que não impediu Rosaura de ter origem nobre, pois sua mãe era branca. Ao longo da história,
Conrado torna-se um homem muito rico e tem condições de obter a liberdade de Rosaura.
5. A concretização simbólica do branqueamento
Abreu (2013) afirma que o casamento de Álvaro e Isaura representaria a concretização
literária da união entre as várias raças, mas, na verdade, os casamentos de Carlos e Rosaura,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1959
Álvaro e Isaura, respectivamente, negam completamente a raça negra, representando a
concretização simbólica do branqueamento e evidenciando a união entre brancos e mulatos,
união esta considerada como um dos meios para alcançar o retorno à cor branca, por meio de
cruzamentos sucessivos a fim de que não restasse sangue africano no povo brasileiro.
O mulato, que era visto como “um perigo maior à estabilidade da estrutura social e
étnica que é representada por uma elite predominantemente branca” (Brookshaw, 1983,
p.151), passa a ser visto como uma espécie de ponte que levaria a população brasileira à
pureza racial, algo evidente nas duas obras. Assim sendo, esse fato é a representação
simbólica da vitória do branco sobre o negro, pois a união de um branco com um mulato
ocasionaria o nascimento de prole branca, a extinção da raça negra e, consequentemente, a
purificação racial do Brasil. Para Brookshaw (1983) existe uma
dependência de uma estética branca que condiciona os mulatos claros a ignorar
conscientemente suas origens raciais ou na realidade negá-las, o que induz os afrobrasileiros em geral a aspirar casar com uma pessoa mais branca a fim de evitar
descendentes de pele escura. (1983, p. 151)
Podemos afirmar que o fim do século XIX carregou consigo o ideal de uma evolução
da raça, uma homogeneização da sociedade brasileira, o que nos romances bernardianos é
sugerido de forma implícita, visto que os personagens brancos optam por cônjuges mais
claros, visando originar uma geração de melhor aparência.
Segundo Brookshaw (1983), mesmo com o triunfo do branqueamento e a purificação
da população em três ou quatro séculos, o Brasil nunca chegaria a ser um país
“intelectualmente branco”, pois os elementos culturais de todos os povos que contribuíram
para sua formação não seriam jamais anulados, se fazendo presentes na estrutura social e
ideológica do país.
6. Algumas considerações
A imagem do negro foi construída de forma estereotipada e deformada nessas obras de
Bernardo Guimarães, pois “se a imagem do escravo apresentado não corresponde à realidade,
então o escravo na ficção não é mais do que uma caricatura, com um retrato falseado pelo
escritor”. (Abreu, 2013, p.111)
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1960
As duas narrativas giram em torno da negação da cor negra, da desumanização do
escravo, possuindo personagens alinhavados com traços de branquidade e tratando o tema
central com superficialidade, pois “embora se constate o apelo à abolição da escravatura
através de algumas personagens, não se observa uma defesa intransigente e convicta da
emancipação total dos escravos de forma incondicional” (Abreu, 2013, p.54).
Através da comparação entre as duas obras foi possível comprovar que apesar de
algumas particularidades, tem-se uma sinonímia nos enredos, identificável a partir da
presença de personagens modeladas, estereotipadas e delimitadas pelo narrador. Logo, nos
dois romances é notável uma “caracterização mecânica dos personagens” e um “universo de
invenção limitada” (Candido, 2000, p. 217) que se sobrepõe à maneira fiel de retratar a
realidade, transformando as obras em narrativas inverossimilhantes, já que Guimarães não
constrói a “lógica da personagem” de modo coerente à realidade da época.
Sobre a figura do negro, Pessanha (2006) afirma que “apesar de suas insígnias
marcarem desde os primórdios nossa formação, no entanto, na literatura, o negro surge
frequentemente estigmatizado. Fala-se sobre ele, de sua vida, de seus costumes sob o enfoque
do olhar branco europeu.” (2006, p. 147)
Assim, torna-se nítido que na literatura pré-abolicionista brasileira, o negro não era
apresentado como portador de sua voz, pelo contrário, era retratado como objeto e quase
nunca sujeito de sua vida, tendo sua história contada por vozes brancas, sempre pela ótica do
dominador, nunca do dominado.
Referências
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Firmina dos Reis a Machado de Assis. Coimbra: Paulinas, 2013.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira. Tra. Marta Kirst. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1983.
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Horizonte: Villa Rica Editoras Reunidas Ltda, 2000.
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COUTINHO, Afranio/ co-direçao COUTINHO, Eduardo de Faria. A Literatura no Brasil.
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COUTINHO, Afranio. Introdução à Literatura no Brasil. 1986.
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PESSANHA, Márcia Maria de Jesus; BRITO, Maria da Conceição Evaristo de. A Literatura
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Periódico do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira. N. 7. Rio de
Janeiro: Eduff, 2006.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1962
ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO E CONSTRUÇÃO DE
SENTIDOS NO DISCURSO JORNALÍSTICO
[Voltar para Sumário]
Maria Sirleidy de Lima Cordeiro (UFPE)
Introdução
Este estudo tem por base a Linguística Textual e a Análise Crítica do Discurso para
investigar o encapsulamento anafórico no discurso jornalístico sobre as Manifestações no
Brasil. O foco desta pesquisa recai sobre um processo da referenciação cujo sintagma nominal
possui a função cognitivo-discursiva de encapsular as informações precedentes do texto,
numa abordagem Sociocognitiva.
Este trabalho parte da perspectiva de apresentar uma discussão teórica e analítica sobre
a ocorrência e o comportamento do encapsulamento anafórico no discurso jornalístico, pelo
viés textual-discursivo e sociocognitivo. O encapsulamento anafórico é um processo de
referenciação constituído por um sintagma nominal (demonstrativo + nome núcleo) o qual
retoma uma porção textual anteriormente descrita (CONTE, 2003), desempenhando uma
função cognitivo-discursiva que constrói sentidos (KOCH, 2004). Nessa perspectiva, o
objetivo deste estudo é analisar o sintagma nominal do encapsulamento anafórico, observando
como o nome-núcleo retoma a porção textual descrita anteriormente e constrói sentidos sobre
as Manifestações no Brasil em 2013.
O sintagma nominal possui a função cognitivo-discursiva de encapsular as
informações velhas e, ainda, (re)categoriza estas informações criando um novo referente e
expressando julgamentos valorativos para o discurso (FRANCIS, 2003; KOCH, 2004a;
MELO, 2008). A metodologia utilizada é de caráter essencialmente analítico e interpretativo
com base na abordagem qualitativa. Esta pesquisa mostra que as escolhas lexicais utilizadas
no encapsulamento anafórico, não só encapsulam as partes precedentes do texto como
também expressam ideologias que refletem julgamentos valorativos.
O sintagma nominal, ao encapsular a porção de texto anterior, enquadra situações
socialmente situadas, as quais mobilizam experiências sociais, históricas e culturais,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1963
individuais e coletivas, assim como, constrói valores e versões sobre as manifestações no
Brasil.
Referenciação e Encapsulamento anafórico
O encapsulamento anafórico constitui-se como um processo de referenciação que
constrói relações de sentido e de progressão tópica-textual. Para subsidiar essa discussão,
partimos da perspectiva teórica da referenciação como uma atividade de construção,
categorização, recategorização e retomada de referentes textuais fundada em atividades
inferenciais relacionadas aos enquadres tópicos que se realizam no discurso (MONDADA E
BUBOIS, 2003; MONDADA, 1997; MARCUSCHI, 2003; 2004; KOCH; CUNHA-LIMA,
2004; KOCH, 2005). Desse modo, a referência é dinâmica e pode ser inferida numa relação
contextual, denominada discursivamente como objetos de discurso, como nos aponta
Mondada (1994, p. 17):
[...] objeto de discurso interessa ter em conta a imbricação das práticas
cognitivas e sociais nas operações de referenciação, onde a referência é
construída pela atividade enunciativa e orientada em primeiro lugar para a
dimensão intersubjetiva no seio da qual ela é negociada, instaurada,
modificada, ratificada.
Nessa perspectiva, um objeto de discurso está ligado às estratégias de referenciação
por pronominalização e por nominalização1 numa relação intrínseca com a construção de
sentidos, envolvendo aspectos contextuais2 por meio de atividades inferenciais.
A referenciação é uma atividade discursiva (MARCUSCHI, 2007; KOCH, 2011;
MONDADA; DUBOIS, 2003) e engloba recursos de retomada lexical anafórica que ajudam
na progressão temática, na progressão referencial e na construção e reconstrução de objetos de
discurso. Sendo assim, a referenciação se constitui como um processo dinâmico, cujos objetos
são construídos discursivamente numa relação mediada entre os discursos e o mundo. Como
afirmado por Marcuschi (2007, p. 90), “o mundo comunicado é sempre fruto de um agir
comunicativo ou de uma ação discursiva e não de uma identificação de realidades discretas,
objetivas e estáveis”. Desse modo, a referenciação é uma atividade criativa de construção de
referentes e de percepções das coisas do mundo que se constitui num processo discursivo.
1
Por este trabalho tratar-se do encapsulamento anafórico cujo nome-núcleo é axiológico, iremos adotar a
estratégia de referenciação por nominalização.
2
Utilizaremos a expressão contexto para nos referir ao texto e contexto concomitantemente.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1964
As pistas de acesso para a construção do sentido estão, de alguma forma, sempre
ancoradas no contexto. Por esta razão, os sintagmas nominais irão exercer a função textualdiscursiva de guiar o leitor às expectativas e interesses de determinados grupos sociais com o
intuito de construir objetos de discurso direcionados para a construção de opiniões,
constituindo-se como um endereço cognitivo para ser retomado e (re)categorizado (KOCH,
2011). Então, referindo-se a essa questão, assim como Mondada (1994), Marcuschi (2003)
considera que a referenciação é uma perspectiva teórica a qual liga questões cognitivas e
envolve aspectos sobre categorização e construção de referentes tanto para se compreender o
funcionamento da língua como também a organização dos textos e seus discursos.
Diante dessa concepção de referenciação, encontramos a anáfora encapsuladora, que
de acordo com Conte (2003), o encapsulamento anafórico é constituído preferencialmente por
um pronome demonstrativo (PD) + um nome núcleo, que sinaliza a retomada de uma porção
textual anteriormente descrita no texto. Vale lembrar que esse sintagma nominal do
encapsulamento anafórico é preferencialmente composto por um pronome demonstrativo
devido ao seu intrínseco poder dêitico, ou seja, de apontar e sinalizar a porção textual
anaforizada e devido, também, a afinidade existente entre os termos avaliativos (nome-núcleo
encapsulador) e os pronomes demonstrativos (CONTE, 2003). Francis (2003) também postula
que os rótulos retrospectivos são, por vezes, precedidos de um dêitico específico como: este,
esse e aquele.
O sintagma nominal, na função cognitivo-discursiva de encapsulamento, empacota
uma grande ou pequena porção textual, anteriormente descrita, criando um novo referente; e
não retomando ou recategorizando um referente pontual/o mesmo referente. Por conseguinte,
ao identificar um sintagma nominal com função cognitivo-discursiva de encapsulamento
anafórico, é importante observar tanto o pronome demonstrativo quanto o nome núcleo, pois o
pronome demonstrativo vai apontar para a porção contextual anaforizada e o nome núcleo vai
funcionar, com características avaliativas, como um ponto de partida para dar sequência ao
tópico textual. Desta forma, o encapsulamento anafórico constitui-se como um processo
referencial que se configura como um importante fator de construção de sentidos e
inferências, justificando o seu estudo nos processo de referenciação e de textualização.
Aspectos metodológicos
Este trabalho faz uso de uma metodologia qualitativa e utiliza uma abordagem teórica
e interpretativa com base em fundamentos teóricos da Linguística Textual, para abordar
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1965
questões de referenciação; da Análise Crítica do Discurso, para discutir a formação de
ideologias. Contudo, este estudo também faz recorrência à quantificação, secundariamente,
para melhor organização interpretativa dos dados coletados. Para Neves (1996), “os métodos
qualitativos e quantitativos trazem como contribuição ao trabalho de pesquisa uma mistura de
procedimentos de cunho racional e intuitivo capazes de contribuir para a melhor compreensão
dos fenômenos” (NEVES, 1996, p.2). Nessa perspectiva, isso significa dizer que o material
analisado não se detém apenas aos dados estatísticos ou em maior quantidade, pois a análise
interpretativa busca enfatizar e relacionar, qualitativamente, os conceitos teóricos com os
práticos de modo que eles pareçam consistentes e plausíveis.
O corpus é formado por oito notícias3. Esses textos do gênero notícia foram
selecionados do jornal Folha de S. Paulo e coletados desde 07 de junho de 2013 até 08 de
julho de 2013, período em que o evento mobilizou várias publicações no domínio jornalístico
e provocou maior atenção na população brasileira. A propensão por esse veículo de
comunicação justifica-se pelo fato de ele ser considerado o jornal de maior tiragem e
circulação em todo o país 4. Após o levantamento e as quantificações, separamos os textos que
apresentaram retomadas anafóricas sobre o evento. Na categoria evento, iremos analisar como
o discurso jornalístico encapsula as informações contextuais sobre o evento, vejamos no
próximo subitem.
Manifestações no Brasil: analisando os encapsulamentos anafóricos sobre o evento
Sabemos que o sintagma nominal possui a função cognitivo-discursiva de encapsular
as informações anteriormente descritas e indicar construções ideológicas sobre o referente,
por meio de inferenciação e da seleção lexical do nome-núcleo do sintagma nominal. Desse
modo, compreendemos que o domínio jornalístico utiliza o encapsulamento anafórico, como
um processo de referenciação, para tentar conduzir o leitor a ver as Manifestações no Brasil
de 2013 por um determinado ângulo.
Para Mondada e Dubois (2003, p. 33), “uma categoria lexical impõe um ponto de
vista, um domínio semântico de referência a concorrer com outras categorias sugeridas,
produzindo sentido a partir do contraste com o precedente”. Desse modo, o sintagma
nominal não só possui a função cognitivo-discursiva de encapsular as informações da porção
3
Foram selecionadas oito notícias, no entanto, será exibida apenas uma análise devido a limitação de páginas.
Informação obtida pelo Índice Verificador de Circulação (IVC) de veículos impressos e digitais
(http://www.ivcbrasil.org.br), e da Associação Nacional de Jornais (ANJ).
4
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1966
textual anteriormente descritas, como também, possui a função de expressar um julgamento
valorativo de forma positiva ou negativa.
A maneira como o nome-núcleo do sintagma nominal é utilizado pelo domínio
jornalístico pode apresentar as manifestações de 2013 à sociedade como um acontecimento
bom ou ruim, pacífico ou violento, legítimo ou ilegítimo, assim, o domínio jornalístico tende
a criar versões dos acontecimentos socialmente situados. Essas construções discursivas e
também ideológicas levam muitos leitores a acreditarem no nome-núcleo escolhido para
compor o sintagma nominal, visto que ele empacota as informações da porção textual
anteriormente descritas e direciona os julgamentos valorativos.
Portanto, a maneira como o sentido do sintagma nominal está sendo tecido no texto
pode ser mais parecido com o que foi dito anteriormente ou pode se configurar em um modo
de compreensão que apresenta julgamento axiológico da porção textual antecedente (KOCH,
2004a, 2006; MELO, 2008). Por conseguinte, o sentido construído por meio do sintagma
nominal tende a ser visto como a forma “real” ou “verdadeira” das informações citadas
anteriormente.
Vejamos, a seguir, os exemplos (1) e (2) coletados no jornal Folha de S. Paulo no
período de 07 de junho de 2013 até 08 de julho de 2013 para fins de análise das ocorrências
de encapsulamento anafórico retomando as informações sobre a categoria evento.
Dilma cancela viagem ao Japão e marca reunião emergencial5
Segundo assessores, governo está ‘atônito’; ela deve decidir hoje pela manhã se faz ou não
pronunciamento
Ontem, a presidente manteve contato com governadores e prefeitos de cidades onde
houve protestos
A presidente Dilma Rousseff decidiu cancelar sua viagem ao Japão e a Salvador e convocou
reunião de emergência hoje pela manhã com sua equipe para avaliar a situação do país diante
da onda de manifestações.
Na reunião, a presidente vai fazer um balaço dos protestos e analisar se faz ou não um
pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV.
Dilma determinou que seus principais ministros estejam hoje em Brasília. Guido Mantega
(Fazenda), que viajou ontem à noite a São Paulo, também foi chamado e vai retornar pela
manhã para seu gabinete na capital do país.
5
Texto publicado em 21/06/2013, pelo Jornal Folha de S. Paulo.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1967
Assessores presidenciais disseram ontem reservadamente que o governo estava
“atônito” e “perplexo” com as manifestações em todo o país, mas monitorava a evolução
dos protestos para tomar medidas de emergência em caso de necessidade.
Segundo auxiliares, o governo estava também “preocupado” impacto das manifestações
sobre os investidores internacionais e na imagem do país no exterior.
Esse temor decorre em particular do fato de o país estar sediando a Copa das Confederações,
atraindo atenção da mídia internacional. Além disso, o governo enfrenta no mesmo momento
turbulências na área econômica, com a cotação do dólar em alta e o Banco Central sendo
obrigado a fazer intervenção no mercado cambial.
Dilma ficou reunida no Planalto até as 20h30, depois que os manifestantes já não ameaçavam
mais chegar ao local – eles concentravam seus ataques ao Itamaraty, seguindo depois para o
Palácio da Alvorada.
[...]
As porções textuais Ontem, a presidente manteve contato com governadores e
prefeitos de cidades onde houve protestos; Assessores presidenciais disseram ontem
reservadamente que o governo estava “atônito” e “perplexo” com as manifestações em
todo o país, mas monitorava a evolução dos protestos para tomar medidas de
emergência em caso de necessidade e Segundo auxiliares, o governo estava também
“preocupado” com o impacto das manifestações sobre os investidores internacionais e
na imagem do país no exterior são encapsuladas pelo nome-núcleo do sintagma nominal
como temor. O fato de o jornal usar os termos atônito e perplexo está sinalizando a escolha
do item lexical temor para a retomada anafórica. Essa escolha evidencia uma possibilidade
interpretativa para enfatizar como o governo se encontra diante do evento e acrescenta à
informação-suporte a ideia de espanto/medo que o governo tem em relação às manifestações
e, ainda, assinala posteriormente a possibilidade de ser criada uma imagem, provavelmente
negativa, do país por causa das manifestações.
Os itens lexicais atônito, perplexo e preocupado funcionam como uma âncora
referencial, a qual dá acesso ao sentido construído no sintagma nominal. Aqui temos uma
possibilidade interpretativa da porção anaforizada que se fundamenta numa elaboração
discursiva com base em relações de sentidos já construídos e mencionados anteriormente no
texto.
Isso significa dizer que os três termos servem de guias para caracterizar as
manifestações como um evento negativo e preocupante.
Embora a âncora referencial preocupado sinalize e auxilie uma suavização no sentido
do discurso jornalístico, logo depois, com o sintagma nominal esse temor, vemos como tal
discurso é modificado, pois além de indicar com mais ênfase uma caracterização de medo,
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1968
implica avaliação e um julgamento valorativo sobre o que foi retomado, apontando ideologias
do jornal frente ao evento.
O jornal categorizou o evento enfatizando um sentido de apreensão, ao encapsular as
informações-suporte precedentes como temor. Para o sentido não ser construído de forma
negativa, seria necessária a substituição do nome-núcleo do sintagma nominal por outros
nomes encapsuladores. Vejamos, abaixo, outro item lexical compondo o sintagma nominal no
encapsulamento anafórico, como cuidado, por exemplo. Desse modo, suavizaria o sentido do
discurso e a valoração negativa sobre o evento e seus desdobramentos.
Segundo auxiliares, o governo estava também “preocupado” com o impacto das
manifestações sobre os investidores internacionais e na imagem do país no exterior.
Esse cuidado
decorre em particular do fato de o país estar sediando a Copa das
Confederações, atraindo atenção da mídia internacional.
Como vemos, a escolha do sintagma nominal vai depender do modo como se quer que
sejam interpretados os enunciados encapsulados, resultando assim em uma possibilidade
interpretativa sobre o conteúdo anterior. A escolha do jornal pelo sintagma nominal esse
temor configura-se como um novo referente que reformula a informação velha e ativa um
julgamento valorativo na sequência da ação discursiva. Vemos isso em dois itens lexicais
posteriores ao encapsulamento: turbulências e ameaçavam.
A substituição do nome-núcleo por outro, no encapsulamento anafórico, além de poder
oferecer um julgamento valorativo da porção anaforizada, acarreta em uma mudança de
sentido que interfere na continuidade temática do texto. Então, cada nome-núcleo utilizado
para compor o sintagma nominal pode ocasionar compartilhamentos ideológicos socialmente
situados.
Considerações finais
Para as considerações finais, convém mostrar que os sintagmas nominais do evento
foram construídos na ação discursiva pelo jornal Folha de S. Paulo, encadeando informações
anteriormente descritas, disseminando avaliações sobre tal evento. Por conseguinte, os nomesnúcleos utilizados para compor os sintagmas nominais colocaram em foco argumentativo as
informações mencionadas anteriormente e, ainda, recaíram sobre o que estariam mais
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1969
próximas do que foi dito, bem como recaíram sobre um modo de compreensão que enfatiza
rotulações e (re)categorizações de forma axiológica e com função predicativa.
Portanto, o sintagma nominal tanto pode enfatizar um sentido de apreensão
encapsulando as porções de texto facilmente identificadas, quanto pode direcionar
particularidades e posicionamentos ideológicos, evidenciando os julgamentos valorativos e as
relações de poder que são descritos por meio de inferências e aspectos sociocognitivos.
Ressalta-se ainda, a partir desse estudo que realizamos, o indicativo de que mais
pesquisas devem ser realizados sobre esse processo referencial pois, de acordo com Mondada
(2007), a maneira como dizemos aos outros as coisas do mundo é decorrência de nossa
atuação linguística sobre o mundo.
Por conseguinte, compreendemos que o nome-núcleo do sintagma nominal no
encapsulamento anafórico se materializa linguisticamente como um lócus textual-discursivocognitivo para a marcação e a indicação de julgamentos valorativos e da pluralidade
interpretativa pertinente aos estudos sobre referenciação, contextos, frames e construção de
sentidos.
Referências
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1973
LETRAMENTO DIGITAL: PARA TC DE VZ EM KNDO NA
AULA DE PORTUGUÊS
[Voltar para Sumário]
Maria Solange de Lima Silva (FCU/UNIFUTURO)
Introdução
Para a realização de um projeto é necessário que se tenha um objetivo que atenda a
todos os envolvidos, que se expresse num produto final em função do qual, todos se
envolvam.
Do ponto de vista que a escola é parte integrante da sociedade e nela lidamos com
diversos sujeitos da aprendizagem, ela necessita de um olhar crítico no que concerne a
ausência da prática de leitura e escrita em seu cotidiano. A nossa, se ver diante de um dilema:
O que fazer para conduzir os alunos a fomentar o letramento digital em aulas de Língua
Portuguesa?
Na sociedade atual lidamos com uma geração de alunos que usufrui diariamente das
tecnologias digitais e seu contato com elas, é fornecido pela própria escola, uma vez que as
instituições vêm sendo equipadas com recursos tecnológicos para uso pedagógico, que
beneficia não apenas o professor, mas também o aluno.
Esse uso constante das tecnologias vem comprometendo o aprendizado de nossos
alunos quando o assunto é leitura e escrita. A rede social tem atraído a atenção discente de tal
forma que se torna limitado o tempo, que outrora era dedicado as tarefas escolares, em
especial a leitura. Acerca disso ressaltam os Parâmetros Curriculares Nacionais:
O domínio da língua oral e escrita é fundamental para a participação social e efetiva,
pois é por meio delas que o homem se comunica, tem acesso a informações, expressa
e defende pontos de vista, partilha ou constrói visões de mundo, produz
conhecimentos. (PCN, 2000, p.15)
Parece que o professor, na sociedade atual, está convivendo com um aliado que evolui
a cada dia e ao passo que este, também interfere no desempenho de nosso aluno em se
tratando de letramento digital em detrimento do aprendizado. Esse fator tem acarretado uma
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1974
relação até lógica entre o uso das tecnologias digitais e o aprendizado de Português na escola.
Essa semelhança tem sido fator de muitas discussões por parte dos professores, sobretudo os
que lidam com a área de linguagem.
Do ponto de vista do letramento leitura e escrita englobam aspectos diversos de
conhecimento na sociedade, de tal forma a deixar clara a visão dissociável da leitura, numa
perspectiva decodificadora e simplista a fazer uso extensivo da tecnologia da escrita. Nesse
contexto temos:
letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever, bem
como o resultado da ação de usar essas habilidades em práticas sociais, é o estado ou
condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se
apropriado da língua escrita e de ter-se inserido num mundo organizado
diferentemente: a cultura escrita. (BATISTA et al, 2007, p. 11)
A luz dessa perspectiva, as habilidades de ler e escrever devem ser postas em práticas
sociais do dia a dia do aluno em detrimento da realidade em que se estão inseridos. Desse
modo, considerar a ideia de letramento na sala de aula, perpassa os hábitos tecnológicos que
se configuram como uso extensivo da tecnologia da escrita.
Nesse sentido, convém a discussão desse fato ligando-o ao ensino de Língua
Portuguesa para evidenciar uma relação entre a possibilidade de utilização das tecnologias
digitais, por meio do uso das redes sociais, e o aprendizado de língua materna. Assim,
identificaremos até que ponto essa proposta poderá ou não, determinar um melhor
desempenho com a leitura do corpus em questão e, especialmente a escrita digital dos
mesmos.
O conhecimento de mundo que advêm de todas as interações em que nos inserimos é
abordado por Kleiman (2004):
...os usos da leitura estão ligados à situação; são determinados pelas histórias dos
participantes, pelas características da instituição em que se encontram pelo grau de
formalidade ou informalidade da situação, pelo objetivo da atividade de leitura,
deferindo segundo o grupo social. (KLEIMAN, 2004, p.13).
Para tanto, o fomento deste trabalho se dá mediante a concepção de leitura enquanto
prática social, ao passo que o gênero em foco é resultado de uma prática social do
ciberespaço, situada e construída em função das redes sociais se constituindo em diversos
contextos de situação de produção sem que haja a necessidade de um contato face a face.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1975
De acordo com Antunes (2003), “todo texto é a expressão de algum propósito
comunicativo”. Contudo, a autora afirma que “todo texto é expressão de uma atividade social.
Além de seus sentidos linguísticos reveste-se de uma relevância sociocomunicativa, pois está
sempre inserido, como parte constitutiva, em outras atividades do ser humano.” (ANTUNES,
2003, p. 31)
Dessa forma, podemos caracterizar o texto como um conjunto de palavra sem ação
linear, seja estas faladas ou escritas a um interlocutor. Essas propriedades presente em todas
as produções textuais são fatores essenciais para a construção de sentido no texto no instante
da leitura.
É no texto que está implicitamente as intenções do autor e as reflexões interpretativas
do leitor e, neste meio sociointeracional, o texto produzirá novo sentido na pessoa do leitor,
um processo consensual firmado pelo escrevente (emissor) e seu ouvinte (receptor) no
momento da leitura, ao qual o sentido tem a pretensão de se firmar produzindo novos efeitos.
Segundo Kleiman (1995) “podemos definir hoje o letramento como um conjunto de
práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em
contextos específicos, para objetivos específicos” (Kleiman, 1995, p.19).
Deste modo os textos materializam perante a necessidade de comunicação na sua
interação na e com a sociedade. Contudo, um indivíduo não pode ser considerado um letrado
digital sem o domínio do letramento alfabético, conforme Xavier (2008) ao dizer que:
“mudanças nos modos de ler e escrever códigos e sinais verbais e não verbais como imagens e
desenhos, se compararmos às formas de leitura e escrita feitos no livro, até porque o suporte
sobre o qual estão os textos digitais é a tela, também digital.” (XAVIER, 2008, p. 02).
Nesse sentido, este tópico visa promover um debate acerca do conhecimento destas
tecnologias digitais, bem como analisar determinados usuários. Iremos, a partir disto, realçar a
importância do Letramento Digital que, a princípio, envolve toda esta questão do manusear
artefatos digitais.
A saber, letrado digital é aquele que consegue ter domínio dos aspectos mecânicos da
escrita bem como satisfatório desempenho ao manusear equipamentos digitais. Nesse sentido,
é viável que a escola se comprometa em disseminar os conhecimentos que vão além daquela
concepção do decodificar ou alfabetizar, contribuindo para um aprendizado autônomo e útil
para a vida do aluno.
Contudo, tivemos como objetivo desenvolver o nível de leitura e escrita para com
alunos de uma turma de 8º ano do Ensino Fundamental da Escola Estadual João Tomás Neto
em Lagoa de Pedras/ RN, que diante das dificuldades apresentadas em seu cotidiano escolar,
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1976
utilizamo-nos dos recortes de postagens da(s) rede (s) social (is) para análises em sala de aula
a favor do letramento digital.
Metodologia
A metodologia deu-se mediante a leitura, análise e reflexão dos recortes de textos
(postagens nos bate-papos de facebook e whatsapp) selecionados para tal. O público alvo para
essa prática foi a turma do 8º ano “U” do Ensino Fundamental, ano letivo de 2014 da Escola
Estadual João Tomás Neto, Lagoa de Pedras/RN.
Foi produtiva a ideia de se trabalhar textos digitais provenientes das redes sociais na
sala de aula, em aulas de Língua Portuguesa, na qual os alunos demonstraram bastante
interesse a ponto de desejarem investigar os usos de internetês com ênfase no letramento
digital.
Resolvemos, então, dividir a turma em sete grupos de três pessoas para selecionar
falas extraídas no bate-papo do facebook e do whatsApp por serem estas as redes mais
utilizadas pelos alunos.
A partir dai todo processo metodológico foi desenvolvido nas aulas de Língua
Portuguesa partindo da leitura individual e coletiva dos textos digitais selecionados por cada
grupo. A quantidade de recortes de fala teclados em bate-papo foi sugerida pela professora de
Português, portanto, três textos digitais para cada grupo.
Foi através de aulas expositivas e oficinas de interpretação e de compreensão textual,
indispensáveis à produção e letramento deste gênero, que se desenvolveu o trabalho com
letramento em sala de aula. A cada encontro, viam-se inquietações por parte da turma acerca
da defasagem escrita presentes na cultura digital a qual se inserem.
As etapas de leitura, compreensão e interpretação dos recortes de postagens da(s) rede
(s) social (is) trouxe, também, a possibilidade de utilização das tecnologias digitais a favor do
aprendizado da leitura e da escrita o que favoreceu positivamente para o aprendizado com
letramento alfabético.
A cada grupo que a professora se dirigia e atendia ela observava junto aos alunos (na
análise dos textos digitais) forte presença de vícios de linguagem mediante erros de
semântica, erros de sintaxe e de estilística cometidos na escrita digital produzida em forma de
texto ao reproduzir a conversa via rede social.
A sequência de aulas nessa perspectiva durou três meses (julho a setembro/2014) e
todas eram conduzidas com orientação da professora de Língua Portuguesa. Houve em
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1977
seguida a apresentação de reescrita dos textos digitais por cada equipe em sala de aula. Desse
modo cada aluno passou a ter maior zelo pela escrita ao transpor a fala, em conversas e/ou
postagens nos aplicativos do facebook ou no WhatsApp.
Assim se deu:
ATIVIDADES
JULHO AGOSTO SETEMBRO
Aulas sobre figuras de linguagem, vícios X
de linguagem e funções da linguagem.
Aulas
sobre
tipos
de
linguagem
e
X
Aulas sobre análise sintática. Divisão dos
X
significação das palavras.
grupos de trabalho, seleção de recortes de
textos digitais coletados pelo facebook e
whatsApp.
Análise
de
leitura,
compreensão
e
X
interpretação dos textos selecionados.
Exposição e apresentação dos trabalhos
por equipe.
Resultados e Discussão
Atualmente a aprendizado tem sido encarado de forma bastante diferenciada, já que
alguns elementos como a ampliação do número de escolas, novas teorias de ensino e,
principalmente, o surgimento de novas tecnologias capazes de levar outros conhecimentos e
descobertas a qualquer parte do mundo em uma velocidade cada vez maior, têm gerado
necessidades de inovações tanto na forma de ensinar, quanto no modo de interação entre
professor e aluno.
Do ponto de vista das tecnologias digitais, vem a ser letrado (digitalmente) aquele que
na atualidade contempla o conhecimento de diversas mídias, a saber: os celulares
multifacetados, os aparelhos de som portadores de múltiplas funcionalidades, entre outros
incontáveis aparelhos que estão disponibilizando inúmeros recursos e, especialmente os
computadores, dispositivos geradores de oportunidades e facilidades distintas.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1978
Mas isso não tem sido suficiente para o campo do letramento escolar. O fato de ter
trabalhado em torno do letramento digital na escola, levou os alunos, usuários de bate-papo a
melhorar o nível de escrita que apresentam ao teclar na rede social motivando-os a obter um
olhar crítico perante as dificuldades apresentadas mediante as tecnologias digitais em seu dia
a dia.
Este trabalho teve como resultado uma melhoria na leitura e escrita dos alunos da
turma na qual foi desenvolvido o projeto tendo em vista as ideias que envolvem o Letramento,
a função da escola, portanto, deve ser a de alfabetizar pessoas, mas sem restringir-se a isto.
Deste modo, seu papel é mais que ensinar a mecânica, sendo fundamental o letramento dos
educandos.
Essa atividade, de fato, consolidou o trabalho de leitura e escrita como prática social,
pois, tanto os alunos envolvidos no trabalho conseguiram compreender a língua padrão quanto
passaram a utilizar corretamente a linguagem coloquial nos textos produzidos via conversas
no facebook e whatsApp.
Os alunos expandiram esse entendimento para os eventos de fala reproduzidos na e
pela rede social ao passo que deixaram de teclar com demasiada facilidade palavras
abreviadas, tão comuns na escrita digital: “Okay?”, “Kd vc?”, “Blz!”, “Vlw!”
Foi notado que a partir desse trabalho houve uma maior autonomia por parte dos
alunos no que diz respeito a leitura e escrita, pois passaram a se interessar pela leitura de
diversos gêneros textuais, assim como despertaram ao interesse pela produção e reflexão
crítica para o melhor uso da tecnologia digital relacionada a ideia que faziam acerca do
letramento digital, a fim de tornarem-se modelos de leitores e escritores proficientes.
Conclusão
Acreditamos, portanto, na influência do letramento como alvo preferido para a
formação de alunos leitores críticos, no estímulo e reflexão ao subsidiar as propostas
pedagógicas que regem o ensino de leitura e de escrita na escola para obtermos indivíduos
letrados, na perspectiva de conduzir o aluno a produzir texto, a exemplo dos digitais, que
circulam na sociedade em plena era digital, com o único e indispensável propósito, obtermos
modelos de leitores e escritores proficientes.
O presente trabalho nos proporcionou uma excelente oportunidade para motivar os
alunos a fomentar a leitura e escrita enquanto prática social além de contribuir de forma
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1979
extraordinária no âmbito das tecnologias digitais no processo de leitura e de escrita, enquanto
prática social e objeto de ensino e aprendizagem na sala de aula.
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Nas fronteiras da linguagem ǀ
1980
MAIS DO QUE “SENTIDO FIGURADO”: O EFEITO
METAFÓRICO SEGUNDO MICHEL PÊCHEUX
[Voltar para Sumário]
Mariana da Silva Gouveia (UFCG)
As primeiras considerações sobre efeito metafórico: AAD-69
Ao escrever a Análise Automática do Discurso, em 1969, Michel Pêcheux tinha como
intenção, de acordo com Paul Henry (2010), “fornecer às ciências sociais um instrumento
científico de que elas tinham necessidade, um instrumento que seria a contrapartida de uma
abertura teórica em seu campo” (p. 13). Para tanto, Pêcheux delimita quais são os
fundamentos epistemológicos da Análise do Discurso, e descreve como se dão os processos
discursivos.
No caso dessa descrição, o linguista se propõe a demonstrar como ocorrem os
processos de produção de discurso. É aqui que surge o conceito de efeito metafórico que, na
teoria pecheutiana, é totalmente distinto da definição utilizada, por exemplo, no campo da
Literatura. Aqui, efeito metafórico é entendido no aspecto de substituição ou paráfrase.
Vejamos como isso ocorre.
Para introduzir o conceito, Pêcheux apresenta um problema: é possível que, numa
língua, dois termos (x e y), pertencentes à mesma categoria gramatical, possam ser
substituídos um pelo outro, no mesmo discurso, sem que haja mudança na interpretação? Para
responder a essa pergunta, ele formula duas hipóteses em que a substituição é possível, sobre
as quais discorremos a seguir.
Na primeira delas, a substituição é possível, dependendo do contexto dado. Para
exemplificar, o linguista usa as palavras brilhante e notável, que podem substituir uma a outra
em sentenças como Esse matemático é brilhante/notável, mas não em A luz brilhante do farol
o cegou. Na segunda possibilidade, a substituição dos termos seria sempre possível,
independentemente do contexto em que ocorram: Pêcheux cita como exemplo, nesse tópico,
os termos refrear e reprimir. Então, ele chama a primeira situação de sinonímia contextual ou
local, e a segunda, de sinonímia não contextual.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1981
Pêcheux afirma que é impossível saber com certeza se uma substituição de um termo
por outro é sempre viável, já que, para isso acontecer, seria necessária uma investigação de
todos os contextos discursivos possíveis naquela língua (PÊCHEUX, 2010, p. 95). Por isso, a
sinonímia não contextual seria a exceção, e a local, a regra: vemos aqui uma clara influência
dos estudos de Ferdinand de Saussure, especialmente do conceito de valor apresentado pelo
suíço, e fundamental dentro de seu Curso de Linguística Geral. Assim como Saussure, Michel
Pêcheux acredita que, apesar dessa possibilidade de substituição aparentemente ilimitada, ela
nunca será perfeita, já que as palavras só têm valor próprio mediante oposição entre si
(SAUSSURE, apud PÊCHEUX, 2010, p. 96).
É precisamente após essa consideração que ele define efeito metafórico, dentro da AD.
Vejamos a citação: “Chamaremos efeito metafórico o fenômeno semântico produzido por uma
substituição contextual, para lembrar que esse 'deslizamento de sentido' entre x e y é
constitutivo do 'sentido' designado por x e y” (PÊCHEUX, 2010, p. 96). Ao comentar esse
trecho, em nota de rodapé, Orlandi destaca a grande importância dada por Pêcheux ao efeito
metafórico que, na visão deste, não é uma simples “figura de linguagem”, mas sim um
elemento constitutivo dos efeitos de sentido relacionados a um processo discursivo
(ORLANDI, apud PÊCHEUX, 2010, p. 157).
Para demonstrar como ocorre o efeito metafórico, Pêcheux apresenta um exemplo
fictício e, como ele mesmo classifica, impossível. Ele apresenta a possibilidade de mudanças
infinitas dentro de um mesmo discurso, de substituições para que ocorra o efeito metafórico,
de modo que a última palavra a entrar na cadeia de substituições é totalmente diferente da
primeira a ser substituída mas, no entanto, lhe é semanticamente equivalente. Com isso, ele
afirma que, através das variantes existentes entre um e outro termo, há uma conservação
invariante, pois o mesmo sistema de representações é repetido e reinscrito, de modo que isso
caracteriza o processo de produção do discurso (PÊCHEUX, 2010, p. 97). Assim sendo, não
se pode dizer que o efeito metafórico é apenas a substituição de um termo por outro dentro de
determinado discurso, mas que as sentenças onde ocorrem tais trocas estão ligadas entre si por
uma série de efeitos metafóricos.
Apesar de sua preocupação em apresentar esses conceitos de maneira clara e
detalhada, Michel Pêcheux não findaria com suas considerações sobre o efeito metafórico na
AAD-69. Diante de críticas, ele revisa a teoria e a aprofunda posteriormente. Vejamos a
seguir.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1982
1975: Rebatendo críticas e esclarecendo dúvidas
Em 1975, Michel Pêcheux se une a Catherine Fuchs para realizar uma revisão do que
fora apresentado na AAD-69, aprofundando e retificando conceitos que, na sua visão e na de
alguns críticos, não foram bem explicados na obra anterior.
Os autores esclarecem, em primeiro lugar, que a metáfora, ao ser primeira e
constitutiva (e não segunda e derivada), não é, por causa disso, um fenômeno que acompanha
o sentido, ou um fenômeno meramente de superfície, como se o sentido já estivesse
constituído, à parte da metáfora. Na verdade, o efeito metafórico demonstra que o sentido
existe como um objeto. Dessa forma, não se pode afirmar, por exemplo, que um termo x pode
ter um sentido nuclear e primeiro dentro de um determinado discurso e outro, que seja
periférico ou “figurado”. Para os autores, ambos são constitutivos do sentido desse termo e, de
acordo com as condições de aparição, ele “poderá ‘funcionar’ como ‘sentido próprio’ ou
‘sentido figurado’” (PÊCHEUX & FUCHS, 2010, p. 236). Por isso, se diz que os objetos de
sentido são colocados em movimento dentro do discurso, através da representação dada (op.
cit., p. 236).
Diante disso, Pêcheux e Fuchs apresentam considerações a respeito das
transformações que podem ocorrer dentro dos discursos, de acordo com os planos em que tais
mudanças ocorrem. A primeira delas é a transformação de unidades lexicais constantes, em
que uma sentença é transformada em outra pela inversão da ordem de seus componentes
lexicais – é, em geral, uma sinonímia construída através de nominalização. Já a segunda é
uma sinonímia orientada, na medida em que é impossível considerar como equivalentes os
termos substituídos. Mas é o terceiro tipo de transformações que é um diferencial na teoria
pecheutiana.
Os autores propõem a chamada substituição não orientada com mudanças lexicais.
Para eles, essa substituição é, na verdade, uma sinonímia como apagamento da orientação
(op. cit., p. 238). A menção do termo apagamento remete, imediatamente, aos esquecimentos
nº 1 e nº 2, que são, respectivamente, o interdiscurso e o intradiscurso.
Relembrando o que é dito por Pêcheux na AAD-69, o primeiro esquecimento, o
interdiscurso, diz respeito às relações de sentido em que é produzido, na medida em que um
discurso sempre remete a outro que lhe é anterior, e que é, na verdade, matéria-prima deste
(PÊCHEUX, 2010, 76). Por outro lado, o intradiscurso diz respeito à dessintagmatização
linguística, ou seja, à estrutura não linear característica da língua em que ocorrem as seleções
do que pode ou não ser dito. É aqui que são feitas as seleções dos sentidos dos termos
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1983
empregados, de modo que o “sentido nuclear” ou o “figurado” prevalecerão de acordo com o
contexto. No entanto, tanto para o inter quanto para o intradiscurso, esse processo de seleção e
de interferência de um discurso no outro é apagado para o sujeito, que não se dá conta dos
processos discursivos formadores do seu dizer – daí a ideia de esquecimento e,
consequentemente, de substituição não orientada. Considerando-se que o efeito metafórico é
um processo de materialização dos deslizamentos de sentido na superfície da língua, podemos
dizer, assim, que o efeito metafórico é, na verdade, constitutivo do intradiscurso.
Com isso, o problema do estudo da semântica ganha novas dimensões. Isso porque
não se pode mais pensar, nesses termos, em um sentido “contido” apenas nos termos de uma
sentença. Aqui, os processos discursivos e, em última instância, a ideologia mesma
determinam os sentidos e as seleções discursivas feitas pelos sujeitos. Com isso, a semântica
se vê em um impasse, pois, agora, os sentidos não estão mais restritos à língua, mas
pertencem à outra ordem, a do discurso. É com essa afirmação que Pêcheux e Fuchs fecham o
seu texto, apontando para as pesquisas futuras que, então, relacionariam a linguística e o
discurso na compreensão dos fenômenos semânticos. E é precisamente este trabalho que
Michel Pêcheux desenvolverá em sua obra mais importante, Semântica e Discurso.
Semântica e Discurso: o caráter material do sentido
Em Semântica e Discurso, Pêcheux retoma as discussões iniciadas na AAD-69, bem
como as retificações feitas em A propósito da Análise Automática do Discurso, juntamente
com Catherine Fuchs. Agora, o linguista francês aprofunda ainda mais a sua teoria, dando
mais ênfase à figura do sujeito e aos processos de substituição característicos do efeito
metafórico.
O autor enfatiza que é o sujeito quem é interpelado pelo discurso a dizer o que diz, e
que esse discurso é determinado pela ideologia. Desta forma, o caráter material do sentido,
como afirma Pêcheux, “consiste na sua dependência constitutiva daquilo que chamamos ‘o
todo complexo das formações ideológicas’” (PÊCHEUX, 2009, p. 146). Para explicar em que
consiste esse caráter material do sentido, o autor apresenta duas teses, sobre as quais
discorreremos a seguir.
A primeira delas afirma que não apenas as palavras possuem sentidos construídos de
acordo com discursos, mas que esses discursos, ou melhor, as posições ideológicas assumidas
de acordo com esses discursos, determinam os sentidos que as palavras assumirão. Isso quer
dizer que as palavras adquirem este ou aquele sentido de acordo com a posição assumida pelo
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1984
sujeito em seu discurso, de acordo com a formação discursiva que articula o processo de
produção (op. cit., p. 147). Esse processo é definido, por Pêcheux, como sendo o conjunto dos
sistemas de sinonímias, paráfrases e substituições existentes entre os elementos linguísticos.
Pode-se ver, aqui, tanto a maior clareza do papel do efeito metafórico na construção dos
discursos, como também o destaque dado à figura do sujeito dentro do cenário discursivo.
Essa tese também dirime uma das problemáticas apresentadas no trabalho anterior: a
da adequação ou não do discurso dentro das discussões sobre o sentido – em outras palavras,
se o sentido é constitutivo da língua ou do discurso. Para Pêcheux, as palavras não possuem
um sentido que lhes seja intrínseco: este é construído dentro de cada formação discursiva,
mediante a relação com outras palavras nesse mesmo contexto (op. cit., p. 148).
No entanto, todo esse processo é dissimulado pelo intradiscurso, que apaga, para o
sujeito, a relação das partes com o todo dominante das formações discursivas. Essa é a
segunda tese apresentada por Pêcheux. Esse todo nada mais é do que o interdiscurso. Tal
dissimulação, de acordo com o autor, nada mais é do que algo constitutivo do processo
discursivo. O sujeito nunca tem consciência das formações discursivas que estão por trás de
sua atividade linguística, e isso é dissimulado em seu dizer através de efeitos metafóricos. A
relação entre a tríade sujeito, inter e intradiscurso pode ser melhor esclarecida através da
seguinte citação:
Podemos agora precisar que a interpelação do indivíduo em sujeito se
constitui pelo “esquecimento” daquilo que o determina. Podemos agora
precisar que a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua
pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto
é, na qual ele é constituído como sujeito): essa identificação, fundadora da
unidade (imaginária) do sujeito, apoia-se no fato de que os elementos do
interdiscurso (sob sua dupla forma, descrita mais acima, enquanto “préconstruído” e “processo de sustentação”) que constituem, no discurso do
sujeito, os traços daquilo que o determina, são reinscritos no discurso do
próprio sujeito. (PÊCHEUX, 2009, p. 150)
Dito isso, o linguista francês discorre acerca de como o efeito metafórico atua nesse
cenário, havendo duas possibilidades para isso.
A primeira delas é a da equivalência. Se, na AAD-69, Pêcheux apresentou a
possibilidade de que dois termos x e y sejam substituídos, um pelo outro, sem que haja
qualquer alteração no sentido, aqui a explicação detalhada de como isso ocorre é apresentada.
A equivalência de ambos os termos não lhes é intrínseca, antes, é construída dentro da
formação discursiva em questão. O ponto de ancoragem do sentido não está nem na
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1985
linguagem, nem no mundo empírico, mas unicamente no discurso, tendo, portanto, uma base
ideológica.
A segunda forma de substituição é a da implicação, que equivale à segunda
possibilidade apresentada por Pêcheux na AAD-69, a de que não pode haver uma substituição
de termos num discurso sem que haja deslizamento dos sentidos. Essa é uma relação
assimétrica, na medida em que a substituição x/y não é a mesma que entre y/x. Mais uma vez,
as possibilidades de substituição são determinadas dentro da própria formação discursiva, em
um processo apagado para o sujeito do discurso.
A semântica discursiva: um nível de análise puramente linguística?
Até este ponto, o que percebemos é a tentativa, por parte de Michel Pêcheux, de não
apenas apresentar como ocorrem os efeitos metafóricos dentro dos discursos, mas também de
algo mais: de demonstrar até que ponto o estudo do sentido é parte da linguística ou da
filosofia. E, de fato, a Análise do Discurso caminha nessa linha tênue entre dois campos
distintos da ciência.
É isso que afirma o linguista francês na conclusão de seu livro. Se, por um lado, não
podemos pensar na Análise do Discurso aparte dos estudos da língua enquanto sistema e de
seus desdobramentos, também não podemos concebê-la longe dos aspectos ideológicos que
estão por trás de toda atividade linguística (op. cit., p. 218). Isso leva a algumas constatações.
A primeira delas é a de que, embora seja linguística, a semântica discursiva é parte da
ciência Linguística de forma distinta da sintaxe e da morfologia, por exemplo (op. cit., p.
219). Ao considerarmos que o sentido não está na língua, mas sim no discurso, caminhamos,
inevitavelmente, para muito além do recorte feito por Saussure no Curso de Linguística
Geral. Por isso, cremos que não seja possível considerar a semântica, tal como a apresenta
Pêcheux, como uma área exclusivamente da Linguística: da mesma forma, não podemos
considerar o efeito metafórico como sendo um fenômeno linguístico apenas, mas também
como um elemento de caráter filosófico da própria linguagem.
Em segundo lugar, esse avanço para além do sistema da língua não é novo, e acontece
de maneira muito mais fluida que o próprio estudo de base estruturalista saussureana (op. cit.,
p. 221-2). Pêcheux destaca que, primeiramente, as relações entre existência e uso da língua
eram bem anteriores a Saussure (embora tenham sido melhor sistematizadas por ele no que
tange a uma perspectiva linguística). Por outro lado, devido ao corte teórico escolhido quando
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1986
da criação da Linguística, Saussure acabou limitado, no sentido de que os estudos a ele
posteriores, e que seguissem a mesma linha por ele criada, acabariam por ficar em uma
fronteira aquém da que fora estabelecida, voltando-se completamente apenas para questões
estruturais. A AD, por sua vez, está inscrita do outro lado desse corte, com perspectivas muito
mais abertas para desenvolver os seus estudos – inclusive, no campo dos estudos sobre efeitos
metafóricos.
Com isso, podemos ver que os estudos sobre efeitos metafóricos, em AD, são muito
mais do que a análise de elementos semânticos linguísticos. O analista de discurso deve ter
em mente a necessidade de recorrer ao ideológico para interpretar os fenômenos linguísticos
que a ele se apresentam – fenômenos esses que não são apenas linguísticos, mas também
políticos e discursivos.
Referências
HENRY, Paul. Os fundamentos teóricos da “Análise Automática do Discurso”, de Michel
Pêcheux. In: GADET, Françoise; HAK, Tony. Por uma análise automática do discurso. 4.
ed. Campinas: Unicamp, 2010.
MAINGUENEAU, Dominique. Termos-chave da Análise do Discurso. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2006.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4. ed.
Campinas: Edunicamp, 2009.
______. Análise Automática do Discurso (AAD-69). In: GADET, Françoise; HAK, Tony.
Por uma análise automática do discurso. 4. ed. Campinas: Unicamp, 2010.
______; FUCHS, Catherine. A propósito da análise automática do discurso: atualização e
perspectivas (1975). In: GADET, Françoise; HAK, Tony. Por uma análise automática do
discurso. 4. ed. Campinas: Unicamp, 2010.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1987
AQUILINO RIBEIRO E GUIMARÃES ROSA: PROPOSTAS
LITERÁRIAS EM DIÁLOGO
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Marília Angélica Braga do Nascimento (IFRN/UFC)
Não é de hoje, nem de ontem, que se discute a questão em torno da literatura
regionalista. Muito já se tem dito a respeito do tema, mas compreendemos ser esta uma
questão que está constantemente se renovando e à qual novas perspectivas são lançadas
sempre que se lhe volta o olhar. Podemos dizer que ela recebe atenção de nossos escritores e
críticos desde que se começou a pensar a ideia de nação.
No século XIX, com a ascensão do Romantismo e de seu projeto nacionalista, a crítica
passa a dar atenção às manifestações de regionalismo na arte literária, uma vez que se buscava
valorizar o autêntico, o autóctone, o que se afastava dos modelos estrangeiros vindos da
Europa. Nesse intento, os escritores procuravam mostrar a exuberância da flora e da fauna
brasileiras, os costumes e tradições populares a fim de exaltar os elementos nacionais. Em
consonância com esse pensamento, buscaram também encontrar uma identidade para o
homem tupiniquim, ora exaltando a figura do índio, ora a do sertanejo ou de outro elemento
que pudesse representar o nacional, distanciando-se do estrangeiro.
Conforme assinala Janaína Amado (1995), boa parte da literatura regionalista
privilegia o sertão como locus, ou seja, elegendo-o como espaço para o cenário das obras ou
fazendo referência direta a ele. A pesquisadora esclarece que o termo “sertão” ou “certão” era
empregado pelos portugueses, possivelmente desde o século XII e certamente até o XIV, para
denominar áreas distantes do centro lisboeta. Desse modo, a palavra passou a ser utilizada
para se referir a espaços situados a longas distâncias, quase ou de todo desconhecidos. No
século XIX, ela é utilizada ainda com uma conotação negativa, para designar territórios
afastados do litoral, caracterizados por uma natureza bravia e habitados por indivíduos ainda
não civilizados. Por conseguinte, ao longo da colonização, “sertão” passou a ser visto como
oposição a “litoral”, constituindo-se, ambos, como categorias que se punham ao mesmo
tempo numa relação de contraste e de complementaridade. (AMADO, 1995, p. 146-148).
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1988
Em contrapartida, Albertina Vicentini (2007, p. 187) lembra-nos o fato de que os
conceitos de região, literatura regionalista e sertão são “fluidos, escorregadios, dependentes de
contextos diversos”. Sertão, por exemplo, é uma categoria específica para determinado
conjunto de obras, mas o regionalismo não se limita a tratar dessa temática. É inegável,
porém, que os temas e conteúdos com os quais a literatura regionalista tem trabalhado são
localizados especialmente no mundo rural.
Assimilando essas visões e refletindo-as em suas obras, escritores brasileiros, a partir
do final do século XIX, começam a pensar o sertão também como categoria fundamental para
o entendimento de “nação”. (AMADO, 1995, p. 150). Assim, os românticos tornaram-se
também regionalistas, na medida em que empreenderam projetos de valorização do elemento
linguístico, dos costumes e do povo. Nesse momento, alguns buscam, com maior veemência,
uma unidade territorial, como ocorre com José de Alencar, que pretendia dedicar um livro a
cada região do país; outros trabalham uma única região, a exemplo de Franklin Távora, com o
seu projeto “A Literatura do Norte”, e de Simões Lopes Neto conferindo destaque ao Sul em
seus textos. Nesse sentido, exalta-se um aspecto considerado por Vicentini (2007, p. 188)
como elemento-chave para a literatura regionalista: a questão da identidade. Assim, para os
regionalistas, a identidade nacional configura-se com mais propriedade a partir dos elementos
genuínos de determinada região, capazes de fazer frente ao estrangeiro e sobrepujando-se a
ele.
Entretanto, a tônica regionalista ganha maior notoriedade a partir da geração de 30,
que se impõe com seu vigor realista de forte denúncia social, trazendo à tona obras que
focalizam as mazelas causadas pelas secas no Nordeste e pela desigualdade econômica que
desvela o abismo entre abastados e desvalidos. Nelas, a natureza é colocada não mais com a
beleza atraente de outrora, mas como ambiente ingrato e hostil. Nessa linha, encerram-se
produções de escritores como Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo e Raquel de Queiroz, por
exemplo.
Por outro lado, avançando um pouco, na década de 40, surge uma proposta
diferenciada, que tem no mineiro João Guimarães Rosa seu representante mais significativo,
mostrando uma natureza exuberante e realizando um trabalho revolucionário com a
linguagem. Essas mudanças acarretam modificação na própria noção de regionalismo, que
desloca a tônica do local, transcendendo-o, ganhando um alcance maior, na medida em que
procura transmitir um conteúdo humano universal, trabalhando com sentimentos comuns a
todos os homens. Exemplo disso são as reflexões de Riobaldo no Grande Sertão: Veredas
(1956).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1989
Mas não é o romance rosiano que desejamos colocar em foco aqui. O texto que
abordaremos mais adiante é a novela “A hora e vez de Augusto Matraga”, publicada,
juntamente com outras narrativas, em Sagarana (1946). Antes disso, porém, queremos falar,
de modo geral, da presença do regionalismo em Portugal e, de modo mais específico, de um
de seus representantes mais vigorosos.
Conforme salienta Ana Luisa Cordeiro (2009, p. 16), os espaços regionais surgiram na
literatura portuguesa desde cedo, ainda que não tenham sido o foco imediato do texto literário
ou que os autores não tenham tido a intenção de colocá-los em relevo nas obras. É inegável,
porém, que esses espaços compareceram em Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Almeida
Garrett, Júlio Dinis, Eça de Queirós, Teixeira de Pascoaes, entre vários outros.
Segundo Cordeiro (2009, p. 18), as discussões em torno de uma orientação
regionalista em Portugal começaram a ganhar força na segunda década do século passado,
com a influência do Integralismo Lusitano, que, entre outros ideais, defendia o regionalismo
literário, incentivando a divulgação de populações, paisagens e tradições regionais. Desse
modo, no ano de 1920, o Diário de Notícias organiza um inquérito, espécie de questionário
dirigido a escritores portugueses, acerca do panorama literário daquele momento, lançando
ênfase sobre o movimento regionalista. Assim,
Entre múltiplas abordagens e no cruzamento de diversos princípios orientadores
estava criada a tendência literária regionalista, revolvendo ambientes e tipos
humanos característicos das áreas regionais, fomentando o estudo de usos e
costumes, da dialectologia, do cancioneiro e do adagiário. (CORDEIRO, 2009, p.
18).
Na terra de Camões, em meados do século XX, em consonância com a proposta da
Geração de 30 brasileira, surgem manifestações inclinadas para uma reflexão sobre a
conjuntura social e política do país, que vivia o contexto sombrio do regime ditatorial. É o
advento do chamado Neorrealismo, com produções empenhadas em denunciar, de forma mais
ou menos explícita, a dura realidade das camadas desfavorecidas e da opressão do governo
salazarista. Gaibéus (1940), de Alves Redol, que traz à cena a labuta árdua dos trabalhadores
rurais do Ribatejo, é considerada como obra inauguradora dessa tendência. Mas, antecedendoa, temos a publicação de A Selva (1930), de Ferreira de Castro, romance que gira em torno do
drama dos seringueiros da Amazônia, mão-de-obra explorada até a exaustão e afogada em
dívidas impagáveis, tendo, não raro, a vida sacrificada perante a crueldade do patrão.
Contemporâneo a estes, Miguel Torga, embora alinhado inicialmente com o grupo da
Presença, assume, em seguida, uma postura de independência estética, produzindo textos de
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1990
feição regional aliada a um forte teor humanista, numa proposta que reforça as raízes telúricas
e, ao mesmo tempo, sugere reflexões ontológicas.
Além desses, podemos citar, entre outros, os nomes de Fernando Namora e Vergílio
Ferreira, que não deixaram de abordar aspectos sociais e regionais em suas obras, embora
tenham enveredado, posteriormente, por um caminho mais singular, desembocando numa
vertente existencialista.
Nesse panorama, vamos encontrar um autor que tratou também de questões regionais,
examinando o mundo rural lusitano, especialmente as aldeias da Beira Alta. A serra
montanhosa portuguesa é o espaço de predileção para as narrativas regionalistas de Aquilino
Ribeiro, cuja produção localiza-se, em sua maior parte, na primeira metade do século XX. O
escritor foi um dos participantes do inquérito organizado pelo Diário de Notícias, em 1920,
mencionado anteriormente.
Natural da Beira Alta, Aquilino Ribeiro sumariza algumas das características dessa
região nos seguintes termos: “brutalidade e melancolia, rijeza e desespero, perspectivas
abstratas e um sentido da vida muito concreto – eis a Beira Alta” (MENDES, 1960, p. 55).
Esse cenário brutal, rijo e concreto ao qual o escritor se refere é uma constante em sua ficção.
O torrão natal delineia-se em várias de suas obras, mormente naquelas que lhe conferiram a
designação de regionalista, fazendo pulsar, em toda a sua vitalidade, a linguagem, os
costumes, os tipos humanos beirões.
Terras do Demo (1919), segundo romance de Aquilino, foi considerado, conforme
pontua Cordeiro (2009, p. 18), “a primeira obra regionalista na literatura portuguesa”. O
projeto estético de seu criador tinha uma conotação social, uma vez que ele se considerava um
“interventor no mundo”, não um simples observador e receptor dos estímulos externos.
Aquilino buscou contribuir para um renascimento literário que voltasse “às origens, aos
clássicos e ao povo”, conforme declara na carta-prefácio da obra supracitada.
Adotando uma postura independente, o escritor não se filia a qualquer das correntes
literárias suas contemporâneas, obedecendo a um ideal de originalidade referido em vários
textos. Afirma, por exemplo, no prefácio à segunda edição de Volfrâmio (1944):
No entanto, ninguém tem mais horror a fórmulas do que eu. A fórmulas, cânones de
escolas e tiranias da moda. Fórmulas em arte equivalem a muletas e eu não só não
uso bengala como entre dois caminhos escolho sempre o menos trilhado e aquele por
onde menos andei. (RIBEIRO, 1985, p. 8).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1991
Não obstante as hesitações em torno do rótulo de regionalista que a crítica lhe
impunha e o consequente desejo de se desvencilhar dele, o autor de O Malhadinhas (1958)
não conseguiu abandonar os aspectos telúricos que moldaram seu espírito, conferindo a uma
parte significativa de seus escritos uma dimensão regional que o coloca em destaque na
literatura portuguesa. Assim, Aquilino deve, sim, ser inserido “no leque dos escritores que
deram estreita atenção a realidades regionais” (ALMEIDA, 1993, p. 25).
No que se refere a Guimarães Rosa, a crítica traça relações com o regionalismo desde
a publicação de Sagarana, em 1946. Antonio Candido (2002, p. 183), naquele mesmo ano,
em texto escrito para o Diário de São Paulo, afirma que o êxito da obra de estreia do escritor
mineiro prendia-se “às relações do público ledor com o problema do regionalismo e do
nacionalismo literário.” O crítico foi um dos que chamaram a atenção para a singularidade do
regionalismo trabalhado por Rosa, afirmando que
Sagarana não vale apenas na medida em que nos traz um certo sabor regional, mas
na medida em que constrói um certo sabor regional, isto é, em que transcende a
região. [...] não é um livro regional como os outros, porque não existe região igual à
sua, criada livremente pelo autor com elementos caçados analiticamente e, depois,
sintetizados na economia belíssima de suas histórias. (CANDIDO, 2002, p. 184,
grifos do autor).
Candido acentua a autenticidade e a longevidade do regionalismo construído por
Guimarães Rosa, uma vez que, em seu ponto de vista, a obra em questão desdenha
soberanamente das convenções literárias. Para ele, “Sagarana nasceu universal pelo alcance e
pela fatura. A língua parece finalmente ter atingido o ideal da expressão literária regionalista.
Densa, vigorosa, foi talhada no veio da linguagem popular e disciplinada dentro das tradições
clássicas.” (CANDIDO, 2002, p. 186). O crítico interessa-se, portanto, pela questão do mundo
representado por Rosa, chamando a atenção para o fato de que o escritor não se preocupa em
esconder que está fazendo ficção, a região por ele apresentada é uma construção na qual um
dos elementos nodais é a linguagem.
O fato é que o livro de estreia do autor de Corpo de Baile (1956) veio, de certa forma,
desnortear a crítica de então, que ficou atordoada com o estilo peculiar observado nas
narrativas enfeixadas no volume. Sérgio Milliet (1981) deixa clara sua perplexidade diante da
obra. Segundo ele, “À primeira leitura passamos por um certo deslumbramento: a língua é
uma riqueza vocabular estupenda, a sintaxe o mais das vezes um cipoal de preciosismo.”
(MILLIET, 1981, p. 74). O crítico mostra-se impressionado pela linguagem e pelo estilo
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1992
rosianos, mas aponta um demasiado rebuscamento na forma, um excesso de originalidade
que, a seu ver, conduziria a um hermetismo.
Álvaro Lins (1963), por seu turno, faz coro com os demais ao considerar Guimarães
Rosa como um escritor autêntico, e Sagarana como uma grande obra, “intensamente sentida e
longamente trabalhada”. Para ele, esta vem a ser “o retrato físico, psicológico e sociológico de
uma região do interior de Minas Gerais, através de histórias de personagens, costumes e
paisagens, vistos ou recriados sob a forma da arte de ficção.” (LINS, 1963, p. 259) O
estudioso observa que o regionalismo de Rosa é transfigurador, pois, através de uma
imaginação candente, o escritor confere vida interior, inclusive, aos bichos retratados em sua
obra.
A respeito de sua inclusão entre os escritores regionalistas, na conversa que teve com
Günter Lorenz, em 1965, Guimarães Rosa salienta o fato de que, entre os brasileiros, o
regionalismo tem um significado diferente do europeu. Ele afirma:
Naturalmente não se deve supor que quase toda a literatura brasileira esteja
orientada para o “regionalismo”, ou seja, para o sertão ou para a Bahia. Portanto,
estou plenamente de acordo, quando você me situa como representante da literatura
regionalista [...] Veja, sou regionalista porque o pequeno mundo do sertão... [...] este
mundo original e cheio de contrastes, é para mim o símbolo, diria mesmo o modelo
de meu universo. (LORENZ, 1991, p. 66).
O autor de Sagarana vê-se como um legítimo “homem do sertão”, um verdadeiro
sertanejo que, ao escrever, se sente transportado para o mundo onde nasceu e cresceu, no qual
teve a oportunidade de ouvir inúmeras histórias e de conviver com os bichos e as plantas
celebrados em seus textos, a ponto de afirmar: “é impossível separar minha biografia de
minha obra.” (LORENZ, 1991, p. 66).
Feitas essas considerações sobre a questão regionalista, observadas algumas opiniões
críticas sobre as obras dos escritores que intentamos colocar em diálogo e pontuados os
posicionamentos de ambos, queremos nos deter agora nos textos literários propostos para
discussão.
Como ocorre com Guimarães Rosa, o cenário regional apresenta-se na ficção de
Aquilino Ribeiro desde a obra de estreia, o livro de contos Jardim das tormentas (1913), e
permanece ao decorrer de produções posteriores. Mina de Diamantes (1958) é o texto que
trazemos à baila. Esta narrativa tem em Diamantino Dores, conhecido familiarmente como
Dedê, o seu protagonista. Dedê é um emigrante português que vive no Rio de Janeiro, mas,
por desavenças amorosas, é impelido a ir visitar os pais em Chambão das Maias, seu torrão
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1993
natal na pátria portuguesa. Apesar de ser um simples funcionário público da prefeitura
carioca, Dedê finge-se rico em terras lusitanas, distribuindo, com alguma prodigalidade,
dinheiro a familiares e mendigos, e aproveitando para desfrutar as mulheres da terra.
Observando os elementos que podem configurar a narrativa como texto de feição
regionalista, podemos destacar, entre outros, além da questão linguística, a descrição do meio,
que nos põe diante de um cenário rústico; as tradições e crendices envoltas em religiosidade
popular e misticismo; a caracterização singular do homem beirão; as descrições realistas do
panorama social da região. Começando pela ambientação, o espaço da serra, deparamo-nos
com a descrição abaixo:
Abrolhavam as plantas, uma lágrima aqui, outra além nos pessegueiros e pereiras, e
gomos dum terníssimo verde cobriam giestas e urzes como uma revoada de insectos.
Porém, salvo os pinheiros pelos morros, feros e tesos com as suas rocadas negras, as
árvores conservavam o quebranto hibernal. Nas vertentes das colinas luzia uma erva
muito tenra e lucilante, a pedir seitoura. [...] As mesmas bolas negras e brancas, que
eram os rebanhos, retoiçavam nas faldas dos montes e nos restolhos. Tais eram as
inalteráveis vinhetas do caminho na serra dos Coronhais. (RIBEIRO, 1958, p. 244).
Nestes termos são caracterizadas flora e fauna da serra do Coronhais, pintada, como
podemos ver, de forma um tanto pitoresca, desvelando uma exuberância expressa na precisão
das referências às espécies vegetais da região e na imagem utilizada para aludir aos animais.
Não se pode ignorar aqui um patente entusiasmo de exaltação do meio.
Guardadas as devidas proporções, a forma utilizada por Aquilino para desenhar o
cenário português em foco pode ser posta em paralelo com aquela usada por Guimarães Rosa
para descrever o sertão de Minas Gerais por ele ficcionalizado. Em certo trecho de “A hora e
vez de Augusto Matraga”, depois que o protagonista decide deixar o povoado do Tombador e
seguir caminho para encontrar sua “hora”, o narrador faz a seguinte descrição:
Parou, para espiar um buraco de tatu, escavado no barranco; para descascar um
ananás selvagem, de ouro mouro, com cheiro de presépio; para tirar mel da caixa
comprida da abelha borá; para rezar perto de um pau-d’arco florido e de um solene
pau-d’óleo, que ambos conservavam, muito de fresco, os sinais da mão de Deus. E,
uma vez, teve de se escapar, depressa, para a meia-encosta, e ficou a contemplar, do
alto, o caminho, belo como um rio, reboante ao tropel de uma boiada de duas mil
cabeças, que rolava para o Itacambira, com a vaqueirama encourada – piquete de
cinco na testa, em cada talão sete ou oito, e, atrás, todo um esquadrão de ulanos
morenos, cantando cantigas do alto sertão. (ROSA, 1984, p. 376).
Notamos aqui, igualmente, um entusiasmo na caracterização do cenário por onde passa
o andarilho Nhô Augusto. São apresentados também alguns tipos de animais e de vegetação,
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1994
comparecendo, inclusive, figuras muito caras ao autor e recorrentes em seus textos: os
vaqueiros e os bois, típicos do sertão.
Quanto ao registro de tradições populares ligadas à religiosidade e ao misticismo,
temos exemplos em ambas as narrativas em questão. Na de Aquilino, o mais patente encontrase na passagem que descreve uma espécie de excursão feita ao Bom Jesus, local conhecido
como “Roma lusitana”. Na ocasião, percebemos a devoção religiosa das mulheres, que
procuram externar sua fé por meio de um ritual que exige o sacrifício físico de subir longas
escadarias em adoração às figuras divinas:
Largaram para o Bom Jesus, em digressão entre místicas e ramboieira, com
Diamantino ao volante. Júlia Augusta sempre sonhara ver-se um dia a subir aquele
escadório de maravilhas, chorando os tratos nefandos que Nosso Senhor Jesus Cristo
padeceu para nos remir e salvar [...] (AQUILINO, 1958, p. 286).
No texto de Rosa, este aspecto transparece inicialmente na figura do casal que cuida de
Nhô Augusto. O preto e a preta funcionam como entes, espécie de caboclos, numa
religiosidade popular, ou como anjos tutelares que, com a ajuda de um padre, aconselham o
seu protegido a cultivar a fé, a rezar e fazer penitência, ao que ele obedece:
Entregue para Deus e faça penitência. Sua vida foi entortada no verde, mas não fique
triste, de modo nenhum, porque a tristeza é aboio de chamar o demônio, e o Reino
do Céu, que é o que vale, ninguém tira de sua algibeira, desde que você esteja com a
graça de Deus, que ele não regateia a nenhum coração contrito. [...] – Reze e
trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina de sol quente, que ás
vezes custa muito a passar, mas sempre passa. (ROSA, 1984, p. 356).
A título de exemplificação do modo como é caracterizado o aldeão na narrativa
aquiliniana, podemos destacar a personagem Aleixo, compadre de Dedê, que nos é
apresentada em sua simplicidade e rusticidade de aparência:
Acudiu o compadre Aleixo, truculento, beduíno, barba de um dia renascendo de
negros e grossos tocos, olho cúpido e marau, matraqueando o tamanco como o riso,
uma grossa cambalheira de prata a prender o cebolão do relógio na bolsinha de lã,
borlas de cor à mostra, tudo proclamando o pilorda mediano, nem lázaro nem farto,
nem pobre nem rico. (RIBEIRO, 1958, p. 239).
A despeito do ar truculento aludido pelo narrador, Aleixo é figura que mostra o
costume prazenteiro do homem beirão de tratar com hospitalidade amigos e parentes. Assim
ele procede com Dedê, acolhendo-o em sua casa e fazendo de tudo para proporcionar-lhe o
máximo de conforto, embora, no ponto de vista deste, seja tudo muito precário e primitivo.
Essa postura hospitaleira e acolhedora compõe também Nhô Augusto, depois que se operou
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1995
em seu caráter significativa transformação, o herói sertanejo de Guimarães Rosa, que recebe
alegremente seu Joãozinho Bem-Bem e os integrantes de seu bando:
- A pois, se o senhor não se acanha de entrar em casa de pobre, eu lhe convido para
passar mal e se arranchar comigo, enquanto for o tempo de querer ficar por aqui...E
de armar a sua rede debaixo do meu telhado, que vai me dar muita satisfação. [...] E
os seus convidados achavam imensa graça naquele homem, que se atarefava em
servi-los, cheio de atenções, quase de carinhos, com cujo motivo eles não topavam
atinar. (ROSA, 1984, p. 366).
No trecho destacado, observa-se o costume acima aludido, comum ao homem do
interior, seja ele pertencente à aldeia portuguesa ou ao sertão brasileiro, de acolher seus
visitantes ou convidados, prestando-lhes toda a cortesia possível.
Outro aspecto observado em ambas as obras é a maneira lúcida como se descreve a
realidade social das regiões retratadas. A descrição realista não se limita a algumas figuras em
particular, estende-se ao conjunto das personagens anônimas que formam os figurantes das
narrativas e aos seus hábitos cotidianos. Estes são revelados, por exemplo, no texto de
Aquilino, numa prosaica visita à botica para comprar artigos medicinais:
Entrava gente, saía gente a aviar receitas de quotiliquê, pomada para as feridas, dois
vinténs de basilicão, aquele vidrinho de iodo, santonina para as bichas, óleo de
mamona para o senhor vigário que não obra há oito dias, pó para as pulgas, que esta
farmácia era predilecta da arraia-miúda, o boticário as mais das vezes receitando e
receitando melhor que o doutor. (RIBEIRO, 1958, p. 318).
O tom por vezes risível ou bem-humorado, presente no excerto acima e em outros, não
permite esconder o panorama social de miséria em que vivem os habitantes da região,
atingidos por pobreza extrema e por doenças diversas:
Sobre a tarde, quando iam para largar, estava à porta do hotel uma coluna cerrada de
pedintes e necessitados. Os pedintes traziam sacola, mas os necessitados eram
pobres mulheres vestidas de preto, ainda algumas com um lume inextinto de
formosura na face macilenta, e velhos esqueléticos, gotosos, bronquíticos, comidos
pela tuberculose, envoltos em velhos gabinardos. Diamantino mandou distribuir um
conto de réis por aqueles náufragos da vida. O pior foi que em todos os burgos se
repetia o painel doloroso. (RIBEIRO, 1958, p. 334).
O quadro descrito aproxima-se, assim, dos cenários humanos pintados ora por
escritores da segunda metade do século XIX, voltados para uma visão que buscava uma
representação fiel da realidade vivida pelas camadas desfavorecidas da sociedade, ora por
outros ficcionistas já do século XX, contemporâneos do autor, inclinados para uma escrita
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1996
mais documental e politizada, como forma de registrar a vida crua e árdua de extratos
igualmente desvalidos da população.
Em Guimarães Rosa, embora o foco não esteja em um desejo declarado de denunciar
algum tipo de injustiça social, o texto não esconde as diferenças de classes, a existência de
desmandos, de pobreza, de doenças, entre outros tipos de mazelas:
Mas o preto que morava na boca do brejo, quando calculou que os outros já teriam
ido embora, saiu do seu esconso, entre as tabuas, e subiu aos degraus de mato do pé
do barranco. [...] chamou a preta, mulher do preto que morava na boca do brejo, e
juntos carregaram Nhô Augusto para o casebre dos dois, que era um cofo de barro
seco, sob um tufo de capim podre, mal erguido e mal avistado, no meio das árvores,
como um ninho de maranhões. (ROSA, 1984, p. 353).
Descreve-se acima a humilíssima morada do casal de velhos que cuidou de Nhô
Augusto até sua recuperação total. A pobreza do local explicita-se na caracterização do
ambiente. A habitação lembra-nos mais uma espécie de toca, apropriada para animais, não
para pessoas. A “choça de chão de terra”, como a denomina o narrador, mais adiante,
contrasta com as ricas fazendas, posses de outras personagens, como o Major Consilva, e do
próprio Nhô Augusto antes da desgraça que lhe sobreveio. O enredo menciona também
“maleita” e “bexiga”, doenças que estariam atacando a região. Assim, embora o estilo rosiano
permeie de poesia o texto, não se encobre por completo uma realidade social contraditória.
Enquanto a ficção de Guimarães Rosa celebra o sertão mineiro, que ganha amplitude
universal, explorando a riqueza imagística da paisagem, dos costumes, do imaginário e da
linguagem do homem sertanejo, a produção de Aquilino Ribeiro celebra a paisagem serrana
do ambiente beirão e a figura do aldeão com seus costumes e sua linguagem também
peculiares. Se o primeiro trabalha ficcionalmente o sertanejo, seja o vaqueiro, o jagunço, o
fazendeiro ou algum outro tipo de sua galeria, em sua singeleza ou profundidade de alma, o
segundo, por sua vez, retrata o beirão, em seu primitivismo de instintos, em sua simplicidade
de vida e em sua luta cotidiana pela sobrevivência perante situações adversas.
Diante das considerações e dos comentários propostos, pensamos que é possível
divisar, pelo menos em parte, haja vista o recorte do corpus, as perspectivas estético-literárias
dos dois ficcionistas postos em apreciação. Procuramos aqui transmitir uma ideia, ainda que
parcial, sobre o modo como se configurou o regionalismo na obra de dois autores renomados
da literatura de língua portuguesa, identificando-o, de forma mais específica, nas duas novelas
escolhidas para análise.
Acreditamos que os aspectos examinados mostram a plausibilidade da comparação
entre as propostas dos dois escritores, revelando convergências e também divergências no
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1997
estilo, nos cenários trabalhados, nas realidades exploradas por um e por outro. Além dos
pontos levantados e exemplificados, merece destaque o trabalho linguístico realizado por
ambos. Aquilino e Rosa exploraram de forma peculiar e criativa as potencialidades da língua,
valorizando-a ao máximo, inserindo em suas obras, por exemplo, uma variedade de ditados e
provérbios populares, arcaísmos, bem como construções sintáticas e semânticas inusitadas,
que conferem maior vivacidade ao discurso.
Por causa do cuidado de elaboração linguística, de estilização da linguagem, presente
em ambas as produções, seja pelo recrutamento vocabular, seja pela abundância de
construções regionais e de sabor popular, o senso comum tende a afirmar que os textos dos
dois escritores impõem dificuldades de leitura. Todavia, a despeito do desconhecimento de
determinados termos utilizados, suas obras são perfeitamente legíveis. E, se o leitor teve
algum convívio com o ambiente e com os habitantes de regiões interioranas, muitas vezes se
surpreende, encontrando vocábulos, expressões, ditados ou fábulas folclóricas que fazem
parte de um repertório verbal e imaginário que estava escondido em sua memória e de repente
vem à tona. Portanto, por todos os aspectos aqui apontados e, sem dúvida, por muitos outros,
Aquilino Ribeiro e Guimarães Rosa têm alcançado longevidade e interesse de estudiosos
ainda hoje, que buscam lançar luz sobre sua produção e salientar seu valor artístico.
Referências
ALMEIDA, Henrique. Aquilino Ribeiro e a crítica: ensaio sobre a obra aquiliniana e sua
recepção crítica. Porto: Edições Asa, 1993.
AMADO, Janaína. Região, sertão, nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 15,
1995, p. 145-151.
CANDIDO, Antonio. Notas de crítica literária: Sagarana. In: Textos de Intervenção. São
Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002, p. 183-189.
CORDEIRO, Ana Luísa Miranda dos Santos Costa. Do Regionalismo ao Universalismo: uma
leitura de Andam Faunos pelos Bosques de Aquilino Ribeiro. Dissertação. Mestrado em
Estudos Port. Multidisciplinares, 2009.
LINS, Álvaro. Sagas de Minas Gerais. In: Ensaios e estudos (1964-1960). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1963, p. 258-264.
LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo (Org.).
Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 62-97.
MENDES, Manuel (Coord.). Aquilino Ribeiro. Coleção A Obra e o Homem. Lisboa: Arcádia,
1960.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
1998
MILLIET, Sérgio. Diário crítico de Sérgio Milliet. São Paulo: Martins, 1981, p. 73-76.
RIBEIRO, Aquilino. O Malhadinhas; Mina de Diamantes. Amadora: Bertrand, 1958.
_______. Prefácio da segunda edição. In: Volfrâmio. Lisboa: Bertrand, 1985, p. 5-11.
ROSA, Guimarães. A hora e vez de Augusto Matraga. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984, p. 339-386.
VICENTINI, A. Regionalismo literário e sentidos do sertão. Sociedade e Cultura. UFG,
vol.10, n.2, jul.dez. 2007, p.187-196.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
1999
A VARIAÇÃO FONÉTICA DO [R] DO PORTUGUÊS
BRASILEIRO NA FALA DOS NATIVOS DE LÍNGUA
INGLESA
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Marília Gomes Teixeira (UFPE)
Introdução
Até o início do século XX, a língua portuguesa ocupou uma posição relativamente
modesta entre as línguas mais importantes do mundo, obtendo representação mundial apenas
em meados dos anos 1940. De acordo com Lima Sobrinho (2000), a partir da década de 80, o
aumento da representatividade do Brasil em termos culturais e econômicos no âmbito
internacional foi um fator de extrema relevância para a intensificação da migração de
estrangeiros para o país.
Tal fato propiciou de maneira considerável a expansão de nossa língua: a imersão do
não-nativo em nossa cultura contribuiu para que optassem por aprender o português, seja de
maneira informal, apenas pela convivência com os nativos, ou formalmente, por intermédio
de cursos específicos.
Tamanha representatividade acarretou uma maior demanda de pessoas interessadas em
aprender o português. Dados estes fatos, faz-se necessária uma abordagem acerca de sua
pronúncia pelos falantes de língua inglesa por variados motivos; entre eles, a complexa
estrutura fônica do idioma, acarretando em erros pelos falantes, comprometendo a
comunicação.
No intuito de analisar tais dificuldades, foram entrevistados oito indivíduos cuja língua
materna é o inglês, mas que encontravam-se imersos e fossem fluentes no idioma português.
A partir da fala destes indivíduos, identificamos os fenômenos fonológicos que contribuíram
para a pronúncia equivocada dos mesmos, no intuito de avaliar em que nível as interferências
ocorreram na aprendizagem do português. Foi possível a identificação de oito fenômenos,
porém, ater-nos-emos à análise da variação fonética do “r” na fala dos estrangeiros.
Em seguida, realizou-se a transcrição fonética dos dados coletados. Para tanto,
utilizamos o Alfabeto Fonético Internacional (IPA), para a construção dos quadros fonéticos
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2000
da língua. Com base em teorias fonológicas e, a partir das leituras realizadas, daremos início,
então, à comparação dos fonemas das línguas em questão, no intuito de indicar as
semelhanças e diferenças entre ambos os sistemas linguísticos.
Após estes resultados, buscaremos esclarecer a atuação da interlíngua no processo de
aprendizagem do idioma estrangeiro intentando contribuir para a minimização das
interferências fonológicas da língua materna para a estrangeira.
2. Diferenças entre as consoantes do português e do inglês
Ao contrário das vogais, que são sons contínuos, as consoantes são produzidas a partir
da obstrução dos órgãos articuladores, seja a partir de sua aproximação, do estreitamento ou
da interposição.
Se compararmos os sistemas consonantais de duas línguas, podemos constatar que,
muitas vezes eles se assemelham, mas não são exatamente iguais. No entanto, elas podem ser
equivalentes, a ponto de possibilitar a transferência ou, em alguns casos entre duas línguas,
não tem absolutamente nada em comum.
No caso dos idiomas em questão, grande parte das consoantes que compõem o sistema
português, também o faz na língua inglesa. Esta última, porém, constitui-se de fonemas que
inexistem em nossa pronúncia. São eles: as africadas /tʃ/ e /dʒ/; as fricativas /Ø/ e /ð/; a velar
/ŋ/ e o retroflexo /ɽ/1.
A retroflexa do inglês, de forma semelhante às consoantes dentais, não tem fonema
semelhante na maioria dos dialetos do português (excetuando-se alguns dialetos da região
Sudeste do país). Este é o motivo pelo qual, de acordo com Schütz (2008), há uma grande
interferência na fala dos indivíduos estrangeiros, e que tende à fossilização.
O fato de não dispormos de tais fonemas em nosso sistema, naturalmente, favorece à
pronúncia equivocada, tendo em vista a articulação diferenciada e peculiar. O que
constatamos na produção oral do português dos nossos informantes diz respeito, sobretudo, à
transferência dos retroflexos em meio e final de palavras (ex: /seɽ/, /peɽta/) bem como em
encontros consonantais (/pɽato/); a retroflexização do /l/ (ex: /braziɭ/) e o apagamento da nasal
palatal (/mia/ - /miʎa/). Vamos nos ater, contudo, apenas à análise da persistência do "r"
retroflexo.
3. Metodologia e Análise dos dados
1
o retroflexo /ɽ/ ocorre nas regiões Sudeste e Sul do país. Em nossa pesquisa, estamos considerando apenas a
variação dialetal de Recife.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2001
3.1 Metodologia e fenômenos fonológicos.
Os indivíduos que compuseram nosso corpus são estrangeiros cuja língua materna é o
inglês e encontram-se imersos em nossa cultura, sendo assim, fluentes em nosso idioma.
O procedimento inicial, no intuito de registrar as interferências e transferências
fonológicas da produção oral dos falantes, foi entrevistá-los por aproximadamente 1h. Os
informantes responderam livre e espontaneamente aos questionamentos, sem induções de
qualquer tipo.
Em seguida, utilizamos o Praat, um programa de análise acústica e síntese de fala,
desenvolvido no Departamento de Fonética da Universidade de Amsterdã, Holanda (esse
programa pode ser atualizado através de download: www.praat.org. Foi utilizada a versão
4.4.30). Identificamos oito tipos de fenômenos, entre os quais quatro foram unânimes e mais
recorrentes entre os indivíduos. Apenas a título de demonstração de nossa proposta e por
motivos de disponibilidade de espaço nesta comunicação, analisaremos o fenômeno da
variação do “r” retroflexo em limite de sílaba (meio e final de palavra) e em encontros
consonantais.
4. Análise dos dados
4.1 "r" retroflexo em limite de sílaba (meio e final de vocábulo) e em encontros
consonantais.
As manifestações fonéticas das vibrantes em nosso idioma e em vários outros são
bastante diversificadas, bem como apresentam traços articulatórios diferenciados entre as
línguas.
Tendo em vista a maneira variável pela qual as vibrantes são utilizadas,
consideraremos apenas as realizações que culminam em diferenças bem marcadas no
português do grupo já mencionado - indivíduos cuja língua nativa é o inglês - em relação ao
português de falantes nativos do Brasil, com variação dialetal de Recife.
Na língua portuguesa, o "r" retroflexo ocorre em final de sílaba no dialeto de algumas
cidades interioranas de São Paulo; aparecendo raramente entre vogais e em início de palavra,
e não aparece em grupos consonantais. Na língua inglesa, por sua vez, o retroflexo se dá em
encontros consonantais, entre vogais e em limite de sílaba.
Mascherpe (1970) afirma que a retroflexa apresenta muitas realizações fonéticas, mas
que, curiosamente, em alguns dialetos americanos, tal variante não se realiza depois de
vogais. Percebemos, no entanto, que essas diferenças estruturais em que a retroflexa aparece
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2002
na língua inglesa podem ter influência no tocante à permanência dessa vibrante em estruturas
silábicas do português nas quais ela geralmente não ocorre.
A vibrante simples (ou tepe) ocorre em posição intervocálica e em encontros
consonantais em todas os dialetos da língua portuguesa e, por vezes, podemos constatar sua
realização em final de sílaba. E na língua inglesa, de acordo com Dutra (2004) "os fonemas /τ/
e /δ/ são produzidos como uma vibrante simples, em alguns vocábulos, em posição
intervocálica e em final de palavra, antes de vogal. É o chamado 'flapped' /ρ /" (p.479)
A vibrante múltipla pode ocorrer antes de vogal (em início e em meio de palavra) e as
fricativas velares e glotais podem aparecer em posição pré e pós-vocálica, de acordo com as
variedades regionais. Em inglês, a fricativa glotal aparece em posição pré-vocálica e
geralmente é desvozeada. Em nossas leituras, não tivemos registro de vibrantes velares e de
fricativas velares nos padrões fonético-fonológicos na língua inglesa.
4.1.1 "r" retroflexo em limite de sílaba (meio e final de vocábulo)
No português do nosso grupo de informantes, o retroflexo ocorreu em meio de
palavras (ex: "poɽta", "inveɽno") e em final de vocábulos (ex: "estudaɽ", "amoɽ"). Em poucos
casos ocorreu o retroflexo em posição pré-vocálica, em início de vocábulo (ex: "ɽio"), ainda
que na língua inglesa a retroflexa seja obrigatória em início de vocábulos iniciadas por /r/ (ex:
"ɽose", "ɽight", "ɽest"). Acreditamos que, pelo fato de apresentarem a glotal /h/, que muito se
assemelha à nossa vibrante múltipla, haja uma correspondência entre os sons e uma
transferência de padrões da língua materna pra língua estrangeira. Desta forma, a ocorrência
de "r" retroflexo em início de vocábulo seja menor do que em meio/final dele e em encontros
consonantais.
Os registros de "r" retroflexo em meio e final de palavra seguem na tabela abaixo.
Selecionamos seis vocábulos com seis exemplos, sendo os três referentes à pronúncia do
retroflexo em meio de palavra e os três restantes à pronúncia do retroflexo no fim do
vocábulo.
Ao lado de "Informante (nº)", seguem as letras indicadoras de, respectivamente, sexo,
nacionalidade, tempo de permanência do Brasil/Recife e se fez parte de cursos específicos de
português para estrangeiros; a seguir:
1) Sexo: Homem = H; Mulher = M
2) Origem: Escócia = Es; Estados Unidos = Us; Irlanda = Ir; Nova Zelândia = Nz;
3) Tempo no país: Mais de 5 anos = Ma; Menos de 5 anos = Me
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2003
4) Curso de português para estrangeiros: Sim = S; Não = N
Palavra
Pronúncia local
Nordeste
[nɔɦˈdԑʃtɪ]
Inverno
[ɪ᷉ˈvԑɦnʊ]
Aeroporto
[aԑɾoˈpohtʊ]
Super
[ˈsʊpɛh]
Peculiar
[pԑkʊliˈɑ]
Melhor
[mԑˈʎjɔ]
Tabela 1 - Informante I: H.Es.Ma.N (62 casos)
Pronúncia do informante
[nɔɽˈdɛʃtɪ]
[ɪ᷉ˈvԑɽnʊ]
[ԑɾoˈpoɽtʊ]
[ˈsʊpəɽ]
[pekʊliˈaɽ]
[mԑˈʎjɔɽ]
Palavra
Pronúncia local
Irlanda
[Іɦˈlãdə]
Verde
[ˈveɦdɪ]
Califórnia
[kaliˈfɔɦnɪə]
Mulher
[mʊˈʎjԑ]
Pagar
[paˈɡɑ]
Calor
[kaˈlo]
Tabela 2 - Informante II: M.Ir. Ma.N (55 casos)
Pronúncia do informante
[Іɽˈlɑ᷉ndə]
[ˈvԑɽdɪ]
[kaliˈfɔɽnɪə]
[mʊˈʎjԑɽ]
[paˈɡɑɽ]
[kaˈloɽ]
Palavra
Pronúncia local
Verdade
[vɛhˈdadɪ]
Enormes
[iˈnɔɦmІʃ]
Largas
[ˈlaɦgəʃ]
Usar
[ʊˈzɑ]
Trabalhar
[tɾabaˈʎjɑ]
Melhorar
[mԑʎjɔˈɾɑ]
Tabela 3 - Informante III: H.Ir.Ma.N (54 casos)
Pronúncia do informante
[vԑɽˈdadɪ]
[eˈnɔɽmІz]
[ˈlaɽgəz]
[ʊˈzɑɽ]
[tɽabaˈʎjɑɽ]
[mԑʎjɔˈɽaɽ]
Palavra
Pronúncia local
Perto
[ˈpehtʊ]
Desertos
[dԑˈzԑhtʊʃ]
Arquitetura
[ahkitԑˈtʊɾə]
Lugar
[lʊˈɡɑ]
Terminar
[tԑɦmiˈnɑ]
Mulher
[mʊˈʎjɛ]
Tabela 4 - Informante IV: H.Ir.Me.S (24 casos)
Pronúncia do informante
[ˈpԑɽtʊ]
[diˈzԑɽtʊz]
[aɽkitԑˈtʊɽə]
[lʊˈɡɑɽ]
[tԑɽmiˈnɑɽ]
[mʊˈʎjԑɽ]
Palavra
Pronúncia local
Cerveja
[seɦˈveʒə]
Guardado
[ɡwaɦˈdadʊ]
Curto
[ˈkʊhtʊ]
Escutar
[iʃkʊˈtɑ]
Interior
[i᷉tԑɾiˈo]
Ver
[ˈve]
Tabela 5 - Informante V: H.Ir.Me.S (37 casos)
Pronúncia do informante
[seɽˈveʒə]
[ɡwaɽˈdadʊ]
[ˈkʊɽtʊ]
[eʃkʊˈtɑɽ]
[i᷉teɾiˈoɽ]
[ˈveɽ]
Palavra
Pronúncia do informante
Pronúncia local
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2004
Certificado
[sɛhtifiˈkadʊ]
Cortina
[kʊhˈtinə]
Perfeito
[pehˈfejtʊ]
Por
[ˈpʊh]
Ficar
[fiˈkɑ]
Qualquer
[kwawˈkɛ]
Tabela 6 - Informante VI: M.Us.Me.S (52 casos)
[seɽtifiˈkadʊ]
[koɽˈtinə]
[pɛɽˈfejtʊ]
[ˈpoɽ]
[fiˈkaɽ]
[kwawˈkɛɽ]
Palavra
Pronúncia local
Catorze
[kaˈtoɦzɪ]
Charmoso
[ʃaɦˈmozʊ]
Verbos
[ˈvɛɦbʊʃ]
Falar
[faˈlɑ]
Ser
[ˈse]
Professor
[pɾofeˈso]
Tabela 7 - Informante VII: H.Us.Me.N (20 casos)
Pronúncia do informante
[kaˈtoɽzɪ]
[ʃaɽˈmozʊ]
[ˈvɛɽbʊz]
[faˈlɑɽ]
[ˈseɽ]
[pɾofiˈsoɽ]
Palavra
Pronúncia local
Importante
[i᷉pɔhˈtãtɪ]
Português
[pɔhtʊˈɡeʃ]
Cursos
[ˈkʊhsʊʃ]
Tiver
[tiˈvԑ]
Lidar
[liˈdɑ]
Descer
[deˈse]
Tabela 8 – InformanteVIII: H.Nz.Ma.S (13 casos)
Pronúncia do informante
[i᷉poɽˈtɑ᷉ntɪ]
[poɽtʊˈɡez]
[ˈkʊɽsʊʃ]
[tiˈvԑɽ]
[liˈdɑɽ]
[deˈseɽ]
4.1.2 "r" retroflexo em encontros consonantais
Segundo Cristófaro (2009), em encontros consonantais nos quais a segunda consoante
é o "r", normalmente ocorre a realização da vibrante simples. Em nosso grupo de informantes,
todavia, todos os indivíduos realizaram o retroflexo nesse caso.
Na língua inglesa, Roach (2009) explica que se trata de "a rather different sound at the
beginning of a syllable if it is preceded by /p/, /t/, /k/; it is voiceless and fricative. This
pronunciation is found in words such as 'press', 'tress', 'cress'"(p.50). Assim sendo, não existe
uma transferência dos padrões linguísticos, mas uma interferência, tendo em vista que após os
fonemas mencionados (/p/, /t/, /k/), ocorrerá uma fricativa desvozeada, não uma vibrante
simples, como na língua portuguesa.
As tabelas seguintes concernem aos registros do "r" retroflexo em encontros
consonantais. Foram selecionados cinco exemplos de cada informante.
Palavra
Cresci
Geografia
Pronúncia local
[kɾeˈsi]
[ʒɛɔɡɾaˈfiə]
Pronúncia do informante
[kɽeˈsi]
[ʒeoɡɽaˈfiə]
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2005
Inteira
[ɪ᷉ˈteɾə]
Brasil
[bɾaˈzɪw]
Hospitaleiras
[ɔʃpitaˈleɾəʃ]
Interessante
[i᷉tԑɾԑˈsãtɪ]
Tabela 9 - Informante I: H.Es.Ma.N (21 casos)
[e᷉ˈteɽə]
[bɽaˈzɪw]
[ɔzpitaˈleɽəz]
[i᷉teɽeˈsɑ᷉ntɪ]
Palavra
Pronúncia local
Brasileiro
[bɾaziˈleɾʊ]
Frio
[ˈfɾiʊ]
Agora
[aˈɡɔɾə]
Preparado
[pɾԑpaˈɾadʊ]
Cheiro
[ˈʃeɾʊ]
Era
[ˈԑɾa]
Tabela 10 - Informante II: M.Ir. Ma.N (60 casos)
Pronúncia do informante
[bɽaziˈleɽʊ]
[ˈfɽiʊ]
[aˈɡɔɽə]
[pɽԑpaˈɾadʊ]
[ˈʃeɽʊ]
[ˈԑɽa]
Palavra
Pronúncia local
Agora
[aˈɡɔɾə]
Frio
[ˈfɾiw]
Trabalhar
[tɾabaˈʎɑ]
Professor
[pɾofeˈso]
Maravilhosas
[maɾaviˈʎjɔzəʃ]
Várias
[ˈvɑɾiəʃ]
Tabela 11 - Informante III: H.Ir.Ma.N (31 casos)
Pronúncia do informante
[aˈɡɔɽə]
[ˈfɽiw]
[tɽabaˈʎɑɽ]
[pɽofiˈsɔɽ]
[ˈmaɽaviʎjɔzəz]
[ˈvɑɽiəz]
Palavra
Pronúncia local
Moradores
[mɔɾaˈdorɪʃ]
Preconceitos
[pɾԑko᷉ˈsejtʊʃ]
Primeiro
[pɾiˈmeɾʊ]
Burocracia
[bʊɾɔkɾaˈsɪə]
Brasil
[bɾaˈziw]
Curitiba
[kʊɾiˈtibə]
Tabela 12 - Informante IV: H.Ir.Me.S (42 casos)
Pronúncia do informante
[mɔɽaˈdoɽɪz]
[pɽeko᷉ˈsejtʊz]
[pɽiˈmԑɽʊ]
[bʊɽɔkɽaˈsɪə]
[bɽaˈziw]
[kʊɽiˈtibə]
Palavra
Pronúncia local
Parecido
[paɾeˈsidʊ]
Florianópolis
[flɔɾia᷉ˈnɔpʊlɪʃ]
Europa
[eʊˈɾɔpə]
Brasileiros
[bɾaziˈleɾʊʃ]
Preciso
[pɾeˈsizʊ]
Pobre
[ˈpɔbɾɪ]
Tabela 13 - Informante V: H.Ir.Me.S (50 casos)
Pronúncia do informante
[paɽԑˈsidʊ]
[floɽiˈnɔpʊləz]
[iˈɽɔpə]
[bɽaziˈleɽʊz]
[pɽeˈsizʊ]
[ˈpɔbɽɪ]
Palavra
Trabalhar
Palavra
Outra
Quero
Americanos
*Inteiro
Pronúncia do informante
[tɽabaˈɭɑɽ]
[paˈlavɽə]
[ˈotɽə]
[ˈkԑɽʊ]
[amɛɽiˈkɑ᷉nʊz]
[i᷉ˈtԑɽʊ]
Pronúncia local
[tɾabaˈɭɑ]
[paˈlavɾə]
[ˈotɾə]
[ˈkԑɾʊ]
[amɛɾiˈka᷉nʊʃ]
[i᷉ˈteɾʊ]
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2006
Tabela 14 - Informante VI: M.Us.Me.S (18 casos)
Palavra
Pronúncia local
Três
[ˈtɾeʃ]
Braço
[ˈbɾasʊ]
Brasília
[bɾaˈziʎjə]
Frio
[ˈfɾiw]
Mostram
[mɔʃˈtɾa᷉w]
Aprendi
[aˈpɾe᷉dɪ]
Tabela 15 - Informante VII: H.Us.Me.N (8 casos)
Pronúncia do informante
[ˈtɽez]
[ˈbɽasʊ]
[bɽaˈziʎjə]
[ˈfɽiw]
[mozˈtɽa᷉w]
[aˈpɽe᷉dɪ]
Palavra
Pronúncia local
Rio
[ˈhiw]
Austrália
[aʊʃˈtɾɑɭə]
Semestre
[siˈmԑʃtɾɪ]
Frustrante
[fɾʊʃˈtɾa᷉tɪ]
Zero
[ˈzԑɾʊ]
Metrô
[meˈtɾo]
Tabela 16 – InformanteVIII: H.Nz.Ma.S (12 casos)
Pronúncia do informante
[ˈɽiow]
[aʊzˈtɽɑɭə]
[seˈmԑztɽɪ]
[fɽʊzˈtɽɑ᷉ntɪ]
[ˈzԑɽow]
[ˈmɛtɽʊ]
5. Considerações finais.
Tendo em vista os dados acima, podemos considerar que os nativos da língua inglesa
apresentaram, em grande parte, os mesmos tipos de transferência e interferência quando da
produção oral do português: o uso de retroflexos em quase todas as ocorrências de "r" nos
vocábulos. Também foi-nos possível constatar que o tempo de imersão, o fato de estudarem
ou não em cursos específicos e a faixa etária não se revelaram aspectos determinantes no
tocante à ocorrência dos fenômenos.
Considerando-se a razoável diferença entre os sistemas linguísticos português e inglês,
é previsível a ocorrência de erros e "confusões" por parte dos falantes estrangeiros. Tal fato
levanta questionamentos a respeito da continuidade destas interferências, tendo em vista que,
de acordo com alguns aspectos teóricos da Fonologia do uso, "a frequência desempenha papel
primordial na implementação de mudanças sonoras e na configuração do componente
fonológico" (Cristófaro, 2009, p.225) A partir disto podermos depreender que, quão maior for
o contato com a língua, mais consciência o indivíduo terá da pronúncia e a executará pela
constância com que ouve. Ainda conforme esta vertente, a capacidade de articular, perceber,
armazenar e analisar o material linguístico estão diretamente relacionadas à experiência
linguística do falante; o que poderia nos levar a concluir que o longo tempo dos indivíduos em
nosso país amenizaria as interferências fonológicas da língua materna para a língua-alvo.
Nossa pesquisa visou a identificar estes fenômenos fonológicos no intuito de
contribuir para que estes sejam minimizados através da conscientização da relevância da
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2007
fonética para o indivíduo não nativo e até mesmo no ensino de língua estrangeira;
possibilitando, assim, que a comunicação ocorra com maior êxito, ao amenizar as
características do "sotaque" estrangeiro e facilitar os processos comunicativos sem ruídos nas
mensagens.
Referências
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António Meirelles e Eduardo Paiva Raposo. Coimbra: Arménio Amado, 1978.
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TRASK, R.L: Dicionário de Linguagem e Linguística. ed. Contexto, São Paulo, 2004.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2009
UMA PEDAGOGIA PARA UM PAÍS MULTILÍNGUE
[Voltar para Sumário]
Marinázia Cordeiro Pinto (UFRRJ)1
Michele Cristine Silva de Sousa (UFRRJ)2
1 Introdução
Este artigo traz uma breve reflexão da realidade educacional do Brasil, principalmente
no que diz respeito ao trato com as questões linguísticas; e uma análise de uma parte dos
currículos oficiais das redes públicas municipal e estadual do Rio de Janeiro na disciplina de
Língua Portuguesa que devem ser ministrados nas inúmeras instituições de ensino público
espalhadas pelo território do Estado do Rio de Janeiro.
Um dos fenômenos que caracterizaram os usos linguísticos no Brasil é o que se
denomina línguas de contatos. Diz respeito a línguas diferentes que, por motivos históricos e
sociais, convivem numa mesma região. Deste fenômeno, de uma forma geral podem resultar
muitos produtos; alguns deles presentes na constituição do Português Brasileiro. No artigo de
Marlene Maria Ogliari; Contato, Diglossia e Bilinguismo: Situações linguísticas gestadas em
Prudentópolis-PR (2003), parte desses produtos é mencionada.
São eles pidginização3,
crioulização4, substrato5, adstrato6, empréstimo7, diglossia8.
O quadro linguístico brasileiro é rico em diversidades. O tratamento que os governos
têm dispensado à questão linguística em nosso país tem variado no decorrer das décadas.
Durante muito tempo, insistiu-se em afirmar ser o Brasil um país monolíngue, encobrindo
com esta afirmação as diversas línguas e dialetos falados no país (OLIVEIRA, 2003). Mesmo
ao se considerar apenas os falantes de Língua Portuguesa, pode-se afirmar que todos falam
1
Mestranda de Letras da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Mestranda de Letras da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
3
Processo de formação de uma língua resultante do contato entre outras línguas, usada como língua de
comunicação, não sendo língua materna de nenhum falante.
4
Processo pelo qual uma língua originada pelo contato de uma língua europeia com a língua nativa de uma
região se torna língua materna de uma comunidade (de pidgin a crioulo).
5
Língua assimilada por outra, geralmente, imposta por um conquistador, na qual deixa marcas.
6
Língua falada numa região e que influencia a língua falada em outra região.
7
Elemento tomado de outra língua.
8
Dialeto divergente que se sobrepõe à variedade usada; é aprendido através da educação formal, mas não é
usado em conversação coloquial; entre outros.
2
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2010
uma variedade do Português (OLIVEIRA & ALTENHOFEN, 2011). As inúmeras variedades
existentes em uma língua apresentam pontos comuns, mas se diferenciam em muitos outros.
A língua pura, sem “contaminações”, como desejam os puristas, não existe, é um mito. As
línguas são sistemas vivos que se desenvolvem a partir de influências do meio em que é
falada e de outras línguas com que tenham contato. O nome de uma língua é um importante
instrumento de identidade; mas, encobre inúmeras variedades.
O Brasil é um país com muitas configurações linguísticas.
Essas configurações
precisam ser conhecidas, estudadas e identificadas. Só a partir do conhecimento científico das
manifestações linguísticas presentes em nosso país, podem-se elaborar políticas públicas
educacionais adequadas às mais diversas situações linguísticas. Uma política pública que
contemple as riquezas de um país de tão grandes dimensões e com tão variados ambientes
sociolinguísticos precisa ser gestada levando em consideração as diversas comunidades de
fala presentes em nosso país. A despeito do processo de Globalização, é necessário explorar
positivamente as riquezas culturais e linguísticas presentes nas regiões de nosso país.
Sendo a língua um patrimônio cultural de um povo (PALOMANES RIBEIRO, 2011),
as diversas variedades de uso dessa língua revelam as nuances desse patrimônio cultural nas
diversas comunidades que se utilizam dessas variedades. Neste sentido, uma política única
para ser seguida por todas as redes de ensino do país está fadada a inúmeras limitações e a ser
promotora de injustiças resultantes de currículos que se distanciam de realidades regionais.
Um exemplo desta situação é a aplicação de provas únicas como as do Exame Nacional do
Ensino Médio (ENEM). No ano de 2012, o tema da produção textual foi relacionado à
legislação da Lei Seca. Um tema de grande visibilidade nas regiões urbanas do país; mas de
pouca visibilidade nas zonas rurais e nas regiões ribeirinhas de nosso país. Os candidatos
dessas regiões terão que desenvolver textos a partir de informações artificiais para concorrer
com outros candidatos que têm vivência com o tema apresentado. O mesmo ocorreu no ano
anterior no ENEM de 2011 cujo tema da redação foi “Viver em rede no século XXI: Os
limites entre o público e o privado”. A banca parece considerar que todos os candidatos têm
acesso à rede mundial de computadores. Não é justo uma competição em que a proposta do
tema da redação não diz respeito igualmente à realidade de todos os candidatos. Por outro
lado, é muito difícil encontrar um tema que contemple um país de culturas tão variadas e ricas
como o Brasil. Talvez essa discrepância explique, em parte, o fato de que os Estados da
Região Sudeste apresentam as maiores médias nas avaliações nacionais.
O que ocorre nas avaliações de escala nacional parece ser um reflexo ou uma amostra
do que ocorre no microespaço das salas de aula de todo país. É urgente uma pedagogia
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2011
culturalmente sensível que seja pensada nas turmas de graduação e praticada no dia-a-dia da
escola em todas as disciplinas já que a linguagem não é ferramenta apenas do professor de
Língua Portuguesa. É urgente que o acesso à língua culta seja considerado um direito do
aluno, sem o qual ele está destinado a não acessar parte dos bens culturais de seu país
(CYRANKA & PERNAMBUCO, 2008). Esse acesso deve se dar por meio da escola e deve
ser revestido de respeito ao uso da língua trazido pelo aluno, mesmo que seja um uso
estigmatizado.
A forma como se dá o processo de ensino da língua está, para muitos estudiosos da
educação, na base do fracasso escolar, uma realidade que perpassa principalmente as redes
públicas de ensino em nosso país. Sendo a aprendizagem um processo natural de todo ser
humano (ERICKSON, 1987), como explicar o fato de que alguns alunos não aprendem? O
descompasso entre a língua apresentada e utilizada na escola e a língua trazida pelo aluno é
apontado como um dos motivos da dificuldade de aprendizagem de muitos alunos (COX,
2002; CYRANKA, 2007); além da dificuldade que as crianças de classes menos favorecidas
apresentam em estabelecer significações implícitas, ou seja, compreender ideias não explícitas
nos textos trazidos pelo professor; condição necessária para a construção e o entendimento do
discurso. Segundo Cyranka (2007), os alunos de baixa renda têm dificuldades em acessar
bens culturais e a escola que poderia atender essa carência não se instrumentalizou para essa
ação, instituiu-se a universalização do ensino sem preparar as instituições para receberem uma
camada da população que antes não acessava a educação formal. Não nos surpreende, então,
o fato de que, segundo o INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas), 97,6% das 500
escolas com nota mais alta no ENEM 2013 tem alunos ricos e a maior parte dessas escolas
está concentrada na região sudeste.
Essa dificuldade de aprendizado apresentada por grande parte dos alunos das classes
menos favorecidas não diminui com exercícios de descrição da língua ou pela leitura e
observações metalinguísticas de textos que não fazem parte da vivência do aluno; como se a
língua fosse apenas uma soma de signos que se referem a uma soma de coisas, dissociada na
realidade em que essa língua está inserida. A língua à parte do uso é inviável, a única razão
de ser de uma língua é o seu uso pela coletividade (SAUSSURE, 1972). Nesse sentido,
percebe-se que, desde a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua
Portuguesa, o ensino da língua muda de uma base gramatical para uma base linguística. Para
a Linguística Cognitiva, o uso de uma língua revela o conhecimento que o falante tem do
mundo, assim como revela também a sua cultura (CORBARI, 2012).
Uma gramática
formada a partir dessa perspectiva trata-se de uma gramática do uso da língua (PALOMANES
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2012
RIBEIRO, 2011). É fundamental para que haja o que Oliveira & Altenhofen (2011) citam
como saúde linguística que se construam ações políticas a partir da interação com as diversas
variedades de uso da língua e não mais visando a transferir para o aluno o uso culto da língua
como a única possibilidade correta de uso, desprezando o falar trazido pelo aluno
(OLIVEIRA & ALTENHOFEN, 2011); numa pedagogia denominada por Ferrarezi Jr. (2014)
como Pedagogia do Silêncio em que somente o professor tem a palavra e ao aluno cabe
apenas ouvir já que a sua fala não é considerada aceitável.
A partir das orientações dos PCN de Língua Portuguesa, tem-se a percepção de que a
língua trazida pelo aluno é uma variedade de uso da Língua Portuguesa; uma variedade que
identifica o aluno com o seu grupo social porque a língua revela as características de seus
falantes, assim como a sua vivência social e cultural (OLIVEIRA & ALTENHOFEN, 2011 &
PALOMANES RIBEIRO, 2011); e, portanto, não deve ser desvalorizada na escola, mesmo
que seja desvalorizada na sociedade em geral. Dessa forma, quebra-se o ciclo de acusações
entre escola e sociedade, em que o fracasso de alunos advindos de classes sociais
desfavoráveis já estava previsto e suas causas estavam fora da escola, estavam em sua
condição social e no uso que faz da língua.
Segundo Emília Ferreiro (2001) citada por Candau (2012), a escola do século XX deu
continuidade a inúmeras práticas da escola do século XIX; práticas essas que objetivavam a
construção de uma nação em que todos os indivíduos fossem considerados iguais. Ocorre,
então, uma equiparação entre os conceitos de igualdade e homogeneidade. Em busca da
igualdade, a escola apresenta práticas homogeneizadoras em que diferenças não são
apreciadas e sim coibidas. A igualdade que deve ser alvo da escola precisa estar relacionada à
igualdade de direitos para todos; sendo que, nesse conjunto do todos, um elemento é diferente
do outro. Sem o reconhecimento das diferenças, não existem meios para se alcançar a
igualdade porque num processo de homogeneização há um padrão que é imposto a todos; esse
padrão é fruto das relações de poder existentes na sociedade, em que a cultura de um grupo é
prestigiada em detrimento das culturas dos outros segmentos da sociedade que devem, para
progredir socialmente, assimilar os valores da cultura do grupo de maior prestígio.
II- Variações linguísticas na escola
Entende-se, na atualidade, que a principal função dos órgãos que gerem a educação no
Brasil é promover os direitos linguísticos dos falantes das mais diversas comunidades
linguísticas de nosso país, ou seja, promover uma política educacional que inclua a todos
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2013
igualmente, numa valorização consciente do plurilinguismo. É o que Candau (2012) descreve
como práticas socioeducativas com preocupação intercultural em que se proporcionam
dinâmicas participativas, utilização de múltiplas linguagens e estímulo à construção coletiva.
Essas práticas desconstroem a visão monocultural do ambiente escolar, reconstroem as
origens identidárias de cada aluno e do grupo social a que pertencem. E ainda devem
combater mitos como o de afirmar que “a língua falada no Brasil apresenta uma unidade
surpreendente” (BAGNO, 2000), entre outros mitos que se repetem sem reflexão em nossa
sociedade.
Devido aos prejuízos comerciais advindos das variações existentes no português
escrito, no século XXI, ocorreu uma unificação linguística entre os países de Língua
Portuguesa, definida pelo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Mas, em ações internas,
em fins do século XX, a Constituição Federal de 1998, em seus artigos 210 e 230, reconheceu
o direito linguístico e cultural aos povos indígenas. A partir desse reconhecimento,
desenvolve-se uma pedagogia de base intercultural. Em consequência dessa nova visão na
educação, havia em 2011 cerca de 174 mil alunos indígenas em escolas bilíngues e
multilíngues. As línguas indígenas faladas no Brasil passam a ser consideradas patrimônio
cultural imaterial do Brasil (OLIVEIRA & ALTENHOFEN, 2011).
A Constituição, no
entanto, não contemplou da mesma forma as línguas dos surdos, dos descendentes de
africanos e dos imigrantes. Apesar desse fato, o reconhecimento das línguas indígenas
despertou os falantes das demais línguas faladas no território para que também reivindiquem
espaço. Já existem, inclusive, municípios que cooficializaram a língua do imigrante.
Outro documento de grande importância na construção de um país plurilíngue e
multicultural foi o Inventário Nacional da Diversidade Linguística. Trata-se de um documento
mais abrangente, já que reconhece, além das línguas indígenas, a língua dos surdos, as línguas
dos imigrantes, as línguas afro-brasileiras, crioulas; e também as variedades do Português
falado no Brasil (OLIVEIRA & ALTENHOFEN, 2011).
É necessário que o esforço de diminuir o preconceito linguístico não seja algo
realizado isoladamente por um ou outro profissional da educação; é preciso que essa seja uma
decisão consciente dos órgãos oficiais do país; é preciso que os cursos de licenciatura
promovam reflexão nessa área.
III-
Análise de Currículos
A partir desses conceitos e descrições, observemos, então, os currículos do 9º ano das
redes pública municipal e estadual do Rio de Janeiro, proposto para o primeiro bimestre.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2014
III. 1 – Município do Rio de Janeiro

Língua Portuguesa
Valorizar a leitura como forma de conhecimento e fruição.
O texto verbal e não verbal.
 Reconhecer a leitura de textos verbais e não verbais como possibilidade de fruição e
de acesso a diferentes informações
 Desenvolver a leitura, em níveis mais profundos, de diferentes gêneros discursivos,
fazendo uso das estratégias de leitura.
A organização de informações no texto.
 A estrutura dos diferentes gêneros discursivos, predominantemente do tipo
argumentativo – editorial, textos de divulgação científica, cartas argumentativas.
 Antecipar / identificar o assunto/tema de um texto, a partir do gênero, do suporte, das
características gráficas, do título, subtítulo e imagens.
 Localizar informações explícitas em um texto dissertativo / argumentativo com
complexidade.
As relações entre textos: intertextualidade
 Ampliar o universo da leitura, com utilização de intertextos, a troca de impressões e o
posicionamento crítico a respeito do lido.
 Comparar paráfrases / paródias, avaliando sua maior ou menor fidelidade ao texto
original e identificando os efeitos de humor e/ou de ironia.
 Identificar as diferentes intenções e comparar as opiniões/pontos de vista em textos
com o mesmo tema que misturam descrições, análises e opiniões.
O texto oral como prática discursiva: as características do texto oral.
 Reconhecer e utilizar marcas típicas da modalidade oral, adequando o padrão de
linguagem à situação de comunicação.
 Reconhecer e compreender a diversidade nas formas de falar e compreender contextos
de produção dessa diversidade.
Variantes linguísticas: sociais, de gênero, geográficas, de registro, de tempo.
 Identificar o locutor e o interlocutor a partir de marcas linguísticas
 Identificar as marcas de coloquialidade em textos que usam a variação linguística
como recurso estilístico.
 Compreender os diferentes discursos orais e escritos em diversas variantes e registros
da Língua Portuguesa, incluindo a norma padrão, com ampliação dos conhecimentos –
semânticos, gramaticais e discursivos – necessários à construção de sentidos,
identificando não só os objetivos explícitos da comunicação, como também os
implícitos.
Características das modalidades oral e escrita da língua
 Identificar a finalidade de diferentes gêneros textuais
 Reconhecer as intenções/efeitos de sentido do uso de pontuação, de gírias, de
expressões coloquiais, de transgressões intencionais dos padrões ortográficos ou
morfossintáticos da modalidade escrita.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ

2015
Reconhecer os recursos não verbais como elemento fundamental para a compreensão
das histórias em quadrinhos, propagandas etc
Articulação e mecanismos textuais.
 Estabelecer, conforme o projeto textual, articulações de: fato/opinião;
conflito/solução; anterioridade/posterioridade; causa/consequência; comparação e
oposição, segmentando o texto em parágrafos.
 Aplicar os conhecimentos relativos à variação linguística e diferenças entre oralidade e
escrita na produção de textos.
 Reconhecer e empregar as relações morfossintáticas e semânticas das palavras e
expressões no texto.
Articulação e mecanismos textuais.
 Analisar o próprio texto, verificando a adequação ao leitor e aos objetivos da
comunicação, observando os mecanismos básicos de coesão, os recursos gráficos
suplementares, os esquemas temporais básicos, a pontuação, a ortografia e os
mecanismos básicos de concordância nominal e verbal.
III. 2- Estado do Rio de Janeiro
Leitura
 Reconhecer a estrutura das cartas pessoal e oficial (requerimento, ofício e solicitação),
diferenciando-as quanto à sua finalidade e esfera de circulação.
 Reconhecer a estrutura do currículo, atentando para as diferentes finalidades que este
possa ter.
 Identificar a argumentação na carta do leitor.
 Reconhecer os níveis de formalidade empregados nos textos.
Uso da língua
 Reconhecer e utilizar os pronomes de tratamento.
 Utilizar adequadamente as expressões-padrão e os verbos nas cartas oficiais.
 Reconhecer e empregar adequadamente a regência verbal e nominal.
 Apropriar-se adequadamente das regras de realização da crase.
Produção textual
 Produzir cartas conforme o que foi estudado no bimestre.
 Preencher um currículo de acordo com os padrões observados.
III. 3- Análise comparativa
No currículo do município, pode-se perceber uma preocupação com as diversidades
no uso da língua quando ele aponta para a necessidade de “Desenvolver a expressão oral
adequada às diferentes situações de comunicação: escolares, extraescolares, informais e as
que requerem maior formalidade, com o apoio da língua escrita”. Leva em consideração o que
Barros (1997) citada no artigo de Cyranka e Pernambuco (2008) e outros estudiosos definem
ser o falante culto da língua não como aquele que foge das influências linguísticas a que está
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2016
sujeito o uso de uma língua, mas aquele que é capaz de adaptar o uso da língua às diversas
situações que se apresentam.
O currículo também relaciona as variações linguísticas não apenas às situações de
uso, mas a questões sociais, de gênero, geográficas, de registro, de tempo. Capacitando o
aluno a “identificar o locutor e o interlocutor a partir de marcas linguísticas”. Relaciona
também as variações linguísticas a recursos estilísticos de que se pode valer o falante de uma
língua.
Percebe-se também, em consonância com os PCN de Língua Portuguesa, uma
preocupação não apenas com a modalidade escrita da língua, mas também com a modalidade
oral e suas características. Neste contexto, trabalham-se questões relacionadas a registros, em
que se inclui o registro padrão da língua numa perspectiva de ampliação e não de negação de
outros usos e conhecimentos linguísticos. Podendo-se, inclusive, transgredir conscientemente
o padrão culto da língua devido às intenções e efeitos de sentido desejados pelo falante.
No último tópico desse currículo, propõe-se que o aluno avalie o seu próprio texto
considerando a adequação de sua linguagem ao contexto, ao interlocutor e à intenção de sua
produção textual. Exercício que permite ao aluno autonomia e senso crítico na construção de
seu texto e no uso que faz da língua.
Já no currículo proposto pelo Estado para o mesmo ano e período de escolaridade,
percebe-se que a preocupação está centrada no gênero que se pretende trabalhar com o aluno e
na linguagem que se deve utilizar em cada gênero. Cita a necessidade de se reconhecer os
graus de formalidade utilizados nos gêneros em questão, mas não expande o conteúdo a ser
trabalhado com uma aproximação do uso que o aluno faz da linguagem em seu dia a dia,
dando a entender que apenas está apresentando para o aluno o jeito certo de se fazer uso da
língua.
Ao observarem-se os mais variados currículos, percebe-se em grande parte deles, a
preocupação de ensinar o aluno a usar a língua dentro de um formato padrão sem partir da
maneira como o aluno usa a língua. Apresentam-se gêneros literários que ou o aluno já faz
uso no seu dia a dia ou está desconectado das demandas que se apresentam para esse aluno no
momento do aprendizado. Nesse sentido, o currículo do município do Rio de Janeiro reflete
um avanço que, embora ainda muito pequeno precisa ser acompanhado de bons materiais
pedagógicos, de recursos e capacitação para que o professor possa trabalhar os conteúdos
apresentados.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2017
IV-Considerações Finais
Segundo aponta Oliveira e Altenhofen (2011), por todos os lugares deste imenso país
vêm se repetindo ao longo de nossa história episódios de preconceitos linguísticos que calam
não só as bocas dos alunos, mas também aquilo que eles são, transmitindo-lhes a clara
mensagem de que, juntamente com o seu falar, eles também não são importantes. São
consideradas pessoas com dificuldade de aprendizagem, inferiorizados por resultados de
avaliações nacionais que ratificam essa discriminação.
Existem alguns oásis educacionais como constatam alguns estudos, mas o esforço por
uma educação verdadeiramente democrática, em que o acesso ao aprendizado vai além de
estar matriculado numa instituição, passa pelo respeito à cultura e à língua do aluno. Esse
esforço tem se mostrado isolado na prática consciente de alguns profissionais. É necessário ir
além, num esforço oficial do MEC em formar profissionais com uma visão pluricultural e
plurilinguística da educação; estabelecer uma agenda de debates e reflexões acerca dos
currículos a serem oferecidos nas instituições de ensino com congressos e publicações que
venham ao encontro de tão premente necessidade.
Dessa forma, poderemos tratar as questões concernentes às diferenças culturais que
são visíveis em nossas salas de aula.
Abandonando, assim, a prática corrente de
homogeneização dos alunos, assumindo uma prática enriquecedora de respeito à pluralidade
cultural. É o que Candau (2012) descreve como uma perspectiva intercultural na educação.
Sem essa perspectiva, não alcançaremos a tão propagada universalização da educação. Podese alcançar que todas as crianças do país estejam matriculadas em uma instituição de ensino;
mas uma educação democrática com acesso igualitário aos conhecimentos nunca será
alcançada.
Uma pedagogia intercultural é construída a partir de reflexão e desconstrução das
práticas vigentes nas escolas. É construída a partir também da criação de espaços para a
expressão cultural dos diversos grupos presentes em uma escola (CANDAU, 2012);
proporcionando, assim, a valorização e a sobrevivência das várias matizes culturais de um
povo. Trata-se de uma pedagogia que entende as diferenças como parte da democracia e que
produz o empoderamento daqueles que foram historicamente desprestigiados na construção
da sociedade. Isso ocorre à medida que exista respeito real entre diferentes grupos e todos
tenham os seus espaços e direitos garantidos, frutificando em elevação da autoestima e da
autonomia de cada cidadão (CANDAU, 2012).
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2018
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CORBARI. Clarice Cristina. Línguas em contato no sudoeste do Paraná: visões sobre as
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CYRANKA, Lúcia F. Mendonça. & PERNAMBUCO, Dea Lucia Campos. A língua culta na
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ERICKSON, F. Transformation and school success: the politics and culture of educational
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FERRAREZI JR, Celso. Pedagogia do silenciamento: a escola brasileira e o ensino de língua
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OLIVEIRA, Gilvan Müller de. & ALTENHOFEN, Cléo V. O in vitro e o in vivo na política
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2019
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Nas fronteiras da linguagem ǀ
2020
O TRANSPOSITOR SEM: CRITÉRIOS PARA
DETERMINAÇÃO DO VALOR MODAL EM ORAÇÕES
ADVERBIAIS REDUZIDAS
[Voltar para Sumário]
Marta Anaísa Bezerra Ramos (UEPB)
Camilo Rosa Silva (UFPB)
Introdução
A abordagem da forma gramatical sem em estruturas oracionais reduzidas implica a
reflexão em torno de alguns aspectos de ordem sintática e semântica. Problematizamos, neste
artigo, no que se concerne à esfera sintática, a premissa de que preposições só antecedem
palavras; a recusa de que o verbo na forma infinitiva constitui uma estrutura oracional, e, por
conseguinte, o não reconhecimento da função conjuntiva desse item na combinação com o
verbo não-finito.
Em se tratando da esfera semântica, é muito heterogênea a classificação semântica
atribuída, pelos gramáticos, às formas gramáticas sem e sem que – ora há referência ao matiz
concessivo, ora ao condicional, ignorando-se, muitas vezes outros sentidos. Nessa
perspectiva, consideramos estranho o não acolhimento das orações modais no rol das orações
adverbiais, já que a circunstância de modo é contemplada quando da indicação tipológica dos
adjuntos adverbiais.
Considerando que as gramáticas só reconhecem a função conjuntiva do sem quando ele
integra a locução conjuntiva sem que, de modo que o papel de articular orações – uma matriz
e uma adverbial-, é atribuído apenas à locução, o que é uma incoerência, já que há menção às
orações adverbiais reduzidas de infinitivo e também que, geralmente, há omissão do valor
modal expresso pelas orações introduzidas por esse elemento, objetivamos, neste artigo, trazer
evidências de que a função conjuntiva é assumida por essa preposição e de que a expressão de
modo pode também configurar uma função particular. Queremos dizer que, embora possa
ocorrer sincretismo de ideias, a ponto de se considerar o valor modal como o mais amplo, ao
lado de outro matiz particular, há contextos em que não se pode negar o matiz modal. Para
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2021
esse estudo, temos como referência gramáticos e linguistas, a exemplo de Kury (1991),
Bechara (1999), Poggio (2002), Ilari et al. (2008), entre outros.
Este estudo é parte de uma pesquisa mais ampla em torno dos transpositores sem e sem
que, responsáveis por encabeçar estruturas adverbiais reduzidas e desenvolvidas em textos de
teor argumentativo - artigos e entrevistas de periódicos semanais Veja, Época e Isto É. Cabe
esclarecer que, neste artigo, delimitamos como objeto de análise uma pequena amostra de
orações previamente classificadas como de valor modal, dado o interesse em ratificar que esse
matiz não é específico das estruturas gerundiais. A discussão do tema se sustenta em
pressupostos da vertente funcionalista, sob o viés da gramaticalização, com vistas a confirmar
a recategorização sintática e semântica dos elementos em foco. Organizamos o texto em duas
seções – uma voltada para reflexão quanto aos aspectos formais da estrutura reduzida, e outra
quanto à categorização semântica, em especial, do matiz modal, etapa em que comentamos
alguns exemplos. Feito isso tecemos as considerações finais.
1. A caracterização das estruturas reduzidas nas gramáticas: algumas contradições
A maneira como tem sido feita a distinção entre oração reduzida e desenvolvida nas
gramáticas é um tanto obscura; enquanto o reconhecimento de uma oração reduzida vem
associado à presença das formas nominais do verbo – infinitivo, gerúndio e particípio –, o da
oração desenvolvida se associa à identificação de um conectivo. Confirma essa confusão a
citação de Garcia (2000, p. 45) “As três famílias de orações subordinadas [...] podem ser
desenvolvidas [...] quando têm conectivo, ou reduzidas, quando o verbo está numa das suas
formas nominais [...]”. Mais coerente seria que o reconhecimento se baseasse apenas no
critério da forma verbal – se finita ou infinitiva. Não bastasse esse fato, não há consenso entre
os gramáticos quanto à aceitação das estruturas encabeçadas pelas formas de infinitivo,
gerúndio e particípio enquanto oração, por conceberem-nas, como afirma Bechara (1999, p.
513), “uma subunidade da oração, um termo dela, quase sempre como um adjunto adnominal
ou adverbial”. Como essas estruturas normalmente são regidas de preposição, deparamo-nos
com um novo problema: embora a preposição seja caracterizada como um item relacional, ela
é definida como um item que precede unidade nominal. Assim, em um período como “Ele
saiu sem se despedir”, dado o caráter nominal do infinitivo, não se reconhece a preposição
como elemento conjuntivo, sendo conferido ao sem a função prepositiva.
Ao tratar da sintaxe das formas nominais do verbo, Azeredo (2000) faz uma
observação que ressalta o caráter verbal do infinitivo, permitindo que se conceba uma
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2022
estrutura iniciada por essa forma como uma oração. Para o autor, essas formas se assemelham
às formas verbais plenas quanto à possibilidade de apresentarem sujeito e objeto,
distinguindo-se, porém, das formas finitas, por serem inflexíveis quanto à expressão de tempo
e modo. Seguindo esse raciocínio, na oração “Não viajarei, sem terminar as atividades”, a
presença de argumento – objeto direto, favorece o reconhecimento de oração, vindo a revelar
a função conjuntiva do sem. Mas, embora Azeredo (op. cit., p. 239) afirme que as formas
nominais se revelam “versáteis pela possibilidade de se tornarem sintagmas graças ao
processo de transposição”, no seu argumento, uma informação restringe a função das orações
reduzidas de infinitivo, ao omitir o uso do infinitivo na formação de sintagmas adverbiais:
Expande-se desse modo o emprego delas, possibilitando que orações
assumam, sob a forma de infinitivo, o lugar sintático dos sintagmas
nominais, e sob a forma de gerúndio ou de particípio o lugar sintático dos
sintagmas adjetivais e adverbiais (AZEREDO, 2000, p. 239).
Portanto, na sua exposição, fica nítido que as formas reduzidas de infinitivo só integram
orações substantivas. Por outro lado, ocorrências como “Ao terminar a aula, sairemos.”;
“Volto, para terminar a tarefa.” ou “Apesar de terminar o trabalho, não viajarei.” representam
estruturas adverbiais e não substantivas. Em todas elas temos preposições assumindo a função
de juntor. Logo, se confirma o postulado de que a preposição latina sine originou, no
português, além de prefixo e preposição, conjunção.
2. A classificação semântica dos transpositores sem e sem que: a visão de alguns
gramáticos
Um levantamento dos matizes semânticos expressos pela locução conjuntiva sem que ou
a estrutura sem junto a verbo no infinitivo em algumas gramáticas permite a constatação de
que a pluralidade de sentidos expressos por essas marcas só se torna perceptível a partir do
confronto de várias abordagens, o que se deve a uma falta de correspondência entre os valores
indicados na seção destinada ao estudo das preposições; e naquelas destinadas ao estudo da
locução conjuntiva e dos tipos de relações adverbiais. Apresentamos, no quadro abaixo, a
classificação desses elementos gramaticais, expondo primeiramente a proposta de gramáticos
cuja abordagem é considerada mais conservadora, depois a daqueles cuja abordagem seria
mais inovadora.
Quadro (03): categorização semântica do sem / sem que em algumas gramáticas:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
AUTORES
Enéas Barros
PREPOSIÇÃO SEM
-
(1985)
2023
CONJUNÇÃO SEM
RELAÇÕES
QUE
ADVERBIAIS
Condição: sem que = a
Condição;
não ser que;
Consequência: sem
Consequência;
que = de modo/sorte
que);
Concessão;
Concessão;
Tempo
Cunha e Cintra
Subtração, ausência,
Condição: sem que =
(2001)
desacompanhamento.
se não
Rocha Lima
Negação, ausência,
Condição
(2002)
desacompanhamento.
-
Condição,
Concessão,
Consequência
Vilela e Koch
-
Concessão
Modo
Privação, ausência, estabelece
Condição;
Condição,
relações semânticas
Modo
Modo
(2001)
Neves (2000)
correspondentes a de
advérbio de modo e condição.
Da leitura do quadro, percebemos que três dos autores citados não se ocupam da
caracterização semântica da preposição sem, mas aqueles que o fazem apresentam uma
interpretação comum – a noção de ausência, com poucas variações. Quanto ao matizes
semânticos que podem ser depreendidos das relações entre a oração nuclear e a oração
adverbial/satélite introduzida pelos transpositores em foco, identificamos: concessão,
condição, causa, consequência, modo, tempo e adição, sendo os dois primeiros matizes os
mais citados. É oportuno destacar, quanto ao valor modal, que as gramáticas pedagógicas só o
reconhecem nas orações gerundiais, embora a circunstância de modo seja contemplada na
relação dos adjuntos adverbiais. Ressaltamos que Neves (2000) apresenta uma classificação
mais uniforme, ou seja, os matizes propostos para a preposição são os mesmos expostos nos
outros segmentos. Na seção subsequente, detemo-nos na relação de modo.
Conforme afirmado na introdução, pouco se faz referência à relação de modo nas
gramáticas; e quando isso ocorre é normalmente em forma de notas. Por outro lado, os autores
que se referem às orações modais apontam como sinalizadores dessa noção os conectivos
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2024
como, como se, sem que, entre outros. Alguns, a exemplo de Vilela e Koch, 2001, p. 246;
287), apresentam mecanismos que permitem o reconhecimento da relação modal: 1.
perguntas, por meio do advérbio interrogativo “como” ou da locução “de que modo/forma”,
cuja resposta pode igualmente ser preenchida por advérbio de modo terminado em mente ou
estruturas similares, formadas de “preposição + substantivo ou adjetivo; 2. a substituição do
conector em uso por outro de valor equivalente; e 3. a paráfrase com estruturas de gerúndio.
Vilela e Koch (2001, p. 381) referem-se aos adverbiais modais, equivalentes a advérbios,
definindo-os, como elementos que caracterizam, explicam e especificam o estado de coisas
representado no enunciado, “do ponto de vista do escrevente”. Nesse contexto, há
especificações quanto: a) à caracterização da qualidade de um acontecer, que é marcada pelos
advérbios em mente ou equivalentes, a exemplo de “Ele aprende facilmente/com facilidade.
(grifo dos autores, p. 382); b) à quantidade e intensidade; indicação de matéria, do
meio/instrumento, entre outras noções.
Em se tratando do plano das orações, os autores se referem à indicação “de outras
circunstâncias mais ou menos delimitáveis” que podem ser expressas seja por frase
subordinada seja por grupo infinitivo, como ilustram as duas sentenças apresentadas pelos
autores: “Ele foi-se embora sem que apresentasse cumprimentos de despedida a ninguém”; e
“Ele foi-se embora sem se despedir de ninguém”. (VILELA E KOCH, 2001, p. 383). No
segundo segmento da gramática – o do texto, quando tratam das relações lógico-semânticas,
os autores definem a relação de modo como aquela em que uma das orações indica o modo
como se realiza a ação ou evento expresso na outra. E exemplificam: “Sem levantar a cabeça,
a criança ouvia as reprimendas da mãe.” (VILELA E KOCH, op. cit., p. 503).
Luft (1989) problematiza a não incorporação das adverbiais modais nas gramáticas,
porque, segundo ele, uma oração adverbial modal nada mais é que um adjunto adverbial com
predicado. Kury (1991) também reclama um lugar para as orações modais, pois, se, por um
lado, alguns casos podem ser incluídos nas concessivas, outros só admitem a interpretação de
modo, como afirma: “Nalguns exemplos, entretanto, não é possível, com toda boa vontade,
deixar de reconhecer o valor modal a orações desenvolvidas com a locução ‘sem que’, ou as
suas equivalentes reduzidas com a preposição ‘sem’.” E apresenta os seguintes exemplos:
“Em casa estudo à vontade, [sem que ninguém me perturbe]”; “Retirou-se à francesa, isto é,
[sem se despedir de ninguém]”. (KURY, 1991, 101). Bechara (1999), por sua vez, esclarece
que o modo “denota simplesmente que tal ou qual circunstância não se deu [...]”, como revela
o exemplo “Saiu sem ser percebido”.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2025
Diante desse quadro, resta a dúvida quanto ao motivo do não reconhecimento desse
tipo de circunstância quando materializado sob a forma desenvolvida ou reduzida de
infinitivo. Uma possível justificativa em relação à resistência em admitir esse matiz semântico
pode ser o fato de um só conector denotar múltiplos valores; mas o sincretismo de conteúdo
não é uma característica específica das relações modais. Assim, da mesma forma que o
conector como, além de expressar causa, apresenta valores a exemplo de comparação,
conformidade e também modo, sem e sem que, ao lado dos valores de condição e concessão,
podem expressar causa/explicação, consequência/conclusão e modo.
Uma evidência desse amálgama de sentidos pode ser confirmada contrapondo-se as
ocorrências ilustradas por Bechara (1999): (a) “Retirou-se sem que chamasse seus colegas”.;
(b) “Saiu sem ser percebido”. e (c) “Não sairá sem apresentar os exercícios”. O autor
confere a (a) e (b) o valor modal, e a (c), o condicional. O que chama a atenção do confronto
entre os exemplos (b) e (c) é que ambos apresentam o mesmo verbo (sair), diferenciando-se
apenas na marcação do tempo verbal; logo, o que parece favorecer a leitura condicional de (c)
é o fato de o verbo estar flexionado no futuro, além da forma negativa da oração principal, daí
a interpretação “Não sairá se não apresentar os exercícios”. Propomos, para essa discussão,
uma outra construção: (d) “Saiu sem apresentar (ou sem ter apresentado) o trabalho”, em
que a troca do verbo na forma não-finita pelo sintagma verbal apresentado sob a forma
composta serve de pista para a depreensão do valor de concessão, na medida em que conduz à
interpretação de que a apresentação do trabalho era uma condição para a saída de alguém. Ou
seja, ocorreu a negação de uma condição, daí a equivalência com a sentença “Saiu embora
não tivesse apresentado o trabalho”. Entendemos que o raciocínio aplicado à sentença (d)
poderia ser aplicado também a (a), no caso de se considerar a ação de “chamar os colegas”
como condição para a ação de “alguém se retirar” - uma vez não atendida tal condição, inferese o valor de concessão. Isso confirma que a especificação do sentido não está exclusivamente
sob a tutela do conectivo, pois, aliado a este, o tempo verbal auxilia na compreensão do
propósito comunicativo.
Silva (2007), após demonstrar a aproximação entre as orações modais e outros tipos de
orações, propõe três critérios que seriam definidores das adverbiais modais, quais sejam: 1)
comparação de orações modais com orações fronteiriças, a exemplo das conformativas,
comparativas, condicionais, concessivas e consecutivas, de forma a depreender traços
distintivos; 2) contraposição de orações supostamente modais (sob a estrutura reduzida de
gerúndio) com outros tipos de construção, como a estrutura coordenada; e 3) observação do
tipo semântico do verbo presente nas orações principal e subordinada.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2026
De acordo com o primeiro critério, diante de uma sentença em que ocorre o sem que,
o autor analisa a possibilidade de alternância dessa locução por (Se não) ou por (Embora não).
As orações marcadas positivamente quanto a esses traços são classificadas como tendo valor
condicional e concessivo, respectivamente, de modo que a partir desse confronto, chega-se a
indicação dos traços [- Se não] e [- restrição abandonada], para caracterizar a oração modal.
Por meio dessa estratégia, a identificação da oração modal se faz por eliminação, de forma
que, se uma sentença não é condicional nem concessiva, é modal. Logo, é um critério útil para
a identificação desses dois valores – uma marca correspondendo a cada um deles. Por outro
lado, duas questões podem ser levantadas: i) se há uma marca para cada função, qual seria
aquela que identificaria a noção de modo?; e ii) como explicar os casos em que concorrem
diferentes matizes, já que esse critério justificaria apenas uma das possíveis interpretações?
Uma possível resposta seria a substituição da oração supostamente modal pelo item anafórico
“assim”, ou pela locução “dessa forma”, e ainda por um advérbio; porém, a pró-forma
“assim” parece encapsular diferentes sentidos. Para confirmar esse comportamento,
considere-se a sentença a seguir, seguida da paráfrase (1’), que resulta em interpretação
modal:
(1) “[...] Mas a questão, no fundo, não é que a Fiesp tenha conseguido montar uma diretoria
com mais de 100 cidadãos sem colocar entre eles nenhuma mulher. É que as mulheres
não reclamaram; provavelmente nem perceberam. [...]”. (VJ, A, 25/05/11)
(1’) “[...] a questão não é ter conseguido montar uma diretoria assim/dessa forma, isto é,
excluindo as mulheres de cargos de direção. [...]”.
ou ainda em uma interpretação concessiva:
(1’’) “[...] a questão não é ter montado uma diretoria, isto é, apesar de não colocar/embora não
colocasse as mulheres de cargos de direção. [...]”.
evidenciando que a composição da diretoria foi possível apesar da ausência das mulheres, o
que significa que a presença delas não é condição necessária para a montagem de uma
diretoria; sendo esse um problema menor se comparado ao silêncio delas. Talvez seja esse o
motivo de casos dessa natureza serem categorizados como pertencentes à relação de
concessão, por restringir a interpretação. Vale salientar que esse exemplo também passa no
teste da permuta com a estrutura coordenada (critério detalhado a seguir), de que se depreende
o traço [+ simultâneo], indício da oração modal – ou seja, durante o processo de composição
da diretoria, não houve convocação das mulheres para se integrarem ao grupo.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2027
Quanto ao segundo critério, contrapõe-se uma sentença supostamente modal, sob a
forma reduzida de gerúndio, a uma estrutura coordenada, com o auxilio do conector e. A
escolha da estrutura gerundial ocorre porque, conforme assinala Silva (2007, p. xxiv), “O
principal aspecto responsável pela semelhança entre as modais e as coordenadas é o tempo
verbal, mais precisamente, o gerúndio”. Assim, objetivando elucidar a distinção entre uma
modal e uma coordenada, o autor faz o teste da alternância dos dois modelos oracionais, para
depreender uma propriedade da oração adverbial modal. De acordo com a proposta, se a
situação retratada na oração reduzida de gerúndio ocorrer simultaneamente ao fato descrito na
principal, a oração se caracteriza como modal, “já que a modal indica o modo como um
acontecimento se deu e, por isso, representa uma situação simultânea à apresentada na oração
principal.” (SILVA, 2007, p. xxvii). Por outro lado, se a simultaneidade não se revela, ou seja,
se há sequenciação de acontecimento, de modo que um fato ocorre após o outro, está-se diante
de oração coordenada. Essas duas situações podem ser observadas nas estruturas abaixo
listada, citadas pelo autor, nas quais os desmembramentos (e’) e (f’) representam,
respectivamente, uma estrutura coordenada, e outra subordinada modal, que respondem aos
traços [+ simultâneo] e [- simultâneo] respectivamente.
e) Recebeu a joia, entregando-a depois à esposa. / e’) Recebeu a joia [e
entregou depois à esposa].
f) A mocidade ama a vigília, aborrecendo o sono./ f’) A mocidade ama a
vigília, [e aborrece o sono].
Embora a testagem realizada pelo autor envolvesse a estrutura gerundial, acreditamos ser
possível aplicar esse critério às sentenças sob a forma reduzida, uma vez que o que está sob
avaliação é a propriedade ser ou não simultâneo. Seguem algumas sentenças cuja testagem
dos traços [+ simultâneo] e [- simultâneo] resultou na classificação de adverbial modal:
(2) “[...] Por que, durante tanto tempo, o amor paterno por seu filho, o cantor Enrique
Iglesias, não foi tão expressado? Pelo contrário, você passou muito tempo sem ter
contato com ele”. – Fabio Adriano Ribeiro (ÉP, E, 17/10/11)
(2’) “[...] você passou muito tempo [e não tinha contato com ele]”.
(3) “[...] Rosany caiu sem respirar direito [...]” (ÉP, A, 17/10/11)
(3’) “[...] Rosany caiu [e não respirava direito [...]”
(4) “Eu não consigo me imaginar transmitindo um jogo da seleção brasileira sem ter o Arnaldo ao
meu lado [...]”. (VJ, E, 18/08/10);
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2028
(4’) “[...] transmitindo um jogo da seleção brasileira [e o Arnaldo não estar (estando) ao meu lado
[...]”
(5) “[...] Dilma terá de montar uma estrutura dupla de coordenação de governo, uma gerencial e
outra para lidar com a base governista. O melhor caminho seria ter um ministro para cada uma
das tarefas e conseguir escolher pessoas que joguem entrosadas, sem disputar quem manda
mais. [...]” (ÉP, A, 15/11/2010)
(5’) “[...] conseguir escolher pessoas que joguem entrosadas [e não disputem quem manda [...]”.
(6) “Elisabete Miranda, uma brasileira do interior de São Paulo que chegou aos Estados Unidos
sem falar uma palavra de inglês, aprendeu rápido e viu a chance. [...]” (IÉ, A, 30/11/2011);
(6’) “[...] uma brasileira do interior de São Paulo que chegou aos Estados Unidos [e/mas não
falava uma palavra de inglês, aprendeu rápido e viu a chance [...]”. (IÉ, A, 30/11/2011)
Nesses exemplos reconhecemos uma relação modal, pois, como demonstra o teste, não
há um encadeamento de fatos – um descrito na coordenada assindética e outro na sindética, de
modo que se identifica o traço [+ simultâneo]; dá-se, na verdade, a descrição/qualificação de
um fato/situação mencionado na oração principal ou a indicação de uma circunstância. Não
ter contato com o filho, em (1), indica uma circunstância que transcorreu, segundo o
entrevistador, por um longo intervalo de tempo, ideia sinalizada no verbo “passar”, podendo
ser parafraseada por “durante um longo tempo,...”, corroborando a noção de simultaneidade;
não respirar, em (2), indica uma circunstância momentânea, decorrente de um fato pontual,
revelado pelo verbo “cair”; em (3) e (4) mencionam-se características/circunstâncias que se
julgam não poderem estar ausentes quando da ocorrência do processo (transmitir) e da ação
(jogar), mencionados nas orações principais. E, em (5), não falar indica uma qualificação
ausente no momento em que uma cidadã brasileira se depara em um país que não é o de
origem, como denuncia a flexão modo/temporal em chegou e falava.
Relativamente ao terceiro critério, consiste na verificação do sentido expresso pelo
verbo (excetuando-se os verbos relacionais). No estudo realizado por Silva (2007), a atenção
se volta para o verbo presente na oração adverbial, sendo adotada a classificação semântica
proposta por Halliday (1994, apud SCHEIBMAN, 2001, p. 66), que contempla sete categorias
(MATERIAL,
EXISTENCIAL,
COGNITIVO,
CORPÓREO,
SENSITIVO,
PERCEPTIVO, RELACIONAL) às quais se somam outras duas (POSSESSIVO
RELACIONAL e VERBAL), indicadas por Dixon (1991, apud SCHEIBMAN, op. cit., p.
67). Na nossa pesquisa, não nos preocupamos em investigar uma possível correlação entre a
natureza do verbo e os valores semânticos das orações; desse modo, a tipologia semântica do
verbo foi tomada como parâmetro para confirmar a classificação dos dados quanto à
determinação modal, porque, face à presença de ocorrências ambíguas, havia a necessidade
de pistas linguísticas que corroborassem a classificação semântica das orações. Se a
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2029
identificação das condicionais e concessivas é facilitada pela substituição do conector pelas
marcas se não/embora não, o mesmo não se dá com outros valores; no caso específico da
relação modal, a resistência à sua incorporação ao grupo das adverbiais motivou a busca de
propriedades que validassem a sua identidade. Na tabela abaixo, relacionamos os verbos
identificados nas orações classificadas como modais, em uma amostra de 66 (sessenta e seis)
orações, especificando o que cada categoria representa.
Classificação
EXISTENCIAL: Verbos
de ação
MATERIAL: referem-se
ao fato de algo existir,
estar presente, acontecer
RELACIONAL2: verbos
de ligação da G.T.
VERBAL (de
comunicação): referemse ao ato de dizer, falar
COGNITIVO: referemse ao ato de pensar,
raciocinar
CORPÓREO: referemse a ações que ocorrem
relacionadas ao corpo
Tabela (03): Tipologia semântica1 dos verbos
Verbos identificados no corpus coletado
Ter (1); viver (1); viver – localização (1)
Aparecimento/desaparecimento em cena:
morrer (1); chegar (3); sair (3); entrar (3); deixar
(1); cair (1); crescer (4); completar (1); viver (1);
melhorar (1)
Multar (1); legislar (2) fazer (2); jogar (1); disparar
(1); cumprimentar (1); votar (2); governar: (1);
trabalhar (2); revelar (1); avaliar (1)
Verbo de movimento:
caminhar (1); transitar (1); ir (1); seguir (2)
Passar
Transmitir (1); responder (1); revelar (1);
compartilhar (1); falar (1); dizer (1)
Total de
ocorrências
3
19
15
5
11
6
Percorrer = compreender (1); equivocar (1); pensar
(1); questionar (1)
4
Tocar (1); andar (1); brigar (1); chorar (1)
4
Considerando a circunstância de modo, nos termos de Kury (1991, p. 100), como a que
“exprime a maneira, o meio pelo qual se realiza o fato enunciado na oração principal”; ou
ainda, retomando Vilela e Koch (2001), como a caracterização/especificação da qualidade de
um acontecer, ou o modo como se realiza uma ação ou evento descrito, é possível deduzir que
1
Devemos esclarecer que, na proposta de Halliday estão incluídos os verbos relacionais (os de ligação da GT);
mas, para evitar confusão entre os critérios sintático e semântico, preferimos desconsiderar, na classificação das
adverbiais, a estrutura (SEM + v. relacional + PREDICATIVO), de que faziam parte ora o verbo ficar ora o
verbo ser. Nestas o predicativo, muitas vezes, expressa noção de modo. Quanto aos verbos agrupados na
categoria existencial são classificados nas gramáticas como intransitivos (inacusativos/ergativos), alguns deles
também rotulados de transitivos adverbiais.
2
Classificamos o verbo passar como relacional por associação com o verbo ficar, já que, nos contextos de uso,
sugere a interpretação de estado de permanência.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2030
há uma sintonia entre esse conceito e os verbos presentes nas orações classificadas como
modais.
Conclusão
Da análise, é possível afirmar que o transpositor sem autoriza diferentes leituras,
sendo a inferência de modo uma delas. No decorrer da exposição, apresentamos alguns
critérios de identificação desse tipo de relação, devendo ficar claro que essa classificação
precisa ter como base não um critério, mas o conjunto dos critérios, devendo o leitor deve
atentar também para o contexto discursivo, que certamente irá orientar a definição dos casos
em que se verifica maior congestionamento de sentidos. Acreditamos que a menção aos
matizes – concessão e condição – pelas gramáticas se deve ao fato de haver um interesse em
determinar uma classificação que leve em conta o valor prototípico. Ressaltamos que o sem se
especializou como conjunção no contexto das estruturas reduzidas de infinitivo e alertamos
para a inconsistência de uma abordagem das orações adverbiais restrita à identificação dos
valores semânticos inerentes ao conector, pois a língua se revigora constantemente, à medida
que novos sentidos vão sendo incorporados aos elementos linguísticos já existentes.
Referências
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2031
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Nas fronteiras da linguagem ǀ
2032
UMA BREVE ANÁLISE DISCURSIVA EM MÚSICAS
CRISTÃS
[Voltar para Sumário]
Max Silva da Rocha1 (UNEAL)
José Bezerra da Silva2 (FACESTA)
Introdução
O presente trabalho aqui referido aborda a Análise do Discurso, porém não com o
intuito de explicar detalhadamente o que significa a AD, mas faremos um breve
esclarecimento sobre ela com o objetivo de por meio dela analisar e compreender como
alguns discursos, neste caso, o religioso inserido em letras musicais cristãs tem o poder de
manipular o entendimento de várias pessoas e comprometer a compreensão da Sagrada
Escritura. Vemos desse modo, cantores contrapondo-se ao que na verdade se dizem pregar e
defender. Como se sabe, a Análise do Discurso é uma ramificação da Linguística que irá
estudar todo o meio de interação comunicacional e transmissão de linguagem. O mundo
religioso vem se tornando algo de forte influência social, pois vemos vários ex-cantores
considerados mundanos se tornarem religiosos. Não que isso seja algo anormal, mas
continuam sendo influenciados pelas práticas que antes faziam. Com isso, esses cantores
apenas mudam as letras das músicas, porém continuam os mesmos toques, harmonia,
sincronia musical, ou seja, tudo aquilo que determinados cantores, agora religiosos, estavam
fazendo eles continuam exercendo, mas de uma forma totalmente diferente. Alguns citam
ainda que como Deus os chamou naquela situação em que eles se encontravam também
continuarão cantando só que de uma forma que seja a favor de louvar a Deus. Desse modo,
começam a escrever músicas ditas religiosas e acrescentar os mesmos ritmos ou sincronias
musicais que eles antes usavam em qualquer música. Ao compor essas letras musicais alguns
cantores gospeis e cristãos recém convertidos não prestam atenção ou, provavelmente, fazem
1
Max Silva da Rocha é graduando do 5º período do curso de Letras – Português da Universidade Estadual de
Alagoas – UNEAL - Campus III - Palmeira Dos Índios – AL. É bolsista do Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à Docência – PIBID/CAPES/UNEAL.
2
José Bezerra da Silva é Mestre em Educação pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Atualmente é
professor de Filosofia na Faculdade São Tomás de Aquino – FACESTA, Palmeira dos Índios - AL.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2033
de propósito e deixam implícito para os ouvintes desses CDs e DVDs essas letras de músicas
que distorcem completamente a palavra de Deus, isto é, a Bíblia Sagrada. Muitas pessoas
começam a cantar essas canções e, às vezes, até a doutrinar outros indivíduos a partir dessas
letras que, na verdade, só servem para comprometer a autoridade e a santidade da Sagrada
Escritura do Deus dos cristãos.
Com essa pesquisa podemos saber e entender como essas músicas aqui tratadas estão
jogando por terra os ensinamentos bíblicos e comprometendo o entendimento de várias
pessoas uma vez que os cantores, aqui abordados, são famosos e estão continuamente
presentes nos meios de comunicação, seja rádio, televisão ou qualquer outro meio
comunicativo. A transmissão dessas mensagens tem o poder de manipular e,
consequentemente, colocar no entendimento daqueles que não conhecem e não leem a Bíblia
uma forma de pensar totalmente equivocada. Às vezes até os próprios cantores religiosos não
sabem nem o que estão dizendo, pois se lessem a Sagrada Escritura pensando teologicamente,
aí sim, cairia a ficha e eles mudariam parte do conteúdo dessas músicas que ao invés de
transmitir paz, alegria, adoração, na verdade o que deixa transparecer, para aqueles que veem,
é uma grande confusão envolvendo a Palavra de Deus. Sobre esse entendimento de dito e nãodito nessas músicas religiosas é imprescindível citar o que afirma Orlandi:
[...] consiste em considerar o que é dito em um discurso e o que é dito em outro, o
que é dito de um modo e o que é dito de outro modo, procurando escutar o não-dito
naquilo que é dito como, uma presença de uma ausência necessária [...] porque [...]
só uma parte do dizível é acessível ao sujeito, pois mesmo o que ele não diz (e que
muitas vezes ele desconhece) significa em suas palavras. (ORLANDI, 2005, p.34)
Vê-se, pois, quão grande é a problemática nesses discursos religiosos e musicais
porque só dizem uma parte da veracidade dos fatos e confundem totalmente o restante do
conteúdo. Veremos adiante como se deu todo esse processo de mudança de textos bíblicos
para essas músicas que confundem os ouvintes da Palavra de Deus. Nesse primeiro momento
atentemos para as seguintes perguntas: De que maneira alguns cantores ditos cristãos tanto
católicos como evangélicos, estão fazendo uso de textos religiosos bíblicos em suas músicas?
E esses mesmos textos possuem bases e estão de acordo com a Bíblia Sagrada?
Nos próximos itens, responderemos a estas e outras perguntas e mostraremos na
prática como essas músicas religiosas que se dizem cristãs estão fazendo uso dos textos
Sagrados para confundirem e divulgarem entre os seus adeptos o elemento errôneo e, assim,
estão comprometendo tudo aquilo que se chama Palavra de Deus.
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2034
Breves considerações sobre análise do discurso
Nesta pesquisa iremos tomar como base a Análise do Discurso para tentar
compreender toda essa complexidade que encontramos num discurso religioso expresso por
meio de letras musicais cristãs. É através da Análise do Discurso que será possível
compreendermos o nosso tema problema, uma vez que com a AD conseguimos realizar toda
uma análise tanto interna, quanto externa do conteúdo abordado.
Interna no que diz respeito ao que o discurso, neste caso as músicas, estão dizendo e
também de que forma está sendo dito. Na externa iremos abordar, necessariamente, o motivo
pelo qual o discurso está sendo dito, isto é, a causalidade. Nesse sentido é importante destacar
o que afirma Fiorin e Platão:
Um dos aspectos mais intrigantes da leitura de um texto é a verificação de que ele
pode dizer coisas que parece não estar dizendo: além das informações
explicitamente enunciadas, existem outras que ficam subentendidas ou pressupostas.
Para realizar uma leitura eficiente, o leitor deve captar tanto os dados explícitos
quanto os implícitos. (FIORIN; PLATÃO, 2000, p.241)
É justamente a partir dessa perspectiva de analisar não só o que nos está claro, mas
também o sentido do que não está dito e foi por esse motivo que tomamos a iniciativa de
realizar esse trabalho. Nesse aspecto, a nossa percepção de leitura não pode se delimitar
apenas ao que está explícito, mas sempre procurando fazer uma análise crítica de todo o
discurso em si. Utilizar a Análise do Discurso é tentar explicar e entender como está
constituído todo o discurso e como se dar sua interação no meio social. O nosso objeto de
pesquisa, ou seja, as músicas cristãs são também uma linguagem e esse estudo aqui realizado
não está visando o lado gramatical da linguagem, mas principalmente, a ideologia existente
em nosso objeto de estudo e o que ele transmite para seus respectivos adeptos. É
simplesmente observar a língua de um ponto de vista discursivo e também ir além das
perspectivas que a língua e a gramática nos oferecem.
A AD como já está mencionado no seu próprio nome analisa o discurso, o qual é
compreendido como a palavra em movimento, prática de linguagem, na qual se analisa o
indivíduo falando. É importante ressaltar o que diz Orlandi (2001, p.26): “A AD visa à
compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de
significância para e por sujeitos.” Com Análise do Discurso podemos entender e compreender
como o discurso religioso, aqui tratado em músicas cristãs, tem ideologias, público alvo,
distorções em alguns aspectos semânticos, ou seja, do sentido ao que as letras musicais se
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2035
referem. Dessa forma, a análise minuciosa do texto mostra que os efeitos e as escolhas feitas e
a causa que produzem dependem e estão interligadas com a maneira como o discurso foi
construído, ou seja, há toda uma intenção por trás do discurso. De acordo com Cavalcante et
al. (2009, p.25-26) sabemos que “não há, pois, discurso neutro ou inocente, uma vez que ao
produzi-lo, o sujeito o faz, a partir de um lugar social, de uma perspectiva ideológica e, assim,
veicula valores, crenças, visões de mundo que representa os lugares sociais que ocupa”.
A seguir, utilizaremos a AD para identificarmos algumas inconsistências em músicas
cristãs. Também, provavelmente, poderemos identificar a causa de tantos erros teológicos de
alguns cantores religiosos ao escreverem as letras dessas músicas.
Análise crítica das letras musicais
Como tudo que está implícito pode ser revelado é válido ressaltar o que afirma o livro
do Apóstolo Marcos (cap. 4-22, p.56) o qual afirma: “Porque nada há encoberto que não haja
de ser manifesto; e nada se faz para ficar oculto, mas para ser descoberto.” Nesse sentido é
que tomamos a iniciativa de analisar esse discurso. Agora, veremos na prática, como cantores
religiosos sejam gospeis ou católicos estão transmitindo uma mensagem distorcida com
relação aos textos bíblicos. Sabemos e de forma alguma negamos que as músicas têm uma
bela melodia, arranjos bem feitos, emoções, mas no que diz respeito à transmissão e
mensagem bíblica é aí que encontramos sérios problemas. Segue abaixo as doze músicas nas
quais encontramos vários erros teológicos.
1º Caso. Grupo ministério apascentar. Música: Deus de promessas
“[...] Mas a alegria vem de manhã És Deus de perto e não de longe [...]”
Nessa letra, vemos o grande erro no segundo trecho da mensagem porque está em total
desacordo com um texto Bíblico. Na parte: “És Deus de perto e não de longe” temos que
comparar com um texto do livro do profeta Jeremias (cap. 23-23, p.927) que diz: “Sou eu
apenas Deus de perto, diz o Senhor, e não também Deus de longe?”. Entende-se por esse texto
Bíblico que Deus é de perto e também de longe. Desta forma, cai por terra toda a base desta
música porque o seu fundamento não passa de um erro infantil por não conhecerem ou não
respeitarem os escritos e as passagens Sagradas.
2º Caso. Grupo voz da verdade. Música: Quando Deus se cala
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2036
“[...] Ele tarda, mas não falha, Ele vem com a solução [...]”
Observamos nessa letra o alto nível de desprezo para com a Palavra de Deus. Vejamos
o que o segundo livro do Apóstolo Pedro (cap. 3-9, p.336) afirma: “O Senhor não retarda a
sua promessa, ainda que alguns a têm por tardia.” Nota-se outra vez a possível falta de leitura
e de conhecimento bíblico na hora de compor essas músicas, pois como nos mostra o texto
bíblico jamais Deus tarda.
3º Caso. Cantor Talles Roberto. Música: Filho Meu
[...] Filho meu tá fugindo de mim? Já tentei, procurei e outras vez você me rejeitou, porta na
cara doeu [...]
Essa canção é muito polêmica, porque a letra nos passa uma ideia de que Deus se
humilha para ter seus filhos andando e seguindo todos os seus preceitos e mandamentos.
Dessa forma fica uma pergunta no ar: Deus é quem precisa se humilhar para ter os seus filhos
ou são os filhos que necessitam de tal humilhação? Vamos ver o que a Bíblia nos revela no
segundo livro de Crônicas (cap. 7-14, p. 479): “Se o meu povo, que se chama pelo meu nome,
se humilhar e orar, buscar a minha face e se afastar dos seus maus caminhos, dos céus o
ouvirei, perdoarei o seu pecado e curarei a sua terra”. E também está escrito no livro de Tiago
(cap. 4-10, p.269): “Humilhai-vos na presença do Senhor e Ele vos exaltará”. Portanto, não é
Deus que deve se humilhar, mas sim todas as pessoas que querem ter um bom relacionamento
com o Senhor dos Exércitos.
4º Caso. Cantora Elaine de Jesus. Música: Ele é capaz
“[...] Ele não nasceu, e ninguém jamais o criou [...]”
Nessa letra compreendemos que apenas a primeira parte está confusa comparada aos
conceitos bíblicos. No trecho “ninguém o jamais criou” está correto, pois sendo Deus eterno
ninguém, de fato, o criou. Porém a primeira parte “Ele não nasceu” está totalmente errada,
pois a música também se refere a Jesus Cisto. Por isso confrontaremos com o livro de Isaías
(cap. 9-6, p.836) que diz: “Porque um menino nos nasceu, filho se nos deu, e o principado
está sobre os seus ombros, e se chamará o seu nome, Conselheiro, Deus Forte, Pai da
Eternidade, Príncipe da Paz”. Sendo assim, temos mais um exemplo de um erro teológico que
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2037
distorce a Palavra de Deus uma vez que Deus não, mas o Cristo, como homem, sim ele nasceu
apesar de existir antes que o mundo fosse criado.
5º Caso. Cantor Regis Danese. Música: Faz um milagre em mim
“[...] Quero amar somente a ti [...]”
Nessa canção, precisamos fazer uma reflexão porque amar a Deus no sentido literal
jamais haverá algum tipo de erro, mas o que vemos nessa letra é um sentido, como as outras,
confuso. Vejamos o que o Cristo Glorificado falou a esse respeito no livro do Apóstolo
Marcos (cap. 12-30,31, p.72): “Escute, povo de Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único
Senhor. Ame o Senhor, seu Deus, com todo o coração, com toda a alma, com toda a mente e
com todas as forças. E o segundo mais importante é este: Ame os outros como você ama a
você mesmo.” Não temos dúvida, com essa citação, que Deus quer que nós também amemos
os nossos semelhantes. Com isso a letra da música, citada acima, também não tem
fundamento e nem base bíblica para tal afirmação.
6º Caso. Cantora Elaine de Jesus. Música: Anjos de Deus
“[...] Se acontecer um barulho perto de você é o anjo chegando para receber suas orações e
levá-las a Deus [...]”
Outra canção bastante polêmica porque o anjo acima mencionado está dando uma
ideia de mediador entre Deus e os homens. Mas será isso mesmo que a Bíblia nos ensina?
Vamos conferir no livro de Timóteo (cap. 2-5, p.297) que diz: “Porque há um só Deus, e um
só Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem”. Os anjos não têm essa função,
vemos mais uma canção que não tem base bíblica alguma. Portanto, Jesus é o único mediador
e só Ele que pode levar as nossas orações a Deus.
7º Caso. Cantora Ludmila Ferber. Música: Os sonhos de Deus
“[...] Não desista, não pare de crer! Os sonhos de Deus jamais vão morrer [...]”
A música acima trata dos sonhos de Deus. No entanto, fica uma pergunta no ar: Deus
dorme? Para essa resposta, precisamos citar o livro de Salmos (cap. 121-4, p.768) que diz:
“Eis que não tosquenejará nem dormirá o guarda de Israel”. Desta forma, temos mais uma
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2038
inconsistência, pois Deus não dorme segundo o texto Bíblico e a letra da música está em total
desarmonia com a Bíblia.
8º Caso. Cantora Cassiane. Música: Com muito louvor
“[...] Deus não rejeita oração, oração é alimento [...]
Nessa canção a cantora afirma que Deus não rejeita oração. De fato, Deus não rejeita
oração de um justo, fiel e temente aos seus mandamentos. Mas, quando se trata de pessoas
que não obedecem aos preceitos de Deus e nem aos seus estatutos, aí sim, Deus rejeita oração
como está escrito no livro de Jeremias (cap. 7-16, p.905): “Tu pois não ores por este povo,
nem levantes por ele clamor ou oração, nem me importunes, porque eu não te ouvirei.” Vê-se,
pois, que Deus rejeitou e rejeita sim orações mesmo que a música não acredite nisso.
9º Caso. Cantor Cícero Nogueira. Música: A fila é menor
“[...] A fila é bem menor de madrugada, irmão, a fila é bem menor. Muita gente está
dormindo, pouco crente está orando com sua face no pó [...]”
Outra música que coloca em dúvida o poder de Deus. Sendo Deus Onipresente Ele
pode estar em todas as partes e em todos os momentos ao mesmo tempo como afirma
Jeremias (cap. 23-23,24, p.927): “Sou eu Deus apenas de perto, diz o Senhor, e não
também de longe? Ocultar-se-ia alguém em esconderijos, de modo que Eu não o veja?
diz o Senhor; porventura, não encho Eu os céus e a terra? diz o Senhor.” Porém, a
música acima não acredita nessa onipresença do Senhor Deus e torna-se outra canção vaga
que aborrece os princípios bíblicos.
10° Caso. Grupo Resgate. Música: E Ele vem
“[...] E Ele vem, E Ele vem saltando pelos montes e Ele vem [...]”
Na letra desta canção não podemos imaginar como uma música considerada religiosa
tomando como base os preceitos doutrinários bíblicos pode cometer tão grave e ao mesmo
tempo infantil erro teológico. Sabemos que essa letra está de forma clara contrapondo-se ao
que o próprio Senhor Jesus Cristo falou no segundo livro do Apóstolo Pedro (cap. 3-10,
p.336) que diz: “Mas o dia do Senhor virá como o ladrão de noite, no qual os céus passarão
com grande estrondo, e os elementos, ardendo, se desfarão, e a terra e as obras que nele há, se
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2039
queimarão.” Portanto, o Cristo Glorificado não virá saltando sobre os montes como afirma a
música acima, mas virá como Ele mesmo nos prometeu, ou seja, de surpresa como um ladrão.
11º Caso. Cantora Lauriete. Música: Somente cante
“[...] Cante, somente cante, e as cadeias hoje vão se abrir [...]
O trecho dessa canção nos ensina a somente cantar que todos os nossos problemas irão
se resolver. Mas será mesmo que, dentro de um contexto bíblico, é realmente isso que a
Palavra de Deus nos ensina? Para essa resposta, é necessário fazermos uma análise da
passagem bíblica quando o Apóstolo Paulo e seu amigo Silas estavam presos em uma
fortaleza. Como está escrito no livro de Atos dos Apóstolos (cap. 16-25, p.194): “E, perto da
meia-noite, Paulo e Silas oravam e cantavam hinos a Deus, e os outros presos os escutavam.”
Contudo, eles não somente cantavam, mas também oravam a Deus. Não conseguimos
compreender o motivo pelo qual estas músicas gostam de esconder esses detalhes
imprescindíveis da Bíblia uma vez que a oração é algo tão importante como o próprio Senhor
Jesus afirma no livro de Mateus (cap. 6-6, p.9): “Mas tu, quando orares, entra no teu aposento,
e, fechando a tua porta, ora a teu Pai que está em oculto, e teu Pai, que vê secretamente, te
recompensará.” Por que omitir a oração na letra dessa música? Provavelmente, porque essa e
outras músicas não respeitam e não se importam com o conteúdo exposto, mas o que
verdadeiramente interessa é o quanto se vai ganhar com as vendas desses discos que são
totalmente contrários aos ensinamentos bíblicos.
12º Caso. Grupo Ouvir e Crer. Música: A dança da noiva
“[...] No brilho das pedras afogueadas Noivo vem, vem contemplar minha dança Quero
dançar a dança da noiva [...]”
Esta última canção aqui abordada tem uma grande complexidade por isso preferimos
deixá-la para o final desta análise. Não há nenhum sentido na letra dessa música. Não há base
bíblica alguma para denominá-la gospel, católica ou simplesmente cristã. Até mesmo no
tocante as pedras afogueadas, só há uma menção na Bíblia sobre isso e está em Ezequiel (cap.
28-14,19, p.1014) que diz: “Tu eras querubim ungido para proteger, e te estabeleci: no monte
santo de Deus estavas, no meio das pedras afogueadas andavas.” Todo esse texto se refere a
descrição de Lúcifer quando ele ainda estava no exército celestial de Deus. Seria essa música
uma adoração e louvor a Lúcifer ou é apenas uma simples coincidência? Essa resposta remete
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2040
a outros futuros estudos a serem realizados sobre músicas que, implicitamente, adoram e
propagam o nome de Lúcifer.
Considerações finais
O ensino superior brasileiro tem como suporte o ensino, a pesquisa e a extensão. A
pesquisa se constitui em elemento fundamental do ensino superior, por meio dela que
adquirimos conhecimentos de natureza científica. É com esse perfil de cientificidade que este
estudo teve a intenção de investigar embasado na Análise do Discurso como algumas músicas
consideradas cristãs estão fazendo uso de forma errada de textos bíblicos e com isso deixando
transparecer a problemática aqui encontrada. Analisamos minuciosamente as doze músicas e
em todas elas encontramos incompatibilidades com os textos Sagrados já que todas as canções
dizem ter todo um fundamento cristão.
Sabe-se que essas músicas são consideradas verdadeiros hinos de louvor a Deus,
porém o que detectamos é que os fiéis e adoradores não param para analisar a letra da canção
e encontrar essas inconsistências ao compararmos com a Bíblia Sagrada. Por meio desta
pesquisa esperamos despertar no meio gospel, católico ou simplesmente cristão, para também
eles fazerem suas interpretações e análises destas músicas. O nosso objetivo com esse
trabalho não é atacar os cantores gospeis ou católicos, mas sim, mostrar como a Palavra de
Deus está sendo usada de uma forma totalmente errada.
O que compreendemos com essa pesquisa foi verdadeiramente uma mistura de mentira
com verdade dentro deste discurso musical religioso. Nesse sentido, é importante ressaltar o
que diz o segundo livro do Apóstolo Pedro (cap. 2-2, p.335): “E por causa de muitos, será
blasfemado o caminho da verdade”. Com essas músicas não temos dúvida de que a concepção
bíblica está sendo totalmente blasfemada.
Quanto à pesquisa realizada, vale salientar ter sido fascinante, sem a pretensão de
querer esgotar o assunto aqui tratado. Constituindo-se num pontapé inicial para a realização
de outros futuros estudos. Contudo, analisamos um gênero discursivo pouco estudado no meio
acadêmico e com essa análise detectamos, nas músicas, várias inconsistências, talvez por
intenção própria ou provavelmente outros fatores que a nossa pesquisa não conseguiu
identificar. E ainda despertamos para o significado e a importância da realização de pesquisa
para a obtenção de conhecimentos.
Isto posto vale a pena dizer que de agora em diante, através da satisfação obtida com
esta pesquisa, podemos ver com outros olhares a musicalidade cristã, fazendo assim uma
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2041
análise crítica, nessas canções que se dizem pregar e louvar o Santo nome de Deus. Por fim, é
válido dizer o que está escrito no livro de Gálatas (cap. 4-16, p.270): “Fiz-me acaso vosso
inimigo, dizendo a verdade?”
Referências3
Bíblia Sagrada. (Com destaque para os livros de Atos dos Apóstolos, Ezequiel, Filipenses,
Isaías, Jeremias, Lucas, Marcos, Mateus, Pedro, Salmos e Timóteo). Traduzida por
ALMEIDA, João Ferreira de. 5ª edição revista e corrigida. São Paulo-SP: Juerp, King’s
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Educação Brasileira: o Simulacro de um Discurso Modernizador. 1ª ed. Maceió: Edufal,
2007.
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Em Mim. São Paulo: Line Records, 2008. CD Faixa 13.
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de Janeiro: Kairós Music, 2001. CD Faixa 06.
FIORIN, José Luiz; PLATÃO, Francisco Savioli. Lições de Texto: Leitura e Redação. 4ª ed.
São Paulo: Ática, 2000.
GOMEZ, Elizeu. Com Muito Louvor. SANTOS, Cassiane. 11º Álbum Com Muito Louvor.
São Paulo: MK Music, 2000. CD Faixa 01.
GOMEZ, Elizeu. Anjos de Deus. In: JESUS, Elaine de. Álbum 15 anos ao vivo. Rio de
Janeiro: Adonai Gospel Records, 1993. 1º CD. Faixa 01.
GOMEZ, Elizeu. Ele é capaz. In: JESUS, Elaine de. Álbum até o fim. Rio de Janeiro: Cristo
vencedor, 2002. 2º CD.
MOISÉS, Carlos Alberto. Quando Deus se Cala. In: MOISÉS, Carlos Alberto. Álbum:
Quando Deus se Cala. São Paulo: Califórnia Discos, 1999. CD Faixa 02.
MOISÉS, Carlos Alberto. Imagem de Deus. In: MOISÉS, Carlos Alberto. 14º Álbum: Imagem
de Deus. São Paulo: Califórnia Discos, 1993. Faixa 01.
3
As referências estão estruturadas da seguinte forma: 1º os compositores; 2º o nome das músicas e 3º os
cantores. Por fim, outros detalhes importantes.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2042
NOGUEIRA, Cícero. A Fila É Menor. NOGUEIRA, Cícero. 1º Álbum: A Igreja Pura. São
Paulo: Fonte do Louvor, 1991. CD Faixa 03.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise do Discurso: Princípios e Procedimentos. 6ª. ed. Campinas:
Pontes, 2005.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e Leitura. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2006.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu Funcionamento: As Formas do Discurso. 4ª ed.
Campinas: Pontes, 1996.
RIBEIRO, Roseane. Somente Cante. MALTA, Lauriete Rodrigues. 4º Álbum: O Segredo é
Louvar. Espírito Santo: Praise Records, 2001. CD Faixa 07.
RODRIGUES, Valéria. No Brilho Das Pedras Afogueadas. RODRIGUES, Eber et al. Álbum:
Atraído Por Ti. São Paulo: Aliança Produção, 2005. CD Faixa 01.
SACER, David, et al. Deus de Promessas. In: SACER, David. 2º Álbum: Deus de Promessas.
Rio de Janeiro: Apascentar Music, 2005. CD Faixa 04.
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2043
DICIONÁRIO ELETRÔNICO: UMA PROPOSTA PARA O
ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA
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Mayara Oliveira Feitosa (UFS)
Elaine Vieira Gois (UFS)
Introdução
O presente estudo tem por objetivo apresentar a estrutura e a função do DELPE –
Dicionário Eletrônico de Português para Estrangeiros, desenvolvido pelo Grupo
Interinstitucional de Pesquisa em Lexicologia (GIPLEX/CNPq) da Universidade Federal de
Sergipe, integra o projeto maior “Formação docente e inovação tecnológica para o ensinoaprendizagem de Português Língua Estrangeira (PLE)” – FAPITEC. Pretende-se tratar dos
critérios utilizados na relação entre definição e exemplário, a partir dos critérios
metodológicos utilizados no projeto de um dicionário trilíngue, com uma estrutura
inovadora onomasiológica<>semasiológica. O referido projeto propõe-se à elaboração de um
dicionário eletrônico de equivalência entre o Português Brasileiro (PB), o espanhol
rioplatense e inglês estadunidense, tendo como metas principais a promoção e difusão do
Português como Língua Estrangeira.
Segundo Corrêa (2012), os eixos temáticos do DELPE recobrem campos semânticos
mais genéricos e extensos, como Movimentos Corporais e, mais específicos, como Habitação
e Mobiliário. Utiliza-se no DELPE, a seleção vocabular obedece principalmente aos critérios
de afinidade ao eixo temático e do uso frequente no PB, cuja recorrência tem sido analisada
pelo programa de análise lexical WordSmith Tools 4.0. Corrêa (2012) ressalta que:
o DELPE não prevê a inclusão de termos, regionalismos, abreviaturas, adjetivos
pátrios e nomes próprios. A seleção de palavras estrangeiras, gírias e tabuísmos
depende da frequência de uso em PB em situações relativamente formais
(CORRÊA, 2012, p. 362).
No tocante às definições, continua a autora, o DELPE utiliza o dicionário eletrônico
Houaiss (2007; 2009) como base para reelaborar suas acepções, com base em modelos
semânticos e modelos lexicológicos de Pottier (1974) e Martin (1983). O primeiro trata de
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2044
casos particulares de definição, isto é, da verdade por definição, aplicável apenas a vocábulos,
cuja acepção apresenta semas com valor de verdade em qualquer tempo e em qualquer lugar e
o segundo apresenta a análise sêmica de um dado conjunto vocabular.
O DELPE apresenta em sua interface semasiológica à semelhança da sequenciação dos
elementos da microestrutura utilizada no Diccionario para la Enseñanza de la Lengua
Española para Brasileños – SEÑAS (2001), e possui uma dependência semântica da interface
onomasiológica. Seu suporte eletrônico apresenta os menus: entrada vocabular em PB;
definição analítica em PB; exemplo; e equivalente em espanhol rioplatense e inglês
estadunidense, subtraídos os recursos audiovisuais.
Referencial Teórico
A analiticidade, segundo Martin (1983), consiste em um termo definir-se por outro
tautologicamente, porém essa tautologia não implica a equivalência absoluta entre termos,
pois se assim o fosse existiriam sinônimos perfeitos nas línguas. Destarte, essa equivalência é
apenas uma aproximação dos significados, e é representada metalinguisticamente pelo
enunciado x é y. A relação de equivalência entre x e y é um traço comum a todos os
enunciados e estabelece relação sinonímica entre o termo condensador e os termos
expansores.
Na analiticidade, há o princípio da “verdade por definição”, segundo o qual o
conteúdo definitório independe de qualquer contexto. Em outras palavras, esse conteúdo é
constituído por aquilo que é verdade em qualquer tempo e em qualquer lugar. Contudo, a
definição de Martin (1983), não se aplica a todas as paráfrases dos dicionários, pois, embora a
analiticidade e sua “verdade por definição” se apliquem adequadamente às paráfrases
linguísticas, nas quais as definições independem em maior grau do contexto de uso, tal não
ocorre com as paráfrases discursivas, que, ao contrário, apresentam maior dependência
contextual.
Em se tratando do DELPE, um dicionário, cujo propósito é o de funcionar como apoio
pedagógico ao ensino-aprendizagem de PLE para estrangeiros o postulado teórico de Martin
(1983) revela-se importante, porque a analiticidade implica a construção de definições ou
predicações expandidas sob a forma de frases analíticas, que, segundo Turazza (1998),
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2045
auxiliam na construção das representações mentais do conceito, conforme o seguinte
exemplo: Pular → elevar-se do chão por impulso dos pés e das pernas.1
Em síntese, a proposta desse autor contempla parcialmente os procedimentos
definicionais do DELPE. Por um lado, a analiticidade das definições revela-se um importante
procedimento definicional para o usuário em questão, visto que expande o conteúdo
vocabular, evitando as pseudodefinições condensadas; por outro, tal princípio por ser
“verdade por definição” não se aplica a todas as definições, sobretudo as mais dependentes do
contexto situacional, ou aquelas decorrentes, segundo Marques (1990), de associações
metafóricas.
Proposta teórica de Bernard Pottier
Pottier (1974) propôs um modelo de análise sêmica, à semelhança do modelo de
análise fonológica, que possibilitou o reconhecimento de traços semânticos, ou semas, de um
vocábulo, além de classificar os semas pelo maior ou menor grau de generalidade. Seu
postulado comprova a não existência de sinônimos perfeitos, uma vez que sempre há no
interior dos vocábulos, isto é, em seu semema, um traço semântico diferenciador em relação a
um dado conjunto vocabular. A título de esclarecimento, foi reproduzido o seguinte quadro
por ele proposto2:
Latir
Gritar
Cacarejar
Miar
sonora +
+
+
+
Pelo gato
_
+
_
+
Pelo cão
+
+
_
_
Pela galinha
_
+
+
_
Com n decibéis
~
~
~
~
Manifestação
bucal
Figura 13-Análise sêmica
Na Figura 1, o conjunto considerado {latir, gritar, cacarejar, miar} representa as
palavras que se quer definir, e os elementos da coluna vertical esquerda representam os traços
semânticos, ou semas, que podem ou não aparecer para cada elemento do conjunto
¹ Definição extraída do Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.
²
Os sinais +, -, ~ significam respectivamente: presença do sema, ausência do sema, sema indiferente.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2046
considerado. Na leitura vertical da figura, foi extraído o semema, ou conjunto de traços
semânticos, por exemplo de latir: {manifestação sonora do cão}, implicando {não para o
gato, não para a galinha}. A palavra gritar intersecciona todos os sememas do conjunto, por
isso funciona como um arquissemema.
O conjunto dos semas distintivos em um conjunto dado, isto é, o semema é constituído
por semas genéricos, ou classemas; semas específicos, ou semantemas; e, semas virtuais, ou
virtuemas, estes representam a parte conotativa do semema, aqueles, classemas e semantemas,
representam a parte denotativa.
Os classemas e os semantemas apresentam traços descritivos, que se referem à
natureza do termo estudado, e aplicativos, que se referem à função do mesmo termo.
A título de exemplificação, para tesoura e faca, têm-se os quadros propostos por Corrêa
(2009):
Descritivo
TESOURA
Semantema
Classema
Aplicativo
/constituído por duas lâminas
reunidas por um eixo, sobre o qual
se movem, abrindo em cruz/
/instrumento/
/para cortar/
Virtuema
Fig. Pessoa maledicente
Quadro 1: conjunto de semas do lexema /tesoura/, retirado do Dicionário Aurélio.
Quadro 2: conjunto de semas do lexema /faca/, retirado do Dicionário Aurélio
FACA
Semantema
Descritivo
/constituído de lâmina e cabo/
Classema
Virtuema
/instrumento/
Aplicativo
/para cortar/
Nas definições lexicográficas, os traços de um semema linearizam-se sob a forma
linguística de frases definitórias do vocábulo, a partir de um dado universo de experiência.
Assim, tem-se para tesoura → instrumento cortante, constituído por duas lâminas reunidas
por um eixo, sobre o qual se movem, abrindo em cruz; e, para faca → instrumento cortante,
constituído de lâmina e cabo.
A análise sêmica proposta por Pottier (1974) é um procedimento bastante funcional
para a construção de definições lexicográficas, porque sua organização vai do traço mais
genérico ao mais específico, o que, além de facilitar a compreensão do consulente, aponta
para a existência dos arquissememas, os quais atuam na formação de redes ou campos
semânticos. Com efeito, os pressupostos apresentados são de natureza estruturalista e
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2047
mostram-se eficazes para o DELPE como embasamento teórico para a construção dos
critérios formais das definições, porém no que diz respeito ao conteúdo intercultural das
definições revelam-se insuficientes.
Funções do exemplário
A partir do final da Segunda Guerra Mundial os estudos lexicográficos passam a dar
maior importância aos exemplos. De acordo com Santos (2006) após esse período houve um
interesse significativo que reflete estudos atuais à medida que mostram funções essenciais à
compreensão das definições. Leffa (2000) assegura que o vocabulário é um dos aspectos mais
importantes no processo de aprendizagem de uma língua estrangeira e que o léxico não é o
único elemento da língua, mas é o que melhor caracteriza e a distingue de outras.
Campos (1994) considera que os exemplos possuem caráter essencial já que
desenvolvem elementos concretos que se tornam impossíveis de serem introduzidos na
definição, assim não devem ser considerados como um ornamento. Por isso, o exemplário
permite um conhecimento cultural com um repertório mais significativo, para facilitar sua
utilização. Pérez (2000) também elucida a importância do exemplário, discorrendo a esse
respeito relata que o exemplo deve ser compreensível para o usuário e que deve ser breve e
representativo, que oferecer elementos culturais e enciclopédicos quando se trata de duas
culturas muito distantes entre si. Os exemplos podem ajudar na compreensão do significado,
mostrar o comportamento sintático da palavra e também para ilustrar determinadas
combinações léxicas frequentes.
Lexicógrafos como Drysdale (1987, p. 215) elencam algumas funções que os
exemplos podem exercer: completar a informação na definição; mostrar a palavra num
contexto; distinguir um significado de outro; ilustrar padrões gramaticais; mostrar outras
colocações típicas e indicar registros apropriados de níveis estilísticos. Pérez (2000), por sua
vez, distingue duas funções para os exemplos uma lingüística e uma filológica. A primeira
ilustra construções e combinações sintáticas de maior uso. E a segunda, ilustra o testemunho
cultural de unidade em uso carregando marcas históricas e ideológicas.
Rey Debove (1971) afirma que a definição incompleta apoiada em exemplos, pode
tornar-se completa graças ao exemplo que a acompanha. Dessa maneira, o exemplo apresenta
traços semânticos e elementos pragmáticos associados a outros protótipos no interior do
verbete. Desse modo, o exemplo veiculado a definição concretiza seu significado diante do
caráter abstrato geral da definição.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2048
As definições do DELPE possuem exemplos devidamente construídos com o objetivo
de possibilitar o contato com situações práticas de uso. Parte-se da premissa de escolhas que
figurem exemplos representativos e naturais. Dessa maneira o aprendiz da língua alvo é capaz
de desenvolver capacidades linguísticas e comunicativas.
Resultados e Discussões
No verbete chácara foram encontradas acepções que comportam as características de
uma habitação que possui espaço para atividades rurais e utilidades produtivas, adequandose ao campo Habitação:
1. propriedade rural voltada para a avicultura, a pequena criação de animais,
o plantio de frutas, legumes etc. 2. pequena propriedade campestre, freq.
destinada ao lazer; casa de campo; 3. grande propriedade urbana, com
habitação e área verde; 4 Uso: linguagem de delinqüentes. casa de detenção,
presídio. (HOUAIS, 2007).
Após discussões, o referido verbete apresentou a necessidade da elaboração de
acepções com uma linguagem mais clara, com a finalidade de facilitar a compreensão do
consulente estrangeiro, mantendo a diferenciação entre as acepções com relação a cada
utilização do verbete, assim como a supressão de termos derivados para ou compostas:
“avicultura” e “campestre”. Na definição principal houve a necessidade de utilização da
definição tautológica para o enriquecimento vocabular do estudante e aumentar a capacidade
de associação sinonímica dos vocábulos em questão, e que são bastante comuns em PB: (vide
arquivo anexo).
O verbete agasalho apresenta acepções que o fazem parte do campo Vestuário e
complementos, houve a necessidade de algumas adequações para facilitar a compreensão por
parte do aprendiz estrangeiro, mantendo o princípio da analiticidade:
1. qualquer lugar
que abrigue; alojamento, pousada. 2. o que resguarda do frio, das quedas de
temperatura. 3. Derivação: por metonímia. roupa que protege da chuva ou do
frio. 4. Derivação: por extensão de sentido. aquilo que possa proteger ou
amparar. 5. Derivação: por metáfora. acolhimento caloroso, aceitação, valia.
Ex.: os crentes desejam encontrar um a. na religião. 6. Derivação: por extensão
de sentido. grande solicitude; amabilidade, atenção, cuidado. Ex.: aceitaram o
chá e outros a. que acompanhavam a recepção amiga. 7. Derivação: por
extensão de sentido. Uso: formal. sensação de aconchego e segurança;
intimidade tranqüila, confortável. Ex.: sonhava com o a. de uma companhia. 8.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2049
Regionalismo: Beira Litoral. comida e bebida que se dá no fim do trabalho.
(HOUAIS, 2009).
No referido verbete, houve a necessidade de reelaboração da primeira acepção com
aspectos específicos de objetos do respectivo campo, para facilitar a compreensão do aprendiz
de PLE, mantendo a diferenciação entre as acepções com relação a cada utilização do verbete.
A segunda acepção apresentou a necessidade de utilização da definição tautológica para
ampliação vocabular do aprendiz. Com a aplicação dos critérios do DELPE, foram suprimidos
os regionalismos em desuso das acepções: (vide arquivo anexo).
Conclusão
O DELPE tem como finalidade oferecer ao consulente estrangeiro uma orientação
capaz de transformar as dificuldades em facilidades no processo de ensino-aprendizagem do
idioma brasileiro. O DELPE apresenta-se com uma estrutura onomasiológica ↔
semasiológica que busca possibilitar ao aprendiz de PLE o uso de uma ferramenta para
auxiliá-lo tanto na produção escrita quanto na leitura de textos em língua portuguesa. Por isso
as definições do DELPE poderão contribuir para que o estrangeiro possa se familiarizar com o
vocabulário brasileiro, desse modo, ampliando o seu conhecimento linguístico em PB,
depreenda a significação dos vocábulos que não possuem equivalências na língua de origem,
por fim, que o consulente possa identificar características culturais do Brasil nas definições
que evidenciem caracteres distintos.
A construção dos verbetes se dá através da contextualização das frases definitórias, a
relação entre definições de exemplos e atribuição de relevo aos aspectos culturais. Portanto,
um dicionário eletrônico de equivalência voltado especialmente para o ensino-aprendizagem
de PLE não pode deixar de privilegiar, em suas definições e exemplário, os recortes culturais
que expressam peculiaridades do uso vocabular do PB, pois seu propósito é baseado na
construção de novos conhecimentos interculturalmente.
Defende-se aqui que a utilização do dicionário em práticas didáticas pedagógicas é uma
estratégia inovadora, apesar do uso de um instrumento relativamente antigo, tendo em vista as
especificidades do referido dicionário que podem ser atestadas nas fichas em anexo que contém
alguns verbetes a nível de exemplificação. A proposta de elaboração do DELPE tem fins
didático-pedagógicos, pois propõe uma política linguística voltada à promoção e difusão da
Língua Portuguesa, na variedade brasileira, no espaço geopolítico de outros continentes, além
da América do Sul.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2050
Referências
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eletrônica integral do Dicionário Houaiss da língua portuguesa) FL Gama Design, 2007.
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2051
ANGÚSTIAS NO INFÉRTIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE
“NOS HAN DADO LA TIERRA” DE JUAN RULFO
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Mercia Paulino Nicolau da Silva (UFPE)
Originalmente divulgado na revista “Pan”, de Guadalajara, em julho de 1945, o conto
“Nos han dado la tierra” descreve as infaustas desventuras que assomam a dura existência
humana. O angustiante sofrimento da ultrajante vida usufruído pelas personagens desta obra
retrata um desafio suportado por muitos indivíduos atualmente.
Diante disso, torna-se interessante saber um pouco mais sobre o enredo que versa
sobre quatro pessoas que seguem por uma terra que lhes foi doada. Trata-se de um grande
terreno, porém sem árvores, sem água, sequioso e que apresenta altas temperaturas solares.
Observamos que todo o texto está centralizado nessa localidade que, segundo Jozef
(1986) é um cenário rural, um ambiente hostil. Uma grande extensão de terreno, ressequida e
sem subsistência. Nesse contexto, logo nos primeiros parágrafos da narrativa encontramos a
seguinte descrição dessa terra:
Después de tantas horas de caminar sin encontrar ni una sombra de árbol, ni una
semilla de árbol, ni una raíz de nada, se oye el ladrar de los perros. Uno ha creído a
veces, en medio de este camino sin orillas, que nada habría después; que no se
podría encontrar nada al otro lado, al final de esta llanura rajada de grietas y de
arroyos secos (RULFO, 1945).
Aqui o cenário é descrito como um espaço desértico. Apesar de ser uma terra muito
extensa, uma planície, a mesma não possui uma utilidade efetiva, pois é seca e sem vida:
“¿Quién diablos haría este llano tan grande? ¿Para qué sirve?” (RULFO, 1945). E conforme
lemos, as personagens caminham por muito tempo por esse lugar, mas encontram o nada, “ni
una raíz de nada” (RULFO, 1945).
No início da caminhada eram mais de vinte homens, mas por causa das dificuldades da
jornada, resistiram poucos. E esse pequeno grupo vive uma “existência diaspórica”,
caracterizada pela “implícita tensão entre a vida aqui” e o “desejo pelo lá” (WALTER, 2009,
p. 43).
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2052
Neste momento, torna-se possível ressaltar a mobilidade dos sujeitos no ambiente
definido pela angustiante decadência. Essa prática não deixa de ser uma das características do
mundo atual globalizante, pois em determinadas momentos, por exemplo, os indivíduos
mudam de regiões por vários motivos, alguns em busca de emprego, outros à procura de bemestar, no entanto, esses constantes movimentos “deslocam fronteiras fixas e abrem novos
espaços fronteiriços entre pessoas, povos, cultura e civilização” (WALTER, 2009, p. 34). Em
contrapartida, Bhabha (1998) declara que por causa do empobrecimento do Terceiro Mundo e
do capitalismo transnacional, a grande parte da diáspora política e econômica da modernidade
são os trabalhadores migrantes.
Diáspora, portanto, é um termo que indica: um grupo de pessoas, um estado
histórico do Dasein, um entre-lugar geográfico e temporal. A palavra sugere redes
de relações reais ou imaginadas entre povos dispersos cuja comunidade é sustentada
por diversos contatos e comunicações que incluem família, negócio, viagem, cultura
compartilhada e mídia eletrônica, entre outros (WALTER, 2009, p. 43).
Por outro lado, ainda é possível verificar que muitas sociedades se relacionam com a
terra, com o cultivo e com o tratamento dos campos para sua própria sobrevivência. O
costume predominante dessa gente seria, então, o resultado de uma intimidade entre o sujeito
e a natureza, e ainda entre o homem e a sua própria natureza humana.
Sobre isso, Eagleton (2003), evoca uma explicação para a palavra “cultura” que seria a
relação dialética com a natureza. Um dos sentidos da ideia de cultura é constituído pelos
significados originais dos termos “lavoura” ou “cultivo agrícola”: “O conceito de cultura,
etimologicamente falando, é um conceito derivado do de natureza. Um de seus significados
originais é ‘lavoura’ ou ‘cultivo agrícola’, do que cresce naturalmente” (EAGLETON, 2003,
p. 9).
Dessa forma, consideramos que, no conto, para as personagens, a terra denota um
sentido mais além. Ela seria parte da cultura de um povo, integrando a sua biografia e a sua
existência. Os hábitos e o desenvolvimento daquela determinada gente estariam enraizados à
lavoura, adaptados ao trabalho agrícola, ao produto do solo e, dessa forma, aclimatados à sua
cultura. Contudo, vale salientar que esse referido solo não se apresenta fecundante, mas sim
infértil, como um ambiente inóspito, completo de adversidades, de dificuldades e de
desengano.
Em vista disso, salientamos que conforme Adelstein (1971) torna-se possível verificar
nas obras de Juan Rulfo alguns símbolos. Nesta, por exemplo, averiguamos que, com certa
peculiaridade, o contista retrata a região não apenas como um meio, mas também como uma
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2053
personagem que assume as proporções assombrosas de um agente destruidor de vidas, de
esperanças, de sonhos: “Y a la gota caída por equivocación se la come la tierra y la
desaparece en su sed” (RULFO, 1945). E neste contexto, salientamos que o símbolo da água
não deixa de ser uma imagem muito importante porque “tradicionalmente indica un
renacimiento y la vida” (ADELSTEIN, 1971, p. 93). Assim, constatamos que essa terra
devora, monstruosamente, cada gota de existência; esse chão engole o líquido essencial e
vitalício do ressurgir do ânimo humano.
Também verificamos que o “llano”, de certa forma, demonstra que, por muitas vezes,
as penosas condições de vida tornam difíceis as façanhas de possuir um lugar, o “sentir-se em
casa” (WALTER, 2009, p. 45). Então, analisamos que a palavra “lugar”, conforme afirma
Roland Walter (2012), pode ser definida de duas maneiras: “Geográfica, ambiental,
fenomenológica (ao ligar ‘corpo’ e ‘lugar’) e genealógica (ao ligar ‘ancestralidade’ com
‘território’) em termo de expansão de império, urbanização e diminuição da natureza virgem,
entre outros” (WALTER, 2012, p. 139-140). E o modo como os homens vivem nesse lugar
(maneira de falar, imaginário, modos de vestir, etc.) é delimitado pelo território, isto é, “o que
é verdade/realidade num lugar e para um determinado grupo necessariamente não o é para
outro” (WALTER, 2012, p. 140). Então, isso demonstra que ser ou fazer parte de um local
não é só determinado pela relação de posse, ou melhor, pelo que um habitante possui naquela
localidade, como um imóvel, por exemplo; mas “pela relação entre a memória fragmentada e
seletiva e a experiência vivida” (WALTER, 2012, p. 140). Além disso, sublinhamos que estar
num lugar, é ter uma identidade a qual “significa ter uma história inscrita numa terra”
(WALTER, 2012, p. 145) e, ao mesmo tempo, saber respeitar a diversidade das diferenças
alheias.
Por sua vez, evocando os protagonistas do conto recordamos serem camponeses que
caminham em um estéril ambiente rural, e são passíveis de sofrimento causado por eventuais
problemas de ordem social, política, econômica, entre outros, padecidos, também, por muitos
homens. Além disso, apreciamos que “Rulfo não explica aonde vão nem de onde vêm.
Apresenta-as sob um céu vazio, num mundo hostil. Não conseguem definir-se, e nisso são
contemporâneos de todos os anti-heróis de nossa época” (JOZEF, 1986, p. 81). E nesse
deslocamento, o espaço e o tempo se entrelaçam e produzem “figuras complexas de diferença
e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão” (BHABHA, 1998, p.
19).
Nesse aspecto, podemos considerar que o pesar de um camponês é compartilhado por
várias vidas do cenário atual da sociedade. Ou seja, as personagens do conto são determinadas
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2054
por causa do seu penoso padecimento, tornando-as, assim, reconhecidas por muitos aqueles
que as leem. A difícil situação do cotidiano, as experimentações desagradáveis, as
locomoções de um lugar para outro, a dor física e mental é definida e associada pela mesma
grandiosidade sentimental de muitos povos, e que, apesar de toda essa lamentável situação,
ainda possuem alguma esperança de viver uma oportunidade de melhora. Por isso, também,
corroboramos com Rama (2001), quando certifica que a literatura regionalista estabelece
“uma comunicação possível com um leitor, não apenas nacional, como também universal”
(RAMA, 2001, p. 76).
Neste âmbito, delineamos que as personagens principais do enredo são Melitón,
Faustino, Esteban e uma quarta chamada “yo”, que faz com que a história seja contada por ela
mesma: “Ese alguien es Melitón. Junto con él, vamos Faustino, Esteban y yo. Somos cuatro...
éramos veintitantos; pero puñito a puñito se han ido desperdigando hasta quedar nada más
este nudo que somos nosotros” (RULFO, 1945). Sobre esse trecho, consideramos que “yo”
reflete um narrador homodiegético, ou seja, aquele que “está presente como personagem na
história que conta” (REUTER, 2002, p. 70). Isto é comum ocorrer em narrações de
autobiografias e confissões cujos relatos se referem a sua própria vida.
E assim, dessa maneira, utilizando-se desse recurso narrativo que inscreve o
sofrimento vivido pelas personagens como parecendo ser o do próprio escritor, consideramos
que Rulfo denota possuir uma associação com o mesmo pesar dos quatro tipos, como sendo
algo que aflige uma sociedade e que também é sensivelmente penoso na sua alma, algo que
ele reconhece e que o preocupa de maneira intensa: “Todos los autores escriben sobre lo que
conocen y utilizando este conocimiento demuestran temas más universales” (ADELSTEIN,
1971, p. 91). É como se essa amarga angústia, como se essa desagradável experiência vivida
pelas personagens fosse compartilhada por ele mesmo. Dessa forma, consequentemente, o
escritor também permite que a sua aflição possa ser sentida de maneira mútua também pelos
seus leitores. Nesse caso, acentuamos que teremos oportunidade de conferir mais adiante a
biografia desse contista e verificar que suas obras revalidam momentos em que permitem
serem visualizadas as marcas de sua autoria em alguns espaços no texto: “El pesimismo y el
fatalismo penetran todas sus ideas y su obra literaria” (ADELSTEIN, 1971, p. 91).
Ainda torna-se relevante evidenciar que para Reuter (2002), “as personagens têm um
papel essencial na organização das histórias. Elas permitem as ações, assumem-nas, vivemnas, ligam-nas entre si e lhes dão sentido” (REUTER, 2002, p. 41). Diante disso, testificamos
que os protagonistas do texto “Nos han dado la tierra” possuem uma importância
fundamental para a obra, pois o próprio título do conto menciona e testifica o que ocorre com
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2055
elas, pois “de certa forma, toda história é história de personagens. Aliás, isso é amplamente
atestado pelos títulos dos livros e dos filmes ou pela maneira de resumi-los por intermédio dos
seus protagonistas” (REUTER, 2002, p. 41).
Interessante ainda distinguir que o indivíduo que entrega a terra aos camponeses é um
representante das autoridades; um delegado. Porém, ao efetuar a doação, ele nem ao menos
escuta os homens rurais para realizar um efetivo diálogo. Na verdade, esse agente não lhes dá
a oportunidade de, através de uma comunicação, expressar que se trata de uma terra
improdutiva:
- Pero, señor delegado, la tierra está deslavada, dura (...).
- Eso manifiéstenlo por escrito. Y ahora váyanse. Es al latifundio al que tienen que
atacar, no al Gobierno que les da la tierra.
- Espérenos usted, señor delegado. Nosotros no hemos dicho nada contra el Centro.
Todo es contra el Llano... No se puede contra lo que no se puede (RULFO, 1945).
Aqui, verificamos que quando o comissário tenta transferir a responsabilidade a outro
órgão, ao mesmo tempo se pronuncia aos trabalhadores do campo com um tom superior e sem
sensibilidade. Não se importando com a preservação humana, nem respeitando “a
irredutibilidade do outro” (GOMES, 2008, p.48). Os camponeses tentam questionar a dádiva
porque sabem que a terra não oferece condições para cultivar, para plantar, nem para
trabalhar. Mas, o delegado com particular intolerância demonstra que não os deseja ouvir,
pelo contrário, profere tamanha ironia em seu discurso: “no se asusten por tener tanto terreno
para ustedes solos” (RULFO, 1945). No conto, a força soberana governamental,
simplesmente, concede uma terra, porém não se interessa em contemplar e comprovar se a
mesma realmente seria útil para a população. Considera que a realização do ato de doar, já se
faz suficiente para suprir as necessidades dos desprovidos. Assim, confirmamos com Gomes
(2008) que assegura que a preponderância resulta em violência, dominação e exclusão, e,
além disso, percebe-se que o egoísmo, tão perene nos dias atuais, torna-se um ambiente onde
se justifica a competitividade e a desvalorização do outro. Por isso, Gomes (2008), nos propõe
a valorização ética do outro numa relação que significa em
se abrir para o outro, em especial para que o outro me apresente de diferente, de
desigual, que merece ser respeitado exatamente como se encontra, sem indiferença,
descaso, repulsa ou exclusão pelas suas particularidades (GOMES, 2008, p. 39-40).
Desse modo, mais uma questão importante a considerar neste conto seria o conceito de
alteridade. Segundo Todorov (1999), esse termo define a maneira como vemos o outro e
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2056
como podemos compreendê-lo, sem diminuí-lo aos nossos próprios interesses e ao julgamento
baseado em nossas próprias referências e valores:
Podem-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não se é uma substância
homogênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo; eu é um outro.
Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu (TODOROV, 1999, p. 3).
Nessa perspectiva, para Gomes (2008), a solidariedade pelo outro tem origem na
sensibilidade, e isso o eleva ao primeiro plano, para uma precedente posição em relação ao
individualismo. No entanto, alicerçada sobre o prisma do capitalismo e do desenvolvimento
científico, verificamos que, em muitos momentos, a sociedade contemporânea não apresenta
deferência pelo próximo, retratando, dessa maneira, um interesse particular e uma intolerância
às classes menos favorecidas, aos de baixa escolaridade, aos trabalhadores rurais, entre outros.
Com isso, identificamos que as pessoas marginalizadas, vítimas da má administração pública,
são zeladas, na maioria das vezes, com discriminação e preconceito.
E, nesse caso, confirmamos com Quijano (2007), quando atesta que o capitalismo é
cada vez mais brutal e violento, não considerando apenas as formas de discriminação e
exploração, mas também a destruição da vida no planeta e a extinção causada pela fome de
grande parte da população. E, ao mesmo tempo, esse poder global não produz mais empregos,
nem mais salários, muito menos liberdade civil, pelo contrário, a serviço desse sistema sócioeconômico, a servidão escravista se encontra em re-expansão nesse plano colonial/moderno:
No solo las formas de dominación, de discriminación, de explotación serán, son ya
en realidad, cada vez más brutales y violentas. Lleva a la destrucción de las
condiciones de vida en nuestro planeta, a la deliberada polarización social extrema y
a la extinción por hambre de una gran parte de nuestra especie (QUIJANO, 2007, p.
1).
“No se puede contra lo que no se puede” (RULFO, 1945). Ainda é interessante notar
que essa expressão compreende um possível sentido. É como se as personagens não pudessem
vencer tamanho poder reproduzido através da hostilidade das regências políticas. Então, os
quatro homens se conformam com a situação, mesmo aparentando estarem indignados. É,
exatamente, como afirma Jozef (1986), eles “aceitam o destino com resignação, como uma
fatalidade, embora se mantenham em luta contra um ambiente hostil” (JOZEF, 1986, p. 81).
De certa forma, no século XVI, com a expansão da trajetória comercial do Atlântico, o
processo da economia capitalista acelerou, e esse momento foi “fundamental en la historia del
capitalismo y de la modernidad/colonialidad” (MIGNOLO, 2003, p. 56). Torna-se oportuno
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2057
relembrar que o colonialismo foi uma relação de dominação social e política dos europeus
sobre os povos conquistados. E, segundo Quijano (1992), o sucessor desse sistema é um
imperialismo que se caracteriza como uma união de interesses sociais entre os grupos
dominantes (classes sociais, por exemplo). Essa estrutura colonial de poder originou, por
exemplo, as discriminações sociais que são consideradas como fenômenos espontâneos e não
relacionados com a história da supremacia de alguns regimes governamentais. Dessa maneira,
ao observar a exploração entre os povos do mundo, é possível verificar que a maioria dos
discriminados são raças ou nações que foram colonizadas.
Quijano (1992) ainda declara que o que se deve fazer é libertar dos modelos europeus
a produção de conhecimento, a reflexão e a comunicação, para dar espaço a um novo acesso
intelectual. Assim, o desmoronamento da colonialidade de poder mundial devolveria a
liberdade da população e a autonomia de criticar e intercambiar cultura e sociedade. Aliás,
nos sugere que não basta, unicamente, resistir ao imperialismo capitalista, mas considera
necessário cogitar alternativas desprendidas da dominação e que forneçam o bem-estar social
dos povos, entre outras possibilidades nas quais a América Latina seria “el centro mismo de
esta nueva etapa del movimiento mundial de la sociedad contra el capitalismo
colonial/moderno”
(QUIJANO,
2007,
p.
3).
Assim,
inicia-se
um
processo
de
des/colonialidade, ou melhor, emancipação do capitalismo descobrindo, nesse processo,
nossas formas de existir livres de:
dominación, de discriminación racista/etnicista/sexista; produciendo nuevas formas
de comunidad, como nuestra principal forma de autoridad política; produciendo
libertad y autonomía para cada individuo, como una expresión de la diversidad
social y de la solidaridad (QUIJANO, 2007, p. 4).
Reiterando o que referimos anteriormente, sobre as experiências de vida do escritor as
quais se reproduzem em suas obras, consideramos ser necessário destacar que desde criança
Rulfo viveu situações de conflito originadas pela Guerra Cristera (uma luta entre o Estado do
México e Igreja Católica, ocorrida entre 1926 e 1929), e presenciou muitos sofrimentos e
mortes trágicas em seu entorno. E tudo isso contribuiu para atestar que “el mundo real y el
mundo psicológico de sus cuentos tienen relación con su niñez y su juventud” (ADELSTEIN,
1971, p. 91).
Juan Nepomuceno Carlos Pérez Rulfo Vizcaíno é um escritor mexicano que nasceu
em 16 de maio de 1918 no povoado de Sayula, México, e faleceu em 08 de janeiro de 1986,
na Cidade do México. Publicou algumas notáveis obras, dentre elas, o livro de contos já
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2058
citado “El llano en llamas” em 1953 e um romance intitulado “Pedro Páramo” em 1955. Sua
família era composta por proprietários de terras, mas perderam tudo na guerra. Ainda menino,
Rulfo ficou órfão de pai e mãe. Seu pai foi assassinado, e tão logo sua mãe faleceu por um
ataque cardíaco. Por causa dessa situação, o contista foi para um orfanato, em Guadalajara, e
ali viveu por muitos anos. Dessa maneira, evidenciamos que o sofrimento fez parte de sua
existência, por isso a narração de seus personagens que lutam pela sobrevivência, se relaciona
com a própria historia de vida do escritor. Portanto, observamos que “todos sus cuentos se
desarrollan bajo una gran nube de fatalismo” (ADELSTEIN, 1971, p. 91).
Assim sendo, podemos ainda constatar que Juan Rulfo foi um dos escritores que, no
plano estético, melhor solucionou a tensão entre o universalismo e o regionalismo, ou seja, em
suas obras, pode-se observar o projeto transculturante, através dos valores de sua cultura
regional, impondo-se ao universo artístico estrito literário. Dessa forma, a literatura do
escritor mexicano promove um impacto com as de outros países, consideradas como
modernas e tradicionais, e, assim, Rulfo suscita um resgate da cultura local: “Dentro da
estrutura global da sociedade latino-americana, o regionalismo acentuava as particularidades
culturais que haviam sido forjadas em áreas ou sociedades internas, contribuindo para definir
seu perfil diferencial” (RAMA, 2001, p. 211).
À vista disso, reconhecemos que o universo das personagens rufianas se entrelaçam
com as experiências inquietantes vividas pelo escritor: “la trágica vida del campesino
mexicano preocupa a Rulfo y le provee de la temática para toda su obra” (ADELSTEIN,
1971, p. 91), como também, a história dos camponeses que estão em busca de uma identidade,
de um lugar para sobreviver, nos leva a refletir sobre a nossa própria atuação enquanto
sujeitos sociais do nosso tempo e nos responsabiliza a atuar em favor do próximo,
posicionando-o acima dos nossos próprios interesses e constatando que os mesmos possuem
valores, belezas e particulares características que o definem.
Analisamos, também, que, atualmente encontramos formas de dominação, exploração
e discriminação cada vez mais impetuosas que consiste no poder global colonial/moderno do
capitalismo o qual induz a uma hegemonia social capaz de conformar-se com seu consumo
atroz. Com isso, o capitalismo colonial/moderno não produz empregos ou salários, mas uma
escravidão que está em re-expansão a serviço dos custos. Assim, torna-se imprescindível não
apenas lutar contra esse imperialismo capitalista, mas também estimular pensar a América
Latina como centro dessa nova etapa do movimento como uma alternativa para o planeta.
Ademais, averiguamos ser imperiosa a tentativa de promover a solidariedade, a fim de
manter e assegurar a autonomia e o bem-estar dos povos latino-americanos, conduzindo-os a
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2059
uma visão otimista quanto ao seu futuro, encarando-o de forma positiva. E esse caminho para
a emancipação e auto-suficiência promoveria a lealdade à sua terra, à sua história, à sua
cultura, que, quando compartilhadas com os países vizinhos, e, consequentemente, com o
mundo, teriam as fronteiras ampliadas e seriam povos mais independentes e mais livres.
Percebemos que a dor e a tristeza pelas quais vivem as personagens do conto se fazem
presente na vida de tantos habitantes. Não apenas aqueles nascidos na cidade natal do
contista, mas também de todos da América Latina. Por isso, não deixamos de apreciar
também que o fatídico padecimento, a amargurada angústia e o desconsolado pesar que
afrontam as personagens testemunham a memória de todo o povo latino-americano. Assim,
percebemos, através deste estudo, que a composição literária “Nos han dado la tierra” não se
trata apenas de um texto com linguagem simples que transporta os leitores ao lugar da
narração, mas sim, delata uma escrita que é evidenciada por muitas sociedades desde tempos
anteriores até aos dias de hoje.
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2061
ANÁLISE DIALÓGICA DO FILME FAHREINHEIT 451
[Voltar para Sumário]
Micheline Barros Chaves (UEPB)
Nossa análise tem como objeto de pesquisa o discurso autoritário materializado no
filme Fahreinheit 451 do diretor francês François Truffaut. Nosso objetivo geral consiste em
verificar, no contexto dessa obra, a presença de possíveis estratos discursivos e
interdiscursivos que evoquem a constituição de discursos autoritários propostos a partir do
cariz distópico desse texto fílmico e como objetivos específicos, em um primeiro momento,
observar como esses discursos interferem na ação das personagens tanto no sentido de leválas a reproduzir matizes ideológicos assentes no mecanismo social vigente como, de acordo
com a nossa hipótese, na possibilidade de fomentar bases de resistência desencadeadas a
partir da conjugação de interesses coletivos voltados para o enfrentamento e a superação
desses discursos. Para fundamentar a nossa análise, nos valeremos, no cenário da Teoria do
Cinema, dos estudos de Robert Stam (1992, 2013) e no campo da Análise Dialógica do
Discurso, da vitalidade do pensamento de Mikhail Bakhtin (1976, 1997, 2009, 2013) e as
contribuições de alguns estudiosos que se debruçaram sobre a sua obra como Beth Brait
(2005, 2006), Adail Sobral (2005), Carlos Alberto Faraco (2003), Valdemir Miotello (2005),
Marilia Amorim (2006) e José Luiz Fiorin (2006).
O contexto de Fahreinheit 451
O filme Fahreinheit 451 apresenta um cenário futurista onde uma sociedade vive sob a
repressão de um regime autoritário que proíbe a impressão e a leitura de qualquer material
escrito. O enredo se desenrola em um tempo e espaço indeterminados onde o poder é
estabelecido através de práticas coercitivas e punitivas capazes de engendrar um rigoroso
controle social. Esse controle é executado pela Corporação de Bombeiros que, contrariamente
ao que se supõe, tem a tarefa de localizar e punir indivíduos considerados subversores por
praticarem a atividade da leitura. O número 451 refere-se à temperatura, (em Fahrenheit), na
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2062
qual o papel ou o livro arde. Para sermos coerentes com o recorte proposto por essa análise,
selecionamos quatro personagens que, pelas suas características, serviram de base para a
nossa observação, são eles: o bombeiro Guy Montag, (protagonista), Clarisse McClellan (a
vizinha de Montag), Beatty, (capitão da Corporação dos Bombeiros) e a velha professora.
Bakhtin e o cinema
Sabemos que, em seus escritos, Bakhtin não se ateve a investigação do gênero
cinematográfico, contudo, apesar de não terem sido pensados especificamente para essa
esfera, vários aspectos do pensamento bakhtiniano como o dialogismo, a exotopia, a
carnavalização, os gêneros do discurso, a ideologia, o cronotopo e outros mais, puderam ser
deslocados para o campo da análise fílmica, como já o comprovaram alguns autores ligados à
Teoria do Cinema.
Robert Stam é um dos autores que, em suas análises, tem buscado estabelecer um
diálogo entre o pensamento de Mikhail Bakhtin e o campo da teoria cinematográfica. Para
esse autor, a noção de dialogismo a qual Bakhtin concedeu, em sua obra, um relevo especial,
tem uma importância fundamental para o campo do cinema. Para adentrarmos na esfera do
dialogismo teorizada por Bakhtin, aludiremos ao dialogismo intertextual como se referindo:
[...] às possibilidades infinitas e abertas produzidas pelo conjunto das práticas
discursivas de uma cultura, a matriz inteira de enunciados comunicativos no
interior da qual se localiza o texto artístico, e que alcançam o texto não
apenas por meio de influências identificáveis, mas também por um sutil
processo de disseminação. (STAM, 2013, p.226).
Podemos dizer, corroborando o pensamento de Stam, que o cinema conjuga, na
concretude fílmica, textos e intertextos ao reelaborar, através da especificidade do seu objeto,
“séculos de tradição artística” (STAM, 2013, p.226), apontando para a totalidade dos
enunciados produzidos historicamente. Iluminando o nosso olhar, Stam arremata:
[...] Pode-se considerar, portanto, que o intertexto da obra de arte inclui não
apenas outras obras de arte de estatuto igual ou comparável, mas todas as
“séries” no interior das quais o texto individual se localiza. De maneira mais
direta: qualquer texto que tenha dormido com outro texto, dormiu também,
necessariamente, com todos os outros textos com os quais este tenha
dormido. (STAM, 2013, p.226)
Percebemos então, que o texto fílmico articula um conjunto de práticas discursivas ou
para usar a noção de texto proposta por Bakhtin em sua obra Estética da criação verbal:
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2063
“refrata (no limite) todos os textos de uma dada esfera” originando uma “interdependência do
sentido (na medida em que se realiza através do enunciado)” (BAKHTIN, 1997, p.331), dessa
forma, ele se manifesta como sendo “individual, único e irreproduzível, sendo nisso que
reside seu sentido (seu desígnio, aquele para o qual foi criado)” (p.332).
A partir dessas considerações, renova-se o nosso olhar para o texto fílmico
Fahreinheit 451, o qual se constrói a partir da refração de uma obra literária, perfazendo o
caminho da intertextualidade, como vista acima, reelaborando e ressignificando através da
materialidade da linguagem cinematográfica a ficção distópica (homônima), de Ray
Bradbury. Mais uma vez, constatamos a generosa visão que Bakhtin revela ao elucidar as
bases do dialogismo, considerando o papel do ouvinte/interlocutor e a possibilidade da réplica
como abertura para uma renovação discursiva que pressupõe um contexto de recepção situado
historicamente.
Compreendemos assim, que o conceito de dialogismo pode englobar, no meio
cinematográfico, o diálogo entre personagens numa dada obra artística, o diálogo entre filmes
e outras expressões culturais como a literatura e as artes cênicas e plásticas, entre os processos
de produção cinematográfica e a ponte que se materializa entre estes e o próprio público
espectador, dentre outros. O dialogismo expressa o entrecruzamento dessas esferas a partir da
materialidade discursiva que cada uma delas agencia. O princípio do dialogismo que rege o
enunciado pressupõe pelo menos, dois falantes, porém, não se restringe a esses, pois que
sempre
convoca
outros
discursos
ressignificando
a
linguagem
e
transformando
socioculturalmente o nosso cotidiano, já que, o enunciado não se detém ao nível da
linguagem, mas ultrapassa-a atingindo o nível da ação pela linguagem (um ato de fala), pois,
quem fala dissemina um discurso que mais cedo ou mais tarde será convocado a significar em
um dado acontecimento situado no tempo e no espaço.
Já, quanto à concepção bakhtiniana de gênero, o texto fílmico pode ser vinculado à
noção de gênero complexo ou secundário, ou seja, formado pela relação de gêneros primários
que, transformados pela ação do mecanismo cinematográfico, passam a fazer parte, não mais
da realidade existente, mas de outra realidade que o próprio cinema descortina. Dessa forma,
se tomamos o texto fílmico como gênero secundário, consideramos os diálogos, ali presentes,
como transformações dos gêneros primários que perderam sua relação com a realidade
espontânea do cotidiano imediato, passando a fazer parte da realidade estabelecida pelo texto
fílmico. Stam, deslocando esse conceito para o campo da práxis cinematográfica, elucida:
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2064
Uma abordagem translinguística aos gêneros discursivos no cinema poderia
correlacionar os gêneros primários – a conversação em família ou entre
amigos, a relação chefe-empregado, a linguagem de sala de aula, as piadas
em festas, os comandos militares – com sua mediação secundária
cinematográfica. (STAM, 2013, p.228)
Para Bakhtin, os gêneros do discurso estão intrinsecamente ligados à produção dos
enunciados, pois que, todo enunciado vivo é produzido dentro de um contexto situacional e
convoca, pelas suas especificidades, um gênero do discurso para materializá-lo, esse elo na
cadeia da comunicação verbal (o enunciado) constitui-se de duas particularidades: a
alternância dos sujeitos falantes e o seu acabamento específico. Assim, todo enunciado pela
sua configuração convoca uma atitude responsiva ativa, pois:
A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre
acompanhada de uma atitude responsiva ativa (conquanto o grau dessa
atividade seja muito variável); toda compreensão é prenhe de resposta e, de
uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor.
(BAKHTIN, 1997, p.290).
Para o pensador russo, é a partir dos gêneros discursivos que emergem essas várias
vozes que transpassam os enunciados e, consequentemente, as obras artísticas, estas, apesar
de tudo que as diferenciam dos diálogos cotidianos, estruturam-se, igualmente, como elos na
esfera da comunicação verbal e, apesar de apresentarem nítidas fronteiras externas,
internamente, adquirem um aspecto singular, pois são marcadas pelo registro da
individualidade do seu autor, pela expressão da sua visão de mundo, assim:
Esse cunho de individualidade aposto à obra é justamente o que cria as
fronteiras internas específicas que, no processo da comunicação verbal, a
distinguem das outras obras com as quais se relaciona dentro de uma dada
esfera cultural — as obras dos antecessores, nas quais o autor se apóia, as
obras de igual tendência, as obras de tendência oposta, com as quais o autor
luta, etc. (BAKHTIN, 1997, p.298)
A Metalinguística como pressuposto para uma Análise dialógica do discurso
Segundo Fiorin (apud BRAIT, 2006. p,178), há uma dificuldade em distinguir os
conceitos de texto, enunciado e discurso na obra de Bakhtin. Em seu esboço de uma análise
dialógica do discurso, Beth Brait (2006) esclarece que o embasamento constitutivo dessa
análise “diz respeito a uma concepção de linguagem, de construção e produção de sentidos
necessariamente apoiadas nas relações discursivas empreendidas por sujeitos historicamente
situados” (2006, p.10), e assevera que essa hipótese (ou tese), só pode ser recuperada no
conjunto das obras do Círculo e dentro desse conjunto a autora destaca, como ponto de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2065
partida, a concepção de Metalinguística, explorada por Bakhtin em sua obra Problemas da
poética de Dostoiévski, elencando como base dos pressupostos que fundamentam a sua
hipótese, o comentário de Paulo Bezerra (2006), tradutor e estudioso da obra bakhtiniana,
transcrito abaixo:
[...] no livro sobre Dostoiévski, a Metalingüística já se esboça como método
de análise do discurso e hipótese de uma futura síntese da filologia com a
filosofia, que Bakhtin imaginava como uma disciplina humana nova e
específica capaz de reunir em contiguidade a Lingüística, a Filosofia, a
Antropologia e a Teoria da Literatura. (Prefácio à obra: Problemas da poética
de Dostoiévski, 2013 apud BRAIT, 2006, p.10)
Partindo desse comentário e visando consolidar a plausibilidade de uma Análise
Dialógica do Discurso, Brait convoca as palavras de Bakhtin para desenhar os contornos
desse campo definido por ele como Metalinguística onde o discurso atua como seu objeto.
Vejamos:
Intitulamos este capítulo ‘O discurso em Dostoiévski’ porque temos em vista
o discurso, ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua
como objeto específico da Lingüística, obtido por meio de uma abstração
absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do
discurso. Mas são justamente esses aspectos, abstraídos pela Lingüística, os
que têm importância primordial para os nossos fins. Por estes motivos, as
nossas análises subseqüentes não são lingüísticas no sentido rigoroso do
termo. Podem ser situadas na Metalingüística, subentendendo-a como um
estudo – ainda não constituído em disciplinas particulares definidas –
daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam – de modo
absolutamente legítimo – os limites da Lingüística [...]. (BAKHTIN, 2002,
p.181 apud BRAIT, 2006, p.10)
A partir dessa citação, evidenciamos uma noção mais clara que situa o termo discurso
como objeto complexo e multifacetado que “pertence simultaneamente à Linguística e à nova
disciplina proposta” (BRAIT, 2006, p.12) e que, em seguida, será substituído pela expressão
“relações dialógicas”. Segundo Brait (2006, p.12), “Bakhtin reveste o objeto a ser estudado
pela Metalingüística com uma dimensão extralinguística” e complementa citando o autor
russo:
[...] Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a
linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.), está impregnada
de relações dialógicas. Mas a Lingüística estuda a “linguagem” propriamente
dita com sua lógica específica na sua generalidade, como algo que torna
possível a comunicação dialógica, pois ela abstrai consequentemente as
relações propriamente dialógicas. Essas relações se situam no campo do
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2066
discurso, pois este é por natureza dialógico e, por isto, tais relações devem ser
estudadas pela Metalingüística, que ultrapassa os limites da Lingüística e
possui objeto autônomo e metas próprias. (BAKHTIN, 2002, p.183 apud
BRAIT, 2006, p.12)
Constatamos, assim, que o discurso, na concepção de Bakhtin, se reveste de uma
dimensão extralinguística e que se encontra como objeto constitutivo das relações dialógicas
que se estabelecem com outros discursos e com outros sujeitos nas práticas sociais e é de
acordo com essa concepção que esse termo será usado no breve recorte que essa análise
propõe.
Deslocando esse conceito para a análise do nosso objeto, o texto fílmico, percebemos
que o discurso se materializa no jogo enunciativo proposto pelas imagens obtidas a partir do
enquadramento proposto pela câmera, pela montagem, pelo dito e o não-dito emitidos pelas
personagens/atores em interação comunicativa, pelo som (música, diálogo, intertítulos), pelo
tempo e espaço convocados à situar os acontecimentos, etc. Desse modo, para a nossa
análise, devemos considerar esses aspectos como estruturas discursivas que têm, subjacente,
um paradigma sócioideológico que constitui o excedente de visão que aponta para a
compreensão de mundo que tem o diretor (autor da obra). Para nós, o texto-fílmico atua como
enunciado, como abertura à réplica que o significa, que o traduz, que o constitui enquanto
espaço de refração da realidade. A partir dessas considerações, prosseguiremos na análise das
imagens e dos diálogos expressos no texto fílmico Fahreinheit 451.
Uma análise dialógica do discurso no contexto do filme Fahreinheit 451
No início da exibição do filme Fahreinheit 451, os créditos iniciais não são escritos,
mas narrados, antecipando o clima de leitura proibida que o texto fílmico descortinará. Nesse
momento, são mostradas várias antenas de televisão vistas por meio de ângulos variados
(Figura 1). É a partir dessas imagens, obtidas através de um enquadramento bastante intimista
– uso do recurso de zoom in ou zoomer que ocorre 15 vezes, podendo indicar observação e/ou
espionagem, levando o espectador a conceder maior ênfase à cena e a procurar agenciar o
silêncio que a acompanha - que o diretor descortinará um cenário de controle social no qual se
desenrola a narrativa fílmica deixando transparecer, nessa cena, estratos discursivos que
sugerem que esse controle também se dá através de fatores psicossociais sob a égide de
mecanismos tecnológicos e midiáticos. O silêncio expresso nas primeiras cenas é bastante
significativo e convoca o espectador a significá-lo a partir do lugar social de onde o
recepciona. Corroborando esse pensamento, Orlandi assevera que:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2067
O silêncio é assim a “respiração” (o fôlego) da significação; um lugar de
recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido faça sentido.
Reduto do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que não é
“um”, para o que permite o movimento do sujeito. (ORLANDI, 1997, p.13)
Em Fahreinheit 451, os mecanismos tecnológicos e midiáticos, expressos acima, são
representados pela “Família” (espécie de estrutura virtual que reproduz, no interior das casas
através de aparelhos chamados telões, a ideologia representante do regime ditatorial que
governa a sociedade) (Figura 2). Essa estrutura virtual cria uma realidade paralela na qual
todos os membros da sociedade são primos entre si, esse parentesco os aproxima e corrobora
a ideia de que todos fazem parte de uma grande família devendo, portanto, colaborar para
“reabilitação” de indivíduos “antissociais” que praticam a ação subversiva da leitura
justificando, assim, a criação de uma Corporação de Bombeiros os quais são responsáveis
pela queima de todo papel impresso.
Em Fahreinheit 451, a sociedade, após vivenciar conflitos intensos devido - como
acreditavam eles - à insaciável busca do homem pelo conhecimento passa a proibir que
qualquer livro seja impresso e lido. O filme aponta para a questão da homogeneização,
monologização, globalização das sociedades a partir de interesses situados em esferas de
poder, propondo uma reflexão, ético-política sobre práticas sociodiscursivas e interculturais,
que continuam atuais em nossos dias. A palavra (discurso) manifesta as ideologias. Assim, é
sugestivo que tanto a leitura de livros quanto o próprio processo de comunicação entre os indivíduos
seja interditado pelo Estado. A palavra é, pois, o agente que promove o processo de interação entre os
sujeitos através das trocas enunciativas, as quais não podem se despir de seu caráter axiológico, pois
que, são os valores professados por um indivíduo que permitem a sua adesão a um determinado
discurso
em oposição a outros discursos. Em
Marxismo
e Filosofia
da Linguagem,
Bakhtin/Volochínov (2009) esclarece que “a palavra é o fenômeno ideológico por natureza” e, ainda:
A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra
não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha
sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação
social. [...]. É, precisamente, na palavra que melhor se revelam as formas
básicas, as formas ideológicas gerais da comunicação semiótica.
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, pp.36-37)
Sobre as estruturas ideológicas, Miotello (apud BRAIT, 2005) observa que Bakhtin
reformula o conceito de ideologia proposto pelo marxismo oficial associando à ideia de
ideologia como agente das classes dominantes que obnubila a percepção da existência das
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2068
contradições e de classes sociais, a noção de uma ideologia do cotidiano que nasce a partir da
interação entre os sujeitos no diálogo cotidiano, “na proximidade social com as condições de
produção e reprodução da vida”, e conclui:
Bakhtin e seu círculo puderam estabelecer, bem a seu gosto, uma relação
dialética se dando entre ambos, na concretude. De um lado, a ideologia
oficial, como estrutura ou conteúdo, relativamente estável; de outro, a
ideologia do cotidiano, como acontecimento, relativamente instável; e ambas
formando o contexto ideológico completo e único, em relação recíproca, sem
perder de vista o processo global de produção e reprodução social.
(MIOTELLO apud BRAIT, 2005, p. 169)
Trazendo para a nossa análise os conceitos de ideologia oficial e ideologia do
cotidiano, podemos direcioná-los na observação dos diálogos cotidianos materializados na
urdidura fílmica pelas personagens em interação comunicativa, buscando perceber, nesses
diálogos, a interferência provocada pelas ideologias no processo de estabilização e
desestabilização das práticas discursivas.
O signo ideológico
A Corporação de Bombeiros é a instituição que executa o jogo de forças estabelecido
pelo poder que, nesse futuro distópico, não tem a tarefa de apagar incêndios, mas a de atear
fogo em livros e perseguir, prender e executar as pessoas encontradas junto a eles. Em seu
uniforme vemos o símbolo de uma salamandra que, assim como a mangueira, que
contrariamente ao que se espera também expele fogo, passam a representar estruturas sígnicas
que fazem referência a um tipo de poder coercitivo o qual engendra um controle social que se
configura em práticas de vigilância e punição.
Essa observação torna-se oportuna, pois, evoca as palavras de Bakhtin/Volochínov
(2009), o qual declara que objetos situados no âmbito material podem adquirir o status de
signos a partir do momento que passam a representar uma organização social, constituindo-se
como ideologia, já que, passam a significar além de suas próprias particularidades materiais e,
ainda, corroborando esse pensamento Miotello (apud BRAIT 2005) diz:
[...]. Logo, todo signo é signo ideológico. O ponto de vista, o lugar valorativo
e a situação são sempre determinados historicamente. E seu lugar de
constituição e de materialização é na comunicação incessante que se dá nos
grupos organizados ao redor de todas as esferas das atividades humanas.
(MIOTELLO apud BRAIT, 2005, p.170)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2069
Para Bakhtin/Volochínov (2009), no processo de desenvolvimento da sociedade
alguns objetos adquirem um valor que excede a sua natureza limitada pelo real, a estes objetos
o corpo social passa a dar especial atenção tornando-os elementos da comunicação por signos.
Assim, temos que:
Para que o objeto, pertencente a qualquer esfera da realidade, entre no
horizonte social do grupo e desencadeie uma reação semiótico-ideológica, é
indispensável que ele esteja ligado às condições socioeconômicas essenciais
do referido grupo, que concerne de alguma maneira às bases de sua existência
material. Evidentemente, o arbítrio individual não poderia desempenhar aqui
papel algum, já que o signo se cria entre indivíduos, no meio social; é
portanto indispensável que o objeto adquira uma significação interindividual;
somente então é que ele poderá ocasionar a formação de um signo. Em outras
palavras, não pode entrar no domínio da ideologia, tomar forma e aí deitar
raízes senão aquilo que adquiriu um valor social. (Grifo do autor)
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p.46)
Dessa forma, constatamos que o signo ideológico engendra, em seu interior, os
conflitos sociais, sendo o lugar onde se confrontam índices de valor distintos e é esse mesmo
confronto que, paradoxalmente, lhe confere vida, mobilidade e a capacidade de evoluir,
contudo, Bakhtin/Volochínov nos previne que “[...] aquilo mesmo que torna o signo
ideológico vivo e dinâmico faz dele um instrumento de refração e de deformação do ser
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p.48).
Dialogismo: interação discursiva e textual
Em Fahreinheit 451, o protagonista é o apático e servil Guy Montag, um bombeiro
que, pela sua irrepreensível conduta, está prestes a ser promovido, mas o futuro é sempre
imprevisível. Em uma das sequências do filme, ele conduz a Corporação para uma “batida”
em uma das residências da cidade, onde vários livros são encontrados e queimados em um
local público. Nessa operação de combate à leitura, o livro “Dom Quixote” é o primeiro a ser
descoberto. Segundo a nossa compreensão, essa obra revela a condição do ser-para-aliberdade, pois, evocando o discurso humanístico, Cervantes consolida uma crítica social de
acordo com os preceitos renascentistas que enalteciam a figura humana e combatiam o
teocentrismo medieval.
Cervantes prenuncia, em seu texto, os conflitos que se desencadeariam a partir da
cultura moderna nascente ao satirizar o modo de vida aristocrático denunciando, dessa
maneira, o esvaziamento da fantasia e do idealismo num mundo cada vez mais submetido aos
rigores da razão prática e dos interesses materiais. E é, nesse ponto, que a obra se articula a
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2070
alguns matizes discursivos expressos em Fahreinheit 451, num imbricamento intertextual que
aponta para o conceito de dialogismo proposto por Mikahil Bakhtin.
Ideologia oficial e ideologia do cotidiano
Deslocando, mais uma vez, esse conceito para a análise do nosso objeto de estudo,
somos levados a observar as diferentes personagens e os lugares sociais de onde enunciam.
Beatty (chefe da Corporação de Bombeiros) prefigura a imagem do indivíduo que se esforça
para reproduzir a ideologia oficial, contudo, no desenrolar do enredo, constatamos que a
esfera discursiva que o representa, revela um indivíduo cindido, perpassado pelas
contradições inerentes às lutas que se travam no domínio social. A figura do sujeito que luta
para manter estabilizada a ideologia oficial, que aparenta estar apaziguado com ela, se
desconstrói na sequência que apresenta a invasão de uma determinada casa, onde ele se
depara com uma variedade de livros encontrados, demonstrando familiaridade com muitos
deles, explicando seus enredos ao já perturbado Montag, o que nos leva a inferir que já os
tinha lido em algum momento de sua existência, e que o mesmo conflito vivenciado por
Montag, também já fora vivenciado por ele, um dia.
Esclarecendo a sequência narrada acima, Bakhtin/Volochínov, citado por Miotello, assevera
que a ideologia se dá, a partir “dos reflexos e das interpretações da realidade social e natural
que tem lugar no cérebro do homem e se expressa por meio de palavras [...]” (MIOTELLO
apud BRAIT, 2005, p.169). Esse conceito é construído:
[...] no movimento, sempre se dando entre a instabilidade e a estabilidade, e
não na estabilização que vem pela aceitação da primazia do sistema e da
estrutura; vai construir o conceito na concretude do acontecimento, e não na
perspectiva idealista. (MIOTELLO apud BRAIT, 2005, p. 168)
Desse modo, não podemos nos furtar à compreensão do ser enquanto constituído no e
pelo processo de interação social, através de suas práticas discursivas. São nessas práticas que
se consubstancia a ideologia, no cerne das vivências experienciadas pelos indivíduos, as quais
se desenvolvem paradoxalmente, ora estabilizando ora desestabilizando. É, assim, que se
apresenta a personagem do chefe Beatty, em luta. Essa reflexão nos leva a perceber, a parte e
a contraparte constituintes do discurso e que um ponto de vista descortina o seu duplo,
aproxima a diferença, a essa manifestação Bakhtin nomeou, dialogismo.
O caráter ético e político da ação humana
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2071
Na casa invadida, a proprietária que tinha sido, um dia, professora, diante da iminente
destruição de seus livros pelos bombeiros, decide atear fogo ao próprio corpo, contudo, apesar
do ato desesperado, nutre a esperança de que Montag, que ela conhecera por intermédio de
Clarisse (a jovem professora que se tornara amiga de Montag), será aquele que se levantará
para promover um tipo de resistência contra as esferas de poder que engendraram esse sistema
totalitário ao qual ela se opunha. Assim, consumou-se o suicídio da velha professora que,
vendo-se coagida a abandonar sua casa e seus ideais, preferiu atear fogo ao seu próprio corpo
a ter que abrir mão do sentido de sua vida. Explicitando melhor a cena, Miotello elucida:
Logo se vê que não cabe a possibilidade de tratar a ideologia como falsa
consciência, ou simplesmente como expressão de uma idéia, mas como
expressão de uma tomada de posição determinada. (MIOTELLO apud
BRAIT, 2005, p.169)
Entre os livros em chamas, entrevemos a imagem de Joanna D’Arc impressa em um deles.
Em Fahreinheit 451, esta imagem faz referência a um tipo de discurso que pode ser sugerido,
também, pela imagem da velha professora em chamas, pois, ambas as mulheres encontram a
morte (queimadas em fogueiras) perseguindo seus ideais evocando, dessa maneira, as formas
variadas do discurso que propõem a ação humana como instrumento contra as injustiças,
contra as desigualdades, etc., compondo a esfera do interdiscurso, já que, o diretor engendra
na urdidura de sua obra fílmica o entrelaçamento desses discursos.
Exotopia e ato ético
Para finalizar, selecionamos a sequência de diálogos abaixo, pela sua relevância para
nossa análise. Este é o momento em que o “Éden” se desnuda em real, pois, o fruto do
conhecimento do bem e do mal está prestes a ser saboreado. Aqui, mais uma vez, a palavra se
impõe enquanto signo que se abre a significação do outro. Esta sequência talvez seja uma das
mais importantes desse “texto fílmico”, pois, é o momento em que a personagem Clarisse
entra em cena. Clarisse, diferentemente de todos que Montag conhece, adora conversar e é no
diálogo com ela que Montag é ferido no âmago do seu ser.
O diálogo tem início quando Clarisse o questiona acerca do motivo pelo qual os livros
devem ser queimados, levando-o a refletir sobre sua própria ação. O discurso de Clarisse se
constitui enquanto diferença suscitando em seu interlocutor a necessidade de autoafirmação.
Ele aparenta segurança, reproduzindo o discurso oficial para o qual os livros não têm valor
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algum, contudo, será irremediavelmente ferido pela dúvida ao refletir, como propõe Clarisse,
sobre o porquê de alguns indivíduos arriscarem a própria vida por esses vis objetos. É no
desfecho do diálogo que se inicia a desconstrução da personagem Montag, como nós o
havíamos conhecido até agora. Ela pergunta-lhe se é feliz ao que ele responde: “claro que sou
feliz”. Esse ponto do diálogo aponta para a condição paradoxal do sujeito em face às
operações discursivas que executa, podendo este, instigado pela palavra do outro, desconstruir
e subverter discursos já cristalizados, a partir da concretude de suas vivências. Montag, após o
encontro com Clarisse, ou melhor dizendo, após o impacto das palavras de Clarisse, passa a
refletir sobre suas próprias concepções, sobre a repercussão de sua ação discursiva em seu
entorno e se descobre como um homem infeliz.
A teoria do ato, proposta por Mikhail Bakhtin, traz a noção da “ausência de álibi”,
definida a partir de uma concepção ética do sujeito a qual é marcada pelo caráter responsivo
de sua atuação no mundo. Para esse autor, o componente valorativo que determina essa ação é
a marca específica do agir dos seres humanos, o que Sobral assim resume: “O ato responsível
ou ato ético, envolve o conteúdo do ato, o processo do ato, e, unindo-os, a
valoração/avaliativa do agente com respeito a seu próprio ato” (SOBRAL apud BRAIT, 2005,
p.104). Já, o conceito de “exotopia” ou “excedente de visão”, que remete tanto à interação
como à atividade autoral e científica, traz a noção do sujeito que se constitui
interindividualmente, vendo, de sua perspectiva, o outro enquanto ser “acabado” e a si
próprio, enquanto ser inacabado. Evocamos essas conceituações, pela sua aplicabilidade no
aprofundamento da análise do diálogo transcrito acima.
Considerações finais
Na análise da obra cinematográfica Fahreinheit 451 do diretor francês François
Truffaut, buscamos estabelecer uma aproximação entre as teorias do cinema e o vasto campo
filosófico-conceitual proposto pelo pensamento do filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin e
seu Círculo. Descortina-se, assim, mais um espaço de interdisciplinaridade que pode vir a
contribuir na produção de sentido promovida pelo entrelaçamento entre o cinema e as
categorias formuladas por Bakhtin as quais se fundamentam, como pudemos observar
implícita e explicitamente, numa noção de cultura não-unitária na qual diferentes vozes atuam
em relações multifacetadas de oposição. Para Stam (1992), Bakhtin revigora, “com sua
corrente quente – seus vislumbres inebriantes do reino da liberdade”, o campo da crítica
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2073
cultural e é aí que o pensamento de Bakhtin tangencia o de Truffaut, na esfera específica da
liberdade. Liberdade que, em Fahreinheit 451, parece nunca ter existido.
Referências
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exclusivamente para fins didáticos, [s.d.].
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da linguagem. 13.ed. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec,
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BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.
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ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio. 4.ed. Campinas, SP: Editora da
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STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Editora Ática,
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Nas fronteiras da linguagem ǀ
2074
______ Introdução à teoria do cinema. 5.ed. Campinas, SP: Papirus, 2013.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2075
DISCURSOS SOBRE O TRABALHO DOCENTE: O QUE
DIZEM OS PROFESSORES EM FORMAÇÃO INICIAL A
RESPEITO DA DOCÊNCIA
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Mirelle da Silva Monteiro Araujo (UFPB)
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo analisar diferentes conceptualizações sobre o
trabalho docente, evidenciadas no discurso de professores em formação inicial. Para analisar
os dizeres dos professores em formação sobre a docência, tomamos como base teórica a
Análise do Discurso de linha francesa, na acepção de Pêcheux, onde se compreende que a
estrutura linguística é o local onde são produzidas possiblidades de deslocamento, deslizes,
equívocos pelo intercruzamento do intradiscurso e do interdiscurso que possibilita a produção
de efeitos de sentidos. Recorremos também a teorias sobre o trabalho, para assim trazer
noções de trabalho que serão confrontadas com os dizeres dos professores em formação.
Para alcançarmos esse objetivo analisamos respostas concedidas a seguinte pergunta:
“Em que consiste o trabalho do professor?”. Nossos colaboradores são professores em
formação inicial do curso de Letras, com habilitação em língua portuguesa de uma instituição
pública da Região Nordeste.
O trabalho na vida humana
O trabalho é uma atividade presente na vida do ser humano, desde o início da história
da humanidade. Ele constitui parte da existência humana. Acreditamos que o trabalho
organiza a vida em sociedade, ele possibilita a distribuição de tarefas, fazendo com que áreas
distintas e necessárias à sobrevivência humana sejam organizadas por trabalhadores diversos,
desta forma seja o trabalho remunerado ou não ele ocupa boa parte do tempo das pessoas e
acaba constituindo a identidade desses sujeitos ao ficar imbricado a sua cosmovisão.
Conforme Bronckart (2004)
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2076
O trabalho se constitui, claramente, como um tipo de atividade ou de prática (...) é
um tipo de atividade própria da espécie humana, que decorre do surgimento, desde o
início da história da humanidade, de formas de organização coletiva destinadas a
assegurar a sobrevivência econômica dos membros de um grupo: tarefas diversas
são distribuídas entre esses membros (o que se chama divisão de trabalho); assim,
esses membros se vêem com papéis e responsabilidades específicas a eles atribuídos,
e a efetivação do controle dessa organização se traduz, necessariamente, pelo
estabelecimento de uma hierarquia. (BRONCKART 2004, p.209 apud MACHADO,
2007, p.78)
O trabalho é sem dúvida importante na vida em sociedade, enquanto objeto de
pesquisa ele é complexo e enigmático, seu estudo se faz necessário para superarmos
prenoções sobre ele e termos mais clareza em uma análise científica desse objeto.
Machado (2007) pontua a importância de mostrarmos com clareza os conceitos
adotados nas pesquisas que realizamos, apoiando-se em Bourdieu, Chamboredon e Passeron
(1968/2004) ela afirmar que é preciso analisarmos nossas prenoções sobre os objetos de
estudo que enfocamos. Segundo a autora as prenoções “podem impedir a construção de uma
visão científica sobre os fenômenos estudados” (MACHADO, 2007) no dizer de Durkheim
(1901) as prenoções podem se colocar como “um véu que se interpõe entre as coisas e nós”
(DURKHEIM (1901, p. 18 apud MACHADO, 2007, p.79). Desta forma a base de um método
científico deve ser uma interpretação sistemática e crítica das prenoções, buscando sempre
superar, reorganizar ou validar (aprofundar os estudos sobre) cientificamente as prenoções. A
ciência não deve ser constituída de prenoções ingênuas, embora tenha como ponto de partida
estas prenoções para produzir seus conceitos seja reformulando ou superando elas. Machado
(2007) citando Mauss (1968) pontua a necessidade de estabelecermos uma definição inicial
provisória sobre o objeto de estudo, com a finalidade de encaminha e delimitar a pesquisa,
pois a delimitação “definitiva” só é possível ao final do processo científico.
O conceito de trabalho nas ciências humanas e nas ciências do trabalho, até hoje, não
encontra-se conceitualizado de forma universal. Os conceitos estabelecidos até o presente
momento não abarcam todas as formas do agir humano que se desenvolvem em momentos
históricos diferentes e em espaços diferentes. A diversidade atual das formas de trabalho tem
produzido um conflito intelectual entre as noções de trabalho nascidas em contextos históricos
anteriores e o quadro atual de trabalho que não estaria mais o mesmo do passado.
Para nos mostrar algumas prenoções que circulam sobre o conceito de trabalho
Machado (2007) realiza um levantamento sobre as noções pré-construídas que circulam no
Dicionário Houaiss da língua portuguesa (edição de 2001), ela encontra 28 definições para
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esse termo. As definições encontradas fazem referência ao trabalho como sendo: “esforço;
como conjunto de atividades, produtivas ou criativas, que o homem exerce para atingir
determinado fim; como atividade profissional regular, remunerada ou assalariada; como ação
ou modo de executar uma tarefa, de manejar um instrumento e como tarefa.” (MACHADO,
2007, p.80-81).
A autora consultou também o dicionário on-line do francês, Trésor de la langue
française informatisé (Imbs e Quémada 2004), ela verificou que as definições são
semelhantes as do dicionário da língua portuguesa, porém são mais completas e categorizadas
em quatro grupos, conforme a ênfase que é dada a algum aspecto do trabalho. “(a) as
definições que dão ênfase a própria atividade; (b) as que dão ênfase ao resultado do trabalho;
(c) as que dão ênfase à execução e as condições de trabalho e (d) as que dão ênfase à relação
entre trabalho e salário.” (MACHADO, 2007, p.81)
Os diversos significados, que aparecem nos dicionários, para o termo trabalho, não são
apenas significados construídos recentemente sobre o termo, são na verdade um acúmulo de
valores construídos histórica e socialmente. Para Machado (2007)
as definições dos dicionários para essa palavra mostram que, como qualquer outro
signo, ela carrega consigo esses diferentes valores históricos como verdadeiras
camadas geológicas sedimentadas, mas não definitivamente estáticas, pois
frequentemente podem vir à superfície, emergir, irromper, tanto na linguagem
ordinária quanto em discursos que se pretendem científicos (MACHADO, 2007,
P.82)
Além dos múltiplos significados construídos ao longo dos anos existem diversas
teorias que estudam o trabalho, as filosóficas, sociológicas e psicológicas, assim o trabalho é
visto de diferentes ângulos e interpretado de diferentes formas, porém nenhuma perspectiva
consegue abarcar toda complexidade deste agir humano que é o trabalho. Assim ao falarmos
de trabalho é necessário esclarecer de que lugar teórico estamos falando, como pontua
Machado (2007) é preciso especificar de que conceito de trabalho estamos tratando. A partir
do próximo tópico nos deteremos a compreender o trabalho do professor e como ele está
sendo conceitualizado.
Concepções sobre o trabalho do professor
Pesquisas sobre educação tem uma tradição bastante longa, em cada época com seu
contexto específico estudos diferentes são desenvolvidos e conceitos diferentes sobre o
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trabalho docente vão surgindo. Conforme Borges (2003) “cada abordagem se interessará em
clarear determinados aspectos dos saberes dos professores, o que significa sempre uma
escolha, não só em relação ao que se entende por saber docente mas, também, quanto aos
ângulos de ataque à questão que se pretende responder.” (BORGES, 2003, p.48, apud
ALVES, 2010, p.68)
Alves (2010) citando Borges (2003) afirma que existem pelo menos quatro abordagens
sobre o trabalho docente, a saber, a abordagem comportamentalista, a abordagem cognitivista,
as abordagens compreensivas e as abordagens sociológicas.
A abordagem comportamentalista analisa o trabalho do professor conforme a tradição
behaviorista, procurando identificar o impacto da ação docente sobre a aprendizagem do
aluno, visando assim compreender qual o comportamento mais eficiente para o professor.
Essa abordagem sofreu muitas críticas por desconsiderar a subjetividade da interação entre
professor e aluno e o contexto de sala de aula.
A abordagem cognitivista é oriunda da psicologia, sua analise é centrada nos
processos cognitivos dos professores em suas ações e comportamentos na sala de aula. Buscase compreender como os professores aprendem e fazem uso das informações transpondo-as
para vários contextos e como eles coordenam suas ações. A análise usa um modelo lógico
matemático e os saberes são vistos como um conjunto de informações que produzem
orientações para a prática do sujeito.
As abordagens compreensivas, interpretativas e interacionais, foram formadas a partir
de um enfoque etnográfico e do interacionismo. Os estudos nessa perspectiva procuram
investigar e evidenciar pensamentos, ações e interações dos sujeitos, levando em consideração
o contexto em que ele está inserido. Procura-se entender o professor como pessoa com
valores, crenças, representações, emoções, história, com dimensão pessoal e profissional.
As abordagens sociológicas são fruto de uma articulação entre etnografia,
interacionismo, sociologia e fenomenologia. Essas pesquisas consideram que o saber
profissional é aprendido pela experiência no trabalho e pelo processo de socialização
profissional.
Muitas pesquisas sobre ensino foram feitas, mas conforme Saujat (2004) “o ensino é,
sem dúvida, o trabalho mais estudado, tão grande é o número de pesquisas que lhe são
consagradas, mas não sabemos quase nada do ensino como trabalho” (SAUJAT , 2004, p.19
apud ALVES, 2010, p.72). Desta forma o trabalho do professor tem sido desvelado em
decorrência das pesquisas sobre o ensino e não sobre o professor como um profissional.
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Amigues (2004) pesquisador do Grupo Ergonomia da Atividade dos Profissionais da
Educação (ERGAPE) nos mostra caminhos de pesquisa onde a docência é investigada como
trabalho, a perspectiva teórica que ele adota, da Ergonomia, permite lançar um novo olhar
sobre a prática dos professores. O autor adota o ponto de vista da análise do trabalho, tendo
como unidade de análise a atividade, para ele a atividade é o reflexo da construção de uma
história de um sujeito ativo formado de dimensões fisiológicas, psicológicas, e sociais. Nessa
abordagem a atividade é diferenciada da tarefa,
a tarefa refere-se ao que deve ser feito e pode ser objetivamente descrita em termos
de condições e de objetivo, de meios (materiais, técnicos...) utilizados pelo sujeito.
A atividade corresponde ao que o sujeito faz mentalmente para realizar essa tarefa,
não sendo portanto diretamente observável mais inferida a partir da ação
concretamente realizada pelo sujeito. (Amigues, 2004, p.39)
Essa diferenciação leva o pesquisador da Ergonomia a uma outra entre trabalho
realizado e trabalho prescrito. Pois para a Ergonomia a análise da atividade permite
compreender a distância entre o trabalho como é prescrito e trabalho como é efetivamente
realizado, e é nesse conflito entre o que é prescrito e o que o trabalhador realiza que ele vai
mobilizar recursos construindo o seu desenvolvimento pessoal e profissional.
Amigues (2004) relata que Clot (2007) da um importante passo para na compreensão
do trabalho, ao afirmar que a atividade não se limita ao realizado pelo trabalhador, mas
compreende também o que ele não chega a realizar, o que queria ter feito, o que se absteve de
fazer. No domínio do ensino o realizado e o não realizado são muito importantes, pois levam
o professor a pensar como fazer o que deve ser feito e como retomar/refazer o que não
funciona.
A atividade do professor é direcionada não apenas para os alunos, mas também para a
instituição onde ele trabalha, os outros profissionais, os pais. E ele busca técnicas e meios
para agir em sua profissão. Sua atividade não é a de um indivíduo isolado socialmente e
dissociado da história; é na verdade uma atividade situada e mediada por objetos que formam
um sistema. Amigues (2004) pontua quatro objetos que constituem a atividade docente: as
prescrições, o coletivo, as regras do ofício e as ferramentas. As prescrições são constitutivas
da atividade docente, elas (re)organizam o meio de trabalho do professor, e são em parte
redefinidas por eles ao organizarem sem trabalho. O coletivo forma a identidade do professor
como participante de um grupo profissional. As regras de ofício são uma memória comum
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que ligam os profissionais entre si. As ferramentas são utilizadas pelo professor para gerir seu
ambiente de trabalho, muitas delas por outros e não pelo próprio profissional.
Ao realizar um diálogo entre Interacionismo Socio-discursivo, Clínica da Atividade e
Ergonomia Machado (2007) traz um diálogo teórico entre Bronckart, Clot, Saujat e Amigues
(entre outros autores) e considera o trabalho enquanto objeto de estudo, como
multidimensional, polissêmico e em (re)construção. Sendo o trabalho do professor um
“enigma”. O diálogo entre essas teorias fornece uma conceitualização provisória sobre o
trabalho docente, e pode ser definida pela afirmação que o trabalho do professor é: 1. Uma
atividade situada que sofre influência do contexto, é pessoal e única, engaja o trabalhador em
todas as suas dimensões e é também impessoal, pois, as tarefas são prescritas; 2. É
prefigurada pelo próprio trabalhador que reelabora as prescrições; 3. É mediada, por
instrumentos materiais ou simbólicos na medida em que o trabalhador se apropria dos
artefatos disponibilizados pelo meio social para ele; 4. É interacional à medida que o
trabalhador transforma o meio de trabalho e os instrumentos e é também transformado por
eles; 5. É interpessoal, pois envolve interação com outros indivíduos; 6. É transpessoal, pois é
guiada por “modelos o agir”; 7. É conflituosa, pois o trabalhador precisa fazer escolhas e
redirecionar o seu agir; 8. É fonte de aprendizagem, de novos conhecimentos ou pode ser
fonte de impedimentos para o desenvolvimento.
O trabalho docente consiste em uma mobilização integral do professor em diversas
situações (em sala de aula ou no trabalho levado para casa) que tem por finalidade segundo
Machado (2007) criar um meio que possibilite a aprendizagem, por parte dos alunos, de um
conjunto de conteúdos de uma disciplina e o desenvolvimento de capacidades relacionadas a
esse conteúdo. O professor é orientado por um projeto de ensino que lhes é prescrito por
diferentes instâncias superiores e utiliza instrumentos obtidos do meio social e na interação
com diferentes outros.
Compreendendo o professor como historicamente situado
Tendo em vista os objetivos propostos nesta pesquisa utilizaremos como base teórica
para nossa análise acerca do trabalho docente, os pressupostos teóricos da Análise do discurso
de linha francesa (doravante AD). Essa teoria propõe explicar as estruturas do discurso que
possibilitam a produção de sentidos. O objeto de estudo da AD é o discurso, para essa
perspectiva teórica entender a língua é compreender a relação da linguagem com o social de
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forma constitutiva. Assim a linguagem é concebida enquanto discurso, com natureza social,
histórica e cultural, entendendo discurso como prática que se materializa na linguagem.
Para a AD o sujeito não deve ser compreendido por sua individualidade no mundo, sua
existência particular, esta teoria propõe a ideia do sujeito discursivo, que deve ser apreciado
como um ser social, com existência em um espaço social e ideológico, em um determinado
momento histórico. Assim este sujeito é formado por várias vozes sociais, que aparecem em
seu dizer. Ele é considerado um sujeito falante e falando, que Fernandes (2007) diferencia da
seguinte forma:
A referência do sujeito falante [...] trata-se do sujeito empírico, individualizado, que,
dada a sua natureza psicológica, tem a capacidade para a aquisição da língua e a
utiliza em conformidade com o contexto sociocultural no qual tem existência. O
sujeito falando remonta à perspectiva assinalada quando expusemos a noção de
discurso; refere-se a noção de um sujeito inserido em uma conjuntura sóciohistórica-ideológica cuja voz é constituída de um conjunto de vozes sociais.
(FERNANDES, 2007, p.35)
Este sujeito é formado de diversos discursos, é considerado polifônico e heterogêneo.
Polifônico, pois, é constituído de vozes vindas de espaços sociais diferentes, que constituem
diferentes discursos. Heterogêneo quanto à presença implícita e/ou explícita de diferentes
discursos na sua enunciação. Assim podemos inferir que compreensão do professor acerca do
seu trabalho é construída historicamente, as posições que ele assume como sujeito são
construídas por práticas discursivas.
O sujeito participa de um processo de comunicação dialógico, onde há interação entre
os sujeitos, este dialogismo “refere-se às relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos
processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos” (FERNANDES, 2005, p.37).
Uma das formas de ver o outro na AD é compreendê-lo como o mundo social no qual o
sujeito pertence. O “eu” e o “outro” são considerados inseparáveis e interagem através da
linguagem.
O discurso é para a AD as questões de natureza exterior, os aspectos ideológicos e
sociais que aparecem impregnados nas palavras quando estas são proferidas.
Segundo
Fernandes (2005) “o discurso não é a língua(gem) em si, mas precisa dela para ter existência
material e/ou real.” (FERNANDES, 2005, p.18) Uma das formas dele ser evidenciado é pelas
escolhas lexicais, a escolha de uma palavra para compor o sentido na enunciação, implica a
ausência de outra, revelando assim as posições sociais assumidas no dizer.
Uma formação
discursiva é constituída de várias formações ideológicas denominadas de interdiscursos, que
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caracteriza a junção de diferentes discursos vindos de momentos históricos diferentes e
lugares sociais diferentes. A prática discursiva possibilita a produção e interpretação da
enunciação em um determinado contexto situacional, marcado por uma ideologia.
Trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação;
de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais
justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar
ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui.” (FOUCAULT apud
FERNANDES 2005, p. 56.)
Assim a memória discursiva não é considera como lembranças do passado, mas sim
como espaço de memória que exprime a constituição do discurso em uma materialidade de
certa memória social. Mostrando a memória coletiva histórica em que o sujeito está inserido.
Através da AD podemos afirmar que os acontecimentos exteriores e anteriores ao texto, são
refletidos em sua materialidade, pois os discursos ali presentes estão inseridos em uma
memória discursiva de um dado momento da história.
Os discursos de professores em formação inicial sobre o trabalho docente
Compreendendo que é o sujeito “falando” inserido em um contexto histórico situado
que interessa a AD, mostramos dizeres de professores em formação inicial acerca do trabalho
docente analisando como esses sujeitos compreendem a docência enquanto trabalho. Os dados
aqui analisados são respostas concedidas a um questionário que abordava o tema “Percepções
dos estudantes de Letras sobre o trabalho docente”. Nosso instrumento de coleta de dados
contém seis questões sobre o trabalho docente, no presente trabalho analisaremos as respostas
concedidas as questões de número três que é a seguinte:
1- Em que consiste o trabalho do professor?
Essa questão foi elaborada com o intuito de investigar a concepções de trabalho
docente, considerando os elementos envolvidos nesse trabalho e as atividades realizadas pelo
professor. O questionário foi aplicado em uma turma de Estágio Supervisionado II do curso
de licenciatura em Letras, com habilitação em língua portuguesa, de uma instituição pública
da região Nordeste do Brasil, no ano de 2014. Foram respondidos trinta questionários, dos
quais selecionados quatro para análise no presente trabalho.
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A questão que analisaremos corresponde à questão de número três em nosso
questionário e é a seguinte: Em que consiste o trabalho do professor? Segue abaixo a resposta
de quatro de nossos colaboradores:
C1 – O professor atua na transmissão, difusão de conhecimento, preparando,
desenvolvendo e avaliando indivíduos para a sociedade.
C2- Consiste em explicar a matéria de sua responsabilidade, dar orientação e suporte
ao aluno, tirar dúvidas, aplicar avaliações, preparar aulas, fazer tarefas, corrigir tarefas e
avaliações e fazer chamada.
C3- O trabalho do professor consiste no ensino e educação das pessoas como forma
de melhorar o convívio social, desenvolvimento individual, profissional dotando os indivíduos
de conhecimento para aplicação prática das diversas atividades.
C4- Preparar e ministrar aulas; corrigir trabalhos e provas; participar de
planejamento; e participar na construção do Projeto Político Pedagógico.
No dizer de C1, o trabalho docente tem por finalidade difundir o conhecimento para
indivíduos que atuam em sociedade. A concepção de trabalho docente desse sujeito está
âncora em um “já dito” que ele retoma através da memória discursiva. C1 compreende o
professor como aquele que transmite conhecimento, comungando por um lado com uma
concepção comportamentalista de ensino onde o foco encontra-se no impacto da ação docente
sobre a aprendizagem do aluno, o professor é tomado como aquele que age para transmitir o
conhecimento, por outro lado esse discurso é rompido quando ele afirma que o professor deve
formar indivíduos para a sociedade, mostrando-se um discurso heterogêneo que além de
retomar uma abordagem comportamentalista traz a tona aspectos da interação social do
sujeito aluno, considerando sua vida em sociedade e trazendo a expectativa de que o professor
é um modificar de destinos dos alunos, pois ele deve preparar, desenvolver e avaliar o aluno
para a vida, em uma visão idealizada o professor é colocado como um professor-herói. Essa
visão de que o professor é quem desenvolve indivíduos para a sociedade, ou seja, é um
modificar da sociedade pressupõe a existência de alunos idealizados que sejam bem
comportados e engajados com a escola, porém sabemos que de fato a relação professor alunos
está longe de ser tranquila.
Para C2 o trabalho docente é constituído de tarefas que fazem parte da rotina do
profissional, como pontua Amigues (2004) sobre a compreensão de trabalho, a tarefa
corresponde ao que deve ser feito e pode ser descrito de forma objetiva, ou seja, preparar
avaliações, dar aula, corrigir tarefas, fazer chamada. Fica apagada no discurso desse
colaborador a compreensão da realização das atividades e das impossibilidades que surgem
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nessa realização, tudo é colocado de forma bastante objetiva e linear, pensando no professor
que age sobre o aluno para que ele aprenda e deixando os conflitos com o outro apagado.
Para C3 o centro do trabalho docente é o outro, o aluno e a sociedade em que ele está
inserido. Este colaborador formula um discurso perpassado por outros discursos, ou seja, pelo
interdiscurso, ela inicialmente coloca o professor em um papel idealizado que tem por
finalidade melhorar o convívio social e o desenvolvimento individual, e em um segundo
momento essa preocupação centra-se em um indivíduo em sua vida profissional que prática
atividades nessa sociedade e que tem o professor como alguém que deve ensinar essas
atividades. O professor é colocado em um papel de grande responsabilidade que traz viés
maternal de educar para a vida e não somente de ensinar conteúdos científicos.
Para C4 o trabalho consiste em tarefas a serem desenvolvidas, assim como C2 esse
colaborar compreende o trabalho como tarefas a serem desenvolvidas de forma objetiva,
apagando os conflitos da profissão e considerando o aspecto transpessoal, que evidencia os
modelos do agir, conforme pontua Machado (2007), temos um professor que atenta para as
prescrições sobre o seu agir, seu deveres, é sobre o que é comum a sua profissão.
Considerações finais
Passeando pelos dizeres por professores em formação inicial, acerca do trabalho
docente, percebemos que seus dizeres são heterogêneos e trazem concepções históricas
diversas sobre o agir docente. Os sujeitos ao construir enunciados retomam através das redes
de memória discursos sobre o que é ser professor. As formações discursivas que são
exteriores aos sujeitos, passam por meio da linguagem a constituir esses profissionais e
também são modificadas por eles através da inserção do interdiscurso dos mesmos. Vimos
que os professores se veem como sujeitos responsáveis por ensinar conteúdos, por cumprir
tarefas da ordem de sua profissão e também como um agente modificar da realidade social e
individual.
Referências
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Ferreira. São Paulo: Papirus Editora, 2010, p.37-74.
AMIGUES, René. Trabalho do professor e trabalho de ensino. In: MACHADO, Anna Raquel
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PÊCHEUX, M. O discurso estrutura ou acontecimento? 2º Ed. Campinas, SP: Pontes, 1997.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2086
A CRIAÇÃO DE ESTRATÉGIAS PERSUASIVAS NA
CONSTRUÇÃO DE AULAS ARGUMENTATIVAS
[Voltar para Sumário]
Nádia Mara da Silveira (IFAL – Campus Maceió)
Esse artigo, dentro da abordagem da linguística aplicada, tem por objetivo demonstrar as
estratégias persuasivas dos alunos e do professor na construção de aulas argumentativas, a partir
da metodologia do estudo de caso, através de uma aula que contempla uma análise dos alunos e
do professor em torno de uma resposta emitida por dois alunos-autores, em uma questão de prova,
quando o professor pergunta: explique como se insinua a função apelativa ou conativa no texto
apresentado, referindo-se a um texto de propaganda, partindo do princípio que, segundo Silveira
(2010), a persuasão em sala de aula pode assumir duas formas: direta, nos momentos em que
poucos argumentos são utilizados pelo professor e os alunos em suas argumentações e, indireta,
quando o professor e os alunos fazem uso de argumentos diversificados, com várias tentativas,
para persuadir o outro, seu interlocutor, de que a sua idéia é válida.
Se “a persuasão é um recurso utilizado pelo sujeito na tentativa de provocar no outro,
seu interlocutor, mudança de opinião ou ponto de vista e que o outro, no entanto, conforme
Possenti (1993), pode não ter a mesma intenção de sentido” (SILVEIRA, 2010, p. 9) e
considerando, também, que na sala de aula há uma inversão de papéis constante, entre
professor e alunos, pois esses papéis são móveis e exercem certa flexibilidade, pois ora os
alunos são o interlocutor do professor e ora o professor é o interlocutor dos alunos. É possível
questionar como a criação de estratégias persuasivas acontece e como essas estratégias são
delimitadas.
Segundo Bakhtin (1992 b), se estrutura nas interações entre falante (locutor) e ouvinte
(interlocutor) papéis intercambiáveis, uma vez que toda comunicação (oral e escrita) consiste
na pressuposição por parte do locutor de uma atitude responsiva ativa de seu interlocutor.
Portanto, no que se refere à sala de aula, o papel da persuasão é, talvez, além de um recurso
do professor e do aluno para tornar as aulas mais argumentativas, uma forma de promover a
interação e possibilitar que o conhecimento aconteça.
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Isso nos leva a definir o sujeito, alunos e professor, com uma autonomia relativa, não
totalmente livre e nem totalmente assujeitado, uma vez que, baseados na noção de Possenti
(1993), o sujeito é um trabalhador da língua; segundo Hagège (1985), o sujeito é um enunciador
psicossocial; conforme Dosse (1994), o sujeito é dialogal, e de acordo com Zozzoli (2002), a
autonomia relativa consiste em uma condição do sujeito que lhe possibilita, ao recusar o papel de
assujeitado pela ideologia, assumir a posição de sujeito crítico.
Portanto, pretende-se demonstrar através dos dados coletados em uma aula de língua
portuguesa, como os interlocutores, alunos, fazem uso da sua autonomia relativa para delinear
seus argumentos, por meio de uma estratégia de persuasão criada pelo professor que possibilita
a criação de uma aula argumentativa, gerando espaços para que a autonomia relativa dos
sujeitos se manifestasse e a persuasão se instalasse, ora de forma mais direta e ora mais indireta.
II. Discussão Teórica
2.1. Estratégias Persuasivas e Argumentativas
Conforme Bakhtin (1992b), a fim de expressar o seu intuito discursivo, o sujeito
escolhe o gênero discursivo adequado para construir um sentido ao seu enunciado, recorrendo
a certos recursos lingüísticos que a língua disponibiliza e torna acessível para efeito de
comunicação. Dentre esses recursos, encontra-se a persuasão e a argumentação, já que “o uso
da linguagem é essencialmente argumentativo” (KOCH, 1992, p. 29).
Portanto, entendemos o argumento tanto como um modo de utilização do enunciado pelo
sujeito para reforçar o seu querer dizer, o seu intuito discursivo, quanto, conforme Ibaños
(1989:21), um modo de enfraquecer ou apoiar o argumento do outro, uma vez que, quase sempre,
argumentamos para e com o outro. Nesse caso, pode-se afirmar que o discurso de sala de aula
trata-se de um discurso pedagógico, segundo Bortolotto (1998, p. 21), pois é composto por
argumentos e faz uso da persuasão, onde cada um, professor e alunos, mesmo mantendo a
hierarquia, tentam convencer, persuadir o outro das suas verdades, vontades, pensamentos e
ideias.
Pode-se afirmar, ainda, que “o discurso de sala de aula, discurso pedagógico, é
principalmente persuasivo e a persuasão se apresenta, nesse espaço discursivo (...) de duas
maneiras: uma persuasão didática e uma persuasão do conhecimento” (SILVEIRA, 2010, p.
13). A autora (Ibid, p. 90), defende que a persuasão em sala de aula pode ser didática, quando
o professor, hierarquicamente superior ao aluno, decide quanto a organização da aula:
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atividades e tarefas que serão realizados naquele dia ou no semestre. Já a persuasão do
conhecimento, corresponde aos momentos em que o professor constrói o conhecimento com
os seus alunos, argumenta em favor ou contra uma teoria ou conhecimento que ele espera que
o aluno compreenda, fazendo uso de variados argumentos.
Silveira (2010, p. 90) enfatiza, também, que quanto mais argumentos e estratégias
persuasivas o professor utiliza para manter a interação e desenvolver conhecimentos com/para
os alunos, mais a persuasão de sala de aula torna-se indireta, pois o professor se distancia de
uma imposição para se aproximar da argumentação, à medida que ele precisa recorrer a
variados argumentos e abordagens para que o aluno aceite ser persuadido, aceitando seus
argumentos, concordando com aquilo que ele tentava ensinar.
Por outro lado, quanto menos argumentos e estratégias persuasivas o professor utiliza,
mais direta torna-se a persuasão e mais impositiva, pois o professor simplesmente espera que
o aluno aceite, sem discutir, mesmo que isso não seja garantia de que ele concorde, de acordo
com Possenti (1993).
2.2. Aulas Argumentativas
Para Carvalho (1995:16) e Kreutz (1989: 30; 32), a escolha de um termo/palavra, de um
texto/tema de uma aula pelo locutor/professor, já se constitui numa estratégia persuasiva do
professor na criação de uma aula mais ou menos argumentativa. Afinal, o locutor, “abrigando
uma multiplicidade de vozes, utiliza estratégias argumentativas no sentido de convencer,
persuadir ou mesmo dissuadir os alocutários”. (GUERRA, 1998, p. 32).
As estratégias argumentativas já se consolidam desde o momento em que o professor
escolhe o tema de aula, seleciona um texto para desenvolver tal tema, dependendo, também,
da metodologia utilizada: expositiva, em grupo, ou pergunta-resposta, pois essas escolhas vão
determinar seu discurso persuasivo – recursos argumentativos – que serão utilizados para
persuadir os alunos a um determinado posicionamento.
No entanto, o sujeito ao argumentar “procura não apenas convencer ou persuadir, mas
também construir um determinado modo de representação visando agir sobre um auditório”
(BOUACHA; PORTINE, 1981, p. 4), a sala de aula, por exemplo. Desse modo, entende-se
que o professor para cumprir com o seu papel de ensinar ao seu auditório, de forma a gerar
aprendizagens, precisa convencer, persuadir os seus alunos sobre a importância do
conhecimento ensinado, sua veracidade, sua representação na vida real, e só vai conseguir
isso se utilizar de argumentos variados.
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Além disso, no campo da argumentação, Perelman; Olbrechts-Tyteca (1996) afirmam
que a persuasão/convicção fundamentam-se, principalmente, no tipo de discurso ou
argumento adotado pelo sujeito, direcionado a um público ou auditório específico, visando
um resultado. O que Bakhtin (1992a) já defendia, dizendo que não há discurso que não seja
direcionado para um público, interlocutor real e social, pois, segundo ele:
A enunciação, compreendida como uma réplica do diálogo social, é a unidade de
base da língua, trata-se de discurso interior (diálogo consigo mesmo) ou exterior. Ela
é de natureza social, portanto ideológica. Ela não existe fora de um contexto social,
já que cada locutor tem um “horizonte social”. Há sempre um interlocutor, ao menos
potencial. O locutor pensa e se exprime para um auditório social bem definido
(BAKHTIN, 1992a, p. 16).
Portanto, caracterizamos o argumento tanto como um modo de utilização do
enunciado pelo sujeito para reforçar o seu querer dizer, o seu intuito discursivo, quanto uma
forma de enfraquecer ou apoiar o argumento do outro, já que, quase sempre, argumentamos
para e com o outro. No que tange a sala de aula, podemos afirmar que se o professor não
utilizar de argumentos para persuadir seus alunos, quanto aos conhecimentos vinculados à
disciplina, a aprendizagem não se consolidará, pois a persuasão, de acordo com Reardon
(1991, p. 2)
envolve guiar pessoas para a adoção de algum comportamento, crença ou atitude
preferida pelo persuasor, através de raciocínio ou apelos emocionais. Ela não rouba
das pessoas a sua habilidade de escolher, mas apresenta um caso para a adoção de
um modo de ação, crença ou atitude preferido pelo persuasor. Ela não usa a força ou
ameaça e não limita as opções dos outros por logro (através do engano).
Desse modo, quanto mais o professor/interlocutor argumenta para persuadir o aluno,
mais indireta a persuasão se torna e maior é a possibilidade de que a construção do
conhecimento pelo aluno/interlocutor aconteça. Contudo, quando o professor faz uso de poucos
argumentos, ele se aproxima da imposição e menor é a garantia de que o outro, aluno
interlocutor, aceite o que foi argumentado, característica de uma persuasão direta.
2.3. Autonomia Relativa
No que se refere à autonomia relativa pode-se afirmar que ela se consolida tanto pela
participação do sujeito na construção de suas formações ideológicas, estabelecidas e mantidas
através das relações sociais, quanto pela concretização de suas escolhas linguísticas, que
desencadeiam ações verbais e não verbais. O sujeito ignorado pelo estruturalismo, que se
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2090
apaga enquanto sujeito, pois é visto como o usuário de uma língua de cuja elaboração não
participa, mas se apropria, uma abstração ou efeito de linguagem, recalcado e determinado,
vai sendo recuperado pela dialógica, pois
O sujeito e a história estão decididamente de volta, e a dialógica oferece, com efeito,
a perspectiva de um paradigma em ruptura com o momento estruturalista, mesmo
que permita situar-se mais numa perspectiva de ultrapassagem deste último do que
na de um movimento de rejeição radical (DOSSE, 1994, p. 496).
Portanto, é na dialógica, que Hagège (1985) denomina “concepção interativa” e Dosse
(1994) caracteriza como “dialogal”, que o sujeito é recuperado, ou pelo menos, significado
como um ser participativo. Em resumo, o sujeito tanto é influenciado pela ideologia e por suas
formações ideológicas, quanto é relativamente livre e responsável por suas trocas linguísticas
(escolha de seus enunciados e ações), durante as suas interações, diálogos com o outro, seu
interlocutor, papéis intercambiáveis.
Também Possenti (1993) rejeita a idéia de sujeito assujeitado, que se apropria da língua,
pois o sujeito que ele defende é um “trabalhador da língua”, que colabora com a sua construção ao
construir o seu discurso, o seu enunciado, conforme o seu interesse discursivo. É nesse trabalho
com a língua, ao construir sua idéia, seu intuito discursivo ou o seu querer dizer, já conforme
Bakhtin (1992b: 300), que o sujeito se constitui sujeito, portanto, um sujeito que não é totalmente
assujeitado, ainda que não seja totalmente livre. Porém, ainda segundo Possenti (1993), a
coincidência da intenção e da atribuição de sentido entre os interlocutores, durante a enunciação,
nem sempre é garantida, já que o outro do discurso, o interlocutor, também é um trabalhador da
língua, tendo todo o direito de discordar do que é proposto, estabelecendo-se, portanto, o conflito.
Finalmente, Zozzoli (2001) defende, embasada também em Hagège (1985), Possenti
(1993), Dosse (1994) e Bakhtin (1992 a e b) a noção de sujeito com uma autonomia relativa,
um sujeito não reduzido ao individualismo e nem espelho do social. Enfim, um sujeito
participativo de sua historia, atuante, dialogal, enunciador, psicossocial, trabalhador da língua,
um sujeito com uma autonomia relativa.
Portanto, o sujeito, com sua autonomia relativa, ora é persuadido e ora é persuasível,
ora trabalha em prol dos meios de comunicação de massa e da propaganda e ora se opõe, pois
é um sujeito participante das relações sociais que o tornam um sujeito contraditório, nunca tão
pacífico e submisso à ideologia e nunca tão independente e imune.
III. Metodologia
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2091
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, conforme Triviños (1987, p. 131), pois nela
“existe a escolha de um assunto ou problema, uma coleta e análise de informações”, sem
seguir rigidamente uma sequência e tendo liberdade para mudar o embasamento teórico,
dependendo dos problemas levantados no campo. Consiste, também, em um estudo de caso,
segundo Triviños (1987, p. 133), pois, “Entre os tipos de pesquisa qualitativa característicos,
talvez o Estudo de Caso seja uma dos mais relevantes” (...) “uma categoria de pesquisa cujo
objeto é uma unidade que se analisa aprofundadamente”.
Caracteriza-se essa pesquisa como qualitativa e um estudo de caso, primeiro porque
não se tem hipótese a seguir, apenas se quer verificar se o professor utilizou estratégias
persuasivas na construção de uma aula argumentativa. Segundo, porque se pretende
aprofundar a análise dessa aula observada, de modo a identificar quais estratégias e que tipo
de persuasão o professor fez uso para tornar sua aula argumentativa.
Salienta-se que esta pesquisa compreende a observação de uma aula em que um
professor de língua portuguesa, de uma escola pública, da cidade de Maceió, desenvolve com os
alunos de 1º ano do Ensino Médio, a fim de criar estratégias persuasivas e tornar sua aula mais
argumentativa, através da análise e argumentação dos alunos sobre uma resposta emitida por
dois alunos-autores na prova, em relação a um texto de propaganda.
3.1. Questão da Prova
A proposta do professor é de que a turma ofereça possibilidades de refacção ao texto
produzido na prova, por dois alunos-autores, de forma a criar estratégias persuasivas e construir
aulas mais argumentativas, através da persuasão indireta, em torno da questão: Explique como
se insinua a função apelativa ou conativa no texto apresentado:
PENSANDO BEM A SAMELLO NÃO EVOLUIU MUITO NOS ÚLTIMOS 63
ANOS. ELA CONTINUA FAZENDO SAPATOS À MÃO.
3.2. Resposta Emitida Pelos Alunos na Prova
A SAMELLO CONTINUA FAZENDO SAPATOS À MÃO PORQUE É MAIS
RESISTENTE. NEM TODAS AS PESSOAS PODEM USAR ESTES SAPATOS.
SUA MAÕ DE OBRA É CARÍSISSIMA.
IV. Análise de Resultados
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2092
O que se observa é que a proposta de trabalho do professor na prova, persuasão
didática, consiste em fazer com que o aluno identifique se a função do texto é apelativa ou
conativa, explicando-a. A função apelativa, segundo Jakobson (s/d, p. 125), consiste “quando
a mensagem se orienta para o destinatário; baseando-se no vocativo e no imperativo”. Tratase, também, de “um meio para levar alguém a adotar um certo comportamento”, conforme
Dubois (1973, p. 295). Já a função conativa implica, segundo Chalhub (2003, p.63) “o uso da
segunda pessoa do vocativo e do imperativo. A persuasão da mensagem pode ser reforçada
pela função estética para persuadir o receptor”.
Portanto, verifica-se que o texto faz uso das duas funções: a apelativa e a conativa,
com base nos autores acima citados, porém, mais significativo, é o fato da questão da prova
aparecer como “texto-pretexto”, segundo Geraldi (1993), a fim de que os alunos possam
desenvolver uma argumentação em torno da resposta, uma estratégia persuasiva do professor
para criar aulas mais argumentativas, já que diante da resposta polissêmica emitida na prova,
os alunos teriam oportunidade de se colocarem, concordando ou discordando, mas com
argumentação em torno da resposta, ver episódio abaixo.
Episódio 1
(28) P. oi? - bom - o - observem naquele textozinho: continua fazendo sapatos a mão porque é mais resistente nem todas as pessoas podem usar estes sapatos - sua mão de obra é carissima - o que é que é possível
a nível de idéia - de adição - o que é que é possível a gente refazer?
(29) A15. XXX XXX
(30) P. ele tá - falando aqui - já já pegaram o porquê né? – pegar - o porquê - vamos lá - agora - diz aí A8
(31) A8. porque é mais resistente - seria o que que é resistente XXX XXX?
(32) P. não - porque já foi no outro grupo - que pegou - foi o A7 que pegou - vai conversar sobre isso - diga aí?
(33) A8. aqui diz - sua mão de obra é caríssima - tava pensando como artesanal - - é tradição de sapatos - é caro
(34) P. olhe - eu não tô entendendo o que é que cê quer dizer - sua mão de obra é caríssima - - gente: - sua mão
de obra é caríssima - que que cê quer dizer - A8?
(35) A8. ali no texto não diz que a mão de obra é caríssima
(36) P. não - o texto não diz que a mão de obra é caríssima - no texto não diz não
(37) A8. é que:: o XXX XXX
(38) P. gente - como é que é o texto? - lembram (leitura do texto da prova) - pensando bem - [a Samello não
envoluiu muito nos últimos sessenta e três anos - ela continua fazendo sapatos: - a mão]
(39) ALGUNS [não envoluiu muito nos últimos sessenta e três anos - ela continua fazendo sapatos a mão]
(40) P. o texto é esse - - - e
(41) A8. ela faz sapatos a mão - porque é tradição na empresa:
(42) P. tá legal - faz porque é uma tradição da empresa - uma tradição dela é fazer o sapato a mão é isso?
(43) A8. é isso
(44) P. agora sim - cê tá questionando - pelo que eu tô percebendo - o caríssima - cês tão percebendo isso? - a
turma tá percebendo? - tá percebendo? - agora vem assim - o que é que fez com que o A7 e o A25
colocassem essa pista caríssima aqui? - eu acho que o A7 pode responder - não sei
(45) A7. a mão de obra é assim caríssima por - feita a máquina sai mais barato
(46) P. da prá deduzír - segundo o A7 tá dizendo - é que - parece que a coisa feita a mão - ou artesanalmente
como você tá dizendo - parece que é mais cara - funciona nesse sentido - né? - agora gente - por que é
que - normalmente - se diz que um sapato que é feito a mão é mais caro?
(47) AL. [XXX XXX]
(48) A8. porque é mais trabalhoso
(49) P. trabalhoso né? - eu concordo - e também eu acho que da pra se pegar – como é que é? - é eu acho que da
pra pegar uma coisa mais de qualidade - e também alguém disse que: - a coisa pode se dar XXX
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2093
Observa-se, através do episódio 1, que ao aceitar que a discussão desencadeada pelo
aluno A8, em torno do sentido do texto dos alunos-autores, se desenvolvesse ao longo da aula,
o professor torna possível que os alunos trabalhem os aspectos polissêmicos e
desencadeadores de sentido no texto. Dessa forma, possibilita a realização de uma aula muito
mais argumentativa, interativa e participativa, da parte dos alunos.
Além disso, observa-se, também, que os alunos, principalmente o aluno A8, diante
dessa nova possibilidade de análise, desconsideram a pergunta da prova que consiste na
identificação de funções apelativas e conativas e partiram para a discussão do sentido do texto
dos alunos autores. Desse modo, eles tiveram uma compreensão do texto da Samello
desencadeada muito mais pelos elementos implícitos do que os explícitos, uma leitura
polissêmica, o contrário da leitura dos alunos-autores, gerando, com isso, uma não
coincidência de idéias entre o pensamento deles e a resposta emitida na prova.
Significativo, ainda, é que o aluno A8, falando de outro lugar de linguagem, insiste numa
diferença de sentido entre o texto produzido pela Samello e a interpretação realizada pelos alunosautores, estabelecendo-se o conflito. A postura de A8 vai ser a de tentar persuadir os
alunos/professor de que o texto dos alunos-autores apresenta incoerência textual.
Contudo, enfatiza-se que o professor, ao levantar o questionamento: “O que é possível a
gente refazer?”, turno 28, desencadeou a possibilidade de argumentação da parte de A8, que girou
em torno de duas idéias presentes no texto dos alunos-autores: “sua mão de obra é caríssima”,
turnos (31), (33), do episódio acima, e “nem todas as pessoas podem usar estes sapatos”, turno
(80), do episódio abaixo, demonstrando, novamente, que A8 está falando de outro lugar de
linguagem, diferente daquele de onde falaram os alunos-autores.
Episódio 2
(70) A29. professor - eu acho que poderia acrescentar alguma coisa
(71) P. pode acrescentar o que:: - A29?
(72) A29. isso ali - ali óh XXX XXX - porque é mais trabalhado é mais resistente - poderia ser?
(73) P. oi?
(74) A29. ali - continua fazendo sapato à mão - porque é mais resistente - mais trabalhado- ali - poderia ser?
(75) P. mais - você tá - mais trabalhado - espera aí - só - vejam só gente óh - o sapato não é feito à mão?
(76) A29. porque é bem trabalhado
(77) P. nos argumentos do grupo - o sapato não é feito à mão? - é - se ele é feito à mão o que é que se pressupõe?
- que ele é mais? - resistente - bom - se é feito à mão pressupõe que a mão de obra é caríssima - não é?
- e se é feito à mão e a mão de obra é caríssima pressupõe que nem todas as pessoas podem:
(78) A26. com a mão de obra caríssima [XXX]
(79) P. [usar]
(80) A8. a mão de obra pode ser cara num sapato comum – nem todo mundo pode usar
(81) P. oi?
(82) A8. a mão de obra pode ser cara num sapato comum – nem XXX
(83) A26. a mão de obra sai caríssima - nem todo mundo pode usar
(84) P. ôh gente - ele tá dizendo assim – tá dizendo o seguinte - cê tá dizendo que: a mão de obra - que o sapato
pode feito - pode ser feito artesanalmente - mais pode não ser caro - cês concordam?
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2094
(85) A26. não - sendo assim a empresa vai a falência
(86) P. oi?
(87) A26. só se vai a falência (risos do professor)
(88) P. XXX oi?
(89) A33. em relação ao texto - entre sua mão de obra é caríssima - não poderia vir antes de - nem todas as
pessoas podem usar esse sapato?
Verifica-se que A29, A26 e A8, numa leitura polissêmica do texto dos alunos-autores
e do texto original da Samello, acreditavam que a Samello não veicularia em uma propaganda
tal mensagem: “de que seus sapatos não eram acessíveis para todos”, tal como os alunosautores vinham defendendo. Significativo, porém, não é o fato do ponto de vista desses alunos
apresentarem uma diferença de sentido com relação ao texto original e o dos alunos-autores,
mas o fato deles se caracterizarem como alunos contestadores, cuja atitude – de contestar a
opinião do professor e da turma diante da resposta dos alunos-autores – engloba o reflexo de
um sujeito que reclama sua autonomia, não se assujeitando em aceitar a opinião do professor
e dos alunos-autores como a única possível, no momento que se posicionam contra o sentido
do texto, defendendo e argumentando o ponto de vista que eles crêem.
Salientamos, contudo, que o fato de o professor aceitar que a leitura do texto da
Samello, realizada pelos alunos-autores era a única possível, não se deixando, inicialmente,
persuadir por A8 e os outros alunos quanto à existência de outra possibilidade de leitura, foi,
na verdade, uma estratégia persuasiva desse professor para criar uma aula mais
argumentativa, um recurso que deu certo considerando que:
a) houve um grande número de turnos dos alunos para defenderem suas ideias;
b) o professor só aceitou a idéia de A8 e outros alunos no final da aula, após debate
exaustivo em torno do tema, episódio 3 abaixo, depois deles argumentarem suas ideias;
c) o fato do professor criar um espaço de argumentação quebra com o discurso
estereotipado, incorporado ideologicamente e perpassado pela escola, que coloca o
professor como o que sabe, portanto, o detentor da última palavra.
d)
Episódio 3
(311) P. ôh gente - estamos chegando a um consenso - repare que a gente pegou uma resposta pequena quarenta minutos analisando essa resposta - e a gente chegou ao final dizendo - parece que é um consenso da
turma que isso aqui não tem a ver com o texto - o grupo percebeu que não tem a ver - - será que A7 e a A25
no momento da prova não queriam perceber? - porque a sala tá percebendo - o A8 tá percebendo - gente eu
não percebi eu nem percebi - é como se fosse uma coisa que tá interna no texto - que a Samello
comercializando sapatos não ia dizer isso se ela quer comercializar - né? então o que a Samello quer dizer?
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2095
Desse modo, ainda que, aparentemente, o professor pareça não ter percebido,
inicialmente, a diferença de sentido no texto dos alunos-autores, demonstrada pela proposta de
refacção de A8 e outros alunos, pode ser esta uma estratégia utilizada por ele para:
a) que os alunos contestadores, A8 e outros, argumentassem seus pontos de vista, que
contrariava a idéia que os alunos-autores defendiam em seu texto, já que sua estratégia
propiciou alguns momentos de fala para eles, através de perguntas e incentivando, de certo
modo, a defesa de seus argumentos;
b) que os alunos-autores recorressem ao texto original, aceitando a persuasão realizada
pelos alunos contestadores e percebessem as incoerências na proposta oferecida na prova;
c) por em dúvida o enunciado dos alunos-autores, sem se posicionar, ou expor seu ponto
de vista, persuasão indireta, possibilitando que os alunos fizessem as suas escolhas;
d) deixar a responsabilidade de decisão ao encargo da turma e dos alunos-autores,
quanto à necessidade de refazer ou não certos aspectos do texto, sem precisar expor sua
opinião a favor ou contra o que devia ser refeito;
e) evitar um confronto direto com os alunos-autores, que poderiam não aceitar a sua
persuasão de refazer determinados aspectos em seu texto, buscando apoio, então, na turma.
Em resumo, as atitudes do professor, nessa aula, se concentram em dois aspectos:
1) argumentar com os alunos, sem “impor” sua opinião pela autoridade pedagógica
que possui;
2) recorrer à opinião dos alunos, levando-os a exercitarem seu poder de argumentação.
V. Considerações Finais
Portanto, as atitudes iniciais do professor nos permitiram acreditar, a princípio, que a
sua noção de leitura seria parafrástica, uma vez que, ao aceitar a leitura/interpretação dos
alunos-autores, recusou, contudo, a de A8 e de outros alunos; bem como, ao aceitar a de A8 e
de outros alunos, recusa a dos alunos-autores, não admitindo a possibilidade de mais de uma
leitura em um mesmo texto, leitura polissêmica.
Entretanto, consideramos que a não compreensão imediata da leitura de texto de A8 e
de outros alunos consistiu em uma estratégia argumentativa e persuasiva do professor para
que, por um lado, A8 e os outros alunos pudessem argumentar os seus pontos de vista e, por
outro lado, os alunos-autores e o restante da turma pudessem argumentar os seus.
Assim sendo, podemos inferir que está postura do professor, de propiciar momentos de
argumentações para os alunos sobre os seus pontos de vista, compreende uma postura
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2096
persuasiva indireta que remete a criação de aulas argumentativas, interativas e caracterizadas
pela participação efetiva e consistente dos alunos, contrapondo-se ao fato de que, primeiro
devido a hierarquia e, depois, por tratar-se de um questão ideológica, acabe sempre ao
professor dar a última palavra, pois a argumentação, quase sempre, é um recurso do domínio
do professor. Afinal, no discurso de sala de aula, gênero secundário, as interações professor e
aluno são assimétricas, ainda que muitas vezes sejam democráticas, já que há uma hierarquia
institucional e ideologicamente mantida tanto pelo professor quanto pelos alunos.
Além disso, consideramos que as atitudes do professor que se concretizaram, na
maioria das vezes, através da persuasão indireta, mantiveram-se coerentes com a sua postura
democrática, pois além de permitir que os alunos argumentassem em sua aula, ele criou
espaço para que isso acontecesse. Afinal, discordamos de posturas ou metodologias de sala de
aula que se apóiem no uso da imposição ou da coerção na tentativa de mudar a opinião ou
pontos de vista dos alunos, mesmo quando eles sejam, aparentemente, “errôneos”.
Consideramos, portanto, que através da sedução e de uma persuasão indireta, pode-se
conduzir os alunos para outros raciocínios e pontos de vista possíveis, ficando por conta deles
em qual, ou quais, acreditar.
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Nas fronteiras da linguagem ǀ
2098
O PROCESSO DE SUMARIZAÇÃO EM POSTAGENS DO
FACEBOOK: O CASO DA SÉRIE “JEAN COMENTA”
[Voltar para Sumário]
Nadiana Lima da Silva (UFPE)
Monique Alves Vitorino (UFPE)
A massificação do acesso à internet e às mídias digitais é responsável por uma série de
mudanças na forma como as pessoas se comportam, interagem entre si e reagem a
informações. Tais mudanças alcançam também a participação política e o exercício da
cidadania na medida em que a internet vem consolidando um novo espaço público que amplia
de maneira incalculável o debate e a formação de opiniões.
Diante dessa realidade que se apresenta, já não é vista como novidade a presença de
políticos e suas campanhas no ambiente virtual. Segundo Bazerman (2006, p. 118), “a Web se
tornou uma presença política claramente reconhecida já nas eleições americanas de 1994; os
candidatos criaram sites na Web para proclamar suas posições e pedir apoio”.
Esse despontar do debate político na internet pode ser proveniente, de acordo com
Bazerman (2006, p. 121), de uma “intensificação e maior disponibilidade de uma tradicional
cultura de fala política”, segundo a qual produtores e consumidores mergulham em
informações e comentários críticos, independentes e partidários, falando para uma audiência
cada vez mais ampla.
Nesse contexto, o papel preponderante das redes sociais1 na atualidade tem
concentrado a atenção e a ação dos políticos, os quais exploram as potencialidades destes
espaços públicos, expondo seus posicionamentos “para fora do seu grupo geograficamente
imediato – e permite[indo] que se afilie a pessoas de interesses comuns, mas geograficamente
separados” (BAZERMAN, 2006, p. 120).
1
De acordo com Martino (2014, p. 61), o termo rede social vem da sociologia, e tem origem no estudo feito em
1950, por J. A. Bernes, o qual descreve o campo de relações sociais de um vilarejo, constituído “pelas ligações
de uma pessoa com outras, que, por sua vez, mantinham ligações com outras, e assim por diante, formando uma
espécie de ligação contínua entre vários indivíduos que nem sempre se conheciam ou tinham contato direto”.
Esse conceito foi ampliado para descrever as relações on-line, baseadas em conexões descentralizadas.
Entretanto, estamos utilizando o termo aqui como hiperônimo de redes de relacionamento, a exemplo de
Facebook, Twitter, Google+ etc., como convencionalmente é feito pelas pessoas (MARTINO, 2014; MALINI &
ANTOUN, 2013).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2099
Além disso, o fato de, na internet, como um todo, e nas redes sociais, em particular, os
participantes se inter-relacionarem com os produtores da informação de maneira horizontal –
ou seja, quase que em pé de igualdade no que diz respeito ao direito à voz, através dos canais
de comunicação disponíveis – cria as condições para que esse espaço de tensão política seja
muito mais dinâmico, flexível e democrático do que a mídia tradicional.
Tendo em vista esse contexto, chamou-nos à atenção as postagens facebooquianas do
deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), um dos políticos brasileiros mais atuantes em redes
sociais, uma vez que ele discute diversos assuntos de interesse geral e de sua alçada. Assim,
nesta pesquisa, enfocamos como traços da dinâmica do Facebook se impõem na forma de
produção de conteúdos em função da construção de um dizer eminentemente político.
Através da série "Jean Comenta", criada durante a campanha eleitoral de 2014, o
deputado passou a publicar comentários a partir de declarações de candidatos a cargos
diversos ou de notícias que ganharam projeção naquele momento. No Facebook, por exemplo,
as postagens da série eram formadas por um longo texto verbal acerca de uma questão
política/social e um texto imagético (composto por recortes de manchetes, citações, fotos
etc.), que sintetizava o primeiro2.
Nesse sentido, interessa-nos, aqui, analisar as estratégias de sumarização engendradas
de um para o outro, observando os recursos semióticos utilizados para esse intento. Além
disso, uma vez que verificamos que tradicionalmente o estudo do processo de sumarização
vem sendo feito com maior enfoque em gêneros acadêmicos (MOTTA-ROTH & HENDGES,
2010; MACHADO et al., 2004). Este trabalho, por sua vez, toma como objeto de análise o
processo de sumarização em textos cujo meio de circulação é a internet, um território menos
controlado e previsível do que o acadêmico.
1. Internet: espaço de tensões políticas
Depois de provocar mudanças na cultura, na economia, na interação entre as pessoas, a
internet vem, também, reconfigurando o modo de se fazer política. Desde a emergência dos
espaços virtuais de interação, ampliou-se indefinidamente a possibilidade de as pessoas
assumirem posições políticas publicamente, diante de interlocutores muitas vezes
2
No caso do Twitter, por sua limitação de caracteres disponíveis por tweet, apenas o texto imagético é
apresentado. Dessa forma, exige-se do leitor uma maior mobilização de conhecimentos prévios para a leitura,
não se observando o processo de sumarização como ocorre com as postagens do Facebook.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2100
desconhecidos, o que permitiu, consequentemente, que seus argumentos fossem cada vez
mais referendados, questionados ou refratados ampla e rapidamente.
De acordo com Malini e Antoun (2013, p. 210), no contexto da Web 1.03, os
conteúdos on-line eram produzidos a partir do modelo da página principal (homepage), o que
garantia às corporações globais “fazer da internet um grande meio imersivo”, no qual era
possível controlar a interação dos leitores com aquele conteúdo. É o que se pode apreender do
que se segue:
Essa mística da homepage acabou por construir uma visão da Internet como um
espaço imersivo desmobilizador, o local de uma passividade onde o tempo da
reprodução social se via colonizado pela navegação sem rumo através do oceano do
excesso de informações das inumeráveis homepages (MALINI & ANTOUN, 2013,
p. 211-212)
Com a ascensão das redes sociais, a passividade deu lugar à interatividade. Assim, “no
modelo 2.0, o usuário não tem ‘home’. Tem ‘timeline’” (MALINI & ANTOUN, 2013, p.
213). Atualmente, as relações nos espaços virtuais são estabelecidas segundo a lógica da ação
nas redes sociais, e os conteúdos são gerados, organizados e consumidos de acordo com essa
mesma lógica, ou seja, “um tipo de relação entre seres humanos pautada pela flexibilidade de
sua estrutura e pela dinâmica entre seus participantes” (MARTINO, 2014, p. 55), a qual tem
caráter horizontal, sem hierarquia rígida, sem a força das instituições.
Conforme Martino (2014), os interesses comuns que caracterizam os laços formados
dentro das redes sociais são responsáveis por criar todo tipo de agrupamento para troca de
informações, ideias e materiais. Isso gera não só interação entre os usuários (ou perfis,
conforme MALINI & ANTOUN, 2013), mas também engajamento nas mais diversas
questões políticas, sociais e culturais. Nas palavras de Silveira (2008, p. 32-33), “a rede digital
é também uma rede móvel que acompanha o andar do cidadão. Isso aumenta a
descentralização da comunicação e viabiliza novos tipos de mobilização na esfera pública,
impossíveis no ambiente de comunicação analógica e unidirecional”.
Por favorecerem tal mobilização, as redes “se articulam também com as possibilidades
de ação política nos vários sentidos da palavra, agregando novas dimensões à questão”
(MARTINO, 2014, p. 85). Assim, na medida em que se misturam com o cotidiano e alteram
as relações sociais, as redes estão abrindo espaço para uma esfera pública interconectada,
3
Em oposição ao caráter fixo da Web 1.0, a Web 2.0, surgida com a expansão das redes sociais e das formas de
produção colaborativa, no início dos anos 2000, se caracteriza pela dinamicidade, que gera constantes
transformações e interatividade entre os usuários (MARTINO, 2014).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2101
“com um potencial mais democrático que a esfera pública dominada pelos mass media”
(SILVEIRA, 2008, p. 31).
A esfera pública representa um espaço em que se comunicam questões que os
membros de uma sociedade julgam ser de interesse público e que requerem reconhecimento e
ação coletivos. O ambiente virtual, por sua difusão, estaria promovendo, segundo Benkler
(apud SILVEIRA, 2008, p. 32), profundas mudanças na esfera pública, a começar pela
arquitetura de rede, que deixa de ser unidirecional, no caso dos mass media, e passa a ser
distribuída, “com conexões multidirecionais entre todos os nós4, formando um ambiente de
elevada interatividade e de múltiplos informantes interconectados”. Além disso, os custos de
comunicação são quase nulos, deixando de serem barreiras para a propagação das mensagens.
Nesse sentido, a arquitetura distribuída das redes e o baixo custo de sua utilização são
características que favorecem o desenvolvimento da capacidade do indivíduo de participar da
esfera pública, sozinho ou em coletivos. Entretanto, apesar de se destacar como espaço
privilegiado para discussões políticas, “as interações políticas na internet nem sempre se
caracterizam pela democracia; discussões sobre temas de interesse público muitas vezes
perdem seu foco, tornando-se espaços de disputas e intrigas pessoais” (MARTINO, 2014, p.
90).
Embora esse aspecto não seja o principal interesse deste trabalho, é importante
mencioná-lo para esclarecer que a ideia de internet como uma nova Esfera Pública não é
consensual, já que o debate e a deliberação, a despeito da visibilidade que os temas adquirem
nas redes, não são plenamente efetivados. Por isso, nos parece mais adequado se referir a uma
esfera pública interconectada, a qual possui uma dinâmica interna que “envolve diferentes
modos de ação, distribuídos, não-coordenados, fortemente baseados em reputações. Ela
amplia o potencial dos cidadãos de articular a resistência ao poder a partir do espaço público”
(SILVEIRA, 2008, p. 32).
Portanto, sobre a esfera pública interconectada importa, aqui, que esta permite que as
opiniões sejam potencialmente ouvidas. A internet, para tanto, cria as possibilidades para a
participação política, mas é a circulação das informações, opiniões, pontos de vista que
favorecem o interesse das pessoas nos problemas da coletividade, o que faz das redes um
ambiente político/politizador (LUPION, 2013a).
1.2 A dinâmica do Facebook: resumir para difundir
4
Nas redes a ideia de nó estabelece a principal forma de interação.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2102
O Facebook é um dos sites de relacionamento mais populares entre os brasileiros.
Descrever parte de sua dinâmica e funcionamento é importante para o entendimento das
formas de atuação de uma sociedade em rede, uma vez que, na cibercultura, a “transposição
para o espaço conectado das culturas humanas em sua complexidade e diversidade”
(MARTINO, 2014, p. 28) reflete sua multiplicidade, fragmentação e desorganização.
Destacamos, para isso, de acordo com Malini e Antoun (2013), a organização das
informações em forma de timeline, a oscilação da posição de público e de autor entre os
usuários e a importância do compartilhamento para a circulação da informação em rede.
A timeline é descrita por Malini e Antoun (2013, p. 213-214), como:
uma expressão de uma nova cultura de indiferenciação do consumo e da produção
da informação, cujo traço peculiar é a instantaneidade em fluxo contínuo de uma
conversa qualquer. Ela marca o engajamento do sujeito naquilo que escreve e na
ação coletiva à qual se vincula através de sua conversação.
Devido ao fluxo contínuo, a timeline funciona como um mural de notícias em que as
publicações de autoria dos variados perfis (de usuários, de páginas temáticas, de figuras
públicas etc.) vão sendo inicialmente reunidas em ordem cronológica e, posteriormente,
colocadas em evidência conforme o maior engajamento do público ou de amigos (curtir,
compartilhar, comentar e/ou responder a comentários promovem uma dada postagem, que é
exibida por mais tempo que as demais e é, portanto, mais visualizada). Neste ambiente se dá
uma oscilação permanente entre “a posição de público e autor, gerando um equilíbrio
metaestável entre o próprio e o alheio”, e criando um vínculo comunicacional horizontal –
com autores interconectados com outros – de produção colaborativa. Assim, “cada perfil é
uma comunidade de autores, a informação criada termina por traduzir verdadeiras
‘quantidades sociais’, exprimindo uma amostra das crenças e dos desejos da sociedade em
torno de algum tema” (MALINI & ANTOUN, 2013, p. 213-214).
Acerca do compartilhamento, podemos entendê-lo como um ato comunicativo na
medida em que, por meio dele, os usuários contribuem para a construção de “identidades e
formas de vida” dentro de um espaço social em desenvolvimento (BAZERMAN, 2006).
Nesse sentido, segundo Malini e Antoun (2013, p. 212), o compartilhamento é uma revolução
que garante o poder de publicação para grupos ou perfis mobilizados na internet,
transformando “fãs e seguidores em parceiros da produção de uma agenda informativa”.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2103
Portanto, compartilhar um conteúdo na timeline do Facebook pode não garantir
necessariamente mais debate em torno dos temas propostos, mas ajuda a ampliar a sua
visibilidade e exposição ao julgamento dos demais perfis, estejam estes, ou não, predispostos
a participar. Entretanto, nas redes sociais, um dos fatores cruciais ligados à noção de difusão e
à velocidade e alcance de uma informação dentro de uma rede “está na complexidade da
mensagem em si: quanto mais complexa for uma informação, menor será sua difusão,
implicando inclusive um maior tempo de resposta” (MARTINO, 2014, p. 78).
Possivelmente cientes dessa dinâmica, alguns perfis de figuras públicas (como a
deputada Jandira Feghali (Psol-RJ) ou páginas (como a “Seja Dita a Verdade”) têm lançado
mão de alguns artifícios para terem suas publicações mais amplamente difundidas ou, ao
menos, mais rapidamente lidas; há, nesses casos, um supra sumo da ideia defendida, da
posição ideológica quanto a determinado assunto e/ou do texto que está sendo linkado à
postagem. É quando passamos a nos deparar com construções textuais como a seguinte,
reproduzida do perfil da deputada Feghali:
Quadro 1 – Composições textuais em postagens de figuras públicas5
PIG (Partido da Imprensa Golpista)
Matéria falaciosa da Revista Época, que
tentava denegrir Lula, foi desmentida hoje
pela procuradora Mirella Aguiar. Vai se
encerrando mais uma vergonhosa tentativa
da Grande Mídia em atingir o ex-presidente.
É o jornalismo “Peppa Pig”.
Entenda:http://www.brasil247.com/pt/247/m
idiatech/179590/MP-arrasa-%C3%89pocan%C3%A3o-h%C3%A1-prova-algumacontra-Lula.htm
Como se vê, além do forte apelo visual, em que vários recursos semióticos são
utilizados para salientar uma dada informação, há uma reconfiguração do que é dito
5
Fonte do exemplo:
https://www.facebook.com/sigajandira2/photos/a.213345118700158.60527.208153919219278/97009460635853
5/?type=1&theater.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2104
verbalmente pela legenda da imagem6, através de resgates de notícias que corroboram um
comentário, do apagamento de algumas informações (como o significado da legenda PIG,
como o nome da procuradora etc.) em função da seleção de outras julgadas como mais
importantes (por exemplo, a expressão “Jornalismo Peppga Pig”), de tom irônico construído a
partir de montagens que reformulam não verbalmente uma crítica (expressões valorativas
como “matéria falaciosa” e “vergonhosa tentativa” foram sintetizadas na imagem de um
porquinho – a personagem Peppa Pig – chafurdando na lama) etc. Tendo em vista essa
tendência, chamou-nos atenção como algumas dessas publicações recorrem a estratégias de
sumarização, selecionando e apagando algumas informações, generalizando outras e/ou
reformulando-as. Para tal, como nos lembra Pinto (1990 apud 2006, p.180), é necessário
“identificar o tópico e a ideia principal, reconhecer quando as ideias não estão implícitas,
saber inferir e gerar ideias implícitas”, e isso se dá, nos casos de algumas postagens
facebooqueanas, também no plano visual, com variação da tipografia (cor, tamanho, largura
etc.), com inserção de imagens pictóricas, com esquematização de informações (sobretudo
com uso de gráficos), entre outros recursos.
Segundo van Dijk (1992), para compreendermos bem um texto e apreendermos a
significância do discurso (Dijk 1992, p.50), não se deve considerar apenas a superfície
linguística, o nível local de orações e sentenças – o que autor denomina microestrutura. É
necessário, conforme explica o estudioso, que se leve em conta o nível global do texto. Além
da estrutura semântica local, todo discurso apresenta um teor global, uma macroestrutura
(Jones, 1977; van Dijk, 1972, 1977, 1980 apud van Dijk, 1992), que se a partir de
reconstruções teóricas de noções como a de “tópico” de um discurso, que se configura, no
próprio texto, na forma de sumários, anúncios, títulos etc. Esse processo intuitivo, em que o
discurso é topicalizado e, para isso, as proposições são selecionadas, reduzidas, generalizadas
e reconstruídas, dá-se através do que o autor chama de macrorregras, por meio das quais
podem ser suprimidas as informações de relevância local que não estejam atreladas à
compreensão do restante do discurso.
Posteriormente encaradas não como regras, mas como estratégias, conforme ressalva
de Machado (2005, p.141), “atribuiu-se a elas um carácter flexível e não rígido e homogêneo,
levando-se em conta que sua aplicação estaria condicionada ao objetivo de leitura, ao
conjunto de conhecimentos prévios do leitor, ao tipo de situação em que se processa a leitura;
6
Diante do espaço e dos fins deste trabalho, não problematizaremos essa terminologia vaga, que está sendo
utilizada genericamente, tendo em vista que se trata de um arquivo em jpeg., mesmo tipo de uma fotografia.
Reconhecemos que é necessário um estudo mais aprofundado sobre as funções desse (possível) gênero.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2105
enfim, a uma série de fatores contextuais”. No caso de políticos, o provável alcance que “suas
vozes” podem obter é também relevante para a construção de suas imagens: a de um político
atuante para além de suas atribuições no congresso ou em gabinetes, consciente das questões
sociais e de seu papel como canalizador dos anseios da população, transparente quanto a seus
posicionamentos ideológicos, e assim por diante. Isso se potencializa ainda mais quando as
postagens são realizadas em meio a um período eleitoral, como foi o caso da série “Jean
Comenta”, escolhida para esta análise, uma vez que o deputado Wyllys era então candidato à
reeleição.
1.3 “Jean Comenta” (JC) e as estratégias de sumarização
Como dissemos, não há garantias de que uma publicação produza mais efeitos de
adesão ou promova mais reflexões acerca de um dado tema, mas sua maior circulação
certamente a torna mais visível, mais visualizada e, possivelmente, mais propícia à leitura e
considerável para discussão. Quanto a esse aspecto da dinâmica do Facebook, é possível
mensurar numericamente, por meio da checagem de curtidas e compartilhamentos (além da
quantidade de comentários e réplicas a estes, que foram aqui desconsiderados), quais
publicações tiveram maior circulação na rede; das dez postagens que compõem até o
momento a série JC, levamos em conta as três com maior repercussão para observar como as
estratégias de sumarização operam.
A quinta postagem da série obteve a
maior
repercussão (um total de 40.162 interações)
e
criticava
um
anúncio,
contrário
à
legalização da maconha, que questionava o
seguinte: “você teria coragem de ser
operado por um médico que acabou de
fumar
um baseado?”. Ao aludir a essa provocação,
alterando “fumar um baseado” por “encher
a cara
no bar” (mudança realçada com cor preta),
o
deputado Jean Wyllys (personificado por
seu
avatar à direita) ironiza o estapafúrdio da questão inicial através da comparação com o
consumo irresponsável de álcool, que é iconicamente representado por um homem com uma
caneca de cerveja. Esse enunciado – que aparece em um quadro central, o que lhe confere
destaque – sintetiza a maior parte do primeiro parágrafo da legenda (ver anexo) pela
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2106
estratégia de reformulação, tornando as informações, portanto, inferíveis. Em seguida, todo o
segundo parágrafo da legenda – em que o político passa a ironizar o pensamento “retrógrado”
dos autores do anúncio, associando-o não ao uso da maconha, mas ao da bebida alcóolica – é
resumido e apresentado em fonte menor e em cor branca; houve, neste trecho, manutenção de
alguns enunciados, apagamento de outros facilmente inferíveis e reformulação. Embora haja
comentários mais pormenorizados sobre o projeto de lei do deputado a favor da legalização,
de outras críticas a quem está “por trás” do anúncio etc., observa-se uma escolha de
informações mais importantes para serem apresentadas/reconfiguradas visualmente, tendo em
vista o propósito de, a nosso ver, promover uma maior circulação nas redes.
Funcionamento semelhante pode ser
verificado na oitava postagem da série,
segunda mais circulante (39.425 interações)
em
rede. Há uma citação, que encabeça o texto
imagético da série, de uma afirmação do
então presidenciável Levy Fidelix em um dos
debates eleitorais. Essa informação foi
selecionada como a principal dentre outras
fornecidas na legenda, uma vez que é dela
que
decorre a indignação do deputado Jean diante
da
afirmação assustadoramente homofóbica. Por essa razão, o comentário final da legenda –
“Levy, de tão estúpido, não se dá conta de que ele mesmo - sua existência - contraria sua tese
de que ‘aparelho excretor não reproduz’” – é mantido em um balão de fala, o que reforça
explícita e imageticamente que se trata da voz do deputado. Note-se que ainda houve outros
apagamentos (como o da expressão “de tão estúpido” e “ele mesmo”, sendo este inferível por
“sua existência”), realçando mais fortemente a informação mais relevante da legenda, o que
constitui a macroestrutura desse texto verbal.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2107
A terceira postagem mais repercutida (com
36.500 interações) também lança mão fortemente da estratégia de apagamento, estando as
principais informações da legenda topicalizadas no texto imagético, em síntese, sobretudo, do
quarto parágrafo. Vale ainda destacar o trecho “(não, Marina, NÃO existe)”, que sumariza os
primeiro e segundo parágrafos, em que o deputado resgata uma afirmação de Marina,
retificando-a, demonstrando que a então candidata à presidência estava equivocada quanto ao
conhecimento da constituição no que tange o casamento civil. Essa sumarização ocorre pela
estratégia de reformulação, uma vez que, sob o pretexto de supostamente esclarecer Marina,
o deputado acaba demonstrando que conhece a lei mais apropriadamente do que dela; ou seja,
é também importante preservar no texto imagético a negação ao que dito por Marina.
Considerações finais
A análise nos fez perceber que, assim como o processo de sumarização mobiliza
conteúdos pertinentes para a produção de gêneros diversos, como resumo, resenha sinopse de
filme etc., ele se mostra, na internet, como um recurso produtivo, que garante que
informações sejam mais difundidas, correspondendo às demandas das redes sociais. Podemos
afirmar que a sumarização é parte do plano global da produção de textos no Facebook,
caracterizando-se como constitutiva de sua dinâmica.
A produção dos textos resultantes do processo de sumarização na internet é orientada
pelas expectativas do produtor quanto a seu público-alvo, meio de circulação e objetivos do
gênero, o que garante a autonomia desses textos em relação ao texto-fonte, uma vez que vão
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2108
além de simplesmente apresentarem o conteúdo deste, pois possuem as características
definidoras dos textos em geral e podem ser identificados a partir de seu meio de produção e
circulação, isto é, seu contexto.
Referências
BAZERMAN, Charles. Gênero e identidade: cidadania na era de internet e na era do
capitalismo global. In: ______. Gêneros textuais, tipificação e interação. 2. ed. São Paulo:
Cortez, 2006.
FRANÇA, Fernanda C. Puça. O papel da memória na produção do gênero resumo. In:
PINTO, Abuêndia Padilha. Tópicos em cognição e linguagem. Recife: Ed. Universitária da
UFPE, 2006.
LUPION, Bruno. Lévy: ‘Não sou contra o ativismo de sofá’. Estadão. São Paulo, 11 mar.
2013. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/link/pierre-levy-nao-sou-contra-oativismo-de-sofa/>. Acesso em 23 de set. 2014.
______. Frenesi do abaixo-assinado pela internet desafia a classe política. Estadão. São
Paulo,
11
mar.
2013(a).
Estadão.
Disponível
em
<http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,frenesi-do-abaixo-assinado-pela-internetdesafia-a-classe-politica-imp-,1007154>. Acesso em 23 de set. 2014.
MACHADO, Anna Rachel. Revisando o conceito de resumos. In: DIONISIO, A. P.;
MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (orgs). Gêneros textuais e ensino. 4. ed. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2005.
MACHADO, Anna Rachel; LOUSADA, Eliane; ABREU-TARDELLI, Lilia Santos. Resumo.
São Paulo: Parábola, 2004.
MALINI, Fábio; ANTOUN, Henrique. O devir mundo do ocupar. In: ______. A internet e a
rua: ciberativismo e mobilização nas redes sociais. Porto Alegre: Sulina, 2013.
MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria das mídias digitais: linguagens, ambientes e redes.
Petrópolis: Vozes, 2014.
MOTTA-ROTH, Désirée; HENDGES, Graciela H. Produção textual na universidade. São
Paulo: Parábola Editorial, 2010.
SILVEIRA, Sérgio Amadeu da. Convergência digital, diversidade cultural e Esfera Pública.
In: SILVEIRA, S. A.; PRETTO, Nelson de Luca (Orgs.). Além das redes de colaboração.
Salvador: UFBA, 2008.
SOUZA, Ana Lúcia Silva; CORTI, Ana Paula; MENDONÇA, Márcia. Letramentos no ensino
médio. São Paulo: Parábola, 2012.
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2109
ANEXO
1 – 40.162 interações
Postagem 10 set. 2014
15.830 compartilhamentos e 24.332 curtidas (acesso em 14 nov. 14)
(1) Vocês viram o anúncio que os fundamentalistas retrógrados publicaram nos jornais contra
o meu projeto de lei de legalização e regulamentação da maconha? E logo hoje, no dia em
que a Comissão Global de Drogas e Democracia - composta por 200 líderes políticos,
intelectuais e especialistas de saúde pública e segurança – lançou, em Nova Iorque, o
relatório "Sob controle: Caminhos para Políticas de Drogas que Funcionam" pedindo a
descriminalização do uso de drogas, entre outras recomendações para lidar com o total
fracasso das atuais políticas globais de enfrentamento da questão (http://bit.ly/1AvKM5f)?
Quanto dinheiro jogado fora para tratar todos os brasileiros e brasileiras como estúpidos!
(2) O raciocínio deles é mais ou menos assim: se a maconha for legalizada, os médicos vão
operar os pacientes chapados, depois de fumar um baseado no hospital. Porque, como
todos sabemos, hoje é impossível para qualquer médico comprar um baseado, já que a
maconha é ilegal e, por isso, não é vendida em nenhum lugar do Brasil (!). E porque,
como todos sabemos, desde que o álcool foi legalizado, todos os médicos passam o dia
inteiro alcoolizados e até fazem cirurgias sob o efeito do álcool depois de encher a cara no
bar (!). E tem mais: desde que o álcool foi legalizado os professores dão aula bebendo
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2110
cachaça e os marqueteiros dos fundamentalistas desenham anúncios para os jornais à beira
do coma alcoólico (!!!) - aos desavisados, esse parágrafo contém ironias.
(3) Pois é. Essas pessoas proibicionistas responsáveis pelo anúncio publicitário que virou
deboche nas redes sociais não têm bons argumentos contra o meu projeto. Se tivessem
com certeza os usariam em vez de passarem por ridículas nacionalmente.
(4) O fato é que a maconha, hoje, está liberada. Qualquer um pode comprá-la, todo o mundo
sabe onde.
(5) Legalizar e regulamentar a maconha e acabar com a guerra às drogas não é somente uma
questão de liberdades individuais. É, também, uma questão de segurança pública e de
direitos humanos. Por isso, meu projeto de lei 7270/2014 ( http://youtu.be/c263o7Q4xTU
) faz muito mais do que regulamentar a maconha: ele propõe uma série de mudanças
radicais na política de drogas do Brasil. A legalização da maconha é um primeiro passo
que, além de garantir as liberdades individuais dos usuários, será uma ferramenta
fundamental para reduzir a violência, deixar de encher nossas prisões com a juventude
mais pobre das periferias e acabar com uma guerra que já matou gente demais.
(6) Eu não tive medo de levar esse debate fundamental ao Congresso Nacional, apesar das
difamações e anúncios ridículos que são feitos contra mim ou contra o meu projeto por
esse motivo. AGORA, NAS ELEIÇÕES, CONTO COM VOCÊ PARA PASSARMOS
UMA MENSAGEM AO RESTO D@S PARLAMENTARES: QUEREMOS QUE O
CONGRESSO DEBATA SERIAMENTE A LEGALIZAÇÃO! Cada voto de um cidadão
ou cidadã do Rio de Janeiro no número 5005 para deputado federal será um voto contra a
hipocrisia e a covardia e a favor do antiproibicionismo.
(7) http://jeanwyllys5005.com.br/queremos-congresso-debate-seriamente-legalizacaomaconha/
Disponível em:
https://www.facebook.com/jean.wyllys/photos/a.201340996580582.48122.163566147024734
/743890362325640/?type=3&theater
2 – 39.425 interações
Postagem de 29 set. 2014
9.141 compartilhamentos e 30.284 curtidas (acesso em 14 nov. 14)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2111
(1) Sobre o debate da Record, eu gostaria agora de poder comentar apenas a performance de
Luciana Genro; de dizer que tenho muito orgulho de ela ser a única candidata presidencial
que tem a coragem de defender o casamento civil igualitário, a legalização do aborto, a
taxação das grandes fortunas e outras propostas sobre as quais os demais candidatos têm
medo de se posicionar (Luciana foi a primeira e única candidata presidencial a falar sobre
transfobia em rede nacional e a defender meu projeto de lei de legalização e
regulamentação da maconha!). Eu gostaria de me ater apenas a esse aspecto, mas não
posso; Não diante do discurso de ódio à população LGBT proferido por Levy Fidélix,
motivado por uma mistura nauseante de estupidez, homofobia e demagogia vulgar!
(2) Vou avaliar junto à assessoria jurídica se é possível representar contra o candidato na
Justiça por sua ofensa a uma coletividade e por estimular a violência contra esta.
(3) Como pode um sujeito como esse (que também se referiu aos usuários recreativos de
maconha como "esses drogados que não produzem nada") ser candidato presidencial?
(4) Acho que Luciana ficou perplexa e os demais, ainda que constrangidos, silenciaram. Isso
mais o riso da plateia mostram bem como esse tipo de violência contra LGBTs é
socialmente aceito!
(5) Levy, de tão estúpido, não se dá conta de que ele mesmo - sua existência - contraria sua
tese de que "aparelho excretor não reproduz".
Disponível em:
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2112
https://www.facebook.com/jean.wyllys/photos/a.543112092403469.1073741832.1635661470
24734/752523934795616/?type=3&theater
3 – 36.500 interações
Postagem 3 set. 2014
12.259 compartilhamentos e 24.241 curtidas (acesso em 14 nov. 14)
(1) Disse Marina Silva: "A união civil entre pessoas do mesmo sexo já está assegurada na
Justiça por uma decisão do Supremo. Tem muita gente que faz a confusão entre união
estável e união civil. A união civil assegura todos os direitos para os casais que têm a
união no mesmo sexo. O casamento é estabelecido entre pessoas de sexo diferente. É isso
que está assegurado na Constituição, na legislação brasileira, mas os direitos são iguais".
(2) Ela tem razão em uma coisa: tem muita gente que faz a confusão entre união estável e
união civil. Só faltou ela acrescentar: "Eu sou uma dessas pessoas que confunde".
(3) Vamos ser claros: 1) de acordo com a Constituição Federal, o casamento é civil, 2) não
existe nenhum país do mundo em que o movimento LGBT reivindique uma lei para que
os casais homossexuais possam se casar na Igreja, 3) quando falamos em "casamento
igualitário" nos referimos ao casamento CIVIL, o mesmo que a Constituição menciona, 4)
a união estável e o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo já são possíveis em
qualquer cartório do Brasil, graças a uma decisão do Conselho Nacional da Justiça,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2113
provocada por uma ação do PSOL que foi impulsionada por meu mandato, 5) o projeto de
lei de minha autoria, que apresentei junto com a deputada Érika Kokay, propõe garantir
esse direito (o casamento civil) por lei do Congresso, para sempre, 6) a "união civil" não
existe na legislação brasileira — repito: não existe, 7) a expressão "união civil" é usada no
mundo inteiro pelos inimigos dos direitos da população LGBT para tentar rebaixar o
direito ao casamento, criando uma instituição paralela, exclusiva para homossexuais,
como na época das escolas para brancos e escolas para negros, 8) ser contra o casamento
civil igualitário é ser contra os direitos civis dos casais do mesmo sexo, portanto, é ser
contra a igualdade e a favor da discriminação.
(4) Entendeu, ou quer que eu desenhe? ;)
Disponível em:
https://www.facebook.com/jean.wyllys/photos/a.201340996580582.48122.163566147024734
/740704895977520/?type=3&theater
Nas fronteiras da linguagem ǀ
2114
DISCUTINDO A LEITURA A PARTIR DAS INICIATIVAS NA
CIDADE DE SERROLÂNDIA/BA
[Voltar para Sumário]
Naylane Araújo Matos (UNEB)
Juliana C. Salvadori (UNEB)
Introdução
Este trabalho discute as práticas de leitura a partir de iniciativas desenvolvidas em
algumas escolas da cidade de Serrolândia, no interior da Bahia, bem como na Biblioteca
Pública Municipal Gervácio Maciel da Cruz e outros espaços. Tivemos como foco as
atividades de letramento literário realizadas nestes espaços no período de agosto de 2013 a
julho de 2014, quando participei do projeto “Agente de Leitura”. Tal projeto é uma ação do
Governo Estadual da Bahia que visa propagar a leitura nas cidades do interior por meio de
visitas às famílias em situação de vulnerabilidade social, similar a outras iniciativas, muito
comuns na área da saúde, por exemplo.
O projeto seleciona agentes que façam visitas domiciliares para realização de
atividades de leitura com as famílias em sua área de ação, bem como empréstimos de livros,
visitas aos espaços leitores (tais como biblioteca e escolas) e outros espaços públicos e
privados, nos quais seja possível fomentar esta prática (hospitais, igrejas, presídio, etc.). As
atividades apoiam-se, principalmente, em textos de literatura (popular e/ou erudita),
propiciando, desse modo, a construção do letramento literário na cidade.
A seleção dos agentes em Serrolândia foi realizada em 2010, pela Fundação Pedro
Calmon1 (FPC). A cidade de Serrolândia foi contemplada com quinze (15) agentes, dentre os
mais de sessenta (60) inscritos para a seleção. Todavia, devido à longa espera para início das
1
Segundo o site da fundação, disponível em: <http://www.fpc.ba.gov.br/a-fundacao-2/>, “A Fundação Pedro
Calmon, vinculada à Secretaria da Cultura do Estado da Bahia, coordena o sistema de Arquivos e Bibliotecas
Públicas do Estado. Atua no recolhimento, organização, preservação e divulgação de acervos documentais de
arquivos públicos e privados e no estímulo e promoção de atividades relacionadas às bibliotecas e arquivos,
organizando, atualizando e difundindo seus acervos. É também da competência da Fundação Pedro Calmon a
assistência técnica a bibliotecas e arquivos municipais, buscando a preservação e estruturação dessas unidades.”
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
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atividades2, quatro (4) desistiram, restando onze (11) agentes para atender toda a população
do município. Em 2012, estes agentes receberam um treinamento que somou 40 horas (com
duração de uma (1) semana, oito (8) horas diárias) sobre possibilidades de realização das
atividades e momentos de leitura dirigidos por uma profissional enviada pela FPC, mas os
trabalhos só foram iniciados em outubro de 2013. Todos receberam material de apoio
contendo uma (1) bicicleta – transporte que não atendeu as demandas do projeto, pois não era
suficiente quando havia necessidade de realizar atividades em povoados mais distantes –,
mochila, camisas, bonés e um acervo com sessenta (60) livros diversificados, além da bolsa
mensal no valor de R$ 350,00.
As atividades de letramento literário mencionadas neste trabalho foram realizadas nas
escolas públicas: Colégio Estadual de Serrolândia (CES) – para o público de Ensino Médio –
e Colégio Municipal Arionete Guimarães Souza (COMAGS) – para o público de Ensino
Fundamental II – e na escola privada: Centro de Educação Mêmore (CEM) – também de
Ensino Fundamental II –, bem como no espaço da Biblioteca Pública e durante as visitas
domiciliares.
Essas atividades, tais como, rodas de leitura, recitais, leitura e discussões de hipo e
intertextos literários, etc, foram repensadas e analisadas a partir das concepções de leitura,
letramento e letramento literário apresentadas por autores como Cossson (2014), Soares
(2011), Costa (2009), Foucambert (2008), Matencio (2005), Zilberman & Silva (2001), Lajolo
(1982), dentre outros.
As concepções de leitura
Para Matencio (2005), a leitura tem sido abordada sob dois grandes polos: o que trata
dos aspectos cognitivos na aprendizagem e desenvolvimento dessa atividade e o que aborda a
leitura como prática social. Para a autora, “mais do que simplesmente encarar as operações
cognitivas pelas quais é tratada a informação na leitura”, deve-se “abordar as variáveis
sociais, culturais e circunstanciais envolvidas na atividade de produção de sentidos” (p. 17).
Quando a leitura sai da sala de aula e passa a ser discutida amplamente, o seu conceito deixa
de estar restrito à decodificação de um código linguístico, mesmo porque reconhecer e
decodificar não significa propriamente compreender e interpretar. Segundo Costa (2009), o
2
Período de três (3) anos. Durante este tempo os agentes não tinham informação a respeito do início das
atividades e um treinamento de 40 horas foi recebido em 2012, sem nenhuma perspectiva para início das
atividades.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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ato de ler, isto é, transformar em um texto que tenha significado e sentido informações de
ordem verbal e/ou imagética, demanda interpretação:
Ler é sempre interpretar. Palavras ou imagens provocam de imediato no leitor e no
espectador a busca de significados para o que vê. O exercício para essa capacidade
humana de projetar sentidos sobre os textos resulta numa aprendizagem contínua.
Aprendemos a ler, lendo. Aprendemos a interpretar, interpretando. Aprendemos a
nos interessar pela leitura à medida que o processo de significação adquire cada vez
mais importância a nosso olhos. (COSTA, 2009, p. 31)
Do mesmo modo, Lajolo (1982), defende que, ler não é decifrar o sentido de um texto;
é ser capaz de atribuir significado e relacioná-lo com outros textos significativos,
reconhecendo nele o tipo de leitura que o autor pretendia, entregando-se a esta leitura ou
rebelando-se contra ela, propondo outra não prevista. Esta concepção define a habilidade do
alfabetismo pleno, ou seja, pessoas capazes de ler textos mais longos, localizar e relacionar
mais de uma informação, comparar vários textos e identificar fontes, como menciona o PNLL
na sua justificativa, citando dados retirados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
(Inep, 2003) e do Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF). O plano também
aponta que se por um lado o número de analfabetismo tem diminuído no Brasil, o índice de
letrados também diminui, restringindo-se à apenas 26% da população brasileira e que:
(...) de acordo com especialistas, umas das principais causas do elevado índice de
alfabetismo funcional e das dificuldades generalizadas para a compreensão vertical
da informação escrita se localiza na crônica falta de contato com a leitura, sobretudo
entre as populações mais pobres. (PNLL, 2012, p. 38)
Partindo desta perspectiva de compreensão e não somente de decodificação para
efetivar as práticas de leitura, nos deparamos com a diferença em estar alfabetizado e estar
letrado. Pois há, como aponta Soares (2011, p. 36), “uma diferença entre saber ler e escrever,
ser alfabetizado, e viver na condição ou estado de quem sabe ler e escrever, ser letrado”. Dito
de outro modo, ser alfabetizado – aprender a tecnologia de ler e escrever – não significa estar
letrado – saber fazer uso da leitura e escrita para envolver-se nas práticas sociais que
demandam a leitura e escrita.
A autora ainda faz a importante observação:
Ter-se apropriado da escrita é diferente de ter aprendido a ler e a escrever:
aprender a ler e escrever significa adquirir uma tecnologia, a de codificar em língua
escrita e de decodificar a língua escrita; apropriar-se da escrita é tornar a escrita
“própria”, ou seja, é assumi-la com sua “propriedade”. (SOARES, 2011, p. 39)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
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Diante do que é posto pela autora e as concepções de leitura já discutidas, compreendo
que ter aprendido a ler e escrever – alfabetização – não efetiva práticas de leituras, visto que
sua concepção não está atrelada à decodificação da língua escrita, mas à compreensão e uso
dela em situações sociais reais.
Deve-se ressaltar, como Soares (2011, p. 15) o faz, que “letramento é a palavra recémchegada ao vocabulário da Educação e das Ciências Linguísticas: é na segunda metade dos
anos 80 [do século passado] [...] que ela surge no discurso dos especialistas das áreas”.
Segundo a autora, letramento é uma versão para o português da palavra da língua inglesa
literacy. Literacy, por sua vez,
é o estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e escrever. Implícita
nesse conceito está a ideia de que a escrita traz consequências sociais, culturais,
políticas, econômicas, cognitivas, linguísticas, quer para o grupo social em que seja
introduzida, quer para o indivíduo que aprenda a usá-la. Em outras palavras: do
ponto de vista individual, o aprender a ler e escrever – alfabetizar-se, deixar de ser
analfabeto, torna-se alfabetizado, adquirir a “tecnologia” do ler e escrever e
envolver-se nas práticas sociais de leitura e de escrita – tem consequências sobre o
indivíduo, e altera seu estado ou condição em aspectos sociais, psíquicos, culturais,
políticos, cognitivos, linguísticos, e até mesmo econômicos [...]. O “estado” ou a
“condição” que o indivíduo ou o grupo social passar a ter, sob o impacto dessas
mudanças, é que é designado por literacy. (SOARES, 2011, p. 17-18)
Para a autora, o fenômeno do letramento “só recentemente se configurou [no Brasil]
como uma realidade em nosso contexto social”, pois “antes [...] nosso problema era o do
“estado ou condição de analfabeto” – a enorme dimensão desse problema não nos permitia
perceber outra realidade [...] e, por isso, o termo analfabetismo nos bastava” (SOARES, 2011,
p. 20). Costa (2009) também afirma que, com a chegada desse novo termo repensou-se a
capacidade de leitura e escrita de uma pessoa e estabeleceu-se novos parâmetros para o
conceito de texto, que deixou de se restringir à linguagem verbal presente nos livros para a
textualização de escritos em diferentes gêneros. Contudo, como ela ressalva, esse novo
conceito “não superou o exercício da alfabetização, que continua a ser etapa necessária ao
desenvolvimento de capacidades cada vez mais complexas do letramento” (p. 77). Ou seja, o
processo de alfabetização é importante e fundamental para o processo de letramento, ambos
são complementares, todavia, estar alfabetizado não significa estar letrado. Apenas com
alfabetização não há constituição de leitores e escreventes competentes, efetivos.
O letramento literário
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Segundo Cosson (2014), o letramento literário possui uma configuração diferenciada e
especial. Ou seja, ele se distingue do letramento linguístico, e como o próprio nome explicita,
se trata do letramento que se constitui via textos literários. Este letramento:
Compreende não apenas uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas
também, e sobretudo, uma forma de assegurar seu domínio efetivo. Daí sua
importância na escola, ou melhor, sua importância em qualquer processo de
letramento, seja aquele oferecido pela escola, seja aquele que se encontra difuso na
sociedade. (COSSON, 2014. p. 12)
De acordo com o autor, o letramento literário precisa acompanhar três etapas do
processo de leitura:
A aprendizagem da literatura, que consiste fundamentalmente em experimentar o
mundo por meio da palavra; a aprendizagem sobre a literatura, que envolve
conhecimentos de história, teoria e crítica; e a aprendizagem por meio da literatura,
neste caso os saberes e as habilidades que a prática da literatura proporciona ao seus
usuários. (COSSON, 2014. p. 12)
A habilidade de desenvolver este letramento não está vinculada a um dom, mas ao
exercício de práticas de interpretação compartilhada, respeitando os limites da interpretação e
conhecimentos específicos adquiridos com pesquisa, como argumenta Costa (2009). A escola
é [deveria ser] um lugar propício para a construção desse letramento, visto que a sala de aula
deve [deveria] representar o papel do regulador, sendo um lugar de debate e mediação para
iluminar a polissemia dos textos literários, bem como regular uma subjetividade desenfreada –
ideia proposta por Rouxel (2013).
O letramento literário é constituído a partir do modo como é lido o texto literário, este
modo, por sua vez, vagueia entre o prazer e o dever de ler, dito de outro modo, a leitura que
apresenta finalidade. Tomemos como exemplo as personagens Lotaria e Ludmilla do romance
“Se um viajante num noite de inverno” de Calvino (2003), cujo tema é leitura. As personagens
são irmãs e ambas nos apresentam diferentes modos de ler. Ludmilla ler por fruição e segundo
sua irmã “lê um romance atrás do outro, mas nunca propõe nenhum questionamento” (p. 51).
Lotaria, por vez, é acadêmica e afirma que a leitura despretensiosa da sua irmã é uma grande
perda de tempo. Esta última, estuda a literatura, realiza leituras conscientes à luz da teoria.
De acordo com Jover-Faleiros (2013) há uma distinção entre o leitor lúdico, “que ler
porque quer”, e o leitor compulsório, “que deve reproduzir determinado discurso sobre aquilo
que lê, constatando que os métodos para a análise literária por vezes prevalecem sobre o
próprio objeto” (p. 120). O projeto “Agente de Leitura”, buscou desenvolver este leitor lúdico
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ou leitor comum – que na concepção de Woolf (1925) se configura como aquele leitor que
passou pela experiência da leitura desinteressada e que lê por fruição – pois, a partir dele é
possível pensar meios para estabelecer práticas de leitura compulsórias.
As atividades
Em uma atividade realizada no Colégio Estadual de Serrolândia com uma pequena
parte dos alunos do 3º ano do Ensino Médio, eles revelaram que, de modo geral, têm pouco
contato com os livros da biblioteca escolar e que suas leituras, além das escolares, são em sua
maioria (inter)textos da internet e best sellers, tais como A culpa é das estrelas. A falta de
contato com o espaço de leitura da escola se dá devido ao seu funcionamento, pois não há um
profissional para conduzir os trabalhos, logo, este se encontra temporariamente fechado.
A atividade foi uma roda de leitura no espaço da biblioteca escolar num horário de
aula vago. Escolhemos alguns livros nas prateleiras e fizemos leitura compartilhada de alguns
trechos. Os livros escolhidos foram de prosa e poesia. Menos de dez alunos participaram da
roda, o que, hipoteticamente, nos aponta o dado da obrigatoriedade da leitura quanto à sua
prática na escola.
Segundo Foucambert (2008), o problema da leitura na escola começa quando a criança
é iniciada a ler e precisa enfrentar um ensino de leitura que se considera difícil e da qual se
espera ser bem sucedido, pois se não houver avanços, há reprovações. Desse modo, as
frustrações não são raras e a escola constrói nos alunos um hábito que dificilmente será
abandonado em seguida: o de ver a leitura como algo obrigatório. “A criança deve aprender a
ler e tudo fica suspenso à espera desse acontecimento” (p. 23). Aprender a ler, nessa
perspectiva, consiste em aprender a decodificação do código linguístico, o processo de
alfabetização. Sendo este um processo artificial e difícil para a criança, distante das suas
vivências, diferente de atividades aprendidas espontaneamente, por isso, o aluno se torna um
leitor que dispõe de uma habilidade desligada de seu dia-a-dia.
Outros autores como Silva & Zilberman (2001) apontam o desafio do aprendizado da
leitura e sua relação com a instituição escolar:
Ler dissolve-se entre as obrigações da escola, não se associando às diferentes
modalidades de texto com que a criança está envolvida e que estimulam sua
atividade consumidora. Desvinculado de seu objeto, o ato da leitura torna-se
intransitivo e inexplicável (...). (SILVA & ZILBERMAN, 2001, p. 13-14)
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Além disso, a prática de leitura na escola restringe-se, em geral, ao livro didático. Este
por sua vez, como afirma Perini (2001), deveria ser bem explorado pelo aluno para sua
construção leitora, por se tratar de um material escrito a que tem acesso relativamente amplo e
prolongado, visto que se trata de um recurso caro, que demanda uso. Ademais, o
distanciamento entre o conteúdo apresentado por esses materiais e a realidade do aluno o faz
se sentir incapaz de ler. Sendo assim, os alunos são expostos a padrões de interpretação que os
podam e os levam a pensar a leitura como algo obrigatório e não prazeroso, especialmente se
tratando do texto literário.
Deste modo, o educador se esquece que a sua intervenção impacta significativamente
na interpretação e posição do aprendiz quanto às leituras propostas, como sugere Rouxel
(2013). A autora ainda defende que ao invés de evitar os erros dos alunos, deve-se aproveitar
cada experiência, a fim de promover a eles o prazer e disposições de interferir de forma
positiva e contribuir para a construção de um sujeito leitor crítico. Ler, nesta concepção, é
convidar o aluno a interferir no texto de maneira livre, aceitando os riscos da aventura
interpretativa, ainda que abordando a liberdade do leitor e dos limites interpretativos,
“ensinando-os a evitar uma subjetividade desenfreada” (p. 20), pois eles (os alunos) “são
capazes de compreender que existem muitas maneiras de ler e que uma leitura socializada
impõe regras” (p. 22). Logo, a sala de aula é – ou deveria ser – um espaço propício para
negociação de sentidos e 
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Vol. III - Revista Diálogos