Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao programa de pós-graduação PROFLETRAS da UPE-Garanhuns N.° 15 - ESPECIAL - 2015 - ISSN: 2236-1499. UPE/Garanhuns - PE – Brasil D.O.I: 10.13115/2236-1499 ANAIS DO VOLUME I AUTORES DE A a E 11 a 14 de maio de 2015 Universidade de Pernambuco – UPE Campus Garanhuns Ficha catalográfica REVISTA DIÁLOGOS, n.° Especial 15 - III Encontro Nacional e II Encontro Internacional de Literatura e Lingüística da Universidade de Pernambuco (UPE), 3 vols, campus Garanhuns. (2015, Garanhuns, PE). Vol. I Anais (recurso eletrônico) / III Encontro Nacional e II Internacional de Literatura e Lingüística da Universidade de Pernambuco (UPE), 11 a 14 de Maio de 2015 – Garanhuns, PE, UPE. Disponível em: www.revistadialogos.com.br/anais 1. Letras – eventos 2. Lingüística 3. Literatura 4. Teoria Literária ISSN: 2236-1499 CDU 869.0(81) CDD B869 UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO - UPE Campus Garanhuns REITOR Prof. Dr. Pedro Henrique de Barros Falcão VICE-REITORA Profª. Drª. Maria do Socorro de Mendonça Cavalcante DIRETOR Prof. Dr. Cloves Gomes da Silva Junior VICE-DIRETORA Profª. Ms. Rosângela Falcão COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS Profª. Drª. Jaciara Josefa Gomes VICE-COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS Profª. Ms. Dirce Jaeger COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO COORDENADORA Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE) COMISSÃO ORGANIZADORA Prof. Esp. Anderson de Souza Frasão (UFS) Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra (UPE) Profª. Ms. Dirce Jaeger (UPE) Prof. Dr. Elcy Luiz da Cruz (UPE) Prof. Esp. Erick Camilo da Silva Gouveia (UFS) Profª. Drª. Jaciara Josefa Gomes (UPE) Prof. Dr. Jairo Nogueira Luna (UPE) Prof. Esp. José Aldo Ribeiro da Silva (UEPB) Profª. Drª. Maria das Graças Ferreira (UPE) Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE) COMISSÃO CIENTÍFICA Profª. Drª. Ana Mafalda Leite (Universidade de Lisboa) Prof. Dr. Carlos Reis (Universidade de Coimbra) Profª. Drª. Jeane de Cássia Nascimento Santos (UFS) Prof. Dr. Júlio Araújo (UFC) Prof. Dr. Luiz Costa Lima (UERJ) Profª. Drª. Rosângela Sarteschi (USP) COMISSÃO EDITORIAL Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra (UPE) Prof. Dr. Jairo Nogueira Luna (UPE) Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE) APOIO Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível superior – CAPES Fundação de Amparo à Ciência e atecnologia do Estado de Pernambuco – FACEPE SUMÁRIO VOLUME I PRÁTICAS DE LETRAMENTO: A LEITURA DELEITE COMO PROCEDIMENTO ESTRATÉGICO NA FORMAÇÃO DE LEITORES......................................................... 23 Abda Alves Vieira de Souza (UFAL) Maria Auxiliadora da Silva Cavalcante (UFAL) GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LITERATURA: UMA EXPERIÊNCIA DE LETRAMENTO LITERÁRIO............................................................................................ 30 Adriana Nunes de Souza (IFAL/UFAL) ESTUDO DELEUZIANO DE LITERATURA CONTEMPORÂNEA: LITERATURA MENOR E AGENCIAMENTO EM ANTÓNIO LOBO ANTUNES E FERRÉZ.............................................................................................................................. Adriano Carlos Moura (IFF) 40 O FILME DENTRO DO FILME. TEATRO, TV E CINEMA: UM ESTUDO SOBRE A METALINGUAGEM EM “LISBELA E O PRISIONEIRO”, DE OSMAN LINS............ 50 Adriano Siqueira Ramalho Portela (UFPE) MUXE MARAVILHA E MULHER DEPOIS: DA GRAPHIC NOVEL À POESIA, IDENTIDADE DE GÊNERO EM ANGÉLICA FREITAS............................................... Ágatha Costa Salcedo (UFAL) 59 DECORAR OU APRENDER NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM................. 67 Alaíde Marie Correia Barros (IFAL) Nádia Mara da Silveira (IFAL) OS GÊNEROS DIGITAIS NO ENSINO DE LÍNGUA DE MATERNA.......................... Albanyra dos Santos Souza (UFRN/CERES/DCSH) 74 ORALIDADE E ARGUMENTAÇÃO EM FOCO: UMA EXPERIÊNCIA DIDÁTICA COM O GÊNERO TEXTUAL JÚRI SIMULADO............................................................ 86 Alberto Felix da Hora (UPE) POEMAS TIRADOS DE NOTÍCIAS, MAPAS, TABELAS... E OUTROS GÊNEROS JORNALÍSTICOS: PROCEDIMENTOS LÚDICOS EM AULAS DE LITERATURA... 98 Alberto Roiphe (UFS) INTERPRETANDO EM CONTEXTOS: UMA ANÁLISE DA PRESSUPOSIÇÃO DISCURSIVA NO GÊNERO “FRASES”.......................................................................... 108 Aleise Guimarães Carvalho (S.E.E.-PB) Alessandra Magda de Miranda (S. E.E.- PB) A ESCRITA DEMOCRÁTICA E RUMOREJANTE DE UMA NOVELA NACIONAL, EM A BICICLETA QUE TINHA BIGODES: ESTÓRIAS SEM LUZ ELÉTRICA.......................................................................................................................... 119 Alice Botelho Peixoto (PUC Minas. CAPES) A PRODUÇÃO DE TEXTOS EM SALA DE AULA: UM PROCESSO DE RETEXTUALIZAÇÃO...................................................................................................... Aline Peixoto Bezerra (UERN) 131 A PALATALIZAÇÃO DAS OCLUSIVAS ALVEOLARES E A VARIÁVEL IDADE EM MACEIÓ – AL............................................................................................................. Almir Almeida de Oliveira (UFAL) 143 UTILIZANDO A MULTIMODALIDADE EM COMUNIDADE REMANESCENTE QUILOMBOLA: NOVOS DESAFIOS?............................................................................ Aluizio Lendl-Bezerra (URCA/UERN) Marcos Nonato de Oliveira (UERN/CAMEAM) ESPELHAMENTOS IMPERFEITOS: OS REFLEXOS ENTRE OS PERSONAGENS................................................................................................................ Amador Ribeiro Neto (UFPB) Rafael Torres Correia Lima (UFPB) 155 164 CARPENTIER E A MÚSICA: ENTRE SONATAS, ROMANCES E ENSAIOS............. 176 Amanda Brandão Araújo Moreno (UFPE) PRÁTICAS DE LETRAMENTO NOS ANOS INICIAIS: A FORMAÇÃO DE LEITORES ATRAVÉS DO MOMENTO DA LEITURA DELEITE................................ Amara Rodrigues de Lima (SEEL – Recife) 184 METADE ROUBADA AO MAR, METADE À IMAGINAÇÃO:A CIDADE DO RECIFE POR CARLOS PENA FILHO.............................................................................. 189 Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN) DIALOGISMO INTERDISCURSIVO E INTERLOCUTIVO: COMENTÁRIOS ONLINE NO FACEBOOK.................................................................................................. Ana Carolina A. de Barros (UFPE) O CONCEITO DE GÊNEROS TEXTUAIS NO ENSINO MÉDIO: O QUE DIZEM OS LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA?.................................................... Ana Cátia Silva de Lemos Maria Margarete Fernandes de Sousa 199 211 O PAPEL DA TEORIA BAKHTINIANA NO CONCEITO DE LÍNGUA NA CONTEMPORANEIDADE................................................................................................ 222 Ana Cláudia Soares de Paiva (UNICAP) QUESTÕES DE MULTIMODALIDADE EM CONTEXTO ESCOLAR: DESAFIOS DO TRABALHO COM A IMAGEM................................................................................. 230 Ana Cláudia Soares Pinto (UFPB) A PESQUISA EM METACOGNIÇÃO PARA UM ESTUDO DO GÊNERO CRÔNICA NO ENSINO FUNDAMENTAL..................................................................... Ana Lúcia Farias da Silva (UFRRJ) 239 LÍNGUA DISCURSIVA [E FORMAS DE VIDA] NOS MANUSCRITOS DE SAUSSURE......................................................................................................................... 250 Ana Paula El-Jaick (UFJF) DA LIBERDADE MASCULINA: REFLEXÕES SOBRE KAREN BLIXEN E ELENA FERRANTE........................................................................................................................ Ana Paula Raposo (UFMG) 256 O USO DOS PROCESSOS EM TEXTOS LITERÁRIOS SOB A ÓTICA DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL: UMA ANÁLISE DA VOZ DO NARRADOR E DAS PERSONAGENS EM CONTOS MODERNISTAS....................... Anderson de Santana Lins (CELLUPE -UPE) Maria do Rosário B. da S. Albuquerque (CELLUPE -UPE) 266 GUERREIRO DO POVO BRASILEIRO? CONTRADIÇÕES, DES/CONTRA/IDENTIFICAÇÃO, RESISTÊNCIA E MEMÓRIA NO DISCURSO SOBRE EDUARDO CAMPOS.......................................................................................... André Cavalcante (UFPE) 277 POESIA E MITO EM LUCILA NOGUEIRA.................................................................... 287 André Cervinskis (UFPE) O ENUNCIADO COMO ZONA DE DIÁLOGO ENTRE VOZES E VALORES: UMA ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO JORNALÍSTICAS DA IMAGEM DE EDUARDO CAMPOS NO PERÍODO PRÉ E PÓS MORTE................................................................ Andre Cordeiro dos Santos (UFPE) 294 O LIVRO DE LITERATURA INFANTIL NA SALA DE AULA: UM OLHAR PARA A ESCOLHA FEITA PELO PROFESSOR DA EDUCAÇÃO INFANTIL E DO 1º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL............................................................................... 305 Andressa Silvestre Teixeira (UFRPE/UAG) Leila Nascimento da Silva (UFRPE/UAG) PEDRAS SOBRE RIOS: O LUGAR DO CORPO EM RAKUSHISHA DE ADRIANA LISBOA............................................................................................................................... 317 Anne Louise Dias (PósLit/TEL/UnB) A VOZ QUE AGORA FAL(H)A, OU A MEMÓRIA DE PORTUGAL NO CORPO DO LIVRO E DO VELHO: UM ESTUDO SOBRE A MÁQUINA DE FAZER ESPANHÓIS, DE VALTER HUGO MÃE......................................................................... Annie Tarsis Morais Figueiredo (UEPB/PPGLI) 327 O “ESPELHO BAÇO E ESCURECIDO”: REFLEXÕES SOBRE A OBRA A HORA DA ESTRELA....................................................................................................................... 336 Antonia Gerlania Viana Medeiros (UERN) Roniê Rodrigues da Silva (UERN) O ENSINO DE PRODUÇÃO DE TEXTO À LUZ DA CONCEPÇÃO DE ESCRITA INTERACIONAL............................................................................................................... 345 Antonia Maria de Freitas Oliveira (UFRN) INCONSCIENTE E SIMBÓLICO EM PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM.................. 355 Antonielle Menezes Souza (UFS) Marcio Carvalho da Silva (UFS) O USO DOS SINAIS DE PONTUAÇÃO COMO MARCAS DISCURSIVAS................ Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL) Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL) 363 O HUMOR INTRANQUILO DE ANDRÉ SANT’ANNA................................................ Ari Denisson da Silva (UFAL/IFAL) 375 A CASA DOS BUDAS DITOSOS: OS LIMITES DA IRREVERÊNCIA........................... Arturo Gouveia (UFPB) 383 A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO AUTORAL NAS OBRAS DE VIRGINIA WOOLF: O ENSAIO COMO FORMA LITERÁRIA E ESTRATÉGIA DE EMPODERAMENTO DA AUTORIA FEMININA........................................................... 392 Asenati Araújo de Melo (UNEB) Juliana C. Salvadori (UNEB) USOS DA LÍNGUA(GEM) NA INTERNET: O QUE ESTUDANTES DE GRADUAÇÃO PENSAM SOBRE AS PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NA COMUNICAÇÃO VIA DISPOSITIVOS MÓVEIS?......................................................... 401 Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP) Amanda Cavalcante de Oliveira Ledo (UFPE) O MEDO E A FÚRIA ― MOVIMENTOS DE UMA POÉTICA DA PARTICIPAÇÃO. 413 Bianca Campello Rodrigues Costa (UFPE) Bruno Eduardo da Rocha Brito (UFPE) ENSINO DE ANÁLISE LINGUÍSTICA: REFLEXÕES DE BASE SOCIOINTERACIONISTA................................................................................................ 423 Bruna Bandeira (UFPE) AS VOZES DISCURSIVAS NO DEPOIMENTO DE PEDRO BARUSCO NA CPI DA PETROBRAS...................................................................................................................... Brwnno Gabryel de Araújo Silva (UFPE) Rosilene Felix Mamedes (UFPB) 435 A PERSONAGEM LIA DE MELO, DO ROMANCE AS MENINAS, DE LYGIA FAGUNDES TELLES, COMO RESISTÊNCIA FEMININA À DITADURA MILITAR 446 Caio Victor Lima Cavalcanti Leite (UPE) Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE) A INTEGRAÇÃO IBERO-AMERICANA: O DISCURSO A FAVOR DE UMA IDENTIFICAÇÃO.............................................................................................................. Camila da Silva Lucena (PPGL/UFPE) AS MISSIVAS DA IMPRENSA NORTISTA: RETRATOS LITERÁRIOS DA SECA.. Camila M. Burgardt (UFPB) O REGRESSO AO PASSADO E AS RAÍZES MÍTICAS NA OBRA O SÉTIMO 455 465 JURAMENTO...................................................................................................................... Camilla Rodrigues Protetor (UPE) Amara Cristina de Silva e Barros Botelho (UPE) NARRATIVAS HOMOERÓTICAS NOS COMPÊNDIOS DE HISTÓRIA LITERÁRIA BRASILEIRA............................................................................................... Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes (UFRPE/UFPB) A METACOGNIÇÃO NA LEITURA E AS INFERÊNCIAS SOCIOCULTURAIS: UMA EXPERIÊNCIA COM ACADÊMICOS DO CURSO DE TURISMO DA UNEB.................................................................................................................................. César Costa Vitorino (UNEB/FVC) SOBRE O SAGRADO E O PROFANO EM BALADA DE SANTA MARIA EGIPCÍACA, DE MANUEL BANDEIRA......................................................................... Cícero Émerson do Nascimento Cardoso (UFPB) 477 487 498 509 DE GÊNESIS A SHAKESPEARE: MISTICISMO E SIGNIFICAÇÃO DO NÚMERO SETE.................................................................................................................................... 519 Clara Mayara de Almeida Vasconcelos (UFPB) Eveline Alvarez dos Santos (UEPB) ENSINO, ESCRITA E AUTORIA: A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO-AUTOR NO CONTEXTO ESCOLAR.................................................................................................... Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL) Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL) FERDINAND DE SAUSSURE E EUGÊNIO COSERIU: PROPOSIÇÕES SOBRE O TEXTO................................................................................................................................ Clemilton Lopes Pinheiro (UFRN) DISCURSO E IDENTIDADE: ASPECTOS DA CONSTRUÇÃO POÉTICA EM PATATIVA DO ASSARÉ.................................................................................................. Dalva Patricia de Alencar (URCA) Romão Alisson de Almeida Morais (URCA) 528 540 551 FORMA E SUBSTÂNCIA: REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA, ORALIDADE E ESCRITA A PARTIR DE SAUSSURE E DE HJELMSLEV............................................ 560 Dayanne Teixeira Lima (UFAL) A EXPERIÊNCIA DO ENFRENTAMENTO NO ESPAÇO DA INTIMIDADE: UMA LEITURA DO ROMANCE A PAIXÃO SEGUNDO G.H.................................................. Daysa Rêgo de Lima (PPGL/UERN) DISCURSO CRONÍSTICO; IDEOLOGIA E MARGINALIZAÇÃO ÉTNICORACIAL. REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS EM ACD – VAN DIJK E ALTHUSSER...................................................................................................................... Dayvison Bandeira de Moura (UA-PY) Cacilda Rodolfo de Andrade ( UA-PY) Edair Gonçalves (IFECT-SP) OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA: RETRATO SÓCIOANTROPÓLOGICO DO SERTANEJO NORDESTINO E DA GÊNESE DE ANTÔNIO CONSELHEIRO 571 578 COMO LÍDER MESSIÂNICO........................................................................................... 593 Deividy Ferreira dos Santos (UPE) PROCESSO DE RETEXTUALIZAÇÃO EM SALA DE AULA: UM CAMINHO DE APROPRIAÇÃO NA ESCRITURA DE GÊNEROS TEXTUAIS..................................... 605 Dennys Dikson (UFRPE/UFAL) Wanessa Gomes Teixeira Maciel (UPE) ANÁLISE DE GÊNEROS DA ESFERA JORNALÍSTICA NO CURRÍCULO DE PORTUGUÊS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL DO ESTADO DE PERNAMBUCO................................................................................................................. Diana Pereira Costa Alves (UPE) Ecia Mônica Leite de Lima Freitas (UPE) 616 ENSINO DE LITERATURA EM WEBQUEST: O IMAGINÁRIO E O CRIATIVO EM ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS.......................................................................... 628 Diego Paulo da Silva (IFAL) Nádia Mara da Silveira (IFAL) ENTRE AS ESTRADAS QUE (NÃO) SE ABREM: TERRA SONÂMBULA, LITERATURA E CINEMA................................................................................................ 639 Diogo dos Santos Souza (UFAL) Victor Mata Verçosa(UFAL) FORMAÇÕES DISCURSIVAS E IDENTIDADE DO SUJEITO PROFESSOR EM “QUE RAIO DE PROFESSORA SOU EU?”, DE FANNY ABRAMOVICH.................. Djamara Virgínia Ferreira da Rocha Silva (UFCG) Aloísio de Medeiros Dantas (UFCG) DE SELFIE A MINICONTO MULTIMODAL: ENSINO DE GÊNERO DIGITAL EM SALA DE AULA................................................................................................................ Dorinaldo dos Santos Nascimento (UFS) Vanusia Maria dos Santos Oliveira (UFS) 648 659 LACUNAS E DISTORÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO “OFICINA DE ESCRITORES”................................................................................................................... Edilaine P. de Sousa (UPE) Magna Kelly Sales (UPE) 670 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM PERNAMBUCO: OCORRÊNCIAS LEXICAIS PARA CIGARRO DE PALHA E TOCO DE CIGARRO..................................................... Edmilson José de Sá (CESA) 684 O RISO IRÔNICO NA POESIA DE ANGÉLICA FREITAS............................................ 695 Eduarda Rocha Góis da Silva (UFAL) HISTÓRIAS DE RESISTÊNCIA: MEMÓRIA E IDENTIDADE NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL DE GRAÇA GRAÚNA E INALDETE PINHEIRO...................... Eidson Miguel da Silva Marcos (UFRN) Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN) O MICROCONTO: UM PRODUTO DA ROMANCIZAÇÃO......................................... Elias Coelho da Silva (UFPB) 704 713 A DESAGREGAÇÃO HUMANA EM MAÇÃ AGRESTE, DE RAIMUNDO CARRERO.......................................................................................................................... Eliene Medeiros da Costa (UEPB) 725 A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA EM LAÇOS DE FAMÍLIA, DE CLARICE LISPECTOR...................................................................................................... 736 Elizabete Sampaio Vieira da Silva (PPGEL/UNEMAT) Elisabeth Battista (UNEMAT) ENTRE LENDAS E GUARANÁS: O IMAGINÁRIO SIMBÓLICO BRASILEIRO...................................................................................................................... 746 Eliziane Navarro (PPGEL/UNEMAT) Olga Maria Castrillon-Mendes (PPGEL/UNEMAT) MAINHA, VOU NO SHOPPING: UM ESTUDO DA VARIAÇÃO DA LÍNGUA NUMA PERSPECTIVA LINGUÍSTICA E GRAMATICAL............................................ Eloir Geneci Castro da Silva (UNICAP) Carla Moreira de Paula (UNICAP) 756 A TÉCNICA MODERNA NA VISÃO DE HEIDEGGER: NOVAS PERSPECTIVAS DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA NO CAMPO DA LINGUAGEM..................................................................................................................... 764 Emmanuella Farias de Almeida Barros (UFPE) AS GRAMÁTICAS E DICIONÁRIOS RENASCENTISTAS E O SABER LINGUÍSTICO OCIDENTAL............................................................................................ 776 Enézia de Cássia de Jesus (UFAL) AS DANÇAS DA LINGUAGEM, OS CAMINHOS DE UMA LEITURA POÉTICA.... Érica Thereza Farias Abreu (UFPE) 781 CIUMENTO DE CARTEIRINHA, DE MOACYR SCLIAR – UM JOGO FICTÍCIO E INTERTEXTUAL............................................................................................................... 790 Everaldo Bezerra de Albuquerque (UFAL/PPGLL) A LEITURA DE TEXTOS LITERÁRIOS: UMA ABORDAGEM PEIRCEANA........... Expedito Ferraz Júnior (UFPB) 798 VOLUME II O NEOLOGISMO EM CANÇÕES DE GILBERTO GIL................................................. Fabiana Vieira Barbosa (UFRPE/UAST) Adeilson Pinheiro Sedrins (UFRPE/UAST) OS SENTIDOS DO DISCURSO DO ENSINO PROFISSIONAL COMO ACESSO AO EMPREGO NO BRASIL.................................................................................................... Fabiano Duarte Machado (PPGLL-UFAL) O SAGRADO NA POESIA FEMININA DE ADÉLIA PRADO E DIVA CUNHA......... Felipe Assis Araujo (UFRN/CERES) SOBRE CIMENTO E SANGUE: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS ENTRE O NOVO BRUTALISMO E A LITERATURA BRUTALISTA......................... 804 816 828 840 Felipe Benicio de Lima (PPGLL/UFAL) TRADUÇÃO MULTIMODAL: ASPECTOS ESTRUTURAIS DE ASSASSIN’S CREED................................................................................................................................ Felipe Cezar Menezes (UNEB) Juliana Cristina Salvadori (UNEB) Adolfo Paiva de Andrade (UNEB) CONSIDERAÇÕES SOBRE O HIPER-REALISMO DE ANDRÉ SANT’ANNA.......... Felipe de Castro Cruz (UFPB) Jéssica Rodrigues Férrer (UFPB) 852 863 TENDÊNCIAS DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA...................... 871 Felipe Vigneron Azevedo (IFF) LITERATURA E NATUREZA EM MANOEL DE BARROS.......................................... 883 Fernanda Bezerra de Aragão Correia (UFS) “XANDRILÁ” SOB UM VIÉS SEMIÓTICO.................................................................... 894 Flávio Passos Santana (UFS) A PRESENÇA DOS GÊNEROS TEXTUAIS NAS QUESTÕES DE MATEMÁTICA NO ANTIGO ENEM........................................................................................................... 906 Francielle Santos Araújo (UFS) Fabíola dos Santos Lima (UFS) RECLUSÃO E LIBERDADE NA TRAJETÓRIA FICCIONAL DE MAYOMBE............ Francigelda Ribeiro (UFMG) Lila Léa Cardoso Chaves Costa (UFPI) 916 ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS: UMA ABORDAGEM INTERTEXTUAL E MULTIMODAL DO GÊNERO.......................................................................................... 924 Francilene Leite Cavalcante (UNICAP/IFAL) Roberta Caiado (UNICAP) O LETRAMENTO ACADÊMICO E O TRABALHO DOCENTE: OS CONFLITOS VIVENCIADOS NA ELABORAÇÃO DE UM MATERIAL DIDÁTICO IMPRESSO DA EAD.............................................................................................................................. Francineide Ferreira de Morais (UFPB\PROLING\GELIT) RODAS DE CONVERSA COMO EVENTO DE LETRAMENTO PARA A PRODUÇÃO E REFACÇÃO TEXTUAL NA EJA........................................................... Francisca Aldenora Moreno Fernandes (UFRN) Ana Maria de Oliveira Paz (PPgEL/UFRN) O GÊNERO ENTREVISTA: UMA PROPOSTA DE RETEXTUALIZAÇÃO DA FALA PARA A ESCRITA................................................................................................. Francisca Fabiana da Silva (UFRN) 936 948 960 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ALGUMAS REFLEXÕES............................... 971 Francisco Canindé de Assunção (SABERES) DO CORDÃO À WEB: O CORDEL-NOTÍCIA NA INTERNET..................................... 981 Francisco Leandro de Assis Neto (UEPB) AS TRANSPARÊNCIAS DO TERROR............................................................................ Gabriel D. M. Moura Freitas (GELISC/CNPq/UFPB) 993 A UTILIZAÇÃO DO CONTO E SUAS IMPLICAÇÕES NAS PRÁTICAS DE ESCRITA E REESCRITA DE TEXTOS EM SALA DE AULA....................................... 1.002 Gabriela Ulisses Fernandes (UNEAL) A PERFOMANCE NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA DE MARCELINO FREIRE............................................................................................................................... Gérsica Cássia Ferreira Leite (UFPE) 1.011 ETHOS DO COTIDIANO FEMININO DE TEXTOS LITERÁRIOS DAS AUTORAS CONTEMPORÂNEAS BRASILEIRAS IVANA ARRUDA LEITE E MARTHA MEDEIROS......................................................................................................................... 1.024 Giovanna de Araújo Leite (BARÃO EAD - Ribeirão Preto/SP) VOCÊ VIU TU, SENHOR? COMPETIÇÃO DE TRATAMENTO EM CARTAS DO SERIDÓ E CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO........................................................... Gisonaldo Arcanjo de Sousa (UFRN) 1.037 ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO À LEITURA DE POEMAS LÍRICOS.................................................................................... 1.048 Helio Castelo Branco Ramos (IFPE) INTENCIONALIDADE LINGUÍSTICA NAS CAMPANHAS PUBLICITÁRIAS EM OUT-DOORS NAS CIDADES DE OLINDA E RECIFE.................................................. Heloisa Pedrosa de Araújo (UFPE) 1.061 RESUMO DE LEITURA: UMA ANÁLISE DO DOMÍNIO DO DISCURSO TEÓRICO À LUZ DO ISD................................................................................................. 1.070 Hermano Aroldo Gois Oliveira (UFCG/PÓS-LE) A VOZ DO SILÊNCIO INDÍGENA: O EXERCÍCIO DO PODER IDEOLÓGICO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE ATORES SOCIAIS.................................................. Ilka da Graça Baía de Araújo (UEG) Gláucia Cândido Vieira (UFG/UEG) GÊNERO E RELAÇÕES INTERÉTNICAS NA CONSTRUÇÃO FAMILIAR AFRICANA EM O ALEGRE CANTO DA PERDIZ, DE PAULINA CHIZIANE............. Ilka Souza dos Santos (UPE) Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE) A ABORDAGEM SEMIÓTICA COMO MÉTODO PARA ENSINO DE ANÁLISE DO TEXTO LITERÁRIO................................................................................................... Ingrid Cruz do Nascimento (UFPB) Dalva Sales Carvalho Cunha (UFPB) 1.083 1.096 1.109 O CURRÍCULO DE LÍNGUA PORTUGUESA COMO UM GÊNERO INSERIDO NO CONTÊINER DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS.............................................................. 1.113 Isabela Bastos de Carvalho (IFF/CEFET-RJ) PLANO PLURIANUAL DE ALFABETIZAÇÃO NO SISTEMA PRISIONAL NO ESTADO DE SERGIPE: APLICAÇÃO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO INICIAL DE ALFABETIZADORES E COORDENADORES DE TURMAS................................. Isis Mota Rodrigues Dantas (SEED – Secretaria de Estado da Educação) A VIDA ÍNTIMA DA MORTE SUBVERTIDA NA POÉTICA CONTEMPORÂNEA DE HILDA HILST.............................................................................................................. Ivon Rabêlo Rodrigues (FAFIRE) Edigar dos Santos Carvalho (UFPE) REPRESENTAÇÕES LITERÁRIAS DA MILITÂNCIA POLÍTICA: NOS, OS DO MAKULUSU, DE JOSE LUANDINO VIEIRA E UN FUSIL DANS LA MAIN, UN POEME DANS LA POCHE, DE EMMANUEL DONGALA............................................ Jacqueline Fernanda Kaczorowski Barboza (USP) OS LETRAMENTOS NO CIRCO DO FUXIQUINHO E O PAPEL DO PROFESSOR.. Jaécia Bezerra de Brito (UFRN/PROFLETRAS) 1.126 1.140 1.149 1.159 O ÍCONE METAFÓRICO PEIRCIANO NO POEMA MORTE E VIDA SEVERINA....... 1.170 Janicreis Gomes de Souza (UFPB) Expedito Ferraz Júnior (UFPB) A CONCEPÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM E O DISCURSO PEDAGÓGICO DO PROFESSOR: UMA AULA MAGNA DE ARIANO SUASSUNA........................... Janielly Santos de Vasconcelos(UFPB) 1.180 PRODUÇÃO DE CHAMADAS TELEVISIVAS: O ENSINO DA ESCRITA NUMA PERSPECTIVA PROCESSUAL........................................................................................ Jária Suéldes Alves de Lima (UFRN) 1.190 O JOGO ENTRE AS REMINISCÊNCIAS E O DESVELAMENTO NOS POEMAS DE BANDEIRA DE TEMÁTICA ONÍRICA.................................................................... Jefferson Cleiton de Souza (UFPE) 1.203 COLONIALISMO E PÓS-COLONIALISMO EM O ALEGRE CANTO DA PERDIZ, DE PAULINA CHIZIANE................................................................................................. Jeferson Rodrigues dos Santos (UFS) Anderson de Souza Frasão (UFS) 1.211 REPRESENTAÇÕES DA MULHER AMAZÔNICA NO ROMANCE DE MILTON HATOUM............................................................................................................................ 1.218 Joanna da Silva (UFAM) INTERTEXTUALIDADE COMO METALITERATURA: ANÁLISE COMPARATIVA DE VIDAS SECAS E “FAROESTE CABOCLO”................................ João Batista da Silva (UFRPE/UAG) Nilson Pereira de Carvalho (UFRPE/UAG) 1.231 CHARGES SOBRE O CARNAVAL: UM RISO CARNAVALESCO?............................ 1.243 Jociane da Silva Luciano (UFRN) PRODUÇÕES TEXTUAIS DE ALUNOS GRADUANDOS INICIANTES EM LETRAS.............................................................................................................................. Joelma da Silva Santos (UFPB) 1.255 GÊNEROS TEXTUAIS E ANÁLISE LINGUÍSTICA COMO PROCESSO DE ORGANIZAÇÃO LINGUÍSTICA E IDENTIDADE SOCIAL......................................... John Hélio Porangaba de Oliveira (UNICAP) 1.268 A ESTÉTICA NEOBARROCA NA CANÇÃO DE CHICO CÉSAR: UM LEITURA DE A PROSA IMPÚRPURA DE CAICÓ.......................................................................... 1.280 Jonathan Lucas Moreira Leite (UFPB-PPGL) A AMBIVALÊNCIA DA CONFISSÃO NA ESCRITURA DE MIA COUTO................ José Aldo Ribeiro da Silva (UEPB) 1.287 ENSINO DE LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTOS NAS SÉRIES FINAIS: PROCESSOS DE RETEXTUALIZAÇÃO COM O GÊNERO MEMÓRIAS................... 1.300 José Aurélio da Câmara (UFRN) VIOLÊNCIA, REPRESSÃO E FORMA EM AVALOVARA.............................................. 1.312 José Helber Tavares de Araújo (UFPB) O JOGO DAS PALAVRAS NO POEMA “MY SWEET OLD ETCETERA”, DE E. E. CUMMINGS....................................................................................................................... José Vilian Mangueira (UERN) 1.325 ANALISANDO O DISCURSO E O HUMOR NAS CHARGES: DO MATERIAL LINGUÍSTICO À MATERIALIDADE DISCURSIVA..................................................... 1.335 José Wellisten Abreu de Souza (PROLING-UFPB) EQUÍVOCOS E CONTROVÉRSIAS DO LIVRO DIDÁTICO SOBRE O ENSINO DE GÊNEROS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL............................................................ Josefa Maria dos Santos (UPE) Maria Alcione Gonçalves da Costa (UPE) A TÉCNICA DO MONÓLOGO INTERIOR NA CONSTRUÇÃO DO SER DA FICÇÃO EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS................................................... Josivaldo Silva Menezes (UPE) 1.348 1.361 A IMPORTÂNCIA DAS TIC NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE INGLÊS............................................................................................................................... 1.371 Joyce Rodrigues da Silva Magalhães (IFAL/UFAL-PPGLL/ObservU) Adriana Nunes de Souza (IFAL) O IMAGINÁRIO FICCIONAL EM “A MORTE DE D.J. EM PARIS” DE ROBERTO DRUMMOND..................................................................................................................... 1.382 Juceli da Cruz Carneiro (FAFICA) O TRATAMENTO DADO ÀS VARIEDADES LINGUÍSTICAS NOS LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS DO ENSINO FUNDAMENTAL (ANOS FINAIS) APROVADOS PELO PNLD-2014..................................................................................... 1.393 Juciano Santos Soares da Silva (UFPE/FACEPE) A PERSONAGEM ILUMINATA COMO A MANIFESTAÇÃO DA VOZ FEMININA NA FICÇÃO DE LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA.................................................... Júlio César Martins de Sales (UPE) Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE) 1.406 IMAGENS DE NAÇÃO EM ODETE SEMEDO E CONCEIÇÃO EVARISTO.............. Karina de Almeida Calado (PUC-Minas) 1.417 NOVAS TECNOLOGIAS E FORMAÇÃO DOCENTE.................................................... 1.432 Karina Kelly Amâncio (IFAL) UMA ANÁLISE DA TEORIA ARGUMENTATIVA EM AVALIAÇÕES EM LARGA ESCALA NO BRASIL – SAEB E PROVA BRASIL........................................................ 1.438 Karine Alves David (UFRN) VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO SOCIAL EM MARCELINO FREIRE: UMA ANÁLISE CRÍTICA............................................................................................................................. Karla Karine Claudino Tenório (UPE) A INTERVENÇÃO DIDÁTICA NO PROCESSO DE PRODUÇÃO TEXTUAL DE ALUNOS PARTICIPANTES DA OLIMPÍADA DE LÍNGUA PORTUGUESA-OLP.... Karolynne Kaya Maria Amorim Moura (PPGE) Adna de Almeida Lopes (UFAL) 1.450 1.463 CUTUCAR, CURTIR, COMENTAR, COMPARTILHAR: UMA ANÁLISE DOS RELACIONAMENTOS AFETIVOS NA CONTEMPORANEIDADE NA REDE SOCIAL FACEBOOK......................................................................................................... 1.476 Kassios Cley Costa de Araújo (UnP) PRODUÇÃO DE TEXTO NA CONTEMPORANEIDADE –UMA VISÃO SOBRE O ENSINO DE LINGUAS NA ERA DIGITAL………………….……………………...…. 1.486 Kathia Maria Barros Leite (UFAL/IFAL) Rita de Cássia Souto Maior (UFAL) GÊNERO TEXTUAL COMO EIXO NORTEADOR DO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA................................................................................................................... 1.498 Katiane Silva Santos (IFAL) UMA ANÁLISE DE CONCEITOS E CONCEPÇÕES NOS REFERENCIAIS CURRICULARES PARA O ENSINO MÉDIO DA PARAÍBA: A PRESENÇA DE BAKHTIN........................................................................................................................... Keila Gabryelle Leal Aragão (UFPB) Ayanne Mayelle da Silva Ferreira (UFPB) A LINGUAGEM DO PROBLEMA MATEMÁTICO....................................................... Kelly Jane da Silva Tcham (PIBIC/IFAL) Nádia Mara da Silveira (IFAL) 1.506 1.519 FACEBOOK E ENSINO DE GÊNEROS: UMA EXPERIÊNCIA MIDIÁTICA EM REDE................................................................................................................................... 1.529 Laene Alves Pacheco Vaz (UPE) Benedito Gomes Bezerra (UPE) CRIADAS E MALVADAS: A IDENTIDADE VISUAL DAS LATINOAMERICANAS................................................................................................................... 1.541 Larissa de Pinho Cavalcanti (UFPE) DESCONSTRUÇÃO E CONSTRUÇÃO DA REALIDADE EM “NOIVAS PROIBIDAS DOS ESCRAVOS SEM ROSTO NA CASA SECRETA DA NOITE DO TEMÍVEL DESEJO”.......................................................................................................... Laura Fernanda Vicente de Souza (FAFICA) 1.553 GÊNEROS DISCURSIVOS COMO FORMAS DE CONTEXTUALIZAÇÃO NO ESPAÇO VIRTUAL: O CASO DO MOVIMENTO OCUPE ESTELITA........................ Laura Jorge Nogueira Cavalcanti (UFPE) 1.564 O USO DOS RECURSOS COESIVOS NA PRODUÇÃO DE TEXTOS DO GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO EM INGLÊS: PROBLEMAS ENFRENTADOS PELO APRENDIZ.............................................................................................................. Leane Mayara da Silva Santos (UNEAL) Delma Cristina Lins Cabral de Melo (UNEAL) 1.575 MECANISMOS DE COESÃO REFERENCIAL EM PRODUÇÕES ESCRITAS: UMA ABORDAGEM NO CONTEXTO ESCOLAR................................................................... 1.587 Leonildo Leal Gomes (UFRN) GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS E MANUAIS DO PROFESSOR: QUAL O TRATAMENTO DADO ÀS QUESTÕES CONTEXTUAIS?........................................... 1.596 Lílian Noemia Torres de Melo Guimarães (UFPE) BARROQUISMOS NA POESIA DE DRUMMMOND.................................................... Lindjane Pereira (UFPB) Líllian Régis (UFPB) A EXPERIÊNCIA DE LEITURA E O LEITOR EM FORMAÇÃO NO PRIMEIRO CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL........................................................................... Luana Machado (UFAL) Léa Maria da Silva Borges (UFAL) APOCALIPSES DA MODERNIDADE: O FIM DO MUNDO EM ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA E 2666............................................................................................................. Lucas Antunes Oliveira (UFPE) 1.608 1.617 1.625 O CORVO DE EDGAR ALLAN POE – UMA ANÁLISE CONTRASTIVA DAS TRADUÇÕES DE MACHADO DE ASSIS E FERNANDO PESSOA............................. 1.637 Lucélia Aparecida de Ávila Carvalho (IFTO) UM CRIME DELICADO SOB A ÓTICA PÓS-MODERNA............................................ 1.648 Luciana Bessa Silva (FALS) A ÁFRICA QUE HÁ EM NÓS... IMPRESSÕES E EXPERIÊNCIAS COMPARTILHADAS NO ENSINO FUNDAMENTAL.................................................. Luciana Maria Carvalho Medeiros dos Santos (UFRN) Valdenides Cabral de Araújo Dias (UFRN) 1.659 UM ESTUDO SOBRE MARCADORES DISCURSIVOS NO GÊNERO COMENTÁRIO DE BLOG FUTEBOLÍSTICO PERNAMBUCANO.............................. 1.671 Lucineudo Machado Irineu (UNILAB) Walison Paulino de Araújo Costa (UFRPE) A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM O ESPELHO DIAMANTINO – PERIÓDICO DE POLÍTICA, LITERATURA, BELAS ARTES, TEATRO, E MODAS DEDICADO ÀS SENHORAS BRASILEIRAS................................................................. 1.679 Lucirley Alves de Oliveira (UFPE) A REPRESENTAÇÃO FEMININA NA ESCRITA DE ANA MIRANDA...................... Luiz Renato de Souza Pinto (IFMT) AS LITERATURAS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS NA SALA DE AULA – UM NOVO FAZER PEDAGÓGICO................................................................................. Lygia Maria Andrade Figueira dos Santos (UFRRJ) Viviane de Araújo Nascimento (UFRRJ) 1.689 1.697 VOLUME III CONTRIBUIÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO E A FORMAÇÃO DO LEITOR....................... Mabel Cristina Azevedo dos Santos (PROFLETRAS – UPE) Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE) 1.707 O GÊNERO BLOG PEDAGÓGICO E O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: POR UMA PRÁTICA EDUCOMUNICATIVA DE LEITURAS DIALÓGICAS DA MÍDIA POLÍTICA........................................................................................................................... 1.718 Manassés Morais Xavier (UFCG) Maria de Fátima Almeida (UFPB) LITERATURA AFRICANA DE LÍNGUA PORTUGUESA: UMA POSSIBILIDADE DE DIÁLOGO ENTRE BRASIL E ANGOLA.................................................................. Marcela de Melo Cordeiro Eulálio (POS-LE/ UFCG) Josilene Pinheiro-Mariz (POS-LE/ UFCG) 1.729 A INFLUÊNCIA DA LÍNGUA MATERNA NA AULA DE LÍNGUA ESTRANGEIRA: OS MARCADORES CONVERSACIONAIS E A ALTERNÂNCIA DE LÍNGUA....................................................................................................................... Marcelo Augusto Mesquita da Costa (UFPE) Kazue Saito Monteiro de Barros (UFPE) 1.741 O TRABALHO COM O GÊNERO POESIA, O TEXTO E A ORALIDADE NO ENSINO.............................................................................................................................. Márcia Nadja Oliveira de Medeiros Galvão (UFRN) 1.752 MR. POTTER E A VOICELESS DO SUJEITO COLONIAL: IDENTIDADE, RAÇA E MARGINALIDADE EM JAMAICA KINCAID............................................................... Márcia Oliveira (UFPE) 1.762 O ETHOS QUE QUEREMOS E O ETHOS QUE PODEMOS.......................................... 1.772 Márcia Regina Curado Pereira Mariano (DLI – UFS) CULTURA: VARIEDADES DA LÍNGUA NA CONCORDÂNCIA VERBAL E INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA...................................................................................... 1.783 Márcione Teles de Melo Barros (ULHT) CAMINHADO POR TERRAS HABITADAS POR FANTASMAS: A PEREGRINAÇÃO DO NARRADOR NA OBRA ‘OS ANÉIS DE SATURNO’............. Marcos Eduardo de Sousa (UFOP) 1.794 OS NOVOS REALISMOS NOVOS EM PRODUÇÕES LITERÁRIAS DE LÍNGUA INGLESA............................................................................................................................ Marcus V. Matias (UFAL) 1.800 O FEEDBACK COLABORATIVO NA PRODUÇÃO DO GÊNERO E-MAIL: UMA EXPERIÊNCIA COM ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL II.............................. Maria Angela Lima Assunção (UFRN) 1.812 SEQUÊNCIA DIDÁTICA POR GÊNEROS TEXTUAIS: UMA PROPOSTA PARA O LETRAMENTO.................................................................................................................. Maria Aparecida Barbosa da Silva (UFPE) Erivaldo José da Silva (UFPE) SOLIDÃO E DESAMPARO EM OS CUS DE JUDAS DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES.......................................................................................................................... Maria Aparecida da Costa (UERN) José Juvêncio Neto de Souza (UERN) 1.823 1.833 DO PRETEXTO PLÁSTICO À VERDADE PLÁSTICA: ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO ESTÉTICO – POESIA, PINTURA E OUTROS GÊNEROS – LIÇÕES DE ESPANHA........................................................................................................................... 1.841 Maria Bernardete da Nóbrega (UFPB) O GÊNERO TEXTUAL CONTO COMO FERRAMENTA ARTICULADORA NAS PRÁTICAS DE ESCRITA E REESCRITA EM SALA DE AULA................................... 1.851 Maria Claudicélia Curvelo da Silva (UNEAL) A BUSCA DA IDENTIDADE CULTURAL NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS EM MÁRIO DE ANDRADE....................................................... Maria da Conceição José de Sousa (UNEMAT) MUNDOS LENDÁRIOS: LENDAS NEGRAS E URBANAS NO CONTEXTO DA SALA DE AULA................................................................................................................ Maria das Graças da Costa (UFCG) Ana Rafaela Oliveira e Silva (UFRN) EVENTOS DE LETRAMENTO: O USO SOCIAL DA LEITURA E DA ESCRITA NA SALA DE AULA......................................................................................................... Maria das Vitórias dos Santos Medeiros (UFRN) Maria Marlene dos Santos (UFRN) 1.859 1.866 1.875 MOVIMENTOS DE CONSTRUCÃO DA IDENTIDADE FEMININA NO GÊNERO PUBLICITÁRIO DA NATURA: PERSPECTIVAS DIÁLOGICAS................................. 1.887 Maria do Carmo R. da Silva (UFPB) Julia Cristina de L. Costa (UFPB-PROLING) A ESTETIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA NA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: UMA LEITURA DE O MATADOR DE PATRÍCIA MELO........ 1.897 Maria Fernandes de Andrade Praxedes (UEPB) MEMÓRIA E LITERATURA: TRAUMA, ESQUECIMENTO E PÓS-MEMÓRIA NA REPRESENTAÇÃO DO MASSACRE DOS ÍNDIOS EM A LENDA DOS CEM, DE GILVAN LEMOS............................................................................................................... 1.909 Mariá Gonçalves de Siqueira (UFPE) ANÁFORAS ENCAPSULADORAS NA VOZ DO NARRADOR DE MENINO DE ENGENHO.......................................................................................................................... 1.920 Maria José Cavalcanti de Andrade (UNICAP) MUDANÇAS GRAMATICAIS DOS ITENS “E”, “AÍ”, “AGORA” NA FALA E CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO.............................................................................. 1.929 Maria José de Oliveira (IFRN- Caicó/ UFPB-PROLING) Camilo Rosa da Silva (UFPB-PROLING) ANA CRISTINA CESAR: A CONSTRUÇÃO DE UMA DICÇÃO AUTORAL............. 1.942 Maria Lúcia Colombo (UNIR/IFRO) Sônia Maria Gomes Sampaio (UNIR) “A ESCRAVA ISAURA” E “ROSAURA, A ENJEITADA”: IMAGENS QUE SE CONFUNDEM NA OBRA DE BERNARDO GUIMARÃES........................................... 1.952 Maria Rosane Alves da Costa (UPE) ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO DISCURSO JORNALÍSTICO............................................................................................ Maria Sirleidy de Lima Cordeiro (UFPE) 1.963 LETRAMENTO DIGITAL: PARA TC DE VZ EM KNDO NA AULA DE PORTUGUÊS...................................................................................................................... 1.974 Maria Solange de Lima Silva (FCU/UNIFUTURO) MAIS DO QUE “SENTIDO FIGURADO”: O EFEITO METAFÓRICO SEGUNDO MICHEL PÊCHEUX.......................................................................................................... Mariana da Silva Gouveia (UFCG) 1.981 AQUILINO RIBEIRO E GUIMARÃES ROSA: PROPOSTAS LITERÁRIAS EM DIÁLOGO........................................................................................................................... 1.988 Marília Angélica Braga do Nascimento (IFRN/UFC) A VARIAÇÃO FONÉTICA DO [R] DO PORTUGUÊS BRASILEIRO NA FALA DOS NATIVOS DE LÍNGUA INGLESA.......................................................................... 2.000 Marília Gomes Teixeira (UFPE) UMA PEDAGOGIA PARA UM PAÍS MULTILÍNGUE.................................................. Marinázia Cordeiro Pinto (UFRRJ) Michele Cristine Silva de Sousa (UFRRJ) 2.010 O TRANSPOSITOR SEM: CRITÉRIOS PARA DETERMINAÇÃO DO VALOR MODAL EM ORAÇÕES ADVERBIAIS REDUZIDAS................................................... 2.021 Marta Anaísa Bezerra Ramos (UEPB) Camilo Rosa Silva (UFPB) UMA BREVE ANÁLISE DISCURSIVA EM MÚSICAS CRISTÃS............................... Max Silva da Rocha (UNEAL) José Bezerra da Silva (FACESTA) 2.033 DICIONÁRIO ELETRÔNICO: UMA PROPOSTA PARA O ENSINOAPRENDIZAGEM DE LÍNGUA....................................................................................... 2.044 Mayara Oliveira Feitosa (UFS) Elaine Vieira Gois (UFS) ANGÚSTIAS NO INFÉRTIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE “NOS HAN DADO LA TIERRA” DE JUAN RULFO…………………………………………….…...…………. Mercia Paulino Nicolau da Silva (UFPE) ANÁLISE DIALÓGICA DO FILME FAHREINHEIT 451............................................... Micheline Barros Chaves (UEPB) DISCURSOS SOBRE O TRABALHO DOCENTE: O QUE DIZEM OS PROFESSORES EM FORMAÇÃO INICIAL A RESPEITO DA DOCÊNCIA............... Mirelle da Silva Monteiro Araujo (UFPB) 2.052 2.062 2.075 A CRIAÇÃO DE ESTRATÉGIAS PERSUASIVAS NA CONSTRUÇÃO DE AULAS ARGUMENTATIVAS........................................................................................................ 2.087 Nádia Mara da Silveira (IFAL) O PROCESSO DE SUMARIZAÇÃO EM POSTAGENS DO FACEBOOK: O CASO DA SÉRIE “JEAN COMENTA”........................................................................................ Nadiana Lima da Silva (UFPE) Monique Alves Vitorino (UFPE) DISCUTINDO A LEITURA A PARTIR DAS INICIATIVAS NA CIDADE DE SERROLÂNDIA/BA.......................................................................................................... Naylane Araújo Matos (UNEB) Juliana C. Salvadori (UNEB) RETRATOS DA DESCOLONIZAÇÃO: O RETORNO DE DULCE MARIA CARDOSO.......................................................................................................................... Nefatalin Gonçalves Neto (UFRPE/USP) 2.098 2.114 2.126 ATRAVÉS DA LITERATURA: LITERATURA SHAKESPEARIANA.......................... 2.138 Patrícia Gonzaga da Silva (UNEAL) Rosangela Nunes de Lima (UNEAL) LEITURAS DE TEMAS POLÊMICOS NA SALA DE AULA: POR QUE NÃO FAZER?............................................................................................................................... 2.146 Patrícia Lira Guedes de Oliveira (UFPB) A LÍNGUA EM INTERAÇÃO: UM ESTUDO DE CADEIA DE GÊNEROS EM CONTEXTO DE CONCURSO PÚBLICO.............................................. 2.158 Patrícia Silva Rosas de Araújo (PROLING/UFPB) Manassés Morais Xavier (UFCG) A MOBILIZAÇÃO DE LINKS EM MATERIAL DE FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSOR DO ENSINO BÁSICO.......................................................................... Patricio de Albuquerque Vieira (UEPB) 2.168 LETRAMENTO CRÍTICO E O ENSINO DE INGLÊS: REFLEXOS DENTRO E FORA DA SALA DE AULA.............................................................................................. 2.179 Paula Tenório dos Santos (IFAL) A MECÂNICA, A POTÊNCIA E O ATO ENFÁTICO OU A PRODUÇÃO TEXTUAL BARRETIANA................................................................................................................... Paulo Alves (UFPB) OLHARES SOBRE O FEMININO: A CONSTRUÇÃO DE UM DOCUMENTÁRIO POR ALUNOS DO ENSINO MÉDIO DENTRO DE UMA EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO........................................................................................ Pedro Felipe de Lima Henrique (UFPB) Frederico de Lima Silva (UFPB) 2.186 2.198 ANÁLISE CRÍTICA DO CONTO “A CHINELA TURCA” SOB O VIÉS DA ESTÉTICA DA RECEPÇÃO.............................................................................................. 2.210 Pedro Santos da Silva (UFS) POLÍTICAS LINGUÍSTICAS EDUCACIONAIS NO ESTADO DE PERNAMBUCO: INTERPRETAÇÕES DOS PROFESSORES ACERCA DOS PARÂMETROS DO ESTADO............................................................................................................................. Rafaela Cristina Oliveira de Andrade (UFPB) Terezinha de Jesus Gomes do Nascimento (UFPB) 2.216 “A PROSA DOS MEUS VERSOS”: SENTIDOS DO REAL NA POESIA LÍRICA MODERNA......................................................................................................................... 2.229 Raquel Brandão do Sêrro (Universidade de Coimbra) A MODALIDADE COMO ESTRATÉGIA DISCURSIVA: DO ENFOQUE SISTÊMICO-FUNCIONAL AO DA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA.................... 2.240 Rebeca Sales Pereira (UFC) A ABORDAGEM DOS GÊNEROS DISCURSIVOS EM SALA DE AULA................... 2.252 Renata Xavier Moreira (UFPB) CARTÃO-POSTAL PUBLICITÁRIO: MARCAS TEXTUAIS E CONSIDERAÇÕES SOBRE O GÊNERO........................................................................................................... Renato Lira Pimentel (UFPE) PERGUNTAS DO ALUNO AO PROFESSOR: FERRAMENTAS DE APRENDIZAGEM E INTERAÇÃO.................................................................................. Renato Suellisom da Silva Medeiros (UFRN) Marise Adriana Mamede Galvão (UFRN/DLC) A NOÇÃO DE EXISTÊNCIA EM LA VIE EN CLOSE, DE PAULO LEMINSKI........... Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS) 2.259 2.266 2.277 CULTURA DIGITAL E ENSINO...................................................................................... 2.286 Rosana Cardoso Gondim (UNEB) REPRESENTAÇÃO DAS MINORIAS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA: VIOLÊNCIA E (DES) ENCONTROS URBANOS............................................................ 2.297 Rosana Meira Lima de Souza (UFPE) TODA NUDEZ (NÃO MAIS) SERÁ CASTIGADA: O DESNUDAMENTO DO FEMININO EM NELSON RODRIGUES.......................................................................... 2.308 Rosana Trevisol Seibt (IFAL) A PARTICULARIDADE ESTÉTICA NA OBRA UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES (1969), DE CLARICE LISPECTOR.......................................... 2.320 Rosilene Pimentel Santos Rangel (UFAL/ESTÁCIO FASE) PRÁTICAS DE ESCRITA NO LETRAMENTO ESCOLAR: OS TEXTOS DA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA EM LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS DO ENSINO MÉDIO................................................................................................................ Rosivaldo Gomes (UNIFAP/UNICAMP) Eloiny Ptra Brasil Lazamé (UNIFAP) 2.328 A MULHER, O TRABALHO E AS NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES: ASPECTOS TEÓRICOS MATERIALISTAS E DISCURSIVOS NO DISCURSO MIDIÁTICO........................................................................................................................ 2.344 Samuel Barbosa Silva (UFAL) ESTUDO ARGUMENTAL DO VERBO ARRUMAR........................................................ 2.354 Sandro Luis de Sousa (IFRN/UFPB) A ESCRITA DE ANA CRISTINA CESAR: UMA POÉTICA NEOBARROCA............. Sara de Miranda Marcos (UPE) 2.366 DEIXA IR MEU POVO: GÊNERO E CULTURA............................................................ Sarah da Silva Barretto (UPE) Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE) 2.379 ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: A IMPORTÂNCIA DE FALAR, OUVIR, LER E ESCREVER TEXTOS EM LÍNGUA PORTUGUESA NAS AULAS DE PORTUGUÊS...................................................................................................................... 2.388 Shania Jéssika Cavalcante Rodrigues (IFAL) FRICÇÕES DAS VOZES LABIRÍNTICAS EM A DANÇA DOS CABELOS, DE CARLOS HERCULANO LOPES...................................................................................... Shantynett Souza F. M. Alves (UNIMONTES) 2.400 O INTERDISCURSO COMO RELAÇÃO CONSTITUTIVA ENTRE FDS: O CASO BOLSONARO E OS DIREITOS HUMANOS................................................................... 2.407 Sheila Alves de Oliveira (UFPE) TEMPO, TRANSCENDÊNCIA, ENVELHECIMENTO: UMA LEITURA DA CRÔNICA “NOS TRILHOS DO TEMPO” DE CAIO FERNANDO ABREU................. 2.418 Sidileide Batalha do Rêgo (UERN) Antonia Marly Moura da Silva (UERN) A RELAÇÃO SENSORIAL ENTRE O CORPO DO LEITOR E O TEXTO LITERÁRIO: UMA ABORDAGEM REFLEXIVA ACERCA DO LETRAMENTO LITERÁRIO NO CONTEXTO UNIVERSITÁRIO– ........................................................... Silvio Nunes da Silva Júnior (UNEAL) ESCRITA MULTIMODAL: UMA PROPOSTA DE MULTILETRAMENTO NO ENSINO FUNDAMENTAL QUILOMBOLA................................................................... Soraya Conceição Branco (URCA/UDCS) Aluizio Lendl-Bezerra (URCA/ UDCS) (RE) LENDO O ARQUIVO – A PROPÓSITO DAS BASES DOCUMENTAIS DO 2.426 2.434 DISCURSO “OFICIAL”..................................................................................................... Sóstenes Ericson Vicente da Silva (UFAL) Maria Virgínia Borges Amaral (UFAL) TECENDO OS FIOS DA MEMÓRIA: PALAVRA E MEMÓRIA NOS ROMANCES DE MIA COUTO................................................................................................................ Suelany C. Ribeiro Mascena(UFPE) MÍNIMO, MÚLTIPLO E INCOMUM: O CONTO DE VERONICA STIGGER............. Susana Souto Silva (UFAL) 2.442 2.454 2.464 ALFABETIZAÇÃO E/OU LETRAMENTO: COMO FUNCIONA A APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ESCRITA..................................................................... 2.472 Tamiris de Almeida Silva (IFAL) Adriana Nunes de Souza (IFAL) MODELO PARA DESARMAR: A ESCRITURA DE WALY SALOMÃO..................... 2.481 Tazio Zambi de Albuquerque (IFPB/USP) SEMIOSES NÃO VERBAIS COMO TRAÇOS CONTEXTUALIZADORES DE MICROCONTEXTO EM SALA DE AULA...................................................................... 2.489 Thaís Ludmila da Silva Ranieri (UAST/UFRPE) O RESSUSCITÓRIO DE ODORICO-PARAGUAÇU E SUAS OUTRAS GENTES, UMA ESCRITA PALIMPSESTICA.................................................................................. Thais Rabelo de Souza (UFPE/CAPES) UM OLHAR ATENTO SOBRE O COTIDIANO FRAGMENTADO E O FAZER LITERÁRIO CONTEMPORÂNEO: MARIO LEVRERO, DO DISCURSO VACÍO A NOVELA LUMINOSA......................................................................................................... Thays Albuquerque (UEPB) O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO ATRAVÉS DO RELATO DE FUNDO BIOGRÁFICO: UMA LEITURA DE AVÓDEZANOVE E O SEGREDO DO SOVIÉTICO, DE ONDJAKI.............................................................................................. Thiago da Camara Figueredo (IFPE/UFPE) LETRAMENTO BUROCRÁTICO: PRÁTICAS DISCURSIVAS E GÊNEROS TEXTUAIS NA ESFERA ADMINISTRATIVA ESTATAL............................................ Valfrido da Silva Nunes (UFAL) A SUBJETIVIDADE DO NARRADOR ORAL NA PÓS-MODERNIDADE.................. Vanessa de Santana Vila Flor (UNEB) 2.501 2.508 2.516 2.525 2.536 LUANDA: CENÁRIO AFETIVO DA DISTOPIA PÓS-COLONIAL: UMA LEITURA DAS OBRAS DE AGUALUSA E ONDJAKI.................................................................... 2.549 Vanessa Riambau Pinheiro (UFPB) SMARTPHONE, GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: INTERAÇÕES MIDIÁTICAS NO APLICATIVO WHATSAPP..................................... Vera Lúcia de Siqueira Lira (UPE) SOB A TRIDIMENSIONALIDADE DA ANÁLISE DO DISCURSO CRÍTICA, A LEITURA DE MUNDO COM BASE NOS GÊNEROS JORNALÍSTICOS.................... 2.559 2.570 Vera Lúcia Santos Alves (FASJ) A ESCRITA PROCESSUAL E O FEEDBACK COLABORATIVO ENTRE PARES NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA EM TURMA DO 6º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL............................................................................................................... 2.581 Vilma Abdias de Lima Bezerra (UFRN) SER EMPREGADO DOMÉSTICO NO BRASIL É SER ESCRAVO: UMA METÁFORA SISTEMÁTICA DA SEGUNDA ABOLIÇÃO........................................... Vinícius Nicéas do Nascimento (UFPE) LITERATURA ERÓTICA: OU ISTO É ERÓTICO OU AQUILO É PORNOGRÁFICO EM HILDA HILST............................................................................. Wanderly Alves Ferreira (UPE) José Laécio de Oliveira (UPE) Jairo Nogueira Luna (UPE) 2.592 2.601 LÉXICO REGIONAL/POPULAR DE ZÉ VICENTE DA PARAÍBA: GLOSSÁRIO DA CANÇÃO “DESTINO DE VAQUEIRO”.................................................................... 2.612 Wellington Lopes dos Santos (UFPB) CAMINHAR PARA DENTRO DE SI MESMO: A METALITERATURA EM CONTOS DE MIA COUTO............................................................................................... William Duarte Ferreira (UFRPE/UAG) Nilson Pereira de Carvalho (UFRPE/UAG) MOTIVAÇÕES SOCIOFONÉTICAS DO FONEMA LATERAL E FRICATIVO PALATAL: CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM DE ELE.......... Zaine Guedes da Costa (UFPE) Rafael Alves de Oliveira (UFPE) O VERBETE DE DICIONÁRIO COMO GÊNERO DISCURSIVO: UMA ANÁLISE DISCURSIVA..................................................................................................................... Zilda Maria Dutra Rocha (UERN) Antônio Luciano Pontes (UERN) 2.623 2.634 2.645 III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 23 PRÁTICAS DE LETRAMENTO: A LEITURA DELEITE COMO PROCEDIMENTO ESTRATÉGICO NA FORMAÇÃO DE LEITORES [Voltar para Sumário] Abda Alves Vieira de Souza (UFAL) Maria Auxiliadora da Silva Cavalcante (UFAL) Introdução O Ministério da Educação (MEC) com a finalidade de melhorar o processo de alfabetização vem adotando medidas para melhorar a aprendizagem da leitura e escrita no país. Uma das iniciativas adotadas foi a criação do PNAIC (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa) que é um programa cujo objetivo imediato é a alfabetizar crianças até os oito anos de idade, foi implementado em 2013 pelo governo federal que investiu na formação continuada visando formar 360 mil professores alfabetizadores até 2015. A iniciativa do MEC partiu dos dados levantados pelo Censo 2010. Ao todo, são 15,2% as crianças brasileiras em idade escolar que não sabem ler, nem escrever. O PNAIC traz em seu conteúdo reflexões e sugestões de atividades de alfabetização, letramento e incentivo à formação do leitor. Assim, percebemos a importância de assegurar um amplo debate sobre possíveis repercussões causadas pelo Pacto no cotidiano das práticas de alfabetização. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é refletir até que ponto as estratégias de formação vivenciadas no PNAIC contribuíram para a melhoria das práticas de leitura desenvolvidas na escola pelas professoras alfabetizadoras. A formação de Professores Alfabetizadores PNAIC foi desenvolvida durante o ano de 2013. Nessa formação, atuamos como formadoras dos Orientadores de Estudos Estado da Paraíba. Os orientadores de estudo tinham como função realizar a formação com os professores dos municípios e acompanhar os resultados da aprendizagem. O processo de formação continuada ocorreu durante todo o ano letivo com a participação de 43 orientadores de estudo de dezoito municípios. Durante este período, tivemos a oportunidade de refletir sobre as seguintes temáticas: currículo inclusivo; planejamento e organização de rotina na Nas fronteiras da linguagem ǀ 24 alfabetização; o último ano do ciclo de alfabetização; vamos brincar de reinventar histórias; o trabalho com diferentes gêneros textuais em sala de aula; diversidade e progressão escolar; alfabetização em foco – projetos didáticos e sequências didáticas em diálogo com os diferentes componentes curriculares; a heterogeneidade em sala de aula e a diversificação das atividades; progressão escolar e avaliação o registro e a garantia de continuidade das aprendizagens no ciclo de alfabetização. É importante destacar, que os orientadores de estudos realizaram a formação em seus municípios com os professores alfabetizadores, trabalhando com as temáticas supracitadas realizadas em 09 encontros, com duração de 08 horas cada. O ensino da leitura na sala de aula Acreditamos que é necessário planejamento por parte dos professores na organização do trabalho pedagógico de forma que promovam atividades que ajudem as crianças a desenvolverem habilidades de ler e compreender textos. Por esse motivo, julgamos pertinente refletir sobre o ensino de leitura, ainda que sucintamente. Adotamos a concepção de leitura enquanto interação, como uma atividade interativa entre o autor e o leitor, mediada pelo texto. Nesta perspectiva, o leitor não assume um papel passivo diante do material escrito, antes, atua sobre ele na busca pela construção do sentido daquilo que lê. Ou seja, a leitura não pode ser entendida sem considerar a compreensão do texto, pois se não há a compreensão do material lido, houve apenas um processo de decodificação. (ALBUQUERQUE; SANTOS, 2007) A prioridade no trabalho com a leitura na escola tem sido a decodificação, isto é, a escola tem investido em um ensino que tem como objetivo instruir as crianças na aprendizagem do sistema de escrita alfabética, deixando os outros aspectos em segundo plano. Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCN/LP, 1997) postulam que qualquer leitor mais experiente que consegue analisar sua própria leitura percebe que a decodificação é apenas um dos procedimentos utilizados quando se lê. Nesse sentido, o ensino/aprendizagem de estratégias de leitura é essencial para que o aprendiz desenvolva uma leitura proficiente. Solé (1998) ao discorrer sobre a importância dessas estratégias, explica que são operações regulares para abordar o texto, e destaca que elas podem favorecer a compreensão textual. Tais estratégias podem ser cognitivas (operações inconscientes) e metacognitivas (passíveis de controle consciente). Ainda de acordo Solé (1998), esse momento em que o leitor monitora sua leitura, pode ser entendido com um III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 25 “estado estratégico’, caracterizado pela necessidade de aprender, de resolver dúvidas e ambiguidades de forma planejada e deliberada [...]”. Para isto, o leitor faz uso das estratégias metacognitivas. Estas, conforme Kleiman (1997, p.50), são “operações (não regras), realizadas com algum objetivo em mente, sobre as quais temos controle consciente, no sentido de sermos capazes de dizer e explicar a nossa ação.” Cabe ressaltar que não é o fato de possuir um grande repertorio de estratégias que levará o leitor a entender um texto, mas é necessário, sobretudo, saber usá-las, pois estas se constituem como um caminho para atingir a compreensão. (COUTINHO 2004) Ensinar os alunos a utilizarem estratégias de compreensão leitora deve ser tarefa primordial no ensino da leitura desde a educação infantil, antes mesmo das crianças aprenderem a ler convencionalmente. (COUTINHO 2004; BRANDÃO, 2006). Como bem coloca as autoras supracitadas, desde cedo, uma criança é capaz de dominar a língua com bastante propriedade, mesmo que ainda não esteja alfabetizada, ela é capaz de compreender aquilo que alguém lê para ela, considerando á adequação do texto à sua idade. Nesse processo, a criança mobiliza e, ao mesmo tempo amplia seus conhecimentos linguísticos relativos tanto ao funcionamento da língua, quanto ao vocabulário. Kleiman (1997, p. 60), acrescenta que “quando o aluno ainda não é proficiente na leitura, é na interação que se dá a compreensão”. Nesse sentido, Brandão (2006) aponta com muita propriedade, como deve ser o ensino da leitura antes mesmo da alfabetização propriamente dita. (...) desde a educação infantil, devemos ensinar nossos alunos a ler como alguém que tenta montar um quebra cabeça. Desse modo, estaremos formando um leitor que, diante de qualquer texto, procura encontrar e construir elos entre as peças, identificando pistas para relacionar as partes, com vistas a elaborar um todo coerente: uma imagem que faça sentido e que possa, afinal, ser interpretável e compreendida. (p.74) Portanto, é necessário que haja um investimento diário na sala de aula, por parte dos professores, no ensino das estratégias de compreensão leitora, aliadas ao domínio ensino do sistema de escrita alfabética e ao trabalho de produção diversos gêneros orais e escritos para que os alunos se tornem alfabetizados e letrados. Sabemos que os materiais didáticos e as práticas pedagógicas refletem diferentes concepções de ensino-aprendizagem da língua materna. A importância do planejamento para o ensino dos eixos do componente curricular Língua Portuguesa está inserida na perspectiva de que esta é uma atividade que antecede a um ato intencional. A rotina escolar, nessa dimensão, passa a ser um momento de escolhas e decisões didáticas e pedagógicas baseadas na reflexão sobre como agir e sobre as suas possibilidades. Nas fronteiras da linguagem ǀ 26 Nesse sentido, a Leitura Deleite pode ser uma estratégia eficiente para favorecer o gosto pela leitura, porque pode promover uma aproximação das crianças com o mundo letrado, mesmo quando ainda não sabem ler. Tal atividade pode contribui para ampliar a visão do mundo, estimular o desejo de outras leituras, nessa atividade, o professor pode desenvolver com as crianças estratégias de leitura que ajudem a compreender o texto. Assim, na rotina da sala de aula, seja qual for à idade dos alunos é fundamental que sejam garantidos momentos diários de leitura pelo professor e pelas crianças. A leitura deleite na rotina da sala de aula Durante o ano nos encontros de formação continuada PNAIC uma das atividades permanentes vivenciadas foi a “leitura deleite”, tal atividade, tinha como objetivo ler por prazer, era feita como sugestão para que a leitura fosse realizada pelas professoras diariamente em suas classes, tinha como finalidade incentivar nas crianças o gosto pela leitura. Neste trabalho, estamos apresentando a inserção da leitura deleite como estratégia eficaz proposta pelo PNAIC, cujos resultados foram comprovados nos relatos de experiências produzidos pelas orientadoras de estudo no final do ano letivo sobre os resultados da formação e as repercussões na sala de aula. O relato de experiência produzido por uma orientadora de estudo do município de Campina Grande-PB traz o seguinte depoimento e de uma professora sobre inserção da leitura deleite: A professora contemplou os resultados positivos da realização de um trabalho sistemático com a literatura infantil em sua sala de aula. Sabendo que a leitura deleite se tratava de uma atividade diária, a professora passou a ler para seus alunos e propiciar momentos de exploração dos livros do acervo disponibilizados pelo Pacto. Os alunos internalizaram a rotina de leitura deleite e se encantaram pelo fantástico mundo da literatura. Foi criado um colorido cantinho da leitura no final da sala, lugar disputado pelos alunos que encontravam além dos livros, pensamentos acerca do mundo da leitura. A professora estabelecia metas de leitura, incentivando os alunos a ler; realizava locações para que durante os finais de semana, os alunos não ficassem sem ler em suas casas. Nesse período, a professora promoveu atividades de escrita a partir dos livros lidos nas quais os alunos tiveram a oportunidade de opinar e até criar outros finais para a história, como foi o caso do livro “A Pipa e a Flor”. A docente elaborou cartazes com os livros preferidos da turma, organizou e apresentou gráfico de barras registrando o quantitativo de livros lidos pelos alunos da turma, fazendo uma interdisciplinaridade com matemática, realizou ainda, preenchimento de fichas de leitura de pelo menos um livro bimestralmente (o livro preferido), promoveu atividades de recontos orais e escritos dos livros do acervo enviado pelo MEC. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 27 Com esse trabalho, os alunos envolveram-se em virtude da motivação recebida da parte da docente e também dos próprios colegas, que entusiasmados relatavam suas experiências com a leitura, a ponto de adentrarem a sala de aula querendo saber qual seria a leitura deleite do dia, apresentando no olhar o brilho de quem havia descoberto o prazer que os livros proporcionam aos leitores! Toda a comunidade escolar percebeu e avaliou de forma positiva o trabalho da professora que emocionada, faz menção aos comentários feitos pelas mães dos alunos, especialmente dos que inicialmente não conheciam nem as letras. A gestão da escola acompanhou o trabalho das docentes atendidas pelo Pacto e salientou a satisfação com os resultados obtidos pelos alunos. Em visita à escola, tivemos a oportunidade de ver a socialização dos trabalhos desenvolvidos na turma, tivemos um retorno do nosso trabalho como orientadora de estudo ao contemplar a transposição didática do que é estudado nos encontros de formação para a sala de aula. (Na ocasião, gravamos vídeos com o depoimento da gestora escolar, professora, e mães de alunos). Foi muito gratificante ver o brilho nos olhos das crianças ao expressar quantas aprendizagens conquistaram neste ano! O que motiva tanto à professora, quanto a nós que ora desenvolvemos a atividade de orientadora de estudos. (relatório da orientadora de estudo de Campina Grande-PB) Outra experiência relatada por uma orientadora de estudos do Município de CaturitéPB, mostra uma sequencia de atividades que foi desenvolvida em uma escola pública a partir de uma leitura deleite que teve como objetivo proporcionar aos alunos momentos de leitura, de alegria e fantasia possibilitando o enriquecimento do hábito de ler, reservado na rotina semanal, como atividade permanente, a leitura deleite teve como intuito enfatizar os eixos: leitura e oralidade. O relato produzido pela orientadora traz o seguinte depoimento da professora: A leitura deleite do livro “Eu sou o mais forte” de Mário Ramos teve como objetivo principal despertar nos alunos o hábito da leitura, bem como, desenvolver estratégias de leitura necessárias para a compreensão de textos lidos, formando assim leitores proficientes. Como essa leitura despertou grande interesse nos alunos, elaborei uma sequência didática com o objetivo de enfatizar alguns direitos de aprendizagem nos eixos da leitura e da oralidade. Percebi neste processo, um grande interesse por parte dos alunos em relação à leitura, o que facilitou muito a inserção dos mesmos nas atividades propostas. Sem dúvida a aprendizagem tornou-se mais significativa com a participação efetiva de todos os alunos da turma. A sequência didática realizada organizou-se do seguinte modo: No primeiro momento, apresentei o livro “Eu sou o mais forte” de Mário Ramos, mediante a discussão oral para levantamento de hipóteses sobre o assunto tratado no texto. Depois abordei informações importantes como: título, autor, ilustrador e editora. Tais procedimentos auxiliam na concentração e a atenção das crianças em relação ao texto a ser lido. Prosseguindo, promovi uma roda de contação de história e foi feito os seguintes questionamentos sobre o personagens o “lobo”: onde vive? Quais são suas características? Se conheciam outras histórias em que o lobo aparece? Todos respondiam e discutiam oralmente e assim os alunos expressavam os conhecimentos prévios sobre a personagem do lobo fazendo inferências ao texto apresentado. Após a roda de contação de história trazidas pelas crianças, fiz a leitura do título e da história: “Eu sou o mais forte” para a comprovação das hipóteses levantadas pelos alunos ao mesmo tempo em que eles iam prevendo outras. Assim, fiz questionamentos antes, durante e após a leitura. Uma das hipóteses que me chamou atenção foi: “vai aparecer o caçador para acabar com o lobo”. Com isso, todos Nas fronteiras da linguagem ǀ 28 ficaram atentos aguardando a confirmação dessa hipótese que no final da história não é confirmada. Esses procedimentos metodológicos os levam a desenvolver estratégias de leitura como a antecipação e o conhecimento prévio. Além disso, observei o quanto às crianças participam do momento da leitura com entusiasmo. Finalizando o primeiro momento, os alunos relataram oralmente o final da história lida, apontando que “o lobo que queria ser o mais forte do bosque se deu mal ao dar de cara com um animal mais feroz que ele um dragão”. No segundo momento, sentamos em círculo no cantinho da leitura retomei a história através do reconto oral da história: ‘Eu sou o mais forte” e logo após distribui o texto fatiado, em duplas e solicitei que os alunos colassem a narrativa no mural observando a sequência lógica e temporal da história e, ao mesmo tempo fazia a leitura da fatia colada. Nessa atividade, observei a interação entre os alunos, pois os que já liam com fluência ajudava os que tinham dificuldades. Encerrando o segundo momento, propus a turma a dramatização do livro: “Eu sou o mais forte”. Todos demonstraram muito interesse e logo dizia que personagem queria representar. Houve uma grande disputa pela personagem do lobo. Iniciando o terceiro momento, realizei a escolha dos personagens que cada um iria representar. Em seguida, sentamos no cantinho da leitura e realizamos a leitura compartilhada do livro: “Eu sou o mais forte” neste momento cada criança leu uma parte do texto em voz alta. Por fim, caracterizados com os respectivos personagens, os alunos dramatizaram a leitura (Eu sou o mais forte), inclusive fizeram uma apresentação no seminário final do PNAIC, com muita alegria, fantasia, imaginação e entusiasmo! ( relato de uma professora contido no relatório da orientadora de estudo de Caturité-PB) Ao desenvolver essa sequência didática a partir de uma leitura deleite a professora avaliou o resultado como satisfatório uma vez que conseguiu fazer com que as crianças realizassem diversas vezes a leitura de um mesmo livro, sem que em nenhum momento se recusassem a realizá-las. Sendo assim, as estratégias utilizadas foram eficientes para que os alunos vivenciassem todas as atividades aprendendo com satisfação. Considerações finais Neste trabalho, tivemos como finalidade refletir até que ponto as estratégias de formação vivenciadas no PNAIC contribuíram para a melhoria das práticas de leitura desenvolvidas na escola pelas professoras alfabetizadoras. Com base nos dados analisados, foi possível perceber nos relatórios produzidos pelas orientadoras de estudos que a formação permitiu momentos de reflexão em relação à prática pedagógica contribuindo para a implantação de mudanças significativas no cotidiano da sala de aula, sobretudo nos planejamentos das aulas e na organização da rotina pedagógica. Nos relatos apresentados sobre a inserção da leitura deleite na rotina diária das classes de alfabetização de textos literários indicaram que tal atividade, proporcionou o desenvolvimento do gosto pela leitura nas crianças, uma vez que as próprias ações das professoras e suas rotinas diárias com o uso dessas leituras favoreceram o processo ensino e III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 29 aprendizagem. Foi ainda, o ponto de partida de sequencia de atividades que tiveram a leitura como eixo principal. Referências BRANDÃO, A. C. O ensino da compreensão e a formação do leitor: explorando as estratégias de leitura. In: BARBOSA, M. L. Práticas de leitura no ensino fundamental. Belo Horizonte: Autêntica. 2006. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. – Brasília. 1997. COUTINHO, M. L. Praticas de leitura na alfabetização de crianças: o que dizem os livros didáticos? O que fazem os professores? Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-graduação em Educação. Universidade Federal de Pernambuco. 2004. KLEIMAN, A. B. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras. 1995. KLEIMAN, A. B. Oficina de leitura. São Paulo: Pontes. 1997. RAMOS, M. Eu sou o mais forte. São Paulo: Martins Fontes. 2005 SOLÉ, I. Estratégia de leitura. Porto Alegre: ArtMed. 1998. Nas fronteiras da linguagem ǀ 30 GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LITERATURA: UMA EXPERIÊNCIA DE LETRAMENTO LITERÁRIO [Voltar para Sumário] Adriana Nunes de Souza (IFAL/UFAL) O professor no universo das TICs O mundo contemporâneo trouxe uma série de novos recursos fascinando a todos os que têm acesso a eles: computadores, tablets e smartphones atraem com inúmeros aplicativos, a Internet promove viagens virtuais fascinantes. Tais recursos são vistos por muitos professores como vilões que distanciam o aluno do ato de estudar, são imagens que tornam a leitura algo raro e desinteressante no cotidiano, são pesquisas irreais que se limitam ao copiar e colar. Entre esses docentes, muitos lecionam literatura e reclamam que os alunos não gostam de ler, limitam-se a coletar resumos na Internet, repudiam os clássicos, têm um vocabulário limitado. Inúmeros afirmam que a escrita abreviada da Internet é uma afronta à língua, que homepages servem como um arquivo de trabalhos já prontos do qual o aluno apenas copia o que deve ser entregue como atividade para nota sem nem mesmo ler, que os computadores, tablets e smartphones afastam o jovem da leitura. Entretanto, essa visão é enganosa, pois computadores, tablets e smartphones têm criado inúmeros leitores, não o leitor escolar da literatura dissociada do cotidiano, alheia às preferências individuais, mas um leitor dinâmico que cria novos caminhos, passeia pelos textos, escolhe o que deseja ler: o leitor do hipertexto. Esse novo leitor exige um novo professor, o qual retire a máscara do preconceito de que as redes sociais e toda a Internet dificultam a aprendizagem da língua e da literatura – e passe a encarar as TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação) como aliadas, como um recurso eficiente para o letramento literário. Temos possibilidades imensas de pesquisa na rede mundial de computadores; inúmeros aplicativos voltados à leitura, jogos apoiados em estratégias que necessitam de um III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 31 alicerce em textos trazidos em cada uma de suas fases; redes sociais em que a interação ocorre basicamente pela leitura; comunidades de leitores nas redes sociais; para que esse universo passe a ser aliado da educação, basta haver a vontade de inserir esse novo mundo ao construído na sala de aula, pensar não na imposição da leitura única dos clássicos, na aula de história da literatura, no desrespeito ao gosto e na avaliação mecânica dos resumos para pensar num ensino que una esse novo recurso ao respeito, à multiplicidade de leituras, de gêneros, ao prazer de ler. As TIC podem ser aliadas no processo ensino-aprendizagem, tornando a literatura e a leitura algo muito mais atraente para o discente, inserindo-a no mundo de que ele gosta. Lembremos que a associação do novo à literatura pode criar um inovador e fascinante mundo para o aluno: por que o docente deve começar o Mal-do-século (Segunda Geração do Romantismo Brasileiro) com um texto de Álvares de Azevedo, tão distante do aluno – pela linguagem do século XXI, se pode discutir inicialmente o estado de alma romântico e partir de Exagerado de Cazuza para falar do sentimento de autodestruição e de um amor exacerbado e idealizado. Isso, certamente, agradaria mais o aluno e o convidaria a navegar pelo texto. Igual efeito a Internet (com as redes sociais, as homepages e os inúmeros aplicativos para tablets e smartphones) pode trazer ao ensino da literatura e consequentemente à formação do leitor. A educação há muito se preocupa com a construção do conhecimento a partir da realidade do aluno, assim, se as TIC são parte dessa realidade, deve-se vê-las como aliadas. O professor, nesta nova realidade, precisa saber orientar os educandos sobre onde colher informação, como tratá-la e como utilizá-la. Esse educador será o encaminhador da autopromoção e o conselheiro da aprendizagem dos alunos, ora estimulando o trabalho individual, ora apoiando o trabalho de grupos. Gêneros digitais e ensino Discutiremos o papel das TIC e dos gêneros digitais para o ensino da literatura, será uma breve análise das tecnologias da informação e comunicação no ambiente escolar como recurso fundamental do processo ensino-aprendizagem, tornando a literatura algo mais próximo da realidade do aluno e mais prazeroso, fazendo do ato de ler algo sempre atual e encantador, contribuindo para o letramento literário e facilitando o trabalho docente. O acesso à Internet e a disseminação do uso das TIC estão provocando uma revolução no conhecimento. A forma de produzir, armazenar e disseminar a informação está mudando; Nas fronteiras da linguagem ǀ 32 um enorme volume de fontes de pesquisas é aberto aos alunos pela rede, bibliotecas digitais em substituição às publicações impressas e os cursos à distância, por videoconferências ou pela Internet, são hoje uma realidade. Essa revolução precisa ser inserida na escola, em especial se pensarmos no ensino de literatura, pois a Internet está possibilitando a adolescentes um maior contato com a leitura e a escrita. Eles passam horas diante da tela, conversando nos bate-papos, redigindo postagens para as redes sociais, escrevendo e lendo e-mails, visitando sites. Utilizar este gosto pela navegação pode proporcionar ao aluno “um novo encontro com a literatura” (FREITAS, 2003, p. 170). A Internet, o computador, os tablets e smartphones podem, portanto, ser aliados no processo ensino-aprendizagem, tornando a literatura e a leitura algo muito mais atraente para o discente, inserindo-a no mundo de que ele gosta. Lembremos que a associação do novo à literatura pode criar fascinante mundo para o aluno, contribuindo para o hábito de leitura tão desejado pelos professores. Sabemos que essa preocupação com a formação do gosto e o hábito de leitura é fundamental para o ensino de literatura. Incentivar a iniciação à pesquisa bibliográfica, por meio da adequação do material de leitura à clientela escolar é objetivo frequente nos planejamentos e a Internet é uma importante aliada para se atingir tal objetivo. Sendo a escola um espaço privilegiado de interação social, ela deve integrar-se aos demais espaços de conhecimento hoje existentes e incorporar os recursos tecnológicos e a comunicação via redes, permitindo fazer as pontes entre conhecimentos se tornando um novo elemento de cooperação e transformação. Tal incorporação da Internet, das TIC, à escola gera uma ampla discussão sobre o possível impacto do uso de dispositivos técnico-informacionais (como os tablets, computadores e smartphones) na estrutura educacional, mas um ponto é fundamental: a necessidade da criação de uma cultura educativa que integre os instrumentos, tanto no nível da concepção quanto no da prática, considerando a complexidade da relação entre os instrumentos informáticos e os conhecimentos e técnicas utilizadas pelo docente. Para essa integração, no caso específico do ensino de literatura e da formação do leitor, nosso foco nessa discussão, torna-se necessário discutir a questão dos gêneros textuais que emergiram a partir da revolução do conhecimento que a tecnologia proporcionou. A questão dos gêneros é bastante ampla e para comentá-la temos de pensar primeiro de onde provêm os gêneros? Para Todorov (1981), a resposta é que vêm simplesmente de outros gêneros. Um novo gênero é sempre a transformação de um ou de vários gêneros III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 33 antigos: por inversão, por deslocamento, por combinação. Um texto atual deve tanto à poesia quanto ao romance do século XIX. Nunca houve literatura sem gêneros; é um sistema em contínua transformação. Saussure não afirmara: “O problema da origem da linguagem não é outro senão o de suas transformações”? Assim, podemos afirmar que a Internet nos trouxe novos gêneros, mas eles não são tão variados assim, pois partem de outros já consolidados. Entretanto são importantes, são frequentes no cotidiano do alunado e podem contribuir para a formação do leitor que, pelo contato com estes e com outros gêneros, construirá um repertório de leitura que possibilitará a análise e a crítica, além do reconhecimento de outros gêneros. Lembremos que, para Todorov (1981), os gêneros existem como instituição, funcionam como horizontes de expectativa para os leitores e como modelos de escritura para os autores. Por um lado, os autores escrevem em função do sistema genérico existente, aquilo que podem testemunhar no texto e fora dele, ou, até mesmo entre os dois. Por outro lado, os leitores leem em função do sistema genérico que conhecem pela crítica, pela escola, pelo sistema de difusão do livro ou simplesmente por ouvir dizer; no entanto, não é necessário que sejam conscientes desse sistema. Observamos, pois, que a diversidade de gêneros na escola, e não escolares (como a redação escolar ou o livro didático), é fundamental para o ensino de literatura. As TIC, a Internet em especial, como recurso didático são importantes, pois podem proporcionar um contato com diversas modalidades textuais o que é defendido pelos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais – publicados em 1997 – foram elaborados por equipes de especialistas ligadas ao Ministério da Educação, têm por objetivo estabelecer uma referência curricular e apoiar a revisão ou a elaboração da proposta curricular dos sistemas de ensino no Brasil e, segundo o Ministério, visa à educação básica de qualidade). A necessidade de trazer um amplo número de textos e modalidades textuais para a escola, para a qual a Internet é aliada, faz-se presente não apenas por ser uma indicação dos PCN, mas por ser a língua um organismo vivo, por ser um leitor completo aquele que consegue passear pelos diversos gêneros, compreendê-los e efetuar realmente a comunicação. Nesse sentido, é importante lembrarmos o pensamento de Bakhtin. Perceber a utilização da língua como um processo com heterogêneas e múltiplas maneiras de realização é fundamental para a compreensão do ponto de partida proposto por Bakhtin para conceituar gênero do discurso. Para ele, o ser humano em quaisquer de suas atividades serve-se da língua a partir do interesse, intencionalidade e finalidade específicos dela, realizando enunciados linguísticos de maneiras diversas. A essas diferentes formas de Nas fronteiras da linguagem ǀ 34 incidência dos enunciados, o autor denomina gêneros do discurso, porque “cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2000, p. 277). É válido comentarmos que essa relativa estabilidade, inerente ao gênero, chama a atenção e deve ser compreendida como algo passível de alteração, aprimoramento ou expansão. Tratando-se de linguagem, modificações podem ocorrer em função de desenvolvimento social, de influências culturais, ou de outros tantos fatores com que a língua tem relação direta. Ciente do caráter inesgotável das atividades humanas e seu constante processo de evolução, torna-se impossível definir quantitativamente os gêneros, que se diferenciam e se ampliam em seu uso. Um dos aspectos marcantes dos gêneros, que alude de forma direta à questão do uso é o fato de que devemos considera-los como um meio social de produção e de recepção do discurso. Para classificar determinado enunciado como pertencente a dado gênero, é necessário verificarmos suas condições de produção, circulação e recepção. É relevante observar que o gênero, como fenômeno social, só existe em determinada situação comunicativa e sócio-histórica; caso modifiquemos tais condições, é possível que um mesmo enunciado passe a pertencer a outro gênero. Bakhtin, com sua proposta de conceituação para os gêneros do discurso veio suprir a necessidade de se compreender os enunciados como fenômenos sociais, resultantes da atividade humana, caracterizados por uma estrutura pilar básica, suscetível a determinadas modificações. Um gênero do discurso é parte de um repertório de formas disponíveis no movimento de linguagem e comunicação de uma sociedade. Indissociável da sociedade e disponível em sua memória lingüística, o domínio de um gênero permite ao falante prever quadros de sentidos e comportamentos nas diferentes situações de comunicação com as quais se depara. Conhecer determinado gênero significa ser capaz de prever regras de conduta, seleção vocabular e estrutura de composição utilizada. É essa competência sociocomunicativa dos falantes que os leva à detecção do que é ou não adequado em cada prática social. A vivência das situações de comunicação e o contato com os diferentes gêneros exercitam a competência linguística do indivíduo. A saber: competência lingüística é um conceito aprofundado, que possui certa complexidade, mas que aqui será recortado no sentido de que todos nós somos aptos a, perante determinada estrutura e contexto, definir a qual categoria um dado enunciado pertence. Essa competência é inerente ao ser humano social, que interage, comunica, cria e recria. Na medida em que um indivíduo avança em grau de III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 35 escolaridade, tende a tornar-se cada vez mais proficiente na operacionalização de variadas categorias textuais. Da mesma maneira, experiência de vida e cultura geral fazem evoluir linguisticamente os falantes. Sendo assim, é fundamental percebermos o gênero como um produto social e como tal, heterogêneo, variado e suscetível a mudanças. Devido à heterogeneidade dos gêneros do discurso, resultado da infinidade de relações sociais que se apresentam na vida humana, Bakhtin optou por dividir os gêneros em dois tipos: primário e secundário. Os chamados gêneros primários são aqueles que emanam das situações de comunicação verbal espontâneas, não elaboradas. Pela informalidade e espontaneidade, dizemos que nos gêneros primários temos um uso mais imediato da linguagem (comunicação imediata, como em uma reunião de amigos). Nos gêneros secundários, existe um meio para que seja configurado determinado gênero. Esse meio é normalmente a escrita. Logo, se há meio, dizemos que há relação mediata com a linguagem, há uma instrumentalização. O gênero funciona como instrumento, uma forma de uso mais elaborada da linguagem para construir uma ação verbal em situações de comunicação mais complexas e relativamente mais evoluídas: artística, cultural, política. Esses gêneros chamados mais complexos absorvem e modificam os gêneros primários. Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios.. (BAKHTIN, 2000, p.281) Para melhor compreensão do fenômeno de absorção e transmutação dos gêneros primários pelos secundários, Bakhtin traz como exemplo uma carta ou um diálogo cotidiano, os quais, quando inseridos em um romance, desvinculam-se da realidade comunicativa imediata, só conservando seus significados no plano de conteúdo do romance. Ou seja, não são mais atividades verbais do cotidiano, e sim de uma atividade verbal artística, elaborada e complexa. É importante lembrarmos que a matéria dos gêneros primários e secundários é a mesma: enunciados verbais, fenômenos de mesma natureza. O que os diferencia é o grau de complexidade e elaboração em que se apresentam. Se os gêneros primários e secundários partem de uma mesma matéria, podemos afirmar: os gêneros que emergiram a partir do advento da Internet também a utilizam e, portanto, precisam ser discutidos, para isso as obras Marcuschi e Xavier são utilizadas como referência. Nas fronteiras da linguagem ǀ 36 Para Marcuschi (2004), é certo que a Internet e todos os gêneros a ela ligados são eventos textuais fundamentalmente baseados na escrita, assim, ela continua essencial apesar da integração de imagens e de som. Por outro lado, a ideia que hoje prolifera quanto a haver uma “fala por escrito” deve ser vista com cautela, pois o que se nota é um hibridismo mais acentuado, algo nunca visto antes, inclusive com o acúmulo de representações semióticas. As formas textuais emergentes nessa escrita são várias e versáteis. Entre os gêneros mais conhecidos e que vêm sendo estudados podemos situar pelo menos estes (numa tentativa de designar e diferenciar tais gêneros): e-mail, bate-papo virtual em aberto (inúmeras pessoas interagindo simultaneamente, como ocorre nos grupos do WhatsApp), bate-papo virtual reservado (chat), como acontece no Messenger, do Facebook); bate-papo agendado (ICQ), algumas universidades utilizam esse recurso para o ensino à distância; aula virtual (interações com número limitado de alunos tanto no formato de e-mail ou de arquivos hipertextuais com tema definido em contatos geralmente assíncronos; bate-papo educacional (interações síncronas no estilo dos chats com finalidade educacional, geralmente para tirar dúvidas, dar atendimento pessoal ou em grupo e com temas prévios); lista de discussão e fórum. Entre os mais praticados pelos jovens estão os e-mails, bate-papos virtuais e fóruns. Em todos esses gêneros a comunicação se dá pela linguagem escrita, vemos assim que é fundamental aproveitarmos esse recurso como auxiliar na formação do leitor e também na aula de literatura. O professor e os gêneros digitais Todos esses gêneros podem ser utilizados pelo professor como apoio para o ensino de literatura, podem-se criar perfis de personagens como Capitu, de Machado de Assis, o discente teria uma interação com a personalidade virtual (o professor responderia às mensagens); pequenas encenações ou fragmentos de textos literários podem ser publicados em um blog e discutidos em um fórum; entre outras estratégias que insiram a literatura no cotidiano discente. Essa nova interação com o texto literário que a internet pode proporcionar é recurso eficiente para o letramento literário e para a formação do leitor, por proporcionar o contato com diversos gêneros: digitais ou não. Sendo eficiente, ela, entretanto, exige um professor que não se limite ao livro didático ou aos clássicos, mas que se aproprie do conhecimento acerca desses novos gêneros e os insira em sua prática. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 37 Para Pinheiro (2010), o professor precisa compreender que o estudante de hoje possui uma lógica de raciocínio e atenção utilizada em várias atividades simultâneas, as tecnologias proporcionam isso. O professor deve entender a realidade do discente enxergando as coisas sob a perspectiva dele, caso contrário assumirá uma posição desfavorável em sala de aula e isso poderá tornar o ensino ineficaz. Se os gêneros digitais que a Internet proporciona são parte do cotidiano do aluno, o professor precisa inseri-lo em sua prática como um elemento que proporcione a aprendizagem e aproxime a literatura de seus discentes. O professor de literatura não será mais um mero transmissor de conhecimentos, mas será um facilitador do letramento literário. O professor se transforma agora no estimulador da curiosidade do aluno por querer conhecer, por pesquisar, por buscar a informação mais relevante. Num segundo momento, coordena o processo de apresentação dos resultados pelos alunos. Depois, questiona alguns dos dados apresentados, contextualiza os resultados, os adapta à realidade dos alunos, questiona os dados apresentados. Transforma informação em conhecimento e conhecimento em saber, em vida, em sabedoria. (VIEIRA, 2012, p. 6). Não apenas a leitura, mas a escrita será desenvolvida com a inserção dos gêneros digitais na prática docente. Vemos em Marcuschi (2004) que a escrita tem fundamental papel na construção dos gêneros digitais e que nestes há uma interação real. Pensemos nos fóruns de discussão das redes sociais, em especial o Facebook, amplamente utilizado pelos adolescentes. Eles podem constituir um bom recurso didático para a formação do leitor. Nesses fóruns, o participante expõe suas opiniões sobre dado tema e com isso põe em prática o que Bronckart denomina modalizações. Bronckart afirma que as modalizações têm “como finalidade geral traduzir, a partir de qualquer voz enunciativa, os diversos comentários ou avaliações formulados a respeito de alguns elementos do conteúdo temático”. (BRONCKART, 1999, p. 330) Portanto, as modalizações pertencem à dimensão configuracional do texto, contribuindo para o estabelecimento de sua coerência pragmática ou interativa e orientando o destinatário na interpretação de seu conteúdo temático. Existem quatro funções de modalização inspiradas na teoria dos três mundos de Habermas, são elas: Modalizações lógicas: avaliação de alguns elementos do conteúdo temático apoiada em critérios elaborados e organizados a partir do mundo objetivo; Nas fronteiras da linguagem ǀ 38 Modalizações deônticas: avaliação de alguns elementos do conteúdo temático apoiada em valores, opiniões e regras do mundo social; Modalizações apreciativas: avaliação de alguns aspectos do conteúdo temático, apoiada em critérios provenientes do mundo subjetivo; Modalizações pragmáticas: explicitação de alguns aspectos da responsabilidade de uma entidade constitutiva do conteúdo temático (o narrador, por exemplo). As modalizações relacionam-se ao gênero a que pertence o texto. É, pois, importante estudarmos a teoria de Bronckart a fim de que possamos considerar a inserção de variados gêneros na relação didática uma necessidade para que o aluno conheça as várias possibilidades de expressão de uma mesma ideia, tornando-se, portanto, um leitor completo, que reconheça os gêneros e interprete o mundo. Observa-se que as TIC proporcionam ao jovem um amplo contato com a escrita e a leitura, sendo aliadas para a formação do leitor, Chartier faz importante afirmação em A aventura do livro: do leitor ao navegador: Aqueles que são considerados não-leitores, leem, mas leem coisa diferente daquilo que o cânone escolar define como uma leitura legítima. O problema não é tanto o de considerar não-leituras estas leituras selvagens que se ligam a objetos escritos de fraca legitimidade cultural, mas é o de tentar apoiar-se sobre essas práticas incontroladas e disseminadas para conduzir esses leitores, pela escola mas também sem dúvida por múltiplas outras vias, a encontrar outras leituras. É preciso utilizar aquilo que a norma escolar rejeita como um suporte para dar acesso à leitura na sua plenitude, isto é, ao encontro de textos densos e mais capazes de transformar a visão do mundo, as maneiras de sentir e pensar. (CHARTIER, 1998, p. 103-104) Considerações finais Como educadores, devemos nos despir dos preconceitos e do lugar comum que diz: as TIC são um problema, que distanciam o jovem da leitura e vestir a idéia de que elas podem constituir um aliado na construção do conhecimento. Para ser esse professor que não se veste de preconceitos, mas utiliza os novos recursos como aliados, é necessário qualificar-se, conhecer as redes sociais, os gêneros digitais da internet e familiarizar-se com essa nova linguagem. É necessário mergulhar no mundo dos adolescentes, conhecer suas leituras, aquilo que faz sucesso entre eles. É fundamental estudar com profundidade as obras que serão trabalhadas para que se possa aproximá-la do aluno: seja criando um perfil de personagens nas redes sociais, seja construindo um site, seja num fórum ou em um bate-papo. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 39 Para isso, as políticas públicas precisam voltar-se à formação e atualização de professores, de forma que a tecnologia seja de fato incorporada ao currículo escolar, e não vista apenas como um acessório marginal. É preciso pensar em como incorporá-la ao cotidiano da educação de forma definitiva. Podemos afirmar, portanto, que as TIC são importante recurso para a introdução de inúmeros gêneros textuais na sala de aula, garantindo a diversidade necessária para a formação de um leitor completo e crítico, para a consolidação do gosto pela leitura e para o letramento literário tão desejado por docentes em seus planejamentos. Referências AZEVEDO, A. Lira dos Vinte Anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. BAKHTIN, M. A. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BRONCKART, J.P. Atividade de linguagem, textos e discursos: Por um interacionismo sócio-discursivo. Tradução Anna Rachel Machado. São Paulo: EDUC, 1999. CHARTIER, Roger. A aventura do livro. Do leitor ao navegador. São Paulo, SP: Unesp, 1998. MARCUSCHI, L. A. & XAVIER, A. C. Hipertexto e Generos Digitais: novas formas de construção de sentido. Rio de Janeiro. Lucerna, 2004. MARCUSCHI, L. A. Gêneros Textuais Emergentes no Contexto da Tecnologia Digital. Texto da Conferência pronunciada na 50ª Reunião do GEL – Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo, USP, São Paulo, 2002. PINHEIRO, P. P. Direito Digital. 4ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da Educação e do desporto do Brasil. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. Brasília: Autor, 1997. TODOROV, T. Os Gêneros do Discurso. Coleção: SIGNOS. Edições 70, 1981. VIEIRA, M. M. Educação e novas tecnologias: O papel do professor nesse novo cenário de inovações. http://eduemojs.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/14359/8641 (Acessível em 08 de junho de 2014). Nas fronteiras da linguagem ǀ 40 ESTUDO DELEUZIANO DE LITERATURA CONTEMPORÂNEA: LITERATURA MENOR E AGENCIAMENTO EM ANTÓNIO LOBO ANTUNES E FERRÉZ [Voltar para Sumário] Adriano Carlos Moura (IFF) Introdução A literatura contemporânea tem-nos apresentado grandes desafios sob a perspectiva crítica, teórica e cultural. A ausência de modelos predefinidos, a democratização dos meios de produção, criação e circulação de obras contribuíram para que a literatura passasse a não ser mais privilégio de uma elite “letrada” e abastada, e se consolidasse também como uma “tarefa do povo”, que não autor/produtor/enunciador. atua apenas Apesar de como não receptor/leitor, serem mas fenômenos também exclusivos como da contemporaneidade, registros coloquiais, regionais e informais, ou seja, uma linguagem não canônica, se intensificaram nesse período. O “povo” deixou de ser apenas personagem ou leitor e assumiu a tarefa da autoria. Este trabalho visa a um estudo de romances de dois autores contemporâneos da literatura brasileira e portuguesa: Meu nome é legião de António Lobo Antunes e Capão pecado de Ferréz . Ambos tratam de personagens excluídos social e economicamente. No entanto, a linguagem do primeiro pauta-se pelo português lusitano legitimado pelo cânone linguístico e crítico e por uma narrativa fragmentada pelo discurso de vários narradorespersonagens. O segundo, pelo português falado na periferia de São Paulo, estado situado num país que viveu como “periferia” portuguesa durante quase quatro séculos. Por meio dos conceitos de “Literatura menor” e “Agenciamento” dos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, pretende-se refletir sobre os processos criativos e composicionais das obras que compõem o corpus do trabalho, bem como possíveis problemas imbricados na recepção pelo leitor e pela crítica. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 41 Antes de iniciar o estudo das obras a que se refere o parágrafo o anterior, faz-se necessário uma exposição dos conceitos nos quais este trabalho se respalda. Em Kafka por uma literatura menor, escrevem os filósofos: “Literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior” (DELEUZE e GUATTARI, 2014, p.35). O conceito de “Literatura menor” de Deleuze e Guattari é elaborado a partir do estudo que os filósofos fazem da obra do escritor tcheco Franz Kafka, judeu e alemão, morando em Praga, onde o alemão era uma língua “desterritorializada”, própria à utilização por “minorias” como ciganos e judeus. Como afirmam os autores, algo parecido com o uso que os negros norte-americanos fazem do inglês. Pertencer a um grupo marginalizado e escrever numa língua dominante talvez seja a principal característica desse tipo de literatura. No caso de Kafka, o alemão era uma língua dominante, mas em Praga, não tão prestigiada quanto o tcheco. Imagina-se um escritor imigrante, radicado na França, escrevendo em outro idioma que não o francês, ou num francês “contaminado” pelas influências de seu idioma de origem. A “literatura menor” se caracteriza ainda pela ligação do individual ao coletivo conferindo um caráter político e revolucionário à literatura. Na literatura menor, o ambiente social não serve apenas de pano de fundo para as situações vividas pelo personagem, mas para conectá-lo à realidade de tantos outros num projeto de enunciação coletiva ou agenciamento coletivo de enunciação. Mas o que seria, então, um agenciamento na concepção deleuziana? Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos, um de conteúdo, outro de expressão. De um lado ele é agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; de outro, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados, transformações incorpóreas atribuindo-se aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical orientado, o agenciamento tem ao mesmo tempo lados territoriais ou reterritorializados, que o estabilizam, e pontas de desterritorialização que o impelem. (DELEUZE e GUATTARI, 2014, p.112) Como tipos territorializados de agenciamento há as instituições familiares, sociais, jurídicas, educacionais, religiosas. Em O vocabulário de Deleuze (online), François Zourabichvili escreve que os agenciamentos sociais são definidos por códigos preestabelecidos, mas que são frequentemente afetados pelas investidas das ações do indivíduo, que aí introduz sua pequena irregularidade, seja porque procede à elaboração involuntária e tateante de agenciamentos próprios que "decodificam" ou "fazem Nas fronteiras da linguagem ǀ 42 fugir" o agenciamento estratificado: esse é o pólo máquina abstrata (entre os quais é preciso incluir os agenciamentos artísticos). (ZOURABICHVILI, 2004, p.8) A literatura é uma máquina abstrata, porquanto se constitui pelos dois tipos de agenciamento: o de expressão (agenciamento coletivo de enunciação) e de conteúdo (agenciamento maquínico). Para Deleuze o agenciamento é o objeto por excelência do romance. Literatura menor e agenciamento em Capão pecado Na literatura menor, “tudo toma um valor coletivo” (DELEUZE e GUATTARI, 2014, p.37). Capão pecado é um livro que, por mais que seja assinado por um autor, Ferréz, trata-se do resultado de um projeto de enunciação coletiva, em que o português não canônico – a linguagem de jovens marginalizados da periferia de São Paulo – é o código linguístico utilizado para produção da obra. Parte dos enunciados que compõem o agenciamento maquínico de Capão pecado carrega a sintaxe e o léxico de um português bem diferente do escrito e falado nas academias e na maioria das obras consideradas canônicas. O português é a “língua maior” por meio da qual se expressam autor e personagens, mas uma língua maior que comporta inúmeras variantes. Ora, ocorre que uma língua de literatura menor desenvolve particularmente esses tensores ou esses intensivos. Wagenbach, nas belas páginas em que analisa o alemão de Praga influenciado pelo tcheco, cita como características: o uso incorreto de preposições; o abuso do pronominal; o emprego de verbos curingas ( DELEUZE e GUATTARI, 2014, p.46). Se ao analisar o alemão de Praga, o editor e escritor Klaus Wagenbach observa o hibridismo linguístico em sua composição, além das transgressões às normatizações gramaticais e sintáticas, o que o filósofo não escreveria sobre o português falado e escrito no Brasil. Afinal, como bem cantado na letra de Sem tradução do compositor Noel Rosa, “Tudo aquilo que o malandro pronuncia. Com voz macia é brasileiro, já passou de português”. O português brasileiro, além de suas raízes europeias, é fortemente afetado pelas línguas indígenas e africanas. Na fala do brasileiro, dificilmente escuta-se a utilização da ênclise. A próclise é a forma usual do pronome oblíquo na fala cotidiana, fenômeno já poeticamente abordado pelo escritor modernista Oswald de Andrade em seu conhecido poema Pronominais: “Dê-me um cigarro/Diz a gramática/Do professor e do aluno/E do mulato sabido/Mas o bom negro e o bom branco /Da Nação Brasileira/Dizem todos os dias/Deixa disso III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 43 camarada/Me dá um cigarro.” Além das misturas linguísticas e transgressões normativas, pode-se afirmar que as variantes resultantes de diferenças regionais, classes sociais e grupos culturais contribuem para uma formação ainda mais complexa do português falado e escrito no Brasil. No fragmento a seguir, transcrito de Capão Pecado, percebe-se o uso de palavrões, gírias resultantes de estrangeirismos, desobediência a normas básicas de concordância verbal, neologismos falados por jovens ativos nos movimentos de intervenção cultural e musical como o hip hop e o grafite. - É! O bar do Polícia é o point agora, cê tá ligado? Também, o lava-rápido lá de perto da igreja fechou; lá dava umas duas mil pessoas, mano. - O que pegava lá, Burgos, é que o som da equipe tinha uma puta qualidade, aqueles manos da Thalentos são foda, além do equipamento eles agitam o pessoal pra caramba. - É, pode crê, eu vim lá da Funchalense agora, tava tomando umas brejas lá, com os manos da Sabin. (FERRÉZ, 2013, p. 35) As intensidades e tensões no interior de uma língua são as possibilidades além dos limites da própria língua, suas potências sonoras, sintáticas e semânticas. O diálogo transcrito acima, entre os personagens Zeca e Burgos, é a expressão da realidade sociocultural desses personagens, moradores de Capão Redondo, um dos bairros mais pobres e violentos da periferia de São Paulo. Os dois se encontram em um bar movimentado (point), para tomar umas brejas (cervejas). Nesse bar, Zeca pensa em São Paulo, cidade cosmopolita, considerada uma das mais badaladas do mundo, e compara a vida dos playboys com a que ele tinha. No plano linguístico, o parágrafo seguinte apresenta um narrador heterodiegético cuja língua não parece ser a de seus personagens.“Rael abriu os olhos lentamente, o sol que entrava pelas frestas das tábuas irritava seus olhos, levantou e foi até a cozinha, onde sua mãe estava preparando café, ela lhe perguntou algo, mas ele não ouviu direito...” (FERRÉZ, 2013, p.36) Longe de buscar no narrador a pessoa do autor, porém não ignorando o fato de a língua utilizada por este refletir-se na daquele, observa-se um abismo linguístico entre narrador e personagens. Abismo semelhante ao do narrador de Vidas secas e o personagem Fabiano. O pouco domínio sobre a linguagem formal ou até mesmo sobre a linguagem de maneira geral talvez impossibilitasse o personagem Fabiano de narrar. Se Ferréz optasse por um narrador autodiegético e atribuísse a Rael, Zeca ou a Burgos essa função, todo o romance seria escrito com registro coloquial. Quantas pessoas hoje vivem em uma língua que não é a sua? Ou então não conhecem mesmo mais a sua, ou não ainda, e conhecem mal a língua maior de que são forçados a se servir? Problemas dos imigrados, e sobretudo de seus filhos. Problemas das minorias. Problema de uma literatura menor, mas também para nós todos: como arrancar de sua própria língua uma literatura menor, capaz de escavar a Nas fronteiras da linguagem ǀ 44 linguagem, e de fazê-la escoar seguindo uma linha revolucionária? (DELEUZE e GUATTARI, 2014, p.40) Por mais que o texto de Deleuze e Guattari discorra sobre a obra de Kafka e de uma realidade política, social e cultural bem diferente da de Ferréz, não é forçoso afirmar que os que escrevem em um português diferente do prestigiado pelos círculos acadêmicos são ainda classificados como uma literatura menor, não no sentido deleuziano do termo, mas “menor” no plano estético da linguagem por meio da qual se expressam. Não fazem literatura. Ou fazem o que se convencionou chamar de “literatura marginal”. O professor Napoleão Mendes de Almeida já havia afirmado que a literatura brasileira morrera com Machado de Assis em 1908, e que escritor é aquele que conhece o idioma, tem erudição e cultura. Certamente, o idioma de que fala Napoleão deveria ignorar as variantes regionais, sociais e culturais, limitando-se à norma padrão. De acordo com Marcos Bagno, em Preconceito linguístico, Napoleão se recusava a reconhecer Drummond como poeta por este ter, em seu poema No meio do caminho, usado o verbo ter em vez de haver. Portanto o preconceito de que trata o linguista em seu livro não se refere apenas aos usuários cotidianos da língua, mas também aos que pretendem usá-la com fim literário. O livro é comumente classificado como literatura marginal ou literatura de periferia. Segundo Deleuze e Guattari, os critérios para a definição de literatura marginal, popular ou proletária são muito difíceis e subjetivos enquanto não se passe pelo conceito mais objetivo que é o de literatura menor. Para os filósofos é “a possibilidade de instaurar de dentro um exercício menor de uma língua mesmo maior, que permite definir literatura popular ou marginal.” (DELEUZE E GUATTARI, 2014, p. 39). Mas marginal até quando? Nos anos 70, esse adjetivo era atribuído a uma literatura praticada por autores – a maioria poetas – cujos textos estavam à margem do projeto ideológico e financeiro do mercado editorial abalado pela censura da ditadura militar. Esses poetas apresentavam uma literatura com proposta estética inovadora não apenas sob o ponto de vista da linguagem, mas também pela forma de circulação. A literatura marginal composta por Ferréz está além disso, pois, diferente da produzida por escritores oriundos em sua maioria da classe média, as palavras que compõem a tessitura de Capão Pecado emergem de um conjunto de vozes também marginalizadas. As partes do romance são abertas por textos compostos por rappers amigos do autor. Estar à margem dos bens materiais e culturais, dentre eles a universidade, bibliotecas e livrarias é a realidade de moradores de bairros como Capão Redondo. Os produtos culturais III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 45 produzidos pelos moradores de regiões como essas são comumente recusados em ambientes onde impera a cultura considerada de bom gosto: a “literatura maior”. A que quando transgrede, apenas o faz no plano do conteúdo e da forma, porém linguisticamente se mantém espelho do seguimento social de onde surge e que dita os parâmetros do que pode ser considerado literatura, conceito frágil e até hoje objeto de acaloradas discussões em círculos acadêmicos. Meu nome é legião – romance o qual analisaremos adiante – também retrata a realidade de um grupo socialmente excluído, porém a língua falada por seus personagens e narradores não apresenta as variações e transgressões de Capão Pecado. Os marginalizados do romance de Antunes estão na capital da língua portuguesa – Lisboa –, sua sintaxe de concordância e de colocação, assim como seu léxico não têm a diversidade caracterizadora do texto que ecoa de personagens como Rael e Burgos do romance de Ferréz. O português ditado pelas gramáticas parece uma língua estrangeira para um número grande de brasileiros que vivem numa língua que não é sua , porque ignora seu jeito de falar e de se expressar. Fala oprimida dos que não têm acesso à cultura erudita e acadêmica das universidades ganha no livro de Ferréz uma postura opressora dos círculos que ignoram o terceiro mundismo linguístico dos moradores de áreas marginalizadas como Capão Redondo (SP). Para Deleuze e Guattari, o uso transgressor que escritores e outros artistas podem fazer da língua é uma saída para a linguagem, para a música, para a escrita. Esses autores devem servir-se do polilinguismo de sua língua (2014). Agenciamento e rizoma em Meu nome é legião Meu nome é legião, romance publicado em 2007 pelo escritor português António Lobo Antunes, conta a história de oito garotos entre 12 e 19 anos, que roubam dois carros e praticam crimes em um bairro afastado de Lisboa. Os três primeiros capítulos são narrados por Gusmão, policial em fim de carreira, como se fosse um relato policial. No entanto, outros personagens – que têm algum tipo de relação com os criminosos – assumem também o papel de narradores, e suas vozes se sobrepõem umas às outras transformando a narrativa num mosaico polifônico e rizomático. No começo do livro, tem-se a impressão de que Gusmão, metalinguisticamente, assumirá a função de autor. Chega-se a acreditar que o romance seguirá a forma de um relato policial e que o autor se valerá desse personagem para levar adiante seu projeto narrativo, apagando-se sob o simulacro do narrador, como faz Clarice Lispector com seu Rodrigo S.M. Nas fronteiras da linguagem ǀ 46 em A hora da estrela. Porém a palavra é tomada por uma prostituta de cinquenta anos que é amante de um dos garotos. E da prostituta a palavra é tomada pelo pai de outro menino e depois pela irmã e a mãe de outro. Em vários trechos do romance não se sabe exatamente a quem pertence os enunciados, pois o discurso de cada narrador é entrecortado pelas vozes e discursos de outros micronarradores que emergem de suas lembranças, presentificando-se na narrativa tal qual fantasmas, dificultando ao leitor, a identificação do narrador/autor que as fez emergir. Dessa forma, por meio dos personagens, não se consegue facilmente buscar o narrador que media seus discursos. Se Gusmão redige o inquérito policial, ele é o autor ficcional deste texto. Porém o narrador faz a seguinte revelação a seu leitor: desde que comecei a escrever se é que pode chamar-se escrever ao que faço, já garanti ser uma voz que dita umas ocasiões tão depressa que não a acompanho e outras silencio horas a fio e eu de bico no papel” (ANTUNES, 2007, p.122). Talvez, neste ponto, personagem/narrador tangencie o escritor, que também afirma não ser o autor do que escreve atribuindo isso a uma voz desconhecida. A Lisboa retratada em Meu nome é legião é uma capital de imigrantes africanos e mestiços, que sofrem com o racismo e a discriminação. Sem panfleto, Lobo Antunes, ou a voz a que narrador/personagem/ autor se refere, por meio de arranjos poéticos como “os mestiços não choram porque o mecanismo das lágrimas não nasceu com eles que vantagem, dividem tripas no seu idioma de consoantes compridas”, denuncia como vive a população pobre e periférica da capital portuguesa. Meu nome é legião é o agenciamento por excelência. Não narrador, mas uma multiplicidade deles, com vozes que se entrecruzam, se complementam, se contradizem ou se repetem para contar a história dos garotos delinquentes e de seus crimes. Enunciados que agem uns sobre os outros, ou corpos que agem uns sobre os outros para ser mais preciso em terminologia deleuze-guattariana, peças da grande máquina que é o romance, cujas engrenagem são, além dos personagens-narradores, seu autor, Lisboa, os problemas dos imigrantes e miseráveis lisboetas. Para Deleuze e Guattari “a enunciação literária a mais individual é um caso particular de enunciação coletiva” (DELEUZE e GUATTARI, p. 152). Afirmar-se não ser ele o autor do romance, mas que este resulta de vozes que lhe ditam o que escreve, coloca Lobo Antunes na posição de um autor que se assume como parte de um agenciamento coletivo de enunciação e não como senhor dos enunciados; ao ponto de o livro parecer um ser autônomo. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 47 Mesmo aquele que tem a infelicidade de nascer no país de uma grande literatura deve escrever em sua língua como um judeu tcheco escreve em alemão, ou como um uzbeque escreve em russo. Escrever como um cachorro que faz seu buraco, um rato que faz sua toca. (Ibdem) Assim é a escrita de Lobo Antunes, como a de um cachorro que cava seu buraco, nos quais insere suas construções metafóricas e sintáticas inovadoras. Os enunciados do romance em inúmeros trechos não se completam, porque o diálogo entre os personagens é sempre entrecortado por lembranças, anacolutos, frases incompletas, dificuldades com a linguagem e com a comunicação. Ler Meu nome é legião é como estar em uma sala com mais de dez pessoas falando ao mesmo tempo. São outras vozes que oiço, finados de antes do meu nascimento num português de pretos porque somos pretos e não temos um lugar que nos aceite salvo figueiras bravas e espinhos, se contasse das vozes ao meu marido por mais que se inclinasse para o chão (e inclinar-se-ia para o chão coitado). Não entendia senão o vento nas ervas (ANTUNES, 2007, p. 153) No trecho acima, tem-se o depoimento da mãe de um dos garotos presos, moradora de um bairro de imigrantes e portugueses negros na periferia de Lisboa. Um bairro, assim como Capão Redondo, abandonado pelas políticas do Estado e vítima da violência policial. O que aproxima o texto de Antunes do conceito de “Literatura menor” é o fato de o autor permitir que seus personagens falem sem mediações, criando com isso uma língua totalmente agramatical e assintática. Conteúdo e expressão são determinados sempre de forma inovadora, já que a possibilidade de criar enunciados novos é uma característica da literatura menor. No caso de Antunes, feito numa “língua maior” sem a diversidade linguística de Capão pecado. Para Lobo Antunes, cada livro representa uma experiência nova com a escrita, perseguindo formas e expressões diferentes ou aprofundando experiências de obras anteriores. Segundo Deleuze, em Crítica e Clínica “A literatura está antes do lado do informe, ou inacabamento (...) Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se (...)”(DELEUZE, 2011, p. 11) Quanto à recepção, Meu nome é legião não deve gerar rejeição no leitor brasileiro por utilizar uma língua considerada vulgar por uma elite letrada (no trecho transcrito, há inclusive uma construção mesoclítica). Para o leitor mediano, talvez pelo português com construções comuns à sintaxe e semântica lusitanas. A todo um conjunto de leitores, independente do grau de iniciação à leitura ou à Literatura, o romance apresenta grandes desafios devido a sua elaboração formal, constituída de rizomas narrativos. Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari postulam que um rizoma conecta “cadeias semióticas, organização de poder, ocorrências que Nas fronteiras da linguagem ǀ 48 remetem às artes, às ciências, às lutas sociais.” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.15). Os agenciamentos do romance produzem uma obra rizomática cuja leitura implica a disposição do leitor para se aventurar numa selva sem trilhas, para atuar como um cartógrafo, traçando linhas de leitura e conectando discursos e signos para que a leitura e a compreensão do texto sejam possíveis. Considerações finais Tanto Meu nome é legião quanto Capão pecado apresentam traços característicos do que se conceitua como agenciamento e literatura menor. Para Deleuze, o verdadeiro filósofo é o que inventa conceitos e essa é uma das funções da filosofia. Os conceitos criados pela filosofia valem pela possibilidade de serem aplicados, adaptados e relidos em situações diferentes daquelas em que se originaram. A filosofia de Deleuze e Guattari, por seu caráter transgressor, assim como é a literatura de Lobo Antunes e Ferréz, permite a análise dessas duas obras que, independentemente dos critérios de gosto ou das definições do que é ou não é literatura, apresentam desafios para leitores, professores e críticos: o desafio de ler e analisar obras cujos procedimentos de composição e expressão são resultado das experiências sociais, políticas, culturais e estéticas de autores cuja escrita assim como a vida é um devir, uma atividade inacabada, sujeita a mudanças e que não se rende ao ditames das instituições. O enunciado se faz de acordo com determinadas regras e faz parte do que os filósofos chamam de máquina. Os agenciamentos sociais (família, universidade, religião, empresa, etc.) são totalmente territorializados. Uma literatura considerada menor será sempre a de uma língua desterritorializada, uma literatura onde o interesse individual está ligado ao “imediatopolítico” e o agenciamento de enunciação será sempre coletivo. É o que fizeram António Lobo Antunes e Ferréz nos romances objetos deste estudo. Referências ANTUNES, António Lobo. Meu nome é legião. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. 55ª ed. São Paulo: Edições Loyola 2013. DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Tradução: Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2011. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 49 DELEUZE e GUATTARI. Kafka:por uma literatura menor. 2ª ed. Tradução: Cintia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. FERRÉZ. Capão Pecado. 1ª ed. São Paulo: Planeta, 2013. ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Em www.claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/agenciamento-deleuze. Acesso em 20 de abril de 2015. Nas fronteiras da linguagem ǀ 50 O FILME DENTRO DO FILME. TEATRO, TV E CINEMA: UM ESTUDO SOBRE A METALINGUAGEM EM “LISBELA E O PRISIONEIRO”, DE OSMAN LINS [Voltar para Sumário] Adriano Siqueira Ramalho Portela 1 Osman Lins Nascido em Vitória de Santo Antão, zona da mata pernambucana, Osman Lins é autor de peças de teatro, contos, romances e ensaios. O romance “Avalovara” 2 (1973) é considerado pelos pesquisadores e por seus leitores como a sua obra prima. Já no final da vida, o vitoriense chegou a escrever direto para a mídia televisão, resultante dos “Casos Especiais” 3, programa transmitido em 1978 pela Rede Globo. As narrativas foram: “A Ilha no Espaço”, “Quem era Shirley Temple?” e “Marcha Fúnebre”. Depois vieram as adaptações; em 1981 a TV Cultura exibiu “O Fiel e a Pedra” 4; Em 1993, a peça “Lisbela e o Prisioneiro” – corpus do nosso estudo -, foi levada para a TV. Lisbela e o Prisioneiro A peça foi encenada pela primeira vez em 1961, no teatro Mesbla do Rio de Janeiro, pela Companhia Tonia-Celi-Autran. O enredo se passa na cadeia pública de Vitória de Santo Antão. Lisbela é filha do delegado, o Tenente Guedes, e noiva do advogado Noêmio. A jovem se interessa por Leléu, uma mistura de conquistador com artista de circo. Na trama outros personagens também ganham destaque, são eles: o soldado, corneteiro e apaixonado por fitas Jornalista. Mestrando em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. O livro intercala oito narrativas que permeiam tempos e espaços distintos, tendo como ponto de partida uma espiral e um quadrado. 3 A série de programas fez parte da programação da Rede Globo entre 10 de setembro de 1971 e 5 de dezembro de 1995. No total foram 172 episódios. Diversos autores foram adaptados, como Machado de Assis, Graciliano Ramos e Jorge Amado. 4 O romance foi adaptado por Jorge Andrade. 1 2 III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 51 de vídeo, Jaborandi5; o soldado Juvenal, o cabo Heliodor, o carcereiro Citonho, os presos Testa-Seca e Paraíba, o vendedor de pássaros e amante da mulher de Raimundinho; e o matador Frederido Evandro. O eixo central da peça está no triângulo amoroso entre Lisbela, Noêmio e Leléu; o conflito: Leléu é preso por tentar conquistar Lisbela e perseguido por ter se envolvido com a mulher do matador Evandro. Lisbela e o prisioneiro é peça indispensável no conjunto dramatúrgico Osman Lins. Escrita sob os cânones da tradição cômico-popular, confere espaço a essa faceta do autor, cujas obras apresentam, na maioria, forte tom dramático. (DIAS, 2011, p. 20). De acordo com Sandra Nitrini, o texto é uma comédia de caracteres e com uma estrutura tradicional, “com exposição, desenvolvimento, falso clímax, clímax, desfecho de situações vivenciadas por personagens nordestinos muito bem amarrados”. (NITRINI apud LINS, 2011, p. 113). Osman adaptado “Nem o produto nem o processo de adaptação existem num vácuo: eles pertencem a um contexto – um tempo, um lugar, uma sociedade cultural”. (HUTCHEON, 2013, p. 17). O cineasta pernambucano, Miguel Arraes de Alencar Filho6, é - podemos dizer -, quase um personagem de “Lisbela”. Guel Arraes, como é conhecido, é um profissional que se mostra interessado no cruzamento das linguagens. Em 1993 ele dirigiu uma série da Rede Globo, chamada “Terça Nobre”, onde os programas eram adaptações dos clássicos da literatura nacional. Uma delas foi, justamente, “Lisbela e o Prisioneiro”. Em 2000, Guel retomou o texto do vitoriense, só que dessa vez, a adaptação foi para o teatro, três anos mais tarde, os mesmos atores da peça seguiram com o diretor para o cinema. No roteiro, Arraes teve o suporte dos cineastas Jorge Furtado e Pedro Cardoso, na direção musical, a parceria foi com o pernambucano e também cineasta e dramaturgo João Falcão. O filme levou mais de três milhões de espectadores pagantes ao cinema, ocupando o sétimo lugar no ranking7. Isso remonta a reflexão de Virgínia Woolf, no livro Os filmes e a realidade: “O cinema tem ao seu 5 Na adaptação para o cinema, a personagem Lisbela é que é apaixonada por cinema. Cineasta e diretor de televisão. Filho do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes. Atualmente é diretor de programas de entretenimento da Rede Globo de Televisão. Ele também dirigiu “O auto da Compadecida” (1999); “Caramuru – A invenção do Brasil” (2000); “Romance” (2008); e “O bem amado” (2010). 7 Dados da Ancine referentes ao ano 2003 (www.ancine.gov.br). 6 Nas fronteiras da linguagem ǀ 52 alcance inúmeros símbolos para emoções que até hoje não encontramos expressão.” (1926, p. 309). Diretor e equipe demonstram prezar pelo quesito intertextualidade, e o filme nos traz um ícone em especial que finda por estabelecer o diálogo com o leitor e, posteriormente, com o espectador, é a metalinguagem. Tanto Osman como Guel se utilizam dessa ferramenta em seus trabalhos, tecendo um jogo de conhecimento e entretenimento. Metalinguagem “Metalinguagem é linguagem falando de linguagem” (1986, p. 32). Chalhub nos inicia muito bem no tema, reforçando que todo enunciado que se referir à língua, linguagem e termos relacionados é meditado metalinguístico, por exemplo: um filme que fala sobre filme, uma canção que aborda outra canção, uma peça teatral que retrate outra peça. Neste estudo vamos analisar as funções características do processo de comunicação com ênfase na função metalingüística da linguagem em “Lisbela e o Prisioneiro”. O ponto de partida é o texto original: Lapiau – Se me lembro? Ora se! Peça formidável era aquela: “Meu Único Progenitor”. Leléu – E “A Paixão de Cristo”, rapaz. Aquilo é que era uma peça. Quarenta e dois atos. Lapiau – Quarenta e seis. Jaborandi – Danou-se. Nem uma série. (LINS, 2011, p. 45) A primeira vista podemos até passar despercebido, mas parando para refletir, compreendemos que “Lisbela” é um texto literário teatral e que, especificamente na citação supracitada, está fazendo referência a outra peça de teatro. “Recentemente a especialização da arte levou os artistas a dialogarem não com a realidade aparente das coisas, mas com a realidade da própria imagem.” (SANT’ANNA, 1988, p. 8). Na TV e, no cinema, principalmente, o uso da metalinguagem é mais presente, tendo como alvo o envolvimento do espectador, despertando o seu interesse pela obra. Em “Lisbela e o Prisioneiro” a diegese8 – tanto no produto veiculado na TV como nas telonas -, se dá, diversas vezes, nos encontros dentro do cinema. É lá que eles assistem os filmes em preto e Segundo João Batista de Brito, diegese é compreendida como “todo o universo fictício, temporal e espacialmente concebido, manifestado ou implícito num filme; o que inclui, portanto, não só a sua narração, como também os seus aspectos descritivos, subtendidos ou não” (1995, p.204). 8 III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 53 branco, namoram, brigam, tentam se resolver, e também é o local onde acontece o desfecho da história. No episódio que foi ao ar na Rede Globo, Guel Arraes usou imagens do cinema mudo e de seriados de TV dos anos 50. Em uma das cenas o tenente Guedes entrega armas aos soldados com a finalidade deles capturarem Leléu, esse trecho é alternado com imagens do filme “Carlitos em Fuga”; e assim o diretor foi costurando o enredo e desenvolvendo seu processo criativo. Os experimentos que ocorreram na TV foram retomados e aprimorados para o cinema. A diferença é que, no caso do filme, ele não recorreu aos clássicos originais do cinema. Guel e equipe preferiram criar novas inserções, paródias cinematográficas, com atores diferentes do elenco, digamos assim, do filme principal, Lisbela e o Prisioneiro, o que fez surtir um efeito extremamente interessante de um filme dentro de outro filme. (FIGUÊIROA e FECHINE, 2008, p. 235). O diretor leva para a TV e para o cinema uma crítica aqueles que só enxergam o nordeste como uma terra seca e sem valor cultural, como um espaço sem cor, sem graça, onde nada pode acontecer; por meio do humor ele apresenta um nordeste colorido, um tanto surrealista, com permissividade para o teatral. Com essa releitura, o Nordeste passa a ser o espaço diegético texto-filme, onde Guel resulta por romper fronteiras quando passa a dialogar com a contemporaneidade, deixando suas personagens, mesmo estando na zona da mata, adeptas de características urbanas. No artefato metalinguagem, a crítica ganha corpo, mostrando que situações que acontecem lá fora, como nas tramas de Hollywood, podem ocorrer no Brasil, e porque não no nordeste. Arraes aproveita o humor crítico de Osman Lins e acrescenta seu arsenal de técnicas para mostrar o filme dentro do filme, unido o cômico à análise, provocando e, ao mesmo tempo, levando o distanciando entre espectador e objeto, “uma vez que a comicidade se dirige a inteligência pura, e a avaliação crítica é procedimento de um teatro épico consciente”. (BERGSON, 2004, p. 3). Na TV ele aproveita todos os espaços e chega a brincar com a “passagem de bloco”9. Na transição para o terceiro intervalo, por exemplo, surge a locução: “Não perca no próximo bloco. A moça que virou cobra, o valente que fez o diabo chocar um ovo, a mulher que deu à luz um satanás; e se for mentira, eu cegue.” (FIGUEIRÔA e FECHINE, 2008, p. 239). Com essa estratégia o diretor consegue prender a atenção do telespectador e fazer com que ele não disperse e espere a volta do break10. Percebemos que os códigos passam a se relacionar, e o 9 Usado em programas de televisão, novelas e minisséries, a passagem de bloco é um formato de arte usada para a transição entre o produto e o intervalo comercial. 10 Intervalo entre os programas de TV. Nas fronteiras da linguagem ǀ 54 off11 da passagem de bloco culmina por representar e informar que o próximo capítulo volta em breve, ou seja, é o signo como signo de alguma outra coisa. A metalinguagem é uma aposta antiga e que vem dando certo, a prova está em alguns clássicos, como: “Oito e Meia” (1963), dirigido por Fellini. A película conta a história do cineasta Guido Anselmi que está sem ideia para a realização do seu filme; ele acaba entrando em crise, é internado e passa a misturar ficção com realidade. Dez anos depois estreia “A Noite Americana”, de François Truffaut. O enredo mostra os bastidores de um set de filmagem e uma tamanha confusão envolvendo atores, dublês e o diretor. E para encerrar a nossa lista12, numa coincidência de intervalos de dez anos, o filme “Zelig” (1983), de Woody Allen. A obra é uma pseudo-documentário sobre Leonard Zelig, interpretado pelo próprio Allen. O protagonista costumava modificar a aparência para agradar quem se aproximava dele. Esses feitos, essa vontade de mostrar, de descodificar os signos calha com uma das teorias de Robert Stam, quando ele diz que “o cinema é em si é um instrumento filosófico, um gerador de conceitos que traduz o pensamento em termos áudio-visuais.” (2006, p. 25). Os números, já citados anteriormente, mostram que “Lisbela” fora um sucesso de bilheteria e isto vem provar que o filme conseguiu estabelecer uma identificação com o público; essa é uma das inúmeras possibilidades oferecidas pela metalinguagem. Ana Lúcia Andrade explica que ao longo da história do audiovisual, o cinema norte-americano percebeu o encanto que poderia exercer no público ao tratar a si mesmo na telona. Para atingir esse grau de cumplicidade com o público, o cinema primeiramente retratou seu próprio ritual, em um jogo de reconhecimento em que o espectador assistia ao que lhe era mais familiar até então, enquanto ia formando seu inventário imagético. (ANDRADE, 1999, p. 65). Em “Lisbela” essa empatia com o público vem estampada na primeira cena, onde a mocinha e Douglas13 estão no cinema. O espectador se identifica com o casal procurando o lugar certo para sentar, um local que não fique nem muito perto da tela nem muito longe e sim, com brechas para que possam ver bem. Lisbela mostra-se fascinada pelo mundo do cinema e vai contando para o noivo como procedem as cenas da comédia romântica que assistem; Douglas aparenta ter bem menos conhecimento em relação à sétima arte e está ali mesmo é para namorar. Quando a mocinha principia a contar as cenas, passa-se a ter uma 11 Voz do narrador usada para cobrir uma imagem. Lista com uma quantidade suficiente de filmes com a temática metalingüística está disponível em: <http://cinetoscopio.com.br/2013/06/20/11-filmes-de-metalinguagem-no-cinema/> 13 No texto original, Douglas é o advogado vegetariano, o Dr. Noêmio. 12 III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 55 interação com o espectador, o qual parece querer opinar, sugestionar. Ele acaba se encontrando “dentro da narrativa”. Lisbela – Eu adoro essa parte. A luz vai se apagando devagarzinho. O mundo lá fora vai se apagando devagarzinho. Os olhos da gente vão se abrindo. Daqui a pouco a gente não vai mais nem lembrar que tá aqui. Douglas – É preto no branco.14 A narração em off, usada no especial para TV é aproveitada no cinema. A voz narra trechos do filme em preto e branco, ao mesmo tempo atrelando aos momentos vividos por Leléu e Lisbela. Outros elementos compõem essa intercalada, por exemplo, quando o vilão Frederico Evandro aparece pela primeira vez, também aparece um vilão no filme que o casal está assistindo; em seguida a narração volta e o processo metalinguístico continua. Em uma das cenas, Frederico, ao chegar a casa, flagra sua mulher Inaura na cama com Leléu; revoltado ele sai atirando e correndo para pegar o Dom Juan nordestino. No cinema o casal vê o mocinho sendo perseguido pelo bandido. Entra o off: “Será que nosso herói vai partir para o beleléu? Não perca no próximo episódio: as aventuras de um herói sabido contra o corno matador”. (Transcrição do filme). Os enredos vão se cruzando, é como se a história que eles assistem no cinema, fosse igualmente acontecendo na cidade onde estão. Existem momentos em que a metalinguagem acontece em níveis variados, em uma delas Lisbela está sozinha dentro do cinema, quando Leléu aparece; os dois, além de estarem vivendo algo semelhante ao que acontece na película projetada, começam a conversar sobre cinema e o contexto do diálogo se realiza na telona; quando eles estão falando sobre história de amor, ao fundo o casal do filme vive momentos felizes. Leléu – a senhora tem vontade de ser artista de cinema, é? Lisbela – E meu filho, eu não sou nem americana pra ser artista. Leléu – Minha filha, nunca ouviu falar em artista nacional, não? Lisbela – Uma história de amor bonita mesmo, só nesses filmes. Leléu – É? Quando a mocinha é nacional é bom que o beijo já vem traduzido. Lisbela – Deixa de ser besta que eu não lhe dei essa ousadia. (Transcrição do filme Lisbela e o Prisioneiro). Perto do desfecho da obra, a metalinguagem se repete. Lisbela havia terminado o relacionamento com Douglas e estava no cinema esperando por Leléu. O “herói” chega ao final do filme que a mocinha estava assistindo. Percebendo algo de estranho, ela antecipa a sua fala: 14 Transcrição do filme “Lisbela e o Prisioneiro”. Transcrição nossa. Nas fronteiras da linguagem ǀ 56 “Veio dizer que vai embora. É igualzinho no cinema. A mocinha está ansiosa esperando o mocinho e finalmente eles se reencontram. Ele vem se aproximando e ela acha que é para dar um beijo. Mas aí ela vê que o rosto dele está preocupado demais para isso.” (Transcrição do filme Lisbela e o Prisioneiro). Até na cena da cadeia o diálogo metalinguístico é desenvolvido. Depois do beijo, Leléu questiona se aquele fora o beijo do casamento, ela nega e diz que foi o da despedida; o herói pergunta se ela não sabe que todo filme de amor se acaba em beijo. “Sei. Mas já acabou a luz do cinema. E agora vai começar a minha vida”. (Transcrição). No desenlace da história, quando Leléu e Lisbela estão no caminhão, o diretor reforça ainda mais suas técnicas e coloca de vez o espectador na história. Lisbela – Mas agora eu me sinto num filme de verdade. Leléu – É? Lisbela e o Prisioneiro. O nosso filme nunca vai ter fim. Lisbela – Espera um pouquinho. Leléu – Que foi? Lisbela – É que o melhor do cinema é o jeito como termina. Leléu – E como é isso, heim? Lisbela – Adivinha? Leléu – Com todo mundo olhando. Lisbela – É só no começo. Depois o filme acaba. Leléu – Então tá bom da gente se apressar, porque o povo já entendeu que ta acabando e é capaz de começar a sair sem prestar mais atenção na gente. Lisbela (olhando para câmera) – Mas talvez nessa sala tenha pelo menos um casal apaixonado que vai assisitir até o finalzinho. E mesmo depois que o filme acabar, eles vão ficar parados um tempão até o cinema esvaziar todinho. E aí vão se mexendo devagar como se estivessem acordando depois de sonhar com a história da gente. Leléu – tomara que eles tenham gostado. Após o beijo, o cenário passa a ser a sala de cinema e na tela surgem Leléu e Lisbela, entra lettering:15 “Fim”; as pessoas vão saindo até sobrar um casal na sala. Os dois são os últimos a sair, são eles, justamente, Leléu e Lisbela. Guel, por fim, acaba conseguindo a identificação ainda maior de um público em particular, os casais apaixonados que frequentam o cinema. E para fechar com ainda mais elementos metalinguísticos, João Falcão utiliza uma música de sua autoria junto com André Moraes e gravada pela banda Cordel do Fogo Encantado16. O amor é filme. Eu sei pelo cheiro de menta e pipoca que dá quando a gente ama. Eu sei porque eu sei muito bem como a cor da manhã fica. Da felicidade, da dúvida, da dor de barriga. É drama, aventura, mentira, comédia romântica.17 15 Texto que surge na tela. Foi um grupo musical brasileiro fundado na cidade de Arcoverde, Pernambuco. 17 O amor é filme. Disponível em: <http://letras.mus.br/lirinha/238132/> 16 III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 57 Para Betton18, a música é uma atividade importantíssima no cinema, ela consegue unir funções estéticas e psicológicas, aumentando a capacidade expressiva do filme, criando coques afetivos que exaltam a afetividade. Conclusão Podemos, se não for ousadia da nossa parte, ultimar que a própria obra “Lisbela e o Prisioneiro” - seja ela peça de teatro, especial para TV ou cinema -, é, por si só, metalinguística. Falar em “Lisbela” é se reportar, automaticamente, a uma linguagem discorrendo sobre outra linguagem. Osman, no livro Guerra Sem Testemunhas, em suas indagações em relação à Indústria Cultural questionou: “poderá um romancista, um poeta, levar-lhes contribuições, não porém a eles aderir, abandonando o livro.” (LINS, 1978, p. 5). Talvez o nosso escritor tenha morrido sem a conclusão para a sua reflexão; mas, o fato é que, sem abandonar o texto original, “Lisbela” invade a Indústria, aproveita todas as oportunidades, e contribui para os processos da literatura, do teatro, do cinema e das pesquisas acadêmicas, tornando este artigo, quem sabe, em um possível documento metalinguístico. E como num palimpsesto, cada um vai escrevendo a sua “Lisbela e o Prisioneiro”. Referências ANDRADE, Ana Lúcia. O filme dentro do filme: a metalinguagem no cinema. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. BRITO, J. B. D. Imagens Amadas: ensaios de Crítica e teoria do cinema. São Paulo: Ateliê Editorial, 1995. CHALHUB, Samira. A metalinguagem. São Paulo: Ática, 2005. BERGSON, Henri. O riso. São Paulo: Martins Fontes, 2004. BETTON, G. Estética do Cinema. Tradução: Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1987. FALCÃO, João e MORAES, André. O amor é <http://letras.mus.br/lirinha/238132/> . Acesso em: 18 jun. 2011. filme. Disponível em: FIGUEIRÔA, Alexandre; FECHINE, Yvana. Guel Arraes: um inventor no audiovisual brasileiro. Recife: CEPE, 2008. 18 BETTON, G. Estética do Cinema. Nas fronteiras da linguagem ǀ 58 HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução: André Cechinel, 2º ed. Florianópolis: UFSC, 2013. LINS, Osman. Guerra Sem Testemunha. São Paulo: Martins, 1969. LINS, Osman. Lisbela e o Prisioneiro. São Paulo: Planeta, 2011. LISBELA e o prisioneiro. Direção de Guel Arraes. Rio de Janeiro. Globo Filmes, 2003. DVD: son., color. SANT’ANNA, A. R. d. Paródia e Paráfrase & Cia. 3 ed. São Paulo: Ática, 1988 (Série Princípios; 1) STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade. New York WOOLF, Virgínia. The movies and reality. New Republic, 1926. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 59 MUXE MARAVILHA E MULHER DEPOIS: DA GRAPHIC NOVEL À POESIA, IDENTIDADE DE GÊNERO EM ANGÉLICA FREITAS [Voltar para Sumário] Ágatha Costa Salcedo (UFAL) Por compreender que o ser humano (seja ele artista ou não) é pertencente à cultura de seu tempo e espaço, acho por bem ressaltar que a poesia de Angélica Freitas é marcada pelo contexto em que a poeta está inscrita, não no sentido determinista, mas na compreensão de que sua poesia traz em si a marca da existência no conturbado mundo contemporâneo (séc. XXI). Sua produção literária é composta por dois livros de poesia – Rilke shake e Um útero é do tamanho de um punho, publicados em 2007 e 2012, respectivamente – e Guadalupe – graphic novel publicada em 2012, em que assina o roteiro e o cartunista Odyr é responsável pelas ilustrações. Os temas abordados por Angélica Freitas são atuais, e se hoje encontram espaço de locução, devem em parte ao percurso traçado por tantas outras mulheres que inseriram suas personagens femininas e a representação (na literatura) das experiências e angústias vivenciadas por mulheres. Em “A ficção brasileira no horizonte pós-moderno: recusa e incorporação”, Tânia Pellegrini (2008) destaca que por volta dos anos de 1980 houve uma crescente presença de novas temáticas relacionadas às experiências vividas nas grandes cidades – naquele momento o tom de resistência à ditadura militar (1964-1985) havia iniciado seu processo de arrefecimento. A resistência à ditadura cede espaço à resistência a ideia hierárquica e ancestral balizada pelo discurso cristão, masculino e branco. Assim como surgiam novos movimentos sociais, pautados em bandeiras específicas (como a questão racial, a condição feminina, a homossexualidade e a religião), surgiam, na literatura, novas vozes que representavam espaços de locução para as novas formas de organização e pensamento. Angélica Freitas é considerada uma das vozes mais significativas do feminismo na literatura brasileira contemporânea, conseguindo aliar crítica à qualidade estética, não perdendo em forma ao abordar questões que dizem respeito às mulheres contemporâneas. Com traços típicos das produções pós-modernas, apresenta aos leitores e leitoras obras Nas fronteiras da linguagem ǀ 60 marcadas por uma ironia inteligente, imersas em referências e numa apropriação do popular que resultam na transmutação de seu contexto em parte integrante de sua produção literária. Este trabalho propõe um caminho interpretativo para a graphic novel Guadalupe e para o poema “mulher depois” (do livro Um útero é do tamanho de um punho), buscando investigar a maneira como Angélica Freitas imprimiu em sua obra seu posicionamento acerca da questão da identidade de gênero, seja em forma quanto em conteúdo. O feminismo atual não traz um consenso no que diz respeito a questão das mulheres transexuais1, bem como das travestis, alguns grupos que se reivindicam feministas afirmam que tais pessoas devem ser atreladas às questões LGBT’s, não às questões ditas femininas, enquanto outros grupos entendem que a identidade de gênero é essencial na compreensão do ser mulher, e que não é o fato de ter nascido com uma genitália “masculina” que impedirá que uma mulher trans2 se reconheça em sua identidade de gênero feminina e seja reconhecida pelas demais mulheres na luta contra uma sociedade heteronormativa, sexista e excludente. A medida em que constrói suas personagens femininas, Angélica Freitas desconstrói a ideia determinista que associa identidade de gênero ao sexo de nascimento. Esta ruptura é claramente percebida no poema “mulher depois”: queridos pai e mãe tô escrevendo da tailândia é um país fascinante tem até elefante e umas praias bem bacanas mas tô aqui por outras coisas embora adore fazer turismo pai, lembra quando você dizia que eu parecia uma guria e a mãe pedia: deixem disso? pois agora eu virei mulher me operei e virei mulher não precisa me aceitar não precisa nem me olhar mas agora eu sou mulher (FREITAS, 2012b, p.35) 1 A pessoa transexual é aquela que recorre à prática das transformações corporais para atender a seu desejo de viver e ser identificada como pessoa do sexo oposto ao seu sexo biológico. A transexualidade é, nesse sentido, uma condição sexual que, segundo a definição médica, é denominada é, nesse sentido, uma condição sexual que, segundo definição médica, é denominada de transexualismo, transtorno de identidade sexual ou de identidade de gênero (VENTURA, 2010,p.11). 2 A partir deste momento, utilizaremos o termo “mulher trans” para nos referirmos a mulheres transexuais. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 61 A autora se apropria de um tom epistolar, compondo seu poema a partir de fragmentos/desmembramentos de uma possível correspondência (um e-mail, talvez) enviada por uma mulher trans que acaba de fazer sua cirurgia de mudança de sexo em um dos países que são referência em cirurgias do tipo, a Tailândia. O título escolhido para o poema, “mulher depois”, indica o ponto de vista da autora, que reconhece a construção social das mulheres – relembrando a famosa frase de Simone de Beauvoir, que afirmou que “ninguém nasce mulher, mas torna-se mulher” – incluindo nesta construção as mudanças físicas (conseguidas por via cirúrgica) pelas quais uma mulher trans passa. A autora rompe com a ideia normativa vigente na sociedade brasileira: A concepção normativa expressa é que o normal é a coerência entre sexo-gênero, implícita a compreensão de sexo e gênero a partir de aspectos biológicos, e que quaisquer outras combinações que não sejam mulher/feminino, homem/masculino são patológicas. Esse sistema sexo/gênero, que se fundamenta em uma base biológica e na diferença sexual, estabelece, ainda, combinações entre seus elementos a partir da matriz binária heterossexual que determina a complementaridade “natural” dos sexos opostos e se converte em um sistema regulador da sexualidade dos sujeitos (VENTURA, 2010, p.13) Angélica Freitas assegura espaço de locução para esse grupo específico de mulheres, trazendo para o público o ponto de vista de pessoas que normalmente se encontram à margem na sociedade. Reconhecemos em seu poema um traço característico do Brasil, em que para que uma mulher trans seja reconhecida legalmente enquanto mulher, precisa ser diagnosticada como indivíduo portador de transtorno de identidade de gênero, ou seja, precisa ser catalogada enquanto “doente”, catalogação que permitirá passar por processos cirúrgicos, encarados por muitas dessas mulheres como uma necessidade para que se alcance o reconhecimento de sua identidade de gênero. Temos registrado o peso na normatividade, que encontra respaldo jurídico para impor padrões, que cataloga tudo que dela diverge como patológico, tornando-se apta a intervir, inclusive, na esfera privada dos indivíduos. “mulher depois” possui destinatários (pai e mãe, representação da família tradicional, base da sociedade atual), localização geográfica de quem o “escreve”, assim como traz memórias que não deixam dúvidas de que se trata de um indivíduo que viveu em conflito com a família (e a sociedade como um todo) por não corresponder ao comportamento esperado ao sexo de seu nascimento (masculino). Composto por três estrofes/momentos, a primeira com a ausência do eu lírico enquanto ser de ação, em que se enfatiza as belezas de um país distante, a segunda destinada a Nas fronteiras da linguagem ǀ 62 lembranças de opressão, em que a mulher trans surge como figura sem voz, oprimida pela figura paterna (representação do jugo patriarcal e normativo), e o terceiro momento, em que surge como única voz, afirmativa em sua identidade de gênero e condição feminina construída, vinculada a mudança de sexo. O verbo parecer (da segunda estrofe “parecia uma guria”), conjugado no pretérito imperfeito, é confrontado pelo verbo virar, conjugado no pretérito perfeito (indicando uma transformação finalizada, reforçada pelo verbo que o antecede, operar), seguido do afirmativo do verbo ser no tempo presente (“mas agora eu sou mulher”). Em Guadalupe (2012) temos uma personagem travesti, trata-se de Minerva, que no auge de sua carreira com drag queen se viu obrigada a abandonar a vida noturna na casa de shows Divina Perla para cuidar de sua sobrinha Guadalupe, criança de 10 anos abandonada pelos pais. A história se desenrola quase em sua totalidade durante o dia em que a protagonista, que dá nome a graphic novel, completa trinta anos, mesmo dia em que sua avó Elvira (mãe de Minerva) morre ao colidir sua moto com uma quitanda. Em um dos primeiros momentos, temos Guadalupe imersa em suas memórias infantis, como vemos abaixo: (FREITAS, 2012a) Temos o único momento em que Minerva faz uso de roupas e acessórios ditos masculinos, ao se preparar para pedir empréstimo no banco, com o intuito de garantir III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 63 estabilidade financeira, agora que se percebe responsável por uma criança. Ironicamente, o empréstimo é conseguido no momento em que o gerente do banco reconhece Minerva, tecendo-lhe elogios e desejando-lhe boa sorte na fase que estava por começar, a abertura de uma livraria (na qual tia e sobrinha trabalhariam juntas) Angélica Freitas trabalha, sutilmente, mais uma vez a desconstrução de ideias naturalizadas de funções socialmente atribuídas como sendo de responsabilidade do homem ou da mulher. Ao ser perguntada se passaria a ser a mãe da garota, Minerva demonstra que a forma como será chamada não restringirá ou modificará o cuidado a ser dispensado com a sobrinha, nem moldará suas ações. O nome escolhido para a personagem Minerva reforça a ideia desta enquanto representação da desconstrução do binário masculino/feminino, tendo em vista que a deusa romana que lhe inspirou o nome é conhecida tanto por estar relacionada a atividades tidas como femininas como com atividades tidas como masculinas. Guadalupe decide realizar o que havia prometido à avó, enterrá-la em sua terra natal, a cidade de Oaxaca. Guadalupe e Minerva fecham as portas da Minerva livros e seguem de furgão, da Cidade do México para Oaxaca, levando o corpo de Elvira. Inicia-se então uma espécie de roadmovie trapalhão e nonsense em que as personagens passam por um processo de autoconhecimento e tomam decisões sobre o caminho que darão as suas vidas após o término daquela missão. As lembranças de infância de Minerva ressurgem durante a viagem, em que alguns segredos são revelados, como a sexualidade de sua mãe: (FREITAS, 2012a) Elvira era lésbica, havia sido obrigada pela família a se casar, tratada como uma selvagem indomável surpreendentemente domada pelo jugo das relações matrimoniais. Na sequência acima temos a revelação, a foto de Juanita, seu grande amor. Minerva narra a vida em Oaxaca, e o machismo de seu pai que embora tivesse amantes não admitiu a descoberta do caso de Elvira com Juanita, chegando a agredir a esposa Nas fronteiras da linguagem ǀ 64 fisicamente. A figura paterna já se mostrara em seu machismo no momento em que descobriu que seu filho era gay. Em meio ao toda a confusão, Mãe e filhos fogem da cidade e vão para a capital do México. Assim como “mulher depois” faz referência à Tailândia, Guadalupe também não se passa no Brasil, é ambientado em terras mexicanas e se apropria de algo típico da cultura local para ampliar suas possibilidades de discussão de gênero. Traz para a trama a experiência das muxes, indivíduos (do sexo masculino) pertencentes comunidades de origem indígena (do México) que se vestem de mulheres e possuem liberdade para constituir família tanto com mulheres quanto com homens, além de transitarem pelos universos masculino e feminino. (FREITAS, 2012a) No meio da viagem, a dupla (sobrinha e tia) é ameaçada por forças do mal, representadas por um vilão inábil que tenta a todo custo roubar a alma de Elvira para leva-la a seu mestre. Esse vilão trapalhão mais parece uma releitura da personagem Malvado, do desenho animado Ursinhos carinhosos, que nunca lograva êxito em suas investidas e nem mesmo convencia o espectador de sua suposta maldade. É durante um embate entre o suposto ladrão de almas e a dupla Guadalupe e Minerva que a história das muxes serve de inspiração III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 65 para Angélica Freitas, que concede mais algumas pitadas de desconstrução a sua personagem travesti. Ao ingerir cogumelos mágicos, Minerva se torna a Muxe maravilha, heroína totalmente desvinculada dos padrões estéticos alardeados pelos quadrinhos de super-heróis, inclusive da mulher-maravilha, em quem também é ironicamente inspirada. Ao contrário da super-heroína de corpo exuberante, que mais parece ter sido desenhada para satisfazer fetiches de leitores, a Muxe maravilha de Angélica Freitas é composta por traços masculinos somados a5 trejeitos socialmente associados ao feminino, e que ao vencer o vilão trapalhão, permite que este fuja após entrega-la um espelho mágico que permite a quem se olhe nele enxergar seu próprio futuro. O espelho, objeto comumente associado às questões estéticas ou como símbolo da passagem do tempo (e sua irreversibilidade) nos corpos de homens e mulheres, associado quase sempre ao tempo que passou, na graphic novel surge como uma possibilidade de autoconhecimento e possibilidade de mudanças. A autora ao utilizar a simbologia do espelho, subverte-a, permitindo a suas personagens enxergar seus futuros vislumbrados a partir da ideia de permanência e estabilidade. Ao se ver vinte anos depois (imagem que não é mostrada ao leitor), Minerva decide mudar sua vida, o que se percebe com sua intenção de passar a loja de livros para Guadalupe, a quem presenteia com o espelho destacando a possibilidade de alterar o futuro a partir de ações. O objeto perde seu poder no momento em que Guadalupe resolve largar tudo e não voltar para Cidade do México. Ao fim da trama, Guadalupe está sozinha, e algum lugar do mundo, olhando o mar e jogando o espelho para longe. O ato de Minerva e Guadalupe, que ao enxergarem seus possíveis futuros resolvem colocar em práticas planos há muito guardados, e que após a constatação desta necessidade acham por bem se livrar do espelho, reforçam a ideia de que Angélica Freitas, enquanto poeta, reconhece a literatura como meio de afirmar tanto a construção do ser mulher como a necessidade de se construir o próprio destino. A liberdade feminina, e sua necessidade, é o tema central de Guadalupe, seja abordando a questão das travestis, seja tratando das decisões impostas pela idade e que requerem coragem, como Minerva com mais de 50 anos escolher recomeçar, ou Guadalupe, que aos trinta nos se nega a casar e permanecer trabalhando com o que abomina e vivendo numa cidade com a qual não se identifica, e como a de ambas em realizar o desejo de Elvira, de voltar para a terra da qual foi expulsa, e para os braços da mulher que amou . Nas fronteiras da linguagem ǀ 66 A maneira como Angélica Freitas une seu posicionamento político e o faz parte integrante de sua produção literária, reafirmam seu lugar enquanto voz feminina e feminista a literatura brasileira. Com isso ganham os leitores e leitoras, que em meio a tantas tentativas de invisibilização dos conflitos existentes na sociedade contemporânea podem ter diante de seus olhos uma obra literária que traz consigo o potencial reflexivo característico de uma obra de arte. Os formatos escolhidos pela autora (poesia e graphic novel) garantem, inclusive, que a discussão sobre liberdade feminina e identidade de gênero chegue a espaços antes deixados de lado por teóricas e artistas feministas. Referências BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Reato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011. EISNER, Will. Narrativas gráficas. Trad. Leandro Luigi Del Manto. São Paulo: Devir, 2005. FREITAS, Angélica. Guadalupe. São Paulo: Companhia das letras, 2012ª. ________. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012b. GENEST, Émile; FÈRON, José; DESMURGER, Marguerite. As mais belas lendas da mitologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. MAGALHÃES, Belmira. História e representação literária: um caminho percorrido. In: Revista Brasileira de Literatura Contemporânea. Rio de Janeiro: Abralic, 2002. PELLEGRINI, Tânia. Despropósitos: estudos de ficção brasileira contemporânea. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2008. TREVISAN, João. Devassos no paraíso. Rio de Janeiro: Record, 2011. VENTURA, Miriam. A transexualidade no tribunal: saúde e cidadania. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 67 DECORAR OU APRENDER NO PROCESSO ENSINOAPRENDIZAGEM [Voltar para Sumário] Alaíde Marie Correia Barros (IFAL - Campus Maceió) Nádia Mara da Silveira (IFAL - Campus Maceió) Introdução A memória é um recurso natural do ser humano, pois desde a infância informações são armazenadas, constituindo uma base de dados que compreende as experiências vividas pelo sujeito. Na verdade, tudo que nos é pouco significativo, que foi decorado, mas não necessariamente aprendido, pode vir a ser esquecido ou deixado de lado, porém, aquilo que nos é relevante, marcante, torna-se inesquecível, ou seja, é armazenado na nossa memória de longa duração. “A verdadeira essência da memória humana está no fato de os seres humanos serem capazes de lembrar ativamente com a ajuda de signos.” (VYGOTSKI, 1991, p. 58). Assim sendo, é notável que através das experiências cotidianas o ser humano pode evocar suas lembranças quando em contato com um signo. Dessa forma, pode se imaginar similares que não estão presentes e apenas remetem a um visualmente percebido ou em contato através de quaisquer sentidos. Isso demonstra a importância da memória em simples ações rotineiras. Interligando-se a memória, a linguagem torna possível o processamento de informações captadas pelo indivíduo através do local em que este se insere. Na sala de aula, há o constante estímulo para que inúmeros dados sejam captados pelos alunos e, posteriormente, sejam utilizados no decorrer das disciplinas e exames. No entanto, é preciso que demasiados assuntos sejam aprendidos e para isso, alguns alunos aplicam, algumas vezes com excesso, o uso da memorização, comumente conhecida pela gíria “decoreba”. No entanto, algumas disciplinas denominadas decorativas são de grande relevância para a compreensão de assuntos abordados diariamente, desta forma, o estudante pouco aproveita o conteúdo que lhe é apresentado, para posteriormente aplicá-lo, por acreditar que o Nas fronteiras da linguagem ǀ 68 sistema de notas pode avaliar o seu grau de conhecimento, quando este, na verdade, muitas vezes é superficial. A reprodução de um antigo método de aprendizagem como a memorização de conteúdo, que pouco dinamiza as formas de ensino, ocorre quando os professores não buscam modernizar e realizar interações com os novos recursos tecnológicos que podem ser desenvolvidos em sala de aula e melhorar o desempenho dos alunos. Porém, apesar da grande importância da condução do professor, cabe ao aluno estar ciente de que no processo de aprendizagem ele pode ser prejudicado, até mesmo futuramente, quando lhe for requerido informações das quais ele não consolidou. As escolas se apegam mais e mais obstinadamente à sua ideia equivocada de que a educação e ensino são processos industriais, a serem projetadas e planejadas em pequenos detalhes e então impostas em professores passivos e em seus ainda mais passivos estudantes. (HOLT, 1982, p.2).1 Tradução minha. Antigamente, a concepção que se tinha das escolas era muito rígida e, certamente, em gerações anteriores, os alunos precisavam, de acordo com os professores, lembrar-se de cada detalhe do conteúdo visto. Ainda que hoje essa rigidez tenha sido abolida das escolas brasileiras, muito ainda se é cobrado dos alunos uma vez que a ideia de conhecimento, para alguns professores, é a repetição de conteúdo para que se consiga um sucesso superficial. Uma das principais mudanças que a escola sofreu refere-se à participação do aluno em sala de aula uma vez que, na aprendizagem atual, o aluno é sujeito ativo, quando anteriormente era passivo, pois apenas recebia as informações do professor, sem contestá-las ou complementá-las. Contudo, infelizmente, o processo de aprendizagem não está totalmente alterado para a melhor compreensão e facilitação da aquisição de conhecimento, mantendo, ainda, a falsa ideia de que para aprender faz-se necessário a prática de memorizar, uma ideia popular entre diversos estudantes e também professores. E, para melhor compreensão e aprimoramento do processo de ensino-aprendizagem, é preciso entender como a memorização pode influenciar no aproveitamento escolar. Metodologia 1 The schools cling more and more stubbornly to their mistaken idea that education and teaching are industrial processes, to be designed and planned from above in the minutest detail and then imposed on passive teachers and their even more passive students. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 69 Desse modo, pretende-se, através de um estudo exploratório, que possibilita “ao investigador aumentar sua experiência em torno de determinado problema” (TRIVIÑOS, 1987, p. 109), investigar o fato de que apesar de hoje haver uma maior participação dos estudantes na construção do conteúdo trabalhado em sala de aula, já que os professores estão adquirindo novas metodologias, a fim de tornar seus alunos formadores de opiniões, capazes de construir ou participar ativamente do processo de aprendizagem, ainda existem educadores exigindo a decoração do conteúdo, como um recurso necessário para a promoção do aluno no seu processo de ensino e aprendizagem. Visa-se, portanto, verificar se a decoração de conteúdo gera aprendizagem nos alunos. Assim sendo, a fim de realizarmos este estudo exploratório, torna-se necessário um levantamento bibliográfico, que consiste, no “conjunto de materiais escritos/gravados, mecânica ou eletronicamente, que contém informações já elaboradas e publicadas por outros autores.” (SANTOS, 2002, p. 31). Contudo, salienta-se, ainda, que o presente trabalho se apoia na área da Linguística Aplicada, afinal, “Há uma preocupação cada vez maior em LA com a investigação de problemas de uso da linguagem em contextos de ação ou em contextos institucionais, ou seja, há um interesse pelo estudo das pessoas no mundo” (MOITA-LOPES, 1996, p. 123). Além do que, a Linguística Aplicada permite a integração com outras áreas, como por exemplo, a psicologia cognitiva, possibilitando um estudo sobre a decoração de conteúdo e sua relação com a aprendizagem. Discursão teórica Nas escolas é comum a prática de decorar entre os alunos, devido a constante cobrança com exames que, geralmente, ocorrem bimestralmente nos ensinos fundamental e médio, e ainda, principalmente, para ingressar na faculdade, através do ENEM. É fato que nenhum estudante conseguirá aplicar todos os assuntos vistos ao longo dos anos letivos, de todas as disciplinas requeridas, por isso o recuso mais comum para obter um desempenho satisfatório e uma nota dentro do padrão, é decorar fórmulas, assuntos e conceitos. Porém, questiona-se, até que ponto a avaliação poderá de fato medir o conhecimento de cada aluno se alguns arquivam temporariamente informações que acreditam ser dispensáveis depois de aplicadas em provas. Vários resquícios de antigas metodologias de ensino são perpetuados por alguns professores que permitem que o estudo adquira um caráter decorativo e cansativo. Não se Nas fronteiras da linguagem ǀ 70 tem, contudo, nenhum modo de classificar quais matérias deve ser ou não decoradas, ou de que forma esse método pode afetar o aprendizado do aluno e até quando pode favorecê-lo. Salienta-se que, a memória humana, tem a capacidade de adquirir, armazenar e recuperar as informações que são recebidas diariamente por meio dos sentidos, por isso é que podemos lembrar-nos de cheiros, faces, sequências numéricas e tantos outros dados que se pode obter tanto diariamente quanto ao longo da vida. A linguagem, segundo LINDZEY; HALL; THOMPSON (1977, p. 212) está ligada a memória, pois esta possibilita a aprendizagem e o armazenamento de sons, palavras frases e até mesmo da gramática. A percepção, que é definida como “processo de recepção, seleção, aquisição, transformação e organização das informações fornecidas através dos nossos sentidos.” (BARBER; LEGGE, 1976, p.11) é a primeira etapa para a consolidação da memória, que implica na seleção para o armazenamento de dados. Os especialistas acreditam que o hipocampo, juntamente com outra parte do cérebro chamada de córtex frontal, é responsável por analisar essas diversas entradas sensoriais e decidir se vale a pena lembrar-se delas. Se valerem a pena, elas podem se tornar parte de sua memória de longo prazo. (MOHS, 2010, p. 4). Deste modo, nem sempre pode se dizer que o cérebro armazena ou acessa tudo o que se é percebido, mas apenas o que ele seleciona para lembrar. Esse processo de seleção prévia é o que não nos permite lembrar todas as cenas de uma peça teatral, pois embora recebamos as informações através dos nossos sentidos, nem todas podem ser acessadas. Umas das divisões mais conhecidas são às memórias: primária e secundária, que são também denominadas de curto e longo prazo, respectivamente. Elas dão prosseguimento ao armazenamento sensorial, que faz uso da percepção, podendo ser visual, olfativa, tátil, gustativa ou auditiva. A memória primária possui a duração de alguns poucos segundos, faz contraste com a secundária devido a sua quantidade limitada de armazenamento. A transformação gradual da memória primária em secundária torna possível o acesso à informação por um tempo maior. Utilizando como exemplo um estudante que precisa armazenar rapidamente informações e faz diversas repetições para tentar consolidá-las: “O esquecimento instala-se infalivelmente se não se estuda regularmente: a memória não é um gravador.” (LIEURY, 2001, p.90). Desde modo, é natural a transformação da memória a curto para a de longo prazo, contudo não deve ser praticada a memorização excessiva como via de facilitação de estudo. Como apresenta Almeida (2002), a memorização pode ser usada como estratégia de estudo para que o estudante que possui dificuldade em lembrar-se de um assunto possa III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 71 organizá-lo e, por meio de pistas, acessá-los quando precisar. Desta forma, a memorização é vista como ajuda, não atrapalhará no decorrer do processo de ensino. A consolidação da memória sucede a aquisição delas, quando isso ocorre a informação é estabilizada. De acordo com a ocasião, alguns dados são mais suscetíveis a serem armazenados. As informações que são captadas ao longo da vida ficam armazenadas na memória, podem ser acessadas por estarem possivelmente disponíveis através do processo de evocação, que “consiste em extrair da memória um item específico.” (LINDZEY, HALL; THOMPSON, 1977, p.218). E, portanto, o esquecimento pode ocorrer devido uma falha nessa busca de informação, algumas vezes por distração ou como Schacter (2002, p. 184) enfatiza: Tem sido estabelecido que o esquecimento possa ocorrer rapidamente numa escala de tempo ou segundos, ao em vez de minutos, horas ou dias. O esquecimento rápido foi atribuído à operação de curto prazo ou do sistema de memória de trabalho. O esquecimento acontece de forma natural e juntamente com outras características torna o homem diferente da máquina, para Izquierdo (1989) nós esquecemos mais do que recordamos e isso pode ser causado pelo tempo, podemos esquecer-nos de números aprendidos no dia anterior e ainda lembrar-se de um fato marcante que ocorreu anos atrás. A memorização é utilizada e estimulada desde a infância, já que esta é uma das formas para “exercitar” a memória, sendo esta trabalhada tanto no ambiente escolar quanto no familiar. Porém não se deve fazer o uso dela de forma exacerbada, pois poderá ser prejudicial ao desempenho escolar do aluno e a confiança que ele estabelece no método decorativo, uma vez que a memorização de conceitos não significa a aprendizagem deles. Considerações Finais No Brasil, a busca por uma educação de qualidade precisa ser determinada pela relação família-escola, no entanto, segundo Ribeiro (1991), para os pais, a frequência que o aluno vai a escola é mais importante do que a qualidade de ensino. Desse modo, para o aluno estar presente, mesmo que não prestando atenção nas aulas, se torna, algumas vezes, uma obrigação desinteressante, porém fundamental. Pais e educadores priorizam a memorização como um recurso essencial para que a aprendizagem ocorra, esquecendo-se de outros recursos predominantes que podem promover a interação e possibilitar a aprendizagem, como a brincadeira, o jogo, o lúdico. Contudo, é importante não condenar a prática da memorização, sendo ela possível de ser evocada e então Nas fronteiras da linguagem ǀ 72 aplicada além de conceitos, como por exemplo, na resolução de uma questão. Afinal, como foi dito anteriormente, ela nós é necessária desde a infância, portanto utilizada durante toda a vida. Porém, a memorização pode assumir um aspecto cansativo para quem a utiliza, quando muita exigida, e acaba sendo um desestímulo no ensino fundamental, tornando desinteressante o processo de aquisição de informações. Quando se fala em escolas, no nosso país, aparentemente, as que são privadas se tornaram mais eficazes para a formação dos alunos que, posteriormente, irão ingressar na faculdade. E, apesar de que a memorização seja um problema tanto em escolas públicas e privadas, estamos em um círculo de problema muito maior na educação brasileira, já que: “O único (e último) momento em que se tenta fazer uma avaliação do domínio cognitivo dos alunos é por ocasião do vestibular aí se constata o seu baixo desempenho” (Ribeiro, 1991, p. 19). A mudança de didática estrutural e a atualização de métodos de ensino são da responsabilidade das escolas fundamentais para melhor aproveitamento e aplicação de métodos que possam ser aproveitados pelos estudantes. Uma proposta para facilitar a aquisição e compreensão seria promover a interação por meios de jogos, com o fim de estimular o estudante a se interessar pelo assunto ocasionalmente trabalhado com e pelo professor. Além do que, a interação entre os participantes promoveria um ambiente mais agradável para estudo. Afinal, os dois processos, a assimilação e, posteriormente, a acomodação, conforme Piaget (1975) pode ocorrer de forma mais simples e natural por meio de uma dinâmica. E ainda, a ausência da memorização não é uma opção, pois ainda que ela seja utilizada de forma antiquada pelos estudantes e professores, ela, como dito anteriormente, é necessária desde a infância e quando aplicada nos estudos como alternativa e não como indispensável, se torna um dos métodos auxiliares dos alunos no decorrer do processo de aprendizagem sem que atrapalhe o mesmo. Hoje, com todo o acesso a tecnologia e a programas que facilitam o dia a dia em sala de aula, há recursos disponíveis que facilitam a aprendizagem; é importante deixar de restringir os objetivos do ensino. Assim, torna-se de maior relevância que o estudante consiga compreender o que está sendo aplicado em sala de aula e assumir uma postura crítica. Referências ALMEIDA, Leandro S. Facilitar a aprendizagem: ajudar os alunos a aprender e a pensar. Psicologia Escolar e Educacional, 2002 Vol.6, n.2 155-165. Disponível em: III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 73 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-85572002000200006 Acesso em: 04/05/15. BARBER, Paul J. & LEGGE, David. Percepção e Informação. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. HOLT, John. How children learn. Revised Edition. Cambridge: Da Capo Press, 2009. IZQUIERDO, Ivan. Memórias. Estudos Avançados, 1989, Vol.3, n.6. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141989000200006 Acesso em: 02/03/15. LIEURY, Alain. Memória e aproveitamento escolar. Edições Loyola, 2001. LINDZEY, Gardner; HALL, Calvin S.;THOMPSON, Richard F. Psicologia. Editora Guanabara Koogan S.A. Rio de Janeiro, 1977. MOITA LOPES, Luiz Paulo. Oficina de Linguística Aplicada. Campinas: Mercado das Letras, 1996. PIAGET, Jean. O Nascimento da inteligência na criança. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar; Brasília. INL, 1975. RIBEIRO, Sérgio Costa. A pedagogia da repetência. Estud. av.[online], vol.5, n.12. 1991. SANTOS, Antônio Raimundo. Metodologia Científica: a construção do conhecimento. 5 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. SCHACTER, Daniel L. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. 4º ed. São Paulo, Martins Fontes, 1984. TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1988. Nas fronteiras da linguagem ǀ 74 OS GÊNEROS DIGITAIS NO ENSINO DE LÍNGUA DE MATERNA1 [Voltar para Sumário] Albanyra dos Santos Souza (UFRN/CERES/DCSH) 1. Introdução Os estudos linguísticos das últimas décadas têm colocado em pauta muitas questões em torno do ensino de línguas, principalmente relacionadas ao trabalho com os gêneros do discurso que materializam as práticas sociais situadas. Além disso, novas práticas discursivas decorrentes das tecnologias da informação estão atraindo os alunos à nova realidade social e, consequentemente, à produção e utilização de novos gêneros discursivos próprios de ambientes midiáticos, aqui denominados de gêneros discursivos digitais. Diante disso, o presente artigo baseia-se nas considerações de Bakhtin (2000) acerca dos gêneros do discurso, nos postulados de Marcushi (2005) com relação aos gêneros emergentes e, ainda, nas ideias de letramento (KLEIMAM, 1995; TFOUNI, 1988; SOARES, 2002), letramento digital (SHEPHERD e SALIÉS, 2013), multiletramentos e multisemioses (ROJO, 2013). Objetiva-se com o estudo, desenvolver uma pesquisa quantitativa de coleta de dados, ao mesmo tempo em que utilizamos a abordagem qualitativa para a interpretação dos dados, configurando nossa pesquisa como quantitativo-qualitativa. Isso, para atender ao nosso propósito de evidenciar quais os gêneros discursivos digitais que estão sendo usados pelos alunos. Diante disso, a nossa pesquisa torna-se relevante à medida que contribui tanto para as teorias dos gêneros do discurso quanto para o campo da Linguística Aplicada. A partir dessa abordagem, o artigo apresenta a seguinte divisão: i) na primeira seção, apresentamos o nosso trabalho; ii) na segunda seção, apresentamos uma discussão teórica Pesquisa realizada no curso de Pós-Graduação “Ensino e Aprendizagem de Línguas”, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – CERES – Currais Novos/RN. 1 III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 75 sobre a significação dos gêneros do discurso e sua constituição, seguida de conceituações sobre os gêneros discursivos digitais; iii) na terceira seção, expomos os procedimentos metodológicos adotados para o desenvolvimento do estudo; iv) na quarta seção, são apresentadas as análises dos dados coletados e os resultados da pesquisa; v) por fim, na quinta seção, tecemos as conclusões alcançadas com o estudo. 2. Os gêneros do discurso e sua constituição Bakhtin (2000) afirma que a utilização que fazemos da língua dá-se por meio de enunciados orais e escritos que emanam de uma ou de outra esfera da atividade humana. Os enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada esfera através da sua construção temática, estilística e composicional. Cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, assim chamados de gêneros do discurso. O surgimento dos gêneros do discurso se dá mediante a necessidade de uso da língua em uma dada esfera social. Esta, por excelência, comporta um conjunto específico de gêneros que vão modificando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se transforma e fica mais complexa. Com relação à caracterização dos gêneros, Bakhtin (2000, p. 281) faz uma distinção entre gêneros primários e secundários, afirmando, Importa, nesse ponto, levar em consideração a diferença essencial existente entre os gêneros do discurso primário (simples) e o gênero do discurso secundário (complexo). O gênero secundário do discurso – o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico, etc. – aparecem em circunstância de uma comunicação cultural mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica. Durante o seu processo de formação, esses gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram em circunstância de uma comunicação verbal espontânea. Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios [...] (Grifos do autor). Essa distinção entre os gêneros primários e secundários, para o autor, é considerada de grande importância, uma vez que a natureza do enunciado deve ser estudada por meio de uma análise de ambos os gêneros, caso contrário, corre-se o risco de não entender os aspectos essenciais do enunciado, ou seja, a inter-relação existente entre os dois gêneros, juntamente ao seu processo histórico de formação. Nas fronteiras da linguagem ǀ 76 2.1 Os gêneros do discurso digitais na contemporaneidade A plasticidade e dinamicidade da linguagem torna-se a maior responsável pelas mudanças sociais, políticas e culturais geradas pela capacidade de criatividade do ser humano. Essas transformações são decorrentes da necessidade de comunicação e do uso particularmente acelerado de equipamentos tecnológicos e de novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Com essas mudanças, o uso da língua nas diversas esferas sociais passa por um processo de adaptação e construção de novos gêneros para adequar-se a esse novo contexto de uso da língua. Nos ambientes virtuais, os gêneros surgem em função de um novo tipo de comunicação “conhecida como Comunicação Mediada por computador (CMC) ou Comunicação Eletrônica e desenvolve uma espécie de ‘discurso eletrônico’” (MARCUSCHI, 2005, p. 15). Esse fator é preexistente do uso acelerado das tecnologias computacionais nas últimas décadas do século XX, uma vez que favoreceu, enormemente, ao uso da escrita eletrônica, e consequentemente, o que o autor chama de “cultura letrada” (Ibid., p. 14), “cultura eletrônica” (Ibid., p. 15) e “letramento digital” (Ibid., p. 15). O surgimento desses novos gêneros possibilita a categorização do que chamamos de gêneros digitais, entendidos como o uso de discursos eletrônicos que circulam nos ambientes virtuais, mediados pelo uso das tecnologias digitais e ainda um fenômeno sócio-histórico situado de uso da linguagem. Marcuschi (2005, p. 33) ao tratar sobre os gêneros em ambientes virtuais afirma que eles se caracterizam pela sua interatividade de múltiplas semioses, pois tendo em vista a possibilidade cada vez mais de inserção de elementos visuais no texto (imagens, fotos) e sons (músicas e vozes) pode-se chegar a uma interação de imagem, voz, música, e linguagem escrita numa integração de recursos semiológicos. Assim, do ponto de vista formal e estrutural, esses gêneros digitais podem ser considerados mais envolventes para serem utilizados em sala de aula como recurso de ensino de Língua Portuguesa. Será mais atrativo para o aluno, por exemplo, estudar um gênero que trate sobre literatura com os recursos semióticos, do que ler esse mesmo gênero em um livro didático, pois, de certa forma, esse novo gênero estudado no espaço digital, acaba sendo distinto do gênero de texto comum estudado na escola, até mesmo por sua característica de contemporaneidade. Marcuschi (2005), em seu trabalho, apresenta uma lista dos gêneros digitais mais conhecidos e estudados até então, assim denominados: E-mail; Chat em aberto (bate papo III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 77 virtual em aberto – room chat); Chat reservado (bate papo virtual reservado); Chat agendado (bate papo agendado ICQ); Chat privado (bate papo virtual em salas privadas); Entrevista com convidado; E-mail educacional (aula virtual); Aula chat (chat educacional); Vídeoconferência interativa; Lista de discussão (mailing list); Endereço eletrônico; Weblog (blog; diários virtuais). Esses são apenas alguns gêneros digitais tratados por Marcuschi (2005, p. 29), como “emergentes”. Essa categorização se dá, segundo o autor, por esses gêneros terem sido emergidos nas três últimas décadas na mídia eletrônica, através da Comunicação Mediada pelo Computador (CMC). Nesse estudo, buscamos identificar os usos sociais não somente dos gêneros apresentados pelo autor, mas, também de novos gêneros digitais que se fazem presentes atualmente tanto no contexto escolar como fora dele e que são utilizados pelos alunos e pelo professor. 3. Aspectos metodológicos A metodologia usada para a identificação dos gêneros discursivos digitais conhecidos e usados pelos alunos em sala de aula toma como base o método sociológico do Círculo de Bakhtin, a considerar aspectos comunicativos sociais aliados aos gêneros do discurso na interação verbal. Além disso, a análise considera também os gêneros emergentes nos ambientes virtuais, assim posto por Marcuschi (2005), bem como as teorizações acerca dos multiletramentos e as multissemioses apresentadas por Rojo (2013). Assim sendo, o estudo baseia-se em uma análise de dados por meio de uma pesquisa quantitativo-qualitativa, partindo de questionários direcionados aos alunos do 3º ano do Ensino Médio de uma escola pública da cidade de Parelhas/RN. O questionário aborda questões relativas aos usos dos gêneros digitais dentro da escola, a fim de identificar quais são os gêneros que circulam nos ambientes virtuais mais conhecidos e usados pelos alunos dentro do espaço educacional e a sua importância para o ensino e aprendizagem. Respondidos os questionários, os resultados foram representados em forma de gráficos e tabelas, interpretados tal qual está dado nos questionários e analisados com base nos pressupostos teórico-metodológicos aqui apresentados. 4 Resultados da pesquisa Nas fronteiras da linguagem ǀ 78 O uso das novas tecnologias tem permitido novas práticas de leitura e escrita, antes feitas por meio do papel. Isso porque, os ambientes virtuais possibilitam não apenas a interação com textos escritos, mas também a habilidade de construir sentido em textos multimodais e multissemióticos (ROJO, 2013). Essa realidade se faz presente também no contexto educacional, marcado principalmente pela necessidade de se adequar às novas formas de interação, como percebemos nos resultados aqui apresentados. De acordo com os dados obtidos na pesquisa realizada com a turma, os gêneros digitais estão se tornando cada vez mais importantes para a aprendizagem escolar, e o seu uso passa a ser uma alternativa de construção de conhecimento. Inicialmente os alunos foram questionados quanto ao uso do computador, se tem computador em casa ou o usa cotidianamente. 90% confirmaram o uso, tendo apenas 10% uma posição diferente, conforme pode ser visto no gráfico 1: Gráfico 1 – Acesso ao computador ou à internet cotidianamente. Fonte: Autoria nossa. Com esses dados, observamos que não estão todos os alunos imersos no mundo digital, e consequentemente essa minoria não tem acesso aos gêneros digitais da mesma forma que os demais alunos. Por outro lado, se 90% dos alunos estão envolvidos com o uso do computador, essa maioria usa com frequência os gêneros digitais. Mas, será que essa maioria é conhecedora do uso que faz dos gêneros digitais? Ao perguntamos se eles já ouviram falar em gêneros digitais, obtivemos os seguintes dados: Gráfico 2: Conhecimento quanto aos gêneros digitais. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 79 Fonte: Autoria nossa. Nessa questão, enquanto 70% confirmam conhecer os gêneros digitais, 30% dos alunos afirmam não ter ouvido falar em gêneros digitais, embora, conforme visto no gráfico 1, 90% dizem usar ou ter computador em casa. Isso indica que, apesar usarem os gêneros digitais no seu cotidiano, essa minoria de alunos não os reconhecem socialmente como gêneros ou não entendem que já os usam. Esse resultado, particularmente, aponta para a necessidade de incluir nas práticas metodológicas escolares o trabalho com os gêneros digitais, uma vez que eles se multiplicam a cada situação de interação, e são usados com mais frequência em função das tecnologias. Ora, se nosso aluno, hoje, está conectado aos avanços tecnológicos e multimidiáticos, nada melhor que aproveitar essa relação de proximidade para torná-lo conhecedor dos tipos de enunciados que ele mesmo produz ou tem contanto constantemente. Em outro momento, quando questionados sobre onde usavam os gêneros digitais – na escola, no trabalho ou nos encontros com os amigos – os alunos afirmaram que: Gráfico 3: Onde são usados os gêneros digitais? Fonte: Autoria nossa. Os lugares em que os gêneros digitais são mais usados pelos alunos é nos encontros com os amigos, conforme afirmam 95% deles, sendo no trabalho quase não usados, apenas por 10%, e na escola usados pela maioria, 70%. Nesses ambientes, os gêneros livremente citados pelos alunos foram: Nas fronteiras da linguagem ǀ 80 Tabela 1: Gêneros usados pelos alunos em ambientes específicos. Na escola Vídeos Fotos Mensagens Pesquisa Textos E-mail Slides Música Torpedos Filme No trabalho 3 3 3 2 2 1 1 1 1 1 Fotos Cadastro Nos encontros com os amigos 1 1 Música Mensagem Fotos Vídeos Textos Conversa Torpedo Imagem Chat Notícias Reportagem Áudio 8 7 7 5 2 2 1 1 1 1 1 1 Fonte: Autoria nossa. Os gêneros digitais mencionados pelos alunos enquanto os mais usados no espaço escolar foram vídeos, fotos e mensagens, cada um com 3 votos. Em seguida, temos os gêneros pesquisa e texto, com 2 votos, e com apenas 1 voto os gêneros e-mail, slides, músicas, torpedo e filme. Já no ambiente de trabalho, os alunos citaram apenas o gênero foto e cadastro, tendo 1 voto para cada deles. Diferentemente de ambientes em que há encontros com os amigos, pois nesses espaços os alunos citaram a música como o gênero mais usado, 8 votos, mensagens e fotos, 7 votos, vídeos, 5 votos, texto e conversa, 2 votos, e 1 voto para os gêneros torpedo, imagem, chat, notícia, reportagem e áudio. Essa escolha nos revela que, mesmo estando em um ambiente educacional, os alunos mantêm comunicação com os amigos, fato facilitado pelo uso do celular na escola. Esses gêneros também foram mencionados enquanto os mais usados nos encontros com os amigos, como podemos perceber na tabela 1, sendo a música o gênero digital mais usado nesse ambiente. A pouca ocorrência de gêneros digitais em ambientes, como no trabalho, dá-se pois estamos lidando com alunos que ainda não alcançaram a maioridade, e consequentemente, como está subentendido, a maioria deles não trabalha. Partindo para ambientes mais específicos, os alunos foram solicitados a responder com relação aos gêneros digitais em sala de aula, se o professor faz uso desses gêneros. Vejamos os dados obtidos com base nos questionários, conforme o gráfico 4: Gráfico 4: Os gêneros digitais em sala de aula. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 81 Fonte: Autoria nossa. De acordo com os dados do gráfico 4, apenas uma pequena parcela de alunos afirma não usar os gêneros digitais em sala de aula, 5% deles, enquanto 95% confirmam o uso, e apresentam as situações metodológicas vivenciadas na aula com esses gêneros. Vejamos na tabela 2 a seguir: Tabela 2: Situações de uso dos gêneros em sala de aula. Situações em que os gêneros são usados em sala de aula Assistir filmes Ouvir músicas Estudar textos Assistir vídeos Explicar o conteúdo Preencher a lista de presença diária Discutir notícias 10 2 2 2 2 2 1 Fonte: Autoria nossa. Essas informações nos mostram que são vários os momentos em que os gêneros digitais são usados pelo professor em sala de aula e que, mesmo com pouca expressividade, eles estão sendo incluídos no ensino de língua materna, de modo especial ao gênero filme, este enquanto o mais recorrente nas aulas de língua portuguesa, tendo ele 10 votos. Nas demais situações mencionadas, os gêneros digitais são usados para ouvir músicas, estudar texto, assistir vídeos, explicar o conteúdo e preencher a lista de presença, tendo estes 2 votos, e com apenas 1 voto, o momento de discussão de notícias. Os alunos foram questionados ainda quanto ao uso de alguns gêneros, préestabelecidos, próprios da modalidade virtual, usados na sala de aula e fora dela.Vejamos os gráficos a seguir: Nas fronteiras da linguagem ǀ 82 Gráfico 5: Gêneros digitas usados na escola Mensagens Fórun VídeoIntantânea 5% conferência Blogs 26% 5% 2% Torpedo 8% Sala de bate papo 8% E-mail 20% Vídeos 26% Fonte: Autoria nossa. Nesse gráfico percebemos que os gêneros digitais mais usados na escola, enquanto gêneros emergentes da cultura digital, conforme Marcuschi (2005), são os blogs e os vídeos, sendo ambos 26% mais usados. Seguindo a ordem decrescente de uso, o e-mail foi o terceiro gênero considerado mais usado, 20%, seguido do gênero sala de bate papo, com 8%, fotos e mensagens, 5%, e com apenas 2% o gênero vídeoconferência. Foi importante para a pesquisa, ainda, observar quais os gêneros próprios da modalidade escrita que estão sendo usados na modalidade virtual, tanto na escola quanto fora dela. Gráfico 6: Gêneros usados na escola na modalidade virtual Fonte: Autoria nossa. A letra de música foi considerado o gênero da modalidade escrita mais usado na escola na modalidade virtual, com 13%, seguido dos gêneros artigo de opinião, resenha de livro, filme e fotos/imagens, todos com 12%. Além disso, em ordem decrescente de uso, temos o gêneros gráfico, com 9%, a notícia, com 8%, a crônica, 7%, histórias em quadrinhos, carta e propaganda, com 6%, a entrevista, com 5%, e a reportagem, com 4%. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 83 Quando perguntados sobre a preferência de gênero, digital ou impresso, para ler uma notícia de jornal, os dados obtidos foram: Gráfico 7: Preferência entre o gênero digital ou impresso. Fonte: Autoria nossa. Enquanto 10% dos alunos afirmam preferir ler uma notícia em um jornal impresso, 75% deles afirmam ser a notícia de jornal digital a favorita, e ainda justificam essa preferência com enunciados do tipo: “É mais rápido e prático”; “Pela facilidade”; “Por facilitar a interpretação”; É mais fácil e compacto, posso ler em qualquer lugar”; “Tenho mais acesso”. Essas respostas são indícios do quanto os gêneros digitais são importantes como recursos metodológicos para a prática de ensino do professor, bem como refletem as novas formas de ler que são subjacentes às práticas de escrita da contemporaneidade. Além disso, nas aulas de Língua Portuguesa, especificamente, para que a aprendizagem aconteça, é imprescindível que as práticas de ensino estejam adequadas à realidade dos alunos, às suas vivências e aos seus costumes. Esse tipo de prática visa potencializar habilidades e competências do aluno para atuação social de forma mais efetiva, garantindo-lhe sucesso nas interações mediadas pelos gêneros discursivos digitais com os quais ele se depara no ambiente digital. Logo, o aluno que tem contato com esses gêneros na escola estará mais apto, ou letrado digitalmente (SHEPHERD e SALIÉS, 2013), para agir socialmente por meio deles. Quando indagados sobre a importância dos gêneros digitais para o aprendizado e, ainda, a contribuição desses gêneros em comparação aos gêneros impressos, os alunos responderam que aqueles: “Facilitam o estudo de qualquer assunto”; “Torna a aula mais interessante”; “São melhores, práticos e fáceis de usar”; “Ajuda no conhecimento de novos gêneros usados no dia a dia”; “Proporciona sair da rotina”; “Ajuda a completar o que às vezes faltam nos livros, jornais ou revistas”. Vejamos os dados quantificados no gráfico 12: Nas fronteiras da linguagem ǀ 84 Gráfico 12: Os gêneros digitais contribuem para o aprendizado? Fonte: Autoria nossa. 85% dos alunos afirmaram que os gêneros digitais contribuem para no seu aprendizado, ao passo 10% deles alegam que essa contribuição se dá em partes, resposta essa, a qual subentende-se, que se não usados em um contexto de ensino específico os objetivos de aprendizagem não serão alcançados. Percebemos então, a partir das respostas que há uma multiplicidade de gêneros digitais sendo usados e construídos em favor dos avanços tecnológicos. A inclusão desses gêneros nas aulas de Língua Portuguesa se faz cada vez mais necessária e urgente de forma que os alunos assumam uma posição de, além de usuários, conhecedores e reconhecedores dos gêneros discursivos digitais existentes, bem como do seu uso e do próprio processo de construção do gênero, tanto no que diz respeito a sua estrutura composicional, tema e estilo. Os resultados nos revelam que alguns gêneros digitais estão sendo mais usados hoje na escola, como é o caso do blog (gráfico 5), além de fotos, vídeos e mensagens (tabela 1). 5. Conclusão Os resultados apresentados e discutidos nesse estudo serviram para compreendermos que, hoje, inicialmente, a questão não é trabalhar as práticas de letramento (KLEIMAM, 1995; TFOUNI, 1988; SOARES, 2002) de um só gênero discursivo digital como se ele ainda não fosse usado pela comunidade discente. Pelo contrário, é relevante estar atento a grande diversidade de gêneros que surge em função das novas tecnologias e usá-los em sua variedade, pois, como pudemos perceber, os alunos não usam apenas um gênero digital na escola ou em outros ambientes sociais, eles estão usando vários deles ao mesmo tempo. Por isso, aqui, não cabe destacarmos o mais usado pelos alunos, apenas podemos dizer que hoje, nos contextos educacionais, especificamente na sala de aula, são usados frequentemente gêneros como o blogs, a letra de música, fotos, vídeos e mensagens, a sala de bate papo, III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 85 fotos/imagens, além do artigo de opinião e dos filmes, com mais frequência, porém sem exclusividade. Isso mostra que os alunos estão se tornando cada vez mais usuários de uma grande quantidade de gêneros digitais, embora não tenham ainda o conhecimento pleno de questões como nomenclatura, composicionalidade, assim como discutidas nas seções anteriores, claro, salvo algumas exceções. Esse dado se justifica pela grande variedade de gêneros usados ao mesmo tempo em uma só mídia, o computador. Referências BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. _______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance (1934-1935). Trad. Bernadini, et. al. 4. ed. São Paulo: Unesp, 1998. MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia digital. ______; XAVIER, A. C. (orgs.). Hipertexto e gêneros digitais. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2005, p. 13-67. LIMA. M. B.; GRANDE, P. B. Diferentes formas de ser mulher na hipermídia. In: ROJO, R. (org.). Escol@ concectada: os multiletramentos e as TICs. São Paulo: Parábola, 2013. p. 3758. KLEIMAN, A. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: _______ (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995, p. 15-61. ROJO, R. Gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin e multiletramentos. In: ______. (org.). Escol@ concectada: os multiletramentos e as TICs. São Paulo: Parábola, 2013. p. 13- 36. SHEPHERD, T.; SALIES, T. Linguística da Internet. São Paulo: Contexto, 2013. SOARES, M. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educ. Soc., Campinas, Vol. 23, n. 81, 2002, p. 143-160. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/es/v23n81/13935>. Acesso em 18 de maio de 2014. TFOUNI, L.V. Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. Campinas: Pontes, 1988. Nas fronteiras da linguagem ǀ 86 ORALIDADE E ARGUMENTAÇÃO EM FOCO: UMA EXPERIÊNCIA DIDÁTICA COM O GÊNERO TEXTUAL JÚRI SIMULADO [Voltar para Sumário] Alberto Felix da Hora (UPE)1 Introdução É evidente a necessidade e a relevância do trabalho com gêneros textuais orais nas aulas de língua portuguesa na educação básica. Não há o menor sentido linguístico em se atribuir maior importância ao ensino da modalidade escrita ou da oral, pois nos comunicamos em situações de uso real, social e cultural fazendo uso de ambas as modalidades da língua, numa concepção de língua como prática social e histórica e um meio pelo qual os usuários da língua interagem uns com os outros. Essa interação se dá por meio de textos que se manifestam linguisticamente na forma de gêneros textuais diversos orais e escritos. Quanto à necessidade de exercitarmos a nossa capacidade argumentativa por meio da fala e da escrita, bem como da constância desse uso, Marcuschi (2005, p. 31) corrobora “Sabemos que a argumentatividade é um aspecto essencial no uso da língua. Isso pode ser treinado e analisado em suas formas peculiares de ocorrer na fala e na escrita”. A oralidade deve ser abordada no ensino da língua portuguesa, constituindo, portanto, um eixo que possibilite o trabalho com a linguagem, desenvolvendo nos alunos um domínio linguístico capaz de exercer seu papel sociocomunicativo, via modalidade oral, nas diversas situações de uso da linguagem dentro e fora do espaço escolar. O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma experiência didática com o gênero textual júri simulado, para trabalhar os domínios da oralidade e da argumentação oral numa turma do 9º ano do Ensino Fundamental. Para tanto, nos embasamos no Interacionismo Mestrando do Profletras da UPE – Garanhuns. Especialista no Ensino de Língua Portuguesa. É docente de Português Jurídico na Faculdade ASCES – Caruaru. É professor de Língua Portuguesa na Secretaria de Educação Estadual de Pernambuco. Email: [email protected] 1 III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 87 Sociodiscursivo (ISD) defendido por Bronckart (1999) por conceber a linguagem como fenômeno indissociável da interação social, nas concepções de ensino de gêneros textuais abordadas por Marcuschi (2005, 2008) e nos estudos de Koch (2011) e Pinto (2010) sobre argumentação. O procedimento metodológico adotado foi uma sequência didática para o ensino do gênero textual júri simulado conforme Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). As atividades pedagógicas, vivenciadas por meio da sequência didática com o júri simulado, proporcionaram avanços no domínio linguístico discursivo dos discentes quanto ao uso de argumentos por meio da oralidade. O presente trabalho pretende detalhar como as atividades foram desenvolvidas, pontuando, inclusive, as contribuições efetivadas na turma, como também as dificuldades apresentadas. Dessa forma, acreditamos que a experiência didática com o gênero júri simulado nas aulas de Língua Portuguesa podem trazer diversas contribuições para o desenvolvimento oral argumentativo dos discentes. 1. O ensino dos gêneros textuais Tradicionalmente a palavra gêneros foi sempre utilizada pela retórica e pela teoria literária a fim de caracterizar os gêneros clássicos, tais como: o lírico, o épico e o dramático, ou até mesmo os gêneros modernos, como o romance e a novela, entre outros. Essa noção ganhou importante extensão a partir das ideias defendidas por Bakhtin em meados do século XX, que passa a incorporar a palavra gênero na referência aos textos usados nas situações cotidianas de interação por meio da comunicação oral e verbal. Schneuwly (2004, p. 25) resume desta forma o posicionamento Bakhtiniano: cada esfera de troca social elabora tipos relativamente estáveis de enunciados: os gêneros; três elementos os caracterizam: conteúdo temático – estilo – construção composicional; a escolha de um gênero se determina pela esfera, as necessidades da temática, o conjunto dos participantes e a vontade enunciativa ou intenção do locutor. A partir da visão estabelecida por Bakhtin, percebe-se que os textos produzidos, orais ou escritos, oferecem um conjunto de características relativamente estáveis, configurando-se em diversos gêneros textuais, que podem ser caracterizados por três aspectos ou elementos básicos: o tema, a estrutura e os usos específicos da língua. Nas fronteiras da linguagem ǀ 88 É perceptível a magnitude da proposta de adoção dos gêneros textuais como objeto de estudo e ensino nas escolas, sobretudo, por nos possibilitar o uso das diversas formas de expressão oral/escrita que circulam socialmente. É perfeitamente possível elaborarmos construções informais e formais, textos coesos e coerentes tanto na modalidade escrita quanto na oral. Afirmar que a escrita é formal, complexa, enquanto a fala é informal e simples não é suficiente, nem tampouco coerente linguisticamente, pois, como afirma (Koch 2012, p. 78), “existe uma escrita informal que se aproxima da fala e uma fala formal que se aproxima da escrita, dependendo da situação comunicativa”. Ora, se analisarmos do ponto de vista dos usos sociais da língua, fica perceptível que língua falada e língua escrita não são responsáveis por domínios estanques ou dicotômicos. Segundo Marcuschi (2008, p. 37), “Há práticas sociais mediadas preferencialmente pela escrita e outras pela tradição oral (...) Oralidade e escrita são duas práticas sociais e não duas propriedades de sociedades diversas”. Cabe, portanto, aos docentes, nas atividades que visam desenvolver a capacidade de uso linguístico dos seus alunos, oferecer ambas as modalidades reconhecendo a função social e os usos dos gêneros textuais orais e escritos. 2. Oralidade em foco O oral se ensina, mas não conseguiremos formar alunos competentes linguisticamente em relação ao uso oral, enquanto as aulas apresentarem propostas genéricas de discussões nas salas de aula. Quanto a esse aspecto Barbosa (2000, p. 154) aduz que: Essas práticas acabam sendo pouco producentes (...) o que deveria estar em questão são as diferentes formas de dizer, determinadas por diferentes situações comunicativas (...) em vez de aulas que tematizem o falar ou a oralidade de uma forma geral, pode-se e deve-se tomar os gêneros orais públicos como objetos de ensino. Para encontrar caminhos para ensiná-lo, vejamos o que os PCNs apontam em relação ao processo de escuta de textos orais, espera-se que o aluno no Ensino Fundamental: Amplie, progressivamente, o conjunto de conhecimentos discursivos, semânticos e gramaticais envolvidos na construção dos sentidos do texto; Reconheça a contribuição complementar dos elementos não verbais (gestos, expressões faciais, postura corporal); Utilize a linguagem escrita, quando for necessário, como apoio para registro, III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 89 documentação e análise; Amplie a capacidade de reconhecer as intenções do enunciador, sendo capaz de aderir a ou recusar as posições ideológicas sustentadas em seu discurso. (PCNs, 1998, p. 49) Dolz & Schneuwly (2004) destacam a relevância de também se considerar no trabalho com gêneros orais - além dos meios linguísticos e prosódicos - os meios não-linguísticos da comunicação oral (meios paralinguísticos, cinésicos, posição dos locutores, aspecto exterior e disposição dos lugares). A adoção de uma sequência didática com o gênero textual júri simulado oportuniza aos docentes de Língua Portuguesa trabalharem tanto os recursos linguísticos da argumentação quanto os meios não-linguísticos da comunicação oral. Os alunos vivenciando as funções de juízes, julgadores, defensores e promotores, notadamente, utilizarão recursos paralinguísticos (qualidade da voz, elocução), cinésicos (movimentos, gestos, olhares e atitudes corporais diversas), posição dos locutores (ocupação de local adequado e espaço pessoal), aspecto exterior (vestimentas adequadas) e disposição dos lugares (sala adequada, iluminação, disposição das cadeiras e mesas). A proposta de ensino das práticas de oralidade deve estimular os alunos a desenvolver as capacidades de uso da língua em diferentes realidades e finalidades, levando-os a uma reflexão mais sistemática sobre as práticas de linguagem e o planejamento e avaliação do discurso oral. 3. Retórica e argumentação O homem, como ser social, sempre esteve em contato com a natureza e também em pleno relacionamento com os seus pares. Esse relacionamento social e linguístico entre os homens fomenta a necessidade comunicativa e, por conseguinte, a comunicação com o intuito de convencer o outro, a necessidade de argumentar para fazer valer o seu ponto de vista acerca de um tema. Na sociedade atual, cada vez mais, o indivíduo precisa se posicionar sobre temas polêmicos, opinar, avaliar, fazer escolhas, julgar. E para isso, por meio do discurso, sempre dotado de uma carga de intencionalidade, tenta fazer valer suas opiniões, com o propósito de conduzir o interlocutor a compartilhar das suas convicções. Koch (2011, p. 17) afirma que “o ato de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões, constitui o ato linguístico fundamental, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia”. Os primeiros estudos acerca da retórica surgem com Aristóteles (384-322a.C.) - Nas fronteiras da linguagem ǀ 90 pensador e filósofo grego – na sua obra intitulada Retórica encontramos subsídios para explicitar as teorias mais recentes sobre argumentação. Ao discutir a retórica como forma de persuasão, Aristóteles buscou aplicar as técnicas da retórica para a construção da noção de justiça, levando em conta que a noção de justiça não existe, é construída. Vejamos como Pinto (2010, p. 36) traduz a definição de retórica segundo Aristóteles, “a retórica é um instrumento e pode ser usada a serviço tanto do bem quanto do mal, importando assim a verossimilhança dos fatos”. O que se está querendo aqui afirmar é que a Retórica argumenta para persuadir as pessoas a agirem no mundo, mas não é natural, é coisa inventada, pois não existe na natureza. A partir dos estudos retóricos de Aristóteles, há um alargamento no campo de atuação da retórica, para além do espaço jurídico e filosófico, se fazendo presente em todas as situações ou espaços em que se faz necessário convencer alguém. A grande contribuição de Aristóteles foi demonstrar que o raciocínio jurídico não se dá pela demonstração matemática e exata da noção de justiça. O conceito de justiça é, em certa medida, uma invenção retórica que, partindo daquilo que a comunidade tem como valor justo, pela argumentação é efetivada, o que pluraliza a noção de verdade e que permite nos valer do dizer popular de que “cada caso é um caso”. Em 1958 Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca lançam um livro que veio representar um marco sobre o estudo da retórica “Tratado da argumentação: a nova retórica”. A obra rompe com o conceito positivista e racional preconizado por Descartes, que desconsiderava o verossímil como um possível critério a ser utilizado na argumentação. Os autores resgatam a importância da verossimilhança e da dialética, contrapondo-as à obrigatoriedade do raciocínio e da pura verdade. Sobre esse aspecto Pinto (2010, p. 44) comenta: Para Perelman & Olbrechts-Tyteca, a noção de evidência, no intuito de caracterizar a razão, pode ser fundamental para a teoria da argumentação, mas deve ser entendida numa escala proporcional e não deve ser decodificada como uma verdade absoluta. A argumentação, para Perelman, está ligada a um tipo de ação discursiva, a qual pretende conseguir a adesão do auditório, mas só por meio da linguagem. A persuasão e o convencimento são elementos que devem atuar de forma paralela à argumentação. A persuasão se dirige de forma particular a um auditório particular, já o convencimento se estende, a partir do particular, a um auditório abstrato, universal, coerente com a regra de III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 91 justiça aceita pelo maior número possível de pessoas (valores universais), criando jurisprudência. Assim a Nova Retórica é mais que uma teoria da argumentação: trata-se, pois, de uma análise crítica do Direito, na qual se constata a carga de elementos sociais subjetivos e objetivos que fundamenta as decisões jurídicas, as quais são tópicas e marcadas por valores sociais ante a norma jurídica. O Direito deve ser um parâmetro, cujo valor da solução trazida pela argumentação deve estar em conformidade ao apontar uma resolução que não apenas está de acordo com a lei, mas é razoável, aceitável, equitativa. 4. A sequência didática com o júri simulado A pertinência do trabalho, nas aulas de português, com gêneros orais organizados a partir de sequências didáticas, encontra fundamentação nas ideias de Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) de que é possível ensinar os alunos a se expressarem oralmente em situações públicas escolares e extraescolares. Dolz & Schneuwly (2004, p. 97) definem sequência didática como “um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito”. Os representantes da Escola de Genebra defendem que a sequência didática pode apresentar a seguinte organização: Apresentação da situação: objetiva expor aos alunos um problema de comunicação bem definido, além de preparar os conteúdos dos textos que serão produzidos. Produção inicial: papel diagnóstico, verifica-se os conhecimentos prévios dos alunos, ampliase o repertório dos alunos a partir da aproximação deles com o gênero em estudo, inicia-se atividades de oralidade nas aulas; Módulos: divididos em seções, abordam as características da situação de produção, da organização textual, dos aspectos linguístico-discursivos e dos meios não-linguísticos; Produção final: visa verificar os avanços dos alunos durante o percurso do trabalho com a sequência didática. A experiência de trabalharmos oralidade e argumentação nas aulas de Língua Portuguesa numa turma do 9º ano do Ensino Fundamental começou com um levantamento Nas fronteiras da linguagem ǀ 92 prévio sobre o que os alunos conheciam sobre o júri, após ouvi-los realizamos uma exposição mais detalhada acerca do gênero em tela, destacamos os atores envolvidos, seus respectivos papéis sociodiscursivos e os meios linguísticos e não-linguísticos presentes no domínio jurídico. Finalizamos a aula informando que nas próximas atividades iriamos assistir a um filme sobre julgamento, a fim de levá-los a compreender melhor o papel dos operadores do direito e do júri popular. Desde o início, a perspectiva de atuar no júri simulado deixou-os interessados. Na aula seguinte apresentamos a temática do julgamento: O trabalho infantil. A problematização a ser julgada: Permitir ou proibir o trabalho de um jovem de 12 anos como fretista, aos sábados, na feira livre da cidade? Vale a pena destacar que essa atividade é muito comum na cidade e no cotidiano dos jovens da escola. Tivemos a preocupação de indagá-los sobre a problematização e ficou evidente que apenas 5% (dois alunos) dos discentes eram contra o trabalho de jovens na feira livre da cidade, eles afirmaram que “lugar de criança é na escola”. Já a maioria que se declarou a favor do frete, alegou questões financeiras e frases do tipo “é melhor trabalhar do que roubar”, alguns fizeram uma ressalva “desde que não seja um trabalho forçado”. Na sequência apresentamos e debatemos o regulamento do júri, definimos que seria melhor realizá-lo no fórum da cidade, por apresentar uma estrutura propícia ao evento, inclusive procuramos conscientizá-los sobre a importância de gravar o evento para avaliarmos posteriormente as nossas participações, além de guardarmos como uma lembrança da atividade escolar. Os alunos concordaram com a proposta, só que em virtude da reforma do fórum, realizamos o evento no auditório da Câmara de Vereadores da cidade por ter uma estrutura física confortável e similar à do fórum. No regulamento ficou estabelecido o local, a data e horário do evento, funções e formação dos grupos (Juízes = 5 alunos; Promotores = 8 alunos; Defensores = 8 alunos e Julgadores = 21 alunos). Aos juízes coube a organização do júri, elaboração de pauta, discurso de abertura e condução do julgamento, cronometragem do tempo e da mediação dos confrontos e discussões (o famoso protesto); os julgadores ficaram responsáveis pela decisão final, na qual cada membro do júri popular deu seu voto, justificando o porquê de sua decisão de acordo com o que foi apresentado e argumentado pela defesa e acusação; Aos promotores e defensores coube a tarefa de apresentarem teses e argumentos convincentes a fim de persuadir o júri popular, inclusive com a oitiva de testemunhas. O regulamento definiu o tempo de atuação da acusação e da defesa, levando em consideração as seguintes etapas: Teses iniciais: 15 minutos para cada grupo; réplica: 10 minutos para cada grupo e tréplica de 5 minutos. Três III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 93 protestos por grupo. Cada protesto com duração máxima de 1 minuto, não sendo permitido protestar durante as tréplicas. Destinamos 2h/aulas para apresentar e explicar os critérios de avaliação. Para isso foi entregue a cada participante uma planilha de avaliação contendo as expectativas de atuação dos 4 grupos. Os juízes foram avaliados com base na elaboração do roteiro, saudação às partes, contextualização do caso em julgamento, trabalho em equipe, cronometragem, manutenção da ordem, tratamento isonômico às partes, segurança na aplicação das regras, intervenção coerente nos protestos, vestimentas, postura corporal e linguagem adequada ao evento. Os promotores e defensores foram avaliados com base na vestimenta, saudação às partes, trabalho em grupo, contextualização do caso, organização e apresentação da tese, linguagem adequada ao evento, capacidade de atrair a atenção da audiência, linguagem e oralidade (postura, fala, entonação, gestos, movimentos, comunicação persuasiva), utilização e exploração das testemunhas, uso da linguagem argumentativa para refutar e contraargumentar, utilização de exemplificações, perguntas retóricas, analogias e citações. Os julgadores foram avaliados em função do comportamento adequado ao evento (atenção, silêncio, não comunicação com os outros membros do júri popular, vestimentas), linguagem adequada ao evento, capacidade linguística de explicar e justificar o voto, linguagem e oralidade (fala – entonação – gestos). Solicitamos dos alunos uma atividade em grupo. A realização de entrevistas gravadas com personalidades da cidade escolhidas por eles, a fim de questioná-las sobre o que acham do trabalho dos jovens na feira livre da cidade, aos sábados. Essa atividade contribuiu para a ampliação do ponto de vista dos alunos sobre o tema do júri e ocupou 2h/aulas na sequência didática. Destinamos 3h/aulas para a sessão com o filme Tempo de Matar. Houve debate acerca da temática abordada no filme, bem como o estudo da linguagem e postura adotadas pelos operadores do direito. Apresentamos, na aula seguinte, um vídeo para o estudo da postura, fala, entonação e da linguagem persuasiva. Destinamos, ainda, 2 h/aulas para pesquisas no laboratório de informática sobre as leis e argumentos relacionados ao trabalho infantil, inclusive criamos um grupo no Facebook (projeto júri simulado) para a interação dos participantes durante a realização da sequência didática. Outra iniciativa interessante e que rendeu bons resultados foi a participação colaborativa de um professor da escola com formação em Direito (fez o papel de orientador da promotoria) e de um ex-aluno do colégio, estudante de Direito (fez o papel de orientador da defensoria). Esses colaboradores reuniramse em 1h/aula com seus respectivos grupos para orientá-los acerca da atuação argumentativa, Nas fronteiras da linguagem ǀ 94 inclusive participaram do júri simulado e puderam apoiar e orientar os grupos nos intervalos entre as teses iniciais, réplicas e tréplicas. Destinamos 2h/aulas para uma apresentação em PowerPoint sobre o uso dos operadores argumentativos nos textos escritos e orais. Realizamos, uma semana antes do júri, visita prévia ao local do evento para familiarizar os alunos com o espaço físico, locais específicos de atuação dos grupos e explicar acerca da sequência do júri simulado. A culminância da sequência didática ocorreu com a realização do júri simulado totalizando 18 h/aulas. 5. Resultados Passemos, agora, a pontuar os aspectos mais significativos da performance apresentada pelos grupos durante o júri simulado. A atuação dos juízes foi satisfatória quanto ao trabalho em grupo, vestimentas, cronometragem, isonomia no tratamento aos grupos, entonação e gestos, zelo pela manutenção da ordem. Porém durante o protesto proferido pelos defensores nas teses iniciais da promotoria os juízes não se pronunciaram (protesto aceito ou negado). Durante o tempo de fala da defensoria nas teses iniciais, a defensora teve o seu turno de fala interrompido pelo promotor, neste instante a atuação do juiz foi providencial ao tocar a sineta e advertir o promotor “Se usa protesto!”. Outro aspecto positivo na atuação dos juízes foi sempre alertar as partes sobre o tempo restante de fala “gostaria de avisar que a promotoria só tem mais um minuto!”. Quanto a essa mensagem houve apenas um momento em que a fala do juiz ganhou um tom de informalidade quando afirmou: “Quero avisar ao povo da defensoria que só falta 1 minuto!”. Porém o mesmo juiz no momento seguinte advertiu dizendo: “Quero informar à parte da defensoria que só falta 1 minuto!”. A atuação da promotoria foi marcada pelo argumento de que existem leis no país, destaque para a Lei 8.069/1990, elas estão para proteger as crianças e os adolescentes, deram ênfase ao argumento de que quem deve trabalhar para sustentar o menor é o adulto (pai e mãe) e não o contrário. Exploraram, ainda, os riscos (exposição ao sol, peso e acidentes), e as ações sociais do governo (Escola Aberta e o PETI). Dos 8 promotores, 4 utilizaram parcialmente os recursos (entonação, movimentação, discurso persuasivo). Vejamos alguns trechos da atuação da promotoria: “como podemos observar as leis proíbem o trabalho de crianças...então e aí vamos rasgar as leis?”; “Então como ele só pode trabalhar como aprendiz...não tem ninguém ensinando...além III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 95 do carro ser pesado...uns 40 quilos um jovem não tem condições de carregar de manhã no sol quente...as vezes passando fome!”; “Por que que a mãe e o pai não vão trabalhar...se eles têm um físico melhor.”; “Eu vou seguir na mesma tecla...será que eles (gesto na direção da defensoria) queriam que os seus filhos trabalhassem na feira livre? Eu acho que não!”; “Pela ordem Excelência! Nós vamos fazer primeiro as perguntas à testemunha da defensoria.” Pergunta a testemunha da defesa “O lugar da criança é carregando frete na feira ou na escola?”; “A testemunha da defesa falou que ele cursou a faculdade, fez estudos, e ele não conhece outra pessoa que trabalhava no frete...e então ele não passa de uma exceção porque na maioria dos casos quem trabalha no frete na feira mal conseguia terminar seus estudos!”. A atuação da defensoria foi marcada pelo argumento de que vivemos num país de desigualdades sociais, o trabalho do jovem na feira é digno, em nada atrapalha a sua atividade estudantil, não é sistemático nem forçado e ainda garante uma ajuda financeira para o jovem e/ou sua família. Todos os 8 defensores utilizaram muito bem os recursos (fala – entonação – movimentação – linguagem persuasiva). Vejamos algumas passagens da atuação dos defensores: Protesto da defensoria: “A senhora está falando de criança de 12 anos, porém a Lei 8069/1990 afirma que com 12 anos completos estamos falando de adolescente.”; “Há mais de 80 anos que a feira livre tem existência em nossa cidade e com ela surgiu o chamado frete. Segundo o historiador, também professor de Língua Portuguesa, Ubiratan Ferreira de Carvalho, quando criança ele presenciava esses jovens trabalhando não só como fretista, mas também em outras funções”; “Até hoje nunca houve evidências ou dados de algum acidente ou morte de algum desses jovens por trabalharem como fretista!”; “não é um trabalho forçado, não atrapalha nos estudos, pois rebatendo também o que a promotoria falou, o programa Escola aberta ele é aberto de manhã e à tarde...ele poderia trabalhar de manhã e ir ao projeto escola aberta à tarde!”; “Vossa Excelência, eu gostaria de chamar nossa testemunha!”; “Bom senhores julgadores...vejamos bem! Esse policial militar que na sua adolescência trabalhou no frete, e pelo que foi dito, nunca lhe prejudicou...pelo contrário foi...lhe ajudou a ser mais responsável e independente”; “Senhores julgadores, peço que reflitam um pouco! O que é mais nocivo ou perigoso, esse jovem trabalhar e ganhar o seu dinheiro dignamente ou proibi-lo de fazer...e aí ele roubar ou furtar?”; “o pobre vai trabalhar porque tem necessidade. Estamos falando aqui de um mundo real onde existem muitas necessidades. O mundo ideal que a lei rege não é esse!”; “Eu gostaria de reforçar um pouco a fala da Drª Defensora, só recebe o Bolsa Família quem está estudando, portanto se o fretista está estudando ele vai receber, mas todos nós sabemos que o bolsa família não dá pra sustentar o jovem e muitas vezes ele quer ter seu Nas fronteiras da linguagem ǀ 96 próprio dinheiro para consumi-lo e não deseja pedi-lo a ninguém!”. A atuação dos julgadores definiu o resultado do júri simulado com 18 votos a favor da defensoria (liberação do trabalho do jovem de 12 anos, aos sábados, na feira livre da cidade) e 3 votos contrários. Os membros do júri popular apresentaram ótimo comportamento quanto à atenção, silêncio, não comunicação entre os integrantes julgadores, porém apenas 6 integrantes demonstraram pleno desenvolvimento da capacidade linguística de explicar e justificar o voto. 6. Considerações finais O objetivo deste artigo foi apresentar uma experiência de sequência didática com o gênero textual júri simulado numa turma do 9º ano do Ensino Fundamental, proporcionando um desempenho linguístico satisfatório quanto à oralidade e à argumentação oral dos discentes. É relevante destacar a necessidade de realizar, ao longo do ano letivo, mais de um júri, para que haja um rodízio dos alunos em relação às funções desempenhadas. Notadamente a sequência didática contribuiu para avanços significativos no domínio linguístico discursivo dos discentes quanto ao uso de argumentos por meio da oralidade. É importante, ainda, que os professores tenham a consciência da necessidade de gravar os eventos relativos ao ensino do oral na escola, com o propósito de poder avaliar melhor os desempenhos atingidos e redimensionar novas atividades de ensino por meio dos gêneros orais. Diante disso, percebemos que trabalhar os aspectos da oralidade e da argumentação por meio de uma sequência didática com o júri simulado possibilita ao professor de Língua Portuguesa um trabalho com inovação, criatividade e interatividade, capaz de contribuir para a formação discursiva competente dos discentes. Referências BARBOSA, Jacqueline Peixoto. Do professor suposto pelos PCNs ao professor real de língua portuguesa: são os PCNs Praticáveis?. In: ROJO, Roxane (org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2000. BRASIL/MEC. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Ensino Fundamental: Língua Portuguesa. Brasília, 1998. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 97 KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Argumentação e linguagem. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2011. ________. A inter-ação pela linguagem. 11. ed. São Paulo: Contexto, 2012. MARCUSCHI, L. A. Oralidade e ensino de língua: uma questão pouco falada. In: DIONÍSIO, Ângela Paiva; BEZERRA, Maria Auxiliadora (org.). O livro didático de português: múltiplos olhares. 3. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. ________. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2008. PINTO, Rosalice. Como argumentar e persuadir? Práticas: política, jurídica e jornalística. Lisboa: Quid Juris – Sociedade Editora, 2010. SCHNEUWLY, Bernand; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. Nas fronteiras da linguagem ǀ 98 POEMAS TIRADOS DE NOTÍCIAS, MAPAS, TABELAS... E OUTROS GÊNEROS JORNALÍSTICOS: PROCEDIMENTOS LÚDICOS EM AULAS DE LITERATURA [Voltar para Sumário] Alberto Roiphe (UFS) Introdução O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), no âmbito do curso de Letras-Português do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Sergipe, possui, desde 2014, um projeto intitulado “Leitura, Escrita e Autoria: o jornal em sala de aula” e coordenado pelos professores Alberto Roiphe, responsável pela área de ensino de literatura, Taysa Mércia dos Santos Souza Damaceno e Wilton James Bernando-Santos, responsáveis pela área de ensino de língua portuguesa. Os trabalhos realizados neste projeto ocorrem em duas etapas. A primeira se constitui da orientação dos alunos de Letras quanto à sua atuação em sala de aula. A segunda etapa está centrada na atuação, de fato, desses mesmos alunos em salas de aula do Ensino Médio da rede pública de ensino do estado de Sergipe. O que se pretende evidenciar, neste texto, é, justamente, de que maneira os alunos de Letras são orientados a atuar em sala de aula, nos minicursos ministrados pelos três coordenadores do projeto, destacando-se, como exemplo, um atividade desenvolvida durante o minicurso de literatura “O jornal como mote: práticas de leitura e escrita literária”, a ponto de se questionar: Em que medida procedimentos lúdicos podem contribuir para aulas de literatura? Os procedimentos e suas improváveis fontes O minicurso de literatura “O jornal como mote: práticas de leitura e escrita literária” teve como foco a relação entre gêneros jornalísticos e gêneros literários, de forma a III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 99 instrumentalizar os alunos de Letras à criação de atividades lúdicas sempre relacionando os dois campos de produção. Para tratar dos gêneros presentes no campo jornalístico, a referência teórica motivadora ao desenvolvimento do minicurso foi o ensaio “Os gêneros do discurso”, de Mikhail Bakhtin, no qual o teórico russo estabelece três categorias, a saber, para caracterizar tal noção: Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana, o que, é claro, não contradiz a unidade nacional de uma língua. O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo de linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. [grifos do autor] (BAKHTIN, 2003, p. 261-262) Considerando-se, portanto, as três categorias estabelecidas por Bakhtin, o tema, a construção composicional e o estilo, é possível afirmar o jornal traz, como se sabe, privilegiadamente, uma multiplicidade de gêneros. O procedimento realizado, no âmbito do minicurso de literatura, teve como motivação a convergência proposta por Manuel Bandeira (2009, p. 110), no seu conhecido “Poema tirado de uma notícia de jornal”, no qual o autor modernista une, evidenciando já no título, o gênero que se encontrará em seu texto, um “poema”, e o gênero que deu origem à sua criação “uma notícia de jornal”. Para a atividade desenvolvida no minicurso, cada um dos alunos de Letras recebeu um envelope, contendo um gênero do campo jornalístico, como notícias, mapas, tabelas etc, e um gênero do campo literário, um poema. Em primeiro lugar, com os envelopes em mãos, os participantes foram convidados a observar minuciosamente os gêneros jornalísticos e, da mesma forma que sugere a educadora francesa Josette Jolibert (1992), em sua obra Former des enfants lecteurs et producteurs de poèmes, para a criação de poemas a partir de cartões-postais, produziram descrições, contendo os aspectos ali observados, utilizando-se, evidentemente, de adjetivos, frases nominais, períodos curtos, estruturas comparativas e uma sucessão de percepções anunciadas a partir de Nas fronteiras da linguagem ǀ 100 seus sentidos. Em segundo lugar, aproveitando as anotações feitas nas descrições, os alunos passaram a criar poemas que mantivessem a mesma estrutura do poema contido no envelope, isto é, o poema criado por um aluno deveria conter as características rítmicas, lexicais, sintáticas etc do poema encontrado no envelope. É preciso lembrar que, para a montagem dos envelopes, foram escolhidos, inicialmente, recortes contendo tanto os textos jornalísticos como os poemas em função da abordagem temática. Sendo assim: para o poema “Não há vagas”, de Ferreira Gullar (2004, 162), que afirmando de início “O preço do feijão/não cabe no poema”, foi escolhida uma tabela de cotação preços, que contém os valores do algodão, arroz, boi, café, cana-de-açúcar e outros produtos; para o poema “Mapa”, de Mário Quintana (2013, p. 69-70), foi escolhido, no jornal, um mapa meteorológico, acompanhado de uma legenda, incluindo as condições climáticas em diversas regiões do Brasil; para o poema concreto “Velocidade”, de Ronaldo Azeredo (1971, p. 25), foi escolhida uma fotografia também com uma legenda, mas, nesse caso, em forma de lide. O conteúdo da fotografia mostrava três rapazes em suas bicicletas, trafegando por calçadas esburacadas. Tais rapazes estão, diante dos buracos do chão, em posições corpóreas que lembram, ironicamente, manobras de participantes de campeonatos de bicicross. Levando-se em conta as condições sugeridas para a criação dos poemas, caberia acrescentar, nesse ponto da descrição da atividade, o que já alertava Nelly Novaes Coelho, em sua obra O ensino de literatura, na metade dos anos 1960: Lembramos, apenas, o perigo de cairmos na exageração, ao adotarmos, por exemplo, o difundido “método da imitação”, recomendado por muitos pedagogos. Exageração que poderá levar os alunos a uma “esterilização” interior, dando uma “forma” ao seu pensamento e sufocando-lhe a inspiração. Sem dúvida, o processo de leitura e comentário dos bons autores, seguido de uma reelaboração do tema, é bastante proveitoso. Porém é preciso que não se chegue ao extremo de provocar na mente do aluno o enraizamento de “ideia e frases feitas.” [grifos da autora] (COELHO, 1966, p. 33-34) Embora o procedimento de descrever um gênero jornalístico e transpor tal descrição para a estrutura do poema possa lembrar a redação imitativa, é importante lembrar que a passagem da leitura para a escrita pode se tornar um exercício do pensar sobre a caracterização da sequência verbal e visual presentes em ambos os gêneros envolvidos na atividade. Por esse motivo mesmo e, a fim de provocar alterações nas estruturas composicionais entre as criações dos alunos de Letras e não manter as mesmas temáticas, III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 101 durante a elaboração da atividade, foram montados envelopes, não só em função da aproximação temática entre os gêneros jornalísticos e literários, mas também em função da alternância entre os três temas apresentados, isto é, foram preparados envelopes contendo, por exemplo, o poema “Não há vagas”, de Ferreira Gullar, e a imagem das bicicletas. Foram preparados ainda envelopes incluindo um recortes com o poema “Mapa”, de Mário Quintana, e com a tabela de cotação de preços, extraída do jornal. Enfim, uma oportunidade de se perceber diferentes construções a partir de cada nova combinação entre um gênero literário e um gênero jornalístico. Dos recortes e às produções Para a avaliação dessas produções, foram consideradas as especificidades da linguagem poética, que trazem em si recursos como a sonoridade, o ritmo, as rimas, as anáforas, dentro outros recursos relevantes. O poema abaixo, tomado como exemplo de produção realizada para a atividade proposta, é de autoria do estudante de Letras da UFS, Pedro Santos da Silva. Intitulado “Não há água”, o texto do aluno foi elaborado a partir da descrição do um mapa meteorológico do Brasil e do poema “Não há vagas”, de Ferreira Gullar (2004, 162). NÃO HÁ ÁGUA 23° cabe em Teresina. 23° cabe em São Luiz (1930) Ainda cabem nesse país! 22° em: Salvador; Natal; Recife; João Pessoa; Cuiabá; 24° em Macapá. Ainda cabe nesse poema Boa Vista com insuportáveis 27° Como também cabe 24° em Fortaleza. – porque nesse poema, Senhores Há espaço para “calor ou frio” Só não cabe mais nesse poema 15° em São Paulo Lá Senhores secas não há São apenas alguns metros Abaixo do nível do Mar... Observando-se que, na poesia, a estrutura formal tem uma importância considerável, Nas fronteiras da linguagem ǀ 102 sobretudo porque está ligada diretamente ao sentido do poema, nota-se que, de forma geral, o texto, distribuído em três estrofes, como ocorre com o original, expõe as variadas temperaturas encontradas nas diversas regiões do país. Essas evidências ressaltam, já de início, o caráter lúdico da criação do poema. Algo que lembra o que afirma Johan Huizinga, em Homo ludens, quando mostra que a afinidade entre a poesia e o jogo “se manifesta na própria estrutura da imaginação criadora” (1996, p. 147-148), considerando que “na elaboração de uma frase poética, no desenvolvimento de um tema, na expressão de um estado de espírito há sempre a intervenção de um elemento lúdico” (Idem, Ibidem, p. 148) O jogo proposto pelo aluno, na sua criação, fica claro também, quando se percebe, a seguir, que ele mantém, de certa forma, a estrutura do poema original, ao mesmo tempo em que altera a sua temática. NÃO HÁ VAGAS O preço do feijão não cabe no poema. O preço do arroz não cabe no poema. Não cabem no poema o gás a luz o telefone a sonegação do leite da carne do açúcar do pão O funcionário público não cabe no poema com seu salário de fome sua vida fechada em arquivos. Como não cabe no poema o operário que esmerila seu dia de aço e carvão nas oficinas escuras – porque o poema, senhores, está fechado: “não há vagas” Só cabe no poema o homem sem estômago a mulher de nuvens a fruta sem preço O poema, senhores, não fede nem cheira III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 103 Ferreira Gullar Comparativamente, nota-se que o aluno alterou o título do poema “Não há vagas”, de Ferreira Gullar, para “Não há água”, permitindo-se observar que, na relação entre o título e o texto, construído a partir de um mapa meteorológico, como se afirmou acima, e repleto de informações sobre as diversas temperaturas no Brasil, a água que falta é a água das chuvas. Essa ideia se confirma, quando se encontra, na primeira estrofe, a enumeração de nomes de capitais do país e suas correspondentes temperaturas, o que contribui para registrar o ritmo do poema. O verbo “caber” tem seu sentido alterado daquele empregado no texto de Gullar, já que nunca é precedido do advérbio “não”. Sendo assim, a brincadeira sugerida pelo aluno, é que tudo cabe no poema. Esse atitude, em seu processo de criação, faz lembrar novamente Johan Huizinga que, ao defender a tese de que o texto poético e o jogo apresentam elementos comuns, afirmando a poesia não “possui apenas uma função estética ou só pode ser explicada através da estética” (1996, p. 134). Na segunda estrofe, a enumeração, e o ritmo, têm continuidade, mostrando que o aluno transportou sem dificuldades a imagem do mapa, no sentido amplo do termo, de forma a manter o sentido do verbo “caber” e, consequentemente, a coerência de seu poema, do qual parece oferecer lições de linguagem. Nos versos da terceira e última estrofe, o aluno altera significativamente a estrutura do poema original, a fim de reforçar sua afirmação, já anunciada no título, de que “Não há água”. Por isso, ressalta as possibilidades de alternâncias na temperatura, mostrando que “Há espaço para ‘calor ou frio’, e, em seguida, finaliza o texto, explicando as circunstâncias climáticas de São Paulo: Só não cabe mais nesse poema 15° em São Paulo Lá Senhores secas não há São apenas alguns metros Abaixo do nível do Mar... Tal circunstância, entretanto, quando relacionada ao título do poema, exibe ironicamente não somente a falta de chuvas, mas a consequência disso, a falta de água potável, realidade atual da capital paulista, onde nem a paisagem seca, como afirma, traz a água: São apenas alguns metros / Abaixo do nível do Mar...”. Em outro poema desenvolvido, nesta mesma atividade, a partir de uma tabela de cotações de preços, contendo os valores do algodão, arroz, boi, café, cana-de-açúcar e outros Nas fronteiras da linguagem ǀ 104 produtos, e do poema “Mapa”, de Mário Quintana (2013, p. 69-70), o autor, Cássio Augusto Nascimento Farias, respeita a estrutura do texto original, a ponto de manter alguns de seus versos, ao mesmo tempo em que troca a palavra “mapa” pela palavra “cotação”, alterando completamente outros valores do poema: os semânticos. As cotações Olho as cotações das cidades Como quem examinasse A anatomia de um corpo (É nem que fosse meu corpo!) Sinto uma dor infinita Dos preços médios do leite Que jamais entenderei... Há tanta coisa esquisita Tanta nuança de preços Há tanta cidade bonita Nas cotações que não entenderei (E há uma porcentagem engraçada Que nem em sonhos sonhei...) Quando entender, um dia desses, Os dados somados das cotações Nas confusões da economia, Serei um pouco da loucura somada, deliciosa Que faz com que teus resultados Pareçam mais um olhar Suave mistério das mesas vazias Cotações do meu desentender (Desde já tanto tentar entender!) E talvez da minha fome Essa transposição da palavra “mapa” para a palavra “cotação”, por coerência, gera outras alterações. Por isso, o nome da cidade onde o poeta viveu (ruas de Porto Alegre) vira nome de produto (preços médios do leite) e as características da cidade (“esquina esquisita”, “rua encantada”) viram características do produto e de sua comercialização (“coisa esquisita”, “porcentagem engraçada”), como se pode confirmar, comparando-se o poema do aluno de Letras ao poema de Quintana que deu origem ao exercício: O MAPA Olho o mapa da cidade Como quem examinasse A anatomia de um corpo... III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 105 (É nem que fosse meu corpo!) Sinto uma dor infinita Das ruas de Porto Alegre Onde jamais passarei... Há tanta esquina esquisita Tanta nuança de paredes Há tanta moça bonita Nas ruas que não andei (E há uma rua encantada Que nem em sonhos sonhei...) Quando eu for, um dia desses, Poeira ou folha levada No vento da madrugada, Serei um pouco do nada Invisível, delicioso Que faz com que o teu ar Pareça mais um olhar Suave mistério amoroso Cidade de meu andar (Deste já tão longo andar!) E talvez de meu repouso... O que se torna curioso é que os versos mantidos nas duas estrofes iniciais de ambos os poemas, por exemplo, permitem leituras com duplos sentidos. No poema do aluno, tem-se a interpretação voltada para a cotação: Olho as cotações das cidades Como quem examinasse A anatomia de um corpo (É nem que fosse meu corpo!) No poema de Quintana, a interpretação se volta, evidentemente, para o mapa: Olho o mapa da cidade Como quem examinasse A anatomia de um corpo... (É nem que fosse meu corpo!) O poema do aluno é finalizado, assim como havia acontecido no anterior, por uma ironia marcada por termos como “confusões da economia”, “Serei um pouco da loucura / somada, deliciosa”. Na invenção do aluno, o que se manteria como anáfora na penúltima estrofe do poema Nas fronteiras da linguagem ǀ 106 original, “Cidade de meu andar / (Deste já tão longo andar!)”, é descontruído e reconstruído, pela brincadeira com as palavras “entender” e “desentender”: Cotações do meu desentender (Desde já tanto tentar entender!) O último versão, então, dá ênfase à temática escolhida pelo aluno. Por isso, “repouso” se transforma em “fome”: possibilidade lúdica e, criticamente, lúcida para o leitor sentir e pensar por meio da linguagem poética. Esses dois exemplos mostram que o procedimento proposto na atividade exige do aluno uma análise do poema original para a construção de seu próprio poema, o que se aproxima do que afirma Alfredo Bosi, em O ser e o tempo da poesia, quando diz que “a análise descobre o poema” (2000, p. 37). Dessa forma, não é difícil observar que o aluno estuda o poema original por meio da confecção de seu próprio poema. Não se pode esquecer ainda que, por meio do procedimento proposto no minicurso, foram estudados também os gêneros jornalísticos que serviram como fonte para a criação dos poemas. Considerações finais Os resultados preliminares dos procedimentos realizados durante o minicurso de literatura, no âmbito do PIBID Letras-Português da UFS, mostram que o poema, um gênero, geralmente, distante da Educação Básica em práticas de leitura e de escrita, como se demonstrou, pode se tornar um objeto de estudo, justamente, por meio de exercícios de leitura e de escrita. Para tanto, torna-se necessário o desenvolvimento de atividades que incentivem os professores em formação e, consequentemente, seus alunos, ao trabalho específico com a linguagem poética. Ficou evidente durante o minicurso que tais aproximações geram maior interesse por meio de atividades lúdica, entretanto, o desdobramento dessas ações, em escolas de rede pública de ensino do estado de Sergipe, por meio de exercícios propostos pelos alunos de Letras da UFS é que poderão confirmar a consequência de trabalhos como esse com alunos no Ensino Médio. Referências AZEREDO, Ronaldo. “Velocidade”. In: Revista de Cultura Vozes. Concretismo. Ano 1, 1971. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 107 BANDEIRA, Manuel. Manuel Bandeira: poesia completa e prosa. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. BAKHTIN, Mikhail. “Os gêneros do discurso”. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 261-269. BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. COELHO, Nelly Novaes. O ensino da literatura. São Paulo: FTD, 1966. GULLAR, Ferreira. Toda poesia. 14ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 4ª ed. Tradução de João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1996. JOLIBERT, Josette et al. Former des enfants lecteurs et producteurs de poèmes. Paris: Hachette, 1992. QUINTANA, Mário. Rua dos cataventos & outros poemas. Porto Alegre: LP&M, 2013. Nas fronteiras da linguagem ǀ 108 INTERPRETANDO EM CONTEXTOS: UMA ANÁLISE DA PRESSUPOSIÇÃO DISCURSIVA NO GÊNERO “FRASES” [Voltar para Sumário] Aleise Guimarães Carvalho (S.E.E.-PB) Alessandra Magda de Miranda (S. E.E.- PB) Introdução As construções linguísticas, materializadas tanto na forma escrita quanto falada, carregam consigo conteúdos semânticos que, em alguns casos, não estão explicitamente revelados, mas implicitamente inseridos nas sentenças. De acordo com Ducrot (1987), o pressuposto é um dos conteúdos implícitos que é descrito por meio do componente. Moura (2006) se apropria desta classificação em relação à pressuposição, acrescentando apenas a ideia de que, além da estrutura linguística (semântica), a pressuposição depende também do contexto (conhecimento compartilhado entre os sujeitos participantes do discurso), contexto este de natureza semântica. Para este estudo, nos utilizaremos da classificação apresentada por Moura para a classificação da pressuposição. Um gênero discursivo bastante relevante para a análise dos sentidos implícitos é o gênero “frases”. Este se encontra em revistas populares, nas quais a edição dedica uma seção especificamente para publicar as “frases” que foram ditas por pessoas públicas (artistas; celebridades; políticos) durante a semana, caso a revista seja de circulação semanal. O gênero “frases” é constituído da ‘fala’ do locutor/autor (pessoa pública), mais a contextualização apresentada pelo editor da revista com a finalidade de situar o leitor de que contexto, situação física, psicológica, a frase foi extraída. Ainda, em alguns casos, a revista publica uma imagem da pessoa que fala. Diante do exposto, pretendemos, com este estudo, descrever os sentidos pressupostos presentes em três “frases” publicadas pela Revista Veja e, em seguida, observar se, a partir da contextualização da fala, os pressupostos são mantidos, modificados e/ou anulados. Neste sentido, verificaremos se a contextualização da edição das “frases” em análise comporta-se III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 109 como contexto dinâmico, tal qual é referido por Moura, uma vez que, para o autor, cada sentença gera um novo contexto e este elimina ou não os contextos anteriormente aceitos. O corpus para este trabalho foi selecionado de maneira aleatória. Inicialmente foram selecionadas dezesseis “frases” publicadas pela Revista Veja durante três meses consecutivos. Todas elas apresentavam informações pressupostas, no entanto, para este estudo escolhemos apenas três delas. Esta pesquisa é, portanto, de cunho qualitativo, a qual tem como principais pressupostos teóricos os postulados de Ducrot (1987); Moura (2000); Pedrosa (2007; 2011), entre outros. 1. Considerações teóricas 1.1 Uma breve discussão acerca da pressuposição Para tratar da pressuposição, seguiremos, neste estudo, as abordagens apresentadas pelo linguista Heronides Moura (2006), o qual trata deste fenômeno linguístico na interface entre a semântica e a pragmática. A partir de exemplos, Moura (idem) expõe dois níveis nas informações contidos nas sentenças exemplificadas. O primeiro nível é o posto, e o segundo, o pressuposto. De acordo com o autor supracitado, o posto é a informação contida no sentido literal de uma sentença, já o pressuposto é a informação inferida da enunciação, “a aceitação de verdade do posto leva à aceitação da verdade do pressuposto” (ibdem). Ducrot (1987), precursor do estudo da pressuposição, admite que o pressuposto não pertence ao enunciado da mesma maneira que o posto, mas ocorre de formas diferentes, no entanto o posto é o que é afirmado enquanto que o pressuposto é o que é apresentado como pertencendo ao domínio comum dos participantes do diálogo. Percebemos, então, que Moura corrobora com Ducrot na diferenciação destes dois níveis, uma vez que ambos afirmam que o posto é o que está dito, enquanto que o pressuposto é a informação compartilhada entre os participantes do diálogo, informação esta interpretada a partir de marcadas linguisticamente inseridas na sentença. Para Moura (idem), a compreensão da pressuposição ocorre, se as proposições forem aceitas tanto pelo falante quanto pelo ouvinte. A este fenômeno, o autor chama de conhecimento compartilhado. Assim sendo, “a pressuposição deve ser parte do conhecimento compartilhado dos interlocutores” (ibdem, p. 17). Nas fronteiras da linguagem ǀ 110 Além da marca linguística, existem alguns outros fatores que nos permitem confirmar se de fato existe a pressuposição dentro de determinada sentença. Moura (idem), respaldandose em Ducrot (1987), apresenta o mecanismo de negação do posto para comprovação da pressuposição, ou seja, a negação do posto não afeta a necessidade de aceitarmos como verdade o pressuposto. Ao negar a “informação afirmada no posto, o pressuposto ainda permanece válido” (ibdem, p. 16). Na primeira versão sobre o estudo da pressuposição, Ducrot (idem) afirma que o critério comprobatório de classificação da pressuposição é o de que no momento em que o enunciado é submetido à negação ou à interrogação, os pressupostos continuam inalteráveis. Ducrot reexamina este estudo e afirma que “quando não se pode transformar, negativamente ou interrogativamente, um enunciado, pode-se encadear a partir dele” (ibdem, p. 38). Moura não aborda o mecanismo do encadeamento proposto por Ducrot, mas, além dos testes com a negação e interrogação, apresenta os testes com o uso do operador modal e do verbo factivo. Desta forma, em qualquer que seja o caso duvidoso de pressuposição, basta aplicar estes testes e a evidência de pressuposição se confirmará. Em algumas sentenças, a existência de expressões já evidencia o implícito pressuposto. Moura (idem) lista sete tipos de expressões que ativam a pressuposição, a saber: a) Descrição definida (pressuposto de existência): “o uso de uma descrição definida pressupõe a existência do ser a que ela se refere” (idem, p. 17). b) Verbos factivos: lamentar; sentir; compreender; saber; adivinhar. c) Verbos implicativos: conseguir; esquecer. d) Verbos de mudança de estado: deixou de; parou de; começou a; iniciar em. e) Verbos interativos: a ação já tinha acontecido anteriormente. f) Expressões temporais: depois de; antes de. g) Sentenças clivadas: “sentenças em que uma sentença simples é dividida em duas orações a fim de destacar um certo constituinte da sentença” (ibdem, p. 21). 1.2 Refletindo sobre contexto Diferentemente de Ducrot (1987), Moura (idem) afirma que a pressuposição depende do contexto e não somente da estrutura semântica e, portanto, a pressuposição funciona a partir de contextos compartilhados entre os participantes da conversação. Assim sendo, as palavras e/ou expressões ativadoras de pressuposição impulsionam a informação compartilhada favorecendo o fluxo conversacional. “A determinação ou não do pressuposto III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 111 de uma sentença depende do contexto conversacional e do conhecimento compartilhado dos interlocutores” (ibdem, p. 23). Desta feita, os participantes do discurso assumem como verdadeiros o conhecimento compartilhado entre eles como também o contexto pelo qual a sentença está referida e daí constata-se a pressuposição. Em muitos casos, este contexto é modificado por meio da dinâmica conversacional, ou seja, à medida que a conversação avança, pode acontecer de o contexto referido ser alterado conjuntamente. A esta mudança do contexto, alterado pelo processamento da conversação, Moura (idem) classifica de contexto dinâmico. De acordo com Moura (idem, p. 46), “o contexto pode ser aumentado de duas maneiras: (1) pela incorporação dos pressupostos das sentenças enunciadas; (2) pela incorporação de informações novas contidas nas próprias sentenças enunciadas”. Diante da inserção de novos contextos à conversação, os pressupostos, que inicialmente foram comprovados, podem permanecer ou, até mesmo, serem eliminados. Em alguns casos, acontece a eliminação da pressuposição a partir do uso de dois conectivos, “e” e “ou”. Este processo é classificado de filtro. Mas, em algumas sentenças, esses conectivos não filtram a pressuposição contida na sentença simples e ocorre a permanência do pressuposto na sentença composta. Esta permanência é classificada de projeção da pressuposição. (MOURA, 2006) Além destes dois processos, ainda podemos citar os bloqueios e os furos. Os bloqueios impedem a preservação dos pressupostos das sentenças simples e geralmente são ativados pelos verbos de atitude proposicional (acreditar; querer; imaginar; sonhar; dizer; contar; falar; retorquir), os furos preservam (deixam passar) esses processos evidenciados, em sua maioria, por verbos factivos, operadores modais e a negação. (ibdem) Mesmo diante da classificação destes processos anteriormente citados (filtros; bloqueios; furos), os quais são compreendidos somente mediante entendimento semântico, para a afirmação da pressuposição, valerá não somente esta classificação, mas, principalmente, a definição do contexto, uma vez que, em alguns casos, a classificação semântica não é suficiente para a compreensão da pressuposição. No tópico seguinte, abordaremos algumas considerações a respeito do gênero “frases”, gênero este que nos servirá de corpus para análise das pressuposições e do comportamento destes implícitos mediante contextos dinâmicos. 1.3 Gênero “frases” Nas fronteiras da linguagem ǀ 112 Discutindo sobre gêneros discursivos, Bakhtin (2010 [1992], p. 262) afirma que a imensa quantidade de texto se justifica pelo fato de serem “inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana” e que a cada esfera destas atividades e ações humanas é integral um grande número de gêneros do discurso, sendo estes maleáveis e dinâmicos. Esta diversidade textual cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e torna-se mais complexo uma determinada esfera social. No caso do nosso estudo, exploraremos a pressuposição em algumas “frases” que estão publicadas na Revista Veja. Este gênero, assim como todos os demais, possui características peculiares. É um gênero de tamanho curto, geralmente veiculado em jornais e revistas. “Estruturalmente, compõe-se na ‘fala’ dos locutores/autores [...], mais o contexto recuperado [...] do editor” (COSTA, 2009, p. 121). As “frases” são sempre publicadas a partir de um recorte feito pela edição da revista ou do jornal a partir de uma fala maior do locutor. Depois deste recorte, a edição situará o leitor informando qual o contexto e a situação física, psicológica etc., pela qual a “frase” foi extraída. Segundo Pedrosa (2007), as revistas sempre publicam este gênero com uma forma padrão, primeiro a ‘fala’ escolhida e depois, logo abaixo da fala, a contextualização. Para a autora (2007, p. 157), os contextos podem ser classificados de três formas: contexto informativo (aquele contexto que traz apenas informações sobre a situação, sem que esteja explícita a opinião do editor); contexto atrelado (aquele que não é suficiente para a compreensão da fala tendo de recorrer ao contexto de “fala” anterior); e contexto interpretativo ou tendencioso (aquele que identificamos explicitamente, através de marcas linguísticas, a opinião do editor). Segundo ela, é através do contexto que o leitor conhece a “fala” retextualizada. No primeiro processo, o editor seleciona a ‘fala’ do locutor a partir de um evento comunicativo mais amplo e a retextualiza segundo critérios bem subjetivos, pois verificamos que as ‘falas’ não são transcritas, como o uso das aspas poderia sugerir, mas retextualizadas segundo preferências lexicais, sintáticas, semânticas, pragmáticas e ideológica do editor (PEDROSA, 2004, p. 2). Então, “poderemos afirmar que só podemos tratar do gênero discursivo “frases”, considerando-o em seu conjunto construtivo: ‘fala’ do locutor + contexto do editor” (PEDROSA, 2007, p. 158). Portanto, é com base nesta constatação que analisaremos a pressuposição contida em algumas “frases”, ou seja, consideraremos a fala do locutor como também o contexto do editor. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 2. 113 Análise do corpus Conforme vimos anteriormente, o gênero “frases” é composto de duas partes e a análise a seguir, visa descrever os pressupostos inseridos no gênero como um todo (fala + contextualização), observando se esse apresenta sentenças compostas, analisando, em seguida, se ao inserir novos contextos, a pressuposição inicial é anulada, alterada ou reiterada. Desta maneira, observaremos se este fenômeno semântico pode ser considerado como característica do gênero discursivo em estudo. “Frase” 01: “A classe C não tem medo de dar vexame.” GABY AMARANTOS, a Beyocé do Pará, rainha do movimento musical tecnomelody, antes conhecido como tecnobrega. A fala da “frase” acima pertence a uma cantora precursora de um novo movimento musical, o qual se espalhou pelo restante do Brasil a partir da população de baixa renda do Estado do Pará. Essas informações do parágrafo anterior são informações que, possivelmente, estão compartilhadas entre o enunciador e seus interlocutores. Com base na aceitação de verdade deste conhecimento compartilhado, podemos considerar que há uma primeira informação pressuposta nesse texto, ou seja, a pressuposição de que existe uma classe C. Ainda conseguimos interpretar outra pressuposição na fala da cantora, a de que a classe C dá vexame. Por já conter uma negação no posto, apliquemos, então, o teste da interrogação para verificar a comprovação desses pressupostos: Nas fronteiras da linguagem ǀ 114 Posto: “A classe C não tem medo de dar vexame.” Pp. 1: Existe uma classe C. Pp. 2: A classe C dá vexame. Int.: A classe C não tem medo de dar vexame? Através do posto interrogado, comprovamos a existência dos dois pressupostos na fala da personagem, pois estes implícitos se mantiveram inalterados mesmo com a interrogação do posto. Ao observar a contextualização da revista -“Gaby Amarantos, a Beyocé do Pará, rainha do movimento musical tecnomelody, antes conhecido como tecnobrega”- percebemos que nela não há informações pressupostas, e que todos os fatos informados apenas reforçam o conhecimento compartilhado entre os participantes do discurso. Desta maneira, o novo contexto não modificou e nem ratificou nenhuma da pressuposição inicial da fala da personagem da “frase”. “Frase” 02: “Agora sou só família, trabalho e eu mesma. Ando ocupada demais para um namoro sério.” PARIS HILTON, celebridade, depois de acabar com o último namorado e antes de engatar com o próximo. Na primeira sentença da fala da atriz Paris Hilton -“Agora sou só família, trabalho e eu mesma.”- existe uma marca temporal “agora”, considerada, gramaticalmente, como um advérbio, que aponta bem na linha do tempo, o momento referido pela atriz. Ao afirmar que agora Paris Hilton é só família, trabalho e ela mesma, a atriz deixa uma informação pressuposta, a de que antes ela não era só família, trabalho e ela mesma, ou seja, existia algo a mais. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 115 Ao ler a segunda sentença -“Ando ocupada demais para um namoro sério.”- o novo contexto nos informa que, o algo a mais implícito na primeira sentença, nos permite interpretar que ela se referia a “um namoro sério”. Desta maneira, uma das outras coisas que existiam em sua vida, além de família, trabalho e ela mesma, era a um “namoro sério”. Assim sendo, por causa da segunda sentença proferida por Paris Hilton, percebemos que existe uma intensificação da informação inicialmente pressuposta. Com a contextualização da revista, ao afirmar -“Paris Hilton, celebridade, depois de acabar com o último namorado”- este novo contexto confirma a interpretação da pressuposição de que existia um namoro na vida da atriz e, portanto, confirmamos a pressuposição dita inicialmente, a de que antes a Paris Hilton tinha um namoro e não só família, trabalho e ela mesma. Com a sequência da contextualização da revista, ao dizer -“e antes de engatar com o próximo”– este novo contexto ainda confirma a pressuposição inicial, isto por causa da expressão “e antes”, no entanto, argumentativamente, desfaz o que foi dito pela celebridade ao afirmar que ela engatou um novo relacionamento. Passamos, portanto, a interpretar que a atriz não é só família, trabalho e ela mesma, uma vez que, conforme a informação apresentada pela revista, possivelmente ela tenha assumido outro relacionamento. “Frase” 03: “Esta é a festa mais sexy do mundo no canal mais sexy do mundo.” DR. ROBERT REY, o cirurgião plástico brasileiro que é sucesso em Hollywood, falando do show trash Sexo a 3, que apresenta na RedeTV! Na fala acima, podemos interpretar que alguns pressupostos são ativados a partir de descrições definidas. No momento em que o enunciador afirma -“Esta é a festa”- deixa Nas fronteiras da linguagem ǀ 116 pressupor a existência de algo, e, neste caso, pressupõe a existência de uma festa. Conforme Moura (2006, p. 18), “esse tipo de pressuposição é chamado também de pressuposto de existência”. Consideramos, portanto, que a primeira pressuposição contida na fala do Dr. Robert Rey é a de que existe uma festa. O segundo pressuposto de existência nesta frase é o de que existe um canal. Outras pressuposições podem ser interpretadas neste texto, por causa do uso da marca linguística “mais”. Ao considerar que existe uma festa e esta é a mais sexy do mundo, a palavra “mais” ativa o pressuposto de que existem outras festas que são sexy. Da mesma forma acontece na segunda parte da sentença, quando o médico cirurgião afirma –“no canal mais sexy do mundo”– a palavra “mais” aciona o pressuposto de que existem outros canais. Para comprovação destas pressuposições, neguemos e interroguemos o posto e verifiquemos a permanência dos pressupostos: Posto: “Esta é a festa mais sexy do mundo no canal mais sexy do mundo.” Pp. 1: Existe uma festa. Pp. 2: Existe um canal. Pp. 3: Existem outras festas que são sexy. Pp. 4: Existem outros canais. Neg.: Esta não é a festa mais sexy do mundo não é o canal mais sexy do mundo. Int.: Esta é a festa mais sexy do mundo no canal mais sexy do mundo? Comprovamos que, tanto com a negação do posto, quanto com a interrogação, os quatros pressupostos continuam inalterados. Consideramos, portanto, que os quatros são pressupostos contidos na fala da “frase”. A contextualização da revista, nesta “frase”, ao dizer –“falando do show trash Sexo a 3”– ela classifica, nominalmente, a festa que havia sido referida pelo Dr. Rey em sua fala. Em seguida, a contextualização também nomeia o canal pelo qual tinha se referido o médico cirurgião plástico. Ao afirmar – “falando do show trash Sexo a 3, que apresenta na RedeTV!” – a revista considera que o leitor possui o conhecimento de que a RedeTV é um canal de TV brasileiro e, desta forma, confirma o pressuposto de que existe um canal. Portanto, com a contextualização da revista, somente dois dos quatro pressupostos foram confirmados: o pressuposto 1 - existe uma festa - e, depois do novo contexto, consideramos que esta festa é chamada de Sexo a 3; e também reitera a pressuposição 2 - III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 117 existe um canal - e, a partir da contextualização, conhecemos que o canal referido é a RedeTV. Os demais pressupostos contidos na fala do Dr. Rey, não foram anulados, alterados e nem reiterados pela contextualização da revista. Diante das três “frases” analisadas, consideramos que houve reiteração de pelo menos um pressuposto em duas delas. Somente em uma “frase” observamos que a contextualização anula o pressuposto ao ativar outro pressuposto e em apenas uma outra “frase” a contextualização da revista não interferiu na pressuposição. Desta forma, no corpus analisado, o novo contexto, inserido a partir da contextualização da revista, em sua maioria, ratificou os pressupostos inseridos nas falas das celebridades, sendo a anulação e não interferência ocorrida na minoria das “frases”. 3. Algumas considerações Como pudemos observar, o gênero “frases” possui bastante relevância no que concerne à análise dos implícitos pressupostos, uma vez que, a partir de marcas linguísticas, faz-se possível interpretar todas as informações contidas nas falas das celebridades, mesmo que estas não tenham sido inseridas de maneira proposital. Com a análise deste gênero como um todo, ou seja, fala + contextualização, comprovamos que, de fato, a contextualização da revista ativa novos contextos e este, em muitos casos, interfere na pressuposição da fala, mesmo que esta interferência seja apenas para ratificar a pressuposição. Assim sendo, a análise do corpus atingiu nossas expectativas, pois, como proposto inicialmente, descrevemos os pressupostos inseridos nas “frases”, aplicando os testes a fim de possibilitar sua comprovação e, posteriormente, observamos o comportamento dos novos contextos inseridos a partir da contextualização da revista, verificando se estes anulavam, alteravam ou reiteravam os pressupostos contidos na fala das pessoas públicas. Diante destas considerações, observamos que a contextualização ora interfere na pressuposição, e ora não, nos revelando que, mesmo não sendo recorrente em todos os textos, consideramos que o contexto dinâmico influência na compreensão e interpretação do texto como um todo. A partir do novo contexto, novas informações são inseridas e estas permitem, muitas vezes, maior clareza no entendimento do dito e não dito na fala da personagem. Além disso, a análise do fenômeno da pressuposição, a partir da inserção de novos contextos, tornou-se bastante relevante para este estudo, uma vez que o aparecimento de novos contextos é uma característica intrínseca do gênero “frases” por causa de sua Nas fronteiras da linguagem ǀ 118 construção composicional. A partir da contextualização da revista, as informações pressupostas podem ser confirmadas ou anuladas permitindo a compreensão de que a pressuposição discursiva pode ser considerada um fenômeno característico do gênero estudado. Sem dúvidas, o gênero em questão é riquíssimo para ser explorado no campo dos estudos linguísticos, visto que este apresenta a seleção (recorte) das falas de celebridades; inserem-se considerações da revista em relação às determinadas falas; e, ainda, escolhe-se imagem ilustrativa da pessoa pública. Todos esses critérios são bastante relevantes para o estudo em todas as áreas da Linguística e para o meio acadêmico. Referências BAKHTIN, Milhail Mikhailovitch. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. (1ª edição 1992). Tradução: Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 262-306. COSTA, Sérgio Roberto. Frases. In: Dicionário de gêneros textuais. 2. ed. ver. ampl. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Revisão técnica da tradução Eduardo Guimarães. Campinas, SP: Pontes, 1987. MOURA, Heronides M. de Melo. Significação e contexto: uma introdução a questões de semântica e pragmática. 3. ed. Florianópolis: Insular, 2006. PEDROSA, Cleide Emília Faye. “Frases”: caracterização do gênero e aplicação pedagógica. In: DIONISIO, Angela Paiva; MACHADO, Anna Rachel Machado; BEZERRA, Maria Auxiliadora (orgs.). Gêneros Textuais e ensino. 5. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007, p. 151 – 165. ______. Locutores: a construção de sua identidade no gênero midiático. In: Congresso Nacional de Lingüística e Filologia, 8; Congresso Internacional de Estudos Filológicos e Lingüísticos, 1. 2004, Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.pos.ufs.br/letras/images/stories/File/Artigos/LOCUTORES_A_CONSTRUCAO _DE_SUA_IDENTIDADE_NO_GENERO_MIDIATICO.pdf>. Acesso em: 04 dez. 2012. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 119 A ESCRITA DEMOCRÁTICA E RUMOREJANTE DE UMA NOVELA NACIONAL, EM A BICICLETA QUE TINHA BIGODES: ESTÓRIAS SEM LUZ ELÉTRICA [Voltar para Sumário] Alice Botelho Peixoto (PUC Minas. CAPES) Em A Bicicleta que tinha bigodes: estórias sem luz elétrica, do escritor angolano Ondjaki, acompanhamos as peripécias de um menino em busca do seu sonho, ganhar um concurso nacional de estórias, cujo prêmio é uma sonhada bicicleta colorida. Surpreendentemente, a novela infanto-juvenil não nos coloca atrás da bicicleta, um sonho comum a muitas crianças. Vamos guiados pela voz do menino-narrador em busca de uma ideia para escrever a sua estória. Vamos procurar o segredo nos bigodes do tio Rui, de onde saem as boas ideias para as boas estórias. O assunto é introduzido nas primeira páginas, ainda não numeradas, onde lemos um breve diálogo entre o sobrinho que pede licença ao tio para “falar dos restos de letras que a tia Alice tira do teu bigode à noite?” (ONDJAKI, 2012)1. Diálogo que é respondido também com um bilhete, assinado pelo “Tio Manuel também Rui”. O paratexto, na orelha do livro, traz a seguinte dedicatória do autor, Ondjaki, aos escritores Luís Bernardo Honwana, moçambicano, e Manuel Rui, angolano: “o corpo deste texto é um abraço de amizade e de saudade” (ONDJAKI, 2012). A filiação reclamada pelo autor, Ondjaki, às literaturas angolana e africana é explicita. Na narrativa, associamos logo a dedicatória feita ao escritor angolano Manuel Rui, ao personagem, “tio Manuel também Rui”, que atua, na trama, também como escritor. Assim, expectativa e mistério introduzem a estória dessa novela infanto-juvenil. É em torno da expectativa de situar a novela de Ondjaki dentro do sistema literário angolano e do mistério desses “restos de letras” a cair do bigode do tio Rui que formulamos nossa problemática. Concordamos com a interpretação da pesquisadora Inocência Mata que entende certas narrativas angolanas contemporâneas como a “'escrita da nação', embora não mais numa perspectiva nacionalista” (MATA, 2008, p. 75). Se sabemos que a temática 1 Todas as citações de A Bicicleta que tinha bigodes: estórias sem luz elétrica se referem à edição de 2012 e serão indicadas a partir de agora apenas pelo número da página. Nas fronteiras da linguagem ǀ 120 nacional está presente na literatura angolana em diferentes épocas, é necessário situar em que fase do relacionamento, entre a literatura e a nação, está a obra estudada. Para tanto, vamos pelo caminho escolhido pelo menino-narrador, o da própria escrita. A partir da filiação à literatura africana e, especificamente, à angolana, declarada na dedicatória, interrogamo-nos sobre a representação ficcional da nação angolana. Procuramos entender como a língua escrita se torna a expressão de uma língua nacional, tanto na língua literária do escritor Ondjaki, quanto na língua que os personagens encenam nessa busca por uma estória. Finalmente, discutiremos sobre como, no exercício da criação ficcional, se materializa o que Barthes considera um “rumor da língua” (BARTHES, 1988). Abordaremos a representação da nação proposta por Ondjaki apoiando-nos nas reflexões da pesquisadora das literaturas africanas de língua portuguesa, Inocência Mata que analisa a “escrita angolana pós-colonial” como “uma escrita de ruptura.” (MATA, 2008, p.75). Entendemos que o corte com o passado colonial, expresso na literatura angolana contemporânea, caracteriza-se pelo abandono dos temas relacionados a terra-mãe-Angola por romper com uma escrita marcada pela utopia de uma nação, que valorizava uma essência tipicamente angolana. No entanto, a nação independente do jugo colonial não é aquela tão sonhada. Uma literatura da distopia aparece na pluma principalmente do escritor Pepetela, marcando a cisão entre a “escritura da terra”, dos poetas da geração da revista Mensagem, e “escrita da História”, referente à produção angolana pós-colonial. Essa “ruptura” de gerações literárias se dá mais na abordagem literária das questões relativas à nação do que no assunto em si. Ou seja, continua-se falando de Angola, do país e do povo, muitas vezes de forma política, mas não mais de forma idealizada. É nessa linha que identificamos uma temática nacional na novela em estudo, no intuito de compreender a relação de filiação d'A Bicicleta ao trabalho do escritor Manuel Rui. Essa “escrita da nação” traz referências explicitas ao contexto da guerra civil dos anos 80 e 90, como a falta de luz, indicada no subtítulo. Notamos que a guerra faz parte da vida dos personagens quando o menino-narrador nos conta que “Era hora do noticiário e explicaram coisas da nossa guerra, falaram também da falta de água e de uma falta de luz que também poderia acontecer devido aos combates de Cambambe.” (p.43). Apesar da nota de esperança expressa pelo tom infantil da estória, não há a utopia de outrora. Embora, eventualmente, a obra permita uma interpretação por um viés ideológico, por exemplo, quando há denúncia de situações precárias, o que prevalece no texto literário é a apropriação de um dado acontecimento, contexto extra-textual (histórico ou atual), que se torna ambiente da estória. A III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 121 pesquisadora Tânia Pellegrini nos esclarece sobre a relação da arte literária com o real e explica o realismo como: um modo de representar as relações entre o social e o pessoal que não se limita a um simples processo de registro e/ou descrição, pois sempre depende, para sua plena elaboração, da apreensão das formas de percepção e de representação artística, mutáveis ao longo da história. Nesse sentido, trata-se de um modo de compreensão estética do mundo social que o representa em profundidade, e não uma forma de representação presa apenas a aspectos aparentes ou a possibilidades dadas pela linguagem em si. (PELLEGRINI, 2009, p.33). Na trama d'A Bicicleta que tinha bigodes, Ondjaki elabora uma imbricação de contextos, real e fictício, sugerindo uma espécie de mise en abyme, ou efeito de espelhamento, onde ficção e realidade estão uma dentro da outra, ao infinito, num movimento em que a literatura fala dela mesma e a obra se volta sobre seu próprio processo criativo. No geral, o termo mise en abyme refere-se: aos casos em que a obra representa no texto a leitura dele próprio ou a escritura dele próprio. […] A representação pode propor o que é chamado de 'reduplicação repetida', ou 'ao infinito', na qual o fragmento posto no procedimento de “mise en abyme” comporta nele mesmo uma representação que entretém uma relação de similitude com o todo. [...] Oferecendo ocasiões para uma reflexão metadiscursiva, a obra pode refletir sobre o desenvolvimento complexo que é sua própria elaboração […]. Além da dimensão lúdica do processo de mise en abyme, destacamos sua capacidade de produzir uma infinidade de “trompe-l'œil” […] e podemos dizer que essas representações espetaculares são sintomáticas de períodos de crise da representação, ou seja, de momentos onde a mimésis duvida de sua própria aptidão de falar verdadeiramente do mundo, e se volta para o que toda representação comporta de ilusão e de enganação. [...] [Essa estratégia de mise en abyme] usa de procedimentos variados para se situar mais perto do gesto da criação literária, apreendida no seu movimento de reflexibilidade de um texto que se torna “metatexto”. (GEFEN, 2003, p. 211-212, tradução nossa).2 É nesse sentido, de um “metadiscurso”, de um “metatexto” e de uma “reduplicação repetida” que lemos a referida dedicatória, na orelha do livro, ao escritor angolano Manuel Rui. Nesse fragmento posto no procedimento de “mise en abyme”, o autor Ondjaki que, logo “[...] on parlera « mise en abyme » pour caractériser tous les cas où une œuvre représente dans le texte sa lecture ou son écriture […]. À la limite, la représentation peut proposer ce que l’on nomme réduplication répétée, ou à l’infini, dans laquelle le fragment mis « en abyme » comporte lui-même une représentation ayant cette relation de similitude avec le tout. […]. En offrant des occasions de réflexion métadiscursive, l’œuvre peut réfléchir au cheminement complexe dont relève son élaboration […]. Par-delà sa dimension ludique, aptitude à produire une infinité de « trompe-l’œil » […] on peut avancer que ces représentations spéculaires sont symptomatiques de périodes de crise de la représentation, c’est-à-dire de moments où la mimèsis se met à douter de son aptitude à parler véritablement du monde, pour se replier sur ce que toute représentation comporte d’illusion et de mensonge. […] Jean Ricardou a montré dans les Problèmes du nouveau roman (1967) comment ce courant littéraire avait usé de procédés variés de mise en abyme pour se situer au plus près du geste même de la création littéraire, saisie comme dans son mouvement même par la réflexivité d’un texte devenu « métatexte ».” 2 Nas fronteiras da linguagem ǀ 122 em seguida, coloca ênfase na sua função de escritor, se declara influenciado pelo mais velho: “tu sabes: (quase) todos nós, dos anos 80, somos um pouco a ficção e a realidade do teu Quem me dera ser onda”. Ou seja, na novela, quando Ondjaki reitera a estratégia ficcional de seu mais velho, fazendo com que a sua ficção também encene questões do contexto sóciopolítico angolano, assim como a novela de Manuel Rui, a obra se volta sobre ela mesma. Há um movimento reflexivo no texto de Ondjaki que trata do fazer literário pela evocação do escritor Manuel Rui, no paratexto, pela reiteração de sua estratégia, na trama, e pela encenação da própria criação literária: ao transformar o escritor em personagem e ao usar o narrador como investigador desse processo de criação literária encenada pelo tio Rui e, pelo próprio narrador que escreve a sua estória. Assim, o diálogo com o texto de Manuel Rui, também uma obra literária curta, instiga a interpretação. Situamos ambos escritores – embora sejam de gerações, idades, diferentes – no mesmo movimento literário angolano, analisado por Inocência Mata como a “escrita da História”, o que implica uma relação da obra com o contexto sócio-político angolano. É neste contexto, de reinterpretação de um corpo nacional que se apresenta fracturado em termos de memórias que a ficção angolana tem sido expedita no processo de cerzimento identitário: Pepetela, Boaventura Cardoso, Manuel Rui; mais recentemente João Melo, Roderick Nehone, João Tala, Ismael Mateus, Ondjaki, entre poucos outros.” (MATA, 2008, p. 81). Identificamos, de fato, a permanecia da discussão sobre a identidade nacional angolana, na novela de Ondjaki. O processo de criação literária, encenado na obra com o personagem Manuel Rui, concretiza na escrita literária a língua nacional angolana pelo movimento reflexivo da obra observado anteriormente. Observamos ainda, no processo de encenação da escrita, a opção pelo sotaque angolano com a incorporação das letras estrangeiras ao alfabeto português e de palavras locais, como veremos adiante. Por isso, a figura do escritor Manuel Rui e do personagem em homenagem, o também escritor tio Rui, é fundamental. O escritor é na estória, e para ela, o catalisador da abstração da língua, aquele “que é escritor e inventa estórias e poemas que até chegam a outros países muito internacionais.” (p.9). Tio Rui é desde o início escolhido como “patrocinador” da empreitada de construção da estória, que incluí ter a ideia, primeiro, e escrevê-la, em seguida. Há uma ênfase no carácter inventivo da escrita de uma estória: “para ganhares tens de inventar uma estória.” (p.11). III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 123 - Tou masé3 a pensar que devíamos pedir patrocínio no tio Rui, aquele que escreve bué4 de poemas. - Isso não é batota5? - Batota porquê? - E as outras crianças? - Quero lá saber, não tenho culpa que o tio Rui vive aqui na minha rua. Eles que descubram também o escritor da rua deles. (p.11). No diálogo acima, entre o narrador e o personagem adulto CamaradaMudo, o menino elege o tio Rui como patrocinador oficial e legítimo da estória que ele quer escrever para ganhar o concurso, porque o tio Rui é o escritor “minha rua”. Pedir essa ajuda ao escritor profissional não invalidaria sua candidatura, já que as outras crianças também podem pedir ajuda ao “escritor da rua deles”. Ao sugerir que existiria um escritor por rua em Luanda, tio Rui se torna o representante de todos eles por atuar nessa trama. Da mesma forma, a estória que está sendo contada é representativa, pois é a estória contada entre todas as outras de todas as crianças que tentam ganhar o concurso. Nessa perspectiva, em que um caso individual contribui para representar o coletivo, tio Rui sugere ao seu pupilo que escreva a estória dele: “- Só sei que queria ganhar a bicicleta. Mas isso não é uma estória, é só uma vontade.” (p. 64), diz o sobrinho ao tio, pedindo uma ideia. Ao que o escritor responde: “- Essa é a tua estória. Podias escrever sobre isso.” (p. 64). Logo, se aderimos ao jogo sugerido pelo autor que implica uma relação entre o texto e o contexto, é válida a analogia entre a escrita literária, representada na trama pela busca da estória para ganhar o concurso, e a função da literatura no processo de escrita da história, apontada por Inocência Mata. A estudiosa considera que “A actual produção [literária angolana] persegue, e realiza, um 'inventário de diferenças e conflitos' para se insurgir contra a privatização da História pelas sucessivas dominâncias” (MATA, 2008, p. 76). A literatura atuaria, então, na democratização da história contando a estória de cada um, como tio Rui ressalta: “essa é a tua estória” (grifo nosso). Nesse sentido, a busca do menino por uma ideia para a estória do concurso representa a busca pela própria história, “contra a privatização da História”. Dessa forma, fica explícito que “Tio Manuel também Rui” estabelece uma relação direta entre a escrita, ficcional e histórica, e a literatura angolana dentro da novela infantojuvenil A Bicicleta que tinha bigodes: estórias sem luz elétrica, quando é claro o jogo entre ficção e realidade, num processo de auto-referenciação explicado pela mise en abyme. No No glossário ao fim da obra, Masé: “Mas + é”. “Bué: grande número ou quantidade”. 5 “Batota: qualquer forma de trapaça, falcatrua”. 3 4 Nas fronteiras da linguagem ǀ 124 plano da escrita literária, para compreendermos a deferência do escritor mais novo ao mais velho, destacaremos algumas características da escrita de Manuel Rui e do seu famoso Quem me dera ser onda, analisado pela professora Maria Teresa Salgado (2011) à luz do conceito de carnavalização bakhtiniana, de paródia e de realismo grotesco. Sobre Manuel Rui, ressaltamos: Como afirma Luiz Kandjimbo (1997), a ficção de Manuel Rui é marcada por um realismo social que assegura ao escritor o manejo de instrumentos capazes de tornar risíveis as situações enfocadas. O riso e a ironia são as armas com que esse escritor angolano disseca o cotidiano das gentes simples ou critica o modo de vida dos mais abastados. (FONSECA; MOREIRA, 2007, p. 46). Escolhemos, pois, entender a novela de Ondjaki, no rastro da escrita de Manuel Rui, de um “realismo social”, também como “a compreensão estética do mundo social”, no sentido em que nos fala Pellegrini. Nesse caminho, somos induzidos a nos questionar sobre a representação literária de uma situação angolana mais ampla e percebemos em Ondjaki um tom irônico, que pode provocar o riso por sua dose de ridículo, em certas cenas da novela, como no diálogo seguinte acerca do atropelamento do sapo Raúl, irmão do sapo Fidel. - Só uma coisa, camarada General. - O que foi, camarada Rui? - O camarada motorista deve sofrer uma atualização. - Como assim? Uma multa? - Não. Uma atualização nominal. O camarada motorista passa a ser chamado de Dez. - Isso é que não – o GeneralDorminhoco ficou furioso. - Sapos não contam! Só pessoas ou cães vacinados. - Você está a dizer que um sapo chamado Raúl, irmão de um sapo chamado Fidel, não conta para mudar o nome do seu motorista? Nós, as crianças, rimos baixinho. O GeneralDorminhoco foi obrigado a concordar e o motorista passou a chamar-se Dez. (p. 25). Nessa cena, os nomes próprios dos sapos Raúl e Fidel, o camarada General que é GeneralDorminhoco e seu motorista, chamado Nove, que passa por uma atualização nominal, são uma sátira ao formalismo dos regimes militares, em geral, mas também fazem referência aos regimes de esquerda adotados em alguns países africanos após a independência, como foi o caso em Angola. Assim, as referências a um contexto extraliterário são explícitas e várias. A personagem Isaura, amiga do narrador, marca a outra filiação do escritor Ondjaki em referência também declarada a uma personagem do escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana. Na Bicicleta, assim como no conto de Honwana, Nós matamos o Cão-Tinhoso, III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 125 Isaura tem uma relação especial com os animais. Na novela angolana, ela é uma menina que dá nome aos bichos do seu quintal de presidentes ou de pessoas “importantes”, em referência ao contexto da história mundial recente. Estão presentes o gafanhoto SamoraMachel, a lesma Senghor, o cachorro AmílcarCabral ou AmílcarCãobral, os também gafanhotos Mobutu e Khadafi e ainda os papagaios, pai e filho, JãoPauloSegundo e JoãoPauloTerceiro e o gato Gandhi, antes chamado de Tátecher6. Os personagens humanos também recebem nomes significativos, como o CamaradaMudo. Tudo escrito junto, com o “m” de mudo em letra maiúscula, mostrando que substantivo e adjetivo compõem um nome próprio único. “Camarada” remete a forma de tratamento utilizada pelo partido-governo socialista, não só de Angola. No caso, o Movimento Pela Libertação de Angola (MPLA) chegou ao poder com o intuito de construir um país socialista, de partido único e economia planificada, com a independência em 1975. O partido está até hoje no poder com o presidente, engenheiro de formação, mas que já não é mais camarada, Eduardo Santos que foi empossado pela primeira vez em 1979. Logo, um CamaradaMudo, pelo designação de camarada remete ao contexto econômico e político de Angola nas primeiras décadas do pós-independência. O adjetivo mudo, que acoplado ao substantivo forma o nome próprio desse personagem, aparece mais como uma crítica ao regime do que como uma característica do personagem, denunciando assim esse sistema que falhou na construção da nação sonhada pelos poetas como o primeiro presidente angolano, Agostinho Neto. Da mesma forma, não parece gratuito dar nomes de ditadores aos gafanhotos, pragas em certas regiões africanas, assim como as ditaduras sanguinárias e silenciadoras. Devemos, pois, atentar para produção de sentido na ficção, a partir das referencias extraliterárias. Interessante perceber, nesse contexto, como o status do escritor é visto pelas crianças, quando o tio Rui vence a discussão anterior contra o GeneralDorminhoco, uma voz anônima diz: “- Eu quando crescer também quero ser advogado e escritor. Assim nenhum general vai querer me enganar – alguém falou.” (p. 26). Manuel Rui, autor de Quem me dera ser onda é, 6 Samora Machel: líder na luta de independência e primeiro presidente de Moçambique, socialista. Léopold Sédar Senghor: poeta e escritor, desenvolveu o conceito de negritude de Aimé Césaire e foi o primeiro presidente do Senegal, da independência em 1960 a 1980, também simpatizante do socialismo. Amílcar Cabral: poeta e líder pela luta de independência da Guiné Bissau e do Cabo Verde, também teve participação no MPLA. Khadafi: ditador da Líbia, deposto e morto em 2011, tinha sua própria filosofia de governo. Mobutu: um dos governantes mais ricos do mundo, apoiado pelos EUA, deu o golpe militar que tirou do governo Patrice Lumumba. O ditador Mobutu nomeou o antigo Gongo belga de Zaire. Atualmente, chama-se República Democrática do Congo. João Paulo II: papa polonês de 1978 a 2005. Gandhi: líder pacifista na luta de independência da Índia. Margaret Tatcher: primeira ministra do Reino Unido, de 1979 a 1990, conhecida como a dama de ferro. Nas fronteiras da linguagem ǀ 126 de fato, escritor e advogado em Luanda. Mais uma vez, Ondjaki reforça o jogo entre ficção e realidade na sua obra. A aproximação com a novela de Manuel Rui se dá, assim, na manifestação literária de um olhar crítico da realidade social e política de Angola. Além disso, em Ondjaki, as situações infantis trazem para perto do leitor, numa primeira instância, um cotidiano lúdico, marcado pela esperança, mesmo que infantil, mas sem a utopia de outrora. Mas não só, pois aqui o lúdico da invenção infantil se transforma em crítica e denúncia social, como observamos no trecho a seguir: Ouvi os passos dos chinelos da Avó bem devagar, vi as primeiras luzes da manhã. Um dia alguém disse que aquela era uma luz muito fresca, eu ria de ouvir essas frases dos poetas, “luz fresca”, como a água da Avó regar as plantas verdes de manhã, isso quando a água vinha. Se a água não viesse, a minha Avó, que é muito engraçada, regava mesmo assim. - Só de mangueira a fingir numa água que ainda está lá na barragem, Avó? - Assim mesmo. - Tipo que és do teatro dos jardineiros? - Tipo – a Avó sorria, os gestos dela continuavam a abanar a mangueira sem água nenhuma, só umas gotas sacudidas do dia anterior ou quê. - Assim estás a regar como, Avó? - A regar só. As plantas sabem. A regar só. A Avó ficava bué de tempo a “regar só”. Mesmo deixava passar esse tempo com se fosse uma demora de molhar. E olhava o céu num pedido de pingos. (p. 39-40). “A regar só”. A economia de palavras provoca um efeito lírico na cena, pois faz da pequena expressão uma frase fértil de sentidos, aludindo a significados possíveis que trazem esperança. Embora o gesto em si não provoque efeito algum, regar sem água não abastece as plantas, ele enche a situação da falta de água de esperança ao se transformar numa espécie de oração escondida, como confirma o menino-narrador, ao contar: “E olhava o céu num pedido de pingos.” E ao perguntar: “- Pediste água dos céus, Avó, no tal camarada que abre as torneiras?” (p. 40). Ainda nessa cena, o humor do menino-narrador imprime um tom bem humorado à narrativa, ao instigar o riso numa situação trágica de falta d'água. A narração expõe aspectos cômicos do cotidiano, apontando para o fingimento óbvio, mas também para o fingimento escondido na rotina, e denuncia, assim, o modo disfarçado de lidar com as práticas religiosas tradicionais, muitas vezes, perseguidas pelos regimes dos generais e camaradas. Abusando do que pode ser engraçado, o narrador ressalta com ironia a confusão de valores na época da guerra civil, ao terminar dizendo que seria melhor que a Avó pedisse água à companhia de abastecimento “na conta de seres mais-velha respeitada”, quando sabemos que “ser mais III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 127 velho” é um status colocado em xeque desde a época da colonização. Logo, a cena representa com justeza o tom impresso ao longo da obra. A novela encena certos costumes angolanos, valendo-se do passado recente do período de guerra civil. A busca pela ideia para escrever a estória do concurso aparece como a força motriz da trama e representa o processo criativo da escrita literária. “Escrever a estória, com um bocadinho de esforço, talvez dois ou três podem conseguir, mas a ideia é como uma raiz invisível que faz crescer a planta.” (p. 44). A literatura toma parte na escrita de uma história ainda não registrada e mais democrática, ao encenar a própria escrita de uma estória que referencia o contexto de construção da nação angolana. Assim, para entendermos o lugar da escrita e da linguagem literária como concretização de algo que é nacional, é fundamental atentarmos para o lugar ocupado pelo tio Rui e pela própria escrita na trama. Tio Rui traz consigo, em seus bigodes, a escrita. Por seu papel, ele é admirado pelas crianças que demonstram curiosidade e encantamento com a profissão de escritor, aquele que tem ideias e escreve. A visão das letras caindo concretiza de forma lúdica, para as crianças, o processo criativo: ter ideias, pensar, e escrevê-las, comunicar. A escrita se materializa ao sair dos bigodes do mais velho, colocando o gesto da criação literária mais próximo das crianças, dos leitores, e do próprio texto que fala dele mesmo, como explicado anteriormente sobre a estratégia de mise en abyme. A escova tocava e fazia acontecer uma espécie de brilho. O tio Rui parece que sorria devagar, eu olhava a Isaura que olhava para eles e eu olhava de novo: na outra mão dela, a tia Alice tinha uma pequena caixa de madeira, com desenhos que eu já vi num museu qualquer, a caixa aberta ficava assim perto do queixo do tio Rui. Ela esfregava os bigodes, soprava, esperava e aquilo acontecia: pequenas letras caíam do bigode para a caixa, eram vogais de “a”, “e”, “i”, “o”, “u”, mas também sobras de “k” e “w”, alguns “t” e dois “h”. Ela escovava e a caixa guardava aquelas letras soltas. Parece que aquilo dava comichão, o tio Rui mexia os lábios, queria tocar no bigode mas a tia Alice não deixava. - Isso é mesmo possível ou é feitiço? - Acho que é mesmo possível, o tio Rui tem bigodes de escritor – a Isaura falou baixinho. (p. 48). Nesse momento, a linguagem é percebida como algo material pelas crianças, quando elas espreitam os “restos de letras” caindo do bigode do tio Rui. A abstração de uma língua nacional se concretiza com a visão dessas letras caindo: “eram vogais” da língua portuguesa, “mas também sobras de 'k' e 'w'”. Essas últimas, incorporadas ao alfabeto da língua portuguesa e usadas na grafia de algumas palavras do português com sotaque angolano, constroem a “nossa língua toda desportuguesa...”, segundo Ondjaki, na orelha do livro. E a criação literária acontece. Nas fronteiras da linguagem ǀ 128 Considerações finais Bakhtin associa à composição do gênero romance, o trabalho com uma língua nacional única que é “estratificada” na e para a composição do romance. Ora, em certos romances angolanos, que apresentam uma temática nacional, como n'A Bicicleta que tinha bigodes, percebemos que essa estratificação atende não apenas à formação de um contexto social ou de um personagem, como explica Bakhtin, mas associa a linguagem à formação de uma língua nacional própria e diversificada. O sotaque português angolano, constituído por ks, ws etc torna-se a língua nacional angolana formada com o sotaque das línguas africanas. Essa língua nacional angolana torna-se rumorejante, no sentido de Roland Barthes, ao incorporar em si as marcas das línguas africanas. No silêncio da escrita e da leitura, o “rumor da língua” é introduzido pelos sinais gráficos, das letras que caem na caixa mágica e na incorporação das palavras angolanas listadas no glossário. Mas é quando o mais velho dá licença ao mais novo para nos contar a estória que podemos exemplificar o pensamento do semiólogo e crítico literário. Respondendo à pergunta do sobrinho colocada no início da trama e desse breve estudo, tio Rui diz: “Podes, com palavras pode-se mesmo traduzir a voz do silêncio. Com bigodes e a fazer de guiador de uma bicicleta que desce para cima sem travões. Podes, sim senhor, falar dos restos de letras que, felizmente, andamos a semear.” Dessa forma, o rumor está concretizado na literatura como a tradução de uma “voz do silêncio”, quando “uma bicicleta que desce para cima sem travões”. A língua se torna rumorejante ao assumir “esse não-sentido que faria ouvir ao longe um sentido agora liberto de todas as agressões de que o signo, formado na 'triste e selvagem história dos homens', é a caixa de Pandora. É sem dúvida uma utopia; mas a utopia é que muitas vezes guia as pesquisas de vanguarda.” (BARTHES, 1988, p. 94). Para Barthes, a liberdade de sentido que um signo poderia assumir é uma utopia. No entanto, é justamente a utopia que guia “as pesquisas de vanguarda”. Assim, “pesquisas de vanguarda”, guiadas pela utopia, seriam capazes de libertar o sentido. A literatura, enquanto forma de arte, faz essas “pesquisas de vanguarda” e liberta o sentido para “com palavras traduzir a voz do silêncio”. Na estória d'A Bicicleta que tinha bigodes, o sonho e o desejo guiam a escrita. O menino-narrador persegue as letras, a palavra, a linguagem e finalmente, a escrita, imbuído do sonho de ganhar a bicicleta, para, ao libertar a escritura (BARTHES, 1998, p. 50), encontrar sua língua nacional. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 129 Percebemos, assim, na narrativa de Ondjaki, a encenação de um jogo de representatividades. Primeiro, o mote da trama é a busca de uma ideia para a estória que deve ganhar o concurso nacional. O concurso nacional elege a melhor estória, entre todas as outras, e premia o ganhador com uma bicicleta nas cores da bandeira angolana. Em seguida, dentro e fora da narrativa, temos um escritor, aquele que tem as ideias e escreve as estórias, escolhido para representar todos os outros: o tio Rui da “minha rua” e o Manuel Rui, como o escritor angolano, representante desta literatura. Finalmente, metaforização e metalinguagem ficam claras na novela, quando os escritores, Manuel Rui e Ondjaki, se tornam personagens para encenar a escrita: uma estória, a de uma rua, para representar todas as outras, de todas as outras ruas, sendo escrita para falar da escrita e da literatura. Logo, a novela infanto-juvenil de Ondjaki escreve, em língua nacional, a representação literária da nação angolana. E age de forma democrática na literatura e na históira, pois “Que eu saiba, ninguém é dono de migalhas nenhumas, e aquela caixa tinha só restos de palavras, bocadinhos de sonhos, letras que nunca conseguiram ser palavras nem mesmo frases de o tio Rui escrever os livros dele.” (p. 39). Referências BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. São Paulo: Unesp, 1993, p. 71-163. BARTHES, Roland. O Rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988. HONWANA, Luís Bernardo. Nós matámos o Cão-Tinhoso. Porto: Edições Afrontamento, 1998. FONSECA, Maria Nazareth Soares; MOREIRA, Terezinha Taborda. Panorama das literaturas africanas de língua portuguesa. In: Cadernos Cespuc de pesquisa, Belo Horizonte, PUC Minas, n. 16, p. 13-69, set. 2007. GEFEN, Alexandre (org.). La mimèsis. Paris: GF Flammarion, 2003. MATA, Inocência. Narrando a nação: da retórica anticolonial à escrita da história. In: PADILHA, Laura Cavalcante; RIBEIRO, Margarida Calafate. Lendo Angola. Lisboa: Edições Afrontamento. 2008, p. 75-86. ONDJAKI. A Bicicleta que tinha bigodes: estórias sem luz elétrica. Rio de Janeiro: Pallas, 2012. PELLEGRINI, Tânia. Realismo: a persistência de um mundo hostil. In: Revista brasileira de literatura comparada, n. 14, p. 11-36, 2009. Disponível em: http://www.abralic.org.br/revista/2009/14/63/download. Acesso em 10 de julho de 2014. Nas fronteiras da linguagem ǀ 130 RUI, Manuel. Quem me dera ser onda. União dos Escritores Angolanos, 1989. SALGADO, Maria Teresa. Carnavalizar é preciso: uma leitura da paródia em “Quem me dera ser onda”. In: Mulemba, Rio de Janeiro, UFRJ, v. 1, n. 5. p. 67-78, dez. 2011. Disponível em: http://setorlitafrica.letras.ufrj.br/mulemba/artigo.php?art=artigo_5_5.php III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 131 A PRODUÇÃO DE TEXTOS EM SALA DE AULA: UM PROCESSO DE RETEXTUALIZAÇÃO [Voltar para Sumário] Aline Peixoto Bezerra (UERN) Introdução O trabalho com a língua materna em sala de aula, conforme postulam os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), deve ter como base o texto, o qual proporcionará ao aluno o contato direto com as mais variadas situações concretas de uso da língua. O ensino da língua esteve diretamente ligado ao tradicionalismo: uso do texto como pretexto para apresentar os aspectos gramaticais, o ensino descontextualizado e distante da realidade dos alunos; na atualidade, ainda conforme os PCNs (1998), as propostas de transformação das práticas de ensino se consolidam no uso da linguagem, por conseguinte começa-se a levar em consideração fatores que possibilitem ao alunado não só interagir diretamente com o objeto estudado como questionar a realidade social em que está inserido. Para tanto, tornaram-se objeto de estudo deste trabalho os textos produzidos pelos alunos do 7º ano do Ensino Fundamental II durante as oficinas de leitura e produção de texto. Fizemos um trabalho intervencionista com um grupo de 40 alunos do sétimo ano do Ensino Fundamental II na Escola Estadual Centenário de Mossoró/RN. Para tanto, o nosso corpus é constituído de um texto – histórias em quadrinhos – produzidos pelos alunos durante as oficinas de produção textual; a coleta dos dados foi feita paulatinamente, durante 15 encontros, os quais tinham duração de duas horas e meia (referente a três hora/aula) no turno vespertino de novembro a dezembro de 2014; esse espaço foi usado para a aplicação dos questionários, realização das oficinas de produção de texto, aplicação das atividades de retextualização e de reescrita textual. Escolhemos, por sua vez, analisar aleatoriamente uma produção para que os resultados não tivessem interferências preestabelecidas. Trabalhamos com apenas um texto em um universo de 20 em virtude do tempo e do espaço que este artigo requer. Nas fronteiras da linguagem ǀ 132 Usamos metodologicamente o método qualitativo – interpretativo e intervencionista. Para respaldar a pesquisa faremos uma abordagem bibliográfica dos principais estudiosos do tema proposto, seguidamente, apresentaremos as oficinas e o passo a passo da intervenção feita junta ao alunado. A última etapa tem caráter interpretativo – analisamos os textos finais dos alunos. Dentre os vários gêneros com os quais lidamos no nosso cotidiano escolhemos para trabalhar com o alunado as narrativas de aventura e a história em quadrinhos de modo que possibilite ao aluno transitar entre esses dois gêneros retextualizando-os. Há nas atividades de retextualização um aspecto importantíssimo a ser destacado, pois para transmitirmos de uma modalidade textual para outra, segundo Marcuschi (2010), devemos inevitavelmente passar pelo processo de compreensão dos textos, dos gêneros retextualizados. Portanto, o processo de retextualização não é uma passagem suspostamente artificial de um gênero em outro, mas um processo de conhecimento e compreensão aprofundados acerca dos gêneros que passam pela transformação textual. Neste sentido, escolhemos falar sobre a retextualização, pois consideramos que, ao retextualizar, o aluno desenvolve várias habilidades textuais, entre elas, destacamos as atividades de leitura, compreensão e escrita. Por conseguinte, este trabalho surgiu das inquietações advindas do contexto da sala de aula, em especial nas aulas de Língua Portuguesa, pois os alunos demonstravam dificuldades em produzir textos, esquematizá-los, entendê-los. Diante dessa constatação, este trabalho apresenta a seguinte questão de pesquisa: Qual o lugar da retextualização na sala de aula de Língua Portuguesa como uma ferramenta eficaz às aulas de leitura e produção de texto? O presente trabalho está dividido em três partes que estão assim constituídas: na primeira parte fazemos um aparato teórico acerca das principais teorias linguísticas sobre os gêneros textuais e os processos de retextualização, na segunda descrevemos a metodologia utilizada para a coleta de dados, as etapas de produção, bem como os sujeitos envolvidos; na terceira analisaremos o texto produzido pelos alunos em dupla. A retextualização como essencial à leitura e produção de textos Consideramos o trabalho com a retextualização uma atividade que conduz o alunado à leitura, compreensão e produção de textos, de modo que lhes oportunizamos elaborações textuais que vão além da tipologia clássica (narração, dissertação e descrição). Nos contextos mais atuais, lidamos com a emergência da informação, com alunos mais dinâmicos, modernos e ligados às novas tecnologias; com isso observamos que as práticas de ensino ligadas à III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 133 redação (dissertação) escolar, texto como pretexto para o ensino da gramática, já não satisfazem a esse novo contexto social e educacional. Nos gêneros textuais, dispomos de uma gama de possibilidades para um ensino mais dinâmico e eficaz e, por meio desses, temos a retextualização, procedimento de grande valia, que permite o trabalho com gêneros diversos que consiste em transmudar um texto em outro, seja oral ou escrito. Mais precisamente, a retextualização configura-se, para Dell’Isola (2007, p. 36), na “refacção ou a reescrita de um texto para outro, ou seja, trata-se de um processo de transformação de uma modalidade textual em outra, envolvendo operações específicas de acordo com o funcionamento da linguagem”. Logo, é a mudança do gênero, trata-se de um processo minucioso, de muito rigor, no qual deverão ser levados em consideração vários aspectos dos gêneros e, por isso, caracteriza-se como um trabalho relevante para as aulas de língua materna. Marcuschi (2010, p. 48) apresenta um quadro de possibilidades de retextualização: 1. Fala → escrita; 2. Fala → Fala; 3. Escrita → Fala; 4. Escrita → Escrita. Para o autor, retextualizar é rotineiro, pois já lidamos o tempo inteiro com essas reformulações na nossa sociedade, no entanto, não se configuram como atividades mecânicas. E é a respeito da retextualização, especificamente na modalidade da escrita para a escrita, que constituímos o nosso trabalho intervencionista. A retextualização tem se mostrado um excelente mecanismo para o trabalho com os gêneros, pois a tarefa de transformar um texto escrito em outro demanda uma série de atividades que levará o aluno a um processo pormenorizado dos textos em transformação; nesse procedimento transformacional, o alunado, inevitavelmente, compreenderá as condições de produção e recepção dos textos. Com o recurso da retextualização, a elucidação do texto torna-se muito importante, um dos primeiros objetivos a ser vislumbrado pelo leitor é o da compreensão textual, tendo em vista que sem essa se compromete o desenvolvimento da atividade. As atividades de retextualização englobam várias operações que favorecem o trabalho com a produção de texto. Dentre elas, ressalta-se um aspecto de muita importância que é a compreensão do que foi dito ou escrito para que se produza outro texto. Para retextualizar, ou seja, para transpor de uma modalidade para outra ou de um gênero para outro, é preciso, inevitavelmente, que seja entendido o que se disse, ou quis dizer (...). Antes de qualquer atividade de retextualização, portanto, ocorre a compreensão. (DELL’ISOLA, 2007, p.14). Essa mesma questão importantíssima na retextualização – o processo da compreensão – também é mencionada por Marcuschi (2010, p. 47), “pois para dizer de outro modo, em Nas fronteiras da linguagem ǀ 134 outra modalidade ou em outro gênero o que foi dito ou escrito por alguém, devo inevitavelmente compreender o que foi que esse alguém disse ou quis dizer”. Portanto, nessa atividade de transformação textual, o aluno é instigado primeiro a compreender o texto base. A manutenção do tema é outro ponto a ser preservado no durante o processo da retextualização, “É importante observar que o gênero escrito, a partir do original, deve manter, ainda que em parte, o conteúdo do texto lido”. (DELL’ISOLA, 2007, p. 46). Com relação ao falseamento, Marcuschi (2010, p. 102) apregoa que é bastante comum, “trata-se de uma espécie de acréscimo, não de um fenômeno linguístico e sim da falsidade dos enunciados”, no entanto, o estudioso ainda destaca que alguns falseamentos no processo da retextualização podem ser considerados muito mais como interpretação do texto base do que mesmo como um falseamento. Sem dúvidas, o trabalho com a retextualização é desafiador, entretanto, como explica Dell’Isola (2007, p. 27), é uma atividade muito produtiva em sala de aula, leva os alunos a pensarem (forma, função, elementos que caracterizam os gêneros, linguagem, veiculação, dentre outros) sobre gêneros sugeridos pelo professor; destarte, “a retextualização não deve ser vista como tarefa artificial que ocorre apenas em exercícios escolares, ao contrário, é fato comum na vida diária. Ela pode ocorrer de maneira bastante diversificada”. A autora ilustra e defende que o nosso alunado no dia a dia encontra-se diante de vários processos de retextualização, com isso torna-se importante a mobilização da escola em começar a pensar na eficiência das atividades envoltas com a retextualização; e justamente por ser familiar ao aluno a inserção da retextualização é bem aceita por esse público, favorecendo as práticas docentes durante todo o processo da retextualização. O professor, por sua vez, deve orientar e acompanhar cada etapa da retextualização, conduzir os alunos a refletirem sobre os gêneros que serão produtos da escrita. Destacamos a importância da retextualização de gêneros escritos, uma vez que envolve o aluno na prática de leitura, escrita e compreensão textual e, ainda, na mudança de um texto escrito em outro, com o desafio de manter o sentido original e alterar o formato para o novo gênero retextualizado. Essa importante atividade envolve aspectos complexos com relação ao estudo e compreensão de texto; sem dúvidas, com um trabalho contínuo em sala de aula, os alunos terão mais condições de refletir sobre o objeto estudado, sobre si e sobre a sociedade. Nessa constante, mostraremos o resultado de um trabalho intervencionista feito numa escola de ensino fundamental da rede pública de Mossoró/RN, nos próximos capítulos. E para conduzir a nossa análise estamos no embasando nas teorias de Marcuschi (2010) e Dell’Isola (2007). III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 135 Fases e Sujeitos da Pesquisa O público alvo da intervenção são alunos da rede pública de ensino, oriundos, em sua maioria, da periferia da cidade. Na escola, encontrávamos alguns alunos com dificuldades básicas de ler e escrever, medo de se socializar com os demais colegas, a ausência durante semanas à escola. Mas, esses fatores não eram característica dominante, pois a escola era muito reconhecida na cidade como organizada, rígida, pontual com a sua missão, há cinco anos se destacava em primeiro lugar no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) municipal e, com isso, normalmente, os estudantes que a escolhiam eram aqueles que estavam interessados em adquirir conhecimentos. A escola, por sua vez, oferece um espaço físico muito bom, com salas de aula bem iluminadas e ventiladas, carteiras em bom estado, quadro a lápis, materiais disponíveis – como livros, folhas, tesoura etc. –, merenda, uma equipe pedagógica muito presente e disposta a ajudar, tínhamos um auditório que estava em reforma, portanto, não havia como utilizá-lo para a apresentação dos textos, assim, todas as oficinas e a culminância do projeto aconteceram nas salas de aula da escola. Para dar início à pesquisa, aplicamos um questionário com 40 (quarenta) alunos da escola que escolhemos para efetivar o projeto com o objetivo de averiguarmos vários elementos que seriam importantes antes de iniciarmos a intervenção, em especial, diagnosticar o perfil dos alunos e também para nos auxiliar na escolha dos gêneros a serem retextualizados. Logo após observação do questionário, fizemos a escolha dos gêneros (narrativa de aventura e história em quadrinhos) e seguidamente iniciamos as oficinas com a turma, as quais seguiram respectivamente a seguinte formatação: Oficinas com o gênero narrativa de aventura 1. Os alunos foram motivados a trazer para a sala de aula narrativas de aventuras (foi feito um trabalho socializador); 2. Foram apresentadas outras narrativas de aventuras para os alunos com o objetivo de interpretá-las, discuti-las e aprofundar o conhecimento sobre o gênero; 3. Os alunos foram estimulados a produzir narrativas de aventura (essas histórias poderiam fazer intertextualidades com os heróis da antiguidade como também com os contemporâneos); Nas fronteiras da linguagem ǀ 136 4. Os textos produzidos foram entregues à professora, que fez as devidas observações necessárias para dar continuidade às atividades; destacamos que nesse momento os textos também passaram pela reescrita textual. Oficinas com o gênero história em quadrinhos (HQs) 1. Os alunos foram motivados a trazer para a sala de aula histórias em quadrinhos (foi feito um trabalho socializador); 2. Socialização das histórias em quadrinhos lidas e comentadas pela turma; 3. Foram apresentadas outra HQs à turma com o objetivo de interpretá-las, , discuti-las e aprofundar o conhecimento sobre o gênero. Retextualização: 1. Foi proposto um trabalho de transformação da narrativa inicialmente produzida para uma história em quadrinhos; 2. A produção dos alunos foi analisada pela professora, a qual passou novamente pelo processo de reescrita textual (a professora intermediou a formatação das falas, a estrutura e disposição do texto final); 3. Por fim, foi feita a escrita final (retextualização) das HQs. As produções de textos na sala de aula – análises das atividades de retextualização O corpus desta pesquisa é constituído por uma HQ produzida pelos alunos do sétimo ano do Ensino Fundamental, a escrita aconteceu no decorrer das oficinas dadas pela professora intervencionista da turma. Nesta análise , de acordo com o que já mencionamos, verificamos os processos apontados por Dell’Isola (2007): a Retextualização, a Identificação e a conferência, nos textos retextualizados pelos alunos. Destacamos que esses fatores durante a observação dos textos não são mostrados respectivamente. Apresentamos a definição destes referendados em Dell’Isola (2007), vejamos: Retextualização: escrita de um outro texto, orientada pela transformação de um gênero em outro gênero; Conferência: verificação do atendimento às condições de produção: o gênero textual escrito, a partir do original, deve manter, ainda que em parte, o conteúdo do texto lido; Identificação, no novo texto, das características do gênero – produto da retextualização. (DELL’ISOLA, 2007, p. 42). III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 137 E com base nesses conceitos trazidos pela autora apontaremos nas produções textuais dos alunos a efetivação ou não dos pontos mencionados, optamos por fazer recortes da HQ, em virtude do seu tamanho. E para preservar a identidade dos alunos escolhemos mencionar os autores como dupla 1 (D1). Os alunos escolheram escrever a Narrativa de aventura sobre um dos mais clássicos personagens da literatura brasileira: Dom Quixote (personagem criado por Miguel de Cervantes), o lendário Dom é o protagonista/herói da história que tem como título Sancho o galo Dom Quixote e a galinha. Vejamos a narrativa: Ao longo daquele dia, Dom Quixote viajou inclinado sobre a cabeça do seu cavalo, porque os ossos lhe doíam tanto que não podia endireitar-se. Ao entardecer, apareceu na beira da estrada uma venda, que era o lugar onde se hospedavam os viajantes, e então Sancho disse: - Alegre-se, Senhor, que aí adiante vejo uma venda. Dom Quixote levantou a cabeça, olhou ao longe e respondeu: - Essa não é uma venda, mas um castelo. Estou lhe dizendo, senhor, é uma venda. - É um castelo! - É uma venda. - Um castelo. Passaram nisso um tempão, sem que nem Dom Quixote nem Sancho Dessem o braço a torcer. Quando chegaram a venda estavam abarrotados, mas assim mesmo o vendeiro arrumou um par de camas num palheiro para que pudessem passar a noite. Antes de sair Sancho bebeu uma caixa de vinho e adormeceu que nem uma pedra. Em compensação, Dom Quixote continuou acordado durante muito tempo, porque havia começado a pensar que naquele castelo viva uma linda princesa. “Com certeza apaixonou-se por mim ao me ver chegar” dizia isso a si mesmo, “e essa noite virá confessar-me o seu amor. Mas não posso a responder, porque meu coração pertence a Dulcínea”. De tanto pensar, passou mais de três horas de olhos abertos que nem coruja. De repente, ao bater a meia noite, ouviram-se passos além da porta do palheiro e Dom Quixote murmurou: “aí meu Deus a princesa”. Mas ao abrir a porta só o que ele viu foi uma simples e pequena galinha com uma simples coroa no pescoço. Ele achou a coroa que a galinha tinha muito bonita e a partir dela ele se lembrou de Dulcínea. Com carinho e voz mansa Dom Quixote chamou a galinha dizendo: - Vem cá querida galinha... Dom Quixote não pensou duas vezes e pulou em cima da galinha e ela aperreada fazia: cóco cóco có Mas Dom Quixote de tanto tentar conseguiu segurar a galinha. Ao amanhecer Dom Quixote mandou uma carta com uma coroa para Dulcineia; dias depois ela devolveu a coroa com uma carta dizendo que havia se casado. Certo dia Sancho saiu para alimentar o seu cavalo, e Dom Quixote ficou sozinho com a galinha, sem ter o que fazer Dom Quixote resolveu falar com ela, no meio da conversa ele tropeçou e acabou caindo no chão encostando sua boca no bico da galinha. A galinha se transformou em uma princesa, mas devido o encanto ao invés de cabelos ela tinha penas, Dom Quixote logo a pediu em casamento, mas ela disse que só aceitaria se casar se ele a beijasse novamente para ela voltar a ser galinha. Ele aceitou a proposta e a beijou. Mas com o beijo os dois viraram galinha e galo. Ao voltar Sancho encontrou a galinha e o galo, estranhou a situação, procurou Dom e logo percebeu o que tinha acontecido. Sancho ficou com a galinha e o galo e juntos viveram felizes para sempre viajando pelo mundo e conhecendo novos lugares. Podemos perceber a intertextualidade do texto criado pela dupla 1, alunos de trezes anos de idade, com partes da história do livro de Cervantes, sem dúvidas, com essa referência, podemos afirmar que os alunos tiram proveito das oficinas, nas quais a professora Nas fronteiras da linguagem ǀ 138 intervencionista leu trechos e comentou sobre a construção das narrativas com base na história de Cervantes. Considerada um dos elementos da textualização, a intertextualidade, é o fenômeno pelo qual, considera-se que em um texto está inserido ou faz referência a outro texto seja para validar o que “o novo dito”, seja para levar o humor, ou mesmo criticar; o que destacar-se é que o autor do texto lança mão de um texto ou conceito social existe para re/formular o seu dito. Assim, “a intertextualidade é, pois, uma das propriedades constitutivas de qualquer texto, ao lado da coesão, da coerência, da informatividade, entre outras”. (ANTUNES 2009, p.164) O texto, por sua vez, foi reconstruído e apresenta um final bem diferente da história do livro, segue a formatação de uma narração e cumpre, impreterivelmente, ao que foi proposto: criar uma Narrativa de aventura. Essa narrativa serviu de texto base para a retextualização em HQ. No tocante a produção final (HQ), averiguamos que se trata de uma efetivamente de uma história em quadrinhos, pois o texto segue o formato em quadros sequenciados um após o outro com imagens ilustrativas, balões, personagens, fatos sobrepostos entre si narrando uma história ficcional coerente. Cereja e Magalhães (2007) apresentam o conceito de quadrinhos como uma arte de sequências, com desenhos ilustrativos que são usados para narrar uma história, “sempre que duas imagens são desenhadas uma após a outra, criando uma sucessão de quadros, uma sequência gráfica, trata-se de uma história em quadrinhos”; à vista disso identificamos no texto final características pertencentes às HQs em geral. Vejamos como a D1 transformou essa narração em uma HQ, a dupla inicia o texto com uma legenda na qual relata a viagem de Dom Quixote, a legenda é um recurso muito usado nas histórias em quadrinhos, caracteriza-se por ser um texto relativamente pequeno que serve para informar alguma coisa ou para ligar os quadrinhos entre si. Esse recurso foi intensamente utilizado na história analisada, acreditamos que isso se deve ao fato de que o texto base é uma narração com um narrador em terceira pessoa e possivelmente, os alunos tiveram dificuldades de transpor o discurso indireto em direto, logo usaram o recurso para deixar os quadrinhos interligados como também para deixar a história mais coerente. Mesmo assim, conferimos na HQ a manutenção do tema colocado no texto base. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 139 Seguem a história em quadros com balões que é um dos elementos característicos dos quadrinhos, os balões podem apresentar diversos formatos Cereja e Magalhães (2007) apresentam alguns formatos que podemos seguir: balão-grito, balão-uníssono, balão-imagem, balão-pensamento, balão-fala e outros. O balão-fala é o mais comum de todos, na HQ observamos que é este tipo de balão que prevalece na produção. Destacamos dois balões usados na história, o balão-grito e o balão-pensamento, pois observamos que a dupla conseguiu compreender os elementos próprios da HQ colocando-os em prática. Ocorreu no produto final da D1 a transformação de um gênero textual escrito em outro, portanto a retextualização aconteceu efetivamente. Na HQ também encontramos o uso de onomatopeias – as quais representam o som das imagens e interjeições – expressões que indicam estados emotivos. Vejamos: Nas fronteiras da linguagem ǀ 140 A dupla também fez uso do recurso do balão-pensamento. Vejamos: A HQ feita da D1 atende aos três critérios elencados por Dell’Isola (2007), portanto o texto produzido pelos alunos com base na Narração Sancho o galo Dom Quixote e a galinha apresenta-se como uma tarefa realizada com êxito. Nessa atividade os alunos demonstraram talentos em escrever, desenhar, sintetizar o assunto, escolher os pontos mais relevantes para a HQ, seleção da linguagem própria ao público alvo da história, escolha humorizada de recontar uma história cânone na sociedade; dentre outras habilidades que sem dúvidas os alunos desenvolveram durante a feitura do texto final e, concluem a HQ mantendo o assunto da narrativa inicial. No final da HQ encontramos a palavra fim, algo muito comum nas mais consagradas histórias em quadros. Observemos: III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 141 Dessa forma, no decorrer da retextualização os alunos refletem acerca dos elementos dos gêneros e, “em todas as etapas está prevista uma reflexão de como a sociedade produz e consome textos de diversas naturezas. (...) Dessa forma, estarão estabelecendo relações existentes entre a linguagem e as estruturas sociais”. (DELL’ISOLA, 2007, p. 81). O espaço da retextualização, na sala de aula, se mostra como um recurso auxiliador no desenvolvimento/aprimoramento de habilidades e competências dos alunos na escola e na sociedade, o faz refletir o gênero, a produção em si, como também a sociedade e os meios de produção desta. A prática desafiante da retextualização leva o alunado não só ao conhecimento sistemático da língua, mas também aos seus usos, de como os sujeitos manifestam a língua/linguagem por meio de textos na sociedade. Estamos inserindo-os nas mais diversas modalidades da língua, dos gêneros escritos ou mesmo orais – dependendo da condução e escolha dos gêneros trabalhados durante um processo de retextualização na escola (um professor pode, por exemplo, trabalhar com textos orais), ampliando a visão dos alunos sobre as práticas sociais, re/significando as produções dos discursos/textos veiculados. A retextualização na sala de aula como bem fala Dell’Isola(2007) é desafiante, e trabalho com o gênero de forma mais participativa promoveu-nos exercitar e conhecer mais sobre a língua/linguagem, por isso destacamos a relevância dessa atividade em sala de aula. Não vamos furtar a responsabilidade da escola em promover o conhecimento, pois “para boa parte das crianças e dos jovens brasileiros, a escola é o único espaço que pode proporcionar acesso a textos escritos”. (PCN, 1998, p. 25). Portanto, cabe à escola propor atividades didáticas de modo que venha oportunizar a construção do saber. Nas fronteiras da linguagem ǀ 142 Referências BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998. DELL’ISOLA, Regina. Retextualização de Gêneros Escritos. Rio de janeiro, Lucerna 2007. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização, 10. Ed. São Paulo: Cortez, 2010. CEREJA, William Roberto. MAGALHÃES, Thereza Cochar. 3.ed. reform. São Paulo: Atual, 2007. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 143 A PALATALIZAÇÃO DAS OCLUSIVAS ALVEOLARES E A VARIÁVEL IDADE EM MACEIÓ - AL [Voltar para Sumário] Almir Almeida de Oliveira (UFAL) Introdução Este trabalho tem como proposta refletir as correlações existentes entre a palatalização das oclusivas alveolares [t] e [d] em contextos fonológicos seguintes à vogal anterior alta [i] e a variável idade em Maceió, o que representa um fenômeno bastante característico dessa região e se contrapõe, por exemplo, as palatalizações realizadas no Sul e Sudeste do Brasil, que apresentam a oclusiva em posição precedente à vogal alta. Assim, e com base nas orientações teóricas e metodológicas da Sociolinguística Variacionista (LABOV, 2008[1972]), busca-se entender os percursos históricos que tem sofrido este fenômeno linguístico, uma vez que a maior frequência de sua realização por mais jovens ou por mais velhos pode indicar que a variável linguística é sensível à idade e, consequentemente, estar passando por um processo de extinção, estabilização ou expansão. 1. Sociolinguística Variacionista Desde que a sociolinguística surgiu nos EUA, nos anos 1960, as discussões acerca da variação da língua ganharam espaço, pois, por milênios as questões variáveis da língua receberam unicamente um tratamento filosófico ou partiam de uma observação empírica sem rigor científico. Em 1972, William Labov publica Padrões Sociolinguísticos, o que representa a consolidação de um ramo da sociolinguística que trata dos fenômenos de variação e mudança linguísticas. Resumindo uma série de pesquisas realizadas nos últimos anos, a obra mostra que os processos de variação/mudança estão relacionados às questões de valor social, o que lhe possibilita uma descrição quantitativa da variação linguística e social. O estudo da variação linguística propõe uma relação biunívoca entre as variáveis linguísticas (sintáticas, morfológicas, fonéticas, lexicais e discursivas) e as variáveis sociais Nas fronteiras da linguagem ǀ 144 (idade, sexo, escolaridade, classe social, etc.) de modo a explicar como os fatores sociais/externos interferem na produção linguística. A partir da concorrência de variantes e da sobreposição de uma em relação à outra é que se dá a mudança linguística. Desse modo, os termos mudança e variação linguísticas estão estreitamente relacionados, pois “com o advento da Teoria da Variação, evidencia-se que toda mudança na língua advém de uma variação, mas nem toda variação implica mudança” (SANTOS & VITÓRIO, 2011, p. 19). Labov (2008 [1972]) descreve dois tipos básicos de mudanças em função da classe social: a vinda de baixo (change from below) e a vinda de cima (change from above). A mudança vinda de baixo geralmente é introduzida pela classe social baixa e seus falantes a desenvolvem abaixo do nível de consciência. Após essa variante atingir seu nível de expansão, passa a ser uma regra para a comunidade de fala e todos os indivíduos devem compartilhar as mesmas normas e atitudes em relação ao seu uso. Como esse processo iniciase com a classe menos favorecida, existe uma resistência da sociedade para aceitar a nova variante porque transfere a ela o status da classe que a inicia. Já as mudanças vindas de cima são introduzidas pela classe dominante, com nível pleno de consciência. Labov nesse sentido explicita: Se a mudança se origina no grupo de mais status socioeconômico, converte-se em modelo de prestígio para todos os membros da comunidade. Outros grupos, na medida em que mantêm contatos com os usuários desse modelo de prestígio, passam então a adotar a forma modificada. (LABOV, 2008, p. 123). Igualmente à variante vinda de baixo, recai também sobre a variante vinda de cima o status de seus falantes, mas ao contrário da discriminação que ocorre com a primeira, a vinda de cima é bem aceita na sociedade. A negociação ativa da relação de um indivíduo com as estruturas sociais é que fornece os valores sociais de identidade. Fatores como sexo, origem, ser brasileiro, argentino, etc. devem ser considerados como construções sociais. O valor social (negativo ou positivo) resulta das relações do indivíduo com as estruturas sociais que determinam o prestígio das variantes linguísticas e a identidade social dos falantes e de suas comunidades de fala. É curioso observar que a identidade é bilateral, pois ao mesmo tempo em que o indivíduo informante, a partir de suas escolhas linguísticas, revela uma identidade individual de acordo com a comunidade de fala a qual pertence, define os traços que podem identificar a mesma comunidade. 2. Comunidade de fala III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 145 O princípio laboviano de que a língua é um objeto de heterogeneidade ordenada, a partir da homogeneização partidarizada pelas comunidades de fala impõe um tratamento de análise que localiza especificamente as forças sociais condicionantes da variação linguística. Numa comunidade de fala, a língua constitui-se pela complexa relação entre seus elementos a partir da reconstituição de estágios anteriores e da combinação de formas do passado com novas formas, condicionadas às dimensões sociais e espaciais. Uma investigação que se propõe a identificar e a descrever as diferenças de uma língua deverá atentar para as suas dimensões externas e internas e considerálas sua complexidade, dinamicidade e integração. (BUSSE, 2012, p. 91)1. Desse modo, Labov (2008 [1972]) busca realizar análises correlativas entre os aspectos linguísticos de algumas comunidades de fala, como as de Nova York ou da ilha de Martha’s Vineyard, no intuito de identificar as forças sociais condicionantes dos processos linguísticos. Para esse fim, ele relacionou as variáveis internas – os fenômenos linguísticos – com as variáveis externas –, condicionantes sociais como sexo, idade, escolaridade, classe social, profissão, etc. – o que lhe possibilitou traçar estatísticas de realização linguística de cada comunidade de fala, bem como notar a força dos valores sociais atribuídos às diferentes variantes linguísticas, condicionando, desta forma, as escolhas linguísticas dos falantes. Como o objetivo da sociolinguística variacionista é estudar a língua em uso, a língua livre de controles e que é usada casualmente – a língua vernácula –, o pesquisador deve buscar dados da fala usual, ou não, – dependendo de seus objetivos de estudo – mas que revelem os contrastes significativos das escolhas linguísticas, pois os falantes de uma comunidade de fala compartilham traços linguísticos de valor diferentes dos outros grupos sociais; apresentam uma frequência de comunicação entre si e têm as mesmas normas e atitudes em relação à linguagem. Dessa forma, se estabelece a identidade de uma comunidade de fala, bem como do falante que nela está conscientemente inserido. Aliás, Labov (2008 [1972]) reconhece que em nível de aquisição de linguagem há uma inconsciência por parte do falante que não escolhe por se inserir em uma língua ou qualquer uma de suas variações, mas defende que este falante tem consciência da comunidade de fala a qual participa e de seu prestígio social. “[...] os mecanismos usuais da sociedade produziram diferenças sistemáticas entre certas instituições ou pessoas, e que essas formas diferenciadas foram hierarquizadas em status ou prestígio por acordo geral.” (LABOV, 2008, p. 64) 1 Todas as traduções apresentadas neste trabalho são de minha responsabilidade. Nas fronteiras da linguagem ǀ 146 Ao surgir uma nova variante linguística, ela entra em conflito com as que já estão em uso e a partir de um julgamento de valor de prestígio dessa variante – embora esse possível julgamento muitas vezes se dê inconscientemente pelo falante –, ela vai criar uma fricção linguística no plano sincrônico da língua e pode provocar uma mudança linguística perceptível com o decorrer do tempo. Mesmo que as mudanças linguísticas sejam apenas percebidas em seus aspectos históricos, constante e diariamente tem-se uma verdadeira luta de valores das variantes nos seus diferentes níveis. Não se tem como prever qual variante vai prevalecer ou cair em desuso, mas pode-se observar que as formas que ganham prestígio tendem a prevalecer. Estas variações podem ser induzidas pelos os processos de assimilação ou dissimilação, por analogia, empréstimo, fusão, contaminação, variação aleatória, ou quaisquer outros processos em que o sistema linguístico interaja com as características fisiológicas ou psicológicas do indivíduo. A maioria destas variações ocorre apenas uma vez e se extinguem tão rapidamente quanto surgem. No entanto, algumas são recorrentes e, em uma segunda etapa, podem ser imitadas mais ou menos extensamente, e podem se difundir a ponto de formas novas entrarem em contraste com as formas mais antigas num amplo espectro de uso. Por fim, numa etapa posterior, uma ou outra das duas formas triunfa, e a regularidade é alcançada. (LABOV, 2008, p. 19) O surgimento de uma variante não depende, necessariamente, da inexistência de uma outra equivalente, mas unicamente dos valores sociais que lhes são atribuídas. Assim, a proposta de investigação da Sociolinguística Variacionista que surge a partir dos anos 1960, nos EUA, busca explicar os fenômenos de variação e mudança linguísticas, relacionando os aspectos linguísticos (fonológicos, morfológicos, sintáticos e discursivos) com aspectos sociais (idade, sexo, classe social, localidade, etc.) e o valor de prestígio que daí resulta e impulsiona a variação. É desse lugar, e assumindo este perfil sociolinguístico que realizo a coleta, a interpretação e análise dos dados, buscando encontrar e explicar possíveis regularizações linguísticas no processo de palatalização das oclusivas alveolares [d] e [t] no contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta [i] na fala de falantes nativos de Maceió. 3. As faces da variação A Sociolinguística Variacionista é uma das mais importantes correntes linguísticas surgidas no século passado, fortemente influenciada pelas teorias sociológicas busca explicar de modo quantitativo e estatístico os fenômenos da variação linguística, até então tratadas III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 147 apenas como especulações, não havendo, por exemplo, nenhuma metodologia que desse conta da volatilidade dos processos sociais de produção da língua. Inclusive, se se pode destacar algum ponto marcante da sociolinguística laboviana, com certeza será sua organização metodológica que relaciona os aspectos internos da língua com os fatores sociais externos. Hoje, parece óbvia essa associação entre os recursos sociais e linguísticos para explicar os fenômenos variáveis da língua, mas não era tão fácil pensar isto há quase cinquenta anos atrás. No entanto, o maior trabalho de Labov (2008 [1972]) não foi apenas relacionar quantitativamente os aspectos internos da língua com fatores sociais – até porque apenas números não dão uma explicação efetiva às questões basilares – mas notar que todos os dados estatísticos resultantes dessa relativização social-linguística apontavam para o fator abstrato da identidade: o prestígio. É justamente a partir da noção de prestígio, que está intrinsecamente relacionado com a ideia abstrata de identidade, que se dá o jogo de valores decisivos acerca do que permanece na língua e do que dela se extingue. Foi isto que ficou evidente quando Labov (2008 [1972]) pesquisou os falantes nativos de Martha’s Vineyard, onde notou que os que mantinham a alta centralização da vogal [a] eram justamente as pessoas mais velhas e/ou aquelas que demonstravam um sentimento maior de apego à ilha e se identificavam com ela. Fica evidente que o significado imediato desse traço fonético é “vineyardense”. Quando o fato de que pertence à ilha: de que ele é um dos nativos a quem a ilha realmente pertence. Nesse sentido, a centralização não é diferente de nenhum dos outros traços subfonêmicos de outras regiões que são distinguidas por seu dialeto local. (LAVOV, 2008, p. 57) De modo semelhante, a pesquisa também feita por Labov (2008 [1972)] com os funcionários das lojas de departamento de Nova Iorque mostrou que a presença ou ausência do [r] em final de palavras estava diretamente relacionada com o público a que a loja atendia, se de classe alta, o funcionário produzia a variante de prestígio, se de classe trabalhadora, a variante estigmatizada; o que sugere uma identificação do funcionário com aquela classe social com a qual se relaciona – o que ele chamou de estilo. Um fato importante que ratifica esta posição é a decisão de alguns trabalhadores de abrir mão de reivindicar aumento salarial em função da garantia de permanência naquele local de prestígio. Pois, “alguns incidentes refletem uma disposição dos vendedores a aceitar salários muito mais baixos da loja com maior prestígio” (LABOV, 2008, p. 68) Nas fronteiras da linguagem ǀ 148 Sem dúvida, a percepção de prestígio e estigma que rodeia as variantes linguísticas condiciona as escolhas do falante, dependendo do status social ao qual está almejando e do grupo social ao qual compartilha traços de identificação pessoal. “Crer que há um modo prestigioso de falar a própria língua implica, quando alguém pensa não possuir esse modo de falar, tentar adquiri-lo” (CALVET, 2009, p. 77). Não há como se fazer uma escala de identificação do sujeito com os grupos e práticas sociais que estão ao seu redor, nem como determinar todas as relações de poder capazes de se fazer presente em seu contexto diário, havendo apenas especulações teóricas que levam a determinadas conclusões. Só se pode saber, por exemplo, se uma forma linguística é ou não de prestígio por observar como os falantes agem em relação a ela, pois quando os falantes a buscam é de prestígio, quando a evitam é estigmatizada, o que está diretamente relacionado à noção de classe e valor social. Se a mudança se origina no grupo de mais status socioeconômico, converte-se em modelo de prestígio para todos os membros da comunidade. Outros grupos, na medida em que mantêm contatos com os usuários desse modelo de prestígio, passam então a adotar a forma modificada. (LABOV, 2008, p. 123) A negociação ativa da relação de um indivíduo com as estruturas sociais é que fornece os valores sociais de identidade, na medida em que essa negociação é sinalizada através da linguagem e de outros meios semióticos. Fatores como origem, idade, profissão, escolaridade, etc. devem ser considerados como construções sociais. Assim, os indivíduos devem ser vistos como agentes inscritos em uma gama de práticas sociais através das quais eles constroem suas identidades. 4. Variantes e variáveis Para Labov, (1972) a língua é inerentemente heterogênea, o que significa dizer que ela se realiza na e através da variação. A variação linguística é definida entre elementos variáveis e variantes, sendo as variáveis tratadas sob um aspecto interno e externo, que dizem respeito, respectivamente, ao conjunto de informações linguísticas que caracteriza uma regra e às estratificações sociais, tais como idade, sexo, escolaridade, etc. A palatalização das oclusivas alveolares se tornou variável na fala dos maceioenses em contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta [i] quanto a realização da consoante oclusiva em formas linguistas como III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 2 149 2:44), conservando havendo a palatalização da consoante [t]. Desse modo, pretendo relacionar, de acordo com a metodologia variacionista, essas regras variáveis contrapondo-as com o aspecto externo idade, a fim de identificar os valores sociais que são estabelecidos a cada uma dessas variantes. Daí a necessidade de se trabalhar com dados estatísticos quantitativos, de correlacionar as variantes linguísticas com os aspectos da vida social dos informantes, pois desse modo se pode mensurar adequadamente as forças que estão em jogo nos processos dinâmicos da língua. Métodos estatísticos podem ser utilizadas para avaliar e comparar diferentes efeitos de contexto, bem como para detectar e mensurar tendências ao longo do tempo. As técnicas estatísticas também permitem que correlações sejam feitas entre as características sociais e linguísticas. (TAGLIAMONTE, 2006, p. 73) Para Labov (2008 [1972]), o modo mais simplificado de conceituar a variável linguística é tê-la como duas ou mais formas de dizer a mesma coisa com o mesmo valor de verdade. Ele se refere à capacidade alternativa que algumas formas linguísticas permitem, como a alternância entre as formas palatalizada ou oclusiva da consoante [d], em formal da língua, portando a mesma carga semântica, porém, duas formas linguísticas distintas, seja quão menor essa distinção, jamais se tornarão idênticas e o fato de uma sobressair à outra prova justamente isto, pois a forma vitoriosa prevalece porque carrega em seu interior uma carga valorativa maior que a excluída, uma vez que “nenhuma mudança acontece no vácuo social” (LABOV, 2008, p 21). E é justamente para identificar essas forças valorativas sociais que atuam sobre as variantes linguísticas e direcionam os processos de variação e mudança linguística que se realiza a sociolinguística variacionista. A correlação quantitativa entre as variáveis linguísticas e sociais coletadas a partir do uso real e efetivo da língua permite ao pesquisador notar quais as forças sociais são atuantes no processo de variação linguística. As variáveis externas são as responsáveis por carregarem os valores sociais que condicionam as variáveis internas promovendo a variação e a possível mudança ou extinção das formas variantes em jogo. Cada uma dessas variáveis externas deve fornecer informações suficientes para revelar as origens da variação e em que direção está caminhando, pois é 2 O código se refere à escolaridade, idade e sexo. Nas fronteiras da linguagem ǀ 150 através da correlação de fatores sociais às regras linguísticas que o sociolinguista encontra as regularidades de ocorrências e afere as circunstâncias e valores sociais que interferem na produção linguística do informante. A variável idade tem como utilidade, deste modo, aferir a disposição das variantes no tempo, o que pode determinar se uma forma linguística está caminhando para estabilização, sobreposição ou extinção. A variável idade pode ser analisada em tempo real, em que a coleta de dados de se dá com os mesmos informantes nas mesmas condições contextuais em dois momentos cronológicos distintos que devem ser separados por pelo menos vinte anos, garantindo a mudança de uma faixa etária para outra, ou seja, uma coleta de dados com duas décadas de distância da primeira, permite que o informante jovem já seja adulto, enquanto também permite que o informante originalmente adulto já possa ser idoso. A ideia é que, porque as noções básicas de sistema fonológico do falante foram estabelecidas em sua juventude, quando ouvimos falantes que tem 75 anos de idade, hoje temos uma ideia sobre como as normas da comunidade eram quando eles eram crianças (70 anos atrás). Da mesma forma, quando ouvimos falantes que tem 45 anos de idade hoje, temos uma ideia sobre o que as normas comunitárias foram quando eram crianças (40 anos atrás). E assim por diante. Desta maneira, sociolinguistas modelam a passagem do tempo. (MEYERHOFF, 2006, p. 134) Esta pesquisa pode demonstrar facilmente se uma variante está caindo em desuso ou em está em expansão, pois se for constatado que as pessoas de maior faixa etária produzem em maior número a variante de controle, isto indica que tal variante está caindo em desuso, uma vez que as pessoas mais jovens a evitam; por outro lado se a variante de controle for mais usada por jovens, pode indicar que ela está em expansão. Evidentemente, há o problema ao se considerar a pesquisa em tempo aparente de se está lidando com pessoas diferentes, que consequentemente podem ser afetadas de modos distintos pelas forças sociais. 5. Um objeto a se observar No meu caso, por uma questão de praticidade, vou utilizar a pesquisa em tempo aparente em que considero três faixas etárias de informantes nascidos e vividos em Maceió, elas vão de 16 a 35 anos, de 36 a 55 anos e de 56 a 80 anos. Com isto, busco descobrir os caminhos que a palatalização das oclusivas alveolares está tomando em Maceió, se em processo de expansão, estabilização ou extinção. Embora minha pesquisa de doutorado deva contar com informações de 48 pessoas estratificadas de acordo com idade, sexo e escolaridade, neste trabalho aqui faço III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 151 apenas um recorte a fim de analisar, nos dados, as ocorrências do processo de palatalização das oclusivas alveolares em contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta. Como ainda estou em processo de coleta e transcrição de dados, tenho em mãos apenas 15 áudios a serem analisados, sendo 5 áudios para cada faixa etária, que as nomeio como faixa A, a que vai de 16 a 35 anos, B, de 36 a 55 e C, 50 a 80 anos. Os dados foram rodados no Goldvarb X a fim de verificar relevâncias e pesos relativos das variáveis, tendo como variável dependente a palatalização da oclusiva alveolar, que a codifico com número 1, em oposição a forma oclusiva 2. A idade recebe os códigos A, B e C e sexo F e M, para feminino e masculino. Pelo que pude perceber, todos os informantes desta análise produziram, ao menos em algum momento da entrevista alguma forma palatalizada, embora essas realizações tenham uma frequência de uso bastante variável, havendo um informante, por exemplo, (1EMAF) que chegou a produzir em sua fala 42 formas lexicais em que as oclusivas alveolares [t] e [d] se realizam após a vogal anterior alta [i], aparecendo apenas uma forma palatalizada Desse modo, eu considero as formas oclusivas: prestígio na Comunidade de fala de Maceió, em oposição a forma palatalizada: [ rrega uma marca social de estigma. Para isso, eu analiso 299 realizações de formas lexicais em que as consoantes [t] e [d] são produzidas após a vogal anterior alta [i] produzidas por 15 informantes, sendo 7 mulheres e 8 homens. Conforme pode-se verificar no gráfico abaixo há uma frequência de uso bem maior da forma de prestígio, a oclusiva, em detrimento a forma palatalizada. Gráfico1: uso total das variáveis Palatal e Oclusiva Nas fronteiras da linguagem ǀ 152 Pelo gráfico acima, fica evidente a preferência dos informantes pela forma oclusiva, mas será que isto sempre foi assim ou se pode perceber algum movimento de ascensão ou decesso no decorrer do tempo? Procurando compreender como o uso dessa regra variável presente na comunidade de fala maceioense tem se comportado diacronicamente, relaciono o a variante de controle ao fator idade no Goldvarb X, o que trouxe tais resultados: IDADE A – 16 a 35 B – 36 a 55 C – 56 a 80 Realizações 17 31 23 Percentual 11.3 47 28.0 Peso relativo 0.32 0.76 0.59 Tabela 1: contraposição de variante dependente com a variável idade É bastante interessante observar na tabela como há uma oscilação entre as diferentes idades, ficando a faixa B como a mais produtiva da palatalização das oclusivas alveolares em contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta, havendo uma diferença com a faixa C não muito grande, mas com expressiva distância da faixa A. Ou seja, os dados apontam para uma variante evitada pelas pessoas mais jovens e mais produzida pelos informantes com mais de 36 anos. O que não pode ser suficiente para afirmar que há um processo de extinção da variante, pois, como se pode ver, essa variante não foi tão produtiva com os informantes da faixa C, o que pode evidenciar uma variante se comportando como pêndulo, ora ganhando mais uso, ora sendo evitada, de qualquer forma o que está claro é que os mais jovens evitam esta forma linguística, constatando-se um estigma da variante. Este estigma da variante se torna mais proeminente quando confrontamos a variável sexo, pois as mulheres apresentaram menor frequência de uso e consequentemente um menor peso relativo que os homens. SEXO Masculino Feminino Realizações 36 35 Percentual 30,3 19,4 Peso relativo 0.59 0.44 Tabela 2: contraposição da variante de controle com o sexo. Ao se comparar as realizações, entre homens e mulheres, da palatalização das oclusivas alveolares vê-se como ambos produziram um número bastante próximo de palatalizações M=36 e F=35, mas quando se analisa essas produções considerando as realizações de acordo com cada sexo se vê que a produção dos homens é mais proeminente, chegando a ser produzido com mais de 30% de frequência nos homens, e com pouco menos III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 153 de 20% pelas mulheres, o que vai refletir no peso relativo da variante, apresentando um número consideravelmente maior para os homens em relação às mulheres. De modo que esses dados confirmam, dentro da teoria assumida, que a variante em estudo porta estigma social e é conscientemente evitada pelas mulheres. A 7% 13% Feminino Masculino Idade/Freq.uso B 28% 67% C 42% 15% Tabela 3: contraposição das variáveis idade e sexo com a variante de controle Ao intercruzar as variáveis idade e sexo a fim de verificar como esta percepção de estigma da variante se faz presente nos informantes de diferentes idades, se confirmou que os informantes mais jovens realmente utilizam em menor frequência a forma palatalizada da oclusiva alveolar em contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta e que as mulheres mais jovens são as que menos produzem esta variante, enquanto os homens entre 36 e 55 anos são os principais usuários desta forma linguística, o que confirma, teoricamente, que na comunidade de fala analisada, esta forma linguística é percebida como marca de estigma e conscientemente evitada. 6. Conclusão Dessa forma, posso encerrar este trabalho afirmando, diante dos dados coletados e analisados, que a palatalização das oclusivas alveolares [t] e [d] em contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta vem passando por um recorrente processo de estigmatização social, comprovado pelos menores usos dessas formas pelos jovens e ainda mais pelas mulheres jovens. Evidentemente, esta análise é prematura e conta com uma pouca quantidade de informações linguísticas, uma vez que foram apenas 15 áudios analisados, mas suficientes para mostrar algumas tendências sociais destas variantes linguísticas na comunidade de fala maceioense e como elas vem se comportando diacronicamente em relação a cada uma das faixas etárias analisadas. Conforme haja o progresso da pesquisa, novas informações devem ser acrescidas às discussões sobre a palatalização das oclusivas alveolares na comunidade de fala maceioense, Nas fronteiras da linguagem ǀ 154 bem como suas pertinentes reflexões acerca dessas realizações linguísticas e dos caminhos que este fenômeno vem percorrendo diacronicamente. Referências BUSSE, S. Investigações geossociolinguísticas: considerações para uma descrição dos fenômenos da variação. Revista Letras e Línguas. Vol. 13, Nº 24, p 89-116, Jan./Jun. 2012. CALVET, L. J. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola, 2002. LABOV, W. Padrões Sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008. MEYERHOFF, M. Introducing Sociolinguistics. New York: Routledge, 2006. SANTOS, R. L. A.; VITÓRIO, E. G. L. A. Teoria da variação e mudança linguística. In: COSTA, J.; SANTOS, R. L. A.; VITÓRIO, E. G. L. A. (orgs). Variação e mudança linguística no estado de Alagoas. Maceió: Edufal, 2011. TAGLIAMONTE, S. Analysing Sociolinguistic Variation. New York: Cambridge University Press, 2007. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 155 UTILIZANDO A MULTIMODALIDADE EM COMUNIDADE REMANESCENTE QUILOMBOLA: NOVOS DESAFIOS? [Voltar para Sumário] Aluizio Lendl-Bezerra1(URCA/UERN) Marcos Nonato de Oliveira2(UERN/CAMEAM) Considerações iniciais Muitos são os desafios impostos aos professores de língua portuguesa, este século de mudanças trouxe com ele a necessidade de transformações das práticas linguísticas de sala de aula, a quebra do tradicionalismo e o uso de novas metodologias para o ensino. Nesta senda, este artigo se propõe a compreender as prática de ensino de produção de texto de língua portuguesa na comunidade remanescente quilombola Lagoa dos Crioulos, localizada na zona rural da cidade de Salitre, interior do estado do Ceará. Essa trabalho é resultado da parte inicial do projeto de extensão ALT – Ampliando Linguagem e Tecnologias, vinculado à Universidade Regional do Cariri em parceria com a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, que tem como objetivo rever as práticas de letramentos em escolas públicas e propor intervenções com base teórica nas metodologias de ensino no ambiente citado. Dessa forma, esta pesquisa está circunscrita ao estudo do texto na perspectiva da coesão referencial, ainda tivemos como suporte metodológico a pesquisa-ação e a sequência didática do Grupo de Genebra. Assim, buscamos compreender as propostas de produção de texto a partir de uma abordagem multimodal simples, neste caso, as histórias em quadrinho produzidas com lápis e papel, sem auxílio de ferramentas digitais. Gêneros Textuais e multimodalidade: breve consideração 1 Professor da educação básica e do curso de Letras da Universidade Regional do Cariri e Mestrando em Letras do Programam de Pós- graduação da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Campus CAMEAM – Pau dos Ferros/RN. 2 Professor Doutor vinculado ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Campus CAMEAM – Pau dos Ferros/RN. Nas fronteiras da linguagem ǀ 156 Entende-se por gênero textual os textos que são úteis para a comunicação no cotidiano. Marcuschi (2008) nos alerta para a diferença entre tipo textual e gênero textual, onde o primeiro “(...) caracteriza-se muito mais como sequências linguísticas” e englobam “(...) cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção”. Entendido o que é tipo textual - a estrutura linguística a qual o texto se enquadra -, gênero textual são os modelos de texto usado no ato pragmático, assim, podemos diferenciar esses dois conceitos tão próximos. A propósito, as histórias em quadrinhos – populares HQ’s – quanto ao tipo textual são sequências narrativas que unem linguagem verbal e não verbal, enquadrando-se também nos gêneros multimodais. Esse gênero costuma ser propagado em jornais impressos, livros didáticos, avaliações externas e internet, para o público em geral – em específico. O conjunto de elementos que compõem a sequência narrativa das histórias em quadrinhos (balões, frases, imagens) reproduzem marcas da oralidade e fornecem dados ao leitor para que se possa fazer a compreensão da história proposta. Esse gênero ajuda no entendimento do contraste entre a fala e a escrita. A imagem desenhada é o elemento de base das histórias em quadrinhos dispostas para o leitor através das vinhetas, que contam a narrativa – ficcional ou real – obedecendo a uma ordem temporal. A linguagem visual (ou icônica) está ligada à estética da HQ, como o formato dos quadrinhos, montagem das tirinhas, gestos dos personagens, ideogramas e metáforas visuais (VERGUEIRO, 2006). Esses recursos marcam visualmente a fala entre os personagens ou gestos através das onomatopeias, por exemplo, que contribuem para que o leitor chegue a compreensão dessa interação entre as linguagens, assim este uso combinado contribui para a comunicação sociointerativa, usando imagens e palavras simultaneamente. As histórias em quadrinhos são um dos primeiros gêneros que os leitores iniciantes têm contato, mas ainda são vistas por docentes como uma “leitura fácil”, que, aos olhos dos mesmos, não estimulam o pensamento crítico-reflexivo. Os alunos, ao trabalharem com o gênero HQ em sala, tornam-se mais empolgados pelo simples fato de fazerem parte do seu cotidiano. O leitor de histórias em quadrinhos é capaz de diferenciar os aspectos mais formais ou informais da língua a partir dessa leitura, de fazer a associação do signo verbal e signo visual com rapidez para compreender a história ali presente. Dionísio (2005) reafirma a ideia de que, III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 157 Todo professor tem convição de que imagens ajudam na aprendizagem, quer seja como recurso para prender a atenção dos alunos, quer seja como portador de informação complementar ao texto verbal (DIONÍSIO, 2005, p. 195). Vergueiro (2006) aborda a importância da relação entre as palavras e imagens dispostas nas histórias em quadrinhos, utilizando-se da argumentação de que juntas ampliam a interação entre os códigos verbal e não verbal. Se fossem trabalhadas isoladas e não de forma complementar, talvez não atingissem tal proficiência. Cabe ao docente avaliar os elementos que envolvem o texto multimodal e o gênero HQ, visando a possibilidade de maior interação dos alunos. Sabemos que cada leitor traz consigo uma vivência e experiências diferentes e quando ele adentra no texto, descobre a interação texto-leitor. A linguagem não verbal é de suma importância por reforçarem esta ideia anterior e servir de base para a organização da linguagem verbal. Apresenta-se assim, a concepção de letramento (SOARES, 2003), ação que envolve o ensinar e aprender a leitura e escrita, no contexto de suas práticas sociais. Assim seguindo o pensamento da autora podemos inferir que hoje se faz necessário educar os alunos para que eles aprendam também a leitura visual, entender toda a estrutura que remete ao entendimento do texto, destacando que o texto visual também é uma unidade carregada de significação. Perspectivas metodologicas para o ensino da multimodalidade Essa sessão se inicia destacando que as práticas linguageiras são osprincipais instrumentos de interação social, essa assertiva é destacada nas reflexões de Dolz & Schneuwly (2014) e ilustra nossa forma de concepçãodo ensino da língua, compreendendo que os eventos comunicativos são construído a partir do contato com os gêneros textuais que nos circundam. Assim, à escolha do nosso locus buscamos um ambiente que, a nosso ver, precisasse de atenção mais específica, na busca de minimizar diferenças sociais que por ventura a linguagem estivesse associada. Centrada primordialmente na resolução dos problemas em contexto escola (Moita-Lopes, 1996), logo, configurando um enfoque aplicado em linguística. A comunidade remanescente quilombola Lagoa do Crioulos localizada na zona rural da cidade de Salitre, interior do estado do Ceará, é nosso ponto de partida. É uma comunidade oficialmente reconhecida pela Fundação Cultural de Palmares. Entendemos por remanescente quilombola na mesma observação de Treccani (2006),como um vestígio e resquício no Nas fronteiras da linguagem ǀ 158 patamar histórico da identidade de negros, índios e mestiços. Logo, é uma comunidade com história e cultura própria que foi transmitida geração-a-geração que hoje não constituem apenas dessas raças, mas de muitas outras que se identificam com a cultura e a história. É uma comunidade de meio porte, nela funciona a Escola de Ensino Fundamental João Rodrigues da Fonseca, que é mantida pelo governo municipal. A estrutura física ainda não segue um padrão desejável, as salas são quentes e pouco ventiladas – situação da maioria das escolas municipais do estado do Ceará. Como esse trabalho trata-se de uma pesquisa-ação e ainda está em fase inicial, decidimos ter como nosso foco apenas a turma de nono (9º) ano do ensino fundamental II. Esse turma é composta de trinta e dois (32) alunos, desse número, apenas quatorze (14) fazem parte da comunidade, os demais alunos são das regiões circunvizinhas. Para tanto, essa pesquisa parte de um processo observatório, acreditamos nesse enfoque metodológico, pois ele nos permitiu ver o comportamento dos participantes a partir de uma nova luz e, ainda, nos mostrou novos aspectos do contexto estudado. Justificamos ainda à medida do entendimento de Damas e De Ketele (1985) que destacam que a observação não é um processo com fim em si mesmo, mas a serviço de uma atividade mais complexa. Como nossa abordagem é parte inicial para compreender um contexto que não é nosso, mas que tem como foco uma atividade de intervenção ancorada naquilo que foi anteriormente tido como objeto de análise. Logo, como processo de mobilização da nossa atenção. Nossas observações foram realizadas durante o período de quinze (15) dias. Para que não houvesse resistência, entregamos um ofício para a coordenação escolar, ainda, para a professora da turma explicando que as atividades realizadas na escola faziam parte de um projeto de extensão vinculado a Universidade Regional do Cariri (URCA) e Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) que tinha como objetivo desenvolver atividade de ensino e pesquisa na referida escola. Nesta senda, os pesquisadores Schneuwlyet ali (2004) apresentam a sequência didática como gênero discursivo, essa sequência foi adaptada, tendo em vista a necessidade de desenvolver a capacidade comunicativa dos sujeitos, criando contextos de produções reais para o desenvolvimento de letramentos múltiplos. Os autores propõem uma sequência de módulos de ensino, ela se organiza em nossa proposta da seguinte maneira: Definição da situação de comunicação Modulo I Módulo II [...] III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ Produção inicial Revisão I 159 Produção final A ideia dessa sequência didática (adaptada) proposta pelos pesquisadores do Grupo de Genebra é propor atividade de ensino sistemática, com o objetivo possibilitar um aprendizado progressivo e a partir de práticas sociais e históricas de linguagem. Confrontados com esse objetivo, o nosso surge com a necessidade de desenvolver práticas de leitura e produção de textos que vinculem mais de um modo linguístico, que possibilite o contato com múltiplas linguagens, com a complementação entre linguagens que são possibilitadas por textos que relacionam linguagem verbal e não-verbal, ou seja, que surjam de uma perspectiva multimodal de ensino. Nessa mesma direção, elaboramos nesse trabalho apenas a parte inicial dessasequência. Trata-se de dois momento (a) e (b), em (a) definição da situação de comunicação, mostramos para os alunos que o trabalho seria desenvolvido em três (3) etapas. Perguntamos o que eles achavam do gênero História em Quadrinho (HQ) e se eles já produziram. Não nos foi surpresa que eles já conheciam, “tamanha a popularidade das histórias em quadrinhos” (VERGUEIRO, 2014, p. 07), tão pouco a adesão rápida ao gênero. Contudo, também não nos trouxe admiração quando os alunos relataram que não haviam produzido HQs. Em (b) foi a solicitação da produção inicial, essa etapa tem como real objetivo perceber o quanto os alunos conhecem do gênero e conhecer um pouco do que eles pensam da comunidade local. Vale destaque a atenção e a vontade dos participantes de produzir os HQs. Os elementos citados acima são importantes para mostrar como nossa proposta foi configurada, ainda deixa evidente que a sessão que se segue – Discussão e análise – tem como foco os aspectos observados na aula de português e a produção inicial dos alunos. Discussão e análise Pensar em produção de textos é pensar que eles são produzidos por sujeitos em processo de construção. Esse processo requer do professor práticas de ensino que possibilitem o contato com as multiplicidades de formas de linguagens. Nas fronteiras da linguagem ǀ 160 Neste sentido, formos norteados pelo interesse de compreender como se desenvolve as sequências de ensino que levam à produção de textos. Um olhar sobre o que acontece nas práticas de sala de aula em uma comunidade remanescente quilombola. Durante quinze (15) dias estivemos presente nas aula de português do 9º ano do ensino fundamental II, esse passo foi importante para que nós pudéssemos reconhecer as práticas de letramentos utilizadas pelo regente de sala. Nessa perspectiva, observamos que não houve enfoque em nenhum tipo de texto multimodal. As aulas ainda estavam vinculadas ao tradicionalismo e ligadas ao livro didático, onde poucas vezes eram desenvolvidas atividades paralelas à ampliação do repertório comunicativo dos alunos. Destacamos, a necessidade de multiletramentos, tendo em vista que eles preparam os alunos para situações comunicativas reais. Essa postura exige do professor mudanças para uma atitude mais contemporânea para o ensino da escrita. Essa proposta vem ampliar o conceito de ensino, principalmente ampliando a noção de diversidade de semioses que doravante ocorreram em atividades em sala de aula. Observemos a figura HQ 01 do aluno JRF: Figura HQ 01. No quadrinho (a) podemos observa a composição que é feita a partir do que é colocado em destaque nos balões: “lagoa dos criolos e minha terra natal comunidade cheia de coisas legais.” É clara a satisfação em ser um remanescente quilombola, é mostrado com orgulho quando JRF diz ser sua terra natal. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 161 É evidente que na parte verbal do texto o aluno em nenhum momento faz referência às questões do campo, isso só é entendido quando, no desenho, é construído a imagem de um boi em uma espécie de curral e de um homem com um chapéu. Logo, desse conjunto, podemos inferir que Lagoa dos Crioulos trata-se de uma comunidade rural. Essa assertiva só é possível quando levamos em consideração as múltiplas linguagens contidas nas HQs. Quando associamos um todo construído por coesão3responsável por atribuir sentindo ao texto. A linguagem, assim, assumida em uma esfera de práticas sociais significativas promove a materialidade multimodal desde um contexto informal até uma situação de completa formalidade. Assim, os apoios na oralidade que constam nessas produções serão abordado em módulos de ensino e propostas de revisão de textos no decorrer da pesquisa. Tendo em vista que o nosso foco é construir com os aprendentes textos multimodais e que os processos de composição verbal e composição visual, no que se relaciona a sua sintaxe. Servem de análises para momentos posteriores. Figura HQ 02. A figura HQ 02trata-se de uma história popularmente conhecida no comunidade quilombola, ressaltamos, com isso, que todo texto é formado dentro de determinado gênero em função das intenções comunicativas.Podemos perceber que um boi foi transformado em uma pedra – sendo encantado, conhecida como Pedra da Sereia. Na imagem HQ 02 do aluno FRO também há a construção de uma forma de referenciação4 entre o que é dito e o que é desenhado. Podemos observar que FRO faz uma 3 [...] coesão é, pois, uma relação semântica entre um elemento do texto e algum outro elemento crucial para sua interpretação. (KOCK, p. 16, 2008) 4 Kallmeyer et al (apud KOCK, p. 34, 2008) falam que a referência tem sido usada [...] na trilha de Halliday, significando a relação de sentido que se estabelece entre duas forma na superfície do textual. Nas fronteiras da linguagem ǀ 162 referência do que é enunciado verbalmente como: “vaqueiro”, “boi” e “pedra da sereia” com o que é desenhado. Nesse sentido, o verbal e o visual se complementam na construção do sentido, produzindo imagens da realidade. Essas representações são importantes, pois compreender um texto é entrar em contato com todos os recursos utilizados na sua construção. Considerações finais A forte massificação no uso dos gêneros mais tradicionais na escola não propõe um ensino de língua que esteja em acordo com os novos alunos deste século. Ainda a necessidade de ser planejar aulas a partir de sequências de ensino bem estruturada e sistemática. Assim, quando pensamos em desenvolver esse projeto, buscamos sequenciar as ações de sala de aula em busca de uma aprendizagem satisfatória. Acreditamos que a escola precisa ser cosmopolita na tentativa de aproximar os alunos das atividades linguísticas em uso, bem como a gêneros que não são popularmente encontrados nas escolas, mas que é possível de encontrar no uso cotidianos dos alunos,como é o caso das histórias em quadrinhos. Desse modo, essa pesquisa inicial buscou compreender as práticas de ensino em uma comunidade com status diferenciado, na tentativa de desenvolver metodologias aparadas por um suporte teórico e que fosse possível ser inserido da prática cotidiana do professor. Em sequência, buscamos inserir os uso de estratégias textuais para a compreensão das tirinhas produzidas, bem como justificar determinados acontecimentos ocorridos no texto, tal como o apoio na oralidade. Referências DAMAS, M. J.; DE KETELE, J. M. (1985) Observar para Avaliar, Coimbra, Livraria Almedina, 1985. DIONÍSIO, A. P. Gêneros multimodais e multiletramentos, in KARWOSKI, A. M.; GAYDECZKA, B; BRITO, K. S. (orgs.) Gêneros textuais: reflexões e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2005, 119 – 132. DOLZ, J.; NOVERRAZ, M; SCHENEWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento, in: DOLZ, J.; SCHENEWLY, B. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e Org.: R. Rojo e G. S. Cordeiro. Campinas. Mercado de Letras, 2004 [1998], pp. 149 – 185. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 163 KOCK, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e compreender os sentidos do texto. Segunda edição. São Paulo. 2010. MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gênero e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. SOARES, M. B. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2003[1995]. TRECCANI, G. D. Terras de quilombo: entraves do processo de titulação. Belém: Programa Raízes, 2006. VERGUEIRO, W. O uso do HQs no ensino. In:BARBOSA, A; RAMOS, P; VILELA, T.; RAMA, A.; VERGUEIRO, W. (orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 4 ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2014. Nas fronteiras da linguagem ǀ 164 ESPELHAMENTOS IMPERFEITOS: OS REFLEXOS ENTRE OS PERSONAGENS [Voltar para Sumário] Amador Ribeiro Neto (UFPB) Rafael Torres Correia Lima (UFPB) O texto literário é um campo, complexo de sentido, em que há constante diálogo entre os signos pertencentes a ele. Machado (2003) diz que, primeiramente, faz-se necessário conhecer a linguagem como um conjunto, cujo objetivo é o de comunicar através de signos. Lótman (1978), também semioticista, por sua vez afirma que a arte deve ser percebida como linguagem pelo prévio fato de unir um emissor e um receptor. Dessa forma, a obra Budapeste, de Chico Buarque, é um texto específico da arte literária que deve ser compreendida como linguagem para que possamos interpretá-la por meio dos signos. Todos os elementos contidos na obra têm importância significativa. Ao observarmos, por exemplo, a capa do romance Budapeste, verificamos que o dorso do livro é composto por um título semelhante ao da capa, chamado Budapest. Acreditamos que seja um “espelhamento imperfeito”. Definimos este como um objeto que reflete ou representa algo de modo incompleto, defeituoso ou mesmo inverso. No romance Budapeste, há diversas relações que remetem à questão dos “espelhos imperfeitos”, como: José Costa – Zsoze Kósta; Vanda e Joaquinzinho – Kriska e Pisti. Neste artigo, iremos verificar o movimento de reflexo entre os personagens presentes na obra. A primeira relação (Costa – Kósta) é marcada por diferenças de identidades, que classificamos em nacionais/linguísticas e compositivas; ou seja, apesar de ser uma única pessoa, é possuidora de determinada identidade dependendo do lugar em que está situada. O protagonista, desta maneira, perde o seu vínculo com o local de nascimento; está sempre renascendo de acordo com a situação em que se encontra. O espelhamento pode “simboliza[r] a sucessão de formas, a duração limitada e sempre mutável dos seres” (CHEVALIER, 2009, p. 394). Costa, além de desprender-se nacionalmente, atravessa, constantemente, de um país para outro; daí ocorrer sempre esta “sucessão de formas”, pois, em Budapeste, Costa transforma-se em Kósta. No Rio de Janeiro, ele é marido de Vanda, falante da língua III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 165 portuguesa e prosador; em Budapeste, é namorado de Kriska, falante do húngaro e poeta. Estes formatos se tornam alteráveis e restritos, porque dependem do local em que o personagem esteja. Mas, estas mudanças nunca acontecem de modo que Costa/Kósta se sinta confortável com a circunstância, já que “os atuais conflitos estão, com frequência, concentrados nessas fronteiras, nas quais a identidade nacional é questionada e contestada” (WOODWARD, 2009, p. 23). Em Budapeste, ele não atinge a pureza da língua húngara, sucedendo de haver sempre um “sotaque” que anuncia o “acento estrangeiro”. Por outro lado, no Brasil, ao retornar de Budapeste, Costa estranha o país de nascimento: as pessoas que eu topava, por mais que rissem e balançassem os corpos, não me pareciam afeitas ao ambiente. Às vezes eu as via como figurantes de um filme que caminhassem para lá e para cá, ou pedalassem na ciclovia a mando do diretor. E as patinadoras seriam profissionais, ganhariam cachê os moleques de rua, ao volante dos carros estariam os dublês fazendo barbaridades na avenida. Acho que eu tinha conservado uma lembrança fotográfica, e agora tudo o que se movia em cima dela me dava a impressão de um artifício (...) mesmo o oceano, na minha memória, estivera a ponto de se estagnar. (BUARQUE, 2003, p. 153-154, grifos nossos). Reparemos como as imagens contempladas por ele estão fora de lugar. O narrador tem a sensação de que a multidão que passa próximo a ele não está ligada ao ambiente, ou seja, é como se estivesse numa terra estrangeira. Costa se encontra confuso neste lugar, como localizado dentro de um “filme”, em que somente é capaz de memorizar representações fotográficas de um país obsoleto, pois, agora, toda novidade, ou tudo que não é (re)conhecido por ele, é simulação. Intrigante notar que a impressão que ele tem é a de que está em uma criação artística, como se fizesse parte de um processo fictício; e não é a primeira vez que ele se sente participando de uma atividade de criação. Quando Costa estava em um hotel, em Budapeste, ele relata que “não me aborrecia caminhar assim num mapa, talvez porque sempre tive a vaga sensação de ser eu também o mapa de uma pessoa” (BUARQUE, 2003, p. 56). O fato de ele apresentar-se como um mapa, expressa uma ambiguidade, visto que este objeto é uma reprodução gráfica. Adquire, assim, o sentido de que Costa se autodenomina “mapa” por escrever biografias, isto é, construir graficamente a vida de uma pessoa; ao mesmo tempo em que pode significar que ele seja esta pessoa representada graficamente. A partir desses diferentes sentidos, podemos perceber como a identidade composicional do escritor anônimo também possui o seu duplo. No Brasil, Costa é ghost writer de biografias. Escreve, exclusivamente, narrativas. Enquanto que em Budapeste, além de ser um escritor anônimo de prosa, passa a compor poesia. Esta mudança pode ter sido ocasionada pelo fato de Costa espelhar ele mesmo Nas fronteiras da linguagem ǀ 166 (Kósta), pois, segundo Chevalier (2009), o espelho é capaz de provocar uma imagem invertida. No caso do protagonista, o inverso da prosa seria a poesia. Ele relata que “não sabia escrever poesia, e todavia estava escrevendo um poema sobre andorinhas” (BUARQUE, 2003, p. 133). Acreditamos que pelo fato dele dominar com maior perfeição a língua nativa (portuguesa), tornou-se um ser prolixo. Por outro lado, a língua magiar teria que ser escrita de modo sucinto, uma vez que não a tinha totalmente no controle. Daí, como a poesia é expressa mais concisamente que a prosa, ele somente consegue elaborá-la em uma língua estrangeira. A relação entre Budapeste e Rio de Janeiro se insere diretamente neste contexto, pois naquela cidade Costa não se incomodava com o silêncio, que pode atribuir à concisão da fala, por exemplo, quando ele chega a Budapeste, entra em um táxi e fica “um minuto em silêncio dentro do carro” (BUARQUE, 2003, p. 47, grifos nossos), ou quando encontra Kriska e permanecem “cada qual com o seu silêncio; um dos silêncios acaba sugando o outro, (...) segui observando o seu silêncio, decerto mais profundo que o meu, e de algum modo mais silencioso (...) eu imerso no silêncio dela” (BUARQUE, 2003, p. 61, grifos nossos). Há um outro instante em que Costa afirma que “me apeguei àquele silêncio” (BUARQUE, 2003, p. 62, grifo nosso), além da sua relação com o Danúbio, “negro e silencioso” (BUARQUE, 2003, p. 70, grifo nosso). Todavia, no Rio de Janeiro e nos encontros anônimos, Costa tem atitudes contrárias ao silêncio, este o incomoda constantemente, por exemplo, em sua casa, a televisão fica continuamente ligada, principalmente quando Vanda não está presente, pois “ao silêncio de Vanda não voltando, preferia tiroteio e ronco dos motores” (BUARQUE, 2003, p. 77); ou quando ele está em um encontro em Melbourne onde ele “fervia, falava, falava, teria falado até o amanhecer se não desligassem a aparelhagem de som” (BUARQUE, 2003, p. 21, grifos nossos). Estes contínuos deslocamentos pelos países realizados também podem ser compreendidos como refletores desta dupla identidade, uma vez que “é a viagem em geral que é tomada como metáfora do caráter necessariamente móvel da identidade (...), posicionandoo, ainda que temporariamente, como o ‘outro’” (SILVA, 2009, p. 88). É mais um movimento que determina Costa ser considerado um prosador em Budapeste e um poeta no Rio de Janeiro, assumindo diferentes identidades. O espelhamento manifesta-se, da mesma forma, no âmbito familiar do protagonista. A família carioca e budapestense reflete-se uma à outra, tendo como intermediário José Costa. Sobre a família carioca, Costa e Vanda são pessoas antagônicas. Por um lado, Costa conserva-se no anonimato; por outro, Vanda dedica-se à busca pela fama. Ela, constantemente, ofusca o marido. Quando Costa passa a viajar constantemente, e Vanda a viver sem a presença do marido, ela ganha mais notoriedade no seu emprego. Vanda III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 167 fora transferida para São Paulo (...) porque o telejornal da noite era gerado em São Paulo (...) e de segunda a sexta a Vanda ia ao ar em rede nacional. Era um upgrade na carreira, disse ela, tanto assim que em Higienópolis todo mundo parava na rua, chegava a ser chato. Disse que por outro lado adorava a efervescência cultural da cidade, tinha ido a um catatau de exposições. Frequentava restaurantes magníficos no fim da noite, de tarde malhava na academia. Sem contar que três vezes por semana tinha fonoaudióloga, porque apresentara problemas de fadiga nas cordas vocais. Pensava em alugar um apartamento, mas ao mesmo tempo se sentia mais protegida num residence. Disse também que exigiu da gerência a troca do colchão, e com isso estava melhor da coluna. (BUARQUE, 2003, p. 81). Este “upgrade” significa que ela agora se tornou visível no seu ramo de trabalho, que pode ser representado também por ter “clareado os cabelos, e esticara os cachos, e usava rímel, pingentes nas orelhas, uma camisa de colarinho, um paletó de homem, com ombreiras” (BUARQUE, 2003, p. 76, grifos nossos). O clareamento, que alude a um efeito de luzes, e o esticamento, que Vanda fez em seu cabelo, vão de encontro com o “cabelo preso” do início da obra. É como se ela estivesse se libertado de Costa e ligada a um outro momento da sua vida pessoal e profissional. Quando estica os seus cabelos, podemos entender que ela conseguiu se firmar no emprego, ou seja, que houve uma ascensão no seu emprego, devido a sua mudança de visual. Prova disso, é que os cabelos adquiriram luzes, foram realçados. Os cachos, que podem representar um enrolamento pessoal e profissional, passam a não mais existir. O rímel nos olhos contrasta com a anterior sombra com que ela se maquiava. O rímel serve para colorir os cílios. Vanda agora tinha cores, diferentemente do começo, em que ela possuía uma sombra sem nenhuma cor, ou melhor, com uma cor escura. Também podemos entender que o cílio é uma parte do corpo que serve para esconder os olhos e o rímel é útil para curvar os cílios, dando destaque aos olhos ao invés de escondê-los. O pingente nas orelhas vai de encontro com o colar de miçangas que ela usava. O pingente é um brinco que fica pendente na orelha. O “pender” pode ser deduzido, no caso de Vanda, como uma pessoa que se tornou decidida, realizada e determinada para aquela sua função. Da mesma forma, podemos pensar nas “ombreiras” que, por ampliação de sentido, é entendido como uma entrada, servindo para dar passagem, que em relação à Vanda, é marcada pela saída de um jornal local para o ingresso em um jornal nacional. Já Joaquinzinho é o filho de Costa e Vanda. Ele “ia completar cinco anos e não falava nada, falava mamãe, babá, pipi” (BUARQUE, 2003, p. 30-31). Esta sua carência na fala reflete a inexistência de voz que o ghost writer tem sobre os seus escritos. Chevalier (2009) diz que os espelhos provocam a reflexão das ações dos homens. Com isto, percebemos que Joaquinzinho se torna reflexo de Costa no sentido de que os dois não possuem opinião Nas fronteiras da linguagem ǀ 168 manifesta. Aquele não estabelece nenhuma conversa com o pai, mesmo na insistência deste. Por exemplo, quando está a procura da esposa e pergunta ao filho “cadê a mamãe?, cadê a mamãe? Começou a chorar alto” (BUARQUE, 2003, p. 78). Entretanto, a criança imita o pai. O narrador relata que pela madrugada ele [Joaquinzinho] pegou a mania de balbuciar coisas sem nexo, inventava sons irritantes, uns estalos nos cantos da boca; eu não tinha sossego nem minha cama, me segurava, me mordia, finalmente estourei: cala a boca, pelo amor de Deus! Calou, e a Vanda saiu em sua defesa: ele está só te imitando (BUARQUE, 2003, p. 31). A realização da imitação demonstra que o filho é o espelho do pai, pois ele tenta reproduzir fielmente o que Costa falava quando estava dormindo. Era como se Joaquinzinho tentasse copiar o pai, e como este era um ghost writer que não se manifestava publicamente, o filho também não se revelava abertamente. Contudo, são “espelhamentos imperfeitos”, pois a privação de Costa sucedia pela escrita, não assumindo ostensivamente o que produzia, e o de Joaquinzinho ocorre pela fala, que somente é articulada no colóquio entre ele e a mãe. A própria empregada do casal já havia pronunciado que “bebê que se vê refletido no espelho fica com a fala empatada” (BUARQUE, 2003, p. 32, grifos nossos). Entendendo que o reflexo é a imagem do pai, a palavra “empatada” pode significar tanto “impedida” como “igualitária”. Joaquinzinho tem dificuldades em se expressar, ou seja, a propriedade da fala é um estorvo (impedida) para o garoto; assim como a apropriação da escrita é para Costa. Nenhum dos dois se apodera publicamente da palavra. Além disso, Costa transforma-se em um pai ausente, pois passa a morar em Budapeste e quando retorna ao Rio de Janeiro o seu filho não o reconhece. Eles se encontram casualmente em uma loja de sucos, onde Joaquinzinho estava acompanhado de outro jovem. Costa conta que “eram jovens musculosos, de cabeças raspadas e abundantes tatuagens, um com répteis que lhe subiam pelos braços, o outro com uma espécie de hieróglifos espalhados no peito nu. Mastigavam sanduíches de boca aberta” (BUARQUE, 2003, p. 155, grifos nossos). Reparemos que Joaquinzinho já não é mais uma criança. Este fato marca, de maneira imperfeita, o tempo em que Costa esteve no país estrangeiro. A musculosidade dos jovens pode representar, mais especificamente no filho de Costa, a força em superar situações difíceis, como a ausência dos pais (visto que Vanda também era distante, pois trabalhava como repórter de um jornal em São Paulo e estava sempre viajando). Daí a “cabeça raspada” ter o sentido de que a memória (cabeça) fora suprimida (raspada), não havendo o reconhecimento do pai, e a tatuagem seria a única coisa duradoura e permanente. Sendo que, III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 169 em Joaquinzinho, o desenho no corpo, segundo Costa, é um hieróglifo, o que sugere uma pessoa enigmática, ligando-o ao pai que, por ser um ghost writer, tem o seu trabalho como algo obscuro. A tatuagem é um sinal que pode revelar o possuidor da mesma, mas o hieróglifo traduz uma dificuldade em decifrar quem é este sujeito; talvez, por isto, Costa demora a reconhecê-lo. Ademais, o espelhamento também está presente neste desenho marcado no corpo, porque a figura reflete a ambiguidade que são os dois personagens, Joaquinzinho e o seu pai. Eles têm características misteriosas e ocultas: um em relação à fala, o outro à escrita. Além disso, a imagem é exposta em um “peito nu”, podendo demonstrar que o jovem está desprovido, por isso a nudez, de qualquer sentimentalismo, pois o “peito” é onde está localizado o coração, podendo ser entendido, simbolicamente, como o lugar das emoções. O outro jovem, companheiro de Joaquinzinho, usufrui de uma tatuagem de réptil no braço, significando que é um sujeito que tem uma personalidade rasteira, assim como o animal, também podendo ser interpretado como um mau caráter. Como a imagem está no braço, demonstra que ele produz poderosa influência em Joaquinzinho, talvez seja por isto que ocorre a perseguição à Costa. Já no fato dos jovens estarem “mastigando um sanduíche de boca aberta”, percebemos que a ação de “mastigar” significa a mesma coisa que “triturar” ou “destruir”; o “sanduíche” é feito com duas fatias de pães e como Costa e Joaquinzinho são personagens espelhados, podemos assimilá-los aos pães, cada um seria uma banda; na mastigação de “boca aberta”, julgamos a “boca” tendo sentido de “início” e como ela está “aberta”, pensamos que a abertura pode ser entendida como “receptivo a uma conversa” ou de um “diálogo entre os dois”. Portanto, Joaquinzinho estaria destruindo qualquer princípio de diálogo entre ele e o pai, ao comer o pão. Como nem o garoto e nem Costa se identificam, os dois jovens resolvem perseguir o ghost writer ao sair da loja e Joaquinzinho veio andando com um cigarro na boca e me fez um sinal com os dedos, pedindo fogo. Apalpei o bolso onde costumava levar cigarros, estava vazio, mas ele continuava a avançar, praticamente se colou em mim. Era um palmo mais alto que eu, meus olhos batiam no seu peito, e por instantes imaginei que poderia decifrar os hieróglifos ali tatuados. Depois olhei os olhos com que me fitava, e eram os olhos femininos, muito negros, eu conhecia aqueles olhos, Joaquinzinho. Sim, era meu filho, e por pouco não pronunciei seu nome; se lhe sorrisse e abrisse os braços, se lhe desse um abraço paternal, talvez ele não entendesse. (BUARQUE, 2003, p. 156157, grifos nossos). Apenas neste momento é que Costa reconhece o filho. Esta identificação é feita por meio do “olhar” de Joaquinzinho. O “olho”, aqui, representa o órgão de esclarecimento, porém, segundo o protagonista, a revelação é apresentada somente para ele. Por outro lado, Nas fronteiras da linguagem ǀ 170 Costa põe em dúvida o fato de Joaquinzinho não reconhecê-lo, “talvez ele soubesse desde o início que eu era o seu pai, e por isso me olhava daquele jeito” (BUARQUE, 2003, p. 157). Por fim, eles acabam se separando e não conseguem mais se avistarem. Conforme estamos defendendo, a família de Costa, no Brasil, é o “espelhamento imperfeito” da família na Hungria. Assim sendo, Joaquinzinho equivale a Pisti e Vanda à Kriska. Então, iremos, agora, verificar como a mãe e o seu filho budapestense estão relacionados com Costa e seus respectivos espelhos brasileiros. O narrador compara Pisti a Joaquinzinho, dizendo que “Pisti regulava com meu filho, apesar de miúdo, e puxara a mãe no rosto largo com as maçãs saltadas, nos lábios finos, nos cabelos escorridos porém negros, no tom imperativo” (BUARQUE, 2003, p. 65-66, grifos nossos). O fato de ele “regular”, ou seja, harmonizar com Joaquinzinho, comprova a reflexão que há entre eles, pois significa que são comparáveis, tendo características aproximadas, mas não necessariamente semelhantes, o que indica possíveis diferenças. O tamanho reduzido de Pisti dá a entender que é atento aos detalhes; as companhias de um “rosto largo”, dos “lábios finos” e dos “cabelos escorridos” mostram que, além de ser amplamente (largura) ousado, tem uma linguagem afiada e sem volteios, não é à toa que, constantemente, ofende Costa. A negritude dos cabelos talvez denote que é um indivíduo complicado, até porque está associado ao “tom imperativo”, demonstrando o caráter dominador. Outro vínculo que chama a atenção é a paronimia das palavras “Pisti” e “Peste”. Se relacionarmos estes dois nomes e pensarmos em “peste” como um signo brasileiro regionalizado, então, Pisti pode ser uma pessoa geradora de problemas. Diferentemente da amizade com seu filho, Costa tem uma convivência com Pisti mais perturbadora. Constantemente, este quer rebaixar aquele, talvez com o intuito de mostrar a passividade de Costa perante todas as circunstâncias. Por exemplo, quando Kriska ia preparar a refeição, o garoto convidava o protagonista para jogar bola e “escalava-me como goleiro, batia uma saraivada de pênaltis e apreciava que eu me atirasse no terreno pedregoso e encharcado” (BUARQUE, 2003, p. 66). Outra atitude que demonstrava todo o desprezo que Pisti sentia por Costa é a do riso. O garoto está incessantemente zombando da conduta do outro. Quando Costa iniciou as aulas na casa de Kriska, dia sim, dia não, o filho dela rondava por ali, mexia nas coisas, ria da minha cara, não sossegava enquanto Kriska não o despachasse para a cama. Divertia-se, Pisti, ao ver um homem grande olhando figuras em álbuns coloridos, um homem gago aprendendo a falar guarda-chuva, gaiola, orelha, bicicleta (BUARQUE, 2003, p. 63, grifos nossos). III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 171 Pisti costumava ficar próximo de Costa, não com o objetivo de admirá-lo, mas para desprezá-lo, diferentemente de Joaquinzinho que tentava imitar o pai. A distração do garoto budapestense era menosprezar o ghost writer. Outros meios em que exprimia este desdém eram com palavras grosseiras, com o intuito de mostra a improficuidade de Costa. Este chega a Budapeste e fica hospedado na casa de Kriska, que o arruma um emprego. Para praticar o seu domínio do magiar, ele passa a corrigir os exercícios de escola de Pisti. Entretanto, quando Costa fala a palavra “középiskola”, o menino o recrimina, denominando-o de “idiota” por pronunciar erroneamente. O signo “idiota” remete a alguém sem valor, revelando a inutilidade de Costa para o filho de Kriska. Desse modo, o garoto se torna o “espelhamento imperfeito” de Joaquinzinho, pois este é o filho de Costa, no Brasil, e aquele é uma espécie de afilhado, em Budapeste. A diferença entre eles está, justamente, no trato em que é dado ao protagonista, que é o intermediário. O outro espelhamento, que destacamos, é entre Vanda e Kriska. O nome completo desta é Fülemüle Krisztina. A palavra “fülemüle” é a mesma dada a uma ave migratória, sendo que, no caso de Kriska, não havia mudanças de países e nem linguísticas; ela é uma pessoa purista, como são percebidas pelas advertências comunicadas à Costa, quando o ensinava a língua húngara: “para ajustar o ouvido ao novo idioma, era preciso renegar todos os outros” (BUARQUE, 2003, p. 64) e “me recomendou evitar outros idiomas durante o período letivo” (BUARQUE, 2003, p. 71). Após conhecer o ghost writer, Kriska passa por transformações que eram acompanhadas de acordo com o progresso ou regresso do aperfeiçoamento linguístico dele em Budapeste. O uso de determinado tipo ou privação da roupa, por ela, é um dos meios que revela o seu relacionamento com o aprendizado de Costa. A natureza do novo homem moderno, desnudo, talvez se mostre tão vaga e misteriosa quanto a do velho homem, o homem vestido, talvez ainda mais vaga, pois não haverá mais ilusões quanto a uma verdadeira identidade sob as máscaras. Assim, juntamente com a comunidade e a sociedade, a própria individualidade pode estar desmanchando no ar moderno (BERMAN, 2007, p. 136, grifos nossos). A identidade de Kriska está interligada a de Kósta, quando este se encontra em Budapeste. Ela age de acordo com o desenvolvimento linguístico dele e, quanto mais avanço, menos roupa é usada por ela. Como eles estão intrinsecamente unidos, não há uma individualidade a ser observada, mas ações comuns aos dois. Por exemplo, nos momentos em que ele ascendia na língua magiar, Kriska se sentia mais a vontade para usar roupas curtas e se despir, por outro lado, quando Costa não lembrava ou errava o idioma local, ela ficava mais Nas fronteiras da linguagem ǀ 172 reservada. Portanto, o domínio da língua húngara significava a conquista de Kriska. O narrador diz que nas aulas iniciais do idioma me fazia passar sede, porque eu falava, água, água, água, água, sem acertar a prosódia. Os pães de abóbora, um dia trouxe à sala uma fornada deles, passou-os fumegantes sob o meu nariz e jogou tudo fora, porque eu não soube denominá-los. Mas antes de fixar e de pronunciar direito as palavras de um idioma, é claro que a gente já começa a distingui-las, capta seu sentido (...) e um dia descobri que Kriska gostava de ser beijada no cangote. Aí ela tirou pela cabeça o vestido tipo mariamijona, não tinha nada por baixo, e fiquei desnorteado (BUARQUE, 2003, p. 4546, grifos nossos). A façanha de já conseguir apreender o significado de algumas palavras, forneceu, também, a capacidade de mostrar o gosto de Kriska em receber beijos. Consequentemente, a roupa comprida deixou de pertencê-la, isto é, à medida que Costa desvendava a língua estrangeira, Kriska é revelada, como é percebido no ato de desnudamento desta. Em outra situação, em que os dois estão juntos, Costa receia falar algo que não seja a língua húngara, visto que, provavelmente, esta conduta implicaria em uma mudança de atitude de Kriska. Ele diz que “num movimento único tirou o vestido pela cabeça (...). Tive medo de, num arroubo, puxá-la contra o peito e falar as coisas que eu só sabia falar na minha língua, enchendo seus ouvidos de palavras indecorosas, quiçá africanas” (BUARQUE, 2003, p. 68). Notemos que as palavras pertencentes à língua estrangeira seria uma obscenidade, agredindo moralmente Kriska, que, possivelmente, recomporia. Ela costumava exibir-se a Costa que, para este, era entendido e comparado com as imagens utilizadas nas aulas para apreender o idioma, pois ela teria que ser observada e lida. O protagonista relata que “desconfio que o tempo inteiro estava se mostrando, como nos álbuns me mostrava estrelas e cavalos, mas olhando Kriska em movimento eu aprendia mais” (BUARQUE, 2003, p. 64). Costa a equipara a ilustrações. Logo, é visível a conexão entre Kriska e o aprendizado húngaro. Permanecer ao lado dela traduz preservar o vernáculo budapestino. “Um mês em Budapeste, na verdade, significava um mês com Kriska, porque sem ela eu evitava me aventurar na cidade; receava perder, no vozerio da cidade, o fio do idioma que vislumbrava pela sua voz” (BUARQUE, 2003, p. 6465, grifos nossos). Privar-se de Kriska denota a perda do idioma. Depois de passar um bom tempo no Brasil, Costa decide retornar a Budapeste. Ao chegar neste país, que enfrentava um forte inverno, ele procura por Kriska, mas ao interfonar e não ser atendido, acaba desmaiando em frente a casa dela. Ao acordar, despertei de pijama num divã, debaixo de cobertores, a cabeça enfaixada, olhei para Kriska e tive um pouco de medo de seus lábios delgados. Desatei a falar da minha III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 173 penúria, da minha condição de sem-teto em Budapeste, me disse perseguido político em meu país e repetidas vezes a ouvi suspirar. Mas era por causa do meu húngaro, tão precocemente deteriorado, que ela se condoia. E me fez calar, magoada com razão, porque o idioma assim desaprendido, para ela, devia ser como a branca pele dela que eu teria esquecido tão depressa (BUARQUE, 2003, p. 122-123, grifos nossos). Não obstante Costa fantasiar algumas misérias, ela fica desgostosa pela fragilidade que ele apresentava no domínio do húngaro. Reparemos que Kriska estava desgostosa porque o esquecimento do idioma significava, consequentemente, o esquecimento dela mesma. Então, mais uma vez, percebemos a relação direta entre ela e o idioma. Após este acontecimento, Costa vive na despensa da casa. A palavra “despensa” tem uma ligação paronímica com “dispensa”. Daí, existe a possibilidade de pensarmos que, devido ao descuido com a língua húngara e, por conseguinte, com Kriska, Costa se torna uma pessoa dispensável. Ela abdicava de falar com ele e, como a língua está relacionada à roupa da própria personagem, de apresentar-se de maneira descomposta. Assim, “falar, quase não me falava, (...) da mesma maneira que nem o cachecol despia na minha frente. (...) Daí que meu pobre húngaro (...) só podia caducar” (BUARQUE, 2003, p. 123). Kriska, notando que ele estava prestes a perder tudo que havia aprendido, resolve arranjá-lo um emprego. Com isto, Costa reaprende o idioma magiar e a reconquista. Neste caso, ela, que andava recatada, agora “usava uma saia bem curta (...) e tornara a me querer bem.” (BUARQUE, 2003, p. 127), significando que não estava mais decepcionada. Entendemos, a partir de todas as ações realizadas por Kriska, que ela crescia juntamente com ele. Diferentemente de Vanda, que desejava chegar à fama independente do seu marido, enquanto que Kriska acompanhava Costa no seu desenvolvimento e regressão. Elas se tornam um “espelhamento imperfeito”, visto que uma é a mulher de Costa no Brasil e a outra em Budapeste; são comparadas por ele em circunstâncias diferentes, por isso o espelhamento, e é imperfeita por não terem objetivos iguais quando se trata do ghost writer, ou seja, uma é oposta a outra em relação à Costa, que é o ponto de conexão entre as duas. Ele fala que “deitei-me com Kriska, e para melhor abraçá-la me lembrei de Vanda” (BUARQUE, 2003, p. 68), como se fossem uma só. Quando estava no Rio de Janeiro, Costa conta que ao lembrar que, antes de conhecer seu [de Kriska] corpo, chegara a suspeitar de qualquer coisa errada nele, tão diferentes seus movimentos dos de Vanda. A não ser quando andava de patins (...). Às vezes, (...) eu lhe sugeria que os calçasse; era uma maneira de melhor (...) me recordar da Vanda (BUARQUE, 2003, p. 94). Nas fronteiras da linguagem ǀ 174 Portanto, nos dois momentos, Costa tenta assimilar uma mulher com a outra, fazendo com que as duas fossem o espelho da outra. Os espelhamentos não se encerram apenas entre os personagens. Existem, também, entre os escritos de Costa e em meio ao próprio romance Budapeste. Todos os reflexos possuem como intermediário o ghost writer, pois ele é a relação direta que há entre os personagens. Tratando-se da primeira ligação (José Costa - Zsoze Kósta), vimos que “o sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única identidade, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2006, p. 12). Portanto, na obra estão presentes questões de identidades referentes à nacionalidade e à composição escrita adotada por Costa. Na simples mudança de nome há significados que abrangem toda a história do personagem. Sobre a segunda comparação, colocaremos como Joaquinzinho – José Costa – Pisti. Aqui, os dois garotos se relacionavam com o escritor de maneiras distintas; o primeiro, por ser o filho, tenta refletir o próprio pai através de imitações imperfeitas da língua húngara e do silêncio público, que se correspondia com os escritos anônimos de Costa, nunca sendo pronunciado em público a não ser no próprio ocultamento; do outro lado existe Pisti, que não era filho de Costa, porém tratado como tal, mas aquele repugnava este. Ele não tentava imitar o ghost writer, mas humilhá-lo com deboches. Enquanto Joaquinzinho queria aproximar-se de Costa, Pisti desejava afastá-lo. Na terceira descrição realizada, Vanda – José Costa – Kriska, há em comum o fato de ser mulheres que Costa se relaciona, uma no Brasil e a outra em Budapeste; a diferença entre elas é que o crescimento profissional e relacional de Vanda não estava em simetria com o de Costa, ao passo que o de Kriska era progressivo com o dele. Referências BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução de Carlos Felipe Moisés; Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. BUARQUE, Chico Budapeste. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 23. ed. Tradução de Vera da Costa e Silva et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva; Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 175 LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Editorial Estampa, 1978. MACHADO, Irene. Escola de Semiótica: a experiência de Tártu-Moscou para o estudo da cultura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 9. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 9. ed. Organização de Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p. 7-73. Nas fronteiras da linguagem ǀ 176 CARPENTIER E A MÚSICA: ENTRE SONATAS, ROMANCES E ENSAIOS [Voltar para Sumário] Amanda Brandão Araújo Moreno (UFPE) “nenhuma música lhe era humanamente indiferente” É comum no âmbito da crítica e da teoria literárias isolar um aspecto da obra de determinado autor e analisá-lo de forma pontual a fim de melhor esmiuçar o tal aspecto desde um ponto de vista relacional, seja com outra obra do mesmo autor ou com um outro conjunto de obras que possam relacionar-se com a primeira, alvo maior da análise. É certo que muitas vezes essa prática privilegia um método que acaba por negligenciar outras questões, também importantes, do projeto literário de um escritor. Por outro lado, essa metodologia oferece aportes mais densos e melhor embasados em teorias específicas. Há, entretanto, alguns temas presentes em obras de determinados autores que são constitutivos de sua produção como um todo, o que implica que tocar nesses assuntos leva a um comentário geral do projeto do autor. O tema desse ensaio, acredito, é um desses motivos através dos quais se pode pensar todo um conjunto de obras de um só autor através de um mote: trata-se das relações entre música e literatura no projeto literário de Alejo Carpentier. Não se pretende, aqui, comentar a tecnicidade da presença da música nos livros de Carpentier, haja vista a falta de ferramentas da teoria musical por parte da autora deste ensaio. Pretende-se, isso sim, apontar alguns momentos da literatura carpenteriana em que falar do texto é também falar de música. Nossa intenção é dar destaque a algumas relações propostas pelo autor cubano entre os dois fazeres artísticos, seja em forma de texto, em sua tessitura propriamente dita, seja como estrutura que subjaz ou complementa o texto. Estarão presentes, neste ensaio, referências não apenas a obras da ficção carpenteriana, mas também a textos teóricos e ensaísticos do autor. Como é sabido, Alejo Carpentier é um autor cubano nascido nos primeiros alvores do século XX. Filho de um arquiteto francês e uma professora russa, passou muitos anos de sua vida transitando entre a América e a Europa, fatos que o lavaram ao plurilinguísmo, a uma educação que não se restringia aos moldes europeus –apesar de baseada neles– e a uma III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 177 relação pouco trivial com várias culturas. No cenário literário, Carpentier é considerado um dos precursores da novelística atual e um dos principais exponentes do romance hispanoamericano do século XX. O autor somou seus esforços aos daqueles que contribuíram para a discussão em torno da ideia de América. Suas obras dialogam com ressonâncias históricas ou literárias que de alguma forma tangenciam a temática ou fazem dela seu assunto principal. O continente americano figura em seus textos como uma realidade maravilhosa, dotada de privilégios estéticos extraordinários se comparados com os fornecidos pela Europa. Carpentier tratou de assumir a experiência latino-americana em sua totalidade, “o mito passou a ser o próprio real, compreendido na simultaneidade de suas perspectivas prováveis” (JOSEF, 1993, p. 101); o autor procurou criar uma unidade entre os temas americanos e a cultura universal, integrando as ciências e as artes no romance. A busca realizada é não apenas da própria identidade, mas a de toda a Hispanoamérica. Carpentier acreditava e propunha que todo escritor deveria conhecer pelo menos uma arte paralela àquela que se dedica, pois isso enriqueceria seu mundo espiritual e sua produção literária (DE VAN PRAAG, p. 225). A “arte paralela” escolhida pelo autor foi a música. Essa escolha dificilmente pode ser considerada arbitrária: seu pai, além de arquiteto, fora músico (violoncelista). Sua mãe também deixara uma veia musical como herança. Desde criança, o garoto Alejo foi posto em contato com a primeira arte e, durante muito tempo, quis dedicar-se a ela. Aos sete anos de idade já tocava ao piano prelúdios de Chopin. Antes de escolher a carreira de escritor, sua ambição era tornar-se compositor. Além de dominar alguns instrumentos, Carpentier também era especialista em teoria musical e isso se expressa em vários – senão todos – de seus romances. Alguns títulos, inclusive, remetem diretamente a esse viés tão caro ao autor: Concierto Barroco (1974), El arpa y la sombra (1979), La consagración de la primavera (1978), La música en Cuba (1946) e Ése músico que llevo dentro (2007) são alguns exemplos. Tanto na vida quanto na obra do autor cubano a música ocupou um lugar privilegiado: Carpentier foi também crítico musical, organizador de concertos musicais em Havana e testemunha das vanguardas artísticas de sua época durante seu período de estadia na Europa (de cujo cenário intelectual nunca se desvinculou totalmente). Carpentier advogava por uma união entre música e literatura que, por sua afinidade, ofereceria ao escritor as condições suficientes para o desenvolvimento de sua concepção vital (RUIZ BAÑOS, 1986, p. 65). De acordo com Carlos Paz Barahona (2005, p. 73), “la música en la obra de Alejo Carpentier se filtra por entre los espacios de la palabra, adquiriendo funciones complejas dentro del texto”, e por isso mesmo é difícil precisar em qual de seus romances Carpentier dá Nas fronteiras da linguagem ǀ 178 mais espaço aos temas musicais. Em alguns deles a música aparece como estrutura subjacente ao enredo; em outros, ela compõe parte expressiva da temática desenvolvida. O que é certo é que em todos seus romances é possível estabelecer alguma relação mais ou menos aparente com o tema. Em Os passos perdidos (Los pasos perdidos, no original, publicado em 1953), um dos romances mais expressivos e bem cotados do autor, o personagem principal é um músico que trabalha numa grande cidade produzindo músicas comerciais. Frustrado com sua rotina, decepcionado com sua vida pessoal e profissional, aceita um trabalho extra oferecido por um antigo conhecido. Sua tarefa era viajar para a selva venezuelana, mais especificamente nas altas extensões do rio Orinoco, e encontrar alguns instrumentos indígenas de origem primitiva para compor um museu organológico da universidade em que trabalhava o colega em questão. À medida que penetra e se integra aos labirintos da selva, a viagem se converte em uma profunda reflexão sobre as etapas históricas mais significativas da América e sobre a origem da música. O personagem principal de Os passos perdidos, nos anos iniciais de sua formação de musicólogo, criara a “teoria do mimetismo mágico-rítmico”, a qual supunha que o nascimento da expressão rítmica primitiva se devia ao afã de arremedar o passo dos animais ou o canto dos pássaros. É por causa dessa teoria que o convite é feito ao personagem e se empreende a viagem. O contato com uma realidade bastante diferente da qual já se havia habituado, os silêncios da floresta e os ruídos que se desdobravam destes e o posterior encontro dos instrumentos procurados fizeram com que a teoria musical do personagem fosse diversas vezes reformulada, até que sua versão definitiva se esboça a partir do que o personagem chama de “grande revelação”: o nascimento da música lhe ocorrera através do som entoado pela boca de um feiticeiro que afugenta os “mandatários da morte” do corpo de um homem que morreu devido à picada de uma cobra. A cena é composta pelo corpo, as pessoas que só observam e o feiticeiro. Este tange uma maraca e estabelece um diálogo com os tais mandatários. Ocorre que nesse diálogo as vozes que se alternam não são apenas a do próprio feiticeiro, mas também da entidade ali presente através da garganta do primeiro. “Entre ‘ambos’ hay diálogo, fricción, combate. De ese roce surgen trinos, portamentos, contratempos. Las sílabas repetidas forman un ritmo. Las notas que aparecen entre dos trinos forman una breve melodía. No es música aún, pero tampoco es ya palabra” (PEZZELLA, 2014, p. 206). Nas palavras do personagem: Estou em morada de homens e devo respeitar seus Deuses... Mas então todos começam a correr. Atrás de mim, sob uma massa de folhas penduradas nos ramos que servem de teto, acabam de estender o corpo inchado e negro de um caçador III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 179 mordido por um crótalo. Frei Pedro diz que morreu há várias horas. No entanto, o Feiticeiro começa a sacudir uma cabaça cheia de cascalho – único instrumento que conhece essa gente – para tratar de afugentar os mandatários da Morte. Há um silêncio ritual, preparador do ensalmo, que leva a expectativa dos que esperam por seu apogeu. E na grande selva que se enche de espantos noturno, surge a Palavra. Uma palavra que já é mais do que palavra. Uma palavra que imita a voz de quem diz, e também a que se atribui ao espírito que possui o cadáver. Uma sai da garganta do ensalmador; a outra, de seu ventre. Uma é grave e confusa como um subterrâneo fervor de lava; a outra, de timbre médio, é colérica e destemperada. Alternam-se. Respondem-se. Uma repreende quando a outra geme; a do ventre torna-se sarcasmo quando a que surge da goela parece coagir. Há como que portamentos guturais, prolongados em uivos; sílabas que de repente se repetem muito, chegando a criar um ritmo; há trinados interrompidos de subido por quatro notas que são o embrião de uma melodia. Mas vem em seguida o vibrar da língua entre os lábios, o ronco para dentro, o arquejo em contratempo sobre a maraca. É algo situado muito além da linguagem, e que, no entanto, está muito longe ainda do canto. Algo que ignora a vocalização, mas já é algo mais que palavra. A ponto de se prolongar, parece horrível, pavorosa, essa gritaria sobre o cadáver rodeado de cães mudos. Agora, o Feiticeiro o encara, vocifera, golpeia com os calcanhares no chão, no mais desgarrado de um furor imprecatório que já é a verdade profunda de toda tragédia – intento primordial de luta contra as potências de aniquilamento que se atravessam nos cálculos do homem. Trato de me manter fora disso, de guardar distâncias. E, no entanto, não posso furtar-me à horrenda fascinação que essa cerimônia exerce sobre mim... Ante a teimosia da Morte, que se nega a soltar sua presa, a Palavra, de repente, abranda-se e desanima. Na boca do Feiticeiro, do órfico ensalmador, estertora e cai, convulsivamente, o Treno – pois isto e não outra coisa é um treno -, deixando-me deslumbrado pela revelação de que acabo de assistir ao Nascimento da Música (CARPENTIER, 2009, p. 200) A origem da música é um tema recorrente em Os passos perdidos e na obra de Carpentier como um todo. Mas não se trata de qualquer música. Carpentier tenta abordar uma música universal, uma que escapa ao olhar puramente ocidental ou europeu. O autor tentar alcançar a Música primordial, comum a todos os homens. Existe uma constante tentativa de universalização do particular, a constante mescla de culturas para alcançar a Cultura, a mescla de músicas para chegar à Música. Essa proposta está em praticamente todas as suas obras, mas talvez tenha especial desenvolvimento em La consagración de la primavera, a qual se relaciona diretamente com um ballet de Stravinsky, A sagração da primavera. Nesse romance, ritmos afro-cubanos contrapõem-se e mesclam-se com o eruditismo de Stravinsky, corroborando para a teoria carpenteriana da universalidade da música. A ação começa ao final da década de trinta do século passado, em um hospital de descanso dos feridos em brigadas internacionais e culmina na Batalla de Playa Girón, fato histórico que comoveu Carpentier. O próprio autor classifica La consagración de la primavera como seu romance mais longo e ambicioso, por seu caráter político-revolucionário, que traz um novo olhar sobre a Revolução Cubana. Outro romance de Carpentier que traz a música como parte essencial é El acoso. Nesse caso a música se manifesta não apenas como tema, mas como estrutura subjacente ao enredo. Nas fronteiras da linguagem ǀ 180 Trata-se de “um estudo psicológico dos efeitos do medo, causado pela perseguição, revolta e injustiça. Durante os 46 minutos que dura a execução da Heróica de Beethoven, as personagens culminam seu fatum” (JOSEF, 1986, p. 153, grifos da autora). Toda a estória se desenrola num teatro enquanto é reproduzida a terceira sinfonia do famoso compositor. A estória, assim como a música em questão, desenvolve-se em vários temas: um introdutório, que se desenrola no ritmo rápido de um allegro, o qual, minutos depois, será reduzido ao ritmo lento do adagio e crescerá, numa última parte, num andante animado. O uso que Carpentier faz da música e a relação estrita que impõe confere ao romance uma nova dimensão. Em Concierto barroco também se apresenta um novo encontro entre a literatura carpenteriana e a música. Dessa vez o relevo é dado à ópera e a relação que se estabelece, em primeira instância, é com o compositor Vivaldi, que teria escrito a primeira ópera já conhecida sobre a América. O livro problematiza essa questão, dado que a partitura completa da obra vivaldiana não foi encontrada, como nos diz o romance de Carpentier. Em Concierto barroco se vê “la convergencia de músicas diferentes en congregación de elementos, donde a la música tradicional europea se une la diversidad instrumental americana, un nuevo tratamiento del ritmo y la facilidad creadora de la improvisación” (BARAHONA, 2005, p. 78). Como já dissemos, o conjunto dos romances carpenterianos pode ser relacionado à música. José Antonio Sánchez Zamorano reforça essa opinião, quando diz que La crítica, en repetidas ocasiones, ha puesto de manifiesto el hecho de que Alejo Carpentier traslade a su narrativa ordenaciones y esquemas relacionados, en principio, con el ámbito de la composición musical. Ya en su primer novela, EcuéYamba-O (1933), se rastrean algunas transposiciones: la materia narrativa aparece distribuida siguiendo ciertas simetrías, tendentes a cerrar la estructura – lo que constituye uno de los principios básicos del arte musical -, y se usa la técnica de la recurrencia temática – en música, variaciones sobre un tema-. Sin entrar en repetidas discusiones sobre sus nombres, se puede llegar a convenir que casi la totalidad de las obras posteriores de Carpentier se adapta a estructuras de tipo musical. Así, se ha concebido El reino de este mundo (1949) como una suite de ballet. Los pasos perdidos (1953) se ha puesto en relación con una cantata. El acoso (1956) puede considerarse como sonata – o como sinfonía -. El siglo de las luces (1962) se aproximaría al poema sinfónico. El recurso del método (1974) y Concierto barroco (1974) se ajustarían, respectivamente, a las cualidades de la ópera bufa y del “concerto grosso” (ZAMORANO, 2014, p. 327) As conexões de Carpentier com a música não se expressam apenas, porém, em seus romances, mas também em textos teóricos sobre o tema. O autor foi o primeiro a escrever, por exemplo, uma história da música em Cuba, seu país natal, onde foi organizador de eventos musicais. Em La música en Cuba traz um apanhado da história musical da ilha e suas inter- III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 181 relações com os acontecimentos culturais e sociais do país. Trata-se de um volume profundo, de análise consistente que ainda hoje não foi superado. Escreveu também vários ensaios sobre a música na América Latina, embora não se limitasse ao cenário americano. Ése músico que llevo dentro, traduzido para o português do Brasil como O músico em mim (2000), traz uma série de ensaios do autor, subdivididos em: a) Sobre compositores – nesse espaço o autor traz um panorama de opiniões e contrapontos entre grandes nomes da música do seu e de outros tempos, são comentados nomes canônicos, como Mozart e Bethoven, Chopin e Wagner. Há um grande espaço para Stravinsky e Villa-Lobos, para Mahler, Schumann, Puccini, Rossini, Debussy, entre vários outros; b) Intérpretes – nesse apartado o autor se estende menos, traz alguns nomes, sempre relacionando-os aos compositores a que davam vida; c) Musicologia – nessa parte estão reunidos vários textos de opinião, resenhas, críticas musicais e ensaios sobre a música em geral (não só a erudita) os quais traziam uma perspectiva teórica acurada. Aqui há espaço para a ópera, para sinfonias e para o jazz; d) A música no teatro – a quarta parte se dedica, como o título tão claramente indica, à música no teatro, com especial ênfase à ópera; e) Reflexões sobre a música – no bloco de número cinco se condensam textos menos teóricos sobre a música, nos quais se expressam problemas frequentes quanto ao tratamento do tema, quanto à profissionalização do músico, sua relação com a juventude e uma série de questões variadas em torno da atmosfera musical; f) Ensaios – à última parte do livro cabem apenas dois ensaios, um sobre o folclorismo musical e outro intitulado “Música e emoção”. Como se pode constatar, Carpentier deu espaço às mais variadas expressões da música em suas obras e em sua trajetória artística: em seus romances, o conhecimento musical lhe servia como subsídio para a estrutura da forma, como mote temático e como plano de fundo; em seus ensaios, discursou sobre a música a partir de diversos matizes, gerando variadas nuances, desde a mais teórica à mais reflexiva e desprendida de questões formais. A atuação de Alejo Carpentier frente à Música reforça a frase de Jorge Luis Borges, a qual dizia que “todas las artes propenden a la música, el arte en el que la forma es el fondo” 1. Reforça também a afirmação de Eduardo Rincón sobre Carpentier, em prólogo a O músico em mim: “poderíamos dizer que nenhuma música lhe era humanamente indiferente”2. À guisa de conclusão, repetimos as palavras de Sagrario Ruiz Baños (1986, p. 66) ao falar de Carpentier: um homem que conheceu tão a fundo o mundo da música não podia deixar de ser sensível às possibilidades expressivas que essa arte lhe oferecia e, assim, um grande conhecedor dos 1 Em “Notas sobre Walt Whitman”. 2 Em prólogo à edição brasileira de O músico em mim, p. 14. Nas fronteiras da linguagem ǀ 182 fenômenos musicais, elaborou uma construção literária em que ambas artes, Música e Literatura inter-relacionadas, oferecem um monumento perdurável de representatividade humana. Carpentier parece personificar à perfeição esse escritor que realiza a simbiose entre o musical e o literário de forma coerente. Referências BARAHONA, Carlos Paz. Juego, símbolo y fiesta en Concierto Barroco de Alejo Carpentier, una mirada desde la música. Disponível em <http://www.vinv.ucr.ac.cr/latindex/rfl-31-1/rfl31-1-06.pdf > Acesso em 20.jun.2014. CARPENTIER, Alejo. La aprendiz de la bruja. 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Alejo Carpentier: “Ese músico que llevo dentro”. Disponível em <http://www.mauroyberra.cl/contenido/Bartolome/columnaramona/archivos/Alejo%20Carpen tier.pdf> Acesso em 20.jun.2014 PEZZELLA, Daniel. Significación de la música en “Los pasos perdidos”, de Alejo Carpentier. Disponível em <http://www.cienciared.com.ar/ra/usr/10/177/hln2.pdf> Acesso em 20.jun.2014. PRAAG, Jacqueline Chantraine de van. El acoso de Alejo Carpentier estructura y expresividad. Disponível em <http://cvc.cervantes.es/literatura/aih/pdf/03/aih_03_1_026.pdf> Acesso em 20.jun.2014. RUIZ BAÑOS, Sagrario. La música como expresión humanística en una novela de Alejo Carpentier: estructura fugada de “La consagración de la primavera”. Anales de Filología III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 183 Hispánica. Vol. 2. 1986. Disponível em <http://revistas.um.es/analesfh/article/view/58831> Acesso em 14.jun.2014. VILLANUEVA, Carlos (org.). Ciclo de miércoles: El universo musical de Alejo Carpentier, enero 2012 [introducción y notas de Carlos Villanueva]. - Madrid: Fundación Juan March, 2012. Disponível em <http://www.march.es/Recursos_Web/Culturales/Documentos/Conciertos/CC762.pdf> Acesso em 20.jun.2014 ZAMORANO, José Antonio Sánchez. “El siglo de las luces” una sonata de Alejo Carpentier. Disponível em <http://institucional.us.es/revistas/philologia/5/art_24.pdf> Acesso em 20.jun.2014. Nas fronteiras da linguagem ǀ 184 PRÁTICAS DE LETRAMENTO NOS ANOS INICIAIS: A FORMAÇÃO DE LEITORES ATRAVÉS DO MOMENTO DA LEITURA DELEITE [Voltar para Sumário] Amara Rodrigues de Lima (SEEL – Recife) Introdução Ensinar a ler e escrever não é uma questão simples, garantir que todas os estudantes tenham acesso aos conhecimentos necessários para garantir um processo de alfabetização e avancem nas suas aprendizagens não tem sido uma tarefa fácil, porém possível. Saber ler e escrever, fazer uso da leitura e da escrita de uma forma funcional nas diferentes situações do cotidiano, na atualidade, são necessidades precípuas tanto para o exercício da cidadania, no plano individual, quanto para a medida do nível de desenvolvimento de uma nação, no nível sociocultural e político. Logo é dever do Estado proporcionar, por meio da educação, o acesso de todos os cidadãos ao direito de aprender a ler e escrever (MORTATTI, 2004, p. 15). Nesse sentido a escola pode ser vista como um espaço importante para apresentar aos alunos o universo do mundo da leitura e contribuir na formação de leitores autônomos capazes de ler para: aprender a fazer algo, aprender assuntos do seu interesse, informar-se sobre algum tema e ter prazer na leitura. É possível perceber no cotidiano da escola que muitos avanços ocorreram em relação ao trabalho com leitura na sala de aula, especialmente quanto à qualidade dos textos disponibilizados para as crianças através dos Programas Federais (PNBE/ PNLD Obras Complementares) Programas que promove o acesso à cultura e o incentivo à leitura por meio da distribuição de acervos de obras literatura, com o proposito de atrair os estudantes para o universo da literatura de forma lúdica. (BRASIL, 2012, p. 38) No entanto, tem-se constatado que persiste um grande número de alunos com dificuldade de entender o que leem, mesmo quando já estão em etapas mais avançadas de escolarização. Os baixos resultados apresentados em compreensão leitora, nas provas III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 185 aplicadas em larga escala como Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), Sistema de Avaliação da Educação Básica de Pernambuco (SAEPE), Provinha Brasil, entre outras, apontam a necessidade de um maior investimento no ensino desse objeto de conhecimento. O trabalho com leitura na sala de aula tem sido uma das temáticas abordadas no PNAIC – Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, desenvolvido por meio de parceria entre o MEC, universidades federais e secretarias de educação. O material elaborado para subsidiar a formação dos professores tem entre outros objetivos levar os mesmos a conhecerem os recursos didáticos distribuídos pelo MEC entre os quais (livros do PNBE e as Obras Complementares aprovados no PNLD) e planejar situações didáticas em que tais livros sejam usados. A leitura-deleite, vem sendo discutida quanto à sua importância e possibilidade pedagógica nas formações do PNAIC e tem passado a fazer parte da rotina da escola. E é visando discutir acerca do desenvolvimento dessa atividade como uma estratégia na formação de leitores no Ensino Fundamental que apresentaremos, neste artigo, um relato de experiência realizado com sessenta e cinco alunos do primeiro ao quinto ano da escola Municipal Córrego do Euclides, localizada no Córrego do Euclides, bairro do Recife – PE. 1. Um pouco mais de leitura Alfabetizar para ser leitor, para se apropriar da escrita e da leitura de forma autônoma, criativa, para experienciar a leitura e a escrita com seus múltiplos saberes é um grande desafio. Os acervos disponibilizados através do PNBE, PNLD Obras Complementares e Programa Manoel Bandeira de Leitores, têm oportunizado as crianças um convívio íntimo e cotidiano com os livros, proporcionando um acesso privilegiado à cultura escrita, apresentando-se, assim, como uma ferramenta poderosa no processo de letramento. Para Soares (1998), o indivíduo letrado faz uso da escrita envolvendo-se em práticas sociais de leitura e de escrita, respondendo adequadamente às demandas sociais. Acreditamos que para formar indivíduos capazes de usar eficientemente a leitura é necessário que a escola planeje o ensino da leitura e de estratégias adequadas a compreensão textual, enquanto objeto de conhecimento, que possibilita a aquisição de novas aprendizagens. Fazer uso de recursos, no cotidiano escolar, que contribua para fazer dos alunos bons leitores é um grande desafio. Nesse sentido, defendemos que a escola seja um espaço onde a Nas fronteiras da linguagem ǀ 186 leitura possa também ser deleite. Segundo o Aurélio “deleite” pode ser definido como “gozo íntimo e suave – prazer intenso, pleno – delícia”. (AURÉLIO, 2001) Acreditamos que ler por prazer é o que nos faz leitores de fato, ou seja, é o que nos impulsiona a buscar mais e mais textos, é o que nos dar o direito de negar um texto, escolher outro texto, enfim interagir com a leitura. Na escola, parece, muitas vezes, haver certa desvinculação entre leitura e prazer. Segundo Solé, (1998) diferentes pesquisas tem demonstrado que há pouca variação nas atividades desenvolvidas no ensino da leitura nas salas de aula, que de maneira em geral, giram em torno da leitura em voz alta pelos alunos, de um texto ou de fragmentos, enquanto outros acompanham, de elaboração de perguntas relacionadas ao texto e ficha de trabalho com aspectos de sintaxe morfológica, ortografia, vocabulário e eventualmente a compreensão da leitura. Na verdade, não defendemos que ler na escola seja sempre para deleite. No entanto, é fundamental que possa ser, também, deleite, para que essa instituição passe a constituir-se, de fato, como um espaço de formação de leitores. Assim, defendemos que o espaço escolar seja palco para a de condução de projetos de leiturização em que o leitor seja encarado como um agente ativo de construção de sentidos. Para formar leitores, objetivo que vem sendo cada vez mais verbalizado no meio educacional, será necessário desconstruir práticas onde o leitor não tem voz e o professor é o único sujeito que conduz o processo, e reconstruir as concepções sobre texto e sobre leitura. Em primeiro lugar, será preciso reintegrar as preocupações com o ensino das estratégias de leitura e as preocupações com a formação do leitor. Solé (1998) define as estratégias de leitura como procedimentos cognitivos e metacognitivos complexos, já que implicam a capacidade de refletir e planejar nossa própria atuação enquanto lemos. Nesse sentido planejar um ensino que garanta que os estudantes, durante a realização da leitura de textos diversos consigam ativar os conhecimentos prévios, realizar inferência, previsão/ levantar hipótese acerca do texto lido, pode contribui para a formação de leitores autônomos. Para isso, é preciso que a leitura seja uma prática constante nas atividades escolares, a fim de que o aluno − leitor em formação − domine as habilidades de leitura acima referidas. 2. Relatando a experiência III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 187 Uma forma de tornar rotineiro o ato de ler na escola é a sugestão da “leitura deleite”: sempre um livro é lido para os alunos, sempre há um cantinho disponível para que os alunos mergulhem na leitura de livros diversificados. Pensando na formação de leitores que não só sintam o desejo de ampliar os saberes e informações proporcionados pela leitura, mas que também tenham prazer na leitura desenvolvemos durante o ano letivo de 2014 um projeto de leitura com um grupo de 65 alunos de turmas do 1º ao 5º ano de uma Escola Pública da Cidade do Recife. Durante esse período foram realizadas à leitura de diversos livros que fazem parte do acervo da escola, construído com as obras do PNBE e PNLD Obras Complementares, entre os quais destacaremos os livros abaixo. Figura 1 - Capas dos livros lidos para os alunos durante os momentos de leitura deleite No primeiro momento da atividade, antes da leitura, o livro era apresentado às crianças buscando motivá-las a ouvir a história. No segundo momento a partir da leitura do título buscávamos resgatar os conhecimentos e experiências prévias dos alunos sobre a história, lançando questões que os levassem a refletir acerca do título. No terceiro momento a leitura era realizada, em alguns dias pela professora em outros por algum aluno escolhido previamente. Durante a leitura buscava-se desenvolver um entonação que prendesse à atenção das crianças. Depois da leitura fazíamos a recapitulação oral da história, tentando fazer com que as crianças compreendessem os principais acontecimentos, suas causas e consequências. Considerações finais As atividades realizadas no desenvolvimento do projeto e apresentadas neste texto mostraram alguns aspectos importantes no que refere ao ensino inicial da leitura, levando em consideração as discussões atuais acerca do tema. Acreditamos que o ensino inicial da leitura deve garantir a interação significativa e funcional da criança com a língua escrita. Isso implica que o texto escrito esteja presente de Nas fronteiras da linguagem ǀ 188 forma relevante no cotidiano da sala de aula e que a criança seja envolvida em atividades significativas de uso da leitura e da escrita no espaço escolar. Defendemos que a estratégia da leitura deleite é um instrumento que pode contribuir para formação de leitores, pois por meio dessa estratégia, as professoras podem estimular os alunos a ler mais e a socializar suas leituras favorecendo assim, o contato com bons textos. Ressaltamos, ainda, que a inserção da literatura em sala de aula não pode ser algo ocasional, acidental e nem pode fazer parte de um preenchimento de tempo sem intencionalidade. O professor precisa realizar atividades constantes, planejadas, em que os estudantes tenham acesso ao texto literário e possam refletir coletivamente sobre tais textos. Foi possível observar que os alunos, quando chamados a participar, de forma ativa, mostram que têm capacidade de atuar em todo o processo de construção do conhecimento, demonstrando que são criativos e, principalmente, que se percebem agentes no processo de construção do conhecimento. Em todos os momentos foi possível perceber a interação das crianças através do interesse em participar dos momentos de leitura. Assim foi possível constatar o desenvolvimento dos alunos, o que demonstra que embora algumas crianças apresentem dificuldades, como o caso de um aluno com deficiência cognitiva, quando inseridos em atividades sistemáticas de ensino, com a intervenção adequada dos professores, são capazes de avançar na aquisição dos conhecimentos. Enfim a proposta de trabalho vivenciada a partir da exploração desses livros nos mostra que muitas são as possibilidades, para que de forma prazerosa, sejam desenvolvidas atividades significativas e desafiadoras que contribuam para construção de conhecimentos acerca da leitura. Acreditamos que um trabalho nesta perspectiva possa contribuir para a formação de ouvintes ativos que se engajem na aventura de construir sentidos dos textos lidos pela professora e futuramente tornem-se leitores ativos. Referências BRASIL. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa. Formação do Professor Alfabetizador – Caderno de Apresentação – Brasília – 2012. MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Educação e Letramento. São Paulo: Unesp, 2004. SOARES, Magda. Letramento um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 189 METADE ROUBADA AO MAR, METADE À IMAGINAÇÃO:A CIDADE DO RECIFE POR CARLOS PENA FILHO [Voltar para Sumário] Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN) Este é o teu retrato feito com tintas do teu verão (Carlos Pena Filho) O advento da cidade e a participação do poeta no centro desse debate proporcionaram o registro de diferentes lugares de observação. Discorrendo sobre o tema, Nestor García Canclini (1998) sugere um mapeamento desse olhar argumentando que o antropólogo chega à cidade a pé, o sociólogo de carro, pela pista principal, e o comunicólogo de avião, cada um deles construindo uma visão diferenciada e, por conseguinte, parcial do objeto observado. Uma quarta e importante perspectiva seria tratada, ainda, por Canclini: aquela vivenciada pelo historiador, cuja aquisição seria resultado não de uma entrada, mas de uma saída do ambiente da cidade, partindo de seu centro antigo e seguindo em direção aos seus limites contemporâneos. Cabe perguntar, portanto: quais poderiam ser as estratégias do poeta diante dessa questão? Na Modernidade, a situação do poeta urbano seria definida pelo sentido do deslocamento: ao tomar conhecimento do seu não locus, o poeta da cidade se disporia na condição de uma voz outra, a que o escritor mexicano Octavio Paz (1993) descreveria como uma modulação indefinida, inconfundível, que se converte em diferença original. Já em Charles Baudelaire, no final do século XIX, a expressão da tragédia do destino humano, mesclada a uma visão mística do universo constituiria matéria para a poesia na cidade ocidental moderna. Quase cem anos mais tarde, o poeta pernambucano Carlos Pena Filho referenciaria, de forma laudatória, a empresa baudelaireana: A CHARLES BAUDELAIRE Carlos também Embora sem Flores nem aves Vinho nem naves, Nas fronteiras da linguagem ǀ 190 Eu te remeto Este soneto Para saberes, Se acaso o leres, Que existe alguém No mundo, cem Anos após, Que não vaiou E nem magoou Teu albatroz. Em nossos dias, contudo, a experiência daquele flâneur que perambulava nas metrópoles do início do século XX parece não ser mais possível. Para Micael Herschmann (2000), é como se agora as cidades grandes tivessem se transformado “em um vídeo-clipe, ou melhor, em uma montagem frenética de imagens descontínuas”, cabendo ao observador atentar para o fato de que isso “não tem necessariamente um sinal negativo, ou implica uma perda da experiência coletiva”. Ao contrário, poderá abrir espaço para um esforço de compreensão da cidade além das “territorialidades exclusivas, bem definidas e/ou isoladas”, em que o outro “já não é territorialmente distante ou alheio, mas parte constitutiva da cidade que habitamos”. Contemporâneo do Modernismo literário brasileiro, Carlos Pena Filho nasceu na cidade do Recife em 17 de maio de 1929. Filho de pais portugueses realizou seus primeiros estudos em terras lusitanas, complementando-os na cidade natal, onde também se diplomou advogado. Publicou em 1952 O Tempo da Busca, seu primeiro livro de poesia, ao qual se seguiram Memórias do Boi Serapião, A Vertigem Lúcida e Livro Geral, desaparecendo tragicamente em 1960 na mesma cidade, vítima de um acidente de automóvel. O ambiente urbano recifense encontrou no poeta um observador atento que tanto descreveu com ironia e doçura a sua paisagem (Não é que somente em luas,/ o Recife farto seja; é farto, também de igrejas), como realizou a crônica do cotidiano de sua gente mais simples (Na cidade que amanhece/ vai a humilde tecelã/ para a fábrica onde tece/ o azul desta manhã) ou a provocação às elites (...de brasileiros sabidos,/ portugueses sabidões/ que na vida leram menos/ que o olho cego de Camões,/ mas que em patacas possuem/ muito mais que Ali Babá/ e seus quarenta ladrões). Para o sociólogo Gilberto Freyre (1999), em prefácio à edição póstuma de um dos livros de Pena Filho, “de nenhum poeta do Brasil se pode dizer ter sido, mais do que ele, de sua cidade, de sua província, de sua região, de sua tradição regional e, ao mesmo tempo, mais, a seu modo, moderno”. Assim avaliado, o poeta Carlos Pena Filho foi, “tanto quanto Bandeira, III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 191 quanto Cardozo, quanto Mauro Mota, quanto João Cabral, cantor por excelência do Recife: cidade por ele mais amada do que por qualquer outro, poeta ou não-poeta”. Em longo poema sobre o Recife, entretanto, Carlos Pena Filho revelaria textualmente aqueles a quem identificaria como “os cantores da cidade”: Hoje a cidade possui os seus cantores que podem ser resumidos assim: Manuel, João e Joaquim. No Jardim Treze de Maio Manuel vai ficar plantado Para sempre e mais um dia Sereno, bustificado, Pois quem da terra se ausenta Deve assim ser castigado... Os versos que se sucedem, carregados de imagens recorrentes à poesia de Manuel Bandeira, vão fluindo naturalmente, como um rio, em direção ao universo poético de João Cabral de Melo Neto: Água, lama, caranguejos, Os peixes e as baronesas E qualquer embarcação, Está sempre e a todo instante Lembrando o poeta João Que leva o rio consigo Como um cego leva um cão. Mas vieram de longe as águas Que aqui no Recife estão, Já comeram areia e pedra Lá bem perto do sertão E é por isso, talvez, Que escuras e tristes são. Quase que num só fôlego, o poema de Carlos Pena Filho busca desenhar outro mapa da cidade em cujos alicerces, fundados sobre a lama dos manguezais e cardozianamente recobertos pela cor “púrpura de jambeiros” parecem querer sustentar, pedra a pedra e verso a verso, o horizonte de “coqueiros roxos, azuis, verdes de mar” vislumbrado pelo poetaengenheiro Joaquim Cardozo em sua obra: O poeta Joaquim que foi Fazer uma estação de águas Nos olhos do seu amor E trouxe nos seus, acesos, Os cajueiros em flor. Nas fronteiras da linguagem ǀ 192 Mas antes mesmo de prestar reverências a Bandeira, a Cabral e a Cardozo através de sua poesia, Carlos Pena Filho já havia promovido, na abertura de seu Guia Prático da Cidade do Recife, uma espécie de fundação física e poética da cidade: No ponto onde o mar se extingue E as areias se levantam Cavaram seus alicerces Na surda sombra da terra E levantaram seus muros Do frio sono das pedras. Depois armaram seus flancos: Trinta bandeiras azuis Plantadas no litoral. Hoje, serena, flutua, Metade roubada ao mar, Metade à imaginação, Pois é do sonho dos homens Que uma cidade se inventa. O olhar do poeta possibilita aqui a visualização daquilo que Leandro Konder (1994) definiria como a preocupação de descobrir uma resposta para a instituição da cidade a partir de sua própria origem física, ressubstanciada no que ele chama de olhar poético e olhar filosófico. O primeiro deles valeria como advertência para a recuperação, na cidade, de sua própria humanidade. Humanidade esta que, no caso de Carlos Pena Filho, se desdobra também numa re-geografia afetiva (Olinda é só para os olhos/ Não se apalpa, é só desejo./ Ninguém diz: é lá que eu moro./ Diz somente: é lá que eu vejo). Um olhar filosófico que não coincidiria necessariamente, ainda em palavras de Leandro Konder, com um olhar poético, mas que abarcaria aspectos mais abrangentes, para além daqueles que a síntese poética pudesse situar. Nestes termos, num misto de sarcasmo e ternura, canta o poeta Carlos: Na avenida Guararapes O Recife vai marchando. O bairro de Santo Antônio Tanto se foi transformando Que, agora, às cinco da tarde Mais se assemelha a um festim, Nas mesas do bar Savoy O refrão tem sido assim: São trinta copos de chopp São trinta homens sentados Trezentos desejos presos Trinta mil sonhos frustrados. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 193 Ainda que versos como estes não engendrem automaticamente o sentido da cidadania, a cidade passaria a ser, reiterando a afirmativa de Konder, o lugar onde melhor poderia ser travada a luta pela efetivação desse exercício: Mas não é só junto ao rio Que o Recife está plantado, Hoje a cidade se estende Por sítios nunca pensados, Dos subúrbios coloridos Aos horizontes molhados. Horizontes onde habitam Homens de pouco falar Noturnos como convém À fúria grave do mar. Amigo pessoal e estudioso da obra do poeta, ao referir-se ao Guia Prático da Cidade do Recife, o escritor Edilberto Coutinho (1983) afirmou que Carlos Pena Filho foi “um poeta político, interessado em cada aspecto da vida de sua cidade” e que essa obra é, “por vezes uma representação exagerada, satírica e, portanto, crítica, da realidade; uma espécie de autêntico ‘antiguia’, se pensarmos nos roteiros oficiais de atrações turísticas” posto que nela, precisamente, o poeta Carlos “trata também do ‘povo marginal,/ escuro e anfíbio’ que habita os mangues do Recife, (...) entre outros habitantes menos privilegiados de sua cidade”: Recife, cruel cidade, Águia sangrenta, leão. Ingrata para os da terra, boa para os que não. amiga dos que a maltratam, inimiga dos que não Este é o teu retrato feito com tintas do teu verão e desmaiadas lembranças do tempo em que também eras noiva da revolução. A aparentemente contraditória queixa do poeta, associando à cidade as figuras de “águia sangrenta” e “leão”, da mesma forma que evoca nostalgicamente a imagem de uma “noiva da revolução” talvez pudesse encontrar analogia no estereótipo do caráter rebelde de sua gente, atribuído ao fato de vir o Recife colecionando, ao longo de sua história, uma trajetória de insurgência civil frente às manobras das oligarquias que desde o advento das Capitanias Hereditárias ocupam expressivo espaço no gerenciamento político da cidade e do Estado, observável ainda em vários aspectos de suas manifestações culturais e perceptíveis inclusive na literatura que produziu e produz. Talvez se pudesse estender esse esboço de compreensão Nas fronteiras da linguagem ǀ 194 da cidade considerando as diversas convulsões sociais pelas quais passou, como a Guerra dos Mascates, a Revolução Praieira ou a Revolução Pernambucana de 1817, chegando ao desmonte político promovido pelas frentes populares ao conquistarem a prefeitura, no pleito do ano 2.000, dissolvendo em votação direta a alternância no poder cristalizada pelos políticos representantes das oligarquias rurais canavieiras em aliança com muitos de seus ex-opositores históricos, feito que se manteve ao longo dessa primeira década do século XXI. Quem sabe, pelo estudo da estrutura de suas festas de carnaval, referência poética para o próprio Carlos Pena Filho. Também ele desenvolveu densa atividade como letrista de música popular, como em A Mesma Rosa Amarela, poema composto para servir de letra a frevo-debloco de Capiba, um dos mais importantes compositores pernambucanos do século XX, parceiro de vários outros poetas e escritores. Re-formatada em ritmo de bossa-nova, gênero emergente em todo o país na virada dos anos 50 para os 60, esta canção talvez constitua o mais conhecido exemplo do Carlos Pena Filho letrista de música popular. Objeto de variados registros fonográficos locais e nacionais a partir de 1960, ano de desaparecimento do poeta, com destaque para aquele apresentado pela cantora e compositora Maysa, o sucesso de A Mesma Rosa Amarela representaria ainda, juntamente com as outras parcerias musicais do poeta com Capiba, um marco no diálogo entre literatura e música em Pernambuco, ampliando o circuito de penetração da obra poética de Carlos Pena Filho: Você tem quase tudo dela: o mesmo perfume, a mesma cor, a mesma rosa amarela. Só não tem o meu amor. Mas, nestes dias de carnaval para mim, você vai ser ela: o mesmo perfume, a mesma cor, a mesma rosa amarela... O carnaval do Recife preservaria, ao longo do século XX, muitos elementos característicos de seus primórdios no século anterior, sobretudo no que diz respeito à participação espontânea dos diversos segmentos sociais e à pluralidade das manifestações culturais. Baseados na região portuária, local de fundação da cidade, e arregimentados por corporações de trabalhadores em instituições conhecidas como clubes de rua, a grande maioria existente até os dias atuais, várias entidades de classe desfilavam em cortejo pelas vias públicas, promovendo entre si entusiasmada competição. Grupos de dançarinos estrategicamente posicionados levavam ao fervo a multidão, fazendo o passo, ou seja, III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 195 dançando o frevo ao som dos metais de bandas militares ou fanfarras arregimentadas para a brincadeira. Mais do que uma atividade alternativa de lazer em que se abria espaço para a livre expressão e a crítica social, essa festa consistia, pelo seu tom dionisíaco, num contraponto ao bem comportado entrudo, celebração carnavalesca introduzida no Brasil pela colonização portuguesa e cultivada pelas elites da época, resguardadas em salões de festa e outras áreas privadas. O clube carnavalesco dos “Vassourinhas”, por exemplo, fundado e conduzido originalmente pelos trabalhadores da limpeza urbana, seria responsável pelo hino espontâneo do carnaval da cidade, o Frevo dos Vassourinhas, bem como pela verdadeira catarse coletiva que acomete os foliões já em seus primeiros acordes. Talvez a problematização acerca de um caráter “rebelde” da cidade do Recife pudesse ser orientada, ainda, a partir dos embates culturais e literários reivindicando a existência de um surto modernista local e autônomo na década de 20 do século passado, chegando à discussão, já posterior à presença física do poeta Carlos Pena Filho, de questões relacionadas com uma cultura erudita brasileira baseada nas raízes nordestinas, onde os produtos artísticos e literários traduziriam o cruzamento verificado entre o artesanato, a literatura de Cordel, as manifestações populares e a cultura hegemônica. Nisto parecia estar fundado o pensamento armorial, cujas bases estéticas foram defendidas por Ariano Suassuna em seu movimento homônimo a partir de 1970, e sumariamente questionado pelo olhar proposto através do Movimento Mangue, já nos anos 90. A partir do levantamento de questões como as expostas acima é que a cidade do Recife, a “águia sangrenta, leão” do poeta Carlos, talvez pudesse ser mais amplamente avaliada. A propósito, o primeiro dos dois Manifestos Mangue, assinado por Fred Zero Quatro e Renato L e publicado no início da década dos 90, dispõe de algumas idéias sinalizadoras para uma possível re-significação da cidade: Mangue - O Conceito Estuário: parte de um rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelo movimento dos mares. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo (...) Manguetown - A Cidade A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex) cidade “maurícia” passou a crescer desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição dos seus manguezais. Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção Nas fronteiras da linguagem ǀ 196 de “progresso”, que elevou a cidade ao posto de metrópole do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade (...) Mangue - A Cena (...) Em meados de 91 começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo é engendrar “um circuito energético”, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo, uma antena parabólica enfiada na lama (...) Essa atitude mangue, manifestada esteticamente a partir da música e com passagens pela escultura, a pintura, o cinema, a moda, as artes cênicas e a literatura, representou mais do que uma possibilidade de ressignificação da cidade que Carlos Pena Filho cantou. O próprio poeta lançou mão de recurso extraliterários, como é o caso de sua já referida aproximação com a música, em parceria com Capiba, ou o namoro constante com a pintura, metaforizado através da insistente alusão às cores em seus versos (rosa amarela, subúrbios coloridos, verdes intervalos), que se fundiam, inclusive, como em novas cores para novas palavras (verdágua, ourazul, azulverde). A evocação do azul intenso do céu nordestino e o verde dos mares e dos canaviais, entretanto, constituiriam as presenças mais recorrentes, através das quais o poeta usa as "tintas do seu verão" para pintar, poeticamente, a cidade, a amada e a si próprio: Então, pintei de azul os meus sapatos por não poder de azul pintar as ruas, depois, vesti meus gestos insensatos e colori as minhas mãos e as tuas. Para extinguir em nós o azul ausente e aprisionar no azul as coisas gratas, enfim, nós derramamos simplesmente azul sobre os vestidos e as gravatas. Em seu já mencionado Livro de Carlos, Edilberto Coutinho afirma ser “a cor, entre elas o azul, seguido do verde”, um elemento recorrente e fundamental dentro da obra de Carlos Pena Filho. Uma estatística levantada pelo crítico Renato Carneiro Campos aponta para quarenta como sendo o número de vezes em que a palavra azul aparece nos versos de Pena Filho. Neles, lembra Coutinho, “a amada é bela e azul, assim como, num certo carnaval, se viu o poeta dependurado nos cabelos azuis de fevereiro”. Sua linguagem, plena de oralidade e essencialmente musical, tem sempre um forte apelo pictórico, visual, plástico, “como se ele realmente às vezes pintasse com palavras”. Ao pintar de azul seus versos e sapatos, o poeta Carlos revelaria também outros tons dessa cidade do mangue, “onde a lama é a insurreição”, como afirmaria na contemporaneidade um seu outro cantor, Chico Science. Ao depor sobre o conceito de III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 197 pluralidade usando a imagem de uma antena parabólica enfiada na lama como metáfora, a movimentação mangue acabaria por perturbar a idéia de uniformidade de expressão e comportamentos característicos da cidade que interpretações mais apressadas poderiam sugerir, injetando “um pouco de energia na lama” e estimulando “o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife”, conforme se fez registrar em seu primeiro manifesto. É o que se pode verificar nesses fragmentos do olhar lançado por Chico Science sobre um Recife tão próximo e ao mesmo tempo tão distante do poeta Carlos, em que “a cidade não pára, a cidade só cresce/ o de cima, sobe/ e o de baixo, desce”, mas onde “eu me organizando, posso desorganizar” ou “desorganizando, posso me organizar”, porque basta “um passo à frente/ e você não está mais no mesmo lugar”. Tanto o Recife de Chico, “onde estão os homens-caranguejo”, numa evocação ao geógrafo pernambucano Josué de Castro, como a cidade de Carlos, de Manuel, de João, de Joaquim, por “bela e azul e improcedente” parecem não renunciar “ao privilégio de ser bela e azul” e permanecem, conforme anuncia a arquiteta paulistana Raquel Rolnik (1995), “ocupando e conferindo um novo significado para um território” e “escrevendo um novo texto (...) como se a cidade fosse um imenso alfabeto, com o qual se montam e desmontam palavras e frases”. Recife, a palavra, vem do árabe al-raçif e significa calçada, rua, caminho revestido de pedras. Interpretadas mais livremente, tais definições encontram analogia no vocábulo tupi paranampuca, ou paranambuca, isto é: pedra furada, quebra-mar, arrecife, enfim; palavra que, aportuguesada, deu nome ao Estado do qual a cidade de Carlos veio a ser a capital. O Recife assim, cidade, espaço de múltiplas convivências por onde o poeta trafega como cidadão comum encontra também, através da poesia, substância para a sua própria significação. Antimusa para alguns, “metade roubada ao mar, metade à imaginação”, fez-se musa e cidade para o poeta Carlos, recifissignificada: MARINHA Tu nasceste no mundo do sargaço Da gestação de búzios, nas areias. Correm águas do mar em tuas veias, Dormem peixes de prata em teu regaço. Descobri tua origem, teu espaço, Pelas canções marinhas que semeias Por isso as tuas mãos são tão alheias, Por isso o teu olhar é triste e baço. Mas teu segredo é meu, ah não me digas Onde é tua pousada, onde é teu porto Nas fronteiras da linguagem ǀ 198 E onde moram sereias tão amigas. Quem te ouvir, ficará sem teu conforto Pois não entenderá essas cantigas Que trouxeste do fundo do mar morto. Referências CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da Modernidade. Tradução de Heloísa Pezza Cintrão e Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. COUTINHO, Edilberto. O Livro de Carlos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983. FREYRE, Gilberto. Prefácio in PENA FILHO, Carlos. Livro Geral. Recife: Editora Liceu, 1999. HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000. KONDER, Leandro. Um olhar filosófico sobre a cidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994. PAZ, Octavio. A outra voz. Tradução Wladyr Dupont. São Paulo: Siciliano, 1993. PENA FILHO, Carlos. Livro Geral. Recife: Editora Liceu, 1999. ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense,1995. ZERO QUATRO, Fred; L. Renato. Manifesto Mangue. Disponível na Internet: www.hotlink.com.br/users/lucasm/cultura.htm Data de acesso: 2 jun 2000. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 199 DIALOGISMO INTERDISCURSIVO E INTERLOCUTIVO: COMENTÁRIOS ONLINE NO FACEBOOK [Voltar para Sumário] Ana Carolina A. de Barros (UFPE) Introdução Entendemos que as relações comunicativas são dadas mediante a palavra, em construções textuais elaboradas e presentes em diferentes esferas sociais, mas também que toda palavra é proferida de alguém para alguém. Ao mesmo tempo em que essa palavra busca um destinatário, apresenta eco de outros já-ditos presentes na memória interdiscursiva de uma comunidade “marcada” social e historicamente. Considerando, para tanto, que também existe uma “realidade” de atualizações e (re) significações é que este trabalho se constrói, pois partimos da ideia que há uma heterogeneidade que é construída linguisticamente e que faz dessa rede, múltipla e multifacetada, estar embebida em relações dialógicas, seja entre interlocutores ou entre discursos, em situações reais de uso, configurando uma natureza que aponta para o irrepetível em uma cadeia enunciativa não marcada por início e fim. O trabalho aqui desenvolvido encontra-se organizado em três sessões: “Da comunicação humana: aspectos da enunciação”; “Do diálogo entre interlocutores e discursos”; “Gênero e circulação social: o interdiscursivo e o interlocutivo nos comentários online no Facebook”, assim elaborado em uma tentativa de compreender como o processo dialógico está intrinsecamente presente nas enunciações entre discursos e entre os interlocutores. Para tanto, tomou-se como corpus analítico os quatro comentários online postados na fan page da Época, em relação ao suicídio assistido da americana Brittany Maynard, e como pressupostos teóricos recorreu-se a: Bakhtin (1997;2006) Benveniste (1995;2005), Cunha (2000;2011), Flores (2012) e Santos (2013). 1 Da comunicação humana: os aspectos da enunciação Nas fronteiras da linguagem ǀ 200 A comunicação humana dá-se mediante o verbo, a palavra, não existindo, porém, sem considerar nas extremidades os interlocutores, aqueles que seriam, de maneira simplista, a cargo de uma compreensão ainda que “rasteira”, o “autor” do discurso enunciado e o “receptor” desse discurso, mesmo que situado no plano “imaginário” e do ideal, são necessários e cruciais para que as instâncias das produções enunciativas, instauradas em diferentes momentos, contextos, situações e historicamente constituídas, ganhem vida e realizem-se no plano da linguagem, mediados por uma língua que diz e é utilizada por enunciadores diversificados. Por isso, é só pela e na linguagem que o homem institui-se como sujeito, veiculando informações, criando visões de mundo e por ela sendo constituído, mas é através dela também, permanentemente configurado pelos óculos sociais que demandam e possibilitam certas realizações por meio das interações que convergem sempre em direção a um outro que não eu, sendo esse, preenchido com papeis e cargas de valorativa significação, já que o meu dizer dirige-se socialmente e estabelece constante interação com a palavra do(s) outro(s). Considerando este quadro, começa-se a pensar em enunciação, em palavra, palavra cheia de vida e, por isso, flexível, plástica, dinâmica e mutável; palavra que existe em momento único, particular e no irrepetível da enunciação, em que o sujeito é considerado e reconhecido, já que a enunciação é realizada ou configurada em momentos “reais”, ou seja, em situações cotidianas de interlocução sob condições concretas, e indicando que a palavra dita é sempre nova, e embora configure-se como a “mesma palavra”, já , no entanto, constituise em uma outra instância de significação, pois o “aqui”, “agora” e “eu/tu” são únicos (cf. BENVENISTE 1995; 2006). Bakhtin, em seus estudos, enuncia dizendo que as palavras partem de um “um” para “outro um”, o nosso interlocutor, e que, para tanto, é importante considerar uma série de questões circundantes que podem tornar-se cruciais para que a enunciação seja significativa, pois leva-se em conta que o importante já não é mais o somente dito, mas o porquê do dito. Assim, também salienta que “toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte” (2006, p. 115). É, pois, essa palavra enunciada que interessa, a palavra que se realiza e atualiza na interlocução, atendendo a propósitos sociais mais imediatos e ao meio no qual emerge, esfera fundamental para a configuração da enunciação, posto que ela não é desprendida do território em que a faz fértil e no qual se anuncia. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 201 A enunciação é completamente dependente da situação social na qual está inserida, de um meio social que a envolve e envolve o indivíduo; é fenômeno realizado entre interlocutores quer reais quer potenciais, mas sempre necessários para a construção de uma ponte em que de um lado está situado o “eu” e do outro lado um “tu” que tornam essa realidade fundante para a força enunciativa. Tal realidade dialógica é essencial para a linguagem, pois este diálogo, entendido como todas as possibilidades de trocas verbais comunicativas que ocorrem nas interações, em fluxo contínuo, múltiplo, no entanto, completo para aquela instância enunciativa, está em evolução e é pertencente a um corpo socialmente constituído, e como bem ressaltou Bakhtin (2006, p.130), “a estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social. A enunciação como tal só se torna efetiva entre falantes”. O sujeito desconsiderado por Saussure, quando nos referimos aos signos estudados em uma cadeia que estabelece “exclusivamente” relações internas, assume aqui um papel de relevância, pois entende-se a importância de considerar os elementos que estão fora da língua, isto é, situados em uma exterioridade. O sujeito, agora salientado, não um sujeito individualizado e limitado às suas próprias fronteiras, e sim, situado temporalmente e pertencente a um quadro histórico-social-ideológico que torna possível a emersão de sentidos em uma interlocução; não estando, porém, o sentido na palavra, ele é construído na relação entre interlocutores, nos jogos possíveis, em uma “ação esperada”, em atitude de responsividade que mostra um sujeito agente, mantenedor de uma relação com todos os diálogos, discursos e caminhos possíveis que situam esse locutor em um fio, apontando para o antes, já-dito, e para o depois, o novo. É salutar dizer que esse aspecto do sentido, em Bakhtin, como afirmar Flores (2009, p.154), se instaura sobre “uma tensão permanente entre a estabilidade do sistema e a instabilidade da enunciação”, isto é, direciona para o fato do que consideramos consolidado no signo, nas possibilidades do sistema ao qual recorremos linguisticamente, mas também ao seu aspecto de flexibilidade, dependente da situação de enunciação, sugerindo, assim, que há uma dimensão sendo tecida e/ou construída na própria interlocução. Torna-se, então, importante compreender que a enunciação depende, para sua efetiva constituição, de acordo com Benveniste (1995), de um “eu” que é construído em uma relação de intersubjetividade com o “tu”, como também o fato de essas palavras nunca serem as mesmas, posto que atualizadas por pertencerem a momentos/situações enunciativas diferentes, ou é como Bakhtin salienta (2006),quando refere-se ao irrepetível e ao novo em Nas fronteiras da linguagem ǀ 202 uma cadeia com outros enunciados que devem ser tomados em articulação com o que está fora da língua para construção do “tema”, caracterizando-se pelo que é individual e único. 2 Do diálogo entre locutores e discursos O enunciado na perspectiva bakhtiniana, como reflexo das relações interlocutivas que se efetivam em situações concretas, não existe apenas enquanto um sistema invariável ou rígido, que estaria em essência ligado à significação, ao intralinguístico, mas, sim, enquanto uma zona de contato entre a realidade e a língua, ligado, pois, a instância de produção. Não há, nesses termos, uma língua separada de um caráter idelogicamente construído, isto é, uma língua dotada de neutralidade, posto que lidamos com uma realidade histórica e social em que os dizeres estão intrinsecamente articulados a outros ditos em uma cadeia dialogicamente constituída de enunciados, e que como o próprio Bakhtin (1997, p.292) aponta “cedo ou tarde, o que foi ouvido e compreendido de modo ativo encontrará um eco no discurso ou no comportamento subsequente do ouvinte.”, ou seja, mesmo que haja uma ação responsiva retardada, em algum momento ou em algum grau serão encontradas ressonâncias daquilo que foi compreendido quer através do que se ouve/diz quer através daquilo que se lê/escreve. Dessa maneira, compreende-se que a palavra do outro está inserida em graus diferentes e plurais em todos os enunciados, formando cadeias dialógicas, não havendo, por assim dizer, um enunciado que seja o gerador de todos os outros, como também não é possível de maneira ampla determinar ou delimitar a finitude de tais enunciados. Os interlocutores são, na verdade, participantes de esferas sociais e encontram-se historicamente situados, dessa maneira, participam de um processo ocupando a condição de agentes. Assim, a visão e o pensamento de Bakhtin direcionados à enunciação se revestem do aspecto sociointeracional, pois, potencialmente, o sujeito é constituído e moldado nas relações com os outros por meio da linguagem. O dialogismo ou o dialógico, aqui entendido, poderia aproximar-se daquilo que Clark & Holquist (1998, p.36) definem por diálogo como “o extensivo conjunto de condições que são imediatamente moldadas em qualquer troca real entre duas pessoas, mas não exauridas em semelhante intercâmbio”, ou seja, há sempre trocas que são efetuadas por interlocutores e respostas que são dadas e se perpetuarão em outras realidades enunciativas que não findam na corrente de enunciações, mas que atendem a possibilidades de respostas àquilo que foi ou àquilo que será em outras relações de interlocução. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 203 Seria, então, o dialogismo próprio à linguagem humana, posto que ela configura-se heterogênea, múltipla; é o “lugar” em que os discursos são construídos através dos discursos dos outros como uma forma de herança passível de recuperação na comunidade da qual se faz parte, pois somos sujeitos construídos na interação, na linguagem e revestidos por contextos. Dentro desse quadro, daquilo que é estabelecido como primazia nos estudos de Bakhtin e sua inclinação para uma heterogeneidade discursiva, entre aquilo que se diz, instaurando-se também a esfera do “já-dito”, envolvendo a comunicação verbal humana, o discurso seria construído sobre outros discursos, fundamentando-se nos dizeres de outros que são (re)elaborados e ressignificados, entretanto, constitutivos de uma “memória discursiva”. Poderíamos, assim, a partir do que se diz e do “já-dito”, elencar dois tipos de construções dialógicas mais específicas: o dialogismo interlocutivo e o dialogismo interdiscursivo. Segundo Cunha e Freitas (2009), essas duas “estruturações” dialógicas refletem-se pelo caráter mesmo heterogêneo da linguagem, em que “o dialogismo interdiscursivo se dá de forma marcada, através de ‘ilhas textuais’”, e o dialogismo interlocutivo invocaria “a memória discursiva do leitor para outros eventos discursivos”. Dito de outra maneira, há um processo que se volta em uma relação dialógica para o “já-dito” e outro para um determinado interlocutor, real ou virtual, ao qual a minha enunciação é dirigida. Essas palavras, os já-ditos, seriam “resultado” daquilo que foi construído no percurso histórico, ideológico, social de uma comunidade, não são, portanto, neutras e nem se encontram alojadas no seu potencial enquanto “sistema”, “estrutura”, ou seja, estão embebidas do discurso do outro, do que é anterior. Já considerando o que se refere ao interlocutivo, pode-se dizer que não há enunciação desprendida de um sujeito com o qual se interage, isto é, a enunciação é destinada à alguém, assim como esse mesmo dizer é revestido pela possibilidade de quem constitui o outro, em uma espécie de réplica, isto é, de uma atitude responsiva em prol da compreensão, o que pode apontar para aquilo que Barthes (1978, apud AUTHIER-REVUZ, p.9, 2011) pertinentemente marca :“ o homem falante [...] fala a escuta que ele imagina para sua própria palavra”. Bem se vê, então, que esses “dois dialogismos”, ou uma heterogeneidade na linguagem, é constitutiva do próprio dizer, faz parte da natureza enunciativa que se revela dialógica como condição, que reporta à uma memória e ao mesmo tempo instaura-se ou institui-se na interação com o outro, com um interlocutor. Ao mesmo tempo mostra-se como resposta ao “já-dito” e como previsão em resposta à compreensão do nosso outro interlocutivo e que, mesmo mostrando-se distintas, podem estabelecer relações estreitas. Nas fronteiras da linguagem ǀ 3 204 Gênero e circulação social: o interdiscursivo e o interlocutivo nos comentários online no Facebook A comunicação humana realiza-se por meio enunciados que se configuram em materialidades textuais, quer sejam orais ou escritos, em todas as dimensões e em diversas instâncias das esferas discursivas. No entanto, tais organizações enunciativas são dadas mediante os gêneros, compreendidos enquanto tipos relativamente estáveis de enunciados (cf. BAKHTIN, 1997), pois eles passam por transformações ao longo do tempo, adaptando-se às exigências históricas e comunicativas, porém mantêm a essência e os objetivos interacionais, aquilo que permite aos falantes reconhecê-los e fazerem uso quando detentores de um conhecimento sobre suas particularidades e funções. Os gêneros constituem-se, assim, em entidades comunicativas pertencentes a práticas sociais já estruturadas, isto é, culturalmente construídas, porém passíveis de dinamicidade, conforme as necessidades e mudanças sócio-históricas. Dentro dessa dinâmica, escolhemos para a análise os comentários online postados no Facebook, uma Rede Social. Eles, os comentários, configuram-se como um constructo, pois socialmente elaborados e compartilhados, isto é, são produtos socioculturalmente formados, e pertencem a uma dinâmica interlocutiva atual que integra, agora, o uso em certos “Ambientes virtuais”. O Facebook possibilitou a construção de um corpus interessante para demonstrar como os diálogos entre os interlocutores e os diálogos entre discursos se efetivam nas práticas enunciativas, ou seja, como os ditos estão ligados em uma cadeia discursiva através dos comentários online. Os comentários a serem analisados estavam inseridos dentro da esfera jornalísticas e remetem a um momento discursivo especial. Compreende-se o “momento discursivo”, nas palavras de Moirand (2007 apud CUNHA, 2011, p.122), como “a diversidade de produções discursivas que surgem na mídia a propósito de algo que ocorreu no mundo e que se torna na e pela mídia um acontecimento”. Assim, o acontecimento eleito refere-se ao suicídio assistido1 da americana Brittany Maynard, de 29 anos, em 1o de novembro de 2014, que sofria de câncer no cérebro, em estado terminal. A análise feita, baseia-se, como já dito, em comentários. Estes, porém, foram 1 Acontece quando paciente, em estágio terminal, não consegue concretizar sozinho seu desejo/vontade de morrer, solicitando o auxílio a uma outra pessoa. A assistência ao suicídio é geralmente feita por prescrição medicamentosa através de doses letais, por meio da indicação de uso da substância e de maneira indolor; a administração, no entanto, é feita pelo próprio paciente. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 205 retirados da fan page da Época, no dia 03.11.14, quando a notícia foi vinculada. Abaixo, o print da notícia. Figura 1- Notícia na fan page da Época (Fonte: Facebook – nov/2014) Com a veiculação da notícia da morte da americana, Brittany, que optou por suicídio assistido, muitos comentários foram publicados no Facebook como manifestação dos usuários dessa Rede Social em relação ao fato. Partimos da ideia de que esses comentários na fan page da Época, por serem enunciados, estão articulados e intrinsecamente relacionados como elos que fazem parte de uma corrente discursiva contínua e formadora, assim, de uma grande rede. Tomamos os pressupostos de Bakhtin para proceder às análises, dentro de um quadro que se detém ao dialogismo interdiscursivo e ao interlocutivo, já que nessa teia, os discursos remontam tanto a outros discursos previamente estabelecidos e presentes na memória de uma determinada sociedade, como também tais discursos, por não acontecerem no vácuo, direcionam-se a outros, nossos “outros comunicativos”, ou seja, estão indexados a um interlocutor, real ou não, mas sempre “construído” em uma posição que suscitaria responsividade. Tomamos como amostra de análise, para “verificação” daquilo que acontece efetivamente através dos comentários postados, quatro exemplares selecionados mais ou menos aleatoriamente. Ao que se segue: Figura 2- Comentário 1 (Fonte: Facebook- nov/2014) Nas fronteiras da linguagem ǀ 206 Considerando esse comentário, poderíamos observar que o que aí se mostra enunciado é uma relação diretamente estabelecida entre interlocutores em uma atitude “imediatamente” responsiva, quando o “autor” com comentário 1 manifesta-se ao dizer que “já começou o contra e o favor”. Vê-se, dessa maneira, uma tentativa de complementação, confronto, negação ou mesmo um não julgamento perante aquilo que foi vinculado, a morte assistida ou suicídio assistido, e tal posicionamento parte em direção a um outro ou a muitos “outros”. No final do comentário, seu “autor” acaba assumindo um posicionamento que efetivamente gerará outras respostas, ao dizer “Que esteja melhor. Apenas isso. ”, abrindo prontamente possibilidade para que sequências de respostas sejam dadas. Aqui, portanto, encontramos uma ponte clara com aquilo que Bakhtin (1997; 2006) sustenta em seus estudos, ao dizer que nos enunciados é que as relações dialógicas tornam-se possíveis, pois esses enunciados espalhamse através de movimentos contínuos e sucessivos, apoiando-se, contudo, também em relações historicamente situadas. O comentário aqui assinalado, comentário 1, certamente funcionará como “gatilho” para o surgimento de respostas que serão destinadas ao próprio comentário 1 ou a “outros” comentários anteriormente publicados, pois ao emitir um juízo prenhe de valor, explicitando-o através de suas escolhas, mais ou menos conscientes, falando de um determinado lugar, deseja-se encontrar no outro também respostas, isto é, verificamos a partir dessa responsividade a presença do dialogismo interlocutivo. Pela natureza dos comentários online e seu abrigo, o Facebook, há uma estreita proximidade entre os pares, dada a dinâmica do gênero, coincidindo como nos dizeres bakhtinianos em “ecos” em que “cedo ou tarde, o que foi ouvido e compreendido de modo ativo encontrará um eco no discurso ou no comportamento subsequente do ouvinte” (BAKHTIN, 1997, p.292), e como é passível de verificação no comentário seguinte. Figura 3- Comentário 2 (Fonte: Facebook- nov/2014) No comentário 2 encontramos relações também com os já-ditos, não exclusivamente com o posicionamento imediatamente anterior, mas sim, configurando-se como participante III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 207 ou mais um nó em uma eterna cadeia dialogal que se mostra estreitamente articulada e que, por isso, está atrelado a uma série de discursos elaborados e (re)atualizados, pois como bem salienta Bakhtin (ibidem p.414-415) “Não há uma palavra que seja a primeira ou a última, e não há limites para o contexto dialógico (este se perde num passado ilimitado e num futuro ilimitado)”. Observamos, então, que esse enunciado surge também em resposta a dizeres anteriormente construídos, e organizado em uma espécie de breve narrativa, “pincela” uma experiência pessoal e diretamente vivenciada. O interlocutor posiciona-se em relação à atitude de Brittany Mayanard ao declarar que a disposição dela foi “uma decisão muito corajosa”, agindo interlocutivamente, mas não só. O “autor” do comentário 2 parece mostrar-se estrategicamente favorável à ação da americana, configurando-o como um ato de bravura, o que sugeriria o seguinte: aquele que comete suicídio assistido, pelas circunstâncias ou estado terminal, desde que dotado de consciência, teria o direito em optar pelo suicídio. O “autor” ainda do comentário 2, inclinarse-ia, com certa adesão a essa prática, pois, segundo suas percepções: “a pessoa fica em uma situação que ninguém jamais gostaria de ver [...] é terrível ficar em cima de uma cama”. Poderíamos apontar, no comentário 2, também ressonância/consonância/eco a outros discursos, como os das entidades defensoras do “direito à morte” ou mesmo do que configuraria o discurso de dignidade e autonomia dos pacientes humanos que se encontram em estado terminal, ou seja, encontramos também evidenciado o dialogismo interdiscursivo. Há, sem dúvidas, a necessidade de os interlocutores ativarem uma memória discursiva que contribuirá de maneira tal para os processos de significação. O comentário 3 parece, então, reconhecer, de alguma forma, aquilo que estaria presente na memória interdiscursiva, mediante as relações estabelecidas com o comentário 2, por exemplo, quando enuncia, dizendo: Figura 4 – Comentários 3 e 4 (Fonte: Facebook- dez/2014) No comentário 3, observa-se uma atividade enunciativa bem marcada e com posicionamento claramente definido: “suicídio não tem perdão, com certeza não foi pro reino Nas fronteiras da linguagem ǀ 208 dos céus”, em resposta aos interlocutores com os quais está interagindo nesse contexto discursivo, dialogismo interlocutivo, mas além disso, pois é também possível recuperar a base “ideológica” de onde emergiria seu discurso. O “autor” do comentário 3 fundamenta-se, em linhas gerais, a preceitos cristãos, configurando um exemplo de dialogismo interdiscursivo quando se refere ao suicídio, pois a vida, para o cristianismo, é crida enquanto dádiva/presente de Deus, posta nas mãos dos homens para que dela cuidem, cabendo, apenas a Deus, crido também como “fonte da vida”, Aquele “quem tira a vida e a dá”. O comentário 4, como em resposta mais “diretamente” ligada ao que é exposto pelo comentário 3, mostra-se inconformado e constrói seu enunciado através de palavras repletas de valor, ideologia e carga semântica, já que “sem acento apreciativo, não há palavra” (BAKHTIN, 2006, p.136), fazendo-a dela viva. O comentário 4 também se liga a outros jáditos, retomando, certamente, palavras de outros nessa heterogeneidade e dinâmica interlocutiva e, por isso, dialógica. Em atitude responsiva e mais imediata ao que exposto de forma contundente pelo comentário 3, faz o autor do quarto comentário taxar o comentarista 3 de doente, manifestando-se interlocutivamente. Além disso, e em certo grau, poderíamos verificar que o comentário 4 também ativa um discurso de viés cristão quando enuncia o seguinte: “quem é digno de quê?..E dobre seus joelhos, ore”, pois, de acordo com a tradição bíblica, diz-se que não são os humanos dignos de coisa alguma, pois pelo pecado, destituídos estariam da glória de Deus. Assim, não há que se julgar, recuperando, assim, relações dialógicas de ordem do interdiscurso. O que percebemos, ainda que em breve análise, é que todo discurso encontra pontes com discursos anteriores, discursos esses que fazem parte da memória de uma determinada cultura ou de um determinado grupo social e que ecoam em outros dizeres, configurando-se como um dialogismo interdiscursivo, mas não só, pois foi possível, de maneira mais explícita, entender que esses ditos estão orientados ou orientam-se a alguém, configurando-se como dialogismo interlocutivo. Essas configurações dialógicas tornaram-se mais facilmente observáveis por meio dos comentários online e nas possibilidades imanentes das réplicas. Com nossos interlocutores, nossos outros, travamos sempre diálogos e formamos teias, colaboramos com a tessitura de um fio ininterrupto no qual somos pontos da trama em um tecido discursivo e, por isso, dialógico, pois inerente à linguagem humana é. 5 Considerações finais III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 209 Consideramos, neste artigo, os comentários online como fonte que auxiliaria a “revelar” o dialogismo presente em diversas instâncias discursivas, pois ele é característico da linguagem humana que se utiliza de um sistema completamente articulado e vinculado à diversidade de práticas sociais interacionais. Essas são historicamente situadas e emergem através dos já-ditos, em uma dinâmica que ao mesmo tempo em que se revela como resposta a outros enunciados e funciona como gatilho para outras enunciações, situam-se em uma memória discursiva, em que vozes de outros manifestam-se. Passamos a verificar, através desses usos reais, mediante os comentários no Facebook, um verdadeiro trânsito de vozes que ao circular, cruzam-se, gerando uma cadeia de responsividade, marca da relação dialógica, em que fluxos resultantes de direções diversas remetem para o antes e para o depois na construção enunciativa, favorecendo a morada das marcas do socialmente constituído e elaborado, propiciando a formação de uma rede discursiva ininterrupta em que essas vozes não são consensuais, mas mostram-se em “verdades” quer através do dialogismo interlocutivo quer mediante o dialogismo interdiscursivo, passível de verificação em comentários online, como os aqui selecionados a partir de suas publicações, em uma dinâmica construídas pelo uso da linguagem. Referências AUTHIER-REVUZ. Jacqueline. Dizer ao outro no já-dito: interferências de alteridades – interlocutiva e interdiscursiva – no coração do dizer. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 1, p. 6-20, jan./mar. 2011. 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Dissertação (Mestrado em Letras) – Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2013. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 211 O CONCEITO DE GÊNEROS TEXTUAIS NO ENSINO MÉDIO: O QUE DIZEM OS LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA? [Voltar para Sumário] Ana Cátia Silva de Lemos Maria Margarete Fernandes de Sousa Introdução O ensino de gêneros no ensino brasileiro tem ganhado espaço, a partir das concepções adotadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Esses documentos pautam o ensino da língua materna e indicam o uso dos gêneros como um meio para o desenvolvimento da competência textual dos alunos. Com base nesse aspecto, os livros didáticos de língua portuguesa se apoiam no uso dos gêneros como forma de tornar o aprendizado uma prática interativa e contextualizada, como indicam os PCNs. Para chegar ao conceito de gêneros, adotado pelos PCNs, é preciso investigar o conceito de texto defendido por esse documento. Pois há uma relação deste com a definição de gênero pregada. Segundo os PCNs do ensino médio brasileiro, o texto é o resultado dos “diálogos” que faz com as diversas situações que seus interlocutores vivenciam. Mas precisamente seu sentido, segundo os Parâmetros, depende dessas relações: O sentido de um texto e a significação de cada um de seus componentes dependem [...] da relação entre sujeitos, construindo-se na produção e na interpretação. Essa parece ser a condição mesma do sentido do discurso, obrigando-nos a considerar não apenas a relação entre interlocutores, mas também a desses sujeitos no meio social (p.44). Nota-se que essa definição é “banhada” pelo conceito bakhtiniano de dialogismo que norteia a concepção de gênero do teórico russo. Acreditamos que a definição de texto adotada pelos documentos oficiais defende esse ponto de vista, pois posteriormente patrocinará o conceito de gênero como formas materializadas dos textos, Nas fronteiras da linguagem ǀ 212 que constituem conjuntos caracterizados pela estrutura composicional, traços estilísticos e aspectos sociais. Ressaltamos que os documentos analisados neste trabalho referem-se aos PCNs do ensino médio, pois é nesta etapa escolar que o ensino com gêneros é mais priorizado, sobretudo devido ao Exame Nacional do Ensino Médio, que foca suas competências no aprendizado a partir de práticas sociais do aluno. O conceito de gêneros nos PCNs não adota um posicionamento sobre que gêneros devem ser priorizados no ensino médio: gêneros textuais ou gêneros do discurso? Comentamos esse aspecto, pois foi um dos problemas encontrados na concepção de gêneros dos livros didáticos analisados. Por isso, julgamos importante investigar a concepção de gêneros adotada e ensinada pelos livros didáticos selecionados. Os livros analisados foram escolhidos a partir do guia do Programa Nacional do Livro Didático – 2014 (PNLD-2014). São, portanto, coleções modernas que já passaram pela avaliação inicial do Ministério da Educação. Neste trabalho avaliamos as concepções de três livros de três coleções diferentes. Analisamos os seguintes manuais: 1. Coleção Viva Português – Elizabeth Campos; Paula Marques Cardoso; Sílvia Letícia de Andrade. Volume 1 ( 1ºsérie do ensino médio); 2. Coleção Língua portuguesa: linguagem e interação – Carlos E. Faraco; Francisco M. Moura; José H. Maruxo Jr. Volume 1 ( 1ºsérie do ensino médio); 3. Coleção Português Linguagens – William R. Cereja; Tereza C. Magalhães. Volume 1 ( 1ºsérie do ensino médio). Escolhemos essas coleções por serem algumas das mais selecionadas em anos anteriores do PNLD, foram ainda escolhidos apenas o volume um de cada coleção, pois são nestes volumes que estão as informações e conceitos iniciais sobre gêneros. Em nossa análise podemos observar que apenas uma das coleções refere-se à gêneros textuais e as outras à gêneros do discurso, apesar de alguns autores não demarcarem essa diferença, ela é ainda motivo de discussão no meio acadêmico. Nos livros didáticos observamos que uma coleção não faz distinção entre essas abordagens de gênero, podendo ocasionar uma dificuldade na apreensão do conceito. Além disso, é possível perceber, nos conceitos apresentados, diversas “vozes” de autores conceituados nos estudos sobre gêneros, tais como Swales, Bazerman e, III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 213 obviamente, Bakhtin. Algumas vezes esses conceitos misturam essas teorias de tal forma que a definição de gêneros fica comprometida. Para que isso fique mais claro, é necessário explicar melhor as abordagens de gênero que encontramos nos conceitos dos livros analisados, por isso abaixo listamos e apresentamos algumas dessas teorias. Teorias de gênero Um dos autores que ressoam nas definições encontradas nos livros didáticos é John M. Swales, o modelo que ele propõem para a análise de gêneros está galgado em pressupostos linguísticos e nas práticas sociais que envolvem esses pressupostos, ou seja, ele não considera apenas os aspectos linguísticos, mas também as influências do ambiente social em que os gêneros estão inseridos. A definição de gêneros que Swales (1990) vai utilizar está embasada em cinco critérios de análise: classe de eventos comunicativos; propósito comunicativo; prototipicidade; lógica própria dos gêneros; comunidade discursiva. Segundo Hemas; Biasi-Rodrigues (2005), esses critérios são definidos da seguinte forma: “O gênero é uma classe de eventos comunicativos, sendo o evento uma situação em que a linguagem verbal tem um papel significativo e indispensável (p.113)” Esse evento é formado pelo participantes do discurso e têm relação direta com o ambiente em que o discurso é produzido. Um dos conceitos mais importantes para a teoria de Swales (1990) é a definição de propósito comunicativo. Ainda segundo as mesmas autoras, “os gêneros têm a função de realizar um objetivo ou objetivos”(HEMAS;BIASI-RODRIGUES, p.114) apesar do autor reconhecer que os propósitos nem sempre estão explícitos nos textos, os textos sempre apresentarão intenções que os identificarão em uma classe ou comunidade. O critério de prototipicidade para Swales (1990) considera que os gêneros têm características comuns, como traços linguísticos ou sociais, por exemplo. A definição de gêneros apresentada pelos PCNs, como vimos, aponta marcas textuais de reconhecimento dos gêneros. O quarto critério sustenta que os gêneros têm uma lógica própria que é reconhecida pela comunidade que o utiliza. Ou seja, segundo Hemas; Biasi-Rodrigues Nas fronteiras da linguagem ǀ 214 (2005, p.114) existem algumas convenções esperadas e manifestadas no gênero que são realizadas em função de um propósito. O quinto critério considera a terminologia criada pela comunidade discursiva para um fim específico e próprio. Para Swales (1990), a análise de gêneros deve levar em consideração o comportamento comunicativo dos membros, pois o nome dos gêneros pode se manter estável, enquanto o gênero em si muda suas práticas sociais. Para finalizar a caracterização da abordagem de Swales, é crucial apresentar o conceito de comunidade discursiva, que norteia sua teoria. Segundo Hemas; BiasiRodrigues (2005, p.115): A noção de comunidade discursiva é empregada em relação ao ensino de produção de texto como uma atividade social, realizada por comunidades que têm convenções específicas e para as quais o discurso faz parte de seu comportamento social. Segunndo Swales (1990) a comunidade discursiva pode ser caracterizada pelos seguintes critérios: Objetivos públicos em comum; Mecanismos de comunicação próprios entre os membros da comunidade; Utilização dos mecanismos de comunicação para prover a informação; Um conjunto de gêneros utilizado para realização específica de seus objetivos; A existência de um léxico específico; Uma hierarquia nos membros que estabelece conhecimento mais elaborado em uns do que em outros. Outra teoria de gêneros que podemos observar nos conceitos dos livros didáticos analisados foi o conceito de gênero como ação social de Charles Bazerman e Carolyn Miller. Bazerman (2011) critica o conceito de Swales (1990), pois nesta abordagem o gênero é visto de maneira resumida, em uma fórmula textual, para Bazerman e Miller o gênero deve ser visto como ação social. A teoria de Bazerman é muito influenciada pela teoria dos atos de fala de Austin, por isso, seu foco é a interação na comunicação. Para Bazerman (2011), quando nos comunicamos textualmente há sempre grande probabilidade de sermos mal interpretados para diminuir essas possibilidades Bazerman acredita que estabelecemos padrões comunicativos, que se tornam reconhecidos em nosso meio. Assim, Bazerman (2011, p.32), estabelece que “As formas de comunicação reconhecíveis e autorreforçadas emergem como gêneros”. Logo ele estabelece que: Gêneros são [...] fatos sociais sobre tipos de atos de fala que as pessoas podem realizar e sobre os modos como elas os realizam. Gêneros emergem nos processos sociais em que as pessoas tentam compreender umas às outras suficientemente bem para coordenar atividades e compartilhar significados com vistas a seus propósitos práticos (2011, p.32) III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 215 Dessa forma, Bazerman e os seguidores dessa corrente desprezam abordagens genéricas que não consideram o aspecto social como um dos mais fortes na definição de gêneros, visto que para eles não adianta definir os gêneros através de aspectos textuais e desconsiderar o ambiente social em que eles foram gerados. Assim como Bazerman (2011), Miller (1994b) acredita que os gêneros dependem da interação que orienta as práticas comunicativas e sociais, tornando-as mecanismos padronizadas em nosso cotidiano. Para a autora: O indivíduo deve reproduzir noções padronizadas de outros, sejam eles outros institucionais ou sociais, ao passo que a instituição, sociedade ou cultura tem de oferecer estruturas pelas quais os indivíduos possam fazê-lo (MILLER, 1994b, p.72) Assim, a autora reafirma que gênero não é uma prática estruturada, mas uma ação social, pois é através dela que os indivíduos podem criar padrões por meio de suas ações e práticas reconhecidas na sociedade. Sem dúvidas os estudos de M. Bakhtin sobre os gêneros são referência nas pesquisas até hoje. Por ter sido pioneiro nessa área Bakhtin se tornou mais do que referência ou um ponto de partida, ele é essencial para a compreensão de outras teorias. Um dos aspectos que se faz necessário explicar é justamente uma das questões que motivou este artigo, quando se fala em gêneros eles são textuais ou discursivos? Bakhtin (2000) apresenta os gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de enunciados. Para Bakhtin (2000), o enunciado é a entidade concreta da comunicação, pois está amparado em situações de aspectos sociais, nesse sentido o discurso para Bakhtin representa a interação social e exemplo mais notório da comunicação humana. Logo, o termo discurso, neste autor, não representa ideologia. Talvez por isso Marcuschi (2008) diferencia esse termo caracterizando-o como: “Do ponto de vista dos domínios, falamos em discurso jurídico, discurso jornalístico, discurso religioso, etc., já que as atividades jurídica, jornalística ou religiosa não abrangem um único gênero, mas dão origem a vários deles” (p.24). Dessa forma, Bakhtin não objetiva construir definições fechadas sobre gêneros, pois a única tipologia que cria é para definir gêneros primários e gêneros secundários. Estes são os gêneros mais complexos que se utilizam dos gêneros mais simples para se constituírem. Nas fronteiras da linguagem ǀ 216 A partir desses conceitos analisamos as definições de três manuais didáticos com a intenção de avaliar como o conceito de gêneros é apresentado aos estudantes do ensino médio. Conceito de gêneros no ensino A Coleção Viva Português (Elizabeth Campos; Paula Marques Cardoso; Sílvia Letícia de Andrade) apresenta a noção de gêneros a partir do conceito de organização que, conforme exposto, está presente nas concepções genéricas que consideram o gênero sob a ótica do texto. Observemos como se dá essa conceituação no livro didático: Além disso, notamos que as autoras tratam dois gêneros distintos como sinônimos, pois elas consideram que as tirinhas e a história em quadrinhos são o mesmo gênero, quando sabemos que, dependendo da situação de comunicação, esses elementos são gêneros distintos. Podemos observar que há uma tentativa de definir os gêneros a partir das características comuns que eles partilham, assim como Swales (1990) ao definir como critério de gênero a prototipicidade. Apesar disso, a definição do livro prossegue com características que podemos ligar a autores de correntes diferentes. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 217 Com esse trecho, observamos uma preocupação com os participantes da cena enunciativa, fato que deve ter levado as autoras a definir gêneros sob a ótica do discurso. No entanto, por terem se valido de características de ordem textual, podemos encontrar um problema nessa definição: que teoria foi utilizada para a escolha do conceito? Além disso, as autoras classificam discurso como “um conjunto de elementos que compõem um ato de comunicação”, sabemos que essa informação está incompleta, pois para as teorias do discurso, ele é caracterizado como um ato representativo de uma ideologia (PÊCHEUX,p.125). O segundo livro analisado pertence à Coleção Língua portuguesa: linguagem e interação – Carlos E. Faraco; Francisco M. Moura; José H. Maruxo Jr. Volume 1. Neste exemplar, o gênero é imediatamente caracterizado como gênero do discurso. É possível notar que, apesar de iniciar sua explicação com um título que qualifica gênero ao discurso, os autores mencionam os objetivos das figuras Nas fronteiras da linguagem ǀ 218 enunciativas, ou seja, mesmo ligado à enunciação, os gêneros têm uma propriedade textual, relacionada ao propósito comunicativo. Mesmo tendo, inicialmente, relacionado os gêneros ao discurso. Os autores prosseguem sua definição e usam indistintamente os termos gênero textual e gêneros do discurso. O termo “esferas de circulação” nos remete ao conceito de comunidades discursivas de Swales (1990). O termo pode fazer referência também às esferas comunicativas, mencionadas por Bakhtin/Voloshinov (1981), no entanto as esferas mencionadas por este autor estão vinculadas mais a critérios discursivos/ideológicos, o que não necessariamente se assemelha aos exemplos do livro didático. O terceiro manual analisado pertence à Coleção Português Linguagens – William R. Cereja; Tereza C. Magalhães. Neste livro, observamos que os autores optaram por definir gêneros com conceitos da abordagem sociorretórica, pois, além de qualificar os gêneros como do texto, os autores fazem uma breve diferenciação entre gêneros textuais e sequências textuais. Julgamos pertinente essa distinção, uma vez que, na história da educação brasileira, havia uma grande problemática em torno disso. Com esse exemplo, observamos que as diferenças, em torno desses termos, podem está bem estabelecidas. Para os autores dessa coleção, uma das características do gênero textual é “a(s) sequência (s) textual (is) predominante (s)”, esse fato chamou nossa atenção, dado que nas outras coleções nada foi mencionado a respeito. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 219 Notamos que conceitos importantes como propósito comunicativo são retomados nessa definição, que também elenca as situações e os contextos como características importantes na definição de gêneros. Ao prosseguir com a explicação os autores citam, indiretamente, Bakhtin, ao mencionar “formas mais ou menos estáveis”. É importante ressaltar que este manual procura definir gêneros, a partir do uso e das diversas situações de comunicação que a sociedade nos apresenta, ele tenta também conceituar gêneros por meio de critérios sociorretóricos, fato que julgamos como uma estratégia didática no ensino, para que talvez os alunos se confiem em características textuais no reconhecimento dessas práticas. Nesse caso, é imprescindível o papel do professor pra esclarecer que sem o aspecto social e as convenções culturais o gênero não poderia sequer existir, sendo necessário, portanto, enfatizar a união dessas duas marcas. Nas fronteiras da linguagem ǀ 220 Considerações finais A partir dos dados apresentados, acreditamos que a confusão terminológica que existe no âmbito acadêmico sobre a definição de gêneros (do texto ou do discurso) é reproduzida no meio escolar, de maneira ainda mais delicada, pois nesse ambiente diversas teorias são mescladas, a fim de se obter um conceito de fácil apreensão. Além disso, observamos que em nenhum dos manuais há indicações explícitas sobre os teóricos que serviram de “inspiração” para suas definições, apesar de que para um estudioso mediano do assunto será possível identificar as inferências, como marcamos em nossa análise. Julgamos que no ambiente acadêmico as pesquisas adaptam a terminologia mais adequada para seus pontos de vista, no entanto, no meio escolar essa confusão em torno da conceituação entre gêneros textuais ou discursivos pode gerar uma deficiência na apreensão da definição de gêneros. Acreditamos, portanto, que para tentar solucionar esse problema talvez fosse necessário adotar, pelo menos, no ambiente escolar a terminologia de Gêneros, simplificando e buscando definições mais claras e objetivas. Referências BAKHTIN, M.Estética da Criação Verbal. 6.ed. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ______ (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. 2.ed. Tradução de Michel Lahud; Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1981. BAZERMAN, C. Gêneros textuais, tipificação e interação. 4.ed. São Paulo: cortez, 2011. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais : Ensino Médio. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília: MEC, 2000. BRONCKART,J.P. 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Nas fronteiras da linguagem ǀ 222 O PAPEL DA TEORIA BAKHTINIANA NO CONCEITO DE LÍNGUA NA CONTEMPORANEIDADE [Voltar para Sumário] Ana Cláudia Soares de Paiva1 (UNICAP) Discursões introdutórias O século XX é marcado dentro dos estudos da linguagem por abordagens que possibilitam olhares plurissignificativos acerca do fenômeno Língua. É sabido também da larga ruptura que os estudos estruturalistas de Saussure provocam no modo de conceber a língua. Segundo a concatenação de Saussure (MUSSALIM, 2009), a língua é constituída por uma superfície bivalente, marcada por um viés social e por outro individual. Na concepção do teórico suíço esses vieses não são opositores nem excludentes, mas são modulações que não são possíveis de serem aglutinadas em um primeiro estudo de estruturação de um sistema linguístico, fazendo-o, portanto, optar pela moldura social de língua compartilhada pelos usuários. A partir desse recorte, Saussure desenvolve uma conjuntura ideológica do signo, a qual propaga um conceito de signo mediante uma ótica de representação direta de um dado elemento. Segundo essa concepção, a língua é tida como ferramenta de transparência do ato comunicativo, na qual o sujeito pode estruturalmente desenvolver uma mensagem, a qual expressa para o outro a totalidade de sentido pretendido pelo enunciador. Dessa forma, a língua é um instrumento objetivo, desarticulado da subjetividade do eu que enuncia, requerendo apenas dos sujeitos o domínio e o compartilhamento do mesmo sistema, afim de que o ato comunicativo seja entendível. Segundo essa proposta saussuriana, observa-se que as principais análises eram desenvolvidas tendo por prioridade revelar o conteúdo de uma sentença. Nesse momento, nasce uma proposta estruturalista do conteúdo, em que a principal atenção recai sobre o significado pleno do posto verbalmente. A língua como ferramenta social de comunicação, 1 Mestranda do curso de Ciência da Linguagem da Universidade Católica de Pernambuco. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 223 conseguia mediante a proposta de Saussure, condensar as concretudes do mundo real sem nenhuma interferência das relações sócio-cultural-ideológica que circundam o sujeito. Dessa forma, a língua adquire o status de ferramenta autônoma e autossuficiente, pois é pela e simplesmente arrumação lexical dentro de uma construção que é possível veicular dentro de uma prática de comunicação um dito, cuja totalidade de sentido está exposto na sentença. Ainda acerca desta língua completa e de significado objetivo, destacamos o que comenta Mussalim (2009, p.69): Tentemos entender a diferença. O que conta na concepção de comunicação utilizada por Saussure é que os interlocutores tenham pleno controle sobre os elementos pertinentes dos signos linguísticos mediante os quais se comunicam. Espera-se, em outras palavras, que os falantes usem os signos linguísticos que compõem suas mensagens de modo tal que se reconheçam nesses signos todos os traços pertinentes que permitem identifica-los. Essa concepção de comunicação, que é a própria concepção saussuriana, basta para distinguir língua e fala e para estabelecer como a fala depende da língua, mas reduz de certo modo o processo de interpretação a uma questão de discriminação dos signos que se transmitem, e nada nos diz sobre o que acontece quando interpretamos (2009, p.69). O dialogismo bakhtiniano revela a subjetividade da língua O filosofo Russo, Mikhail Bakhtin, também tece suas investigações no campo da linguagem em um período paralelo ao de Saussure, no entanto, o que marca os estudos bakhtinianos é a forma como esse teórico se reporta em direção à língua. Em um cenário, cujas abordagens filosóficas enxergavam a língua/gem como um instrumento externo ao indivíduo, como uma ferramenta de uso totalmente previsível e calculável, florescer uma abordagem que rompesse com esse padrão não era tarefa fácil. É diante dessa sistematização enrijecida da língua, que Bakhtin e seu Círculo concentram atenção no campo da literatura. Em suas abordagens dentro desse campo, o Círculo evidencia a incompletude da língua sob uma ótica da estruturação. É nesse reconhecimento, que Bakhtin dirige seus estudos considerando o indivíduo que atualiza a língua, bem como todo o entorno que circunde o sujeito da linguagem. Com esse novo enfoque, o filósofo Russo, apresenta para os estudiosos da linguagem que a objetividade de Saussure não dava conta do posto em uma relação de discurso, pois segundo Bakhtin, o dito materializado pela linguagem agrega as marcas de quem o diz, bem como toda constituição sociocultural e axiológica que determinaram a postura de indivíduo social. Dessa forma, estar em contato com um discurso não é apenas um processo de compreensão da mensagem, mas um ato que é marcado por relações de poder, de escolhas, de Nas fronteiras da linguagem ǀ 224 apreciações ideológicas entre outros, os quais determinam a estruturação do dito, bem como os valores que são intencionados e diluídos em cada novo ato comunicativo. Diante dessa percepção sobre a materialização linguística, Bakhtin apresenta alguns eixos, os quais dão concretude ao seu pensamento. Nesse momento, chamamos a atenção para dois dos seus eixos: o dialogismo e a responsividade. Na contramão da voz unívoca do estruturalismo, o dialogismo revela que não é possível construir uma mensagem desassociada das determinações sociais, pessoais e estruturais. É nessa interação de constituintes que é possível validar uma prática discursiva que seja funcional. Mediante tal consideração, observa-se que a prática linguageira não é um ato objetivo e transparente, mas um ato de densas implicações, as quais só são desmistificadas se forem considerados todos os determinantes que atravessam o eu discursivo. A partir dessa desmistificação, Bakhtin evidência que a língua/gem é um ato que se estruturaliza a partir de relações de subjetividade, o que determinará a sua opacidade. Diante dessa subjetividade que atravessa o discurso, o sujeito interage com essa prática tendo por âncora todos os princípios socioideológicos que o povoa, os quais interferiram na maneira de compreensão e resposta do que lhe é apresentado. A essa resposta, acrescenta Faraco: Toda compreensão de um texto falado ou escrito, implica uma responsividade, e consequentemente, em um juízo de valor. O que isto quer dizer é que, ao se apropriar de um determinado texto, o leitor se posiciona em relação a ele, por meio de atitudes distintas: pode concordar ou não, pode adaptá-lo, pode acrescentar ou retirar informações, pode exaltá-lo. Ou seja, sua reação consiste numa resposta, o que caracteriza uma ação responsiva (FARACO ,2006, p. 210) Essa subjetividade dialógica está marcada no texto pela relação EU-TU-OUTRO, que determina qual seja a prática de discurso. Segundo Bakhtin, todo discurso é sempre enunciado tendo como respaldo um Tu, o qual estabelece um contínuo com o Eu, e nessa duplicidade desenvolvem relações de compreensão, o que atribui ao discurso o potencial funcional e válido em um dado momento da prática comunicativa. Esse princípio dialógico evidencia as marcas que o Eu e o Tu enunciativo promovem em seus ditos, marcas que são recuperadas e relacionadas às vozes outras que serviram de âncora para o posto desvelado no discurso. Tal olhar sinaliza para um discurso que é sempre múltiplo de vozes, mesmo quando nenhuma marca restringe ou explicita essa voz. Da subjetividade pessoal a plurissignificação do signo III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 225 Segundo os estudos desenvolvidos por Bakhtin, é possível observar que o sujeito se constitui socialmente através de percepções individuais, as quais são organizadas por meio da linguagem. Diante desse reconhecimento particular do mundo, depreende-se da obra de Bakhtin, a percepção que tal autor dá aos fatores externos (culturais sociais, geográficos e econômicos) na configuração de cada indivíduo. O autor discute em seus estudos que esse processo de constituição individual é interativo, e que se dá por vias plurais e por acomodações particulares. Desse modo, o filósofo da linguagem mostra em terrenos da objetividade que a construção compreensiva do dito não poderá ser total se desconsidera o singular que tais construtos condensam da particularização pessoal. Diante dessa constatação evidencia-se as fissuras da língua autônoma e sua ineficiência em dar conta do holístico que povoa a construção de um dito. Diante dessa percepção interativa evidenciada por Bakhtin entre Sujeito e Língua, pode-se compreender que o estudioso considera a língua em uso pela ótica da enunciação, em que cada construção tem um Tu particular, o qual interfere na forma como o Eu vai desenvolver seu discurso, fazendo de cada dito, um novo, pois não se é possível manter o mesmo valor semântico-ideológico, visto que cada sujeito tem uma visão de mundo e valor diferenciada. A partir desse princípio subjetivo que envolve a língua, o estudioso Russo, afirma que esse processo é materializado no contato da construção com o sujeito, mediante um processo de representação/refração, segundo esse princípio, cada construção produz um efeito dentro do processo de comunicação social, pois cada indivíduo possui uma base ideológica própria, particularizada pelas relações de mundo de cada um. Isto quer dizer que a compreensão da palavra no seu sentido particular depende da compreensão da palavra no seu sentido particular depende da compreensão da orientação que é conferida a essa palavra por um contexto e uma situação precisos. “A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial”. As formas linguísticas vazias de ideologia são apenas sinais da linguagem. Por outro lado, não há interlocutor abstrato, pois não teríamos linguagem comum com tal interlocutor. (MARIA TEREZINHA, 2008, p. 184) Mediante a compreensão de que cada sujeito desenvolve do signo um sentido novo, observa-se que a ideia de signo saussuriano não dá conta dessa multiplicidade de sentidos, pois como é constatável atualmente a palavra, o enunciado, o discurso desenvolve um propósito e um sentido sempre novo a depender da funcionalidade pretendida, pois um Nas fronteiras da linguagem ǀ 226 mesmo evento poderá conter vozes, as quais poderão ser reveladas por uns e desconhecidas por outros, desencadeando sentidos múltiplos e efeitos também plurais. Com essa multiplicidade de sentidos que a palavra pode apresentar a partir da situação comunicativa e de seus atores discursivos, os estudos do Círculo sinalizam as relações axiológicas que circundam o signo, visto que todo ato de dizer implica em um juízo por parte do locutor. Ou seja, tudo o que é posto em funcionalidade por meio da linguagem agrega um olhar particular e valorativo do mundo. Com esse novo enfoque em torno do signo, Bakhtin propõe o conceito de Signo Ideológico. Conceptualização que serve de base para toda uma teoria do Discurso. O que une Bakhtin a uma teoria do Discurso? A proposta de estudo do Círculo bakhtiniano é inovadora e de larga contribuição acerca da composição e funcionalidade da língua. No entanto, suas ideias demoram a serem conhecidas e postas em atividade dentro de uma concepção linguística por diversos fatores. Os mais significativos, decorre de ser uma abordagem que nasce dentro de um campo literário-filosófico, proposta em que não há uma concepção autoral particular, estudo que é tentado ao emudecimento mediante o silenciamento dos estudiosos em um cenário de guerra civil. Diante desses embates, a proposta de Bakhtin não ganha a mesma força que é veiculada ao estruturalismo na primeira metade do século XX. No entanto, paralelo aos estudos da objetividade linguística, outros olhares começaram a ser postos sobre o fenômeno Língua, indagando e sinalizando para fatores que integram e determinam essa atividade. A pluralidade de enfoques proporcionou conhecer o objeto de maneira que contemple a sua totalidade, visualizando todos os princípios que agem e determinam sua funcionalidade. Toda essa multiplicidade teórica serviu para tornar conhecido a multifacetada Língua e o quanto esta precisa de uma proposta de estudo que dialogue todos esses olhares e permita uma interação com a língua de modo que seus usuários compreendam toda a sua dinamicidade e poder. É nessa perspectiva de integração teórica, se assim podemos conceituar, que a análise do discurso se propõe a estudar as práticas de interação comunicativa. É conhecido, que nos seus primeiros anos esta abordagem não se diferenciou muito de uma proposta conteudista, pois suas análises pouco apresentaram acerca da participação social, das relações de poder, dos interesses subjetivos, das interferências situacionais e contextuais. No entanto, nas últimas décadas do século XX a Análise do Discurso com um viés Crítico adquiriu um olhar mais III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 227 pontual acerca da atualização da língua. Nesse período, os estudos do discurso passaram a considerar que os sujeitos constroem seus ditos a partir de uma continuidade de vozes que o travessa e determina o seu posto em funcionamento dentro de uma atividade de comunicação. A partir dessa ininterrupção que marca a continuidade do discurso, é possível perceber a influência que a teoria dialógica bakhtiniana desenvolveu na construção das bases filosóficas dessa abordagem teórica. Para Bakhtin, a língua é uma atividade e produto que se integra dentro de cada novo uso e que este processo é sempre irrepetível, visto que o sujeito é a soma de outros, os quais estão sempre marcados no seu discurso através de suas escolhas, de seus posicionamentos, enfim, da própria maneira de atualização discursiva. Ancorada nessa concepção filosófica, a Análise Crítica do Discurso entende que a construção discursiva seja o resultado de uma atividade, de uma ação social, a qual dialoga os constituintes subjetivos e objetivos de uma Língua e os dos sujeitos-colaboradores, em que cuja interação promulga um ato discursivo, o qual é efetivado com uma finalidade sociocomunicativa. Sabido que a Análise do Discurso é constituída em duas vertentes, as quais se encontram em alguns pontos e se distanciam em outros, priorizamos nesse artigo, a abordagem anglo-saxã de van Dijk. Ao delimitarmos os caminhos da Análise Crítica do Discurso, podemos ver, nas análises das atividades linguageira, o quanto a proposta do círculo é válida e como esta é posta em exercício dentro das pluralidades de interação comunicativa da sociedade do século XXI. Na proposta de van Dijk, é possível perceber como o conceito de subjetividade, de valor, de refração e de dialogismo de Bakhtin dão sustentabilidade a sua abordagem. Van Dijk (2012) desenvolve uma abordagem centrada a partir da subjetividade do euenunciante. O autor discute que não é o espaço sociocultural por si mesmo que determinará a produção e a interpretação do discurso, mas como esses espaços são representados mentalmente pela cognição individual de cada sujeito. Com essa nova maneira de perceber a construção do contexto, constate-se que esse é dinâmico e subjetivo. Tais princípios são possíveis não porque a cultura ou a sociedade muda, mas porque o sujeito está imerso nessas práticas. Mediante essa subjetividade mental do contexto, van Dijk (2012) discute que o mesmo ato discursivo, proferido no mesmo grupo sociocultural produzirá efeitos e compreensões diversas diversificas, visto que nenhum sujeito tem os mesmos modelos mentais. O autor também chama a atenção a respeito desse conhecimento por parte do locutor, o que o leva a produzir um ato discursivo mediante os possíveis modelos de contexto de seus interlocutores Nas fronteiras da linguagem ǀ 228 e portanto produzir um discurso que seja compreendido de modo pleno ou aparente pelo interlocutor, tal ação dar-se-á mediante a intenção de quem enuncia. A isso afirma van Dijk: Embora na maioria das formas de discurso entre membros de uma mesma comunidade os modelos mentais sejam suficientemente semelhantes para garantir o sucesso da comunicação, convém ressaltar que os modelos mentais incorporam necessariamente elementos pessoais que tornam únicas todas as produções e interpretações – e portanto tornam possível o mal-entendido – mesmo quando eles têm muitos elementos socialmente compartilhados. Vemos, portanto, que a compreensão do discurso envolve a construção, controlada pelo contexto, de modelos mentais baseados em inferências fundamentadas no conhecimento. (VAN DIJK, 2012, p. 93) Como foi possível depreender dessa abordagem, não é suficiente no processo de compreensão e produção discursiva, que os sujeitos dominem apenas a língua enquanto estrutura, mas que sejam capazes de interagir com os modelos episódicos que constituem seus modelos de contexto para assim conseguir alcançar o que é preestabelecido no posto linguístico, visto que muito do que é intencionado não está marcado por meio da palavra, mas sim, recuperável através das estruturas subjetivas do contexto. Considerações finais Como se constatou ao longo desse estudo, a língua foi objeto de vários estudos ao longo de um século. Estudos que propuseram sempre um olhar inovador e revelador acerca desse objeto. Ao priorizarmos o enfoque bakhtiniano, pudemos perceber o quanto sua proposta é ampla e como busca dar conta da funcionalidade da Língua em seu exercício. Ao tentar estabelecer um elo entre a proposta do círculo e Análise Crítica do Discurso, observa-se o quanto os eixos daquela (representação/refração, dialogismo, axiologia do signo, subjetividade, multiplicidade de sentidos) são incorporados dentro de uma perspectiva contemporânea de compreensão e funcionalidade da língua. Dessa maneira, é possível concluir que a proposta de uma análise do discurso tem origem com os estudos de Bakhtin, embora limitada aos textos literários e ultimamente difundida através de um enfoque mais linguístico, mas mantendo toda a base filosófica herdada do filosofo Russo e seu Círculo. Referencias BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 229 VAN DIJK, Teun A. 1943- Cognição, discurso e interação; (org. e apresentação de Ingedore V. Koch). – 7. Ed. São Paulo: Contexto, 2011. VAN DIJK, Teun A. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. Tradutor Rodolfo Ilari. – São Paulo: Contexto, 2012. ELICHIRIGOITY, M. (2008). A formação do sentido e da identidade na visão bakhtiniana. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 181-206, 2008. FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. – São Paulo: Parábola Editorial, 2009. MAGALHÃES, L. (2007). Introdução ao pensamento de Bakhtin. Locus: revista de história, Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 210-215, 2007. MUSSALIM, Fernanda. Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos, volume 3/ Fernanda Mussalim, Anna Christina Bentes, Organizadoras – 4. ed. – São Paulo: Cortez, 2009. PIRES, V; TAMANINI-ADAMES, F. (2010). Desenvolvimento do conceito bakhtiniano de polifonia. On-line. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es/ >. Acesso em 16 de Julho 2014. Nas fronteiras da linguagem ǀ 230 QUESTÕES DE MULTIMODALIDADE EM CONTEXTO ESCOLAR: DESAFIOS DO TRABALHO COM A IMAGEM [Voltar para Sumário] Ana Cláudia Soares Pinto (UFPB) Considerações iniciais Para Dionísio (2005, p.3), os recentes avanços tecnológicos têm oportunizado o surgimento de novas formas de interação que implicam na necessidade de revisão e ampliação das interações humanas e de alguns conceitos no âmbito do processamento textual e das práticas pedagógicas que lhe são decorrentes, uma vez que imagem e palavra mantêm relação cada vez mais próxima, cada vez mais integrada. As imagens, na sociedade contemporânea, passam a compor o sentido dos textos juntamente com a modalidade escrita, deixando de apresentar caráter meramente ilustrativo, não sendo raro “os casos em que textos visuais são responsáveis pela sistematização de informações não contidas no texto escrito” (DIONÍSIO, 2006 p.21). Com as facilidades do avanço tecnológico, recebemos grande quantidade de informação veiculada pelos diferentes meios de comunicação que se utilizam de várias linguagens no processamento textual. Precisamos, pois, atribuir sentido a textos constituídos por linguagens variadas consubstanciadas em palavras, imagens, cores, gestos, entre outros, que se integram na construção do sentido do texto. Consequentemente, temos a necessidade de uma formação com mais ênfase na modalidade visual, mais focada no letramento visual, ou seja, na comunicação e na recepção de mensagens visuais. Essa tendência cada vez mais orientada para o visual com o uso de múltiplas modalidades é uma marca constante da sociedade contemporânea e, consequentemente, do contexto escolar – em nossas salas de aula. Mas, até que ponto essas modalidades são exploradas de fato pelo seu caráter multimodal ou são meros pretextos para o uso da modalidade dominante, na sala de aula, ou seja, a linguística? Sabemos que, apesar desse atual contexto da sociedade contemporânea e do uso intensivo da imagem pelos alunos fora do ambiente escolar (cartazes, entretenimento, III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 231 publicidade, por exemplo) ainda é bastante questionada a sistematização de seu uso para fins pedagógicos. É no âmbito da compreensão desse novo paradigma linguístico que nos propomos a apresentar, nesse trabalho, uma reflexão sobre o trabalho com o texto imagético na sala de aula de Língua Portuguesa. Para tanto, objetivamos identificar o posicionamento de uma professora do Ensino Fundamental sobre os desafios encontrados no uso desses textos (imagéticos) em sala de aula. Os dados considerados, neste estudo, referem-se a respostas de uma entrevista semiestruturada a partir de tópicos como: contribuição da imagem para o ensino de Língua Portuguesa; escolha da imagem; objetivo da aula a partir da imagem; participação dos alunos; presença da imagem no livro didático etc., tópicos que visam caracterizar as representações sobre seu agir docente. Sob a orientação teórico-metodológica da multimodalidade e do contexto visual, este trabalho apresenta três seções além desta introdução. Primeiramente, é apresentada uma caracterização geral do fenômeno da multimodalidade focalizando alguns conceitos que nos ajudarão na análise dos dados. Em seguida, apresentamos informações sobre o contexto dos dados apresentados, interpretamos os resultados e, então apresentamos algumas considerações finais trazendo para a discussão a necessidade de se compreender de que modo o trabalho com a imagem é visto ou representado em contexto escolar. Multimodalidade Falar em multimodalidade não é somente falar em múltiplos modos de transmitir mensagem e conhecimento através de fotografia, pintura, desenhos, gráficos, etc. A multimodalidade também está na língua/linguagem, como afirma Kress e Van Leeuwen:·. Linguagem, por exemplo, é um modo semiótico porque pode se materializar em fala ou escrita, e a escrita é um modo semiótico também, porque pode se materializar como (uma mensagem) gravada em uma pedra, como caligrafia em um certificado, como impressão em um papel, e todos esses meios adicionam uma camada a mais de significado. (Kress & Van Leeweun, 2001) Assim, todo texto pode ser multimodal, mesmo que só tenha texto escrito. O simples destaque do título, os usos de diferentes tipos de letras, tamanho e cor tornam qualquer texto escrito multimodal. A noção de multimodalidade das formas de representação que compõem uma mensagem foi introduzida por Kress & Van Leeuwen (1996) na área da Semiótica Social, Nas fronteiras da linguagem ǀ 232 buscando compreender todos os modos de representação no texto linguístico. Sendo assim os autores propõem que se pense numa linguagem constituída como multimodal, em que o sentido advenha da relação textual estabelecida entre os diferentes modos utilizados para sua constituição e não que se pense isoladamente em cada um deles. A multimodalidade encontra-se, portanto, nas múltiplas linguagens que utilizamos em situações de comunicação. Quando falamos, por exemplo, utilizamos, além da fala, gestos, movimentos corporais, entoações, etc. que vão ajudar a construir o sentido do texto que estamos elaborando. Na escrita, a multimodalidade ocorre quando temos o texto escrito incorporado a uma imagem ou outra linguagem visual, como desenhos, fotografias, gráficos, cores, etc. Em relação à manifestação escrita, a própria disposição da escrita no papel já é considerada visual, conforme acentua Descardeci (2002, p. 20-21) “em uma página, além do código escrito, outras formas de representação como a diagramação da página (layout) a cor e a qualidade do papel, o formato e a cor (ou cores) das letras, a formatação, etc. interferem na mensagem a ser comunicada.” Dessa forma, a perspectiva da multimodalidade revela que a prática da leitura e/ou análise de textos não deve se pautar somente na mensagem escrita, pois esta constitui apenas um elemento representacional que coexiste com uma série de outros, como a formatação, o tipo de fonte, a presença de imagens, tabelas, etc. Estes recursos visuais também constituem formas de expressão do conteúdo do texto e nos orientam na condução da leitura, fazendo-nos enxergar que os sentidos somente serão reconstruídos pela leitura eficiente do conjunto dos modos semióticos presentes no texto e não, apenas, com base em uma única modalidade. O ensino como trabalho: o professor como trabalhador Pensar em uma conceitualização para o termo trabalho implica aceitar as condições sócio-históricas subjacentes ao conceito. Machado (2007), com o propósito de explicitar a concepção de “trabalho do professor” faz uma acurada explanação do assunto, tomando como ponto de partida os motivos de discutir essa noção, explorando em seguida os diferentes significados atribuídos ao termo até chegar ao valor que tem essa expressão atualmente. Dessa forma, com base em Bronckart (2004) e Machado (2007) apresentamos nossa reflexão acerca da concepção de trabalho do professor. Antes, porém, uma definição do termo trabalho apresentada por Bronckart (2004/2006) apud Machado (2007, p.78) que define trabalho como: [...] um tipo de atividade ou de prática. [...] um tipo de atividade própria da espécie humana, que decorre do surgimento, desde o início da história da III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 233 humanidade, de formas de organização coletiva destinadas a assegurar a sobrevivência econômica dos membros de um grupo: tarefas diversas são distribuídas entre esses membros (o que se chama de divisão de trabalho); assim, esses membros se vêem com papéis e responsabilidades específicas a eles atribuídos, e a efetivação do controle dessa organização se traduz, necessariamente, pelo estabelecimento de uma hierarquia. Nesse mesmo texto, Machado (op.cit., p. 78), afirma que tal definição é insuficiente para que se compreenda o trabalho do professor. O trabalho do professor só emerge como objeto de estudos no final da década de 90. Foi nesse contexto que a abordagem ergonômica passou a ser empregada, como “um instrumento adequado para enfocar a complexidade da atividade educacional enquanto trabalho e o real funcionamento do professor enquanto trabalhador” (MACHADO, 2007, p. 90). Um dos problemas apresentados por Bronckart (2006, p.203-204) para definir a prática do professor é a sua relativa opacidade, ou seja, “a dificuldade de descrevê-lo, caracterizá-lo e, até mesmo, de simplesmente falar dele.” Frente a essa realidade, Machado (2007, p.93) defende que O trabalho docente, resumidamente, consiste em uma mobilização, pelo professor, de seu ser integral, em diferentes situações – de planejamento, de aula, de avaliação -, com o objetivo de criar um meio que possibilite aos alunos a aprendizagem de um conjunto de conteúdos de sua disciplina e o desenvolvimento de capacidades específicas relacionadas a esses conteúdos, orientando-se por um projeto de ensino que lhe é prescrito por diferentes instâncias superiores e com a utilização de instrumentos obtidos do meio social e na interação com diferentes outros que, de forma direta ou indireta, estão envolvidos na situação. A partir deste fragmento que caracteriza o agir docente, nos chama atenção a primeira parte da definição apresentada pela autora (em função de nossos objetivos, enfocaremos tais aspectos neste artigo) que situa o professor no interior de sua disciplina como alguém que cria meios para a aprendizagem de conteúdos e para o desenvolvimento de capacidades a eles relacionadas. Na análise dos dados, apresentaremos segmentos de respostas dadas por uma professora do Ensino Fundamental com relação ao trabalho com o texto imagético em sala de aula. Tais respostas referem-se ao trabalho interpretado pela própria professora que comenta o seu trabalho. Desse modo, ao analisar esses segmentos podemos identificar representações sobre o trabalho para que possamos melhor compreendê-lo. Contexto de realização da entrevista Nas fronteiras da linguagem ǀ 234 O texto proveniente da entrevista semiestruturada, teve como participantes, uma professora do Ensino Fundamental (participante da pesquisa) e esta pesquisadora e foi produzido no dia 07 de janeiro de 2013 com tempo de duração de aproximadamente 07 minutos na residência da própria professora que concedeu a entrevista. Esta pesquisadora é estudante de segundo ano de Doutorado, com experiência no ensino médio e também superior, estando no momento afastada de suas atividades profissionais para realização do Doutorado. Em relação à participante da pesquisa, a professora é recém - graduada em Letras, cursando, atualmente, Especialização em Língua Portuguesa e atuando em uma Escola da Rede Privada, no Ensino Fundamental. A escolha da participante deu-se devido ao contato que a pesquisadora já teve com ela em virtude de ter sido sua professora ainda no Curso de Letras, quando teve conhecimento do seu trabalho (mesmo sem ter concluído o curso, a aluna já ministrava aulas, regularmente) que contemplava a utilização dos textos imagéticos em sala de aula. No que diz respeito ao conteúdo temático, foi utilizado o tema “o trabalho com a imagem em contexto escolar”. Sobre as respostas da professora A entrevista, embora composta por seis questões, (ver Apêndice I) apresentou muita repetição de informações, fato este que creditamos a forma de estruturação. Ou seja, estruturalmente organizamos a primeira questão com um caráter de tópico “maior” no qual buscávamos informações variadas para termos uma visão geral das suas impressões sobre o trabalho, objetivávamos que a professora falasse o mais naturalmente possível e de forma ampla como de fato o fez. As demais questões propostas, porém, elaboradas de forma mais específica tendo em vista informações mais pontuais, apresentaram, pois, uma repetição do que já havia sido tematizado na pergunta de abertura. Para fins de análise neste trabalho, tendo em vista o objetivo traçado, nos deteremos apenas na observação de três questões. Vejamos segmentos da resposta dada à primeira questão ao perguntarmos sobre o trabalho com a imagem e a contribuição deste para o desenvolvimento linguístico dos alunos: Ex 1: primeiramente é preciso que eu diga que ensino numa escola particular... e há uma cobrança muito maior/.../é:: em relação a tudo... então uma das exigências, é a utilização da imagem ... eles acreditam/ coordenação/supervisão/que assim estão trabalhando de maneira moderna... atual...não só o texto verbal/certo? mas aí... em um momento ou outro...no III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 235 fim das contas acabam exigindo um estudo mais formal/tradicional... conteudístico/ digamos assim... o que gera uma contradição...é prá trabalhar mas não é importante como conteúdo...entende? tem que cobrar outras coisas... então... me colocando como educadora dessa escola é um desafio defender esse trabalho/.../ mas vejo que isso não é um problema dessa escola conciliar essas contradições é sempre um problema para nós professores. A partir da análise do exemplo 1 acima percebemos que a professora não responde diretamente à pergunta feita. Na sua fala é possível identificar que há entraves de ordem institucional e/ou pedagógica que dificultam ou não favorecem o efetivo trabalho com a imagem. Um conjunto de mudanças precisa acontecer no ambiente educacional para que o texto multimodal seja efetivamente explorado. Observamos, no exemplo, alguns segmentos que são usados pela professora, claramente, para justificar a situação de desconforto vivida por ela individualmente, o que ela remete a uma insatisfação comum a todos os professores – conciliar essas contradições é sempre um problema para nós professores. Logo, há um conhecimento compartilhado e cristalizado na classe dos professores. Percebemos ainda uma sensação de rotina de algo “institucionalizado”- a professora justifica o seu agir como uma forma de agir já realizado por outros e também reapropriado por ela. O discurso está organizado em torno do estabelecimento de orientações genéricas para a realização das atividades a serem a trabalhadas com os textos imagéticos. Demonstra também como a professora tem compreensão das diretrizes escolares como normas explícitas para o seu trabalho (isto claro... dentro dos métodos estabelecidos pela instituição escolar). Semelhante ao que foi analisado acima, no exemplo a seguir, a professora procura assinalar uma prática baseada em um discurso generalizante, sem considerar, no entanto, as particularidades locais de sua realidade. A utilização do “é preciso” denota que a professora dá sua opinião utilizando-se do coletivo demonstrando um caminho que julga necessário para todos os outros professores. Ex. 2: a interpretação do texto imagético requer certa prática, tanto da parte do educador quando do aluno é um processo lento e o aluno quer entender de cara às vezes consegue mas nem sempre/ é preciso que agucemos a curiosidade deles nessa prática e a gente vai tentando até ... enfim “O aluno quer entender [...] e às vezes consegue, é preciso que agucemos a curiosidade deles [...] e a gente vai tentando”. Esse segmento nos faz refletir com Freitas (2005) que destaca o fato de o perfil do aluno atual ser diferenciado e ressalta a necessidade de melhorar a formação inicial e continuada dos professores. Podemos perceber que há uma lacuna, o aluno quer aprender e o professor tenta ensinar, está posto que lhe falta formação e direcionamento para tal. Ainda que as teorias da multimodalidade e dos novos letramentos Nas fronteiras da linguagem ǀ 236 não tenham feito parte de nossa formação inicial ou continuada, somos cobrados quanto a sua inserção em nossas aulas. Na segunda pergunta objetivávamos saber sobre o seu objetivo ao preparar uma aula de leitura a partir de uma imagem. O fragmento a seguir é ilustrativo da resposta à essa questão: Ex. 3: então:: o objetivo principal é que o aluno perceba que o texto não está só na palavra... que como diria Vigotsky a palavra sem sentido não pode ser considerada palavra... assim é com o texto não verbal/ não é qualquer imagem/ não é qualquer desenho que o aluno interpreta por isso que se deve ter cuidado... uma imagem jogada sem nenhum objetivo não vai ter sentido algum pra aquele aluno Novamente o discurso da professora parece estar deslocado do contexto real no qual trabalha e relacionado com um modelo teórico que deve seguir. Pudemos observar a presença de um discurso bastante objetivo e impessoal considerando de forma superficial o contexto em que atua. Utilizando-se de fontes enunciativas (como diria Vigotsky), a professora determina vozes que direcionam sua formação ou sua prática funcionando como uma orientação sobre a atividade a ser realizada. Embora percebamos que há pouca correlação entre o que é citado e o que foi perguntado – objetivo de uma aula com a imagem. O exemplo seguinte servirá para ilustrar a preocupação da professora em apropriar-se do discurso de alguém como forma de justificar ou associar seu próprio modo de agir. Ex.4: apesar de trabalhar muito com o texto imagético acredito que ainda não consigo trabalhar de forma concreta esse tipo de texto/na verdade nem sei porque / é... que muitas vezes acabo desviando o olhar para os conhecimentos conteudísticos, é um processo longo... /.../ recentemente muitos estudiosos estão privilegiando essa ferramenta na sala de aula... segundo eles a imagem ativa uma função muito importante para o intelecto do jovem ou adolescente/.../ quem sabe... pensar num trabalho que estimule os alunos a desenvolver melhor suas capacidades cognitivas... Semelhante ao Ex.3, há novamente uma referência a fontes enunciativas (muitos estudiosos) que estão associadas a sua prática e/ou formação docente orientando ou servindo como uma base teórica a ser considerada no trabalho com a imagem. Percebemos claramente neste fragmento a ausência de uma formação específica para o trabalho com a imagem no momento em que a professora usa “nem sei porque”, demonstra pouca propriedade sobre o tema com o uso de expressões muito genéricas. Considerações finais III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 237 É preciso que a escola trabalhe de fato,com outras formas de linguagem e a diversidade cultural para desenvolver outros letramentos nos estudantes. Como a multimodalidade já está inserida no cotidiano dos estudantes, o diferencial na escola será a promoção da consciência crítica, como interagir socialmente por meio de tais conhecimentos em diferentes contextos e com diferentes objetivos. Com base nos resultados ora apresentados e de maneira limitada, haja vista não contarmos com outros dados, constatamos que a concepção da professora sobre o trabalho com a imagem é, na verdade, aquilo que é desejado ou teorizado sobre tal trabalho, isto é, algo que a professora encara como um discurso ou uma orientação a ser seguida e que generaliza como válido para todos, como uma afirmação de verdade absoluta, definida, sem permitir contestação. Isso nos fez perceber a postura de uma professora passiva sempre agindo em conformidade com um “padrão” a ser seguido. Nesta perspectiva, nossos resultados confirmaram a relativa opacidade que permeia o trabalho do professor. Isto porque, entre outras coisas, o professor como um trabalhador, qualquer que seja a profissão, carrega consigo representações sociais (coletivas) que as internaliza de forma particular, reconfigurando essas representações sempre que necessário. A dificuldade da professora em se implicar no discurso, observada em nossos dados, pode revelar traços constitutivos dessa representação social confirmando quão enigmática e opaca é a prática do professor. A nosso ver, compreender o agir docente pelo discurso do próprio docente é fundamental, especialmente porque pode nos apontar elementos constitutivos do seu trabalho difícil de ser identificado por outro observador, por outro lado, permitindo que se analise o trabalho do professor de forma mais ampla e fundamentada, neste artigo, especificamente, que repensemos as práticas de realização do texto imagético em sala de aula. Referências: BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Campinas: Mercado de Letras, 2006. DESCARDECI, M. Ler o mundo: um olhar através da Semiótica Social. In: Educação Temática Digital. Campinas, V.3, n.2, 2002, pp. 19-26. DIONISIO, A. P. Gêneros Multimodais e Multiletramento. In: KARWOSKI,A.M.GAYDCZKA, B e BRITO,K.S (orgs). 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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 239 A PESQUISA EM METACOGNIÇÃO PARA UM ESTUDO DO GÊNERO CRÔNICA NO ENSINO FUNDAMENTAL [Voltar para Sumário] Ana Lúcia Farias da Silva (UFRRJ)1 1. Introdução A pesquisa em cognição traz um suporte importante para o professor no trabalho com o texto de gêneros literários, pois inaugura uma possibilidade de colocar o sujeito educando e sua subjetividade no centro dos estudos cognitivos. O suporte da cognição e, mais recentemente da metacognição, revela um trabalho focado nas intersubjetividades, emoções e sentimentos que o texto desperta no aluno leitor. Por acreditar que antigas concepções de ensino e parâmetros curriculares limitavam o papel do aluno na escola e questionarem isto, promovendo novas reflexões, é que novos estudos surgiram, na área de cognição, e passaram a pesquisar novas possibilidades de trabalho na sala de aula que valorizassem a figura do aluno, enquanto aprendiz , assim como entender de que forma o indivíduo constitui-se, posiciona-se em uma determinada prática e, enquanto aprendiz, ressignifica seu discurso, como afirma Gerhardt (2006). De todas as competências culturais, ler é, sem dúvida, a mais valorizada na sociedade, então, cabe à literatura tornar o mundo mais compreensível, transformando o aspecto da sua materialidade em textos com os quais convivemos, sobretudo, na escola. De acordo com Cosson (2006), o letramento feito com textos literários proporciona um modo privilegiado de inserção no mundo da escrita, pois conduz ao domínio da palavra a partir dela mesma. Com relação a esse posicionamento acima, Cosson (2006) comenta a importância do letramento literário baseado em textos de gêneros literários na escola, assim, o letramento literário precisa da escola para acontecer. Para Zilberman (2003), o professor, ao promover um letramento literário de qualidade no aprendiz, dá o direito para que ele, o educando, experimente o texto literário e vá muito além da leitura, mas também que possa se apropriar 1 Mestranda de Letras da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Nas fronteiras da linguagem ǀ 240 da literatura, tendo dela a experiência literária. Nas discussões sobre o caráter plural da leitura do texto de gêneros literários, muitos autores demonstram que a literatura exige uma leitura diferenciada, ou seja, que é preciso um olhar que vá além da decodificação da escrita ali registrada, um olhar de percepções múltiplas, de trocas de impressões partilhadas que o texto literário promove no leitor. Então, se a leitura do texto literário dissemina sentidos variados, sugerindo amplas relações dialógicas do texto com o leitor, é preciso haver um processo que valorize a importância do trabalho com o ensino do texto de gêneros literários na escola, no sentido de capacitar o aluno, através de atividades que possibilitem a ele um constante letramento literário. Se consideramos a escrita como um processo que cabe à escola desenvolver nos alunos, validando as intensas e diversificadas semioses que são produzidas por eles nas aulas de língua materna, reconhecemos, com isso, que diversos tipos de conhecimentos são acionados quando se parte para o ato de escrever e estão diretamente associados ao contato que o sujeito teve e tem durante toda a sua vida com atividades que exijam dele leitura e prática da escrita. Segundo Dahlet (1994), mesmo os escritores proficientes e profissionais no campo da escrita admitem que escrever é um ato que exige muito trabalho e dedicação, sendo uma atividade complexa que implica em relacionar as consciências linguística, cognitiva e social. Partindo da reflexão acima, privilegiamos o trabalho com o gênero crônica escolar, a fim de situar o aprendiz e delimitar para ele as características sócio-comunicativas que tornam um texto aplicável a este gênero, ou seja, deixar claro para o aluno que faz-se uso de um determinado gênero de texto na tentativa de atender às necessidades da situação e de se cumprir as funções sociais a que se destina, que no caso do gênero crônica escolar, está ligado ao entretenimento, ludismo, humor, dialogismo e reflexão subjetiva do narrador frente a uma problemática do cotidiano. 2. A crônica “escolar” e o valor da leitura da literatura A justificativa para a questão do estudo do gênero crônica escolar, apoia-se na escolha que se deu a partir da análise de currículos seguidos pelas escolas públicas do ensino fundamental, do sexto ao nono ano no Estado do RJ. Juntamente à análise dos currículos, se deu o estudo de livros didáticos mais adotados nas escolas neste segmento de ensino, em que o gênero textual de maior destaque que ali é reproduzido é a crônica. No entanto, percebemos que o tipo de crônica transcrito nos livros didáticos são os de natureza escolar, de III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 241 autores referência na escrita desse gênero, como Fernando Sabino, Carlos Heitor Cony, Luis Fernando Veríssimo, Millôr Fernandes, Rubem Braga, Moacyr Scliar, Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, entre outros. Caracterizamos esse tipo de crônica com o adjetivo “escolar”, pois elas se associam e se assemelham pelas condições de produção e meios de circulação em que são apresentadas. Se pensarmos nos dias de hoje, popularmente, somente o livro didático e alguns poucos jornais veiculam esses textos chamados de crônica, que é um gênero fronteiriço, que oscila entre jornalismo e literatura, ficção e história, prosa e poesia. Mas a característica predominante nos textos do gênero crônica reproduzidos nos livros didáticos de ensino fundamental é a marca de um finalidade didático-moralizante que apela para reflexões sobre a natureza do ser humano, suas atitudes e comportamentos frente a um fato da rotina, cotidiano e que suscita inclusive, uma espécie de entretenimento. O gênero crônica, ao longo dos tempos veio se corporificando numa escala histórica que vai do uso documental, do registro de viajantes da época das grandes descobertas territoriais pelo mundo afora, até o registro jornalístico de fatos do dia a dia, seja social, esportivo ou filosófico. Ou seja, do pragmatismo histórico de Fernão Lopes ao singelismo e humor de Millôr Fernandes, a crônica veio assumindo um formato que hoje a democratiza, através de sua produção nos meios digitais, em que qualquer um pode se habilitar a escrevê-la e ousar em publicá-la nas redes sociais. Os textos de crônica costumam ser leves, de fácil compreensão, pois a linguagem empregada beira às vezes a informalidade típica das conversas do cotidiano de qualquer pessoa. São simpáticas, bem apreciadas, de textos com começo-meio-e-fim, bastante propício à leitura em ambiente escolar e tantas vezes humorísticas, engraçadas e sutis, tornando um fato rotineiro algo de grande valor existencial, como bem exploram os narradores reflexivos nas histórias de crônicas. Esse caráter da narração reflexiva nas crônicas aproximam-as até mesmo do texto opinativo. Os jovens, no ensino fundamental, leem Literatura a sua maneira e de acordo com as possibilidades que lhes são oferecidas. Sabe-se que fora da escola, ocorrem escolhas muito aleatórias pelos jovens, que selecionam livros a partir de uma capa, do que se lê entre seus colegas, bem como do número de páginas. Observando essas escolhas feitas pelos jovens, fora do ambiente escolar, consta-se, assim uma desordem própria da construção do repertório de leitura dos adolescentes. A ausência de referências sobre o campo próprio da literatura e a pouca experiência de leitura – não só de textos de gêneros literários – fazem com que os jovens leitores se deixem in- Nas fronteiras da linguagem ǀ 242 fluenciar por detalhes nem sempre importantes de certos tipos de leitura, não pertencentes à Literatura, enquanto objeto de valor. No entanto, também não se pode descartar totalmente aquilo que os jovens vêm se interessando como leitura, pois a recepção, a reprodução e a circulação da literatura via público-leitor não podem ser estudadas como um fenômeno isolado das outras produções culturais, sobretudo na contemporaneidade desse mundo digital e globalizado. Eco (1993) também ressalta o caráter da Literatura como bem simbólico e que deve-se apropriar dela a fim de que haja uma proliferação ilimitada de leituras que a obra pode suscitar. A partir dessa consideração de Eco (1993), nos reportamos à escola como um lugar de compartilhamento de impressões sobre um texto lido, pois é no ambiente escolar que o texto, bem escolhido pelo professor, pode favorecer uma experiência literária de grande valor para os aprendizes. Também o mesmo texto, quando bem explorado por um trabalho que vise não mais a superficialidade textual, mas a profundidade do discurso literário ali inserido e registrado, ele passa a ter um efeito de que se espera da Literatura na escola, isto é, integrar o aluno ao discurso literário, através do seu contato que se inicie na leitura, passe pela compreensão daquela obra, a sua contextualização frente ao momento literário que se quer pôr em estudo e ultrapasse os múltiplos sentidos que se dá ao texto literário. Por meio da leitura do texto literário, o polo da leitura por se constituir num terreno fluido e variável, a partir dela, origina-se a concretização de sentidos múltiplos, originados em diferentes lugares e tempos. Nesse raciocínio, hoje, a noção de texto se amplia. Segundo Barthes (1988), o texto hoje se dirige a um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original. Esse argumento utilizado por Barthes (1988) vem a reformular o que já havia tratado Bakthin (1981), ao desenvolver o conceito de polifonia, chamando a atenção para a dimensão dialógica do texto, apontou para sua pluralidade discursiva, que vai além dos limites da estrutura interna de um texto de caráter literário, estendendo-se à leitura e, em seguida, á sua recepção e compreensão literária. Bakthin (1981) e Barthes (1988) ressaltam a importância das vozes que cruzam um texto literário e suas múltiplas impressões de sentidos a ele conferido pelo leitor. Também na sala de aula, as conferências múltiplas de sentido precisam ser apontadas ao texto, no trabalho com a valorização da leitura conferida pelo aluno aprendiz. O objetivo perseguido nas práticas escolares é o de formar leitores críticos, e, para tal fato, os próprios documentos oficiais curriculares das últimas décadas, como os PCNs, tem demonstrado uma preocupação nesse sentido de promover uma leitura com maior fruição e desempenho. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 243 Qualquer produção de linguagem situada, oral ou escrita pode ser considerada texto, porém, a propriedade mais básica de todo texto é a sócio-comunicativa, porque diz respeito à função que o texto cumpre num dado contexto social. O contexto sociocultural em que o texto se insere determina a construção de seu sentido, uma vez que, além dos aspectos lógicosemânticos, envolve também aspectos cognitivos, pois “é no partilhar de conhecimentos entre os interlocutores que o texto passa a fazer sentido” (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1983). Partindo da reflexão acima, privilegiamos o trabalho com o gênero crônica escolar, a fim de situar o aprendiz e delimitar para ele as características sócio-comunicativas que tornam um texto aplicável a este gênero, ou seja, deixar claro para o aluno que faz-se uso de um determinado gênero de texto na tentativa de atender às necessidades da situação e de se cumprir as funções sociais a que se destina, que no caso do gênero crônica escolar, está ligado ao entretenimento, ludismo, humor, dialogismo e reflexão subjetiva do narrador frente a uma problemática do cotidiano. 2.1 Como a literatura é reproduzida em documentos oficiais e currículos O que se tem observado é que esses mesmos documentos oficiais curriculares apresentam uma característica que lhes é comum, ou seja, o fato de querer impor às escolas de nível fundamental, um trabalho muito automatizado e limitado com a leitura, pois quando falam de proficiência, só levam em consideração o formatação do aluno para que ele tenha desempenho favorável em avaliações externas que, no fundo, não aferem nada além da compreensão superficial de um texto, que muitas das vezes nem é um texto de gênero literário. A prática escolar em relação à leitura literária tem sido a de dar ênfase às atividades de metaleitura, como o estudo do texto e seus aspectos históricos-literários, caracterização de estilo, deixando, assim, em segundo plano o trabalho mais importante que é a leitura em si do texto literário. O fato é que os jovens, somente inseridos em atividades de metaleitura, não serão motivados a ler de forma integral. As tarefas produzidas a partir da metaleitura são necessárias na escola, entretanto, não podem ser somente o único recurso ao trabalhar com o texto de gênero literário. Nesse aspecto, as atividades de metaleitura, ainda que importantes na escola, somente fazem o aluno aprendiz a refletir sobre alguns dos aspectos da escrita, como organização da língua e fatores ligados à história e à estrutura dos textos literários. Embora seja difícil fazer com que os alunos, ainda não leitores, realidade clara em nossas escolas hoje,se interessem até Nas fronteiras da linguagem ǀ 244 mesmo pelas tais atividades de metaleitura. Parece, portanto, extremamente urgente motiválos à leitura dos textos de gêneros literários, promovendo atividades que tenham para eles uma finalidade clara e não exatamente escolar, por exemplo, que ele se reconheça como leitor, que compartilhe com outros alunos e o próprio professor, suas impressões de leitura do texto, evitando a leitura de obrigatoriedade; ler somente porque a escola pede, transformando a sua leitura numa obrigação, perdendo, com isso, o caráter do prazer de ler. 2.2 A posição do aluno aprendiz frente ao texto literário e os estudos na área de cognição Ao ser trabalhado com diversidade de atividades, a leitura de um determinado gênero literário na escola acaba direcionando o aluno-aprendiz para o desenvolvimento de uma conduta muito mais responsável e crítica em relação ao texto literário, como construir um saber sobre o próprio gênero, bem como levantar hipóteses de leitura, perceber características discursivas intrínsecas a um determinado gênero e até mesmo estratégias narrativas. Há nessa perspectiva uma concepção cognitiva do uso que se faz da leitura na escola. Com o desenvolvimento das pesquisas em ciências cognitivas, nos anos 90, surge uma nova análise do processo de ensino aprendizagem, pois se passou a dar ênfase ao caráter de natureza social e educacional do ensino de línguas com as quais o aluno tem contato no ambiente escolar. Apoiado nessa visão, o ensino de línguas ultrapassa a ideia de que elas seriam somente “produtos sociais da linguagem” (SAUSSURE, [1916] 2001), atribuindo a elas a dimensão de construtos semióticos, atingidos por valores identificados nas intersubjetividades em que os indivíduos se envolvem cotidianamente em suas vidas, conforme afirma Gerhardt (2013). Assim, essa visão cognitiva muito mais ampliada e focada na subjetividade do aluno, situa-o no centro do processo de ensino e aprendizagem. O pensamento cognitivo, ao validar os processos de subjetivação e as semioses que esse aluno constroi e desenvolve, aponta para novas práticas didáticas que valorizem e reconheçam o aluno como um aprendiz, sobretudo ao ressaltar a importância de seus conhecimentos prévios. Ainda, segundo a opinião de Gerhardt (2013), questões como normatividade (característica inerente à instituição escolar, existente por uma convenção social-histórica), comprometimento conjunto e situatividade assumem papeis consistentes no novo cenário educacional, ao mensurar o que significa ser um aprendiz e o que as situações de aprendizagem significam para esse aprendiz. De posse dessa reflexão, conclui-se que a escola III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 245 ainda prende-se a uma visão muito institucionalizada, e que ao longo do tempo promoveu, com suas antigas práticas, uma espécie de silenciamento do aluno, porque não reconhecia as potencialidades cognitivas com as quais esse indivíduo educando chegava à escola. Se o objetivo é, pois, motivar o aluno, levando em consideração suas habilidades cognitivas, despertar nele o gosto para a leitura do texto literário e criar um saber sobre a literatura, é algo que cabe à escola. O papel do professor como mediador das atividades que se direcionem à leitura, é tarefa que deve permear o contexto das práticas escolares de leitura literária. Entretanto, o que é normalmente reproduzido pelos livros didáticos de Língua Portuguesa no ensino fundamental, é o trabalho fragmentado do texto literário, servindo apenas de pretexto para análises gramaticais normativas e que não promovem nenhum tipo de reflexão em relação a própria linguagem. E como a leitura, na sua integridade se perde, em função da fragmentação do texto literário, também esse modelo anula, em grande parte, a própria natureza da leitura do texto literário. No trecho abaixo, Chartier explicita alguns aspectos sobre a leitura do texto literário: não é somente uma operação abstrata de intelecção; ela é engajamento do corpo, inscrição num espaço, relação consigo e com os outros e a materialidade, segundo a qual o texto é dado ao leitor, que contribui largamente para modelar suas expectativas, além de convidar à participação de outros públicos e incitar novos usos. (CHARTIER, 1994. p.16). As considerações feitas sobre a leitura do texto literário na escola apoia-se também na dimensão plural acerca da diversidade escolar que cada comunidade é inserida, pois cada escola apresenta uma realidade, cada grupo de alunos se insere num determinado contexto social e possuem saberes prévios bem distintos. Portanto, fica claro que não é possível desenvolver um trabalho eficiente com os textos do gênero literário, se não houver a conscientização de que não é possível admitir que a simples atividade de leitura seja considerada a atividade escolar de leitura literária. Refletindo sobre o leitor e o espaço que lhe é conferido pela escola pública, Geraldi (1985, p.87) afirma que “no microcosmo da sala de aula (...) talvez sejamos nós, professores, o melhor informante para nossos alunos. Rodízios de livros entre alunos, bibliotecas de sala de aula, biblioteca escolar, frequência a bibliotecas públicas são algumas das formas para iniciar este circuito”. Para a execução didática eficiente de tal tarefa, que é o trabalho com o texto do gênero crônica, é preciso levar em consideração atividades relativas ao ensino desse gênero, Nas fronteiras da linguagem ǀ 246 considerando os saberes prévios dos alunos, de forma a dotá-los de uma melhor capacidade escrita, inclusive, promovendo uma possível consciência autoral no aprendiz. Essas atividades têm um caráter de reformulação qualitativa no ensino de um gênero, a crônica, bem como apostam no protagonismo autoral, literário e metacognitivo do aluno. 3. O trabalho didático com o gênero crônica “escolar” e as estratégias metacognitivas Devido a seu traço dissertativo, ensaístico e opinativo, muitas crônicas convidam o leitor a um posicionamento crítico a partir da situação abordada na narrativa. E esse aspecto é o que mais chama a atenção nos textos de crônica inseridos nos livros didáticos. Tirando o aspecto de base interpretativa a que as questões dos livros se agarram e que são somente superficiais no trabalho com a linguagem, aproveitar esses textos de crônica escolar em atividades que suscitem o uso das habilidades cognitivas e metacognitivas do aluno aprendiz, passa a ter um valor didático bem mais aplicável e consistente, pois insere o aluno no contexto literário, discursivo e linguístico. Não só a leitura da crônica escolar, nesta abordagem, se torna importante, mas também colocar o aluno frente a esse texto, confrontar os saberes prévios e conhecimentos individuais que cada aprendiz traz consigo, arranjar e reformular questões linguísticas e gramaticais. A produção escrita de um texto no formato da crônica escolar é outra atividade didática fundamental, quando o aprendiz percebe a importância da sua escrita, como uma prática social, bem como ele na prática escrita, melhora seu desempenho. Outra condição necessária que se deve explorar é fazer com que o aluno enxergue a atividade escrita como uma prática que se faz necessária para toda a sua vida e que a melhor saída é trabalhar o seu convívio com ela da forma mais natural possível. É preciso mensurar para o aluno o valor da escrita, pois é uma das formas do indivíduo se fazer notado enquanto sujeito ativo na sociedade. Os próprios estudos linguísticos mais recentes apontam para uma nova metodologia de ensino que considera essencial ter a escrita como uma prática constante, como afirma Moita Lopes (1994). Com isso, a escola assume um papel importante na orientação do indivíduo para a prática da escrita, ao encarar a escrita como um processo, pois escrever é um processo que envolve inúmeras fases. A visão da linguística a esse respeito nos demonstra que A escrita é uma ativdade que envolve várias tarefas, às vezes sequenciais, às vezes simultâneas. Há também idas e vindas: começa-se uma tarefa e é preciso voltar a uma etapa anterior ou avençar para um aspecto que seria posterior (GARCEZ, III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 247 2002,P.14). Assim sendo, o processo de escrita da crônica por parte do aprendiz engloba também uma atividade cognitiva sequencial e o uso de estratégias metacognitivas na produção dessa escrita, podem ser traduzidas em etapas de arranjar, rearrumar a linguagem e construir um significado para seu texto, isto é, para que ele assuma a condição de ser inserido num dado gênero, como a crônica escolar. Neste momento, o aprendiz põe em ação uma consciência metalinguística acerca de sua escrita e esta também é considerada uma habilidade metacognitiva, pois a atividade metalinguística aparece pelas atitudes reflexivas e intencionais na construção do texto. Logo, o trabalho com o texto do gênero crônica escolar, baseado no uso de estratégias metacognitivas, torna o aprendiz capaz de produzir esse gênero, compreendido a partir de sua intencionalidade discursiva, suas condições de produção e suas peculiaridades linguísticas que o tornam um texto dessa natureza. Consequentemente a isso, a escola assume a sua condição de ensino natural e realiza a tarefa de trabalhar a escrita do indivíduo como um processo gradual, desmistificando assim, a velha ideia de que escrever é um dom. Conclusão Apresentamos neste artigo um estudo com base nas pesquisas da área da Cognição e Metacognição, aplicado ao trabalho do professor, em sala de aula, com o gênero crônica escolar, que, configurada nesse padrão seria, portanto, uma narrativa breve com pouca tensão, um texto ligeiro (no sentido de rápida leitura). Outro ponto importante para se entender este tipo de crônica, muito publicada em nossos livros didáticos de Língua Portuguesa no ensino fundamental, é o fato de sugerir grande aproximação entre autor e público, pois, conforme afirma Candido (1992), “fala de perto ao nosso modo de ser mais natural”. Neste trabalho, refletiu-se ainda sobre o ensino da crônica enquanto gênero literário escolar e a aplicabilidade de uma proposta de intervenção em sala de aula do ponto de vista cognitivo e que leve em consideração o aluno enquanto aprendiz, detentor de uma subjetividade. Assim, a proposta aqui apresentada traz o aluno para o centro do cenário educacional, priorizando as suas identidades situadas, a fim de compreender as formas como esses aprendizes constroem significados múltiplos em relação à leitura do texto literário e a sua consequente produção escrita. Em suma, apresentamos, neste artigo, os saber (es) do aluno sobre o gênero crônica, Nas fronteiras da linguagem ǀ 248 como esses saberes se constroem individual e coletivamente no ambiente escolar, bem como o que esse gênero pode representar para esse aluno, sobretudo por ser um gênero muito comum, previsto pelos currículos escolares do 9º ano do ensino fundamental. Referências BAKHTIN, M. A estética da criação verbal. Trad. M.E.G. Pereira, São Paulo: Martins Fontes, 1979/2000. ______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979. BARTHES, R. A morte do autor. In: _______. O rumor da língua. São Paulo; Brasiliense, 1988. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: História. Brasília: MEC/SEF, 1998. RESOLUÇÃO SEEDUC Nº 4.866 DE 14 DE FEVEREIRO DE 2013. Acesso em: 21 nov. 2014. RIO DE JANEIRO. Currículo Mínimo – Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro, 2013b. CANDIDO, Antonio. 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Nas fronteiras da linguagem ǀ 250 LÍNGUA DISCURSIVA [E FORMAS DE VIDA] NOS MANUSCRITOS DE SAUSSURE [Voltar para Sumário] Ana Paula El-Jaick É comum se responsabilizar Ferdinand de Saussure pela paternidade da ciência da linguagem, a linguística. O mais intrigante, contudo, é que o DNA era atestado em corpo textual alheio. Afinal de contas, é sabido que foram notas de alunos, feitas durante cursos que Saussure professava em Genebra, que fizeram nascer o Curso de linguística geral1 – ou seja, não foi de próprio punho que nasceu a obra que o fez notório entre seus pares, pois o CLG é um livro escrito depois da morte do autor, por Charles Bally e Albert Sechehaye, em 1916, a partir das referidas anotações. Desse modo, é evidente a dificuldade de recuperar o pensamento de Saussure (quer dizer, é difícil recuperar o pensamento de qualquer autor, mas, no caso dele, isso se torna ainda mais crítico). Porém, a publicação de material que se encontrava restrito à consulta na Biblioteca pública e universitária de Genebra, material esse que vem a ser um conjunto de manuscritos descobertos em 1996 na estufa do hotel da família de Saussure nessa mesma cidade, faz renascer o autor. Antes de começar qualquer análise acerca dos manuscritos de Saussure, quero ressaltar a grande beleza desses textos devido a seu sopro confessional: Saussure escreve com uma mão hesitante, transbordando dúvidas. Nos manuscritos, então, vemos o mestre genebrino tateando através da complexidade do objeto que elegeu para investigar; vemos o linguista expondo (à sua revelia, visto que esse não era um material para ser publicado) suas dúvidas a seus discípulos. Encontramos, assim, um Saussure em busca das “verdades fundamentais” da linguagem humana; um Saussure buscando argumentos para fixar um ponto de vista legítimo sobre a linguagem. Nos manuscritos, conforme teorizaram os prefaciadores Bouquet e Engler, Saussure percorre três campos de saber: uma epistemologia para essa nova ciência que é a linguística; uma reflexão prospectiva sobre a disciplina linguística a ser ministrada em cursos de 1 Doravante CLG. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 251 graduação; e (o ponto a que mais darei destaque neste meu escrito) uma especulação analítica sobre a linguagem que o próprio Saussure chamou, por vezes, de filosófica (Bouquet; Engler, 2002, p.12). Previno então meus leitores de que, se avisei sobre a dificuldade da reconstrução do pensamento saussuriano, por outro lado devo dizer que a novidade trazida pelos manuscritos pode, também, ser profícua para se ler um Saussure, digamos assim, “pós” estruturalista, isto é, para se ver um autor a partir de novo ponto de vista segundo o qual este já percebia questões sobre a linguagem humana que foram postas tempos depois de sua ideia de língua como sistema de signos. Nesse sentido, vou aproximar Saussure de dois desses autores (pósmodernos), J. Derrida e L. Wittgenstein, para mostrar um Saussure que parece ter reconhecido uma linguística inessencial – ou, nos termos de autores ditos pós-estruturalistas, uma linguística discursiva, uma linguística do acontecimento, uma ideia de linguagem como forma de vida. De fato, pretendo trazer elementos dos manuscritos para se pensar em lampejos de formulação por uma linguística saussuriana do acontecimento (entendendo acontecimento como uma possibilidade de fixar a linguagem de forma apriorística, posto que ela acontece no ato de fala). Isso se dá quando Saussure procura corrigir alguma tentativa de se pensar o sentido como podendo ser apriorístico e material. Em vez disso, o que Saussure afirma haver é um sentido sem lastro essencial; afinal, um elemento só diz seu valor diante de outros elementos de mesma ordem. Além disso (questão que foi ressaltada exaustivamente por um dos maiores comentadores de seus manuscritos, Loïc Depecker (2012)), e mais importante: Saussure enfatiza em seus escritos que o valor deve ser entendido, antes de tudo, como tendo um caráter social. Os valores estão, logo, na diferença das relações entre os signos, na différence das significações estabelecidas pelas relações entre os signos, “mais a atribuição anterior de certas significações a certos signos ou reciprocamente. Há, então, antes de tudo, valores morfológicos: que não são ideias e também não são formas” (Saussure, 2002, p.31). Isso quer dizer que, num certo sentido, os valores não existem – pois sequer eles são a forma, já que eles só existem na relação com outras formas. O que há é negação: a diferença das “figuras vocais” (que, no CLG, são definidas como “imagens acústicas”) somadas à différence dos sentidos valorados no sistema linguístico: Todo o estudo de uma língua como sistema, ou seja, de uma morfologia, se resume, como se preferir, no estudo do emprego das formas ou no da representação das ideias. O errado é pensar que há, em algum lugar, formas (que existem por si Nas fronteiras da linguagem ǀ 252 mesmas, fora de seu emprego) ou, em algum lugar, ideias (que existem por si mesmas, fora de sua representação) (Saussure, 2002, p.32). Podemos dizer, então, que, para Saussure, a língua é diferença: a língua é um “oceano de diferenças” – a essência da linguagem é negativa, diferencial. Propositadamente lancei mão do termo francês différence aqui para estabelecer uma relação no mínimo instigante com outro francês – que, a rigor, veio a desconstruir Saussure: o filósofo da desconstrução Jacques Derrida. É conhecido o jogo de palavras que Derrida faz com différance/différence. Derrida joga esse jogo com o intuito de mostrar como essa diferença só acontece e pode ser percebida na escrita, uma vez que, na fala, ela desaparece (a pronúncia da expressão francesa é a mesma nos dois casos). Ele propõe, dessa forma, um novo conceito de escrita a que ele chama de grama ou différance:2 “A différance é o jogo sistemático das diferenças, dos rastros de diferenças, do espaçamento, pelo qual os elementos se remetem uns aos outros” (Derrida, 2001, p.33). A différance é o jogo das diferenças que faz com que um elemento sempre remeta a outro e, assim, nada mais haja que diferenças e rastros de rastros [trace]. De acordo com o próprio Derrida: “A différance não é nem uma palavra, nem um conceito” (Derrida apud Stone, 2000, p.88) – e, ouso dizer, é um herdeiro daquilo que Saussure rabiscou em seus manuscritos. Então, ousarei dizer mais: a diferença saussuriana se aproxima da errância derridiana, posto que as formas-sentido, os valores são erráticos, flutuantes: 1º Um signo só existe em virtude de sua significação; 2º uma significação só existe em virtude de seu signo; 3º signos e significações só existem em virtude da diferença dos signos (Saussure, 2002, p.37). O que há, de acordo com Saussure, é diferença de formas e diferenças de significações – ou seja, “coisas já negativas em si mesmas” (Saussure, 2002, p.42). Como já disse repetidamente, meu objetivo aqui é atentar para esse Saussure pós-estruturalista que já previa a necessidade de se ater ao emprego (vou deliberadamente chamar de uso) das formas – para só então ser possível o estudo de uma língua. Realmente, Saussure afirma não haver formas que pairam “fora do seu emprego” – eu diria: fora do seu uso. Pensar que haveria formas materiais é quase como pensar na realidade da quadratura do círculo. Pensar a língua em seu uso aproxima Saussure das perspectivas da linguagem ordinária, que busca discutir os problemas centrais da tradição filosófica através da análise da linguagem comum. Entre tais perspectivas encontra-se a do assim chamado segundo 2 “Obviamente, não se trata de recorrer ao mesmo conceito de escrita e de inverter simplesmente a dissimetria que colocamos em questão. Trata-se de produzir um novo conceito de escrita. Pode-se chamá-lo grama ou différance” (Derrida, 2001, p.32). III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 253 Wittgenstein. Essa aproximação se torna ainda mais palpável quando pegamos a afirmação de Saussure de que a forma fora de seu emprego é vazia e a juntamos ao aforismo wittgensteiniano segundo o qual a linguagem fora de uso é “quando a linguagem entra em férias” (Investigações Filosóficas § 38).3 Pensar a língua em seu uso também pode aproximar Saussure daqueles que entendem a linguagem como presença – ou seja, a língua existe na efemeridade da pronunciação, quando abrimos a boca para falar (uma vez, duas vezes, quinhentas vezes...). A língua não é um ente concreto – para Saussure, a língua é (Saussure, 2002, p.35). Não há uma essência para além da aparência da língua – as expressões linguísticas valem no uso que se faz delas. Admitir que o objeto estudado pelo linguista só pode ser definido em seu uso é também admitir que a delimitação das unidades linguísticas têm fronteiras, limites plásticos, móveis. A questão da delimitação, de fato, recorre nos manuscritos saussurianos. Saussure pretende delimitar unidades linguísticas – mas, para tal, é preciso que essa unidade seja significativa: a unidade linguística, diz Saussure, só pode ser determinada por sua significação. Não obstante, a significação só se dá pela diferença: “É a diferença que torna significativo, e é a significação que cria também as diferenças” (Saussure apud Depecker, 2012, p.74). Não obstante, para que a unidade linguística seja significativa, é preciso verificar seu valor: “É o próprio valor que fará a delimitação; a unidade não é delimitada fundamentalmente” (Saussure apud Depecker, 2012, p.74). Admitir que o objeto estudado pelo linguista só pode ser definido em seu uso é também admitir que é no plano discursivo que ocorrem todos os tipos possíveis de mudança com a linguagem – tanto modificações no plano gramatical, quanto no plano fonético etc. (Saussure, 2002, p.86). Nessas modificações também se incluem os neologismos, pois é apenas se pensarmos na língua como uma linguagem discursiva – falada de improviso – que se faz possível produzir formas novas. É claro que podemos vislumbrar certa equivocidade de Saussure nesta formulação. Assim, ao mesmo tempo em que podemos concluir que as entidades reconhecidas como elementos da linguagem, simplesmente, não existem, por outro lado, em outras passagens, esses elementos (conforme também está presente no CLG) são da ordem da mente – significado e significante (traduzidos por “significação” e “signo”, Saussure, 2002, p.22) são entidades presentes em nossa consciência. Nesse sentido, na seção “II. Antigos Item”, Saussure escreve: “A frase só existe na fala, na língua discursiva, enquanto a palavra é uma 3 Doravante vou me referir à obra Investigações Filosóficas como IF. Nas fronteiras da linguagem ǀ 254 unidade que vive fora de todo discurso, no tesouro mental” (Saussure, 2002, p.105, grifo nosso). Vemos que a segunda parte do seu desenvolvimento (ou seja, “enquanto a palavra é uma unidade que vive fora de todo discurso, no tesouro mental”) parece contradizer a discursividade que o linguista havia formulado anteriormente. Para além dos sentidos contrários passíveis de serem interpretados aqui, entendo que o interessante é vermos um Saussure que se coloca perguntas – antes de afirmar uma teoria da linguagem. Na parte intitulada “Nota sobre o discurso”, Saussure faz uma afirmação e uma pergunta numa mesma frase: “A língua só é criada em vista do discurso, mas o que separa o discurso da língua ou o que, em dado momento, permite dizer que a língua entra em ação como discurso?” (Saussure, 2002, p.237) Ele próprio esboça uma resposta em que podemos vislumbrar o linguista pensando em voz alta. Ele responde à sua própria pergunta afirmando que os conceitos estão revestidos de uma forma linguística no sistema. Porém, há um jogo através do qual tais conceitos formarão o DISCURSO – e aí vem a pergunta: qual é esse jogo (Saussure, 2002, p.237)? A resposta de Saussure é que a língua não tem substância, não tem matéria. Daí que as “entidades” linguísticas não têm um fundamento absoluto. As entidades linguísticas são, tão somente, “LUGARES de diferença”. A linguagem não é essencial; nada nela é da ordem do necessário. Antes, estamos no campo da antimatéria; estamos no campo das possibilidades. Afinal de contas, como Saussure reconhece: a língua é um objeto por demais complexo. Referências BOUQUET, S; ENGLER, R. “Prefácio”. In: SAUSSURE, F. de. Escritos de Linguística Geral. São Paulo: Editora Cultrix, 2002. DEPECKER, L Compreender Saussure a partir dos manuscritos. Tradução de Maria Ferreira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. DERRIDA, J. Posições. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. SAUSSURE, F. de. Escritos de Linguística Geral. Organizados e editados por Simon Bouquet e Rudolf Engler. Tradução: Carlos Augusto Leuba Salum; Ana Lucia Franco. São Paulo: Editora Cultrix, 2002. ______. Curso de linguística geral. São Paulo, Editora Cultrix, s/d [1916] STONE, M. Wittgenstein on deconstruction. In: CHARY, Alice & READ, Rupert (Orgs.) The new Wittgenstein. London: Routledge, 2000. WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Tradução: José Carlos Bruni. São Paulo: III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ Abril Cultural, 1975 (Coleção Os Pensadores). 255 Nas fronteiras da linguagem ǀ 256 DA LIBERDADE MASCULINA: REFLEXÕES SOBRE KAREN BLIXEN E ELENA FERRANTE [Voltar para Sumário] Ana Paula Raposo (UFMG) Na realidade editorial contemporânea, basta se folhear um livro para perceber que o texto não se apresenta sozinho, existem aparatos textuais que o cercam. Esses aparatos se encontram dentro e fora do livro, como aponta o teórico da Literatura Gérard Genette, em sua obra Paratextos editoriais. Genette faz distinção de paratextos peritextuais e epitextuais: os peritextos encontram-se na obra e os epitextos encontram-se fora da obra – geralmente, em algum tipo de suporte midiático. Neste ensaio, tento refletir sobre a imagem de escritora de Karen Blixen, a partir dos epitextos, considerando também os postulados da crítica biográfica. A sedução do arquivo Durante anos, a crítica literária se ocupou em buscar o significado único e finito de obras literárias. Até que o leitor ganhasse espaço nos estudos literários, as diversas correntes de teoria e crítica literárias buscavam o sentido do texto tal que o autor desejava. Acreditava-se então que o escritor guardava o segredo da obra. Com o desenvolvimento de outros pensamentos teóricos, a pesquisa nos arquivos mostra-se eficiente e sedutora. Sedutora, pois remete à promessa de se achar a origem da obra literária, de se alcançar a 'real' intenção do autor, de se encontrar a verdade da obra literária, desvendar o segredo que o autor guarda. A pesquisa nos arquivos será eficiente à medida que tomarmos o arquivo como uma figura epistemológica, intercambiando outras práticas disciplinares, como a arquivística, por exemplo.1 Para não cair na armadilha de desvendar os segredos do autor, é preciso estar ciente de que o discurso que se contrói a partir deles não é linear, como deseja a historiografia. Dois conceitos iluminam o caminho contrário ao caminho do discurso histórico: o conceito de ruína 1 MARQUES. O arquivo literário como figura epistemológica, p. 15. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 257 de Walter Benjamin e o conceito de resto de Giorgio Agamben, pois “constituem-se em potência crítica do arquivo, evidenciando a não coincidência entre os fatos literários, os documentos e materiais do arquivo, e as interpretações que se fazem dele”.2 Essencialmente, a crítica biográfica propõe o mesmo olhar crítico aos arquivos, para que se evite a famosa questão: “A arte imita a vida? Ou a vida a imita a arte?”. Sobretudo nos estudos do gênero biográfico, em que as discussões perpassam também pelos polos da realidade versus ficção.3 Finalmente, é importante destacar que a pesquisa nos arquivos e nas fontes primárias promove a interdisciplinaridade, além de problematizar “categorias canônica dos estudos literários, tais como: texto, obra, autor, valor estético universal [...]”.4 A investigação dos paratextos perpassa igualmente por essas categorias, é pensando nelas que oriento este ensaio. O epitexto Na década de 1980, Gérard Genette escreve Palimpsestos: a literatura de segunda mão, livro em que cunha o termo paratexto. Nesta obra, Genette afirma que os paratextos “fornecem ao texto um aparato (variável) e por vezes um comentário”5 e que são “espaços privilegiados da dimensão pragmática da obra, isto é, da sua ação sobre o leitor – espaço em particular do que se nomeia sem dificuldade, a partir dos estudos de Philippe Lejeune sobre a autobiografia, o contrato (ou pacto) genérico.”6 Mais tarde, ao desenvolver o termo em Paratextos editoriais, Genette define o paratexto como “aquilo por meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e de maneira mais geral, ao público”,7 constituído de nome de autor, título, prefácio, ilustrações, notícias de jornais, resenhas etc. Mas não se trata somente de um lugar de transição – se trata também de um lugar de transação em que se permite ao autor e ao editor fornecer ao leitor informação e interpretação para “uma melhor acolhida do texto” e para “uma leitura mais pertinente”.8 Esses limiares do texto – que convidam o leitor a manusear, folhear e finalmente ler – abordam instâncias que são discutidas pela crítica literária. 2 MARQUES. O que resta nos arquivos literários, p. 199. SOUZA. A crítica biográfica, p. 19-20. 4 MARQUES. O arquivo literário como figura epistemológica, p. 20. 5 GENETTE. Palimpsestos: a literatura de segunda mão, p. 13. 6 GENETTE. Palimpsestos: a literatura de segunda mão, p. 14. (grifo do autor) 7 GENETTE. Paratextos editoriais, p. 9. 8 GENETTE. Paratextos editoriais, p. 10. 3 Nas fronteiras da linguagem ǀ 258 Enquanto o peritexto editorial se ocupa dos paratextos no livro, o epitexto “não se encontra anexado materialmente ao texto no mesmo volume, mas que circula de algum modo ao ar livre, num espaço físico e social virtualmente ilimitado.”9 Basicamente, os epitextos públicos são os meios de que o leitor usa para tomar conhecimento de um livro, “uma entrevista do autor – quando não por meio de uma resenha num jornal ou de uma recomendação boca a boca [...]”. Tendo em mente que o paratexto adiciona comentário ao texto e ajuda na circulação da obra, o epitexto talvez seja a potência que mais atinge o público. É preciso reconhecer que além dos epitextos públicos (entrevistas, conversas, debates e colóquios etc.) Genette coloca outros elementos epitextuais como epitextos privados. O que os distingue é a intenção de publicação, pois em razão do caráter íntimo dos diários e das correpondências, elas não têm como destinatário final o público. No epitexto público, o autor dirige-se ao público, eventualmente por meio de um mediador; no epitexto privado, dirige-se primeiramente a um confidente real, percebido como tal e cuja personalidade influi nessa comunicação, chegando a modificar sua forma e conteúdo.10 Dessa forma, a principal diferença é o destinatário dos epitextos. Nos epitextos públicos, o destinatário nem sempre é o leitor, mas o público do veículo de comunicação em que se publica a entrevista, por exemplo. Genette chama atenção para os fragmentos deixados pelo autor nestes epitextos públicos, fragmentos de informação que adicionam comentário ou modos de interpretação da obra. Uma afirmação do autor me parece relevante: [...] o epitexto é um conjunto cuja função paratextual não tem limites precisos, e no qual o comentário da obra se difunde indefinidamente num discuso biográfico, crítico ou outro, cuja relação com a obra é às vezes indireta e, no caso extremo, indiscernível.11 Os fragmentos encontrados no peritexto em que há reflexões do próprio autor sobre a literatura e sobre processo de composição são os pontos fundamentais de que se vale a pesquisa na crítica biográfica.12 Eneida Maria de Souza reforça essa ideia e afirma que este tipo de pesquisa “desloca o lugar exclusivo da literatura como corpus de análise e expande o 9 GENETTE. Paratextos Editoriais, p. 303. GENETTE. Paratextos Editoriais, p. 327. 11 GENETTE. Paratextos Editoriais, p. 305. 12 FREITAS. O escritor e seu ofício em busca da Teoria da Literatura, p. 190. 10 III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 259 feixe de relações culturais”13, uma vez que a crítica biográfica está entre a teoria e a ficção, documento e literatura. Voltada aos aspectos editoriais, a teoria de Genette estima, por vezes, as circunstâncias publicitárias. Destaco a entrevista, neste caso, colocada pelo autor como um “jogo social” em que a necessidade de se “lançar” a obra ao público se torna presente. Por esta razão, as entrevistas com autores têm caráter descritivo, há necessidade de se fazer leitura de partes da obra, descrever o enredo etc. Assim, pelo mesmo motivo, é possível identificar “clichês intercambiáveis, estoque de questões típicas para o qual rapidamente constituiu-se um estoque de respostas típicas [...]”.14 Aos romancistas, se pergunta principalmente sobre os traços biográficos da obra ou sobre a existência de chaves na obra, por exemplo. Gostaria de salientar que, apesar do cunho editorial/publicitário que se tem na obra de Gérard Genette, a matéria-prima é a mesma para os estudos da crítica biográfica. Essas fontes primárias podem ser um meio de se investigar a literatura, problemas sociais, as ligações externas da produção do escritor etc., como também podem intermediar a Teoria Literária e o objeto de estudo. Se pensarmos no gênero da entrevista, as teóricas Eneida Maria de Souza e Rachel Esteves Lima acreditam que, uma vez que ela está fora do espaço privado, como o da correspondência, por exemplo, o entrevistado assume um aspecto “performático”, que contribui para a imagem e os mitos da instância do escritor.15 A imagem do escritor No começo do século XX, os formalistas russos tentaram afastar do texto literário aspectos como o contexto histórico, social e biográfico de um autor com a intenção de, na teoria literária, estudar o texto a partir de valores puramente estéticos. No final da década de 1960, Roland Barthes com "A morte do autor" e Michel Foucault com "O que é um autor?", impulsionados pelo formalismo russo, colocam em discussão o conceito de sujeito/autor. O desaparecimento do autor desdobrou-se em propostas de noções literárias como autor ideal, autor-indivíduo, função-autor, autor como leitor, leitor como autor etc. No entanto, posteriormente à publicação de “A morte do autor”, Roland Barthes reconhece “a presença do autor não mais como ausente do texto, mas na condição de ator e de representante intelectual 13 SOUZA. Crítica cult, p. 111. GENETTE. Paratextos editoriais, p. 318. 15 LIMA. A Entrevista como gesto (auto) biográfico, p. 41. 14 Nas fronteiras da linguagem ǀ 260 no meio acadêmico e social.”16 Barthes recorre à psicanálise lacaniana, à semiologia e ao teatro de Brecht para identificar o autor como sujeito crítico. A partir do momento em que um autor assume a personagem de escritor, isto é, “uma identidade mitológica, fantasmática e midiática”17, as imagens deste sujeito são construída a partir de diversas leituras, anacrônicas ou sincrônicas, aí incluídas também as imagens dos autores ausentes ou mortos. O ponto central aqui é o deslocamento do autor, da assinatura de uma obra para o escritor, figura intelectual e agente cultural. O autor constroi sua imagem partindo do imaginário de escritor. Me parece interessante somar à questão da imagem do escritor o uso de pseudônimo pelos escritores, baseando-me na discussão que Genette promove no capítulo “Nome de autor”. Acreditando ser o pseudônimo um possível espaço de criação de um escritor, Genette afirma: “Claro está que o pseudônimo é uma atividade poética, e algo como uma obra. Se você sabe mudar de nome, sabe escrever.”18 Portanto, para Genette, o pseudônimo pode ser um modo de reforçar a autenticidade do autor, para enfraquecer ou contestar sua imagem. O pseudônimo também atiça a curiosidade do leitor e Genette cita o estudo de Jean Starobinski sobre o pseudônimo de Stendhal: “quando um homem se mascara ou adota um pseudônimo, sentimo-nos desafiados. Esse homem se recusa a nós. E, em contrapartida, queremos saber.”19 Genette ainda sugere que o uso do pseudônimo pode ser um modo de distinguir a figura do autor da figura do homem privado. A contadora de histórias Isak Dinesen é pseudônimo de Karen Blixen, escritora dinamarquesa que produziu ao longo de sua vida uma série de contos e um livro de memórias, Out of Africa, que tem origem nos anos em que a autora viveu na África, de 1914 a 1931. Hannah Arendt dedica um capítulo à Blixen no livro Homens em tempos sombrios e sem delongas explicita que a condição de escritora nunca foi de fato um desejo dela: “Ela ‘outrora nunca quis ser uma escritora’, ‘tinha um medo intuitivo de ficar presa’, e qualquer profissão, por designar invariavelmente um papel definido na vida, seria uma armadilha, escudando-a contra as infinitas possibilidades da própria vida.”20 Enquanto Ezra Pound clama “Make it new!”21, Blixen declara ser “uma 16 SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p. 116. SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p. 116. 18 GENETTE. Paratextos editoriais, p. 53. 19 STAROBINSKI. Stendhal pseudonyme. Citado por GENETTE. Paratextos editoriais, p. 49. 20 ARENDT. Homens em tempos sombrios, p. 87. 21 COMPAGNON. Os cinco paradoxos da modernidade, p. 9. 17 III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 261 contadora de histórias e nada mais”,22 adotando técnicas romanescas, o que dificulta que seja enquadrada em escolas literárias. A entrevista que desenrola os fios investigativos de Hannah Arendt foi publicada pela coletânea The Paris Review Interviews Writers, em 1977. À época desta entrevista, todas as obras mais importantes já tinham sido publicadas nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, principalmente as duas obras que a estabelecem como escritora renomada: Seven Gothic Tales (Sete Histórias Góticas) e Out of Africa (A fazenda africana).23 Usarei da mesma entrevista, de Eugene Walters, para desenrolar meus próprios fios investigativos. O entrevistador, Eugene Walters, abre a entrevista citando as lendas que surgiram nos Estados Unidos da América acerca da escritora: Ela é na verdade um homem, ele é na verdade uma mulher, ‘Isak Dinesen’ é na verdade uma colaboração de irmã e irmão, ‘Isak Dinesen’ veio aos EUA na década de 1870, ela é parisiense, ele mora em Elsinore, ela fica geralmente em Londres, ela é uma freira, ele é muito hospitaleiro e recebe jovens escritores, ela é dificíl de se ver e vive reclusa, ela escreve em francês, não, em inglês, não, em dinamarquês...24 Percebo que a especulação do, até então, misterioso escritor, também é agravada devido ao pseudônimo. Enquanto os EUA criavam hipóteses, a imprensa dinamarquesa procurava descobrir quem era o escritor dinamarquês que se recusava em escrever na língua nativa. Destaco duas objeções relativas à recusa: a primeira, a recusa à imagem pública, nos EUA; e a segunda, a recusa à identidade nacional, na Dinamarca. No caso de Isak Dinesen, acredito que essas duas objeções tenham um fator comum: a possibilidade de liberdade de escrita. Além disso, o pseudônimo masculino corrobora esta ideia. Principalmente ao relacionar a recepção da primeira obra mais conhecida, Seven Gothic Tales, na Dinamarca: a autora recebeu duras críticas como perversa e pervertida. 25 As formas narrativas de Dinesen se assemelham às formas de narrativas orais e, pessoalmente, este é um dos aspectos mais encantadores em sua obra26. Isak Dinesen escreveu majoritariamente short stories, gênero que, de acordo com Walter Benjamin, “se emancipou da tradição oral [...], que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia a partir das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas” 22 ARENDT. Homens em tempos sombrios, p. 88. Seven Gothic Tales é publicada nos EUA em 1934 e Out of Africa em 1937. 24 WALTERS. Isak Dinesen, p. 4. (Tradução minha.) 25 THURMAN, A vida de Isak Dinesen, p. 295. 26 Conferir DINESEN, Isak. The Blank Page. In: GILBERT, Sandra M; GUBAR, Susan. The Norton anthology of literature by women: the traditions in English. New York ; London: W. W. Norton, 1985. 23 Nas fronteiras da linguagem ǀ 27 262 . Toda a sua obra é influenciada pela contação de histórias e a autora muitas vezes é chamada de “Sherazade dinamarquesa”. Em um de seus contos mais belos, é feita referência às mil e uma noites: “Certamente, eu já contei muitas histórias, muito mais que mil e uma”. 28 Na entrevista, Dinesen declara que: Mas antes, eu aprendi como contar (grifo meu) estórias. Porque, veja só, eu tinha o público perfeito. Os brancos não conseguem mais ouvir uma estória contada. Eles ficam impacientes ou sonolentos. Mas os nativos têm um ouvido manso. Eu contava estórias constantemente, de todos os tipos. E todos os tipos de bobagens. Eu dizia “Era uma vez um homem que tinha um elefante de duas cabeças...” e aí eles ficavam ansiosos para ouvir mais. “Mas Mem-Sahib, como ele encontrou o elefante e como ele o alimentava?”. Eles amavam essas invenções. Eu os encantava fazendo rimas; eles não têm rimas, sabe, nunca as tinham descoberto. Eu diria coisas como “Wakamba na kula mamba” (“a tribo Wakamba come cobras”), o que na prosa os teria enfurecido, mas os divertia na rima. Depois, eles diziam “Por favor, MemSahib, fale como a chuva!”, e então eu soube que eles gostavam, porque a chuva lá é preciosa para nós. Sirvo do ensaio de Walter Benjamin para elucidar a predileção pelas narrativas orais. Acredito que esta predileção esteja vinculada à experiência e à vivência, aos moldes benjaminianos. Em diversas passagens de Out of Africa, a narradora nos mostra a importância da contação de histórias, do calor da lareira, dos ouvidos atentos e da experiência compartilhada neste momento. Ser “uma contadora de histórias e nada mais”, é dar conselhos, é preservar a memória, é ser humana. Acredito piamente que, dentre os fatores analisados, Dinesen buscava enfraquecer sua imagem de escritora, fugindo da responsabilidade de ser uma representante da cultura, uma intelecual, criando sua imagem como uma ‘simples’ contadora de histórias. Paradoxalmente, um contador de histórias carrega a responsabilidade da memória coletiva e cultural – logo, pressuponho que a afirmação de Dinesen é um modo de se desviar da imagem ‘pedante’ de escritora, mas assumindo as mesmas responsabilidades. A outra contadora de histórias Elena Ferrante é pseudônimo de uma escritora napolitana, que publicou na década de 1990 sua primeira obra. Após o sucesso da primeira obra, adaptada para o cinema italiano ainda em 1990, a escritora passou mais de dez anos sem publicar outra obra, à espera de cair no esquecimento. Não se sabe a idade da autora ou seu nome verdadeiro, e da mesma forma 27 28 BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, p. 221. GILBERT; GUBAR. Isak Dinesen, p. 1391. (Tradução minha) III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 263 que o pseudônimo masculino de Blixen gerou especulações, Ferrante tem gerado na grande mídia especulações similares às da Dinamarquesa. Outro ponto de contato entre as escritoras é o alcance mundial depois das publicações em língua inglesa mas teve sucesso semelhante. Em 2012 foi publicada em inglês pela Europa Editions. Enquanto a recepção italiana não tem dúvidas de que é um homem, julgando ser, Domenico Starnone, o público americano tem certeza de ser uma mulher. O crítico literário James Wood publicou no The New Yorker, uma resenha defendendo que “honestidade brutal” na escrita de Ferrante é pertentencente a um feminino a que um homem dificilmente chegará. Numa entrevista recente, no entanto, Ferrante admite ser uma mulher. Como a dinamarquesa Blixen, mais do que escritora, Ferrante diz que se vê como uma contadora de histórias, em outra entrevista, todas dadas por e-mail e por intermédio de seus editores, a escritora diz que: “O que escrevo está cheio de referências a situações e acontecimentos que são reais e verificáveis, mas organizados e reinventados como se nunca tivesse acontecido”. O editor italiano de Ferrante, negou a ideia de que, numa Itália obcecada por celebridades, o anonimato de Ferrante foi uma inteligente jogada de relações públicas. Diz ele: "Não ter um autor significa que ela não ir na TV, não vai a festivais, não coleta prêmios, então você não pode entrar em sua neles, que tipo de estratégia de marketing é issa?”. Mas para alguns teóricos, essa é uma grande estratégia, datando inclusive das primeiras tradições de pseudônimos masculinos usados por escritoras na era vitoriana. Michel Foucault, em “O que é um autor?”, já havia dito que “o anonimato literário não nos é suportável; nós não o aceitamos senão a título de enigma”. A teórica Catherine A. Judd expõe outro ponto de vista no ensaio “Male pseudonym and Female Authority in Victorian England”. Com o advento do pós-estruturalismo e, principalmente, das teorias de Michel Foucalt, Judd analisa o pseudônimo masculino a partir da revisão de teorias literárias feministas, nos anos 1990. Esse movimento desloca o olhar da situação social em que as escritoras se encontravam para a coragem de resistir ideologias hegemônicas dentro do mercado literário. Desta forma, a autora argumenta que o uso do pseudônimo é uma forma de manipulação e de criação de mito de autoria, um meio de ter vantagem na carreira literária. A autora refuta, desta forma, três pontos disseminados por teóritcas como Elaine Showalter, Susan Gubar e Sandra Gilbert. São eles: a) a crença que o mercado literário era preconceituoso, sendo necessário o uso do pseudônimo masculino; b) a necessidade de proteção da identidade, principalmente pela desaprovação da família de que a mulher tenha uma carreira literária e c) o consenso iniciado no século XX de que o Nas fronteiras da linguagem ǀ 264 pseudônimo marcava androgenia, para que a mulher se sentisse “masculinizada antes de pegar na caneta ‘fálica’”.29 Não tenho dúvida de que o pseudônimo foi também uma estratégia editorial para Karen Blixen, mas para Elena Ferrante ainda é cedo para dizer. Referências ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008. BARTHES, Prefácio. In:______. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. IX-XIX. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e historia da cultura.7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. 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O que resta nos arquivos literários. In: ______. SOUZA, Eneida Maria de.; MIRANDA, Wander Melo. Crítica e coleção. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. OTTE, Georg. Linha, choque e mônada: tempo e espaço na obra tardia de Walter Benjamin, 1994. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1994. 29 JUDD. Male pseudonym and Female Authority in Victorian England, p. 251. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 265 SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. SOUZA, Eneida Maria de.; MIRANDA, Wander Melo. Arquivos literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. THURMAN, Judith; RODRIGUES, Aulyde Soares. Isak Dinesen: a vida de Karen Blixen. Rio de Janeiro: Record, 1982. WALTER, Eugene. Isak Dinesen. In: SHEED, Wilfrid. Writers at work: the Paris review interviews: fourth series. Harmondsworth: Penguin Books, 1977. p. 1-19. Nas fronteiras da linguagem ǀ 266 O USO DOS PROCESSOS EM TEXTOS LITERÁRIOS SOB A ÓTICA DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL: UMA ANÁLISE DA VOZ DO NARRADOR E DAS PERSONAGENS EM CONTOS MODERNISTAS [Voltar para Sumário] Anderson de Santana Lins (CELLUPE -UPE)1 Maria do Rosário B. da S. Albuquerque (CELLUPE -UPE)2 Introdução O estudo científico da linguagem humana possui dois sustentáculos: o formalismo e o funcionalismo. Para o eixo formalista, a língua é uma estrutura autônoma, fechada em si mesmo; em oposição, o eixo funcionalista concebe a língua enquanto fenômeno social, sendo influenciada por fatores pragmáticos. Trata-se, portanto, de um mesmo objeto de estudo investigado sob lentes distintas. A Linguística Sistêmico-Funcional faz parte da corrente funcionalista da linguagem. Foi proposta pela Escola de Sidney por Michael K. A. Halliday e seguidores. Trata-se de um quadro teórico-descritivo embasado no uso linguístico. Ou seja, para esta linha de pensamento, a gramática da língua não é desprezada bem como os fatores externos a ela (tais quais os diferentes contextos de uso). Assim, tal arcabouço teórico serve-nos para análise de textos pertencentes aos mais variados gêneros através da qual nossa comunicação é concretizada. O presente artigo busca analisar contos brasileiros: “Um ladrão” de Graciliano Ramos e “O ladrão” de Mário de Andrade, associando-os à teoria proposta por Labov (1972) que propõe uma estrutura para a narrativa, baseada na oralidade. O objetivo é, pois, investigar tal estrutura e sua relação com as escolhas léxico-gramaticais, inseridos no sistema de transitividade proposto pela Linguística Sistêmico-Funcional. Graduando em Letras (UPE Campus Mata Norte). Pesquisador do CELLUPE – Centro de Estudos Linguísticos e Literários e do Projeto ‘Língua em Uso em diferentes contextos sociais’ (LINUS – CELLUPE). 2 Professora Ajunto da Universidade de Pernambuco, Campus Mata Norte. Líder do Grupo de Pesquisa – Centros de Estudos Linguísticos e Literários da UPE(CELLUPE). Professora orientadora do Projeto ‘Língua em Uso em diferentes contextos sociais’ e coordenadora do Laboratório de Língua em USO - LINUS. 1 III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 267 Assim, pretende-se investigar como as escolhas léxico-gramaticais representam o narrador e as personagens nos contos em questão e qual a relação dessas representações com a linguagem literária. Feito isso, nos é possível a identificação das atividades humanas expressas no supracitado gênero literário e da realidade que se retrata na e pela linguagem, afinal, é através da linguagem que falamos de nossas experiências, de pessoas, objetos, abstrações, sentimentos e relações existentes em nosso mundo exterior e interior. A Linguística Sistêmico-Funcional e Transitividade: estabelecendo conceitos A Linguística Sistêmico-Funcional (doravante, LSF), é uma abordagem proposta por Michael K. A. Halliday cujos estudos iniciaram-se na segunda metade do século XX, sob influência das pesquisas antropológicas desenvolvidas por Malinowski, ainda no início do referido século. Conforme lembram Fuzer e Cabral (2014, p. 17), foi a partir de tais investigações que a concepção de língua enquanto manifestação cultural primária de um povo passou a vigorar dentro dos estudos científicos da linguagem. Assim, evidenciou-se a intrínseca relação entre língua e contextos de usos. Fuzer e Cabral (2014, p. 19) explanam acerca da colocação dos “termos ‘sistêmico’ e ‘funcional’ que caracterizam essa abordagem.” Isso porque, para a LSF, a língua é uma organização de sistemas interconectados cujas funções nos servem para a edificação de significados, revelando o nosso mundo, seja ele externo (físico) ou interno (psicológico). Cometemos – ao utilizar a língua – várias escolhas diante das probabilidades oferecidas por tais sistemas linguísticos. No mais, é funcional porque “explica as estruturas gramaticais em relação ao significado, às funções que a linguagem desempenha em textos.” (Idem). O privilégio dos estudos da LSF é, segundo Souza (2006, p. 37), com os “produtos autênticos da interação social, aos quais ela [a LSF] chama de texto.” Afinal, Para Halliday & Mathiessen (2004, p. 3): When people speak or write, they produce text. The term ‘text’ refers to any instance of language, in any medium, that makes sense to some one whok nows the language. To a grammarian, text is a rich, many-faceted phenomenon that ‘means’ in many different ways. It can be explored from many different points of view.3 3 As traduções são de minha responsabilidade: Quando as pessoas falam ou escrevem, produzem texto. O termo "texto" refere-se a qualquer instância da linguagem, em qualquer meio, que faz sentido para alguém que conhece a língua. Para um gramático, o texto é um fenômeno multifacetado e rico que "significa" de muitas formas diferentes. Ele pode ser explorado a partir de muitos pontos de vista diversos. Nas fronteiras da linguagem ǀ 268 É importante ressalvar que, dentro dessa abordagem, um texto – seja ele oral ou escrito – é inserido em dois contextos (cultural e situacional). Ou seja, é produto da interação entre os contextos de usos: O contexto de cultura é a soma de todos os significados possíveis de fazer sentido em uma cultura particular. Dentro do contexto de cultura, falantes e ouvintes usam a linguagem em contextos específicos, conhecidos na lingüística funcional como contexto de situação. A combinação dos dois tipos de contexto resulta em semelhanças e diferenças entre um texto e outro. Os textos que acompanham uma compra de cereais não são os mesmos em uma cidade do interior e em uma capital, por exemplo. (SOUZA, 2006, p. 37) A LSF é, portanto, uma perspectiva teórico-descritiva gramatical que busca, por meio de análises textuais, evidenciar como, onde, porque e para que o homem usa a língua e, sem refutar o contexto no qual o sujeito falante está inserido. Quando utilizamos a língua, realizamos, inconscientemente, três funções simultâneas, conforme Halliday & Mathiessen (2004, p. 29-30): a ideacional, a interpessoal e a textual. Isso significa dizer que toda língua natural, no quadro da teoria sistêmico-funcional, cumpre a com a finalidade de traduzir toda a experiência do mundo humano (exterior ou interior). Os citados teóricos afirmam que todas as línguas dedicam-se a esta função, denominada ideacional. Por meio dela compreendemos a língua enquanto representação. Subdivide-se em duas: experiencial, responsável pela materialização da representação do mundo do sujeito falante; e lógica, cuja responsabilidade se dá através das “combinações de grupos lexicais” (FUZER e CABRAL, 2014, p. 33). O sistema de transitividade, à luz da LSF, encontra-se apregoado à metafunção ideacional da linguagem. Diferentemente da noção de transitividade proposta pela Gramática Tradicional, através da qual o verbo é caracterizado pela presença – ou não – de um complemento, a transitividade, para as teorias desenvolvidas no campo da LSF, “constitui-se como um recurso léxico-gramatical para representar ações e atividades, construídas na gramática (...)”, conforme esclarece GOUVEIA (2009, p. 30). Todas as experiências vivenciadas pelos seres humanos – seja ela de caráter psicológico ou físico – só são transformadas em construções linguísticas devido ao sistema de transitividade. É importante salientar que todas as atividades, atos ou estados que envolvem estas experiências são organizadas, dentro do sistema linguístico, em seis tipos de processos: materiais, mentais, relacionais, comportamentais, existenciais e verbais. Por razões espaciais, apresento de forma breve os conceitos que os norteiam. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 269 Os processos materiais são responsáveis pela materialização das experiências de mundo externo dos participantes – Ator e Meta. São os processos do fazer, do agir, isto é: “dão conta de mudanças no mundo material que podem ser percepcionadas, comprovadas, vistas.” (Ibdem, p. 31). Os processos mentais explanam as experiências de mundo interno (psicológico), indicando afeição, cognição, desejo ou percepção. Envolvem dois participantes – Experienciador e Fenômeno. Os processos relacionais são responsáveis por promover uma relação entre dois seres que se diferem. Usamo-la para caracterizar esses seres de acordo com suas características. Esse tipo de oração classifica-se em: intensivas, possessivas e circunstanciais. Todas se subdividem em: atributivas e identificativas. Os processos comportamentais são usados para definir o comportamento humano fisiológico. Estão entre os materiais e os mentais. O participante é o Comportante, podendo haver o Comportamento. Quanto aos processos existenciais, estes são responsáveis por representar quaisquer coisas que existam ou ocorram. O participante é chamado de Existente, podendo ser um humano ou objeto ou até mesmo uma ação. Os processos verbais, por fim, dão norte ao dizer humano, constituindo o discurso de um indivíduo. Geralmente, envolvem quatro participantes: Dizente, Verbiagem, Receptor e Alvo. A estrutura da narrativa na visão laboviana A estrutura da narrativa é outra base teórica utilizada nesta pesquisa. Desenvolvida por Labov & Waletsky em 1967, a teoria discute sobre a estrutura das narrativas orais. O propósito desta pesquisa é, pois, unificar tal abordagem, estudando a estrutura genérica do conto literário moderno, com base nos citados teóricos. Afinal, sabe-se que há uma forte ligação entre a oralidade e a ficção modernista brasileira. Labov (1972, p. 354, grifo do autor) propõe um estudo aprofundado do que ele intitula “narratives of personal experiencce, in which the speaker becomes deeply involved in rehearsing or even reliving events of his past.”4. Ou seja, as narrativas de experiência pessoal são compreendidas como um meio de resgatar eventos situados no passado do narrador. 4 Tradução: narrativas de experiência pessoal, nas quais o falante torna-se profundamente envolvido na narração ou mesmo nos acontecimentos revividos de seu passado. Nas fronteiras da linguagem ǀ 270 De acordo com o autor, a experiência revivida se dá “by matching a verbal sequence of clauses to the sequence of events which (its is inferred) actually occurred.” (Ibidem, p. 359360).5 No tocante à estrutura da narrativa, é de amplo conhecimento que não há um consenso entre os estudiosos, como aponta Hanke (s/a, p. 118), na delimitação de aspectos obrigatórios de um texto narrativo. Na concepção laboviana, porém, uma narrativa completa possui: a) abstract; b) orientation; c) complicating action; d) evaluation; e) result or resolution; f) coda. (Labov, 1972, p. 363). Em termos gerais, sintetiza-se assim a estrutura da narrativa: Abstract (Resumo) “Do que se trata?” Orientation (Orientação) “Quem? Como? Onde? Quando? O quê?” Complication (Complicação) “O que aconteceu?” Evaluation (Avaliação) “E daí?” Result (Resultado) “Qual o desfecho?” Coda “Então, o que aconteceu?” Quadro 01: A estrutura da narrativa proposta por Labov e Waletsky (1967) Análise e discussão dos resultados Nesta seção encontram-se os resultados dos dados fornecidos através do programa computacional WordSmith Tools: quantidade de processos e sua distribuição ao longo das narrativas analisadas. Foram observadas as escolhas léxico-gramaticais que representam o narrador e as personagens nos contos em questão e qual a relação dessas representações com a linguagem literária contida nos textos modernistas. As tabelas e os gráficos (ver Anexo) evidenciam com clareza algumas particularidades dos textos analisados: “Um ladrão”, de Graciliano Ramos, e “O ladrão”, de Mário de Andrade (doravante T1 e T2, respectivamente). Um olhar atento às escolhas feitas pelos narradores de ambos os textos, ao tecerem suas respectivas narrativas, revelam os processos materiais como, de um modo geral, os mais recorrentes ao longo dos contos. Entretanto, a razão pela qual esse fenômeno ocorre é bastante diferenciada, levando em conta as entrelinhas das narrativas. No Resumo dos textos ocorre o seguinte: em T1, a maior frequência dos processos materiais aponta para um narrador onisciente preocupado em mostrar ao leitor que um ladrão 5 Tradução: pela combinação de uma sequência verbal de orações com a sequência de acontecimentos (que se infere) efetivamente ocorreram. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 271 precisa de habilidades para realizar seu ofício, deixando claro que o protagonista não as tem. Estas habilidades, portanto, se materializam na linguagem por meio de processos responsáveis pela tradução do mundo físico, do fazer humano: “acompanhar”, “aventurar-se”, “andar”, “cometer”, “entrar”, “pisar” e “correr”. Em T2, são os comportamentais que surgem com certa recorrência: isso nos faz crer que o objetivo do narrador onisciente é enfatizar o desespero das pessoas ao tomarem consciência de que algo errado estava acontecendo na vila onde ocorrem as ações da narrativa, atribuindo-lhes comportamentos humanos e criando um suspense na trama, envolvendo o leitor sem que este perceba. Na Orientação, em T1, o resultado encontrado é coerente com o que se esperava encontrar, pois é nesta seção da narrativa que o narrador apresentará as personagens, os espaços e o tempo das ações. Assim, é por meio dos processos relacionais – os mais recorrentes – como “havia sido”, “era”, “tinha” e “estava” que o narrador classifica, indica ou caracteriza os participantes envolvidos na oração. Além dos relacionais, os comportamentais e materiais exercem uma função importante na Orientação do primeiro conto. Tais processos explicita o modo como o ladrão age diante da situação em que se metera. Os exemplos típicos desses processos foram: “esconder”, “escutar”, “fixar” e “enfeitar” (comportamentais); mas também “andar”, “passar” e “mexer” (materiais). Em T2, porém, o resultado foi diferente: os processos materiais, seguidos pelos relacionais, se destacaram no que concerne à frequência no texto. Isso ocorre porque, à medida que vão surgindo, as personagens estão em movimento, realizando algum ato: “(...) porém da mesma direção do moço já chegavam mais dois homens correndo.” (ANDRADE, s/a, p. 32, grifo meu). Esse fenômeno atribui ao texto de Mário de Andrade uma particularidade: movimento. A quantidade de personagens é maior que o conto de Graciliano Ramos, afinal, na ânsia de ajudar a capturar o ladrão, as personagens saem de suas casas, assustadas, e são reveladas aos leitores. A Complicação, em ambos os textos, apresenta uma maior concentração dos processos. Nos dois casos, os materiais se sobressaem. Percebemos, com isso, o valor de tais processos na constituição dos textos narrativos. Eles exercem extrema importância, afinal, traduzem as ações das personagens, trazendo dinamicidade à narração. Em T1, não poderia ser diferente: os processos materiais funcionam como a força motriz catalisadora do desenrolar da narrativa. Porém, os comportamentais registraram uma considerável ocorrência. Tal acontecimento denuncia a função primordial de tais processos Nas fronteiras da linguagem ǀ 272 numa narrativa ficcional, “emprestando um traço comportamental” aos personagens envolvidos. (FUZER e CABRAL, 2013, p. 78). Com a mesma notoriedade surgem os processos mentais presentes na Complicação, em T1: revelam a percepção, dentre outros fatores, que o ladrão possui do mundo ao seu redor. O narrador nos mostra um personagem consciente de suas ações, dissecando suas afeições, sues medos e desejos: Encolheu-se mais, olhou a janela do prédio fronteiro, imaginou que por detrás da janela alguém o espreitava (...). De repente sentiu grande medo, pareceu-lhe que o observavam pela frente e pela retaguarda, achou-se impelido para dentro e para fora do jardim, a rua encheu-se de emboscadas. (RAMOS, 1985, p. 24, grifo meu). Porém na Complicação, em T2, há mais processos materiais, seguidos de mentais e relacionais. Além disso, apresenta um significativo número de processos verbais que ajudam o narrador durante verbalização das personagens. Processos como “dizer”, “contar”, “perguntar”, “responder”, “insultar” e outros dessa natureza reforçam o discurso direto presente na obra. Os processos materiais mais recorrentes aqui foram: “correr”, “recuar”, “abrir”, “virar” e “ir”. Eles reafirmam o caráter de agitação e alvoroço que acomete as personagens cujas nuances psicológicas são pormenorizadas através dos processos mentais, sendo os mais usados “ver”, “querer” e “saber”. Os processos existenciais aparecem aqui com mais frequência do que no conto anterior. Os mais comuns são “haver” e “ter”. Estes cumprem a função de representar a existência de algo, nesse caso, um suposto ladrão que amedronta a vizinhança de uma vila. Na Avaliação dos contos analisados, a distribuição dos processos diverge: em T1, os materiais sucedidos pelos comportamentais, relacionais e mentais são os mais recorrentes; ao passo que em T2, os materiais, seguidos pelos relacionais, mentais e comportamentais são os mais frequentes. É preciso ressalvar que os processos materiais, em ambos os contos, na Avaliação, permanece como fio condutor. Revela a indispensável habilidade do narrador ao apresentar o mundo marginalizado, esmiuçando-o através da linguagem. Outro ponto importante é que, durante a Avaliação, o narrador busca responder à questão “por que a história foi contada?”, “O que a narrativa em questão tem de extraordinária?” ou “Por que ele merece ser narrada?”. Em T1, por exemplo, o narrador está sempre buscando enfatizar o quanto o personagem central é despreparado, carente e solitário. Além disso, ele nos mostra a cosmovisão do ladrão, apontando alguns valores sociais e religiosos do personagem. Para III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 273 isso, recorre aos processos comportamentais e relacionais. “Desconfiar”, “reconhecer”, “ouvir” e “mastigar” são alguns dos exemplos de processos comportamentais; “ser”, “ter” e “ficar” são exemplos dos relacionais que constroem o significado na Avaliação. Na obra marioandradiana, em T2, a Avaliação ocorre por outro motivo: o narrador onisciente procura caracterizar os vários personagens que compõem o conto. Atribuí-lhes nuances, identifica-lhes em termos de espaço e tempo: Chegava o entregador da “Noite”, batia, entrava. Ela fazia questão de não ter criada, comia de pensão, tão rica! Vinha o mulato da marmita pois entrava! E depois dizque vivia sempre com doença chamando cada vez era um médico novo, que tinha só... quinze? Dezesseis anos? entrava, ficava tempo lá dentro. O jornaleiro negava zangado, que era só pra conversar, senhora boa, mas o entregadorzinho do pão dizia nada, ficava se rindo, com sangue até nos olhos, de vergonha gostosa. (ANDRADE, s/a, p. 39). Isso significa dizer que os processos relacionais são, oportunamente, usados pelo narrador. “Ser”, “ter” e “estar” foram os mais recorrentes. No Resultado e Coda, o narrador finalizará sua narrativa. Os processos materiais, portanto, são notórios. É preciso informar as ações finais: o que aconteceu e como terminou. Para isso, o narrador recorre aos processos capazes de traduzir nossas ações externas. Em T1, “girar”, “fazer” e “voltar” são alguns dos processos materiais encontrados. Além desses, no conto de Graciliano Ramos (T1), destacam-se os processos mentais, seguidos pelos comportamentais. O caráter psicológico do conto ganha ênfase no Resultado e Coda. O personagem central é acometido por lembranças, sonhos e desejos tão intensos a ponto de colocar tudo a perder. “Pensar”, “sentir” e “lembrar” traduzem as vivências internas do ladrão. Em T2, o Resultado e Coda apresentam – além dos materiais “trazer”, “ir” e “pegar” – os processos comportamentais, sucedidos pelos relacionais, são importantes na tessitura textual. O suposto ladrão que causara pânico nos moradores passa a ser uma dúvida. Escapa à lente do narrador. O que resta são personagens que se veem presos a uma casual confraternização. O narrador, portanto, apregoa-se a esta situação inusitada e revela-nos, por meio da linguagem, usando os processos comportamentais – como, por exemplo, “rir”, “reunir”, “despedir” e “olhar” – e relacionais – como “ter”, “ficar” e “estar”. Em suma, a investigação do uso dos processos em contos modernistas revela a imprescindível relação entre os processos materiais e textos narrativos. Evidenciou-se, porém, que processos comportamentais, relacionais e mentais são igualmente indispensáveis a tais textos, uma vez que corroboram para a edificação de significados. Nas fronteiras da linguagem ǀ 274 Considerações Finais A partir da distribuição dos processos nos textos analisados, é possível afirmar que as escolhas léxico-gramaticais evidenciam comprometimento social, típico do modernismo brasileiro, presente nas obras. Se no texto de Graciliano o narrador nos revela o retrato da sociedade dentro da casa esmiuçada pelo ladrão, o de Mário de Andrade revela-se nos espaços sociais que norteiam a obra: a vila, os vizinhos, as casas, as personagens. A análise dos contos ficcionais, sob a ótica da transitividade, à luz da LSF, nos permite concluir que podemos ampliar nosso olhar diante dos fatos linguísticos e, dessa forma, aprofundarmo-nos cada vez mais nos textos, buscando responder como, por que, para quê o autor realizou uma determinada escolha léxico-gramatical, sem desprezar os diversos contextos que levaram a sua produção. Referências ANDRADE, M. Contos Novos. Klick editora: São Paulo, s/a. FUZER, C.; CABRAL, S. R. S. Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa. 1 ed. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2014. GOUVEIA, Carlos A. M. Texto e gramática: uma introdução à gramática sistêmicofuncional. Rio de Janeiro: 2009. Disponível em: http://www.pgletras.uerj.br/matraga/matraga24/arqs/matraga24a01.pdf, acessado em: 25 de agosto de 2014. HALLIDAY, M. A. K e MATTHIESSEN, C. M. I.M. An Introduction to Functional Grammar. London: Edward Arnold Publishers, 2004. HANK, M. Narrativas orais: formas e funções. Disponível em: http://revistas.univerciencia.org/index.php/contracampo/article/viewFile/32/31, acessado em: 30 de agosto de 2014. LABOV, W. e WALETSKY, J. Narrative analysis: Oral versions of personal experiences. Seattle: WA: University of Washington Press, 1967. RAMOS, G. Insônia. 20 ed. Record: São Paulo, 1985. SOUZA, Maria Medianeira de. Transitividade e construção de sentido no gênero editorial. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal de Pernambuco. Programa de PósGraduação em Letras. Recife: 2006. Disponível em: http://www.pgletras.com.br/2006/teses/tese-maria-medianeira.pdf, acessado em: 19 de agosto de 2014. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 275 Anexos Material Mental Comportamental Relacional Existencial Resumo 07 03 04 Orientação 10 11 16 22 06 Complicação 189 60 79 29 08 Avaliação 72 31 50 39 06 Resultado 36 13 08 02 01 Coda 02 02 01 Quadro 01: Distribuição dos processos no conto "Um ladrão" de Graciliano Ramos Verbal 01 03 05 08 01 02 Total 15 68 370 206 61 5 Resumo Orientação Material 03 22 Mental Comportamental 01 04 01 04 Relacional Existencial 01 12 - Verbal Total 09 01 40 Complicação 164 50 31 48 11 19 323 Avaliação Resultado Coda 44 30 03 24 06 - 22 12 01 30 09 02 06 - 11 02 - 137 59 06 Quadro 02: Distribuição dos processos no conto "O ladrão" de Mário de Andrade Gráfico 01: Distribuição dos processos no conto "Um ladrão" de Graciliano Ramos Nas fronteiras da linguagem ǀ 276 Gráfico 02: Distribuição dos processos no conto “O ladrão” de Mário de Andrade III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 277 GUERREIRO DO POVO BRASILEIRO? CONTRADIÇÕES, DES/CONTRA/IDENTIFICAÇÃO, RESISTÊNCIA E MEMÓRIA NO DISCURSO SOBRE EDUARDO CAMPOS [Voltar para Sumário] André Cavalcante1 (UFPE) 1. Situando a discussão Em 2014, no Brasil, estávamos voltando a nossa atenção às eleições presidenciais, os presidenciáveis, debates políticos, alianças políticas, etc, que desencadeariam no futuro da nação. Porém, no dia 13 de Setembro desse mesmo ano morre tragicamente, em um acidente aéreo, o então presidenciável Eduardo Campos, ex-governador do estado de Pernambuco. Muito se foi falado sobre esse fato, notícias em telejornais, jornais virtuais e impressos, além também do surgimento de muitos discursos nas redes sociais. Tais discursos perdura(ra)m um longo tempo e por ter ocorrido muito próximo das eleições e também por se tratar de alguém que almejava ser presidente e “não desistir do Brasil2” esses discursos sobre Campos são dificilmente desvinculados dos dizeres sobre as eleições passadas. Hoje, se digitarmos seu nome no buscador Google, encontramos cerca de 57 milhões de resultados, além das páginas do Facebook e Twitter. Nesses textos, tsão encontradas diversos sentidos, sobre um Eduardo político, sobre um herói ou até mesmo um “novo Eduardo”, discursivizado algum tempo após a sua morte.3 Não pretendo, neste trabalho, falar sobre o sujeito empírico nem sobre discursos de determinados órgãos ou personalidades brasileiras, mas as 1 Mestrando em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE. É integrante do Núcleo de Estudos em Práticas de Linguagem e Espaço Virtual (NEPLEV), também da UFPE e Bolsista da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE). 2 Aqui parafraseio um dos slogans de Campos durante a fase que era um dos presidenciáveis. 3 Bem próximo da morte desse político, observei a repetição sobre um Eduardo Herói, que aparentemente todas essas matérias diziam o mesmo e que a partir de um determinado tempo, a partir das contradições inerentes à prática discursiva, esses dizeres sobre Campos ficaram mais diversificados. Nas análises, aprofundarei esse tema. Nas fronteiras da linguagem ǀ 278 discursivizações sobre o ex-governador de Pernambuco quando do período eleitoral de 2014. Focando nesses dizeres sobre esse sujeito, observarei a construção discursiva que alça Eduardo Campos à herói, mas também outros sentidos, contra/desidentificações, resistências a um sentido dominante, assim como o funcionamento das noções Resistência e Memória, como são vistas na Análise do Discurso de linha Pecheutiana. Portanto, faz-se necessário, explanar brevemente sobre a teoria que nos dá suporte teórico-metodológico para esse pesquisa. 2. Teorizações em torno da teoria materialista do discurso O lugar teórico de onde falo, a AD, desde sua fundação, na França, por Michel Pêcheux (1969), propõe uma nova forma de perceber a linguagem e traz ao centro de suas discussões algumas noções deixadas de lado a partir do corte saussureano: sujeito, sentido e história. Uma vez que o paradigma dominante da época era o estruturalismo, essa perspectiva teórica pretendia analisar a linguagem por outro viés que não a análise conteudística, assim, o discurso torna-se o objeto de estudo dos analistas do discurso. Portanto, para romper com os estudos acerca da linguagem na década de 60 do século passado, Pêcheux [1969 (2014, p. 79)] critica o modelo “reacional”, representado pelo behaviorismo e ao modelo “informacional”, de Jakobson, e define o discurso com “efeito de sentidos” (ib. idem, p. 81) entre interlocutores. Visto que a ideologia que interpela os indivíduos em sujeitos do seu discurso, é inevitável produzir discurso sem estar afetado por ela. É a ideologia que produz os efeitos “lapalissade”, as evidências subjetivas e de sentido. A evidência que constitui o sujeito é de base ideológica (via teoria marxista) e inconsciente (psicanálise lacaniana). Através dos esquecimentos 1 e 2, dos quais Pêcheux (1975 [2010, p. 161-162]) teoriza, o sujeito pensa ser origem do seu dizer e que só existe uma forma de linearizar esse discurso. Essas são ilusões necessárias para a prática discursiva, para tanto, também é produzida impressão que o sentido é unívoco. Assim, a AD propõe que sujeito e sentido se constituem mutuamente. Orlandi (2013) discutindo as bases da AD diz que A ideologia [...] não é vista como um conjunto de representações, como visão de mundo ou como ocultação da realidade. Não há aliás realidade sem ideologia. Enquanto prática significante, a ideologia aparece como efeito da relação necessária do sujeito com a língua e com a história para que III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 279 haja sentido. E como não há relação termo-a-termo entre linguagem/mundo/pensamento essa relação torna-se possível porque a ideologia intervém com seu modo de funcionamento imaginário. São assim que as imagens que permitem que as palavras “colem” com as coisas. Por outro lado [...] é também a ideologia que faz com que haja sujeitos. O efeito ideológico elementar é a constituição do sujeito. Pela interpelação ideológica do indivíduo em sujeito inaugura-se a discursividade. Por seu lado, a interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia traz necessariamente o apagamento da inscrição da língua na história para que ela signifique produzindo efeito de evidência do sentido (o sentido-lá) e a impressão do sujeito ser a origem do que diz. Efeitos que trabalham, ambos, a ilusão da transparência da linguagem. No entanto, nem a linguagem, nem os sentidos nem os sujeitos são transparentes: eles têm sua materialidade e se constituem em processos em que a língua, a história e a ideologia concorrem conjuntamente. (ORLANDI, 2013, p. 48) Portanto, é a ideologia que guia toda a teoria do discurso, interpelando os indivíduos à sujeitos e produzindo a impressão de sentido-lá, sentido posto. Afetado por ela (a ideologia) é que ocorrem as discursivizações, mas para tanto é necessário que os sujeitos inscrevam seus discursos em um domínio de saber, uma Formação discursiva (FD), sendo ela “o que pode e deve ser dito” em uma determinada conjuntura. (PÊCHEUX, 1975 [1990, P. 27]) A inscrição do dizer em uma FD pode ocorre através de três tomadas de posição diferentes. Quais sejam: A identificação plena (o bom sujeito): Quando há uma correspondência entre o sujeito enunciador e a forma-sujeito da FD, o sujeito universal da FD, que regula os dizeres que pertencem a esse domínio de saber; (PÊCHEUX, 1975 [2010 p.199]) A contra-identificação (o mau sujeito): ocorre quando “o sujeito da enunciação ‘se volta’ contra o sujeito universal” (Idem, ibidem, p.199). Ocorrendo, portanto, um questionamento, distanciamento, do sujeito enunciador da Forma-Sujeito (Idem, ibidem. p. 199-200) A desidentificação: nesta tomada de posição, o sujeito desidentifica-se com a FD que estava inscrito para identificar-se com outra FD. Pêcheux diz que não há dessassujeitamento, pois não há “fim das ideologias” (Idem, ibidem, p.201). Assim, o sujeito já, inconscientemente, produz sentidos que não são mais permitidos na FD de onde ele enunciava anteriormente. No percurso da teoria, essas noções foram revistas pelo próprio autor em uma fase de reconfiguração da teoria. Na próxima sessão retornaremos à essa questão. Nesse trabalho, iremos analisar, como já dito, como ecoam alguns sentidos nos discursos sobre4 Campos, através da memória, assim como as tomadas de posição e resistências dos sujeitos nas discursividades encontradas na rede. Uma vez que foi apresentada brevemente nossa posição teórica, partiremos para 4 Aqui penso o “discurso sobre”, conforme Mariani. Irei apresentar essa noção nas análises. Nas fronteiras da linguagem ǀ 280 análise, lugar onde também teorizaremos outras noções que guiarão nossa pesquisa. 3. O discurso sobre um herói ou a heroicização (temporária) ? As discursividades que se materializam na rede surgem e desaparecem com grande facilidade, e com pouco tempo outro assunto é o mais comentado do momento. Por isso, nosso corpus está inserido numa temporalidade específica e coincide com o período eleitoral para presidente do Brasil. Observaremos, como já dissemos, o discursos sobre Eduardo Campos e as formas de se contra/des/identificar com esses discursos, assim como o funcionamento da memória nesses discursos e as possibilidades de resistência aos sentido dominante sobre um (não)herói. O discurso sobre foi trabalhado por Mariani em sua tese de doutoramento, segundo a autora, eles são discursos que atuam na institucionalização dos sentidos, portanto, no efeito de linearidade e homogeneidade da memória. Os discursos sobre são discursos intermediários, pois ao falarem de um discurso de (discurso-origem), situam-se entre este e o interlocutor, qualquer que seja. De modo geral, representam lugares de autoridade em que se efetua algum tipo de transmissão de conhecimentos, já que ao falar sobre transita na co-relação entre o narrar, descrever um acontecimento singular, estabelecendo sua relação com um campo de saberes já reconhecidos pelo interlocutor [...] contribui na constituição do imaginário social e na cristalização da memória do passado bem como na constituição da memória do futuro. (MARIANI, 1996, p. 64) No trabalho de Mariani, o corpus de análise são discursos jornalísticos sobre o comunismo, que eram “autorizados” por uma instituição, situando o leitor em relação aquele discurso, sedimentando uma memória do passado e do futuro, cristalizando os sentidos sobre esse dizer. Em nosso trabalho, os discursos em que tem Campos como herói, cujo efeito-fundador5 são os dizeres sobre ele, após sua morte. Por um determinado tempo esses discursos apresentavam uma univocidade 5 Estamos chamando de efeito fundador as dicursivações produzidas a partir da acidente aéreo que ocasionou a morte do Eduardo Campos, observando-o como um marco para os dizeres discursivizados a partir de então. Aqui retomo a noção de discurso/ efeito fundador trabalhado por ORLANDI(1993), porém, esse efeito não instaura efetivamente novos sentidos, mas reorganiza-os no fio do discurso como um ponto de referência. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 281 de sentidos, provocados por uma repetibilidade de dizeres. Nas sequências discursivas (SD) 1 e 2, traremos recortes de matérias sobre esses discursos. SD1. Eduardo Campos é enterrado aos gritos de "guerreiro do povo brasileiro"6 SD2.Mais de cem horas após o acidente aéreo que resultou na morte de Eduardo Campos e de mais seis pessoas, o corpo do ex-governador de Pernambuco foi enterrado há pouco ao lado do avô, Miguel Arraes, no Cemitério de Santo Amaro, em uma sepultura simples, sem luxo, rodeada apenas de flores e placas de mármore com identificação. Fogos de artifício e gritos de "Eduardo, guerreiro do povo brasileiro" marcaram o encerramento da cerimônia. 7 Em SD1, título de uma matéria de um site, trazendo o discurso do outro através das aspas, marca o olhar de alguns sujeitos em relação ao político pernambucano, as identificações com seu discurso e muitas vezes uma filiação àquela redes de sentidos produzidas por esse sujeito. Tal fato chamou a atenção da grande mídia que cobriu várias matérias a esse respeito, muitos outros políticos estavam presentes na cerimônia e a partir da morte dele, muitos discursos foram produzidos, sobretudo, nas redes sociais. Muitos lastimosos e outros produzindo sentidos outros, apagados pelo uníssono que ainda ecoava e produzia sentidos: “Eduardo, Guerreiro do povo brasileiro.”. Esses discursos iam se repetindo, se repetindo, até produzir um efeito de sentido único, mas que se ligava também a outra memória, como em SD2. SD2, além de ser produzida dentro de uma mesma formação discursiva que SD1, FD18, repetindo também os gritos produzidos no velório de Campos, como se fosse dizeres importantes a serem divulgados naquela época, também traz 6 Outras matérias de mesmo funcionamento. Eduardo Campos recebe em funeral homenagem de 'um guerreiro'postado em 18/08/2014 00:12 / atualizado em 18/08/2014 07:30 e Sob gritos de "guerreiro do povo brasileiro", corpo de Campos é enterrado da http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-08/sob-gritos-de-guerreiro-do-povo-brasileirocampos-e-enterrado-no-recife em 17/08/2014 18h55 http://jovempan.uol.com.br/noticias/brasil/politica/eleicoes2014/eduardo-campos-e-enterrado-aosgritos-de-guerreiro-do-povo-brasileiro.html 17/08/2014 18h43 - Atualizado em 17/08/2014 19h06 7 Recorte extraído de http://jovempan.uol.com.br/noticias/brasil/politica/eleicoes2014/eduardo-campos-eenterrado-aos-gritos-de-guerreiro-do-povo-brasileiro.html 17/08/2014 18h43 - Atualizado em 17/08/2014 19h06 8 Aqui, de forma metodológica, estamos chamando FD1 os sentidos produzidos sobre Eduardo Campos como herói. Nas fronteiras da linguagem ǀ 282 o nome do avô “Miguel Arraes”, evocando a memória do parentesco entre os dois pernambucanos. É importante distinguir memória da noção de interdiscurso, ambas trabalhadas na AD, para tanto, traremos Indursky, refletindo sobre esses temas, aponta: A reflexão sobre memória sempre esteve presente no quadro da Teoria da Análise do Discurso, muito embora, nos textos fundadores, esta nomeação ainda não tivesse tido lugar. Pensava-se sobre memória, mas sob outras designações, como, por exemplo, repetição, préconstruído, discurso transverso, interdiscurso. Estas noções foram formuladas no âmbito da Teoria da Análise do Discurso e encontramse reunidas em Semântica e Discurso (Pêcheux 1975[1988]). Todas remetem, de uma forma ou de outra, à noção de memória. Mais exatamente, trata-se de diferentes funcionamentos discursivos através dos quais a memória se materializa no discurso. Portanto, a memória já tinha sido trabalhada em Les Vérités de la Palice9, porém pensada através do funcionamento de outras noções, ainda, para a mesma autora, (idem, p. 70-71) uma característica essencial da noção de memória tal como ela é convocada pela AD: o sujeito, ao produzir seu discurso, o realiza sob o regime de repetibilidade, mas o faz afetado pelo esquecimento, na crença de ser a origem daquele saber. Por conseguinte, a memória de que se ocupa a AD não é de natureza cognitiva, nem psicologizante. A memória, neste domínio de conhecimento, é social. E é a noção de regularização que dá conta desta memória. [...] se há repetição é porque há retomada / regularização de sentidos que vão constituir uma memória que é social, mesmo que esta se apresente ao sujeito do discurso revestida da ordem do não-sabido. São discursos em circulação, urdidos em linguagem e tramados pelo tecido sóciohistórico, que são retomados, repetidos, regularizados. Assim, pela repetibilidade de sentidos vindos do interdiscurso, eles são regularizados no fio do discurso, constituindo uma memória social, sentidos são retomados, a fim de constituir um imaginário cristalizado sobre algo, como sempre estivesse presente. Podemos ver a memória do parentesco de Eduardo Campos com Miguel materializada textualmente nos discursos sobre esse político, Campos, na SD2 “enterrado há pouco ao lado do avô, Miguel Arraes”. Na SD3, essa mesma memória é trazida, porém de forma imagética e verbal. 9 Tradução brasileira: “Semântica e Discurso”. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 283 SD3. 10 Aqui se trata de uma homenagem encontrada em diversas cidades de Pernambuco em que há a fotografia do avô e do neto, ambos ex-governadores de Pernambuco. Nessa SD, a posição das fotografias provoca uma impressão de continuidade, como se um seguisse plenamente o passo dos outros, um sucedendo o outro11, e mesmo que eles tenha falecido, “os sonhos não morrem jamais”, dando mais ima vez um efeito de que há algo a ser continuado, um sonho. Ainda conforme Indursky, “se a memória discursiva se refere aos enunciados que se inscrevem em uma FD, isto significa que ela diz respeito não a todos os sentidos, como é o caso do interdiscurso, mas aos sentidos autorizados pela Forma-sujeito no âmbito de uma formação discursiva” então, esses dizeres fazem parte do que se pode/deve dizer na FD1. Quando um dizer não se inscreve em um domínio de saber, a forma-sujeito não dá conta mais de regular todos aqueles saberes que deveriam/poderiam ser enunciados, consistindo em outra tomada de posição, a desidentificação, dessa maneira, esse sujeito-enunciador já se identificou (inconscientemente!) com outra FD e sua respetiva forma-sujeito, como percebemos em SD4. SD4. Me assusta muito um cara como Eduardo Campos tornar-se mártir politico agora... Muitos Brasileiros, principalmente os nordestinos, demonstram uma grave incoerência no tratamento desta tragédia. Falando de politica e Imagem encontrada no Google imagens a partir da chave “Outdoor Eduardo Campos”. Não é difícil encontrar eleitores que associam a figura de um ao outro, como se fossem semelhantes, ambos heróis. 10 11 Nas fronteiras da linguagem ǀ 284 administração publica, Pernambuco é um estado jogado as traças! Fora a orla e poucos metros em entorno das avenidas praianas, que também não é nada além do mínimo, medíocre e sujo, Pernambuco não tem nada! É um estado lindo por natureza, porém carece de tudo! Não tem um serviço descente! Não tem segurança, não tem educação, não tem saúde, não tem transporte, não tem saneamento, nada. Se você acha que em são Paulo tudo é ruim, pergunta pra quem morou lá como é que funciona. Enfim: Também sinto muito pelas vidas que se perdem de maneira tão trágica e entendo a repercussão, claro, devido a ilustre vitima: O presidenciável Eduardo Campos. Mas, menos, menos... Bem menos Brasil... Não se iluda meu povo. Guerreiro mesmo é você! Neste comentário, comentário da matéria da SD2, além do sujeito inscrever seu dizer em outra FD, a FD2, onde outros sentidos são permitidos, sentidos que negam a imagem de Eduardo Campos como herói, percebemos também a resistência, pois havia nesse restrito tempo, anterior a algumas notícias sobre (possíveis) improbidades políticas de Campos surgirem, poucos resistências, nas redes, à construção discursiva de heroicização desse político. Ao inscrever o discurso em outra FD, há uma possibilidade de, ao se dizer outras palavras no lugar daquelas prováveis ou previsíveis, deslocar sentidos já esperados. É resignificar processos interpretativos já existentes, seja dizendo uma palavra por outra, seja incorporando o non sens, ou simplesmente dizendo nada. (MARIANI, 1996, p. 24) Os sentidos dominantes próximo do fatal acidente aéreo, repetiam sentidos de um herói memorável, assim como o avô, Arraes. Os sentidos mais esperados eram os que ratificavam esses dizeres, porém, outras discursividades rompiam com esses dizeres, dizendo: “Me assusta muito um cara como Eduardo Campos tornar-se mártir politico agora...” Ou, “Pernambuco não tem... um serviço que preste.” Portanto, não se deveria iludir-se pois, “guerreiro é você mesmo”. Essas marcas linguísticas, materializam sentidos outros e, como dito, resistências, possíveis pelos furos/brechas na língua. Para Pêcheux, Apreender até seu limite máximo a interpelação ideológica como ritual supõe reconhecer que não ritual sem falhas; enfraquecimento e brechas, “uma palavra por outra” é a definição de metáfora, mas é também o ponto em que o ritual se estilhaça no lapso (e o mínimo que se pode dizer é que os exemplos são abundantes, seja na cerimônia religiosa, no III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 285 processo jurídico, na lição pedagógica ou no discurso político...). (Idem, ibidem, p.278) Essas falhas na interpelação e a impossibilidade de uma forma-sujeito homogênea, fazem Pêcheux produzir algumas retificações no percurso da teoria, observando que as resistências ocorrem na/pela língua, através das “quebras de rituais”, pelo “questionamento de uma ordem”, etc. (PÊCHEUX, 1990, p.17) Para tanto, necessita-se duas coisas: “ousar se revoltar” e “ousar pensar por si mesmo” (PÊCHEUX, 2009, p.281) 4. Tentativa de um efeito-fecho Observamos, então, que um fato, em termos discursivos, pode ser interpretado como efeito fundador, podendo produzir diferentes filiações de sentidos. Assim, O fundador busca a notoriedade e a possibilidade de criar um lugar na história, um lugar particular. Lugar que rompe no fio da história, um lugar particular. Lugar que rompe no fio da história para reorganizar os gestos de interpretação. (ORLANDI, 1993, p. 16). Portanto, o acidente aéreo em que estavam envolvidos o ex-governador pernambucano e outras pessoas foi marco histórico que pôde reorganizar vários dizeres sobre esse político. Reorganizando os gestos de interpretação e de práticas discursiva sobre o sujeito Campos. Porém, esses dizeres não podem ser considerados novos, pois já estava inserido no interdiscurso e através da memória é que eles foram regularizados no discurso. Analiticamente, mobilizei duas FDs, em que alguns sujeitos estavam mais identificados com a FD1 e outros com a FD2, sendo elas hetoregêneas, mas antagônicas. Assim, ao inscrever seus dizeres nessas FDs, os sujeitos tinham uma tomada de posição diferente, identificação, contra-identificação e desidentificação. Nessas últimas maneiras de se relacionar com uma FD, é onde podem ocorrer as resistências aos sentidos dominantes. Alçar Campos a posição de herói, mesmo que por um determinado tempo, é uma construção discursiva em que se foi necessário a ilusão de sentido único, regularização da memória no dizer, não sendo possível escapar das resistências e contradições inerentes ao discurso. 5. Referências Nas fronteiras da linguagem ǀ 286 MARIANI, Bethânia. O comunismo imaginário: práticas discursivas da imprensa sobre o PCB (1922-1989). Tese de doutorado. IEL/UNICAMP. Campinas, 1996. ORLANDI, E. Análise de Discurso: Princípios e procedimentos. 11ª edição. Campinas, SP: Pontes Editores, 2013. ______. (org.) Discurso fundador. Campinas, SP: Pontes, 1993. PÊCHEUX & FUCHS (1975). A propósito da análise automática do discurso: atualizações e perspectivas. In: GADET & HAK (orgs.). Por uma análise automática do discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. PÊCHEUX, M. (1969). Os fundamentos teóricos da análise automática do discurso de Michel Pêcheux. In: GADET & HAK (Orgs) Por uma análise automática do discurso. 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Esse artigo analisará a voz mitológica e performática na lírica pósmoderna de Lucila Nogueira, especialmente em seus livros Ilaiana (1997), Imilce (2000), Amaya(2001) A Quarta Forma do Delírio (2002) e Estocolmo (2004).Se os três primeiros tratam da raiz mítica da península ibérica, a partir tanto da Dama de Elche como da mulher espanhola de Aníbal Barca, Imilce, e também da ficcionalizada galega ligada à ancestralidade da autora, os dois últimos cuidam da mitologia celta e escandinava, igualmente a partir de figuras femininas como a druidesa Veleda e a Völva rainha do lago Mälaren. Voz e performance se conjugam para a enunciação mítico-feminista da autora, sendo sua personalidade traço fundamental da sua poesia, muito especialmente nos livros analisados. A autora segue a trajetória Oretania / Levante / Galiza / Bretanha / Escandinávia proposta como fio condutor de busca da origem étnica e artística de Lucila Nogueira através das figurações femininas alegóricas de que se utiliza na formação de vozes ancestrais e contemporâneas a delinear a condição da mulher em várias épocas em confronto com o arquétipo feminino vital matriarcal de diversas culturas, na busca obsessiva de uma geografia mítica de si mesma. Nesse sentido, percebemos também a forte questão de gênero que permeia toda esta obra, quando a mulher é a protagonista de uma narrativa lírica em que a figura masculina é o mito determinante, no caso, Aníbal Barca. Lucila usa como matéria-prima de sua obra o universo feminino, em meio às guerras, do contexto da expansão romana, negando-o, já que empresta vozes a essas mulheres que, em suas sociedades, não gozavam de nenhum tipo de autonomia, muito menos a chancela da cidadania. Ela posiciona-se contra o Estado, representado pelo Império Romano, e contra as guerras impetradas pelos homens, que rouba das mulheres seus maridos e filhos, deixando-as numa situação de desamparo, num mundo Nas fronteiras da linguagem ǀ 288 dominado pelo patriarcalismo. Seu discurso de Lucila constitui um contraponto à mudez feminina do mundo clássico. Assim, ela retoma a tradição ocidental, pela via do desacordo com o contexto ideológico romano e, pelo endosso textual, reatualiza a dicção grega em sua obra. A autora, Lucila Nogueira publicou mais de dezessete livros de poesia. Tem, entre seus títulos mais conhecidos, Almenara (1979), com o qual ganhou seu primeiro prêmio literário Manuel Bandeira, Governo do Estado de Pernambuco, 1978, premiação que obteria novamente em 1986 com o livro, Quasar (1987). Seu livro Zinganares (1998) foi publicado em Lisboa. Sobre este livro, foi elaborada e defendida uma dissertação na PUC-RS, pela mestra Adriane Hoffmann. Foi escritora residente em Saint-Nazaire, França, em 1999, quando escreveu o livro A quarta forma do delírio (2001). Ao lermos suas obras, percebemos a influência inegável de diferentes culturas como elementos importantes em seu processo de criação. No caso específico desses livros, o discurso poético se sustenta a partir da formulação mítica que desdobra a voz lírica em alegorias que passam a conviver como estátuas vivas com o universo dos leitores desse fantástico imaginário da autora carioca radicada no Recife. A linguagem poética, expressa por um uso seqüencial de unidades submetidas a poucos paradigmas, insiste na representação dos mesmos elementos emotivos, os quais se intensificam pelo espelhamento interno também do significante. A mimese interna e ao aprofundamento da interiorização são especificações linguísticas e psicológicas peculiares ao gênero lírico. A função poética da linguagem, que projeta o princípio de equivalência do eixo da contiguidade, mostra que a estrutura do poema é uma das formas de representação da existência, segundo José Guilherme Merquior (apud HOFFMAN, 2001, p. 23). O discurso narrativo-literário em Lucila Nogueira dá-se a partir do mito. Corroborando essas assertivas e alargando um pouco o quadro lingüístico de performance e teatralização da voz, Glusberg (1987) afirma que “a performance se perde na densidade do significado do signo e se conserva o significante”. De fato, os pesquisadores têm se esforçado, sobretudo os pesquisadores semiológicos, para detectar o sentido da performance. Assim, o livro Imilce (2000), na verdade um poema em 4 vozes é um canto de tristeza e desencontro das mulheres e filhos dos soldados que vão às guerras, em todas as épocas. Fala também dos conflitos políticos que encadeiam tragédias humanas, como em todas as guerras. As personagens são o próprio Aníbal, a sua mãe, seu filho e Imilce, esposa dele. Interessante que somente os amantes têm seus nomes revelados. Como se a autora quisesse destacar mesmo a dor e o dilema das mulheres que amam e esperam a volta dos III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 289 amados. As estrofes simetrizadas em torno do eixo vertical possibilitam ao leitor uma leitura dupla, pois há a possibilidade de lerem-se os versos por inteiro, como normalmente se procede, ou primeiro a sua metade esquerda e depois a metade direita. Nesse livro, como que situando o enredo, a autora cita toda a extensão do Império Romano e de Cartago; por isso, nomes de lugares como Creta, Tiro, Bitínia, Chipre, Espanha, Cástulo, Marrocos, Pirineus, Alpes, Oretania, Malta, Alicante; e mesmo os povos antigos: romanos, mouros, gregos, são freqüentes no texto. Cada lugar demonstrando o poderio do Império Romano e o destino que o resultado das Guerras Púnicas infligiram ao mundo: o domínio praticamente universal do Império Romano na antigüidade. Todo o texto, segundo Durand (1989, p. 148), contém de forma subjacente, um mito. Imilce não possui nem de forma subjacente, mas de forma emergente. Percebemos a referências às mitologias judaicocristã (ao pé do Líbano/ os homens de púrpura/ sidônios do deserto/ Canaã/ muros de Jericó) e greco-romana (cabeleira de Vênus e Verbena - p. 48); mas há referências a outras específicas, como a ibérica, dos ciganos mesmo de épocas específicas, como a inquisição e as cruzadas: minha mãe viu fogueiras no caminho (...) e disse na loucura: inquisidores; viu soldados diferentes (...) lutando/ contra os mouros do oriente/ e disse na loucura:/ são cruzadas (NOGUEIRA, 2000). Imilce é poesia de fogo e de luz. Várias são as passagens em que há uma referência implícita ou explícita ao fogo, ao sol, à luz: (voz de Imilce): o amor me seca os lábios: tudo ferve (p.13); meu corpo é um braseiro de perfumes, meus lábios o Etna e o Vesúvio; vem ver-me andar no fogo sobre as águas; eu desejava o mundo como um círio ardendo); (voz do filho de Aníbal): os filhos são as cinzas de um naufrágio [...]; e os altares acesos na comédia dos deuses; ... levando em cada mão um candelabro [...] era dia e era noite/ e a chama acesa; minha mãe/ viu fogueiras nos caminhos... ;... não vive sem azeite tanto fogo;... que minha mãe jogou dentro do fogo... (NOGUEIRA, 2000). O fogo de Prometeu que iluminou Atenas, não obstante a ira dos deuses do Olimpo. Na mitologia judaico-cristã, mais próxima de nossos dias, o fogo é usado para rituais de purificação: eles sucumbirão/ depois de Cristo/ hebreu/ crucificado num calvário); [..].cavalguei/ minha fantasia hebraica/na língua cananéia/ de meus pais [...]; leões crucificados de Cartago (NOGUEIRA, 2000). Como que situando o enredo, a autora cita toda a extensão do Império Romano e de Cartago; por isso, nomes de lugares como Creta, Tiro, Bitínia, Chipre, Espanha, Cástulo, Marrocos, Pirineus, Alpes, Oretania, Malta, Alicante; e mesmo os povos antigos: romanos, mouros, gregos, são freqüentes no texto. Cada lugar demonstrando o poderio do Império Romano e o destino que o resultado das Guerras Púnicas infligiram ao mundo: o domínio Nas fronteiras da linguagem ǀ 290 praticamente universal do Império Romano na antigüidade. Desse modo, Imilce é poesia de fogo e de luz. Várias são as passagens em que há uma referência implícita ou explícita ao fogo, ao sol, à luz: (voz de Imilce): o amor me seca os lábios: tudo ferve (p.13); meu corpo é um braseiro de perfumes, meus lábios o Etna e o Vesúvio; vem ver-me andar no fogo sobre as águas; eu desejava o mundo como um círio ardendo); (voz do filho de Aníbal): os filhos são as cinzas de um naufrágio [...]; e os altares acesos na comédia dos deuses; ... levando em cada mão um candelabro [...] era dia e era noite/ e a chama acesa; minha mãe/ viu fogueiras nos caminhos... ;... não vive sem azeite tanto fogo;... que minha mãe jogou dentro do fogo... (NOGUEIRA, 2000). O fogo de Prometeu que iluminou Atenas, não obstante a ira dos deuses do Olimpo. Na mitologia judaico-cristã, mais próxima de nossos dias, o fogo é usado para rituais de purificação: eles sucumbirão/ depois de Cristo/ hebreu/ crucificado num calvário); [..].cavalguei/ minha fantasia hebraica/na língua cananéia/ de meus pais [...]; leões crucificados de Cartago (NOGUEIRA, 2000). Por sua vez, Amaya (2001) é um dos livros da teatralogia ibérica, que inclui Imilce (2000) e Ilaiana (1997). Nele, a escritora realiza um diálogo intercultural a partir de suas raízes galeo-lusitanas. Em Amaya (2001) a autora, impressionada na vida real com a descoberta de seu sangue galego, parte ao reconhecimento mítico e geográfico de si mesma. Faz o percurso ao contrário de seus ancestrais, no rumo que vai do norte de Portugal à cidade de Padrón, passando por outros sítios como Sanxenxo, Combarro, Finisterra. Imerge na cultura galega cercada pela paisagem dos hórreos e eucaliptos que sempre povoaram seus sonhos de infância, procura vivenciar o histórico e o psicológico da imigração dupla : da Galiza a Portugal, da Lusitânia ao Brasil. Recorre à figura real de Teresa Susabila, que se funde literariamente com a ficcionalizada Amaya, cuja personificação a autora chega a ponto de incorporar bordando esse nome em seu casaco de uso diário. Ilaiana - Enigmas de Elche, publicado em 1997, é um livro composto por quarenta poemas, que relaciona aspectos temáticos, formais e epigráficos à origem histórica do título da obra. Os versos são distribuídos em quatro quadras decassílabas e um dístico ao final. Esses dois últimos versos que inauguram e concluem o poema, completando sua estrutura cíclica e regressando à matriz temática (“A Dama de Elche”, mito da deusa-sacerdotisa da região da Galícia, Espanha). Ilaiana (1997), que completa junto com Imilce (2000), Ainadamar (1996) e Amaya (2001) a denominada tetralogia ibérica, em que a autora recorre a mitos e temas culturais luso-hispânicos, trata do mito da “Dama de Elche”, deusasacerdotisa do período pré-espanhol (celta). Com influências de mitos semelhantes, “em pedra talhada ou policromada, ricamente vestida e adornada, ostentando uma toucada – suas III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 291 tranças?, elaboradíssima, ela tem o olhar fixo na eternidade. Preservada desde sua milenária existência, anônima ela e anônimo o seu criador. Pergunta a voz poética: fui a deusa e o touro subterrâneo/ Inanna Astarte Isis ou Cibele/ Uni Tanit fui Juno ou fui Demeter/ que nome me chamavam os iberos? (NOGUEIRA, 1997). Dessa forma, a voz da Dama de Elche perpassa toda obra, assumindo identidades múltiplas, traduzindo em versos o interculturalismo de sua obra: E eu contemplei atônita o semblante/ da moça igual à dama na estação/ desceu em frente às águas de Alicante/ império de tartéssicas visões./ Mulher sacrificada na pirâmide/virgem sacerdotisa que foi mãe/ nômade – proletária – navegante/ que céu te despencou na corda vã? Grego ou cartiginês esse semblante/no trem com seus dois filhos pela mão/grega cartaginesa ou babilônica são de Creta ou da Síria essas feições? (Poema IV)[...] Foi aqui que eu plantei um CANDELABRO/ de Chipre e o consagrei à luz da lua/ meu pente de marfim veio de Samos/ e os fóceos esculpiram minhas tranças (Poema VIII) (NOGUEIRA, 1997, p. 18.22) Mas a autora tem consciência plena de sua identidade, mesmo imiscuindo-se em inúmeras culturas, como demonstram esses versos: Esta ilha de ferro é meu RECIFE/ com seus guanches atlantes e tupis/ esta ilha é meu corpo e meu abismo/ meu poder de sonhar e de existir (NOGUEIRA, 1997, p. 25) Já A Quarta Forma do Delírio (2003) trata dos mitos celtas da Bretanha, como os da Távola Redonda, Rei Artur e o Santo Graal. Resultado de uma residência artística realizada pela autora em Saint-Nazaire (França), em 1999. Região anteriormente dominada pelos celtas, o Norte da França, juntamente com a Ilha da Grã-Bretanha, desenvolveu toda uma cultura miscigenada, com elementos pagãos e cristãos, resultado da incursão do cristianismo em terras dos chamados “povos bárbaros’ na Idade Média. Com sensibilidade aguçada, a autora vai perceber tais influências, visíveis nos seguintes versos: (Esta era a escada dos druidas/ e eu sou a Veleda a druidesa/ meu canto tem poder/ de dissolver tempestade/ guardiãs do santuário de Teutates/ ninfa celta/ sacerdotisa armoricana/ imagem de Bretanha (Fala de Veleda); Ouve o canto da druida/solitária/ tu estás sob a minha/ proteção/ visão que eu atraí/armoricana/ eu me chamo Merlin/ o Encantador (Fala de Merlin) (NOGUEIRA, 2003, p. 41.44). Pois, como afirma Lourival Holanda na orelha deste livro: Lucila cruza – no sentido fecundo – caminhos reais que agora dão uma outra gravidade à memória de seu imaginário poético. O impacto da praia rochosa de Saint Marc. Os caminhos imemoriais por onde nossas lembranças se cruzam: os índios brasileiros que por ali Montaigne recebeu. Hoje, é Lucila recebendo os eflúvios poéticos de celtas, de Carnac, da beleza bárbara da Bretanha. (NOGUEIRA, 2003 – orelha) Nas fronteiras da linguagem ǀ 292 Finalmente, Estocolmo (2004) vem representar o fechamento do ciclo Mítico Performático, a partir de falas deambulatórias pelas ruas da capital sueca, que dialogam com vários tempos e personagens do século XVIII, culturas arcaicas desde os livros de Odin sobre as quais paira a alegoria da volva, figura emblemática que se confunde com a própria poesia em seu uso de sibilas para profetizar. Ao mesmo tempo, verifica-se que é um porto de chegada da autora, em sua odisséia pessoal, integrada nesse ano à comunidade sueca pelo nascimento de seu neto Alexander. A filha e neta de portugueses e galegos que se torna mãe e avó, no percurso de volta dos vikings que são referenciados em todo o livro, inclusive em suas vestimentas e visual punk pós-moderno. Assim, podemos dizer que o discurso narrativo-literário em Lucila Nogueira dá-se a partir do mito. Corroborando essas assertivas e alargando um pouco o quadro lingüístico de performance e teatralização da voz, Glusberg (1987) afirma que “a performance se perde na densidade do significado do signo e se conserva o significante”. De fato, os pesquisadores têm se esforçado, sobretudo os pesquisadores semiológicos, para detectar o sentido da performance. As vozes femininas, sejam elas celtas, galegas ou escandinavas se transpõem para os livros de maneira tanto figurativa (metáforas e metonímias) quanto temáticas (vozes de mitos ancestrais que ecoam no inconsciente coletivo). O fundamental é que esta passagem do semântico para uma espécie de estado vital do significante, tal como a aparição de novos signos, seja adotada em várias religiões e mitos de iniciação (GLUSBERG, 1987), ambos bastante fortes em Lucila Nogueira. Já para Zaul Zumthor, autor canadense que aprofundou o conceito de performance para a cultura e especialmente a literatura, afirma que, se houvesse uma ciência da voz, ela não estaria centralizada em uma única forma de conhecimento, pois deveria abranger, em princípio, a fonética e a fonologia, além da antropologia, da História e da psicologia da profundidade. Em seu estudo, o teórico refere-se à voz do ser humano real, e não à do discurso, uma vez que o texto literário é uma voz que está dentro de um suporte escrito, portanto mediado ele já é uma representação. Diretamente vinculada à voz poética, a performance é uma ação oral-auditiva pela qual a mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida, no tempo presente, em que o locutor assume voz, expressão e presença corporal (física), enquanto o destinatário, que não é passivo, também se inclui como presença corporal dentro da performance. A lírica de Lucila Nogueira, reverberando o eco ancestral de mitos, enseja-se nesse panorama. Os cinco livros selecionados para o estudo desse artigo são repletos de elementos identitários tão diversos quanto a cultura ibero-galego-celta-escandinava. Embora plenamente III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 293 enraizada no Brasil, suas inúmeras viagens a outros países ajudaram-na na concepção poética das vozes mitológicas das culturas tão diversas que hoje convivem local e globalmente, constituindo-se numa verdadeira geografia mítica pós-moderna. Referências ACADEMIA BRASILIRA DE LETRAS. Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 2008. CERVINSKIS, André. De Imilce a Medellín: a poesia de Lucila Nogueira. Olinda: Livro rápido, 2008. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa: Presença, 1989. FIORIN, José Luiz. Elementos da Análise do Discurso. Sâo Paulo: Contexto, 2005. HALL, Stuart. 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Trad.: Gerusa Pires Ferreira & Sueli Fenericli. São Paulo: Ed. HUCITEC, 2000. Nas fronteiras da linguagem ǀ 294 O ENUNCIADO COMO ZONA DE DIÁLOGO ENTRE VOZES E VALORES: UMA ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO JORNALÍSTICAS DA IMAGEM DE EDUARDO CAMPOS NO PERÍODO PRÉ E PÓS MORTE [Voltar para Sumário] Andre Cordeiro dos Santos (UFPE)1 1. Iniciando o diálogo Toda enunciação efetiva, seja qual for a sua forma, contém sempre, com maior ou menor nitidez, a indicação de um acordo ou de um desacordo com alguma coisa. (Bakhtin, 2006, p. 109) Nesse excerto, Bakhtin nos diz que toda enunciação efetivada comporta uma posição valorativa do enunciador em relação ao objeto de enunciação e, consequentemente, já que para o filósofo a enunciação é a unidade da comunicação real, que a linguagem carrega sempre consigo posições avaliativas do sujeito. Nesse sentido, sempre que há uso de linguagem, há posições valorativas que se constituem a partir de relações dialógicas. Portanto, olhar a linguagem, nessa perspectiva, requer levar em consideração os valores que se fazem constituintes dela. As relações dialógicas, no entender dos integrantes do chamado Círculo de Bakhtin2, dizem respeito a relações de sentido que se instauram na instância de discurso por meio de diálogos que ocorrem dentro da enunciação, envolvendo diferentes aspectos que se fazem determinantes de sentido. Esse diálogo é determinado, segundo Bakhtin (1993, p. 71), pelos momentos básicos da constituição da linguagem que são o eu-para-mim, o eu-para-o-outro e o outro-para-mim. Esses momentos constituem a base arquitetônica do pensamento bakhtiniano que se foca principalmente no caráter dialógico da linguagem e este caráter perpassa todos outros: o social, o histórico e axiológico. 1 2 E-mail: [email protected] Grupo de estudiosos russos composto por Bakhtin, Volochinov, Medvedev e outros. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 295 Tomamos esses momentos dialógicos, apontados por Bakhtin, nos quais se põem em diálogo e conflito locutores, discursos, valores, contextos, etc., que são definidores de sentidos de enunciações, e, que fazem da enunciação eventos únicos, como pressupostos para esse trabalho. Assim, procedemos a análise do fenômeno de mudança da constituição da imagem do ex-governador do estado de Pernambuco e pleiteante a presidente do Brasil, Eduardo Campos, no período pós-morte em relação ao período anterior a sua morte, observado no jornal Diário de Pernambuco on-line. Para tanto, adotamos a perspectiva da Análise Dialógica dos Discursos (ADD), buscando reconstruir os fios dialógicos que dão sustentação aos dizeres e, consequentemente, às imagens do político nas notícias do jornal, atentando para os momentos determinantes dos valores na (e da) linguagem citados acima. Nesse intuito, trazemos à discussão os conceitos basilares da ADD que se mostram necessário a esse empreendimento e, após isso, analisamos as duas notícias. Passemos aos conceitos base da análise. 2. Alguns elementos conceituais do diálogo Os integrantes do Círculo de Bakhtin, por tomarem o enunciado como base para o estudo da linguagem e considerá-lo como evento único e irrepetível, buscaram evidenciar a linguagem como resulto da interação de diferentes elementos. Em um desses estudos, no texto Que é a linguagem?, Volochinov (2013 [1926], p. 141) propõe que “a linguagem [...] é o produto da atividade humana coletiva e reflete em todos os seus elementos tanto a organização econômica como a sociopolítica da sociedade que a gerou”, ou seja, a linguagem mantém um diálogo com as condições sócio-político-econômicas. Sendo assim, a linguagem está diretamente ligada e determinada pelo social e estudála requer, antes de tudo, o reconhecimento dessa ligação. Adotando essa perspectiva, iniciamos essa discussão trazendo à tona o que Bakhtin entende por esferas discursivas, acreditando que esse conceito é relevante no entendimento do fenômeno que nos propusemos a analisar, já que a compreensão dos gêneros do discurso passa pela compreensão das esferas discursivas. Para o Bakhtin (1997, pp. 227-326), as esferas discursivas são constituídas por determinado grupo de pessoas que compartilha entre si práticas sócias/discursivas e um dado ambiente social. Segundo ele, esse grupo utiliza determinadas práticas discursivas que se fazem necessárias para a interação entre seus indivíduos e, assim, por compartilharem o mesmo ambiente social, acabam por ter necessidades comunicativas semelhantes, em Nas fronteiras da linguagem ǀ 296 condições, também, semelhantes, e isso gera a criação de formas linguísticas mais ou menos padronizadas – ou “enunciados relativamente estáveis”, nas palavras de Bakhtin – que cumprem determinadas funções comunicativas do ambiente social. São essas formas linguísticas, que evidenciam ainda mais a relação de diálogo entre linguagem e sociedade, que Bakhtin chamou de “gêneros do discurso”. Os gêneros do discurso estão presentes em todas as esferas da comunicação humana, pois sempre que fala, um sujeito se serve deles, obedecendo, mesmo que involuntariamente, a determinadas “regras” de funcionamento dessas “formas de linguagem”. Além disso, sendo os gêneros do discurso formas relativamente estáveis de enunciados, a posição valorativa que compõe o enunciado da comunicação efetiva é, também, inerente aos gêneros, não havendo nenhum gênero do discurso que se excetue da carga axiológica que acompanha a linguagem, por mais que se busque atingir um ponto de neutralidade. Em contrapartida a isso, temos algumas esferas da comunicação humana que utilizam de certos gêneros do discurso que buscam atingir essa neutralidade, se eximindo das posições valorativas, é o caso, por exemplo, da esfera jornalística, com as notícias que se propõem ser unicamente um meio de transmissão de informações. No entanto, percebemos que não é bem assim, pois mesmo nesses casos em que a “forma” de linguagem se propõe neutra, ela traz consigo uma carga avaliativa em relação ao objeto do discurso que se evidencia a partir da investigação dos seus fios dialógicos. Vistas a isso, se a notícia, apesar de se propor neutra, não o é. A partir dela podem se revelar valores que trabalham para a construção de discursos que se revelam em posição de acordo ou desacordo com o objeto de enunciação. Desse jogo de valores que se instaura na enunciação emergem imagens construídas como produto de um diálogo que reflete e refrata as ideologias que circulam na esfera discursiva na qual a prática enunciativa se deu, nas palavras de Bakhtin (2006, p. 31) “cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira”. Essa posição axiológica, que se mostra nos enunciados da comunicação real, no entanto, pode não ser sempre semelhante dentro de uma esfera discursiva, posto que o enunciado como evento único é sempre fruto de um diálogo singular, assim, também, as posições axiológicas serão únicas em cada enunciado, podendo, a posição de um sujeito distanciar-se de uma posição anteriormente assumida com o decorrer do tempo. Vemos, assim, que o sujeito é ponto nodal para a compreensão desse fenômeno, por isso, mais a frente, nos deteremos nessa questão. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 297 Nesse sentido, entendendo o enunciado como fruto de um diálogo único, acreditamos que captar os valores, ou as avaliações, em relação ao objeto do discurso requer que se investigue os fios dialógicos que dão sustentação aos dizeres. Cabe, pois, ressaltar que a base arquitetônica mostrada acima resume de forma sumária o caráter dialógico da linguagem (dialogismo amplo). Essa base se evidencia e pode ser percebida nos gêneros discursivos através da orientação social, para o outro; da presença de diferentes vozes sociais que dialogam ou se conflitam; da materialização do enunciado enquanto elo entre os já-ditos e a presunção de respostas; da adequação ao contexto enunciativo; e das marcas axiológicas do sujeito em relação ao objeto da enunciação. Tomaremos essas formas de diálogo como ponto de partida para as análises desse artigo. Antes, porém, acreditamos que seja relevante fazer algumas considerações sobre sujeito. 3. Do sujeito do diálogo Falar de sujeito dentro da perspectiva bakhtiniana de estudo da linguagem é algo que requer atenção, posto que o sujeito não foi teorizado dentro dos estudos desenvolvidos pelo Círculo. Nesse sentido, Segundo Teixeira (2006, p. 229), a visão sobre sujeito de Bakhtin “emerge e se sustenta na enunciação, entendida como um processo em que o eu se institui através do outro e como outro do outro, sendo pela inter-relação entre dialogismo e alteridade que se pode tentar cerca a subjetividade em Bakhtin”. Desse modo, o sujeito, assim como o enunciado, é fruto de um diálogo único em cada momento discursivo. Partindo dessa visão, Dahlet (1997, p. 77 apud TEIXEIRA, 2006, p. 229) considera que “o dialogismo bakhtiniano se fundamenta na negação da possibilidade de conhecer o sujeito fora do discurso que ele produz” e Teixeira (ibidem) completa dizendo que esse é o motivo pelo qual não há uma teoria do sujeito enquanto objeto, mas, sim, “uma teoria da linguagem fundada na idéia de que a interação verbal é o modo de ser social dos indivíduos”. Ou seja, para Bakhtin, não há sujeito sem linguagem. Com isso, se servindo de pensamento de Dahlet (1997, p. 60) a respeito do sujeito bakhtiniano, Teixeira (idem, p. 230) afirma que Bakhtin relança a problemática do sujeito em uma concepção dinâmica de enunciação, como produto de uma voz na outra, em que a significação é produzida em direções diferentes, sob as pressões de um dialogismo que remete a ancoragem do sujeito à realidade do discurso, entendido como uma ‘construção híbrida’, (in)acabada, por vozes em concorrência e sentidos em conflitos” (grifos do autor) Nas fronteiras da linguagem ǀ 298 É nesse sentido, que a compreensão do sujeito se faz relevante para a compreensão dos valores que são inculcados nas palavras na interação verbal por meio de enunciações. O diálogo de vozes e valores que se opera na linguagem, se opera a partir de um sujeito que se institui pela linguagem e, por isso, é visto, assim como o enunciado, como evento. 4. Foco no diálogo Nesta seção, iremos analisar as notícias a respeito do candidato Eduardo Campos do jornal citado acima, a fim de buscar reconstruir os fios dialógicos que dão sustentação aos dizeres, mostrando que esse diálogo que se instaura como único em cada momento discursivo faz emergir imagens diferente do candidato no período pré e pós morte, sendo a sua morte um fator determinante para a exaltação de sua imagem. Para isso, observaremos as questões ideológicas que se evidenciam nos textos, levando em consideração o sujeito da enunciação, visto que esse é o ser a partir do qual se refletem e refratam essas questões ideológicas, ainda que o sujeito em uma das notícias não esteja identificado, uma vez que, a notícia é assinada pelo próprio Jornal. Sabemos que mesmo nesse caso em que o sujeito não está identificado, ele é peça chave, já que é a partir dele que o diálogo se instaura na enunciação e no caso que trazemos a análise não seria diferente. Passemos à notícia. Figura 1: Notícia do Diário de Pernambuco on-line anterior a morte de Eduardo Campos III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 299 Fonte: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/politica/2014/07/08/interna_politica,514877/aliados-de-armandogostam-de-declaracoes-acidas-de-campos.shtml Para contextualizar um pouco a notícia, convém situar o contexto, ainda que de forma sumária, que gerou a notícia acima. No ano de 2014, Eduardo Campos se lançou como candidato a presidência do Brasil pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Como era um candidato não muito conhecido, precisava angariar votos Brasil a fora para buscar a eleição e, por isso, participou de comícios com seus aliados. Nesse ínterim, Campos buscou mostrar suas propostas de governo apoiando-se no discurso de que o governo do momento era falho e que, por isso, não deveria ser mantido, sendo ele uma melhor opção para o Brasil. Desse quadro surge a notícia: Eduardo Campos, em ato político com seu “afilhado” Paulo Câmara, teria dado declarações “ácidas” e, segundo os candidatos da oposição, esses “comentários contraditórios e desrespeitosos” seriam um “sinal de desespero” do candidato. Ainda, segundo a notícia, para o deputado federal Sílvio Costa, Eduardo “não foi feliz em suas declarações”, pois teria chegado a chamar seus próprios aliados de “parasitas do poder” o que seria, para Costa, um “sinal de desespero da frente popular”. Nas fronteiras da linguagem ǀ 300 Como defendido por Bakhtin, toda enunciação comporta uma posição axiológica e na notícia acima não é diferente, já que a notícia se caracteriza como um tipo relativamente estável de enunciado. Na notícia, percebemos um discurso de oposição a Eduardo Campos, que é caracterizado através das críticas tecidas ao candidato – candidato em desespero, que proferira comentários desrespeitosos e contraditórios e que desrespeita seus próprios aliados. Dessa forma, ainda que a notícia atribua as críticas à oposição, um discurso, na perspectiva bakhtiniana, sempre é proferido por um sujeito que, enquanto tal, reflete e refrata as ideologias da sua esfera de comunicação, que se constitui na linguagem enquanto evento e que trava diálogos com outras vozes, assim, esse discurso também é o discurso do sujeito representado pelo jornal. A notícia é um discurso do sujeito do jornal3 em relação ao objeto da enunciação, ainda que dialogue diretamente com discursos outros, pois ele é resulto do diálogo e conflito de vozes (discursos) da oposição e do próprio sujeito do jornal, pois como lembra Bakhtin (1998, p. 86) toda enunciação encontra o seu objeto sobre o crivo de outrem, pois o objeto já está também sobre a tônica do outro, por isso, por ser orientado para o objeto, o discurso penetra um meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos outros, ou seja, “ele (o discurso) entrelaça com eles (discursos outros) em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros”. Desse modo, se mostra o diálogo entre as vozes de oposição e do próprio jornal, evidenciando o dialogismo que é inerente à linguagem e, sendo tomado como momento base da notícia e determinante de todos os seus valores. Esse diálogo trabalha para a construção de uma posição axiológica que se instaurou e trabalha para a construção de Eduardo Campos como um político de discurso contraditório, desrespeitoso com seus próprios aliado e em desespero o que o caracterizaria como um candidato inapto a assumir o cargo ao qual se propunha a assumir: presidente do Brasil. Analisemos agora uma notícia do período pós-morte de Eduardo Campos afim de mostrar que sua morte foi determinante no diálogo que se instaura no enunciado em questão, resultando numa imagem do candidato diversa da anterior. Passemos a notícia: Figura 2: Notícia do Diário de Pernambuco on-line posterior a morte de Eduardo Campos 3 Usamos sujeito do jornal porque o texto, embora tenha um autor, este não foi identificado, sendo assinado pelo próprio jornal. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 301 Fonte: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/politica/2014/08/14/interna_politica,522601/eduardo-camposaliava-programas-sociais-e-a-visao-de-mercado.shtml Antes, de procedermos a análise, faremos uma descrição sumária do contexto geral no qual foi produzido o texto. Em treze de agosto de 2014, Eduardo Campos foi vítima de um acidente fatal, o avião no qual ele se deslocava para cumprir compromissos políticos caiu e todos os tripulantes vieram a óbito. Após esse evento, os discursos que circularam a respeito de Eduardo Campos foram discursos que exaltavam sua trajetória política e que o mostravam enquanto um candidato que tinha uma proposta consistente de Brasil, como podemos ver no texto acima. Assim, essa notícia, posterior a morte de Eduardo Campos, e o discurso que se apresenta por meio dela são completamente diferentes do que se mostrou no texto anterior. No texto, assinado por Paulo Silva Pinto, há a caracterização de Eduardo como um político que conseguia unir em seu projeto de governo uma visão de mercado, que agradava os empresários, e os programas sociais, exemplo seria o passe livre para os estudantes, o que agradava também a população que se beneficiaria desse tipo de programa. Desse modo, o autor da notícia compara Eduardo Campos ao ex-presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva em seu primeiro mandato, pois, segundo o autor, aquele, assim como este, era “um político de esquerda, defensor de programas sociais e ao mesmo tempo alinhado com o mercado”. Desse modo, a imagem que se evidencia do candidato é de um político ideal, vistas ao fato de se esperar que um presidente consiga desenvolver e trabalhar em prol de todos os Nas fronteiras da linguagem ǀ 302 setores da sociedade. Percebemos um diálogo que trabalha para a construção dessa imagem como fruto de ideologias socialmente difundidas: o discurso da esquerda politica; discurso do bom político; discurso a respeito do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e etc. Desse diálogo e conflito de vozes é que emerge a posição valorativa que se evidencia do autor em relação ao objeto de enunciação, como defende Bakhtin (1998) ao dizer que os valores que se mostram pela linguagem são frutos de um diálogo e conflito de vozes (discursos). Assim, podemos dizer que a imagem, que outrora fora constituída, de um político em desespero, com comentários controversos e ácidos foi substituída por uma imagem de um político com proposta consistente de Brasil, isso como resultado do diálogo único que se instaurou na enunciação. Nesse momento enunciativo, é, também, inegável que a morte de Campos interferiu na forma como a constituição de sua imagem política se deu, pois é uma prática social comum exaltar a imagem de alguém após sua morte, lembrando apenas os pontos memoráveis de sua trajetória. Essa voz (discurso de exaltação pós-morte) foi determinante para a construção do diálogo que se instaurou por meio do enunciado em questão, sendo determinante de valores na relação do eu (autor-sujeito) com o outro (Eduardo Campos). Isso evidencia que, assim como defende Bakhtin (2003) os momentos que compõem a base arquitetônica da linguagem são determinantes dos valores que estão presentes na linguagem e que, assim como lembra Bakhtin (2006), em um enunciado sempre haverá a indicação, ainda que velada, de um acordo ou desacordo em relação ao objeto de discurso. 5. Considerações finais A partir da adoção da perspectiva bakhtiniana de estudos da linguagem que se detém principalmente ao carácter dialógico como base para qualquer investigação dos fenômenos da linguagem, vimos que a linguagem sempre se mostra como uma zona de diálogo e conflito entre diferentes vozes e que esse diálogo é único em cada evento enunciativo. Vimos também que as posições axiológicas assumidas podem mudar quase que completamente com o tempo, em decorrência da inserção de alguma voz (discurso) que interfira diretamente no diálogo; e, vimos que o sujeito e o ser que se mostra como evento, se constituindo em cada momento enunciativo e sob influência diretas das ideologias das esferas discursivas da qual faz parte, sendo esse ser elemento diretamente determinante da imagem do objeto de enunciação. No caso analisado, percebemos que a morte de Eduardo Campos interferiu diretamente na constituição jornalística de sua imagem pelo Diário de Pernambuco on-line: de político em III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 303 desespero a político com proposta consistente de governo. Essa mudança discursiva se mostra como resultado de diálogos e conflitos complexos entre vozes que ocorrem na (e pela) linguagem, e que refletem e refratam as ideologias de esferas discursivas por meio de um sujeito. Em adição a isso, a sua morte fez com que se exaltasse os fatos memoráveis na trajetória de Eduardo Campos. Convém ressaltar que esta análise é apenas parte de uma pesquisa maior e representa os primeiros gestos analíticos empreendidos na tentativa de sua compreensão. No entanto, essas primeiras análises mostraram que houve mudança nos valores que se encontram nas notícias, como fruto de diálogo e conflito de vozes, e isso ocasionou a mudança na imagem constituída pelo jornal do político: o político que antes de sua morte era caraterizado como um político em desespero, após sua morte, é caracterizado como um político que tinha uma proposta consistente de Brasil. A análise desse fenômeno confirma, assim como defendem os integrantes do Círculo de Bakhtin, que a linguagem carrega sempre uma posição axiológica de um sujeito em relação ao seu objeto de enunciação, resultando em um gesto, ainda que velado, de acordo ou desacordo com esse objeto. E que esse gesto de (des)acordo pode ser mudado sob interferência de fatores que compõem o diálogo único de cada enunciação. Por isso, concluímos que qualquer empreendimento de tentativa de compreensão da linguagem deve ter em conta todos os fatores que determinam os valores que são-lhe inerentes. Referências BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, para uso didático, com base na tradução inglesa de Michael Holquist e Vadim Liapunov (“Toward a philosophy of the act”), publicada em Austin: University of Texas Press, 1993. _______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. _______. O discurso no romance, In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética. São Paulo: Editora Unesp, 1998, pp. 71-210. _______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec (10ª. ed.), [1979], 2006. TEIXEIRA, Marlene. O outro no um: reflexões sobre a concepção bakhtiniana de sujeito. In: FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. Vinte ensaios sobre Mikhial Bakhtin. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006, pp. 227 – 234. Nas fronteiras da linguagem ǀ 304 VOLOCHINOV, V. A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro & João editores, [1926], 2013. Tradução: João Wanderley Geraldi. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 305 O LIVRO DE LITERATURA INFANTIL NA SALA DE AULA: UM OLHAR PARA A ESCOLHA FEITA PELO PROFESSOR DA EDUCAÇÃO INFANTIL E DO 1º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL [Voltar para Sumário] Andressa Silvestre Teixeira (UFRPE/UAG) Leila Nascimento da Silva (UFRPE/UAG) Introdução A partir do contato com algumas escolas localizadas no município de Garanhuns foi constatado, no cotidiano escolar, que há a leitura de textos literários. Normalmente, estas leituras são realizadas pelo professor, assim como a escolha do material a ser lido. Ao evidenciar tais fatos, nos indagamos quais os critérios adotados pelos professores Educação Infantil e do 1º ano do Ensino do Ensino Fundamental para a escolha dos livros de literatura infantil e de que forma esses critérios utilizados podem favorecer o letramento literário dos educandos. Consideramos o quanto é importante criar situações que induzam aos leitores a interagir com o maior número possível de gêneros discursivos, pois este trabalho favorece a formação profissional e desempenho como sujeito livre, ativo e social. No entanto, focaremos nos gêneros literários, uma vez que estes, quando possuem um texto de qualidade, estimulam o hábito da leitura, induzindo o leitor a explorar a realidade que o cerca de maneira diferenciada, desenvolvendo sua imaginação criadora e ampliando significativamente o seu universo cultural. Diante disto, realizaremos uma reflexão a respeito dos critérios de escolha do livro literário lido em sala de aula. A partir do levantamento destes critérios, analisamos a natureza dos mesmos buscando verificar em que esta escolha favorece a ampliação do letramento literário dos educandos; verificamos também se estes critérios mudaram da Educação Infantil para o 1º ano do Ensino Fundamental. As escolhas docentes em relação ao livro de literatura trabalhado em sala Nas fronteiras da linguagem ǀ 306 Para desempenhar bem o papel de leitor experiente e mediador, torna-se necessário que o professor estabeleça os seus critérios para a escolha do livro de literatura a ser explorado em sala de aula. Esse livro deve ser de qualidade e favorecer um bom trabalho de compreensão textual. Compreende-se que os primeiros livros contribuem significativamente, e são determinantes quanto à iniciação literária contribuindo na aquisição de conhecimentos os quais a escola trabalha. Sendo, por tanto, de extrema relevância que o processo de seleção destes livros passe pelo clivo de um olhar criterioso por parte do professor, uma vez que esse profissional também tem responsabilidades na formação de sujeitos leitores. Brandão e Rosa (2010) elencam ao menos três critérios que podem ser adotados pelos professores para a escolha do livro literário: O primeiro nos remete às afinidades estéticas do professor; o segundo tem a ver com as preferências demonstradas pelas crianças e o terceiro ao conhecimento do acervo, ao qual os estudantes tem acesso, seja dentro ou fora do ambiente escolar. Metodologia O trabalho realizado possui natureza qualitativa. A pesquisa qualitativa, segundo Richardson, et al (2008) “pode ser caracterizada como a tentativa de uma compreensão detalhada de significados e características situacionais apresentadas pelos entrevistados, em lugar da produção de medidas quantitativas de características ou comportamentos (p. 90)”. Desta maneira não possuímos resultados padronizados. Realizamos uma reflexão com base na escuta dos depoimentos docentes. O estudo foi desenvolvido no município de Garanhuns, no qual foram selecionadas três escolas públicas. Estas instituições de ensino foram sugeridas pela Secretaria de Educação Municipal e possuíam ao menos um professor da categoria pesquisada (professores da Educação Infantil e/ ou do 1º primeiro ano do Ensino Fundamental I). O primeiro critério de seleção dos sujeitos da pesquisa consistiu em identificar, através de uma conversa informal, aqueles que desenvolviam um trabalho com a literatura infantil. Assim, foram selecionados cinco professores da Educação Infantil e cinco professores do 1º ano do Ensino Fundamental que alegaram trabalhar em sala de aula a leitura de livros literários. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 307 Aos sujeitos pesquisados não foi exigido a incorporação ao quadro efetivo da escola, apenas a condição de ser regente da sala de aula em questão. PROFª 1 PROFª 2 PROFª 3 PROFª 4 PROFª 5 PROFª 6 PROFª 7 PROFª 8 PROFª 9 PROFª 10 ETAPA QUE FORMAÇÃO ENSINA Educação Infantil Curso de Licenciatura em Pedagogia. Pós em psicopedagogia. Educação Infantil Curso de Licenciatura em Pedagogia. Pós em psicopedagogia. Educação Infantil Curso de Licenciatura em Pedagogia. Pós em psicopedagogia. Educação Infantil Curso de Licenciatura em Língua Portuguesa. Pós graduação em Língua Portuguesa (relatou algo sobre contos de fadas) Educação Infantil Curso de Licenciatura em Pedagogia. Cursando a pós graduação. 1º Ano Curso de Licenciatura em Pedagogia. Pós- graduação em supervisão pedagógica. 1º Ano Graduação em Língua Portuguesa. Pós-graduação em psicopedagogia. 1º Ano Magistério. 1º Ano Curso de Licenciatura em Pedagogia. 1º Ano Curso de Licenciatura em Pedagogia. Pós-graduação em administração escolar e gestão pedagógica TEMPO DE ENSINO 7 anos 7 anos 13 anos 14 anos 17 anos 13 anos 08 anos 28 anos 10 anos 10 anos Foi empregada para coleta de dados a entrevista semiestruturada. Conforme Lakatos e Marconi (2010), a entrevista é definida como: “[...] encontro entre duas pessoas, a fim de que uma delas obtenha informações a respeito de determinado assunto, mediante a conversação de natureza profissional” (p.178). Aos entrevistados foram esclarecidos somente os objetivos da pesquisa e o roteiro da entrevista. ROTEIRO DA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA • De que maneira você busca promover o acesso à literatura infantil aos seus alunos? • Você tem fácil acesso aos livros de literatura? Justifique sua resposta. • Em caso de resposta negativa em relação à questão anterior, perguntar: A escola não disponibiliza um acervo de livros de literatura, por que eles não chegaram ou por que estão guardados? Justifique sua resposta. • Com que frequência você ler livros de literatura infantil para seus alunos? • Você considera essa frequência de uso boa ou gostaria de promover um maior acesso aos livros? Justifique sua resposta. • Quais critérios você geralmente utiliza para escolher os livros que leva para a Nas fronteiras da linguagem ǀ 308 sala? Por que você usa esse(s) critérios e não outros? • Relate uma situação de leitura de um livro de literatura realizada em sala, detalhando desde o momento em que você escolheu o livro até o momento em que você trabalhou em sala (não esqueça de dizer qual o livro escolhido). Após a resposta perguntar: Qual critério você adotou nessa ocasião? Você conseguiu pensar antes em como seria esse momento de leitura ou teve que resolver na hora como iria fazer, o que iria explorar com os alunos? As informações coletadas através dessa primeira seção de entrevistas foram tratadas à luz da metodologia de análise de dados qualitativos denominada análise de conteúdo (BARDIN, 2002), pois a consideramos uma via possível para a revelação (reconstrução) do sentido dos nossos achados. Assim a análise de conteúdo se refere a: [...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, obter indicadores quantitativos ou não, que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) das mensagens. (BARDIN, 2002, p. 160) Uma das características, portanto, que define essa abordagem é a busca do entendimento da comunicação entre os homens, apoiando-se no (re) conhecimento do conteúdo das mensagens. Resultados Para a análise dos depoimentos docentes, nos apoiamos nos possíveis critérios para escolha do livro de literatura apontados por Brandão e Rosa (2010). Realizamos a leitura das entrevistas, buscando identificar se as docentes mencionavam tais critérios e quais outros, não destacados pelas citadas autoras, haviam aparecido nos depoimentos de nossas professoras. A partir dessa análise foi possível identificar cinco critérios. Alguns destes mais mencionados que outros, como podemos evidenciar no quadro abaixo: Quadro nº 2 Critérios elencados pelas professoras da Educação Infantil e do 1º ano do Ensino Fundamental. Critérios mencionados Professoras 1 1) As afinidades estéticas do professor 2 3 4 5 6 X 7 8 9 10 III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 2) As preferências X demonstradas pelas crianças 3) Conhecimento do acervo X X 4) Preocupação social no que tange ao desenvolvimento de valores 5) Diretrizes estabelecidas pela Secretaria de Educação Municipal. X X X X 309 X X X X X X X X X X X X X X X X Como pode ser visto houve uma variedade de critérios e estes se remetiam a aspectos diferentes: ora o foco era na criança ora no conhecimento do professor ou nas orientações oficiais para o seu fazer pedagógico. Também notamos que as professoras citavam critérios diferentes ao mesmo tempo. Abordaremos cada um desses critérios mencionados, apontando os mais recorrentes. Apresentaremos alguns fragmentos das entrevistas realizadas, buscando melhor esclarecer estes critérios e compreender as escolhas docentes com relação ao livro literário. 1) As afinidades estéticas dos professores O primeiro critério abordado por Brandão e Rosa (2010) – As afinidades estéticas do professor – leva em consideração as próprias exigências estéticas do professor. Este critério considera a obra como um todo, isto é, o texto, as imagens, que despertam sensações e produzem efeitos no momento da leitura. Apenas por uma professora. Vejamos abaixo: Professora 6, do 1º ano do Ensino Fundamental: Até eu mesma gosto de estar apreciando esses livros. Gosto muito de ler estes livros. Então assim, esses livros. Eu sinto que eles percebem o meu gosto pela leitura, no dia a dia e eu vou descobrindo com eles assim o agradável dessas leituras, os motivando, depois eles pedem: Professora deixa eu olhar, deixa eu olhar! É uma briga na sala, para depois cada um manusear pessoalmente. O depoimento da docente demonstra entusiasmo com relação à leitura. Como a própria fala revela, esse entusiasmo reflete diretamente nos ouvintes que se mostram ansiosos para manusear o livro e desfrutar de sua leitura. Assim, reconhecemos que a professora 6 considera essencial à prática docente a mediação da leitura, tendo como propósito a formação de novos leitores. Concebemos, Nas fronteiras da linguagem ǀ 310 portanto, que à medida que o leitor, melhor dizendo, que o professor leitor aprimora e desenvolve suas estratégias de leitura, este também aperfeiçoa suas escolhas estéticas, de modo que os livros escolhidos irão se adequar aos seus padrões eruditos estéticos. Ao compartilhar suas afinidades estéticas, o professor acaba auxiliando no desenvolvimento da sensibilidade das crianças. 2) As preferências demonstradas pelas crianças Conforme mencionado acima, o segundo critério abordado por Brandão e Rosa (2010) são as preferências demonstradas pelas crianças. Este critério leva em consideração a opinião dos ouvintes, neste caso as crianças. Existe, portanto, uma preocupação em tornar o momento de leitura agradável. Todas as professoras da nossa pesquisa percebiam bem a importância de levar em consideração os interesses infantis na hora de selecionar o livro. Observaremos nos depoimentos a seguir que, ao optar por este critério, a leitura se tornava mais interativa e, consequentemente, mais proveitosa, facilitando a formação de leitores. Este critério, como pode ser visto no Quadro nº 2, foi o mais citado pelas professoras participantes desta pesquisa, visto que todas elas evidenciaram, ao menos uma vez em seus depoimentos, a preocupação em tornar o momento de leitura agradável para os seus discentes. Vejamos um dos depoimentos: Professora 4 da Educação Infantil: Eu adequo a história a o contexto deles e a faixa etária. A gente sabe que cada livro tem a faixa etária adequada né?! Livros muito longos, ai se for muito longo eu divido a história, se o livro for curtinho a história pequenininha com bichinhos porque eles estão na fase de livros com bichinhos né?! História de animais que é o que chama a atenção. Com crianças que tem um contexto de acordo com o deles, ai eu escolho assim. Geralmente a maior parte dos livros que eu li até agora foram de animais, historinhas de bichinhos porque é o que chama mais atenção. A docente expõe claramente sua preocupação, seu critério de escolha do livro literário. Em suas escolhas prevalece a leitura de histórias, porque estas “chamam” a atenção das crianças, ou seja, existe o intuito de que o momento de leitura seja agradável para os seus alunos. Ao observar a fala da professora 2, também da Educação infantil, encontramos mais uma característica deste segundo critério – As preferencias demonstradas pelas crianças. Para identificar as preferências dos seus discentes, as professoras expõem os mesmos ao acervo escolar, como bem sugeriu Brandão e Rosa (2010): III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 311 Professora 2 da Educação Infantil: Eu procuro sempre deixar eles à vontade na sala para escolherem que material eles querem manusear, seja livros, seja revista e tem lá um armário, não tem portas o armário e os livros ficam lá sempre, sempre a disposição deles. Então, entre uma atividade e outra sempre têm aqueles que terminam a atividade com mais facilidade. Terminou a atividade: - Tia, posso olhar uma revista? – Tia, posso olhar um livro? - Pode! Ficam bem à vontade. Ao adotar esta atitude a professora proporciona uma maior interatividade das crianças com os livros e aproxima os discentes do mundo literário, os auxiliando no desenvolvimento de seus próprios critérios de escolha. Assim, ela pode identificar, através destes momentos, o interesse demonstrado com relação a determinadas temáticas, bem como autores e gêneros literários. Constatamos esta atitude, também no depoimento da professora 8 do 1 ano: Eu me reúno com eles, e vou escolhendo aqueles que eles gostam mais, os de mais fácil compreensão é o que a gente trás.[...] Porque tem que elevar informação para eles né, de literatura que geralmente é esquecida né, geralmente, a gente conta, contava mais outras histórias. Hoje não! A literatura tá inserida em sala de aula. Através do depoimento da professora 8, constatamos uma preocupação em escutar a opinião das crianças, utilizando estes momentos para obter e oferecer informações, entendendo a importância de exercício do seu papel de mediadora literária. No depoimento da professora 2, da Educação Infantil, também é exposto a preocupação em identificar as preferências dos discentes como forma de estimular e desenvolver o gosto pela leitura. Ao relatar como era realizada a escolha do livro literário, perguntamos a docente os motivos que a levaram a adotar este critério: Professora 2 Educação Infantil: Acho que facilita para o aluno, como ele ainda não lê, eles se interessam muito por essa parte visual do livro, pela parte tátil também. Aqueles livros que produzem sensações, que estimulem os outros sentidos, não só a audição. Livros que eles possam tocar e sentir outra textura, aqueles livrinhos musicais, aqueles livros grandes eles gostam muito. Quando você chega com aquele livro enorme: - Que livrão! Eu acho que isso estimula muito eles. Conclui-se que os livros que despertam um maior interesse a faixa etária assistida na Educação Infantil são os que contemplam a necessidade de compreender o mundo. “Logo, terão muito mais sentido para as crianças desta idade livros de borracha (infláveis e coloridos) Nas fronteiras da linguagem ǀ 312 ou livros de pano (macios e bem costurados) que possam, por exemplo, ser manuseados pela própria criança [...]” (KAERCHER, 2001, p.84). 3) Conhecimento do acervo a que os estudantes têm acesso (na escola ou fora dela) O terceiro critério apontado por Brandão e Rosa (2010) é o conhecimento do acervo a que os estudantes têm acesso (na escola ou fora dela). As autoras remetem-se aos Programas Nacionais como PNBE – Programa Nacional Biblioteca na Escola, que tem distribuído uma grande diversidade de livros de literatura para as escolas. Estes precisam ser conhecidos para serem melhores utilizados no contexto escolar. É preciso que, nas formações continuadas, os professores tenham acesso direto ao que chega à escola como material de leitura, podendo avaliar e estabelecer os seus critérios em relação ao acervo disponível. Com relação ao município de Garanhuns, em nossa pesquisa, evidenciamos a forte referência ao PNAIC – Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, principalmente, por parte das professoras do 1 ano. Várias docentes mencionaram o acervo disponibilizado para a escola pelo programa e afirmaram conhecer os livros que compõe tal acervo. No entanto, ao relatar o título de alguns livros utilizados nos momentos de contação de histórias, foi possível identificar que o acervo, ao qual as docentes estavam se referindo advém do Programa obras complementares na escola. Estas Obras Complementares visam auxiliar a prática docente, principalmente, no que diz respeito ao processo de alfabetização na perspectiva do letramento, e consequentemente a ampliação cultural das crianças. A seguir um dos depoimentos que se remete ao conhecimento desse acervo para a tomada de decisão sobre qual livro trabalhar: Professora 8 (1º ano) O acervo do PNAIC dá essa liberdade da gente emprestar, mas são trinta livros, na verdade eu tô com 48, vou retificar, a gente ganhou uma caixa com trinta e depois a prefeitura disponibilizou outro acervo com mais 18 ai eu tô com 48, só que assim são textos longos, tem alguns que são textos longos como eu tô com o primeiro ano eu creio que o ideal, seria melhor textos mais curtos, que ai estimularia ainda mais a vontade deles, deixaria eles ainda mais seguros uma quantidade menor de texto a ser lido. Segundo Brandão (2006), o conhecimento do acervo disponível a escola, por parte do professor, pode se caracterizar como uma importante estratégia para que os discentes tenha III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 313 acesso a um variado repertório de gêneros literários. Identificamos claramente o terceiro critério no trecho abaixo, no depoimento da Professora 3, da Educação Infantil: Agora, eu acho assim, que o acervo para a educação infantil, o que vem para as escolas, deveria ser melhor, às vezes vem livros assim que eu acho de auto- entendimento, assim é complicado para eles entenderem. Aí, esses que vem assim, eu sempre vou deixando para lá, eu faço uma seleção não é?! Mas os que vêm mesmo assim para a escola, eu acho que deveria para Educação Infantil ser livros de outra qualidade. Porque vem assim, tanto vem para o Fundamental como vem para a Educação Infantil, tudo igual, né?! E deveria ser selecionado, mas o professor faz esse trabalho. Acredito que todo professor ele seleciona o que é melhor para a sua turma. Como comenta a professora, o professor tem a responsabilidade de selecionar este material, assim como avaliá-lo e escolhê-los antes mesmo de chegar na escola. Através do depoimento evidenciamos o conhecimento da professora em relação ao acervo escolar, mas também uma insatisfação com relação ao mesmo. 4) Preocupação social no que tange ao desenvolvimento de valores O quarto critério – Preocupação social no que tange ao desenvolvimento de valores – foi estabelecido a partir do depoimento de três das professoras pesquisadas, como podemos evidenciar no quadro 2, sendo duas delas da Educação Infantil e uma do 1º ano do Ensino Fundamental. Este critério remete a função social da escola. Professora 4, Educação Infantil: Porque na minha sala eles estão muito desobedientes e a gente sabe que contos de fadas, desde que sugiram, foram inventados, criados pra tipo moldar as pessoas e não era para crianças, era para adultos né. Ai como eles estão desobedientes, a pes- soa fala eles não tão obedecendo na escola nem tão obedecendo em casa porque as mães vem relatar. Ai eu contei a história de Chapeuzinho justamente para enfatizar na hora a obediência, que precisa obedecer. Uma questão de moldar através da história. (risos) Com relação à literatura que aborda temas de valores sociais, como relatado anteriormente, Teberosky e Colomer (2003) alertam que os precisamos ter cuidado quanto ao excesso destas leituras na sala de aula. Elas classificam esses livros como “livros prescritivos”. Nas fronteiras da linguagem ǀ 314 Considerando esta questão, Brandão e Rosa (2010) comentam que se corre o risco de ler textos pouco atrativos para as crianças, mal escritos e que não despertem emoções, a sensibilidade infantil, podendo ainda excluir obras clássicas que abordam sentimentos humanos fundamentais. 5) Diretrizes estabelecidas pela secretaria de educação municipal O quinto critério – Diretrizes estabelecidas pela Secretaria de Educação Municipal – também foi construído a partir das entrevistas realizadas. A Secretaria Municipal realizou a implantação de um projeto, que abrange da Educação Infantil ao 5º ano do Ensino Fundamental. Este projeto intitulado “Despertar” foi estabelecido em todas as escolas públicas de responsabilidade municipal. O projeto “Despertar” determina uma rotina a ser seguida. Todo o projeto circunda sobre temas geradores quinzenais, os quais devem ser vivenciados em sala de aula. Assim, cabia a todas as entrevistadas a aplicação deste projeto durante todo o ano letivo. A partir das entrevistas foi possível levantar alguns temas geradores trabalhados no projeto. Vejamos o relato da Professora 5, da Educação Infantil: [...]Tem dois temas, tipo... É... Teve a história de Garanhuns, tem é sobre bulling, essas coisas . Então a gente procura histórias que falem alguma coisa alguma coisa a respeito daquele tema que a gente tá trabalhando na quinzena, é por quinzena cada tema. A gente trabalha fazendo isso. Farias e Dias (2007) expõem que “As secretarias não têm o papel de elaborar propostas pedagógicas, mas a responsabilidade de contribuir, subsidiando tanto as IEI1 públicas quanto as privadas de seu sistema nessa elaboração.” (p. 27). Assim, cabe às secretarias o acompanhamento, a supervisão, bem como a avaliação do processo de elaboração e implementação das propostas, de maneira a identificar necessidades e desenvolvendo estratégias que possibilitem o avanço e a melhoria destas propostas. No depoimento da Professora 10, do 1º ano, também identificamos a preocupação em seguir as diretrizes do referido projeto: Bem, o tema gerador tem que ser vivido, ele tem que ser aprofundado na sala, então o ideal é que a gente não fique só fixado no cartaz que a gente leva. [...] E também relacionado com o 1 IEI – Instituições de Educação Infantil. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 315 tema gerador, como a gente não vai encontrar 15 dias livros sempre que tenha haver com aquele tema ai eu vou intercalando. Como pode ser visto, as professoras de certa forma ficam presas ao tema gerador e como precisam seguir o projeto acabam, por vezes, utilizando como único critério de escolha dos livros a serem oferecidos aos alunos, o fato destes tratarem algo sobre o tema da quinzena. Acreditamos que esse critério de escolha é limitador e pode não favorecer a ampliação do letramento literário dos alunos. Os professores podem, ao se prenderem no tema, esquecerem de observar outras questões importantes, tais como a qualidade dos textos e os interesses dos alunos. Por fim, nos parece que a leitura no 1º ano do Ensino Fundamental está muito mais associada à exploração dos conteúdos estabelecidos para tal ano de escolaridade, ou seja, a proposição de atividade de alfabetização, do que necessariamente a uma preocupação com a formação de leitores ativos. Com relação às professoras da Educação Infantil, identificamos uma maior preocupação em tornar o momento de leitura o mais lúdico possível, fato que se dá porque a prática da Educação Infantil está muito mais associada ao lúdico, entendendo-se que a aprendizagem pode se dá através da brincadeira. Referências BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2002. BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; ROSA, Ester Calland de Sousa. A leitura de textos literários na sala de aula: é conversando que a gente se entende. In: PAIVA, Aparecida; MACIEL, Francisca; COSSON; Rildo. (Orgs). Literatura: Ensino Fundamental. Coleção Explorando o Ensino; v. 20. – Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010. BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; ROSA, Ester Calland de Sousa. Entrando na roda: as histórias na Educação Infantil. In: BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; ROSA, Ester Calland de Sousa. (Orgs). Ler e escrever na Educação Infantil: discutindo práticas pedagógicas. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. (Língua Portuguesa na Escola; 2). BRANDÃO. Ana Carolina Perrusi O ensino da compreensão e a formação do leitor: explorando as estratégias de leitura. In: BARBOSA, Maria Lúcia Ferreira de Figueiredo; SOUZA, Ivane Pedrosa de (Orgs). Práticas de leitura no Ensino Fundamental. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. Nas fronteiras da linguagem ǀ 316 FARIA, Vitória Líbia Barreto de; DIAS, Fátima Regina Teixeira Salles. Currículo na Educação Infantil: diálogo com os demais elementos da Proposta Pedagógica. – São Paulo: Scipione, 2007. GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4ª ed. 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Para Schøllhammer (2011), a insistência do presente temporal, a “agoridade” com a qual se relaciona a literatura brasileira fragmenta a produção contemporânea em diversos rumos, frutos de diferentes formas de questionamentos da consciência história. Costumeiramente polarizadas, duas vertentes surgiriam, uma primeira ligada a brutalidade do realismo marginal, e uma segunda que “aposta na procura da epifania” (SCHØLLHAMMER, 2011, p.15), no mergulho do cotidiano subjetivo. A oposição entre duas estéticas literárias é, entretanto, reducionista, e a literatura que hoje trata de problemas sociais não exclui a dimensão pessoal e íntima, ao mesmo tempo que a experiência subjetiva não ignora a turbulência do contexto social e global. Por entre o embate estético, parece surgir na literatura brasileira um redesenho de fronteiras e a mobilidade sobremoderna, a qual se referira Marc Augé, adentra suas narrativas. Zilá Bernd (2007), aliás, anteriormente apontou e discutiu como a mobilidade cultural caracteriza o imaginário das Américas, em particular a América Latina, uma mobilidade tal que abre espaço para a aproximação de culturas através de processos transculturais. O florescimento de inúmeros romances memorialistas e depoimentos consistem, no Brasil, uma larga produção de biografias e relatos de estrangeiros que pleiteiam suas vivências de deslocamento geográfico e cultural. O histórico brasileiro de imigração permitiria que nossa literatura se preocupe com as diversas facetas do homem em contraste com o outro, e o que se poderia chamar de literatura de imigração emparelha-se também com a aproximação cultural com o Oriente, muito embora sejam esparsos os exemplos de versos ou prosas que representem etnias orientais. Segundo o levantamento de Chiarelli1, poderíamos 1 Apud TAVARES, Zulmira Ribeiro. O puro amarelo do verão: “O japonês dos olhos redondos”. Nas fronteiras da linguagem ǀ 318 citar Oswald de Andrade e Mário de Andrade, os poetas Haroldo de Campos e Paulo Leminski, e, na prosa contemporânea, Bernardo Carvalho e, finalmente, Adriana Lisboa. Nascida no Rio de Janeiro, Adriana Lisboa escreve Rakushisha em 2007, obra fruto de uma bolsa pesquisa da Fundação Japão. O romance entrecortado por fragmentos narrados tanto em primeira quanto terceira pessoa mescla diferentes tempos e espaços desvelando paulatinamente as histórias de Celina e Haruki. O encontro entre os dois protagonistas, não por acaso em um metrô, faz surgir em meio ao contraste entre Brasil e Japão as memórias túrgidas de um passado que se recusa a ser esquecido. É a viagem ao Japão que os une e os põe em contato não apenas com a existência do desconhecido, representado pela língua e os costumes japoneses, mas também com seus lados mais íntimos. Muito pode ser dito sobre Haruki no que se refere à responsabilidade que sua aparência japonesa atribui. Sem saber falar japonês e completamente afastado da cultura nipônica, Haruki assume o papel de japonês no Brasil e de brasileiro quando no Japão. Duplamente desterritorializado, ele se sente um corpo estranho (LISBOA, 2014, p. 20) dentro da Embaixada do Japão. Para nós, no entanto, o choque cultural de Haruki com suas raízes japonesas não se dará somente pelo seu entre-lugar identitário, mas fusionar-se-á às escavações mnemônicas presentes em Rakushisha. O romance de Adriana Lisboa faz do deslocamento Brasil-Japão o assunto e o mote de seu enredo. É a quebra do cotidiano, o descolamento do chão que propulsionam os acontecimentos de Rakushisha. É de nosso interesse, portanto, buscar quais implicações a narrativa de viagem aporta a fim de acompanharmos a construção do sentido da experiência subjetiva que, em Rakushisha, parte de um entrelaçamento imperfeito entre corpo, alma e memória, e de um continuum entre passado, presente e futuro. Por entre os fragmentos que documentam e desvelam as histórias de Celina e Haruki, estão os escritos de Bashō, importante poeta japonês do período Edo no Japão. Como afirma Cury (2012), esses fragmentos “mesclam-se na mesma busca, no mesmo caminho de reconhecimento identitário do narrador, a produtividade das sendas propostas por Bashō”. O livro de haicais serve ainda como um guia da narrativa: Haruki decide ir ao país de seus ancestrais porque foi convidado a criar os desenhos de uma edição traduzida que sairia no Brasil; Celina conhece Haruki porque ela se interessa pela quase comovente figura do japonês que lia poesias japonesas – embora ele não soubesse ler em japonês - sozinho dentro do metrô do Rio de Janeiro. Ademais, o livro sela o reencontro de Haruki com sua antiga amante Yukiko – a então tradutora dos poemas – e se torna a bússola de Celina durante sua estadia em Kyoto, que decide refazer o itinerário de Bashō. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 319 A introdução da poesia japonesa na narrativa de Rakushisha revela o quão importante é o vasculhamento do passado. Os trechos do diário de Bashō, também relatos de uma viagem, são extratos de sentimentos e memórias do poeta. O íntimo de seus relatos transborda por sobre as próprias recordações de Celina e Haruki constituindo um romance consciente de si, no qual o deambular de seus personagens representa o próprio desenvolver da narrativa. Por entre as ruas labirínticas de Kyoto, para Celina, e Tóquio, para Haruki, vão se materializando experiências passadas; o caminhar dos personagens se transforma aqui como um longo processo de apropriação do sistema topográfico, nos termos de Michel Certeau, que busca não apenas o reconhecimento físico das ruas, mas a criação de um espaço de enunciação. A definição desse espaço é essencial para o desenrolar do romance e serve como resposta aos sentimentos oblíquos e turvos de ambos os personagens, ambos perdedores e perdidos – Haruki, porque perdeu sua amante; Celina, porque perdeu sua filha. O ato da viagem repentina ao Japão, curiosa decisão que leva Haruki a se perguntar “se ela [Celina] fugia, se corria, se acorria, se acudia, se esquecia, se lembrava, se fechava os olhos, se os abria” (LISBOA, 2014, p.77), é, em verdade, o primeiro indício de um exílio pessoal voluntário que, embora tenha tido supostamente o objetivo de fugir do passado, surge como oportunidade de redefinição. As redes da cidade desconhecida, excludente ainda com seus cinco sistemas de escrita distintos, vão pouco a pouco construindo as histórias múltiplas dos protagonistas e desvelando seus fragmentos de trajetórias. Na lojinha de papel, tudo começa, “comprei o caderno. O caderno se tornou um diário” (LISBOA, 2014, p.35). Celina escolhe um pequeno manual de turistas para guiar seus passeios, e é com ele que ela percorre ruas, lojas, pontos turísticos, reconhecendo sua própria história em rostos e muros desconhecidos. Como seria possível que se sentisse em casa ali, se não entendia nem mesmo as inscrições nas placas ao seu redor? Se não tirava sentido das palavras ditas ao seu redor? Mas era uma casa. Era uma casa segura. Não havia o que temer em Kyoto, na solidão que tinha em Kyoto, aquela afável solidão acompanhada. (LISBOA, 2014, p.57) Ultrapassado o abismo entre a clandestinidade primeira e a criação e consequente aceitação do Japão como um espaço privado e amparador, uma casa segura, as imagens da cidade vão trazendo à tona o que Celina não esperava lembrar. O caminhar, afirma ainda Certeau, é ter falta de lugar, é o processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio. Todo o romance de Adriana Lisboa parece fixar-se em uma intuição singular de movimento. A importância à qual Celina atribui aos pés, Nas fronteiras da linguagem ǀ 320 mencionados quase obsessivamente ao longo da narrativa, sugere ainda uma concepção do andar que ultrapassa o sistema físico-motor e refere-se ao um movimento cinético no qual a carne – no caso específico do romance, os pés - é capaz de tornar o corpo presente no mundo: Um dia Celina se deu conta de que o que mais lhe importava em seu corpo eram os pés. Onde seus pés estivessem no momento estaria sua alma, ou como quer que se chamasse, ela pensava, aquela parte do corpo que sempre ameaçava exceder o próprio corpo. (LISBOA, 2014, p.29) Quase como um esquema perfeito do que Merleau-Ponty afirmou ao estudar o espaço do corpo, percebemos em Rakushisha que o corpo se caracteriza como uma condição de possibilidade de percepção do estar no mundo, que se entrelaça à alma, ao intangível, e que se complica e implica por entre vísceras: Supõe-se que os músculos se encontrem todos no lugar, e os ossos por baixo deles, e as sinapses transmitindo a intenção – a intenção não, a determinação, a ordem do cérebro. Esse déspota. [...] Posso ir bem devagar, o meu devagar, porque estou sozinha. Posso escolher o ritmo da minha dificuldade de caminhar, o ritmo do peso das minhas pernas. (LISBOA, 2014, p.13) A percepção do corpo e de seus componentes vai lentamente atrelando o lado material dos músculos e dos ossos ao ato intáctil do viver – relação intermediada pelo cérebro, que, ainda segundo Merleau-Ponty, constrói e encena o espaço do mundo. Ao centrar seu romance na imagem dos pés, tanto em sua acepção literal quanto metáfora de viagens e do deslocamento por entre as ruas, Adriana Lisboa poria em jogo uma personagem que, através do corpo, confronta o mundo, seu passado, e também se faz parte dele. É por isso, talvez, que Celina não compreenda como as japonesas costumavam equilibrar-se com seus tamancos geta e conseguiam “caminhar daquele modo, com dezessete centímetros de distância entre sua pele e o chão” (LISBOA, 2014, p.59). O corpo, a carne, inúmeras vezes colocados em posição dicotômica à pureza da alma, deixa de ser visto como maquinaria e passar a ser analisado em todas suas instâncias. Para Lisboa, existe uma espécie de justaposição de todos os campos do corpo, e os pés sobre pés figuram uma metáfora adequada para o romance; uma metáfora que propõe estabelecer e reunir no corpo feminino (com Celina, e também com Yukiko, a amante de Haruki) o centro de toda a experiência do eu. A partir de uma percepção tríplice do esquema corporal o corpo adquire três modos de representação, tal qual teorizara Bergson, a carne, a imagem do corpo e o cérebro; os três de funcionamento diverso, mas interdependentes. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 321 Dentro de uma narrativa de viagem é provável que pareça contraditória a necessidade de colar-se ao solo, de manter-se ligada a uma estrutura fixa e imutável. Entretanto, a obra de Adriana Lisboa é construída sobre um alicerce de pequenas e importantes dicotomias que, longe de serem paradoxais, são complementares entre si. Se Celina deseja a união entre corpo e chão, ela também não consegue superar a cisão imperfeita entre corpo e alma, instâncias que, em Rakushisha, sobrepõe uma a outra. A interferência do que Celina considera alma é também um peso, mas Não era um peso de ossos, músculos, vísceras, gordura. Era um peso de peso. De essência. A balança podia dizer 49 quilos: a balança não entendia nada de peso. Ali dentro do estômago estavam pelo menos tantos outros, multiplicados por dez, por cem. (LISBOA, 2014, p. 117) Celina exibe um tipo de sensibilidade moderna, na qual o passado funciona como um fardo para o presente e para o futuro. Mais do que isso, o peso do corpo permitia a reminiscência contínua, pois se faz absolutamente, fisicamente presente, ao mesmo tempo em que impossibilita a imagem do futuro. “O futuro não existia mais. O passado sim, embora fosse esfumaçado e móvel. Mas o futuro não” (LIBSOA, 2014, p.29). Ironicamente, o passado é movediço, o futuro imutável. Longe de ser relicário, o passado é, em Rakushisha, um interventor. Ele se habilita a transformar a viagem de Celina e Haruki, e moldado em memória, aparece em momentos oportunos que engatilham uma ação de mão dupla: a memória é evocada pelo espaço da narrativa, mas torna-se, em si, também lugar de enunciação e é capaz de mudar a forma pela qual Celina e Haruki enxergam seus arredores. As bicicletas japonesas fazem Celina lembrarse simultaneamente de seu ex-marido e sua filha; Haruki, por outro lado, vê em Kyoto as implicações da morte de seu pai e do fim de seu romance extraconjugal. É somente a partir dessas considerações que os protagonistas do romance de Adriana Lisboa são capazes de caminhar em direção a uma certa absolvição do passado. Notemos, portanto, que corpo e cidade – por que não o corpo da cidade? – possibilitam, em Rakushisha, o espaço do eu. Por um lado, o Japão oferece para os personagens da trama a possibilidade de um caminho em branco, um canvas vazio que vai se preenchendo concomitantemente das manchas do passado e dos temores do futuro. É por isso que no primeiro dia de estadia de Haruki, Ele dormia, na primeira tarde nesta cidade. Naquele momento não era de ninguém, não era sequer de si mesmo, ele era antes uma reconstrução. Um romance. Uma Nas fronteiras da linguagem ǀ 322 ficção por detrás dos olhos fechados. Havia uma dor guardada em algum lugar? (LISBOA, 2014, p.69) Erige-se ali a oportunidade da reinvenção, que se deseja atrelar ao próprio fazer narrativo. O corpo dos personagens, por outro lado, não é exposto como uma tábua rasa, mas está pleno. Encarnação de experiências passadas, o corpo carrega o que a alma sofre. E é por isso que o toque, talvez tão mais do que a cidade, revira e faz ressurgir dentro da narrativa o que nunca havia sido esquecido pela memória individual dos protagonistas. Embora Adriana Lisboa tenha permitido pequenos indícios ao longo da trama sobre o que realmente teria acontecido com a filha de Celina, o início da revelação última surge como pancada, como dor. Ao preparar café, Celina esquece-se de checar a temperatura da chaleira e crava sua mão no ferro quente. O intermédio é tão importante que existe uma demarcação 24 de junho, após a queimadura (LISBOA, 2014, p.128) no diário de Celina. Demarcação justa, pois Esse é o meu grande engodo. Minha dor é minha: marca na pele, feito a vermelhidão da queimadura. Existe como uma visita na sala de estar. A dor, senhorinha sentada no canto do sofá. (LISBOA, 2014, p.128) É a marca vermelha na pele, o ardor quente da dor que faz com que Celina comece a explicitamente contar como se deu o acidente de carro que matou sua filha, acidente causado pelo próprio ex-marido. A memória é aqui mediatizada pelo corpo, e do corpo far-se-á surgir as respostas. O mesmo ocorre, aliás, durante a contemplação do corpo de Yukiko, a amante de Haruki. Enquanto Celina imagina como deve ser a tradutora japonesa dos poemas, é a partir de imagens corpóreas aparentemente insignificantes pelas quais ela vai re-montando a presença de Yukiko. Aqui o corpo imaginado cria uma ponte, enquanto ele é marcado a ferro pelas experiências passadas, essas marcas se tornam signos e supõem a existência atual de cada um dos personagens. Não é, portanto, surpreendente perceber que Celina recria Yukiko também através de uma imagem da dor, de mordidas de um cão que, talvez como Celina e Haruki, só sabia viver mordendo. Haruki, ele próprio, também se questiona sobre os limites do corpo ao implantar as coisas do espírito dentro de cada uma de suas células: Era possível fazer essa divisão entre as coisas do corpo e as do espírito, ou ambas estavam (eroticamente) imbricadas, como a linha melódica de uma fuga? Mas o espírito, Haruki pensava, morava nas células nervosas, e o corpo era substância volátil, como álcool – apenas demorava um pouco mais para se volatilizar. (LISBOA, 2014, p.78-79) III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 323 A volatilidade do corpo poderia aqui imbuir um símbolo de morte, perfeitamente aceitável dentro da narrativa, porém parece trazer consigo uma outra significância, tão importante quanto. Não são raras as vezes em que Haruki não enxerga o corpo físico de Celina, mas a vê como um holograma a ser recuperado (LISBOA, 2014, p.38), um fantasma. A mulher já tinha nome. Celina. E, coerentemente com esse nome, parecia mesmo alguma coisa volátil a Haruki. Talvez por dentro ela não tivesse ossos nem músculos nem vísceras, mas ar. Um pedaço de céu recoberto pela fina epiderme humana. Um pedaço de céu quase humano. Por fora, ela era o sorriso mais triste que ele tinha visto nos últimos tempos. (LISBOA, 2014, p.25, grifo nosso) A recorrência do adjetivo volátil associado à percepção do corpo de Celina não pode ser ignorada, principalmente quando à luz das reflexões de Haruki, que transforma o corpo como arcabouço da alma. Ousaríamos ir além e afirmar ainda que Haruki utiliza alma como termo interdependente e semanticamente sinônimo à memória. Imbricada por entre células, é a memória que pesa, que consome, que fragiliza. A assinalação do erótico, também recorrente no romance, não é, ainda, sem propósito. Enquanto carne e espírito se cruzam, a sexualidade é posta como o intermédio do eu – mas um eu que se direciona ao outro e o contato entre corpos é também fonte da rememoração: Sexo era outra coisa. Celina podia correr todos os riscos. Podia fechar os olhos. Podia titubear e não saber onde estava, se no chão, se nas nuvens. Podia sentir, como quem fura a onda gelada do mar, as mãos de Marco no seu corpo, pela primeira vez. (LISBOA, 2014, p.45) As memórias ligadas à sexualidade de Celina possuem importante papel ao longo da narrativa. Elas existem na hesitação de Celina em tocar Haruki – e vice-versa -, na constante recusa do ato por medo de trazer à tona a lembrança das mãos em si. No fim, o que Celina procura escapar é o que a própria Adriana Lisboa nomeia memória do tato (LISBOA, 2014, p.93). Uma memória que surge do tato, tal qual acontecera com a chaleira quente. Essa memória encarnada permite, então, que Celina e Haruki reajam ao presente baseados em suas ações passadas. É interessante notar que, em um certo momento da narrativa Celina tinha dúvidas de que ainda soubesse andar de bicicleta. Aquele mito de se tratar de algo que nunca se esquece não passava disso: mito. Quase tudo era passível de ser esquecido. (LISBOA, 2014, p.172); ela teme ter esquecido o pedalar, mas, mais a frente, vemos que ela anda naturalmente de bicicleta, sem sequer notar. No corpo reside informações passadas e, posto como centro de toda ação, ele é capaz de lembrar e modificar o presente. Adriana Lisboa Nas fronteiras da linguagem ǀ 324 representa a matéria enquanto coabitação de forças múltiplas, lugar e filosofia materializada. O corpo sabe ser feliz por conta própria. O corpo prescinde dessas bobagens da alma. (LISBOA, 2014, p.139) Essa multiplicidade se reuniria justamente no intuito de uma reconstrução da existência em frangalhos. A ficção a qual se submete Celina e Haruki é um exercício de retomada do passado, é um olhar que percorre estradas antigas e que ousa tocar na dor esquecida. “Você ia ficar feliz, velho. Cutucar o passado com a ponta do dedo do pé. Para constatar sua imobilidade?” (LISBOA, 2014, p.76), pergunta Haruki a seu pai já falecido. Mas o cutucar do passado não é, em Rakushisha, mera contemplação. Parece-nos que, ao falar da origem de seu sobrenome, Haruki revela a ideia central do romance de Adriana Lisboa. Herança deixada por Ishikawa pai: a ideia frágil de um rio corrente sobre as pedras silenciosas, passando, apenas, em meio a um mundo de sonhos. Haruki sabia que um rio falava de dúvidas. Nunca se atinha a si mesmo. Nunca se cristalizava na pedra que o acolhia. Ao mesmo tempo, a pedra, que parecia eterna, ia se gastando e se deslocando da maneira mais contundente de todas – sem alarde, sem aviso. (LISBOA, 2014, p.49) A metáfora criada a partir de pedras e rios pela autora delineia e representa com sutileza o cotidiano de seus personagens: imersos em dúvidas sobre o futuro, eles se veem presos às pequenas pedras, aparentemente imutáveis, do passado e vão se descobrindo correnteza. De inspiração quase heraclitiana, o trecho parece desdobrar o paralelo essencial que Adriana Lisboa desenha com ele; que passado, presente e futuro se unem em um rio corrente cujas pedras não mais tão silenciosas vão sofrendo a influência dessa singular trajetória. O passado desloca sob a pressão das vivências futuras. Longe de ser, entretanto, uma narrativa de superação, Rakushisha se impõe como uma tentativa de conciliação dos personagens com suas histórias. A sobreposição entre passado e presente, tão proeminente em Rakushisha, é portanto uma mescla entre sombras passadas e desejos futuros, ambos inalcançáveis, mas circunscritos dentro de uma irrefreável linha de progressão. O corpo, basilar nesse processo, seria o produto de suas próprias fantasias2, objeto de recriação e ser recriador, e, uma vez unido ao processo de rememoração, ele não seria um simples reservatório de memórias, mas uma totalidade das disposições das personagens em relação tanto ao passado quanto ao futuro. A infusão entre a matéria e as lembranças faz o corpo passar por um processo no qual ele suporta uma 2 FOUCAULT, M. O corpo utópico. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/38572-o-corpo-utopicotexto-inedito-de-michel-foucault III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 325 memorialização que se mantém constantemente viva e transforma a existência em um cenotáfio. Tal qual a viagem, a narrativa de Rakushisha se propõe não como uma revelação última – a menção ao acidente da filha de Celina sequer é inesperada para o leitor atento – mas como um processo de caminhada. Como Celina e Haruki, o leitor descobre por entre as linhas da cidade e as mágoas do passado o que já havia sido anunciado logo ao início do romance: Agora não dá tempo de te contar como aconteceu. E ainda não sei se andar equivale a lembrar, se equivale a esquecer, e qual das duas coisas é o meu remédio, se nenhuma delas, se nenhuma opção existe e se andar é o mal e o remédio, o veneno que tece a morte e a droga que traz a cura. [...] Seja como for. É só colocar um pé depois do outro. (LISBOA, 2014, pág.12) Referências ANDRIEU, Bernard. Le corps dispersé: une histoire du corps au Xxè siècle. Paris, L'Harmattan, 1993. BERND, Zilá. Figurações do deslocamento nas literaturas das Américas. In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº 30. Brasília, julho/dezembro, 2007, p.89-97. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Vol. 1. 13ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007. CERTEAU, Michel; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: morar, cozinhar. Vol.2. 7ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. CURY, Maria Zilda Ferreira. Cartografias literárias: Tsubame, de Aki Shimazaki e Rakushisha, de Adriana Lisboa. Interfaces Brasil/Canadá; v. 12, n. 1 (2012); p. 17-34 FOUCAULT, M. O corpo utópico. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/38572-o-corpo-utopico-texto-inedito-de-michel-foucault KOCH, S.; FUCHS, T.; SUMMA, M. Body Memory, Metaphor and Movement. Philadelphia: John Benjamins Publishing, 2012. OLIVIERI-GODET, Rita. Estranhos estrangeiros: poética da alteridade na narrativa contemporânea brasileira. In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n.29, Brasília, janeiro/junho, 2007, p.233-252. LISBOA, Adriana. Rakushisha. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011. Nas fronteiras da linguagem ǀ 326 TAVARES, Zulmira Ribeiro. O puro amarelo do verão: “O japonês dos olhos redondos”. In: DALCASTAGNÈ, Regina; DA MATA, Anderson Luís Nunes. (Orgs.). Fora do retrato: estudos de literatura brasileira contemporânea. Vinhedo: Horizonte. 2012. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 327 A VOZ QUE AGORA FAL(H)A, OU A MEMÓRIA DE PORTUGAL NO CORPO DO LIVRO E DO VELHO: UM ESTUDO SOBRE A MÁQUINA DE FAZER ESPANHÓIS, DE VALTER HUGO MÃE [Voltar para Sumário] Annie Tarsis Morais Figueiredo (UEPB/PPGLI) 1. Considerações iniciais O romance A máquina de fazer espanhóis (2011) do escritor afro-lusitano Valter Hugo Mãe tem como narrador-personagem o barbeiro Sr. Silva de oitenta e quatro anos. Sr. Silva ao perder sua esposa é colocado pela filha no asilo Lar da Feliz Idade, portanto além de sofrer muito com a perda da esposa a qual dividiu quase toda a sua vida o idoso se sente abandonado pelos filhos, é neste momento de perda e exílio da vida social que Sr. Silva passará a olhar e analisar seu passado, bem como atentar para sua fraqueza no tempo do salazarismo. Mister frisar que a memória individual do Sr. Silva ganhará uma dimensão coletiva, uma vez que o acontecimento histórico traumático da ditadura foi vivido por sua geração que agora se encontra no asilo, esses velhos são os protagonistas da História (esta mesma com H maiúsculo), agora cabe pelo exercício de narrar-se quebrar o silêncio que tanto esteve presente no Estado Novo. Um ressentimento ronda a velhice do idoso, o de não ter lutado contra o longo regime ditatorial instalado em Portugal em que as liberdades eram nenhuma. É na sua estadia do asilo que descobre pela primeira vez o que é amizade, em meio aos seus amigos surge a ideia de escrever um livro, sonho este que vinha desde décadas anteriores em que queria tornar-se escritor. Deste modo, o livro que temos em mãos é o livro de memórias do Sr. Silva, escrito em primeira pessoa, de discurso indireto livre, sintaxe e entonações peculiares que acompanham o ritmo do fluir da sua memória. Neste caso podemos dizer que A máquina de fazer espanhóis (2011) se trata de uma autobiografia do Sr. Silva, em que contará em dois tempos que se confluem, o passado ditatorial e o presente em que Portugal faz parte da União Europeia. Nas fronteiras da linguagem ǀ 328 Didaticamente o trabalho divide-se em dois pontos, o primeiro ponto analisaremos como o corpo do idoso, a letra de seus escritos e a história se interligam com a política, a voz e a memória. Para isso a noção de biopolítica, oralização da literatura e memória guiaram a análise, atribuindo-se à vivência de Sr. Silva uma ampla dimensão sobre a época do Estado Novo e contemporaneidade portuguesa. O último e segundo ponto está centrado na oralização da literatura na obra, a explicação deste termo e como ele aponta para novos olhares e caminhos teóricos sobre a literatura atual, neste trabalho ela adquire o caráter de biopotência, instância que possui certa força de vida e impulsiona a existência em meio aos poderes que se instalam sobre as liberdades humanas. A escrita destas análises aponta para as possibilidades de tecnologias da escrita que neste caso está intrinsecamente ligado à memória e política, uma vida socius que visa a relação de alteridade e construção de si, ou seja, uma correlação entre igualdade e singularidade. Ao passo que Sr. Silva juntamente com os outros velhos vão rescrever pontualmente, sob nova perspectiva, uma nova história crítica de Portugal, sendo ironicamente a partir dos que não tem mais espaço e força na sociedade. 2. Corpo, letra e história ou política, voz e memória do barbeiro Sr. Silva Falar sobre o corpo do velho, sua escrita e sua história é apontar para aspectos biopolíticos do seu lugar, da sua voz e da sua memória, assim sendo, a dimensão da escrita do Sr. Silva acaba por desenhar uma força ou potência que vai de encontro ao seu lugar ocupado socialmente. Para isso, dividimos este ponto em três questões que se entrecruzam e se dissolvem quando pensamos a escrita do barbeiro Sr. Silva, são estes: 1) corpo e política; 2) a letra e a voz e 3) história e memória. Começar pelo corpo afetado pelas forças do mundo é essencial, Sr. Silva que inicia suas memórias com a reclamação sobre a fraqueza de seu corpo velho, mas que a cada falha e ruga marcadas trazem um aprendizado pela vida e suas experiências, diz: “eu era apenas um olhar, um modo de ver. e nessa altura tudo me escapava das mãos. eu a querer que fizesse cuidado, mas nada me obedecia porque anda correspondia à lógica ilusória da minha cabeça” (MÃE, 2011, p. 111) O corpo do idoso se configura como se fosse um corpo desgovernado, sem mais o comando das ações voluntárias de antes, podemos verificar bem ao ler: um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprende-las, e faz todo o sentido que assim seja III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 329 para que afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento. a inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas as alegrias e no resultado da conta é bem-visto que a cabeça dos velhos se destitua da razão para que, tão de frente à mortem não entremos em pânico (MÃE, 2011, p. 33) Sendo o corpo uma estrutura material e senciente que escolhe se é ou não afetado pelos múltiplos estímulos que o atinge, o corpo acaba sendo antes de qualquer coisa o encontro com outros corpos, tocar objetos e pessoas, relacionar-se com os outros é um ato político na obra. No totalitarismo, através do medo, as pessoas não podem entrar em contato efetivo umas com as outras, embora por outro lado a sensibilidade do período traga um aprofundamento nestas poucas relações. Escolher com quem eu converso e em quem acredito é uma forma de estrategicamente burlar tais regimes, deste modo, Sr. Silva não teve amigo até o momento do asilo. A capacidade de se abrir ao novo é limitada no Estado Novo, o corpo é então de certa impotência frente ao sofrimento, em momento último de sua vida é que o narrador idoso aproveita para experimentar o que é a amizade e “com o tempo, começava a falar e criar afeto pelos outros” (MÃE, 2011, p. 27), compreender o que é amar pessoas sem laços sanguíneos, uma vez que se dedicou tanto à família, um dos ideais da tríade salazarista (junta à Deus e pátria), como se o espírito de comunidade fosse útil até certo ponto, o de fortalecer o nacionalismo e enfraquecer a força da união popular contra a política que imperava. Percebemos em A máquina de fazer espanhóis (2011) que o corpo fala, cada uma de suas rugas falam, pois marcam fatos da vida de Sr. Silva que serão rememorados pelo estado que se encontra sua estrutura física e o tempo que a talhou. Os pesadelos do idoso que acaba por compor-se uma matéria impalpável do indizível, traz como elemento simbólico um abutre que ronda suas noites querendo devorá-lo, o abutre é a materialização do seu remorso e covardia durante a vida, a de ser parte do rebanho calado do regime e o de entregar a única possibilidade de amizade na época à PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) para fazer parte do número de desaparecidos portugueses torturados e mortos. Aos poucos o pesadelo com o abutre não vai se tornando mais assustador e inconveniente, ao passo que o espantoso não o espanta mais, ele passa a compreender seus sentimentos e a ave não mais o arranca pedaços, mas sim sobrevoa pacífica e harmoniosamente seu ser. Aos poucos Sr. Silva vai encontrando lugares para colocar seu passado e a explicação pelo instinto de sobrevivência do período são justificados pela responsabilidade com seu filhos e esposa, embora a dor fosse grande, como pode-se ler: Nas fronteiras da linguagem ǀ 330 éramos todos livres de pensar as coisas mais atrozes. isso não nos impedia de sermos vistos pela sociedade como bons homens e de sairmos à rua dignos como os melhores pais de família, um homem havia de ser medido pelos seus atos, pouco importando se dentro de casa era feito daquela mariquice de acreditar em deus ou da macheza cretina de se ligar aos malfeitores, estejam eles escudados numa igreja ou num governo. éramos por igual todos cidadãos da mesma coisa. a andar para a frente com os instintos de sobrevivência a postos como antenas. eis a emissão certa, a propaganda que não podíamos dispensar, sobreviver, segurarmo-nos, e aos nossos, e abrir caminho até morte dentro. essa é que era a essência possível da felicidade, aguentar enquanto desse (MÃE, 2011, p. 118) Ironicamente o idoso vai traçando o perfil dos homens da época, criticando a hipocrisia em que se inseria nas relações sociais. Sabe-se que a dor do Sr. Silva é uma dor coletiva sentida politicamente pelos portugueses, o tempo que surge como potência reconfigura o medo em dor pelos sofrimentos vividos coletivamente, e mais, coloca essa dor ligada à esperança. A dor aqui está em outro plano que não o do corpo, mas sim na consciência geral das pessoas, como na fala de Silva da Europa, outro personagem idoso do asilo diz: “eu sou daqueles a quem a vida doeu e, mais cedo me possa estender a descansar, mais feliz me ponho” (MÃE, 2011, p. 15), fala esta que pode ser atribuída a qualquer um indivíduo presente no asilo. A relação com si mesmo e a relação com os outros faz Sr. Silva reconciliar com a solidão e a sociabilidade formas de externalizar a fala presa e contida pelo trauma, ganhando esta singularidade de voz uma sensibilidade coletiva marcada por índices de lembranças e esquecimentos sobre o dado momento histórico que acaba por ficcionalizar-se em meio às vivências de Sr. Silva e dos portugueses. A memória elabora da também pelo seu revés o esquecimento traz na vida atual do Sr. Silva a História do povo português também na atual situação, a de dificuldade econômica, que assentou no pós ditadura e na entrada de Portugal na União Europeia. Em dois tempos, passado e presente, os testemunhos e falas dos idosos do asilo metaforicamente representam a geração responsável por narrar o indizível de uma época visando a não repetição da tragicidade anterior. Sobre o medo e o perigo do fascismo reminiscente ele pensam: colega silva, ainda está cá dentro, é muito difícil tirarmos das ideias a educação que nos deram de crianças. podemos ser todos inteligentes como super-homens, adultos feitos à maneira e pensantes livremente, mas a educação que nos dão em crianças tem amarras para a vida inteira e, discretamente, aqui e acolá os tiques fascistas hão de vir ao de cima. (MÃE, 2011, p. 91) III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 331 Contudo, percebe-se uma bifurcação no discurso, o de que alguns idosos denunciam a ditadura, e outros já a defendem de forma saudosista em prol de uma ordem das coisas. O perigo reside aí para Sr. Silva, no fascismo dos bons homens, que devido a educação portuguesa todos carregam uma vontade estranha de ordenar as coisas, residindo o perigo da falta das liberdades. O corpo como elemento político, a letra como materialização de uma voz até o momento silenciada, a memória como repositório histórico singular, são os três motivos analíticos encontrados na obra de Valter Hugo Mãe, tendências contemporâneas atreladas à metaficção historiográfica (Linda Hutcheon), que acaba por reescrever ficcionalmente a história a luz de um homem ordinário como o barbeiro Sr. Silva, a voz dos muitos e comuns que ecoam criticamente sobre determinado acontecimento. Por fim, encontra-se na materialidade dos escritos do barbeiro uma vontade de potência peculiar, a de resolver aspectos dolorosos de sua vida até o momento abafados e escondidos, e o de contar sobre um mal coletivo em direção ao andamento adequado dos direitos humanos e da comunidade. Então, Sr. Silva representa a voz dos portugueses que temem o retorno do regime totalitário no país, aspecto que vem se alastrando pela Europa e de forma nostálgica surge como esperança em meio ao caos político contemporâneo. 3. Oralização da literatura em A máquina de fazer espanhóis Oralização da literatura ou oralização das técnicas de escrita, é uma ideia que aparece em uma entrevista com Édouard Glissant, segundo Justino (2013), em Introdução à uma poética da diversidade (2006) e, esta ideia é retomada por Jean Derive (2010) que defende tal ideia no âmbito da literatura africana, que utiliza a oralidade como tática política. Neste caso, é necessária a diferenciação entre oralidade e oralização. A primeira está para a memória coletiva, a segunda está relacionada à hibridação e ruptura da escrita, como diz Justino: ela tem um aspecto imaginário, cultural, semiótico em toda amplitude; e um aspecto, diria, maquínico, tecnológico (2013, p. 16). Deste modo, a oralização que se conecta ao passado de forma distinta, com aspecto de presentificação e criticidade e não de nostalgia em relação ao passado. A oralização se situa no contexto da escrita, como uma ponte entre a fala como elemento presente da escrita, ao passo que ela é de produção simbólica, imagética. Em A máquina de fazer espanhóis a escrita aparece como recipiente da voz que é a memória Nas fronteiras da linguagem ǀ 332 localizada no legível e no visível, pois Sr. Silva cria uma entonação própria que nasce a partir da dicção e sintaxe nascidas das vivências que vem desaguar finalmente no asilo. Característica marcante na literatura atual é o aspecto de conversa que ganha a matéria escrita, em que com determinada leveza assuntos profundos são tratados, essa tendência caracteriza de certo modo a oralização da literatura, como podemos ler no trecho abaixo as marcações orais na escrita ganha uma configuração distinta em que o presente é dilatado na fala está confluindo com a avaliação sobre a história oficial fundando uma história alternativa: como se o corpo dele fosse um poço profundo e ele estivesse longínquo a tentar chegar cá acima. subitamente suspira. um suspiro muito fraco, muito triste, e deve ser como se sente respirar subido dessa profundeza. parece que está agarrado por dentro do corpo. eu levantei-me algumas vezes. acendi aqui o candeeirinho e fui vêlo ao pé. Eu juro que o homem quase se mexeu. a intensidade do seu olhar era de tal modo que eu sabia que fazia um esforço para me dizer algo. e eu ainda lhe disse umas quantas vezes que estava tudo bem, que ele devia sossegar, que estava tudo bem. (MÃE, 2011, p. 125) A oralização é uma estratégia utilizada pelo nosso personagem comum, o barbeiro e idoso que potencializa sua escrita com sua memória grávida do contemporâneo, do presente, que vive e não precisamente do passado que já não pertence mais a ninguém a não ser como formulação discursiva, por isso a oralização não é estática, está de acordo com as mudanças e caminhar do tempo, em outras palavras, com o devir. Assim sendo, a oralização da literatura se delineia como novo arranjo da escrita, aqueles que acabam aparecendo através do modo se subjetivação do personagem, em específico do Sr. Silva agindo contra os dispositivos normativos e além disto irrompendo elementos fantásticos e linguagem peculiar proveniente do cárcere no asilo e da velhice. A presença da morte e ausência de liberdade faz com que o idoso conjure forças e um dos métodos encontrados é pela escrita, esta que se assoma com o estado de ascese a que chega o Sr. Silva, uma vez que rememorar é uma forma de atingir determinado nível de resolução das suas questões interiores. Com a forte memória afetiva da esposa e da ditadura em sua vida o idoso ao longo da narrativa vai se desprendendo delas e chegando a um estágio de elucidação de seus anseios e desejos. No momento do Estado Novo ele era gado, fazia parte de uma massa de gente que tinha a liberdade tolhida e uma vida que se fosse ser analisada não valia ser vivida, a não ser que com os artifícios criados pelo próprio governo, como o futebol, a Igreja, a arte, que auxiliava a cegueira da multidão. O avesso de tudo o que ele não pode fazer e contar é a memória, ela é a potência, a linha de fuga o momento de reterritorialização. É quando o homem ordinário consegue III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 333 apropriar-se da linguagem criticamente e realizar uma ranhura na história. Daí a reinvenção da noção do humano que mesmo em meio a banalidade do mal dos tempos totalitários conseguiu traçar outro caminho em meio a cruel medida do biopoder. A oralização da escrita está totalmente ligada ao corpo e suas pulsões, as criações imagéticas sobre seus sentimentos acabam por originar “a dobra do corpo sobre si mesmo e acompanhada por um desdobramento de espaços imaginários” (GUATARRI, 1992, p. 153), em que a memória simbolicamente adquire um aspecto simbólico, a exemplo dos abutres de seus pesadelos noturnos que representa o remorso e a consciência sobrecarregada do idoso. Sobre o corpo e sua ligação com a escrita tem-se a noção da inelutável modalidade do visível de que fala Didi-Huberman, em que “a visão se choca sempre com o inelutável volume dos corpos humanos” (1994, p. 30), em meio à multidão de singularidades e explica o autor dialogando com Joyce que o corpo é o objeto primeiro de todo conhecimento e de toda visibilidade, o corpo é uma espécie de receptáculo orgânico em que sai e reentra sensações. Deste modo, o corpo, o livro e a memória são três objetos constituintes da oralização da literatura em A máquina de fazer espanhóis (2011). Operam essa tríade no que se entende por novo e necessária maneira de escrita e subjetivação, não deixando de lado a natureza individual e peculiar da memória e cosmovisão a ela atrelada. A respeito da ligação entre corpo, escrita e política lê-se: O que liga a supradeterminação do conceito de escrita ao pensamento de ligação comunitária. O conceito de escrita é político porque é o conceito de um ato sujeito a um desdobramento e a uma disjunção essenciais. Escrever é o ato que, aparentemente, não pode ser realizado sem significar, ao mesmo tempo, aquilo que realiza: uma relação na mão que traça linhas ou signos com o corpo que ela prolonga; desse corpo com a alma que o anima e com os outros corpos com os quais ele forma uma comunidade; dessa comunidade com a sua própria alma (RANCIÈRE, 1995, p. 7) Oralizar é tornar a escrita fecunda e viva em relação ao momento presente. É encapsular momentaneamente uma vontade à revelia das difíceis situações vividas e mais, tornar a fala um recurso extensivo da memória carregada de poder contra as injustiças e desumanizações acometidas no período ditatorial. Portanto, o corpo, a fala e a memória de Sr. Silva canalizam uma forma de empenho em buscar um lugar para seu ressentimento e espera. Então, estudar essa propensão da literatura contemporânea é estender seu lugar de atuação para outros discursos, como o da política e história, por exemplo. A memória de Sr. Silva constitui uma interpelação ao modo de se olhar para o passado, colocando o presente como meta a se organizar baseado em experienciações diversas. Nas fronteiras da linguagem ǀ 334 4. Considerações finais Refletir sobre a condição de oralização da literatura é compreender os novos caminhos e tecnologias da escrita, e esta configuração em A máquina de fazer espanhóis (2011) está interligada ao uso crítico da memória. Por isso a necessidade em se falar do corpo do velho e sua ligação política, falar da escrita quanto voz que agora conta o indizível e por último discorrer sobre a memória e história, para assim abrir o caminho de discussão da oralização da escrita e sua potência dentro da literatura contemporânea. Usar a língua de modo potente em que constrói novas perspectivas sobre o passado e presente de Portugal é o que constitui o cerne da oralização da literatura, artífice do narrador Sr. Silva que tem o intuito de combater e esclarecer determinados pontos da sua vida e paralelamente da coletividade de portugueses que viveram a mesma falta de autonomia. Contar aos personagens secundários e futuros o que viveu no período ditatorial é o objetivo do protagonista Sr. Silva, ir contra o fascismo iminente que já faz parte das sociedades e transpor outra visão sobre o passado que antes não poderia ser externalizada. Ora, momento melhor que o da liberdade que a velhice traz e o desgoverno do corpo que juntos acabam por tecer um modo específico de se falar sobre o medo e a dor vividos. A narrativa do barbeiro se dispõe contra qualquer tipo de saudosismo pela época árdua e violenta em que os portugueses só trabalhavam, iam à missa e assistiam aos jogos de futebol. Uma violência ao mesmo tempo silenciosa e falante, tal qual a letra e pulsão de escrita do Sr. Silva, que em meio à mudez e ao dito expõe sua identidade sem medo da falta de proteção que só a coragem da verdade e a aproximação da morte carregam. O exemplo de Sr. Silva, este personagem tão bem construído por Mãe, deve ser seguido, pois ao avesso do abismo e vazio que se instala em sua vida ele fabrica novos modos de se superar a passagem difícil da sua vida. E múltiplas questões surgiram e algumas lacunas ficaram, a necessidade do ponto final surge pela necessidade do fim deste texto, mas não das discussões em torno dos aspectos abordados. Referências GUATARRI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992. HUBERMAN, Didi. A inelutável cisão do ver. Trad. Paulo Neves. In: O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 335 JUSTINO, Luciano Barbosa. Devir-brasil: oralização da literatura. In: Pontos de Interrogação, v. 3, n.1, jan./jul. 2013, p. 11-21. Disponível em: << http://poscritica.uneb.br/revistaponti/arquivos/volume3n1/Luciano_Barbosa_Justino_REVISTAPONTI_VOL_3_N1.pdf >> Acesso em 14 de março de 2015. MÃE, Valter Hugo. A máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Cosac Naify, 2011. RANCIÈRE, Jacques. O corpo e a letra. In: Políticas da escrita. Trad. Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995, p. 7-102. Nas fronteiras da linguagem ǀ 336 O “ESPELHO BAÇO E ESCURECIDO”: REFLEXÕES SOBRE A OBRA A HORA DA ESTRELA [Voltar para Sumário] Antonia Gerlania Viana Medeiros1 (UERN) Roniê Rodrigues da Silva2 (UERN) O fragmento que descreve o momento em que Macabéa se olha no espelho serve como apresentação e reconhecimento da personagem para o leitor, pois até então Rodrigo tinha dito somente os seus argumentos para falar ou não da moça, porém, foi ao narrar a quase demissão da jovem e a sua face em frente ao objeto que reflete, que passamos a saber como a nordestina veio para essa cidade feita toda contra ela, o Rio de Janeiro. Clarice Lispector consegue, por meio da sua linguagem metafórica, do narrador que também é personagem e das imagens que delineiam em sua obra e na mente do leitor, falar de uma “sociedade técnica”3, do contraponto de uma ideologia burguesa e da migração do nordestino ao grande centro urbano do Brasil. A autora nos oferece um “espelho baço e escurecido”, mas capaz de refletir uma crítica social nítida e coesa pelo o contexto que os personagens viviam. Instigados com a imagem que tentamos enxergar de Macabéa no espelho e diante do primeiro rebaixamento sofrido pela personagem na narrativa, analisaremos os reflexos do contexto social e da condição dos personagens na obra A hora da estrela, recorrendo aos trechos do texto literário que narram esse momento, ao significado simbólico que o espelho proporciona na cena escolhida e, principalmente, as características da escrita de Clarice Lispector. Segundo Nunes (1995), a obra A hora da estrela é constituída por três histórias, a primeira conta sobre Macabéa, a segunda fala do narrador Rodrigo e a terceira é sobre a própria narrativa. O autor identifica a elaboração da narrativa e a construção da personagem, 1 Aluna do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), do Mestrado Acadêmico em Letras do CAMEAM/UERN. 2 Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), do Mestrado Acadêmico em Letras do CAMEAM/UERN. 3 Termo empregado pela própria Clarice Lispector na obra, “Nem se dava conta que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável” (LISPECTOR, 1995, p. 44) III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 337 como um jogo de identidade. Nunes (1995, p. 169) nos lembra que o narrador da obra é Clarice Lispector, “e Clarice Lispector é Macabéa tanto quanto Flauber foi Madame Bovary [...] Clarice Lispector se exibe, quase sem disfarce, ao lado de Macabéa [...] A escritora se inventa ao inventar a personagem. Está diante dela como de si mesma”. Clarice escreve a história de Rodrigo que narra a história de Macabéa. Essa relação autor, herói e obra é discutida por Bakhtin (1997), que diz que o autor está inserido em um contexto e conhece e faz a criação verbal de maneira artística, o criador da obra tem uma visão excedente em relação ao herói e toda a história. No decorrer da narrativa percebemos o quanto o narrador criado por Clarice Lispector conhece toda a história, tanto que na terceira página do romance Rodrigo S. M. revela “experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e ‘gran finale’ seguido de silêncio e de chuva” (LISPECTOR, 1995, p. 27), ou seja, ele já adianta o final da história. O romance é um dos gêneros onde podemos perceber com mais veemência essa relação entre autor, personagem e obra, pois atenta-se a detalhes que se referem não somente ao contexto que a narrativa enfatiza, mas ao do autor também. Watt (1990) trata em sua obra Ascensão do romance sobre como esse gênero sofreu influências e aponta que o realismo foi um dos propositores dessa mudança, ressaltando que o realismo não faz referência a uma doutrina filosófica ou literária, mas a procedimentos narrativos que definiram o gênero romance. Um dos pontos enfatizados por Watt (1990), sobre as particularidades que o realismo proporcionou ao romance, temos a importância dos nomes dos personagens na narrativa, segundo o autor “os nomes próprios têm exatamente a mesma função na vida social: são a expressão verbal da identidade particular de cada indivíduo. Na literatura, contudo, foi o romance que estabeleceu essa função” (WATT, 1990, p. 19). Então, na obra clariciana encontramos uma personagem cujo nome nos suscita várias indagações, inclusive para entender o nome, “– Macabéa. – Maca – o que? – Bea, foi ela obrigada a completar. – Me desculpe mas até parece doença, doença de pele” (LISPECTOR, 1995, p. 59). Além do mais, a escolha do nome Macabéa, por Clarice Lispector, indica a intenção da autora em apresentar a sua personagem como um indivíduo particular, característica dos romancistas ao escolherem o nome, de acordo com Watt (1990). A personagem principal da narrativa de Rodrigo é uma moça de dezenove anos, tola “às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem a menos a olham” (LISPECTOR, 1995, p. 30). O próprio Rodrigo S. M. descreve Macabéa como uma “imagem feia”, como podemos observar nesses trechos: “[...] é o seguinte: ela (Macabéa) Nas fronteiras da linguagem ǀ 338 como uma cadela vadia era teleguida exclusivamente por si mesma” (LISPECTOR, 1995, p. 32), “a sua cara é estreita e amarela como se ela já tivesse morrido” (LISPECTOR, 1995, p. 39), tinha “o corpo cariado” (LISPECTOR, 1995, p.51). Além de expor a “feiura” da moça, o narrador ainda afirma que ela era “incompetente para a vida” (LISPECTOR, 1995, p. 39). Deparar-nos com a situação da personagem, depois de ter sido enfatizada várias vezes pelo narrador por sua falta de beleza e “de jeito”, sendo quase demitida pelo chefe da firma, ratifica, por meio dos argumentos do senhor Raimundo Silveira, a despreparação que Macabéa tinha para (sobre)viver a atmosfera industrial e capitalista que pairava na sociedade. avisou-lhe com brutalidade (brutalidade essa que ela parecia provocar com sua cara de tola, rosto que pedia tapa), com brutalidade que só ia manter no emprego Glória, sua colega, porque quanto a ela, errava demais na datilografia, além de sujar invariavelmente o papel. Isso disse ele. Quanto à moça, achou que se deve por respeito responder alguma coisa e falou cerimoniosa a seu escondidamente amado chefe: - Me desculpe o aborrecimento. (LISPECTOR, 1995, pp. 39-40) O senhor Raimundo é o primeiro personagem a rebaixar Macabéa, caso não consideremos a maneira como o narrador Rodrigo caracteriza a moça no início da narrativa. O ato de ser brutal no jeito que fala e demite a datilógrafa, reflete a posição que cada um ocupava naquela firma, ele como o empregador (chefe) e ela como a empregada (datilógrafa) passiva. Apesar de que, como a própria obra apresenta no decorrer da história, Macabéa era um sujeito passivo em quaisquer condições de sua vida. Medeiros (2009) analisou como a obra A hora da estrela é marcada pela estética do feio e por características grotescas, entre elas, principalmente, o rebaixamento dos personagens. O conceito do grotesco na literatura é colocado como aquele que a sua comicidade e aspecto da sátira ficaram percebíveis nas obras literárias, principalmente pelo aspecto do “feio”, do “rebaixamento” e do “cômico”. É compreensível o porquê de o grotesco parecer “monstruoso”, “horrível” e “disforme”, pois ele é o oposto da estética do belo, nele o que prevalece não é a beleza externa, mas a descrição diferenciada de um ser que gera comicidade e “rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado espiritual, ideal e abstrato” (BAKHTIN, 1996, p. 17). Quando falamos em rebaixamento estamos mencionando os estudos de Bakhtin (1996) e a análise de Medeiros (2009), este último nos mostra o rebaixamento dos personagens na obra objeto de análise. Não nos deteremos como esse rebaixamento atinge todos os personagens, porém na própria narrativa a maneira como o narrador e os demais personagens III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 339 se descrevem e se comportam nos mostram que de fato essa característica do grotesco está na narrativa. A informação dada entre parêntese no trecho literário, que diz que Macabéa provocava a brutalidade com “a sua cara de tola, rosto que pedia tapa” demonstra como a personagem é colocada no posto de responsável por ser quase demitida, assim como por ser tão passiva naquele momento. A atitude que a moça teve diante da situação foi pedir desculpas pelo aborrecimento causado ao chefe, feito isso não para defender a si ou ao seu emprego, mas porque achava que era respeitoso dizer algo depois de tudo o que ouviu. Macabéa se mostra como uma empregada desqualificada para o seu serviço, pois o seu chefe a culpa por errar as palavras na datilografia e por sujar os papeis. Observe que é retirado da personagem, com essa fala do senhor Raimundo, o único “título” que a aproximava da dignidade de ser gente, que era ser datilógrafa. “Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra por letra – a tia é que lhe dera o curso ralo de como bater à máquina. E a moça ganhara uma dignidade; era enfim datilógrafa” (LISPECTOR, 1995, p. 29). Entretanto, não podemos julgar a moça por isso, afinal ela só tinha até o terceiro ano primário, o que justifica o fato da jovem não aceitar que na linguagem duas consoantes ficassem juntas em uma palavra. Por falta de conhecimento sobre a língua e a vida, é que Macabéa errava, ou melhor dizendo, não acertava. Souza (2006, p. 110) coloca que Macabéa representa o humano de forma caricatural e hiperbólica, ao mesmo tempo que é desenhada como a negação do humano, “Macabéa, dessemelhante no conjunto, separada dos homens pela barreira da arte, é convincente pelo detalhe, enquanto resposta estética a indagações humanas”. São nas características isoladas da personagem que reconhecemos o sujeito como ser social, é tão irreal que uma pessoa possa ser assim, tal qual Macabéa, no entanto, ela, com o seu jeito e ações, se aproxima tanto do real, aos olhos do leitor. De acordo com Lukács (2000, p. 60) o gênero romance “busca descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida”, ou seja, Lispector consegue, por meio da sua narrativa, refletir sobre a sociedade. Na realidade, não eram somente as palavras escritas que faltavam no vocabulário de Macabéa, a fala também. Ela não sabia o que dizer, como e quando falar. A linguagem não era algo plenamente dominado pela moça, ela somente repetia o que seu chefe mandava escrever ou o que ela escutava no rádio-relógio. Na ocasião de ouvir o seu chefe proferir que iria manter somente Glória na firma e que, consequentemente, isso significava que ela estava demitida, a jovem disse “me desculpe pelo aborrecimento”, surpreendendo senhor Raimundo com tal discurso. Nas fronteiras da linguagem ǀ 340 O senhor Raimundo Silveira – que a essa altura já lhe havia virado as costas – voltou-se um pouco surpreendido com a inesperada delicadeza e alguma coisa na cara quase sorridente da datilógrafa o fez dizer com menos grosseria na voz, embora a contragosto: - Bem, a despedida pode não ser para já, é capaz até de demorar um pouco. (LISPECTOR, 1995, p. 40) Atentemo-nos para o jogo nas palavras feitas por Rodrigo S. M. ao dizer que o chefe, naquele momento, já tinha virado as costas para a moça, o que não indica só a posição corporal do personagem, mas também sugere que ele não teria se importado com o que seria da moça, o que aquela menina órfã iria fazer naquela cidade, qual outro emprego ela poderia conseguir no mercado de trabalho, sendo ela tão despreparada? Macabéa, dar-se a entender na obra, era uma mão de obra barata, mais uma nordestina que chegava ao sudeste na esperança, dela e da tia, de viver melhor do que era em Alagoas, no entanto, nem sobre isso a personagem pensa, faz-se entender almejar. Então, Macabéa escuta do seu chefe que talvez não seja demitida, agora era ela que se surpreendia com as palavras de seu Raimundo, mesmo que elas tenham sido ditas a “contragosto”, pois recebia novamente a sua dignidade, voltava a ser datilógrafa, a ter um emprego na “sociedade técnica” que ela fazia parte, mesmo sem ser consciente do que seria essa sociedade. Depois de receber o aviso foi ao banheiro para ficar sozinha porque estava atordoada. Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o espelho baço e escurecido não refletia imagem alguma. Sumira por acaso a sua existência física? Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara toda deformada pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de papelão. Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com ferrugem. (LISPECTOR, 1995, p. 40) Passado o episódio de demissão e readmissão do emprego, Macabéa se dirige ao banheiro, ainda atordoada com o que aconteceu e se olha no espelho. Mas nesse trajeto da personagem visualizar o espelho, o narrador diz que ela “olhou-se maquinalmente ao espelho”. Vejamos que esse olhar maquinal que Rodrigo S. M. faz referência pode ser entendido pelo gesto repetido e comum, ao chegar no banheiro e se olhar um espelho, típico das mulheres; como também pode ser entendido como uma crítica social que o narrador faz a posição ocupada por Macabéa naquela firma, afinal, ela era apenas “um parafuso dispensável” (LISPECTOR, 1995, p. 44), comparando-a com uma “máquina” daquela firma, daquela sociedade moderna e técnica. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 341 Além disso, o narrador compara Macabéa a pia que é imunda, rachada e ainda cheia de cabelos, evidenciando a “pobreza” que era vida de Macabéa, pois ela era “feia”, “suja” e “rebaixada” a uma pia imunda. Ela e a pia pareciam existir com a finalidade de receber passivamente o que os outros “despejavam”, como foi ao ouvir tudo o que senhor Raimundo Silveira falou. A pia como recipiente de limpar as impurezas, é maculada com a sujeira dos outros, enquanto que, a moça, sempre ouvia o que os outros tinham a “despejar”, bem como sempre estava como a pia, suja. Ao se olhar no espelho “baço e escurecido” Macabéa não viu sua imagem refletida, é quando o narrador, que tudo sabe e tudo ver, questiona “Sumira por acaso a sua existência física?” (LISPECTOR, 1995, p. 40). Ao fazer tal indagação sobre Macabéa, a narrativa nos põe a prova se realmente é possível existir alguém tal qual a moça nordestina. A presença do espelho nesse momento em que a personagem tenta se acalmar, tendo em vista estar atordoada pelo o que ouviu do seu chefe, e se reconhecer na imagem que deveria refletir no espelho, incentiva-nos a abordar também nessa análise, um pouco sobre o significado simbólico desse objeto. Chevallier e Gheerbrant (2009, p. 393), em Dicionários de símbolos, colocam que o espelho, enquanto superfície que reflete, é “o suporte de um simbolismo extremamente rico dentro da ordem do conhecimento”, ou seja, tal objeto pode proporcionar inúmeras interpretações, pois além de tudo ele é revelador. Ainda acrescentam que “o espelho é, com efeito, símbolo da sabedoria e do conhecimento, sendo o espelho coberto de pó aquele do espírito obscurecido pela ignorância” (CHEVALLIER e GHEERBRANT, 2009, p. 394). O espelho que Macabéa se olha está “baço e escurecido”, é como se a personagem por não saber quem de fato era ela, sente a dificuldade de se enxergar, de se reconhecer. A sua existência física não sumiu, como é questionado, mas a sua “ignorância obscurece” a visão de Macabéa e não permite que veja o seu próprio reflexo. Quando Macabéa consegue realmente se ver, ela enxerga “a cara toda deformada pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de papelão” (LISPECTOR, 1995, p. 40), a personagem visualiza quase que uma caricatura do que ela é, “o aspecto numinoso do espelho, isto é, o terror que inspira o conhecimento de si” (CHEVALLIER e GHEERBRANT, 2009, p. 396), é como se o espelho fosse um instrumento da psique, segundo os autores, e a própria Macabéa criou essa imagem dela mesmo. A personagem vê o reflexo do espelho nela e não o reflexo dela no espelho, por isso é que ela se olha e pensa “tão jovem e já com ferrugem” (LISPECTOR, 1995, p. 40), as marcas que embaçam o espelho também estão nela, fazem parte do meio que ela vive. Nas fronteiras da linguagem ǀ 342 Macabeá é, na realidade, um reflexo da sociedade. De acordo com Chevallier e Gheerbrant (2009, p. 395), “o homem enquanto espelho reflete a beleza ou a feiúra”, e a personagem demonstra implicitamente um pouco dos sujeitos e da sociedade, transcendendo tempo e lugar. O que é visto por Macabéa reflete a sociedade, o como somos vistos por uma modernidade que o tempo nos obriga viver. Souza (2006, p. 117) analisa bem essa questão humana e social abordada em seu trabalho sobre a obra A hora da estrela, quando diz que, Macabéa tem um trabalho, talvez para lembrar o leitor, pelo intricado caminho da ficção, que existe todo um contingente humano obrigado aos serviços mecânicos, dos quais esses homens retiram apenas um soldo miserável e nenhum prazer, nenhum conhecimento, nada que lhes dê a consciência de que são seres que contribuem para fazer o mundo avançar em determinada direção. A datilógrafa é só mais uma pessoa sujeita a abastecer a economia com o seu trabalho, a garantir que a máquina que é a sociedade continue em movimento, mesmo sendo a personagem um “parafuso dispensável”. Clarice Lispector ao escrever que a sua personagem se enxerga com um nariz de palhaço, traz à tona, de maneira implícita, como a personagem era tola e rebaixada ao cômico. Apesar de que Macabéa provoca o riso dos demais personagens que tanto quanto ela fazem parte da narrativa para mostrarmos quem e como são os sujeitos da sociedade técnica, são “os palhaços” para aqueles que detém o poder. Foi Macabéa quem se olhou no espelho, mas por meio dela conseguimos ver os reflexos sociais que Clarice quis apontar nos demais personagens nessa narrativa, pois a imagem de Macabéa no espelho, é o reflexo daquela sociedade. Temos Olímpico, namorado de Macabéa, que veio ao Rio de Janeiro após assassinar um homem, consegue um emprego que nem ele mesmo sabe a utilidade, troca a namorada por sua amiga Glória, porque ela tem uma posição social melhor do que a nordestina e no final, segundo as próprias palavras do narrador, “no futuro, que eu não digo nesta história, não é que ele terminou mesmo deputado? E obrigando os outros a chamarem-no de doutor” (LISPECTOR, 1995, p. 63), ironizando os tipos de políticos que elegemos. Sobre Glória, Souza (2006, p. 99) diz que a “loura oxigenada, cabelos crespos em amarelo-ovo, um estardalhaço de existir, no dizer de Rodrigo, é a menos miserável na galeria dos desvalidos de A hora da estrela”, isso porque além de trabalhar na mesma firma que Macabéa e ter um namorado, ela mora na rua “General não-sei-o-quê”, é pertencente de um “terceira classe burguesa havia no entanto o morno conforto de quem gasta todo o dinheiro em comida” (LISPECTOR, 1995, p. 83), mas mesmo assim não deixava de ser mais um reflexo da “sociedade técnica”. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 343 O médico, que não tem nome só função, e a cartomante Madame Carlota são personagens periféricos que surgem na narrativa para, o primeiro - anular ainda mais Macabéa e mostrar o descaso e descompromisso da sua profissão e, a cartomante – trazer para narrativa um pouco de esperança para a Macabéa. No entanto, como coloca Souza (2006, p. 98) “essas personagens representam segmentos recortados da sociedade que transforma seres humanos em mercadoria”, pois basta analisarmos o comportamento do médico diante da sua profissão, mostrando-nos que a sua prática na medicina é baseada no dinheiro e não ao atendimento dos pacientes. Enquanto que madame Carlota apresenta, além de uma miséria moral, por ter sido prostituta, cafetina e agora cartomante, essa sua sequência de funções só demonstram o que a “sociedade pode fazer com o ser humano quando ele não serve mais como força de trabalho” (SOUZA, 2006, p. 99). Os personagens que dão vida e movimento a narrativa de Clarice Lispector, desde o narrador Rodrigo, senhor Raimundo, os que agora analisamos e, principalmente, Macabéa revelam o quanto a autora utilizou da sua melhor arma, a palavra, para nos mostrar como a sociedade é e como ela utiliza dos que nela vivem. A escrita, para aqueles que a leem, pode ser considerada um pouco “baça e escurecida”, assim como o espelho estava para Macabéa, mas é com essa consciência de reconhecimento que analisamos como Clarice Lispector consegue na obra A hora da estrela falar sobre a sociedade tão implicitamente e explicitamente ao mesmo tempo. Ainda sobre a maneira de Clarice Lispector escrever, Kadota (1997, p. 138) diz que na obra A hora da estrela a experiência textual é “corroída” pela linguagem, e é marcada pela inquietação social, segundo a estudiosa, a narrativa “inegavelmente indica o social”, mostrando-nos que a escrita de Lispector percorre o social e não somente o intimista e o subjetivo. Poderíamos ler a narrativa e simplesmente afirmar e atender ao pedido do narrador quando ele disse, De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu. Cuidai dela porque meu poder é só mostrá-la para que vós a reconheçais na rua, andando de leve por causa da esvoaçada magreza. (LISPECTOR, 1995, p. 33) Não tomamos somente Macabéa para o nosso cuidado, mas junto com a personagem olhamo-nos no espelho e identificamos o reflexo da crítica social na obra clariciana. Analisamos como aquele momento em que Macabéa é quase demitida e a sua ida ao banheiro é uma das partes que a autora nos mostra, por trás das personagens e da história, como de fato é a sociedade. Salientemos, que desse episódio na firma é que conhecemos a história da Nas fronteiras da linguagem ǀ 344 personagem nordestina, nessa ocasião de reconhecimento de Macabéa ao se olhar no espelho é também para nós leitores o ato de conhecimento da moça, pois é quando sabemos quem é ela, de onde veio e mora, o que faz, enfim, somos apresentados “pessoalmente” a Macabéa. Portanto, vimos os reflexos do contexto social e da condição dos personagens na obra A hora da estrela, ressaltando a crítica a “sociedade técnica”, o significado simbólico que o espelho proporciona nos trechos analisados e as características da escrita de Lispector. A maneira como a narrativa foi construída com os seus personagens, permitiu-nos uma posição privilegiada para, mesmo com o “espelho baço e escurecido”, enxergamos como a autora trata sobre o social em sua obra. Macabéa era só mais uma nordestina entre tantas, mas nesse romance conseguiu destaque e vez ao grito, ela foi o reflexo da sociedade naquele espelho. Referências BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. _______. A cultura popular da Idade Média e o renascimento: contexto de François Rabelais. Trad. Yara F. Vieira. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 1996. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 345 O ENSINO DE PRODUÇÃO DE TEXTO À LUZ DA CONCEPÇÃO DE ESCRITA INTERACIONAL [Voltar para Sumário] Antonia Maria de Freitas Oliveira (UFRN) Introdução As discussões relacionadas a necessidade de se melhorar a qualidade da educação no país, travadas nas últimas décadas, mantêm como foco o ensino de Língua Portuguesa-LP. No Ensino Fundamental, o ponto de convergência dessa discussão aponta, principalmente, para o eixo da leitura e da escrita, conforme afirma os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Portuguesa do ensino fundamental do 6º ao 9º ano, (1996, p. 19). As dificuldades que os alunos desse nível de ensino apresentam em compreender o que leem e de se fazer compreendidos quando produzem textos escritos é uma evidência do fracasso no ensino dessa disciplina, principalmente no desenvolvimento das capacidades leitoras e escritoras dos alunos. Tendo em vista essa realidade é que constantemente professores e pesquisadores da área da Linguística se empenham em buscar estratégias teóricas e práticas que possam superar essa deficiência. No que se refere ao ensino de produção de textos, inicialmente, é necessário que se compreenda a complexidade que envolve o ato de escrever. Pois, além do domínio de diversos conhecimentos como o linguístico, o enciclopédico, o interacional e o textual necessários à construção de textos em qualquer que seja a modalidade, ainda há que se considerar todas as características peculiares a situação de produção dos discursos construídos na modalidade escrita da língua. Dentre estas, podemos considerar a ausência do leitor no momento em que o texto está sendo produzido como um dos elementos que mais contribuem para a dificuldade que circunda esse processo. A falta de interação instantânea entre autorleitor, que não é possível nos textos escritos, requer do autor um maior cuidado durante o processo de elaboração do texto. Nas fronteiras da linguagem ǀ 346 A queixa mais comum entre os professores de LP em relação ao fracasso do ensino aprendizagem da produção de textos é a desmotivação dos alunos no momento de atender as atividades de produção textual que são propostas em sala de aula. Quem convive nesse ambiente sabe da veracidade do que é alegado por esses profissionais. Há, de fato, uma resistência por parte dos alunos em produzir textos. Porém, este fato torna-se contraditório quando se observa que estes mesmos alunos que se mostram avessos a produzir textos em sala de aula escrevem a todo instante em outros ambientes sem sentir nenhum pesar em fazer isso. Os “bilhetinhos” que eles usam para se comunicar durante as aulas, as perguntas e respostas aos “questionários coletivos” que eles mesmos produzem, as postagens escritas nas diversas redes sociais, as listas de compras que fazem em casa, os e-mails que enviam a parentes e amigos são apenas alguns exemplos de como os alunos gostam de escrever. Dada essas duas realidades, contraditórias entre si no que se refere ao gosto do aluno pela escrita, o propósito inicial deste artigo é analisa-las à luz de algumas das diversas concepções de escrita a fim de apresentar uma resposta sobre o que causa tanta desmotivação aos alunos na hora de escrever na sala de aula e que, por fim, torna as aulas de produção de texto tão improdutivas. Em seguida, através da apresentação de um exemplo de prática de letramento trabalhada em uma sala de aula, este artigo busca atender a um último propósito que é o de mostrar estratégias de ensino de produção de texto que, de fato, contribuam para o desenvolvimento de um aluno produtor de textos. Para tanto, usaremos como respaldo teórico, principalmente, os estudos de Passarelli, (2004 e 2012) e os de Koch e Elias (2009), que tratam, respectivamente, do ensino de produção de texto sob a perspectiva da escrita processual e da escrita como atividade interativa. 1. O que é a escrita para a escola? E para o aluno? A forma como os alunos reagem às situações cotidianas que demandam o uso da escrita e a maneira como se comportam diante das propostas de produção de texto na sala de aula deixam transparecer a ideia de que escrever tem significados diferenciados para a escola e para os alunos. Nas aulas de produção de textos, o ensino dos conhecimentos gramaticais, ortográficos e lexicais, ainda são colocados como prioritários. Desse modo, a ideia de escrita que é posta para o aluno é a de que escrever bem é saber as regras da gramática, ter um vocabulário amplo III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 347 e saber grafar bem as palavras. Subjacente a essa ação pedagógica está a concepção de escrita que mantém como foco a língua. Para Koch e Elias, conceber a escrita desta forma, mantendo a língua como foco, implica perceber o texto como um produto construído apenas por elementos de natureza linguística cuja compreensão requer do leitor apenas o domínio desses mesmos elementos. Visto desse modo, todo texto é objetivo, não sendo possível haver mais de uma interpretação para o mesmo, uma vez que o seu sentido encontra-se apenas no código linguístico utilizado (2009, p. 33). Embora os conhecimentos linguísticos sejam indispensáveis à construção de textos, sozinhos eles não dão conta de um processo tão complexo como esse. Pois, como dito anteriormente, produzir textos demanda o domínio e a ativação muitos outros conhecimentos e estratégias por parte do autor. Essa compreensão de escrita acaba por orientar, não só o ensino mas também a avaliação que é feita dos textos, conforme afirma Passarelli: Temos assistido a procedimentos de rotina calcados em moldes de ensino que têm como base a gramática normativa, tanto para o ensino de produção de textos como para sua avaliação. Os estudos metalinguísticos roubam a cena de episódios de produção de textos: protagonizam atividades voltadas a temas referentes ao que mais fácil e acomodadamente se detecta na superfície textual. (PASSARELLI, 2012, p. 91). Assim, os alunos são obrigados a escrever textos em que a obediência as regras da língua deve ser a principal preocupação, uma vez que serão avaliados a partir desse parâmetro. Por fim, produzir texto na escola resume-se a escrever seguindo um padrão de correção linguística para ser avaliado pelo professor e atribuído uma nota proporcional ao número de acertos ou de erros. Uma ação pedagógica calcada por esses moldes está muito aquém do que se espera da escola em relação ao letramento do aluno, uma vez que, segundo os PCN de LP, cabe a essa instituição garantir que ao longo do ensino fundamental “cada aluno se torne capaz de interpretar diferentes textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão, de produzir textos eficazes nas mais variadas situações” (BRASIL, 1996, p. 21). No dia a dia, a escrita dos alunos adquire outras dimensões. O propósito deixa de ser a avaliação do professor e passa a ser o de comunicar, de estabelecer uma interação com um leitor real. A preocupação maior, neste caso, deixa de ser a de obedecer a regras gramaticais, ortográficas e lexicais e passa a ser a utilização de conhecimentos e estratégias adequadas Nas fronteiras da linguagem ǀ 348 para que as suas intenções se tornem mais compreensivas para o leitor. Nessa forma de conceber a escrita o foco está na interação autor-leitor e o texto é “considerado um evento comunicativo para o qual concorrem aspectos linguísticos, cognitivos, sociais e interacionais” (BEAUGRANDE apud KOCH e ELIAS, 2009, p. 33). Bem diferente de como é visto e tratado pela escola. Aproximar as produções textuais que são feitas na escola daquelas que os alunos praticam no dia a dia deles, é uma alternativa que parece bem positiva para que se supere o fracasso que ao longo dos anos tem marcado o ensino de LP. Dessa forma, seria necessário rever as antigas práticas pedagógicas voltadas para o ensino e produção de texto e pensa-las de maneira que o seu ensino tomasse como ponto de partida a compreensão de escrita dos próprios alunos. Embora as experiências que eles trazem sobre a escrita sejam cotidianas e informais a escola poderá partir delas e expandir para contextos mais formais. Como diz Passarelli (2012), a escola precisa aproveitar a predisposição dos alunos para escrever. Produzir textos com o propósito, meramente, de ser avaliado por um professor, referente, somente, ao emprego correto das normas linguísticas, como já foi posto anteriormente, não estimula nenhum pouco o aluno a escrever. Tampouco oferece condições para que o aluno se torne competente linguisticamente para interagir por meio da linguagem em diferentes contextos, como se espera do ensino de LP. A aproximação que se propõe, relacionando a escrita de sala de aula com o uso que é feito dela em ambientes extraescolares, fazendo com que os alunos percebam algum sentido naquilo que é ensinado na escola, como condição essencial para se mudar o ensino de LP, requer uma mudança nas estratégias didático-pedagógicas adotadas em sala de aula que deverão ser orientadas, sobretudo, por uma concepção de escrita diferente das que orientam essas práticas improdutivas que aí estão, que, por sua vez, consideram o texto acabado, pronto como objeto de avaliação. Essa visão que ora se tem, tanto de texto como de escrita descarta todo o processo pelo qual o texto passa até chegar ao produto final. De acordo com Oliveira (2010), “ O professor que vê a escrita apenas como produto tende a dificultar o desenvolvimento da competência redacional dos alunos por não ajudá-los a se conscientizarem que a escrita requer planejamento” (OLIVEIRA, 2010, p. 120). Nos novos paradigmas de ensino de LP que se propõe, é preciso que o ensino e avaliação da escrita tenha como base teórica a concepção de escrita como uma atividade interativa que ocorre em função de um leitor e que se dá por meio de um processo que é realizado por etapas. Vista desse modo, a escrita, incidirá uma mudança bastante significativa sobre a forma como será ensinada e avaliada na sala de aula. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 349 Partindo dessa perspectiva, as atividades de produção de texto deverão sempre levar em consideração que: A escrita é um trabalho no qual o sujeito tem algo a dizer e o faz sempre em relação a um outro (o seu interlocutor/leitor) com um certo propósito. Em razão do objeto pretendido (para que escrever?), do interlocutor/leitor (para quem escrever?), do quadro espacio-temporal (onde? Quando?) e do suporte de veiculação, o produtor elabora um projeto de dizer e desenvolve esse projeto, recorrendo a estratégias linguísticas, textuais, pragmáticas, cognitivas, discursivas e interacionais, vendo e revendo, no próprio percurso da atividade, a sua produção (KOCH e ELIAS, 2009, p. 36). Daí as orientações para que o ensino de LP se dê a partir dos gêneros textuais. Abandonando de vez o modelo de outrora que se baseava nas tipologias narrativas, dissertativas e descritivas. Haja vista a materialidade dos gêneros textuais, usá-los como ponto de partida para o ensino de línguas parece atender bem aos interesses dessa área. E para que fique mais claro o entendimento sobre eles a definição dada por Antunes (2010), poderá ajudar: “os gêneros é que constituem textos empíricos, é que constituem textos reais em circulação [...] realizam-se com propósitos comunicativos determinados e facilmente reconhecíveis pela comunidade em que circulam” (ANTUNES,2010, p. 72). Como os gêneros textuais existem em uma quantidade quase que incalculável, no momento de escolhe-los para trabalhar em sala de aula a prioridade deverá ser dada àqueles que têm maior importância para o uso social do aluno ou o que melhor atender ao propósito comunicativo do momento. Outro aspecto a ser observado no ensino de produção de texto é a compreensão de que um texto é o resultado de uma série de etapas e que a qualidade do produto final depende da atenção que é dada a cada uma delas. E isto precisa ficar bem claro para o aluno, tanto quais são os procedimentos específicos de cada uma delas como a importância de que elas sejam cumpridas (PASSARELLI, 2004 e 2012). Levar os alunos à essa consciência poderá aliviá-los dos pesares que ato de escrever provoca. 2. A escrita interativa: um processo que se realiza em etapas As considerações apresentadas até aqui incidiram, basicamente, sobre a utilização da escrita que feita pela escola e a que é feita pelos alunos em suas atividades cotidianas. Isso tudo no sentido de se chegar a uma compreensão dos fatores que estão ligados ao fracasso do ensino de produção de textos. O modo como a escrita é praticada nas duas situações deixou Nas fronteiras da linguagem ǀ 350 claro que em cada uma delas subjaz concepções de escrita diferenciadas. Dessas concepções analisadas a que pareceu mais adequada para subsidiar um ensino de produção de textos que seja comprometido com o desenvolvimento da competência linguística do aluno foi a concepção de escrita interacional. Assim, neste item será abordado o resumo de uma proposta de produção de texto realizada à luz dessa teoria. Essa proposta parte de duas premissas consideradas como base em um ensino de produção de textos que se propõe a ser produtivo: a de que a escrita é uma atividade interativa e a outra, que ela se realiza em etapas. O entendimento de que o ato de escrever requer a utilização de diversos conhecimentos e estratégias é muito importante no momento do professor planejar as suas ações porque fará com que ele eleja apenas alguns aspectos para ser abordado de cada vez. Essa seleção será favorável ao professor na hora da avaliação dos textos e ao aluno que terá menos elementos com que se preocupar no ato da produção. Na proposta que será apresentada os aspectos avaliados, foram, apenas, a qualidade dos argumentos e a organização deles dentro do texto. O contexto que motivou a atividade de produção de texto em questão foi um projeto desenvolvido na escola sobre a temática a indisciplina na escola. No decorrer desse projeto, foram criadas algumas regras e reforçadas outas já existentes, totalizando dez quesitos aos quais os alunos teriam que obedecer enquanto estivessem nas dependências dessa instituição. Dentre esses quesitos, o que causou maior descontentamento entre os estudantes foi a proibição do uso do celular na sala de aula. Porém, a insatisfação não foi genérica. Os alunos passaram a dividir opiniões sobre a aplicação dessa regra. Enquanto uns se colocaram a favor achando que a proibição era favorável ao aprendizado deles, outros se colocaram contra achando que a escola estava sendo demasiadamente radical. Diante dessa polêmica, os alunos do 8º ano foram convidados a expressar suas opiniões sobre o assunto. No primeiro momento da atividade foram colocadas as razões que levaram a escola a proibir o uso do celular na sala de aula. Em seguida, os alunos tiveram a oportunidade de expressar suas opiniões sobre o assunto colocando os porquês de estarem contra ou a favor da medida em questão. Após esse momento, foram informados de que suas opiniões seriam expressas em forma de texto escrito que deveriam ser postos nos murais da escola e que apenas um deles seria publicado no blog da própria instituição. Foi esclarecido, ainda, que essa atividade seria iniciada na aula do dia seguinte e que seria interessante a leitura de materiais que versassem sobre o assunto para que assim se sentissem mais seguros das opiniões que iriam defender. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 351 Na etapa seguinte foi discutido qual seria o propósito comunicativo do texto. Ficou esclarecido, então, que a finalidade dessa escrita seria cada um defender o seu ponto de vista sobre a questão da positividade ou negatividade do uso do celular na sala de aula procurando ser persuasivo o suficiente para convencer, da sua opinião, aqueles que mantinham opinião contrária. A consistência dos argumentos e a organização destes no desenvolvimento do texto foi colocada como pontos centrais a serem avaliados. Esclareceu-se ainda que, uma vez que seriam postos nos murais da escola e, pelo menos um deles, publicados no blog, todos os alunos e funcionários da escola teriam acesso à leitura desses textos. Feitas essas considerações, os alunos foram levados a chegar a uma conclusão a respeito de qual gênero textual seria o mais adequado a construção do texto, tendo em vista os elementos anteriormente discutidos. O artigo de opinião foi o gênero escolhido. Assim, considerando que “a escolha de um gênero se determina pela esfera, as necessidades da temática, o conjunto dos participantes e a vontade enunciativa ou intenção do locutor” (SCHNEUWLY, 2004, p. 23), o gênero escolhido, o artigo de opinião, foi bem pertinente. Todo gênero textual possui uma forma preestabelecida que deve ser conhecida por quem deseja utilizá-lo. Os gêneros que circulam em esferas mais formais e que não fazem parte do cotidiano dos alunos, como é o caso do artigo de opinião, precisam de que seus aspectos estruturais e estilísticos sejam ensinados na escola. Então, nesta etapa da proposta, foi trabalhada as questões referentes a composição de um artigo de opinião. É importante ressaltar que a dedicação a esse aspecto composicional se dá em virtude do conhecimento que a turma possui a esse respeito. Sabendo que não existe gêneros que sejam mais adequados a uma série/ano do que a outra, todos podem ser trabalhados em todas as séries, o que deve se adequar é a profundidade que será dada a sua abordagem. É indicado que o professor, antes de orientar a produção de um texto em um determinado gênero, sonde os conhecimentos prévio que os aluno já possuem sobre ele. A etapa seguinte foi o momento em que a primeira versão do texto começou a ser escrita. É, geralmente, a hora mais tensa para os alunos. É quando eles começam a sentir as reais dificuldades do ato de escrever. Nesse momento, o escritor, mesmo inconsciente, lança mão dos diversos conhecimentos que adquiriu ao longo da sua vida escolar e doméstica. São os conhecimentos que foram referenciados na parte inicial deste artigo, aos quais Koch e Elias, (2009) chamam de conhecimento linguístico, conhecimento enciclopédico, conhecimento de texto e conhecimentos interacionais. Embora a avaliação do gênero em construção não tenha como foco especificamente nenhum desses conhecimentos, a qualidade argumentativa inevitavelmente dependerá do bom uso de todos eles. Koch e Elias (2009, p. Nas fronteiras da linguagem ǀ 352 37) ressaltam a importância dos conhecimentos ortográficos no processo de produção de textos e no alcance do propósito pretendido. De acordo com essas autoras, dentro de uma concepção de escrita que tem como foco a interação: Obedecer às normas ortográficas é um recurso que contribui para a elaboração de uma imagem positiva daquele que escreve, porque, dentre outros motivos, demonstra: i) atitude colaborativa do escritor no sentido de evitar problemas no plano da comunicação; ii) atenção e consideração dispensadas ao leitor. (KOCH e ELIAS, 2009, p. 37). Uma ação pedagógica orientada pela concepção de escrita interacional não ignora, no ensino e avaliação de produção de textos, a utilização adequada dos elementos linguísticos de acordo com as regras da língua, porém não coloca esses aspectos gramaticais como foco dessa ação, como ocorre com práticas orientadas por outras concepções. Os outros conhecimentos mencionados contribuem igualmente para a elaboração do texto. Como o próprio nome deixa claro, os conhecimentos interacionais se referem a natureza da própria escrita, já que que o ato de escrever pressupõe uma interação. Conforme esclarece Koch e Elias (2009, p. 44), esses conhecimentos nada mais são do que estruturas cognitivas relacionadas as práticas interacionais. A atuação desses conhecimentos no momento da escrita faz com que o autor selecione as estratégias que sejam mais adequadas para que a sua intenção chegue ao leitor. No caso do conhecimento enciclopédico, é ele que vai garantir que o escritor terá sobre o que discorrer quando estiver escrevendo. Assim, ele precisará ter um certo repertório de informações adquiridas através de fontes variadas como leituras, conversas, escutas e vivências. Desse modo, os alunos que produziram os textos sobre o uso do celular na sala de aula posicionando-se sobre essa ser uma prática positiva ou negativa, precisariam necessariamente saber o que é um celular e quais são as funções básicas e acessória deste aparelho para poder julgar se o uso dele em sala de aula é prejudicial ou não ao aprendizado do aluno, além de ter noção sobre o que são direitos e deveres da escola e do aluno. Ao escrever, qualquer coisa que seja, o produtor já tem ideia do formato que terá o seu texto. O escritor sabe qual o modelo de um bilhete, de uma lista de compras, por exemplo. Quando o texto que vai produzir não lhe é comum ele precisa adquirir conhecimento sobre a forma como se estrutura um texto dessa natureza. Esse tipo de conhecimento Koch e Elias (2009), chamam de conhecimento de texto. Considerando o roteiro proposto por Passarelli (2004), para ensinar o processo da escrita, que prevê quatro etapas, nesta ordem: planejamento; tradução de ideias em palavras; III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 353 revisão e editoração, neste primeiro momento da proposta em questão, as duas primeiras etapas foram cumpridas. Concluída a primeira versão do texto, os alunos foram orientados a formar duplas para a realização de uma atividade que consistia em cada um ler o texto do outro e procurar identificar o ponto de vista que estava sendo defendido e os argumentos utilizados para defende-lo. Feito isso, desfizeram-se as duplas e cada aluno foi analisar se o que o colega entendeu como ponto de vista e argumentos, eram, de fato, compatíveis com as intenções que tinha no ato da produção. Havendo compatibilidade ou não, a orientação, neste momento, era para que o aluno visse aspectos que precisariam e os que poderiam ser melhorados no texto no sentido de torna-lo mais claro, coerente e organizado. Terminada essa etapa, que Passarelli (2004) chama de revisão, os textos foram recolhidos para serem analisados pela professora, que faria as interferências cabíveis de acordo com os critérios que haviam sido estabelecidos para a avaliação. Então, usando a avaliação não segundo critérios quantitativos, no sentido de atribuir uma nota, mas usando no sentido de reorganizar suas práticas pedagógicas tendo em vista a melhoria da aprendizagem do aluno, foram observados os pontos selecionados para a avaliação, que como já foram mencionados, eram relativos a qualidade dos argumentos. A partir dessa análise, os alunos foram orientados a fazer mais leituras relacionadas ao tema sobre o qual estavam escrevendo, foram trabalhadas, também, a questão da organização dos argumentos dentro do texto e o emprego dos operadores argumentativos. A etapa final dessa proposta, que Passarelli (2004) denomina de editoração, foi o momento em que os alunos “passaram a limpo” o texto fazendo os devidos “acabamentos” a fim deixa-lo no formato necessário para tornar-se um texto público. 3. Considerações finais O ensino e a aprendizagem de LP, segundo os PCN, é resultante da articulação de três variáveis que são o aluno, a língua e o ensino. Dentro desta tríade, cada um desses elementos representa um papel. O aluno é o sujeito da ação de aprender; a língua, o objeto do conhecimento, e por último o ensino, que promove a mediação entre os dois anteriores. Se o resultado do ensino e aprendizagem dessa disciplina não está sendo o esperado é porque não está havendo uma articulação entre essas variáveis. E não está mesmo. O ensino, materializado por meio de práticas pedagógicas não tem conseguido tornar viável o acesso do aluno à língua. Nas fronteiras da linguagem ǀ 354 Uma mudança no sentido, de fazer com que o aluno domine os conhecimentos e estratégias necessários a uma utilização satisfatória da língua nos diferenciados contextos sociais, depende, basicamente, de uma modificação na forma de aborda-la em sala de aula. A proposta de produção de texto que este artigo trouxe não teve a pretensão apenas de ser um relato de uma prática, mas, sobretudo de se apresentar como uma sugestão de atividade que poderá ser aplicada em qualquer turma e por qualquer professor. O que não se pode perder de vista é que o ensino da escrita ou do texto tem que partir de situações concretas e representar usos reais de linguagem, tem que se considerar a complexidade desse processo e que não existe texto pronto, o que existe são apenas versões melhoradas. E, por fim, que a avaliação que se faz da escrita seja menos voltada para a nota do aluno e mais voltada para a orientar as práticas didáticas do professor. 4. Referências ANTUNES, Irandé. Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental: Língua Portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997. KOCH, Ingedore Vilaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de produção textual. São Paulo: Editora Contexto, 2009. OLIVEIRA, Luciano Amaral. Coisas que todo professor de português precisa saber: a teoria na prática. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. PASSARELI, Líllian Ghiurro. Ensino de produção textual: da ‘higienização’ da escrita para a escrita processual. In: CINTRA, Anna Maria Marques; PASSARELI, Líllian Ghiurro. (Coord.) A pesquisa e o ensino em língua portuguesa sob diferentes olhares. São Paulo: Blucher, 2012. PASSARELI, Líllian Ghiurro. Ensinando a escrita: o processual e o lúdico. 4 Ed. São Paulo: Cortez, 2004. SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e ontogenéticas. In: SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. Roxane Rojo. Campinas: Mercado das Letras, 2004. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 355 INCONSCIENTE E SIMBÓLICO EM PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM [Voltar para Sumário] Antonielle Menezes Souza (UFS) Marcio Carvalho da Silva (UFS) Perto do coração selvagem é o romance inaugural da escritora Clarice Lispector, sendo um dos mais importantes de sua carreira, livro extremamente elogiado pelos críticos de sua época, denominando-o como a melhor novela escrita por uma mulher. Movido por uma alta carga de densidade psicológica onde a autora aborda de maneira bastante complexa os conflitos internos da personagem principal chamada Joana. Além de apresentar uma inédita forma descontinua de narração e uma inovadora expressão verbal que levou o romance a obter uma força poética imensamente relevante, característica que marca profundamente o panorama da ficção brasileira da década de 40. A referida obra é divida em duas partes, a primeira os capítulos se alternam entre a Joana criança e a Joana mulher onde nos são expostos fatos e situações diárias, assim como seus questionamentos, inseguranças, interrogações a respeito da existência humana e seus conflitos cotidianos. Já na segunda parte do livro a autora nos apresenta a personagem Joana em sua fase adulta repleta de questionamos, insatisfações e meditações altamente reflexivas a cerca do seu cotidiano do mundo adulto e patriarcal. É mister frisar a similaridade e estreitamento das técnicas abordadas e apresentadas pela escritora Clarice Lispector com as da Virgínia Woolf e do James Joyce, quanto a densidade psicológica empregada na narrativa. Apresenta, para a época, com sua nova expressão verbal, a estreante aproximara-se, também, dos grandes transgressores, da até então rotina literária, Mário de Andrade, com Macunaíma, e Oswald de Andrade, com Memórias de João Miramar, onde obtiveram êxito ao expandir o domínio de palavras sobre regiões complexas e inexprimíveis, ou seja, fazer ficção a partir do conhecimento do mundo e das ideias. A partir desse âmago mimético são construídos vários romances e contos da escritora Clarice Lispector, sendo a experiência interior o seu primeiro plano, e mais intenso, de arte e Nas fronteiras da linguagem ǀ 356 criação literária fatores fundamentais para o estudo proposto em questão, visto que o romance Perto do Coração Selvagem acentua-se, generosamente, pelo viés introspectivo-reflexivo. Clarice Lispector é indiscutivelmente uma das escritoras mais relevantes da Geração de 45 no Brasil. Geração essa que despontou na poesia representada na obra de João Cabral de Melo Neto, quando o seu processo de criação buscou “lapidar a palavra”, buscando a expressão exata ao fazer do poema um exercício de denúncia das agruras sociais, a exemplo de A educação pela pedra. Além da poesia, a produção da prosa no período ocorreu de forma extremamente fecunda, tendo como representantes Clarice Lispector e Lygia Fagundes Teles com uma densa narrativa psicológica ao sondarem o mais íntimo das personagens, vasculhando as profundezas da mente humana e suas angústias, medos e sentimentos. Ainda nesse período, outro expoente na prosa foi representado pela reinvenção da linguagem, que mesmo sua narrativa sendo ambientada no esmo do espaço do Sertão, desponta pelo exemplo de universalismo das temáticas abordadas. Possuidora de uma vasta e rica obra literária com características marcantes, personagens densos e inadaptados ao mundo. Lispector nos apresenta uma escrita completamente afastada das técnicas do romance tradicional. Promoveu a quebra da fronteira entre a voz da narradora e dos personagens, construindo assim narrativas interiorizadas, introspectivas. Com uma personalidade demasiadamente singular e intrigante, reconhecia o valor do mistério e do silêncio. Dessa maneira, com sua áurea inatingível tentava insistentemente compreender e traduzir a alma humana. Na narrativa Perto do coração selvagem, o objeto do nosso atual estudo, a escritora nos expõe uma personagem e uma alta densidade psicológica, demonstrando-nos fluxos de consciência, e inquietações de sua vida interior, ou seja, os conflitos de natureza psicológica. Notamos uma narrativa que oras mergulha no passado, em outros momentos no presente, partindo sempre do fio condutor de sua memória. Desse modo, notamos que a estreante inova ao apresentar uma escrita emergida à alta densidade psicológica e ao arquitetá-la a subjetividade com tamanha maestria. É interessante observar na narrativa Perto do coração selvagem mediante a ótica do professor Benedito Nunes que: [...] na obra de estreia de Clarice Lispector, acima de leve trama que ainda acompanha uma ação romanesca já francamente interiorizada, a rede dos “pequenos incidentes separados” que Virginia Wolf tanto valorizou e que fazem da sua maneira de narrar uma convergência de momentos de vida vários e dispersos. Ora, o que liga o romance de Clarice Lispector a esses autores é menos uma técnica ou III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 357 procedimento particular do que os processos comuns – o monólogo interior, a digressão, a fragmentação dos episódios -, que sintonizam com o modo de apreensão artística da realidade na ficção moderna, cujo centro mimétrico é a consciência individual enquanto corrente de estados ou de vivências. (NUNES, 1995, p.13) Notamos, então, que na referida obra uma necessidade intensa de investigar as camadas mais densas da consciência e da inconsciência humana na procura, talvez, de compreender o sentido da existência. Percebemos uma significativa proximidade dessa narrativa com os estudos junguianos, visto que a ficcionista tenta dissecar a alma humana, assim como, os conflitos mais íntimos. Para a teoria junguiana tanto a palavra quanto a fala podem expressar o que se deseja comunicar, visto que a linguagem é repleta de símbolos que muitas vezes são associados a sinais e imagens que não são necessariamente descritivos. Para Jung: O que chamamos símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida cotidiana, embora possua conotações especiais além do seu significado evidente e convencional. Implica numa coisa vaga, desconhecida ou oculta para nós. (JUNG, 2008, p.18) Dessa maneira, a palavra, linguagem ou uma imagem é simbólica e implicará, segundo as teorias junguianas, significados muito além dos imediatos. Logo, observamos que quando a mente explora um símbolo ela, segundo Jung “é conduzida a ideias que estão fora do alcance de nossa razão”. Desse modo, através de uma aparente linguagem simples, a escritora mergulha no amago do ser humano, mais precisamente da personagem Joana, revelando assim uma permanente preocupação em alcançar a verdade escondida na aparente simplicidade das palavras. É relevante verificar que na obra ficcional Perto do coração selvagem, acontece um discurso direto alternado ao indireto, em inúmeros trechos, sobretudo na parte final do romance, transformando-o constantemente em um monólogo onde a personagem ficcional busca o autoconhecimento. Observa-se a significativa e relevante contribuição da obra de Clarice Lispector na literatura, sobretudo na produção de romances introspectivos, raridade entre nossa produção literária. Grande exemplo dessa produção literária dar-se-á através da obra Perto do coração selvagem, onde solicitará do leitor um preparo e bom conhecimento psicológico, já que em um primeiro contato com a obra, observamos que a mesma causa certo estranhamento e dificuldade na compreensão. Superada essa primeira etapa, é possível conhecer uma escrita indefinível, uma mistura de prosa, confissão, discursos e reflexões internas. Para Antônio Candido, a obra Perto do coração selvagem é: Nas fronteiras da linguagem ǀ 358 “[...] uma tentativa impressionante para levar nossa língua canhestra a domínios pouco explorados, forçando-a a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério, para o qual sentimos que a ficção não é um exercício ou uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito, capaz de nos fazer penetrar nos labirintos mais retorcidos da mente.” (CÂNDIDO, 1970, p.126) Desse modo, e a partir da leitura, e consequente reflexão a respeito da observação de Antônio Candido, notamos que após esse âmago mimético são construídos vários romances e tantos outros contos da escritora Clarice Lispector, sendo a experiência interior o seu primeiro plano de arte e criação literária. A prosa é bastante densa e discorre a partir da experiência interior da personagem Joana que ainda menina é muito inquieta e questionadora, e enquanto mulher se apresenta no decorrer da trama uma pessoa confusa e indecisa. Encontramos, também, indiscutivelmente, a minúcia das descrições das múltiplas experiências psíquicas e de uma constante oscilação e modificação interior uma tentativa constante de equilíbrio entre o ego e o “si-mesmo”. Porém, para Jung “não importa até onde o homem estenda os seus sentidos, sempre haverá um limite à sua percepção consciente”. Dessa maneira, Jung nos apresenta as dificuldades encontradas pela mente humana para obter a profunda percepção dessa parte obscura, não tão aparente, que é o nosso inconsciente. Assim, notamos uma Joana perdida em um labirinto de memórias e autoanalise em busca sempre o equilíbrio, a compreensão de suas atitudes e o reflexo delas em si mesma e no outro. Percebemos, dessa maneira, que a personagem transcende do plano psicológico para o metafísico investigando e refletindo sobre a sua verdadeira essência. Isso não é matéria de fácil compreensão, mas é preciso entendê-la se quisermos conhecer mais a respeito da mente humana. O homem, como podemos perceber ao refletirmos um instante, numa percebe plenamente uma coisa ou a entende por completo. Ele pode ver, ouvir, tocar e provar. Mas a que distancia pode ser, quão acuramente consegue ouvir, o quando lhe significa aquilo em que toca e o que prova, tudo isso depende do numero e da capacidade dos seus sentidos. (JUNG, 2008. p.21) Assim, observamos nítida e claramente que a percepção do ser humano limita-se diretamente ao mundo à sua volta e às experiências adquiridas ao longo de sua trajetória. Joana é definitivamente umas das personagens mais sensitivas e introspectivas da Clarice, e é interessante observar que de modo geral, a noção de subjetividade privada, embasada na distinção moderna entre público e privado, foi adulterada nos últimos quatro séculos, na passagem do Renascentismo para a modernidade. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 359 No entanto, o sujeito da modernidade, centrado e soberano, já que se vê questionado de certo modo desde sua constituição [...] Não é por acaso que justamente aí surge a ideia e um sujeito descentrado. É o momento da conceitualização de outra concepção de aparelho psíquico com Freud, que irá operar uma subversão do tópos subjetivo, calcado na tríade eu/consciência/racionalidade. (HOMEM, 2012, p.67) O sujeito moderno, como acontece com a personagem Joana, compõe-se nessa passagem devido à própria magnitude da crise nas estruturas vigentes, sendo o Renascimento sua inevitável ampliação de horizontes, onde propicia a sensação de perda de referências, anteriormente revestidas na estruturação hierarquizada e divinizada da realidade. No desenrolar da narrativa, mais precisamente, desde o princípio dela, percebemos que o desejo “inconsciente” de encontrar a sua personalidade a fim de domar e, por fim, se libertar do coração selvagem preenche por completo o ser de Joana, situação que se converteu em um problema real ao ser intensificado na fase adulta. Visto que essa personalidade não fora cultivada, e sim negligenciada inteiramente na infância, dificultado, assim, o seu desenvolvimento, onde percebemos, segundo Jung, que: “Ao chegar à idade escolar, a criança começa a fase de estruturação de seu ego e de adaptação ao mundo exterior. Essa fase traz em geral um bom número de choques e de embates dolorosos. Ao mesmo tempo, algumas crianças nessa época começaram a sentir-se muito diferentes das outras, esse sentimento de singularidade acarreta uma certa tristeza, que faz parte da solidão de muitos jovens. As imperfeições do mundo e o mal que existe dentro e fora de nós, tornam-se problemas conscientes; a criança precisa enfrentar impulsos interiores prementes (e ainda não compreendidos), além das exigências do mundo exterior”. (JUNG, 2008, p. 218) Notamos os conflitos de compreensão do meio social e as inquietações intimas da personagem na narrativa ficcional em vários momentos. O mais significativo, dentre eles, acontece na cena em que Joana, ainda menina, questiona a sua professora acerca do que se conseguiria quando se fica feliz. “O que é que se consegue quando se fica feliz?” (Perto do coração selvagem, p.29). A atitude deixa a professora totalmente desconcertada em classe e sem respostas para aquela pequena garota. Observamos, dessa maneira, que “a personalidade já existe em germe na criança, mas só se desenvolverá aos poucos por meio da vida e no decurso da vida. Sem determinação, inteireza e maturidade não há personalidade.” (JUNG, 1993, p. 176). Percebemos assim, a personagem Joana pré-disposta a uma determinada situação cotidiana onde o universo da condição feminina de mulher e esposa, da relação do “eu” e o “outro”, das falsidades humanas e da própria linguagem, sendo esta a única forma de comunicação com o mundo como posturas constantemente questionadas. A realidade da Nas fronteiras da linguagem ǀ 360 personagem é regida por meio de sua consciência individual, que originam monólogos interiores, digressões e algumas fragmentações de episódios. Notamos no fragmento a seguir: É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. (Perto do coração selvagem, 1998, p. 21) É mister salientar que nota-se claramente dois fragmentos do livro Perto do coração selvagem, tanto em Joana Criança, quanto na adulta a presença real do arquétipo da mulher selvagem, definido Pinkola da seguinte maneira: Quando a mulher consulta sua própria natureza dual, ela está cumprindo o processo de olhar, examinar e sondar o material que está para além do consciente, sendo, portanto, muitas vezes surpreendente no seu conteúdo e no seu tratamento, e quase sempre de imenso valor. (PINKOLA, 1994, p 164) Outro fragmento teórico da psicóloga juguiana Clarissa Pinkola que reforçaria a presença real do arquétipo da mulher selvagem desde os primeiros estágios da infância da personagem Joana na narrativa ficcional clariciana, segue: Qualquer um que seja íntimo de uma Mulher Selvagem está de fato na presença de duas mulheres: um ser exterior e uma criatura interior, uma que habita o mundo terreno, e outra que vive num mundo não tão previsível. O ser exterior vive à luz do dia e é observado com facilidade. Muitas vezes é uma pessoa pragmática, aculturada e muito humana. Já a criatura costuma chegar à superfície vindo de muito longe e com frequência aparece e desaparece rapidamente, embora sempre deixe uma sensação: algo de surpreendente, original e sagaz. (PINKOLA, 1994, p 164) É neste panorama de dualidades que encontramos Joana, personagem ficcional, em constante conflito buscando constantemente um realinhamento do ego com a sua totalidade do self em uma retomada do processo de individuação. Citado por Jung da seguinte maneira: O verdadeiro processo de individuação – isto é, a harmonização do consciente com o nosso próprio centro interior (o núcleo psíquico) ou self – em geral começa infligindo uma lesão à personalidade, acompanhada do consequente sofrimento. Esse choque inicial é uma espécie de “apelo”, apesar de nem sempre ser reconhecido como tal. (JUNG, 2008, p 219) Na segunda metade do livro, mais precisamente no final da narrativa, Joana mitigada de sentimentos é arrastada ao adultério onde busca, neste momento, o autoconhecimento e o encontro com o seu self, promove, assim, um envolvimento em vários questionamentos acerca da vida e da morte, do bem e do mal, do amor e ódio. Neste momento final Joana obtém êxito ao culminar o processo de individuação, sendo ele, para Jung: O homem só se torna um ser integrado, tranquilo e feliz quando (e só então) o seu processo de individuação está realizado. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 361 Quando consciente e inconsciente aprender a conviver em paz completando-se um ao outro. (JUNG, 2008, p 213) A sincronização ocorrida através de tais eventos psíquicos internos e externos onde o arquétipo se aproxima e ocorrem momentos de passagens, mudanças, transições, sofrimentos, dificuldades, provocam em Joana o renascimento e florescimento de si mesma “ela própria nascendo sobre a terra asfixiada, dividindo-se em milhares de partículas vivas, plenas de seu pensamento, de sua força, de sua inconsciência... Atravessando a limpidez sem névoas lentamente, andando, voando...” (Perto do Coração Selvagem, p.192). É neste momento em que a personagem Joana se desfaz de todas as cascas do passado revigorando-se mediante suas dores, onde se fortifica utilizando os detritos deixados o longo do caminho como adubo para que renasça como uma árvore frondosa. Para Cirlot, no dicionário dos símbolos (1984, p. 99) “a árvore representa, no sentido mais amplo, a vida do cosmo, sua densidade, crescimento, proliferação, geração e regeneração”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesta perspectiva do universo do imaginário coletivo estabeleceremos um diálogo entre o objeto de pesquisa e a problemática proposta, onde será possível vislumbrar na narrativa o arquétipo da mulher selvagem a fim de esculpir da melhor maneira as questões da alma feminina. Desse modo, é possível verificar a significativa importância do estudo para o despertar da psique e do seu conhecimento, estes que norteiam às mulheres a interagir em sociedade, logo o seu retorno ao introspectivo. É relevante observar que se torna presente no romance Perto do Coração Selvagem, o autoconhecimento sendo este o caminho para promover as necessárias quebras de padrões comportamentais que embaraçam o processo de individuação da personagem fictícia Joana. Notamos que o caminho de Joana dentro da narrativa, segue uma dinâmica, aparentemente, descontinuada e desconexa, absolutamente assimétrico e incoerente sempre em busca do seu Self. Dessa maneira é notável e perceptível que o estudo e analise da obra Perto do coração selvagem pela vertente junguiana associada à mitocrítica abrirá uma nova senda para a nossa literatura, consoante a mimese centrada a consciência individual como maneira artística da realidade. Assim, consideramos que o estudo mais aprofundado da referida obra contribuirá Nas fronteiras da linguagem ǀ 362 para ampliar a compreensão no campo das narrativas introspectivas da literatura associadas aos recursos psicanalíticos, mitológicos e imaginários. REFERÊNCIAS CANDIDO, Antônio. No raiar de Clarice Lispector. In: Vários escritos. São Paulo, Duas Cidades, 1970. CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário dos símbolos. São Paulo: Editora Moraes, 1984. BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. Lisboa: Editorial Estúdios Cor, 1937. DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988. ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Tradução de Waldés Barcelos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. HOMEM, Maria Lucia. No limiar do silencia e da letra: traços da autoria feminina em Clarice Lispector. São Paulo: Boitempo; Edusp, 2012. JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2009. ______.Estudos psiquiátricos. Tradução: Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993. ______.O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. ______.Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2008. ______.Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2009. LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2010. LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. MIELIENTINSKI, E.M. A poética do mito. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. NUNES, Benedito. O drama da linguagem: Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Editora Ática, 1995. SHARP, D. Léxico Junguiano: Um Manual de Termos e Conceitos. 5. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1997. TURCHI, Maria Zaira. Literatura e antropologia do imaginário. Brasília: Universidade de Brasília (UnB), 2003. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 363 O USO DOS SINAIS DE PONTUAÇÃO COMO MARCAS DISCURSIVAS [Voltar para Sumário] Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)1 Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)2 1. Língua, linguagem e gramática — perspectivas do ensino de língua escrita As discussões em torno do ensino de língua materna, especificamente sobre as estratégias e os métodos adequados que devem ser utilizados nos processos de ensinoaprendizagem de Língua Portuguesa (LP), têm ocupado o centro das reflexões linguísticas nas últimas décadas no Brasil. Um recorte pertinente dessa discussão é constituído pelas questões que tratam dos aspectos do uso de recursos de língua escrita como forma de expressão da linguagem. As reflexões começam, por exemplo, quando se fazem pergunats tais como: Que gramática ensinar? Ensinar gramática é o mesmo que ensinar língua? Aspectos da oralidade devem ser tomados como temas de aula de LP? Como trabalhar fala, leitura e produção de texto em sala de aula? Todas essas perguntas começaram a ser respondidas a partir da elaboração e divulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), que, entre muitas outras coisas, apontam os caminhos que o ensino de LP deve percorrer na educação básica para evitar o “fracasso” do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita. A distinção entre escrita alfabética e linguagem escrita é o centro de uma aprendizagem significativa da escrita, quer do modus scripsendi (a maneira como se processa a escrita), quer do modus operandi (a maneira como se configura o escrito). Mestrando pelo programa PROFLETRAS – UFAL. Especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo / Academia Alagoana de Letras (UNICID/AAL). Graduado em Letras pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professor substituto de Língua Latina na Universidade Federal de Alagoas (2004 - 2206). Professor de Língua Latina e Língua Portuguesa na Faculdade de Formação de Professores de Penedo (2003 - 2007). Professor de Língua Latina, Linguística e Língua Portuguesa na Universidade Estadual de Alagoas (2009 - 2015). Professor do quadro de professores da Secretaria Estadual de Educação de Alagoas (SEED) e do quadro da Secretaria Municipal de Educação de Maceió (SEMED). 2 Mestranda em Educação Brasileira – PPGE/CEDU/UFAL – Linha e Grupo de Pesquisa: Educação e Linguagem. Professora do Instituto Federal de Alagoas (IFAL). 1 Nas fronteiras da linguagem ǀ 364 A pertinente diferença entre as habilidades de grafar o texto escrito e a competência para redigi-lo aponta as distinções entres esses dois processos que desfazem a crença de que a capacidade de escrever esteja relacionada ao domínio do processo alfabético. É sobre essa distinção que os PCN’s fundamentam-se, conforme o texto abaixo. A compreensão atual da relação entre a aquisição das capacidades de redigir e grafar rompe com a crença arraigada de que o domínio do bê-á-bá seja pré-requisito para o início do ensino e nos mostra que esses dois processos de aprendizagem podem e devem ocorrer de forma simultânea. Um diz respeito à aprendizagem de um conhecimento de natureza notacional: a escrita alfabética; o outro se refere à aprendizagem da linguagem que se usa para escrever. (PCN, 1997, p. 27). No entanto, para essa discussão, a perspectiva de reflexão sobre a atividade de escrever orienta-se pela análise das competências e domínios do código escrito, visto enquanto resultado de processos que se fixam por usos circunscritos no tempo como, por exemplo, a passagem de uma ortografia mais etimológica para uma mais fonêmica. As reflexões também são guiadas pela análise do código escrito enquanto resultado de convenções que justificam e orientam, por exemplo, a utilização de notações léxicas e de sinais de pontuação. Nesse sentido, as dificuldades em torno do ensino-aprendizagem do código escrito apontam sempre na direção de fazer com que os alunos compreendam, durante todo o processo de aquisição e desenvolvimento da escrita, que escrever requer habilidades e competências específicas e distintas das que se utilizam na organização e elaboração da fala. Por essa razão, ao longo do processo de aprendizagem, escreventes devem entender que a escrita é “um espaço de convenções, um artefato elaborado de maneira consciente e, por isso mesmo, submetido a um dirigismo deliberado”. (MARTIN, 2006, p. 53). O estudo das manifestações de língua escrita, desconsiderando, no entanto, situações concretas de interação, leva à abordagem de aspectos tangenciais do papel e da função da língua escrita. 2. Língua e linguagem — concepções da gramática normativa Quando se fala no ensino de gramática, ou quando se pensa em obras de referência no tratamento e apresentação de “regras” e de taxonomias gramaticais, tem-se em mente autores como Napoleão Mendes de Almeida com sua Gramática Metódica da Língua Portuguesa, que em 2009 chegou à 46º edição com mais de meio milhão de exemplares vendidos. Celso Cunha & Cintra são nomes também bastante lembrados pela obra Nova Gramática do III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 365 Português Contemporâneo. Não menos relevante é Rocha Lima com a Gramática Normativa da Língua Portuguesa, inclusive, importante personagem, junto com Celso Cunha, na formulação do anteprojeto de simplificação e unificação da Nomenclatura Gramatical Brasileira (1958). Essa lista de autores de referência, no que diz respeito à elaboração de compêndios gramaticais, encerra-se com Evanildo Bechara, sem dúvida, o mais conhecido contemporaneamente entre estudantes de LP por sua Moderna Gramática Portuguesa, que em 2009 teve publicada sua 37º edição. Há muitos outros autores de compêndios gramaticais, os citados aqui, no entanto, são representativos e fundamentais para as reflexões que se pretendem apresentar. Num primeiro momento, o interesse é analisar e refletir sobre as concepções de língua e linguagem que são utilizadas por esses autores em suas gramáticas. A importância dessas considerações para este trabalho reside no fato de serem essas obras — basicamente, mas não exclusivamente — responsáveis pelos substratos conceituais encontrados nos materiais didáticos de língua portuguesa do ensino básico (fundamental e médio). As concepções encontradas nessas obras dizem muito sobre a forma de perceber a relação entre língua e linguagem que fundamentam as definições, as classificações e as tipologias apresentadas no estudo de LP nas escolas brasileiras. Na Gramática Metódica da Língua Portuguesa, por exemplo, Almeida (1994) categoricamente explicita que a linguagem constitui-se como “dom comum de todos os homens, nem todos eles se comunicam pelas mesmas palavras”. Essa é uma definição que se insere dentro de uma perspectiva de linguagem como um sistema de signos abstratos cuja função é a manifestação do pensamento e que deve encontrar respaldo na realidade. Segundo Almeida, Como todos os outros animais, nós agimos; mas, à diferença deles, manifestamos e externamos nossa ação, mediante o dom que nos é próprio, a linguagem, que outra coisa não é senão a propriedade que temos de, por meio de palavras, comunicar-nos entre nós, exteriorizando o nosso pensamento (...). (ALMEIDA 1994, p. 17). Essa concepção de linguagem influencia, consequentemente, toda a perspectiva de ensino-aprendizagem de língua e de gramática, que, não obstante, passa a ser vista, hermeticamente, como um conjunto de fatos e fenômenos disponibilizado pela própria “natureza social” na qual o usuário da língua está habitualmente inserido. Nessa mesma base de concepção, mas já com uma inclinação a ver a língua como um fenômeno social, Cunha & Cintra definem língua como um sistema de sinais, quando afirma que Nas fronteiras da linguagem ǀ 366 Língua é um sistema gramatical pertencente a um grupo de indivíduos. Expressão da consciência de uma coletividade, a LÍNGUA é o meio por que ela concebe o mundo que a cerca e sobre ele age. Utilização social da faculdade da linguagem, criação da sociedade, não pode ser imutável; ao contrário, tem de viver em perpétua evolução, paralela à do organismo social que criou. (CUNHA & CINTRA, 2008, p. 1) Embora aponte para o aspecto social e mutável da língua, a definição acima permanece presa à ideia de que a linguagem é um fenômeno de natureza abstrata, manifestação da consciência: um ser de razão. Essa é uma maneira de perceber a língua — aspecto concreto da linguagem — como consequência da atividade humana, como instrumento da razão ou da racionalidade; não como força geradora e constituidora do conhecimento. De modo geral, as perspectivas que orientam o entendimento de língua(gem) nos compêndios de gramática, entendem-na como um instrumental periférico que manifesta analogicamente realidades imateriais: o pensamento. Por essa razão, os manuais desembocam em apresentações de estruturas fechadas e enquadradas em definições, regras e taxonomias. Apesar de ter lampejos de uma concepção interacionista, a definição de Cunha & Cintra aponta para uma relação unilateral do uso da linguagem, em que a mudança que se verifica na língua é consequência de transformações da sociedade que cria a língua. Não se afasta dessa percepção, a definição que diz que a “LÍNGUA é um sistema: um conjunto organizado e opositivo de relações, adotado por determinada sociedade para permitir o exercício entre os homens” (LIMA, 1992, p. 5). Esses três autores, que estiveram presentes durante muito anos — direta ou indiretamente — na formação escolar dos estudante de LP, revelam-se presos a uma concepção de língua(gem) estruturalista, que é, por sua vez, um desdobramento da ideia de sistema (um todo organizado) que se presta à análise. Em consonância com essa perspectiva, Bechara em sua Moderna Gramática Portuguesa identifica a natureza da linguagem como “sistema de signos simbólicos”; a sua percepção é mais significativa porque ele representa um gramático contemporâneo e profundamente inserido nas questões e discussões promovidas pelos estudos linguísticos das últimas décadas. “Entende-se por linguagem qualquer sistema de signos simbólicos empregados na intercomunicação social para expressar e comunicar ideias e sentimentos, isto é, conteúdos da consciência”. (BECHARA, 2003, p. 28). Embora Bechara traga a ideia de intercomunicação social em sua definição — nesse sentido, percebe-se a influência de perspectivas linguísticas —, ele enxerga a língua como um sistema de signo em cuja construção de sentido III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 367 circunscreve-se nos limites das estruturas que são estabilizadas no próprio fenômeno linguístico. A pertinência de Bechara, na forma como define a linguagem, evidencia-se na maneira como categoriza suas manifestações. Sobre isso, o teórico salienta que “a linguagem, entendida como atividade humana de falar, apresenta cinco dimensões universais: criatividade (ou enérgeia), materialidade, semanticidade, alteridade e historicidade”. (Idem). Dessas cinco categorias, interessa para este trabalho aquilo que Bechara denomina de alteridade, que consiste em entender que o “significar é originalmente e sempre um ‘ser com outros’, próprio da natureza político-social do homem, de indivíduos que são homens juntos a outros e, por exemplo, como falantes e ouvintes, são sempre co-falantes e co-ouvintes” (ibidem). Nesse posicionamento, pode-se enxergar uma postura, em relação à natureza da linguagem, mais próxima de uma perspectiva interacionista, que concebe a natureza da linguagem como resultante das práticas sociais de seus usuários. Embora Bechara não chegue a tanto, demonstra reconhecer a presença das relações sociointeracionistas nos fenômenos da linguagem. Quanto a não ir além — ao cerne da abordagem interacionista ou a de qualquer outra que compreenda a natureza da linguagem per se —, percebe-se que não vai porque não parece ser seu objetivo. 3. A escrita — espaço de convenções Uma abordagem moderna do estudo da linguagem na direção da modalidade escrita da língua precisa partir do entendimento de que esta é resultante de convenções, mas não no sentido de ela ser resultado de elaborações arbitrárias sem causas e motivações linguísticas pertinentes e identificadoras da própria natureza da linguagem. De fato, na escrita encontramse manifestações da realidade social em que ela se insere e que contribui para a mútua formação e transformação na relação escrita-sociedade-escrita. Esse processo de atualização é possível porque a escrita constitui-se de modo autônomo e consistente — enquanto código com natureza particular e individualizante — como artefato social e justifica-se in tempore (no momento do uso). Ela é artifício (arte + ofício), que imita o natural, isto é, algo resultante de uma elaboração humana motivada por necessidades sociais, mas que tem sua identidade, sua essência, que a distingue substancialmente daquela que é imitada. É óbvio que não se pode negar a anterioridade da modalidade oral, “o código gráfico é uma criação em segundo nível (...).”. (MARTIN, 2006, p. 53). Ainda segundo Martin, Nas fronteiras da linguagem ǀ 368 “O código gráfico é também um artefato pelo uso que dele se faz. Onde o oral flui de maneira natural (com maior ou menor falta de habilidade...), o escrito solicita constantemente a função epiliguística. No momento em que é produzido, o sinal gráfico é logo percebido como um sinal, como um espaço de correções (...)”.(MARTIN, 2006, p. 54). Nesse sentido, a escrita aproxima-se da fala como uma modalidade de língua com vida própria, mas se submetendo aos mais diversos processos de estruturação, transformação e normatização. A aproximação entre o oral e o escrito não se dá enquanto este é desdobramento daquele, as distinções entre escrita e fala permitem dizer que o código gráfico não é uma transcrição do oral, as distinções são tão verdadeiras e diversas que permitem “encarar a possibilidade de tornar autônomos os dois usos, como duas línguas diferentes que partilham o mesmo nome (...). Uma tal posição tem a vantagem de romper com a ingenuidade da ideia, de pura transcrição” (ACHARD, 2006, p. 65). Naturalmente que falar em normatização, ao tratar de oralidade, é combater em batalhas vencidas, uma vez que é consenso que a fala não se presta à regularizações ou normatizações, mas a perspectiva é entendê-las como princípios linguísticos que mantêm, conservam e identificam a natureza ôntica da língua enquanto manifestação do idioma. “É, assim, lícito reportá-los [domínios oral e escrito] a uma mesma norma abstrata, isto é, considerá-los como dois subdomínios de uma mesma língua” (ibidem). A essência distintiva requerida pela escrita em relação à fala fundamenta-se na percepção de que a escrita não é uma notação fonológica, não se constitui, necessariamente, de fonogramas. As diferenças entre escrita e fala dão-se, sobretudo, nos níveis morfossintáticos e prosódicos; em que as estratégias da escrita são mais prolixas, no caso da morfossintaxe; absolutamente particular (sui generis) no caso da prosódia, uma vez que a expressão escrita traz a presença de marcas de pontuação, que só existe na expressão escrita. Isso possibilita deduzir que a escrita é uma outra língua substancialmente diferente da fala. Para Achard, “O fosso [entre escrita e fala] torna-se um rio quando nos interessamos pela organização geral da cadeia significante. Como no escrito, a organização em frases tem seu modo de fechamento, e como vem acompanhada de uma organização em sintagmas bem delimitados, é mais do que uma norma externa. No oral, pelo contrário, uma tal organização quase só pode ser observada em circunstâncias de escrito oralizado”. (ACHARD, 2006, p. 66). Pode-se ir mais longe nessa reflexão, se se entender que a formação do constructo gramatical prende-se, essencialmente, à natureza da língua escrita, isto é, quando se fala em III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 369 normatização, faz-se referência à exteriorização ou à materialização de princípios linguísticos da língua escrita. O transbordamento para o domínio da fala dá-se por processos ou procedimentos análogos. Nesse sentido, “há, portanto, um evidente interesse em abordar o estudo da língua oral abstendo-se de fazer referência a uma tradição gramatical que (...), em linguística, se apresenta mais como preconceito do que como experiência acumulada” (ibidem). “Experiência acumulada” é o que se verifica quando se aborda, por exemplo, o ensino-aprendizagem de LP a partir do conhecimento sistemático dos princípios linguísticos e dos aspectos estruturais da língua. Quando alguém, ao dizer (ou escrever) a palavra “calção”, faz referência a algo específico que, objetivamente, não tem relação com a ideia contida na palavra “calça” e, em outra situação, usa o sufixo –ão para apenas adicionar uma noção acidental (flexão), apontando o aumentativo (extensão) de um mesmo referencial semântico como, por exemplo, na palavra “dedão”; evidencia-se a manifestação de domínios linguísticos inerentes à estrutura linguística e assimilados naturalmente pelo usuário da língua. A diferença de sentido e de aplicabilidade do elemento mórfico (o sufixo –ão), antes de ser apresentada como um fenômeno resultante de relações normativas da língua, deve ser refletida como um processo natural de um conhecimento adquirido com a prática e com o uso social da linguagem. Num segundo momento, em situações específicas e especiais de reflexão, podem-se estabelecer relações significativas e distinguidoras de seus usos e suas aplicabilidades. Isto é, dizer que, em alguns casos, os sufixos podem promover um processo de derivação — quando imprimem mudança de significado —, ou promover um processo de flexão apenas, se conservar o núcleo semântico da palavra. Explicitar esse processo, considerando os princípios linguísticos, não é normatizar o uso dos sufixos, é, antes de tudo, descrever o funcionamento de princípios identificadores dos fenômenos linguísticos e de efeitos fonológicos, morfológicos, sintáticos ou semânticos que eles promovem. A escrita é um espaço de convenções, isto é, um ambiente de comunicação em que os fenômenos linguísticos materializam-se de forma regulada por relações sistemáticas e significativas que são aceitas, compartilhadas e, quando necessário, transformadas. A escrita vista como manifestação de língua distinta da fala gera inquietações linguísticas, pois desfaz a perspectiva de que escrita e fala formem um continuum com as mesmas possibilidades de formulação linguística e de manifestação social. Suas diferenças, porém, não lhes conferem primazia nem maior ou menor grau de importância, pois “se há alguma anterioridade entre fala e escrita isso se deve a aspectos cronológicos”. Nas fronteiras da linguagem ǀ 370 (MARCUSCHI, 2005, p. 26). No entanto, se fossem um continuum, os processos de aquisição e de desenvolvimento das habilidades e competências que lhes circundam deveriam manifestar-se de forma semelhante, isto é, a aquisição da escrita, por exemplo, deveria ter qualquer coisa de espontâneo e, de alguma forma, apresentar-se como uma extensão da aquisição e do desenvolvimento da fala. Como proposta de equacionar o problema em torno da compreensão da escrita como uma forma da língua essencialmente distinta da fala, pode-se ponderar e refletir a questão a partir daquilo que Catach (2006) chama de plurissistemas, em que, considerando os conceitos saussurianos de signo – significado – significante, propõe-se analisar se, na passagem da fala para a escrita, verificam-se mudanças referencias (de significado), acidentais (de significante), ou sígnicas (de essencialidade) —, ou tudo isso junto. Nesse sentido, vale a pena pensar sobre que competências um falante adquire e/ou desenvolve ao se tornar um escrevente. 4. Marcas de pontuação — singularidade da escrita Tradicionalmente, estabelece-se uma correspondência direta entre os fenômenos da fala e suas representações gráficas na escrita. Essa necessidade sempre esteve presente porque sempre se achou que para “escrever ou recitar, declamar ou cantar era preciso observar o silêncio, que separa as expressões que formam um discurso; bem como, o tempo de respiração durante a leitura”. (GRIMAREST apud CATACH, 1996, p. 35). No que diz respeito à utilização dos sinais de pontuação, essa transposição de valores significativos da fala para a expressão escrita é imperativa, porque se entende que “conexo com o problema ortográfico é o da pontuação”. (HOUAISS, 1983, p. 90). Pode-se ir muito além dessa perspectiva normativa no que diz respeito aos sinais de pontuação, pois as marcas de pontuação são aquilo que há de mais singular na modalidade escrita, pensar em pontuação é, necessariamente, fazer referência à expressão escrita. 5. A constituição das marcas de pontuação — do textual ao discursivo Não se questiona que a relação e a influência da fala na estruturação e organização da escrita devem-se, ao menos a princípio, à própria história de formação da escrita que ganhou existência na perspectiva de ser falada, ou seja, originariamente os textos escritos eram produzidos para serem lidos em voz alta. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 371 Vale lembrar que os gregos — sistematizadores da escrita — não conheciam a leitura silenciosa, “e o leitor de um texto falava as palavras em voz alta, mesmo quando estava lendo sozinho”. (TRASK, 2008, p. 232). Em razão disso, durante o processo de formação da escrita grega, passou-se a acrescentar marcas (sinais) que fizessem o leitor lembrar (no momento da leitura) onde se deveria fazer uma pausa ou elevar o tom de voz. Esse aspecto histórico é uma das razões que fizeram com que a escrita sempre fosse vista como uma materialização de aspectos da fala sem nenhum sentido lógico-gramatical, indicando que a pontuação não passava “meramente de uma transmutação histórica de aspectos oriundos da fala que se teriam, sistematicamente, reanalisado e recodificado, dissociando-se de sua base generativa”. (MACHADO FILHO, 2004, p. 24). Fica claro que as marcas de pontuação — até como parte do processo de formação e desenvolvimento da escrita — caracterizam-se como uma tentativa de representação de aspectos da fala. Mas “esse pressuposto teórico, além de bastante questionável, corre o risco de enganar, pois deixa acreditar que o escrito compartilha parâmetros similares com o oral, quando não parâmetros do próprio oral”. (DAHLET, 2006, p.24). A partir dessa observação, é preciso considerar que o uso de sinais de pontuação tem motivações próprias e fundamentos fincados na estruturação de aspectos textuais e/ou discursivos da própria escrita. Modernamente, pode-se dizer que a existência das marcas de pontuação é de natureza sintática e exprime também aspectos melódicos e entoacionais, enxergá-las assim não interfere na sua legitimidade, embora esses aspectos não possam ser utilizados como critérios absolutos de aplicabilidade. Une unité syntaxique doit être comprise comme associant à la fois une suite de mots (aspect constructif), un message (aspect actuel), une substance et une forme intonatives (mélodie expressive e aspect intonatif) et un sens (contenu de message, résultant de l’ensemble des données précédents). (CATACH, 1996, p. 48) No entanto, o sistema de pontuação não pode ser visto apenas a partir da sintaxe da frase e das relações que existem entre termos ou palavras de uma frase, muito menos pelos efeito imprimem ao processo de leitura. A pontuação, que se aplica e a um texto, justifica-se quando este é tomado como um todo, como uma grande unidade de sentidos e intenções. As expressões (frases e orações, períodos e parágrafos) mantêm uma relação de imbricação, por isso se dizem respeito e se articulam de forma discursiva. Infelizmente, essa compreensão das marcas de pontuação — como verdadeiros signos linguísticos autônomos — não perpassa as abordagens em aulas de LP e o que se vê, de modo Nas fronteiras da linguagem ǀ 372 geral, é a apresentação desses sinais como algo de relações superficiais e essencialmente convencionais que servem apenas para atender à elaboração sintática e para orientar a leitura. O estudo e o ensino das marcas de pontuação, sobretudo, no ensino fundamental — período em que o processo de aquisição e desenvolvimento da escrita é mais intenso e significativo — precisam ser introduzidos de forma, metodologicamente, mais elaborada e relacionada com seus usos concretos. Nesse sentido, faz necessário refletir sobre as formas e os métodos de abordagem que possibilitem — respeitando-se as fases de desenvolvimento cognitivo dos estudantes — uma aprendizagem das marcas de pontuação que considere o que é pertinente na construção dos sentidos do que é escrito (dito). O que dever ser tomado como objetivo, no que diz respeito ao tratamento dado às marcas de pontuação, é que elas devem ser vistas — assim como todo signo linguístico presentes no texto — como recursos preenchidos de sentido e de intencionalidades. Os estudantes precisam desde cedo serem orientados a compreenderem que as marcas de pontuação expressam muito mais que delimitações morfossintáticas e orientações ritmomelódicas. Como usuários da escrita, os alunos devem ser apresentados à carga comunicativa inerente aos sinais de pontuação; reconhecendo que algumas, por exemplo, indicam, necessariamente, intenções discursivas, que sua presença no texto não se justifica (dentro de um raciocínio lógico-gramatical) por aspectos morfossintáticos e/ou rítmico-melódicos. Isso é o que deve ser sublinhado quando os alunos (independentemente da fase de escolaridade) estão diante de marcas de pontuação como as aspas, os parênteses ou os travessões, que apontam uma intervenção no processo de leitura e, principalmente, de compreensão daquilo que está sendo dito de outra ordem — sentidos pertencentes à esfera do discursivo. A potencialidade comunicativa dessas marcas pode ser analisada no exemplo abaixo, em que se perceberá, claramente, a mudança de postura enunciativa marcada pela intercalação entre travessões. “A metrópole que menosprezou, sujou e soterrou seus cursos d’água agora quer — e precisa — recuperá-los” (revista superinteressante, março de 2015, p. 60) No fragmento acima, pode se ter uma demonstração dos princípios de análise linguística em que se fundamentam as motivações de escrita deste trabalho, que defende, como forma de organização e de aplicabilidade das marcas de pontuação, a existência de duas categorias básicas desses sinais: as marcas de pontuação sintáticas e as marcas de pontuação discursivas. O papel linguístico destas últimas seria promover um “desengate enunciativo” III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 373 (DAHLET, 2006, p. 51), em que a expressão intercalada manifesta-se claramente ser de outra ordem discursiva em relação ao que está fora dos travessões. Uma abordagem de estudo e de ensino das marcas de pontuação, como elemento constituidor do texto e da textualidade, deve considerá-las sob a perspectiva de suas funções discursivas, que revelam aspectos importantes na construção de sentido daquilo que está escrito. Isto é, as marcas de pontuação apresentam funções multifacetadas que, diferentemente da preocupação inicial de aponta recursos da fala ou aspectos organizacionais da estrutura textual, intencionam materializar aquilo que não se verbalizar. Referências ACHARD, P. A especificidade do escrito é de ordem linguística o discursiva? In: Nina Catach (Org.). Para uma teoria da língua escrita (coleção múltiplas escritas). 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In: Nina Catach (Org.). Para uma teoria da língua escrita (coleção múltiplas escritas). São Paulo: Ática, 2006. Nas fronteiras da linguagem ǀ 374 PCNs, 1997. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf > Acesso em: 24 jan. 2015. TRASK, R. L. Dicionário de linguagem e linguística (tradução ILARI, Rodolfo). 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2008. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 375 O HUMOR INTRANQUILO DE ANDRÉ SANT’ANNA [Voltar para Sumário] Ari Denisson da Silva (UFAL/IFAL) Pode haver futuramente quem veja no ano de 2014 algo de emblemático para a história recente do Brasil. Ao menos se trata de um ano que ensejou diversas expectativas: a realização em seu solo de uma Copa do Mundo de futebol amplamente contestada — o ano anterior havia sido fértil em manifestações ferozmente contrárias à sua realização —, eleições gerais que dariam continuidade a uma era de intensificação dos ânimos ao tratar do tema1. E eis que entre os meses de março e abril deste mesmo ano o escritor André Sant’Anna lançava seu mais recente livro de contos, O Brasil é bom. Grande parte da compilação é composta, em verdade, por textos publicados anteriormente, sob encomenda, em coletâneas temáticas, com uma ou outra modificação. É o caso, por exemplo, de “Use sempre camisinha”, que já havia saído na coletânea 35 segredos para chegar a lugar nenhum: literatura de baixo-ajuda, na qual o gênero que ganhou notoriedade nas mãos de Dale Carnegie e Augusto Cury é macerado por vários escritores. Segundo o próprio Sant’Anna, apenas um dos textos constantes de O Brasil é bom não saiu sobre encomenda2. Nosso interesse em pesquisar as reflexões sobre nacionalidade e a condição nacional empreendidas em nossa literatura nos levaram a voltar os olhos para a obra de André Sant’Anna, a princípio fixando-se em seu romance O Paraíso é bem bacana, de 2007. Ao lançarmos um olhar mais panorâmico sobre o conjunto de sua obra, pudemos perceber que o tema Brasil e seus “penduricalhos” é abordado progressivamente. Ao vermos que, desde o título, esta (não tão) nova obra trazia a reflexão sobre o Brasil num plano mais destacado, resolvemos incluí-la em nossa pesquisa. Outro item que nos chamou a atenção foram os 1 Segundo Carlos Guilheme Mota e Adriana Lopez, “[n]as eleições de outubro [de 2014], esse quadro tornar-seia mais nítido, com o país rachado ao meio” (2015, p. 1055) 2 Em entrevista a André Maleronka, ele esclarece essa relação entre escrita e as encomendas: Quando eu tô com a ideia na cabeça, mas tô sem tempo, eu fico esperando uma encomenda (rindo). Aí eu pensei nas histórias, vou fazendo as histórias e fechei nessas cinco. Acabei a história da revolução [sic] no finalzinho, assim, pra ter mais uma. Foi a única que foi feita sem ser por uma encomenda (2014). Nas fronteiras da linguagem ǀ 376 recursos humorísticos empreendidos nessa reflexão, e por isso resolvemos trazer algo deles à tona. Segundo Jan Bremmer e Herman Roodenburg, [d]e Freud e Bergson a Mary Douglas, psicólogos, filósofos, sociólogos e antropólogos têm se empenhado em encontrar uma teoria abrangente para o humor e o riso. Uma falha comum a todas estas tentativas é o pressuposto tácito de que existe algo como uma ontologia do humor, que humor e riso são transculturais e anistóricos. Contudo, o riso é um fenômeno tão determinado pela cultura quanto o humor” (2000, p. 15-16, grifo dos autores). Parece-nos ponto pacífico, portanto, que elaborar “universais do humor e do riso” é uma empreitada com grandes probabilidades de fracassar. No entanto, alguns conceitos clássicos nos podem servir para esta análise: Henri Bergson, em O riso, reconhece o caráter social da comicidade — “[s]e nos sentíssemos isolados seríamos privados do cómico” (BERGSON, 1993, p. 19) — mas generaliza como elemento comum às coisas risíveis certo automatismo: “[o] que há de risível [...] é uma certa rigidez do mecânico onde deveria haver a maleabilidade atenta e a viva flexibilidade da pessoa humana” (BERGSON, 1993, p. 22, grifo do autor). Uma estratégia lúdica visível em praticamente toda a obra de André Sant’Anna é a repetição como estilização (às vezes) exagerada de cacoetes linguístico-retórico-ideológicos da fala informal de diversos grupos sociais brasileiros (ou estrangeiros, quando o Brasil é objeto de suas reflexões). De fato, a repetição é observada como fenômeno, se não exclusivo dos usos coloquiais do português brasileiro, pelo menos são mais frequentes: As repetições não são exclusivas de linguagem oral, mas sua especificidade está no seu grau de frequência e tipicidade. [...] [Observam-se também] torneios pleonásticos típicos da língua falada, que podemos classificar como repetições de conteúdo com forma diversa. Na língua falada, por exemplo, são normais estruturas e informações circulares, ao passo que na língua escrita os temas e remas se sucedem numa forma progressiva” (URBANO, 2000, p. 120-121). E a repetição como elemento risível não escapa à observação de Bergson: Aproximemo-nos ainda mais da imagem da mola que se encolhe, se distende e torna a encolher. Tiremos dela o essencial. Vamos obter um dos processos mais usuais da comédia clássica: a repetição” (BERGSON, 1993, p. 60, grifo do autor). Talvez o traço mais destacado da repetição estilizada na obra de André Sant’Anna seja a recusa aos termos ou expressões anafóricas que nos servem a um ideal de coesão formal. Com isso, frequentemente termos que já foram mencionados anteriormente são III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 377 “remencionados” na íntegra, sem serem referidos por pronomes ou outras expressões que apontariam para o termo supracitado3. Este recurso estilístico é observável desde sua primeira obra publicada em livro, Amor: Aquela rua escura e aquelas pessoas cruzando. Uma rodoviária cheia daquelas pessoas e todas aquelas pessoas. Uma rodoviária lá na Europa e todos aqueles europeus com seus problemas europeus naqueles filmes europeus. Franceses. [...] Aquele cantor cantando. (SANT’ANNA, 2001, p. 24). Em Sexo, sua segunda obra, a repetição como indicação de mecanicidade aparecerá de forma mais evidente, ao descrever as ações repetitivas das personagens (sobretudo os “Jovens Executivos”), que parecem ter saído de uma “linha de montagem”: O Jovem Executivo de Gravata Vinho Com Listras Diagonais Alaranjadas e sua Noiva Loura, Bronzeada Pelo Sol, entraram na casa dos pais da Noiva Loura, Bronzeada Pelo Sol, Do Jovem Executivo de Gravata Vinho Com Listras Diagonais Alaranjadas. O Jovem Executivo de Gravata Azul Com Detalhes Vermelhos e sua Noiva Loura, Bronzeada Pelo Sol, entraram na casa dos pais da Noiva Loura, Bronzeada Pelo Sol, Do Jovem Executivo de Gravata Azul Com Detalhes Vermelhos (SANT’ANNA, 2007b, p. 243). Na edição portuguesa de Amor — uma vez que a primeira edição, de curtíssima tiragem, logo se esgotou — e em Inverdades, Sant’Anna acrescentou a sua obra narrativas mais curtas, até surgir o contexto apropriado para a escrita de seu primeiro — e até então único — romance: O Paraíso é bem bacana, na verdade, foi o último projeto muito planejado, [no estilo] vou escrever um romance. Coincidiu que eu fiquei doente: fiquei seis meses internado no hospital por causa de pancreatite aguda. Aí saí do hospital e ainda tive um ano de recuperação. Tive dificuldade, eu não conseguia atravessar a rua sozinho, tive encefalite. Então, eu tinha a coisa mais sagrada para um escritor, que é tempo. Ficava em casa, tinha muito tempo para escrever: consegui escrever um romance de 500 páginas. De lá para cá, você tem que ir se adequando. [...] [F]oi uma encomenda da Companhia das Letras: eles estavam fazendo uma coleção que acabou não vingando, mas era uma coleção de livros safados; assim, livros que tinham a ver com sexo, alguma coisa. Chegou a sair o livro do Rubem Fonseca, saiu o do Henry Miller (SANT’ANNA, 2014). Em O Paraíso é bem bacana, a relação entre humor e reflexão sobre o país aparece na trajetória da personagem principal, o adolescente Manoel dos Anjos (Mané), jogador de futebol de Ubatuba que é transferido do time local para o Santos e de lá para o Hertha 3 Como, por exemplo, a expressão “termo supracitado” que acabamos de usar agora. Nas fronteiras da linguagem ǀ 378 Berliner Sport-Club, sediado na capital alemã. No clube da Vila Belmiro, Mané, por ter dezessete anos, ser negro, subnutrido, de origem humilde e goleador, tem sua trajetória inevitavelmente comparada à do maior craque já revelado naquela cidade: Edson Arantes do Nascimento, o Pelé. No entanto, o jovem acaba vivenciando vários episódios constrangedores e gerando estranhamento nos colegas e nas demais pessoas ao seu redor devido ao seu comportamento excêntrico e a sua escandalosa idiotice, pressagiada por seu apelido: como substantivo comum, a palavra “mané” significa tolo, idiota: “Tá vendo? Fala igual retardado.” “E aí, Mané? Você é igual o Pelé?” “...” “É ou não é? Os cara tão perguntando na televisão.” “É ou não é? Fala, Mané!” “...” “Você é igual que jogador?” “É o Pelé, é?” “Renato Gaúcho.” “?” “?” “?” “?” “?” “?” Rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá... (SANT’ANNA, 2007, p. 235). A condição física, o talento futebolístico e o fato de jogar no Santos fazem com que se despeje em Mané a expectativa de ser o novo Pelé. No entanto, sua estultícia, sua paixão pelo Fluminense Football Club e o desejo de ser como o Renato Gaúcho, que é branco, é vista com uma cruel gargalhada de desprezo pelos seus colegas. O riso aqui (a cuja perversidade o leitor se vê inevitavelmente levado a aderir) se motiva pela falta de consciência de Mané a respeito de como o mundo à sua volta funciona. Sua deficiência intelectual e social o leva a agir “mecanicamente” e a interpretar o mundo em função de sua estupidez. Essa estupidez, aliada à tensão entre o desejo de transar e a timidez debilitante, o leva a converter-se ao islamismo, na esperança de, uma ver morto em nome da fé maometana, ir direto ao Paraíso e desfrutar da eterna companhia de setenta e duas esposas virgens. O choque cultural causado por essa noção de Paraíso além-tumba tão estranha a olhos ocidentais, por sua não negação da carnalidade no pós-vida, gera também um efeito humorístico, ainda que pautado numa noção hierárquica Ocidente/Oriente, cultura/natureza. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 379 Claro que para construir esse Paraíso “bem bacana”, Mané coleta e mistura as fontes mais inusitadas: revistas masculinas, filmes pornográficos, traduções equivocadas do Alcorão. E todo esse repertório o faz cometer um ato terrorista malsucedido: no hospital, desacordado, com o rosto desfigurado, sem os membros e sem o pênis, Mané imagina-se um “marte do Alá” priápico e feliz da vida, com os rios de vinho que não embebeda, a brisa que refresca o mártir e as setenta e duas consortes. Muecke observa que as áreas de interesse que mais prontamente geram ironia são, pela mesma razão, as áreas em que se investe mais capital emocional: religião, amor, moralidade, política e história. A razão é, naturalmente, que tais áreas se caracterizam por elementos inerentemente contraditórios: fé e fato, carne e espírito, emoção e razão, eu e o outro, dever-ser e ser, teoria e prática, liberdade e necessidade (1995, p. 76). Daí o potencial humorístico e, ao mesmo tempo, a delicadeza de mexer num vespeiro, uma vez que tais itens mexem bastante com as suscetibilidades das pessoas que vivenciam essas instâncias. Quando uma pessoa se converte ao Islã, ela pode adotar um nome muçulmano, de preferência se o nome antigo remete a uma palavra negativa ou à adoração a algum outro Deus ou outro ser que não Alá. Mané é, então, “rebatizado” por seu companheiro do time de juniores do Hertha, o alemão Hassan. Depois de discussão em mímicas e palavras mutuamente não compreendidas em português e alemão, Mané recebeu simplesmente o nome do Profeta, chamando-se, a partir de então, Muhammad Mané. O desleixo de deixar o nome do Mensageiro de Alá próximo ao termo que pode significar tolo traz de igual modo um componente lúdico, não apenas pelas razões que Muecke menciona e que estão citadas acima, mas também porque o desleixo seria uma manifestação da mecanicidade que Bergson aponta como critério para o cômico. No plano da linguagem, a hiperanáfora que torna o texto de André Sant’Anna facilmente identificável faz-se presente sobretudo nas falas de dois dos vários narradores que dividem o espaço do romance para contar a história desventurosa de Muhammad Mané: um, não identificado com nenhuma das personagens principais da história (o qual, por sinal, é quem abre o romance): O Mané podia ter dado uma porrada bem no meio da cara daquele gordinho filhoda-puta. Mas não. O Mané ficou rodando em volta do gordinho filho-da-puta, olhando para os lados, esperando que algum filho-da-puta logo apartasse a briga. Nas fronteiras da linguagem ǀ 380 Mas não. Eles eram todos uns filhos-da-puta e queriam ver um filho-da-puta batendo no outro. O Mané ainda não sabia que eram todos uns filhos-da-puta. O Mané não tinha motivo para bater no gordinho filho-da-puta. O Mané não sabia que o gordinho filho-da-puta tinha motivo para bater nele, no Mané. (SANT’ANNA, 2007a, p. 7) O outro é o próprio Mané, que compartilha conosco seu enlevo ao vivenciar as delícias (pra ele) eternais: É setenta e duas. E elas vêm vindo, tudo limpinhas, muito bonitas, e elas têm tanto amor ni mim e gosta tanto de mim e me ama tanto e agora é tão bom que eu tô sentindo tudo tão bem, tudo tão cheirosas, e elas vai ficando tudo pelada, bem devagarinho, bem assim que nem filme que passa na televisão sábado de noite, com aqueles biquíni tudo meio cor-de-rosa e com aqueles negócio peludo e cor-de-rosa e vão tirando as parte de cima e fica com os peito, uns peitão todo cor-de-rosa e cheio assim que parece que vai estourar e tem aqueles véu que nem naquela novela que tinha os Marrocos que é de onde vem o Abud. [...]Agora eu sei que ficou valendo a pena de verdade, que é setenta e duas mesmo e que elas faz tudo que eu gosto pra mim e vão ficar fazendo sempre, tudo o que eu gosto de fazer com as mulher. E elas depois vão falar coisas boa e engraçadas pra gente ficar rindo, tudo amigo e fazendo essas coisa de sex (SANT’ANNA, 2007a, p. 9, 11) A fala desarticulada, exageradamente repetitiva e repleta de barbarismos gera um efeito humorístico controverso, uma vez que também pode facilmente incorrer no dualismo natureza/cultura. Luciene Azevedo elabora a questão da seguinte maneira: A voz narrativa assume também a função de um ventríloquo que se apropria das falas do senso comum e expõe os preconceitos latentes. Os riscos são claros: a negatividade da apropriação crítica pode resultar apenas em rebeldia e desprezo, e a mímesis desconstrutiva pode descambar para a cumplicidade, mas é característico da performance o equilíbrio precário entre a crítica (quase moralista) e a reiteração de muitos preconceitos e estereótipos, entrelugar que é condição de possibilidade de sua existência. (AZEVEDO, 2007, p. 86). Ela ainda chama a atenção, ao se deter sobre O Paraíso é bem bacana, para os “resquícios naturalistas e pendores moralistas que atravessam a narrativa de André Sant’Anna (e não apenas nesse livro) (AZEVEDO, 2007, p. 88). No entanto, praticamente nenhum dos vários narradores de O Paraíso é bem bacana usa a norma padrão do português brasileiro. Ela aparece em itálico, como uma forma de indicar que naquele momento, aquela personagem está falando em alemão (país onde se passa grande parte da trama). Por fim, outro elemento que traz certa comicidade é a subversão dos diversos conceitos de senso comum elaborados sobre o Brasil: em O Paraíso é bem bacana, chamam a atenção os elaborados pelos não brasileiros a respeito do Brasil, como a enfermeira Ute: que III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 381 tem que cuidar de Mané mesmo odiando muçulmanos terroristas como ele: “Alguns exemplos: a enfermeira Ute, que trabalha no quarto do hospital onde Mané está internado: “Vocês são tão divertidos. Brasilien, samba, lambada, schöne Männer, Fussball!” (SANT’ANNA, 2007a, p. 13, grifo do autor); Mechthild, a jovem alemã de dreadlocks e alta desinibição sexual, que no Paraíso de Muhammad Mané é conhecida como Crêidi: Você já fez amor com alemão? Alemão não sabe fazer amor. Agora eu só faço amor com africanos e sul-americanos do Brasil. Negros. Existe essa história do tamanho do pênis dos negros, mas não é isso que importa. É o modo de ser deles, o espírito tropical, o sorriso. [...] O nome dele é Mané, Muhammad Mané. Eu nunca tinha visto brasileiro turco antes, nem árabe, nem terrorista (SANT’ANNA, 2007a, p. 64, grifo do autor). Em O Brasil é bom, são os brasileiros, quase sempre de classe média, que passam a refletir sobre si mesmos e sobre seu ideal de país. Os discursos das personagens costumam basear-se num ideal questionável de superioridade brasílica: Eu sou bom. Eu sou bom porque eu sou brasileiro. Os brasileiros não desistem nunca. Os brasileiros sabem viver com alegria, mesmo tendo que enfrentar extremas dificuldades. Os brasileiros são bonitos. A mulher brasileira é a melhor mulher que existe. A mulher brasileira é a melhor mulher que existe porque a mulher brasileira faz sexo muito bem e tem bumbum. (SANT’ANNA, 2014, p. 38). Ou basear-se num discurso de elogio da violência de Estado como solução para determinados problemas do país: A culpa é toda do direitos humanos, que vem aqui se meter no Brasil e não cuida dos problemas deles mesmo, desses países que se acha. Porque lá todo mundo faz o que quer, faz terrorismo, fuma drogas, anda pelado com os seios de fora e até faz sexo com homens do mesmo sexo (SANT’ANNA, 2014, p. 21) Ora, não tem como homem fazer sexo com homem de sexo diferente. Esse falso lapsus linguae é um recurso através do qual André Sant’Anna desqualificará os narradores que empreendem esses discursos, como maneira de refletir sobre o “brasileiro médio”, ideologicamente conservador, cuja opinião passou a se fazer ouvir mais nos últimos anos. Ao fazê-los falar platitudes, atos falhos, barbarismos ou anacronismos, ele demonstra que essas personagens sequer refletem a respeito do que falam. No entanto, é um tipo de ironia que talvez não atinja aqueles que na vida real comunguem dessas crenças, uma vez que não se verão parecidos com esse narrador. A ironia aqui é uma via de mão única, apontando para um sentido que ocupa, na ficção sant’anniana, um posto axiológico hierarquicamente superior: Nas fronteiras da linguagem ǀ 382 “[e]mbora o sentido pretendido não seja diretamente expresso, uma verdade é afirmada, há uma mensagem a compreender, o que pode significar uma ideologia a exaltar ou defender” (DUARTE, 2006, p. 31). O ironista aqui arrisca a credibilidade em nome da certeza de que algo vai errado e, por isso, precisa ser consertado. Ou pelo menos é preciso reclamar. Referências AZEVEDO, Luciene. Representação e performance na literatura contemporânea. Aletria: Revista de estudos de Literatura da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 16, jul./dez. 2007, p. 80-93. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publica coes_pgs/Aletria%2016/06-Luciene-Azevedo.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2014. BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre o significado do cómico. 2. ed. Tradução de Guilherme de Castilho. Lisboa: Guimarães, 1993. BREMMER, Jan; ROODENBURG, Herman. Introdução: humor e história. In: ______. Uma história cultural do humor. Tradução de Cynthia Azevedo e Paulo Soares. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 13-25. DUARTE, Lélia Parreira. Ironia e humor na literatura. Belo Horizonte: PUC Minas; São Paulo: Alameda, 2006. MOTA, Carlos Guilherme; LOPEZ, Adriana. História do Brasil: uma interpretação. 4. ed. São Paulo: 34, 2015. MUECKE, D. C. Ironia e o irônico. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1995. SANT’ANNA, André. Amor e outras histórias. Lisboa: Cotovia, 2001. ______. André Sant’Anna. Vice, São Paulo, 2 dez. 2014. Entrevista concedida a André Maleronka. Disponível em: <http://www.vice.com/pt_br/read/andre-santanna-linguagempreconceito>. Acesso em: 3 mai. 2015. ______. O Brasil é bom. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. ______. O Paraíso é bem bacana. São Paulo: Companhia das Letras, 2007a. ______, André. Sexo e amizade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007b. URBANO, Hudinilson. Oralidade na literatura: o caso Rubem Fonseca. São Paulo: Cortez, 2000. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 383 A CASA DOS BUDAS DITOSOS: OS LIMITES DA IRREVERÊNCIA [Voltar para Sumário] Arturo Gouveia (UFPB) 1. O perfil da personagem No romance A casa dos budas ditosos, de João Ubaldo Ribeiro, o enredo é a transcrição de um manuscrito deixado na casa do autor, logo que se dissemina a notícia de que ele foi incumbido por uma editora a escrever um livro sobre a luxúria (Ribeiro, 1999). A distinção entre a autoria do texto, pertencente a uma mulher que não se identifica nitidamente (apenas as iniciais CLB) ou ao autor empírico, cria uma ambiguidade cuja resolução acaba pendendo para a primeira alternativa. No caso, se o romance é rigorosamente a transcrição do material, pode-se afirmar que não há intervenção alguma do autor, nem este cria um narrador próprio, cedendo espaço absoluto para a voz feminina depoente. A menos que se lance a hipótese de a voz feminina ser, ela mesma, uma criação do autor, a responsabilidade pelos conteúdos e pela forma da composição é dessa primeira voz frente à qual o autor não estabelece nenhuma mediação artística. Nesse sentido literal, o romance nem sequer seria uma expressão artística, porque a ficcionalidade estaria afastada de um material que não passaria de documento. Mas sabe-se que essa aparência de pura empiria, à margem de pretensões estéticas, é uma das estratégias usadas por narradores ou autores que querem delegar a responsabilidade dos escritos a outrem, quando essa transferência já é uma forma de demonstrar a parcialidade da intervenção de uma segunda voz que, aparentemente, se deixa camuflar por uma primeira voz, que passa a dominar o foco narrativo. Nessa medida, a identificação dos fatos passa necessariamente pela identificação da voz narrativa, tal como exposta no material. E um fato crucial no texto é que a narradorapersonagem não tem uma meta definida no presente, a não ser livrar-se em definitivo do moralismo que tanto combatera no passado: “Ainda me restam alguns penduricalhos desse legado imbecilóide, de que tenho de me livrar antes de morrer”. (Ribeiro, 1999: 15) Nas fronteiras da linguagem ǀ 384 Quanto ao seu passado, há algo semelhante: ela sempre se empenha em cometer transgressões morais, com comportamentos sexuais que vão desde mínimas ousadias de menina até os gestos mais esdrúxulos e radicalmente reprováveis. Como exemplo do que seria sua aspiração máxima, ela comenta sobre o que lera sobre a moral da Roma antiga, para criar um contraste com o moralismo atual: “Em Roma antiga, houve um tempo em que as noivas acariciavam a glande de Príapo, ou se sentavam nela. Pelo que eu li, a glande mais usada, a glande pública, por assim dizer, devia ser uma verdadeira poltrona”. (Ribeiro, 1999: 14) Mas tudo o que a personagem diz romper e transgredir ocorre em ambiente privado. Ela não se envolve em nenhuma questão social, não tem nenhum projeto, nenhuma causa, nada que a ligue às instituições em relação direta e objetiva. Ela se diz empenhada em lutas contra toda forma de hipocrisia social, principalmente as formas de retração do uso livre do corpo, mas nunca transforma esse ideal em ação prática para além de quatro paredes. Em função disso, confessa a satisfação de praticar o incorreto em espaço fechado: “(...) a hipocrisia da época era mais agressiva, dava muito gosto a quem desfiava seus mandamentos, acaba resultando num grande prazer, a transgressão era mais satisfatória, melhor para o ego”. (Ribeiro, 1999: 33) Apesar de seus propósitos de ruptura, ela sempre atua na clandestinidade, a exemplo do que faz com o tio Afonso, em fazenda distanciada e quando as pessoas não estão presentes. Com essas ações escondidas, pois, segregadas de um embate visível, sua postura reproduz o próprio sistema condenado e mostra-se infrutífera para a conquista social de valores nãohipócritas. Quando o tempo de sua experiência passa pelo regime militar, por exemplo, as menções ao golpe e à ditadura são muito rápidas: ela não tem interesse em nada além de suas aspirações individualistas, narcisistas e, como assume em alguns momentos, sádicas: “Considero meu sadismo psicológico muito mais interessante, inclusive porque é seletivo, é um prato feito para analistas. Exemplo desse meu noivo, muitos exemplos, exemplo do tio Afonso, o pior de todos. Tenho certeza de que contribuí substancialmente para o enfarte dele. Ele não valia de nada, de qualquer jeito, comia a mulher do irmão, minha mãe (...) nunca fui a epítome da hipocrisia. Não, desculpa esfarrapada, não convence. Estou aberta à crítica, eu mesma já pensei muito nisso, de certa forma vivo pensando. Não acho nada demais o sujeito comer a mulher do irmão, mas não concordo em que o irmão de meu pai tivesse comido a mulher do irmão, meu pai. Neuroses. Por mais que me desgoste, sou obrigada a admitir. Traumas da infância”. (Ribeiro, 1999: 82-83) III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 385 Ela evita qualquer compromisso que venha a tomar-lhe um tempo individual quase todo dedicado ao sexo. Inspira-se em exemplos dos mais esdrúxulos, subversivos e nãoaceitos socialmente, como a experiência da amiga Norma Lúcia, que busca todo tipo de prazer, desde assistir à devoração de um pequeno animal por uma cobra até experiências com animais de porte superior: “Norma Lúcia não se aguentava de excitação diante desse espetáculo e se masturbava horas seguidas. Muitíssimo mais tarada do que eu, incomparavelmente, chegava a acariciar longamente os paus dos cavalos dela, com os olhos fechados e quase em transe. E adorava ver cavalos trepando também”. (Ribeiro, 1999: 50) Tomando Norma Lúcia como modelo ideal de vida, a personagem, contudo, sempre age na relação fechada, individual ou grupal, sem propagação para além desses limites. Seu discurso de transgressão e subversão, assim, só é coerente em seu âmbito particular – uma negação prática de todo o seu ideal de mulher amoral. 2. O grau de problematicidade da protagonista Conforme a visão de Lukács, o romance é um gênero moderno a cuja composição é inerente a presença de duas naturezas incompatíveis, impassíveis de convergência, por causa dos interesses que movem cada uma: a impossibilidade de reconciliação entre as partes é um distintivo da representação simbólica do conflito histórico entre as aspirações individuais e a irredutibilidade do mundo objetivo (Lukács, 2000). A subjetividade, sobretudo em suas expressões mais alternativas às convenções, é rigorosamente negada e combatida por um mundo objetivo absolutamente insensível a transformações. A primeira natureza, situada no indivíduo, é abordada por Lukács como o locus de valores autênticos que questionam o estabelecido e procuram superar os limites existentes no mundo moderno, no qual a reificação tende a triunfar sobre todas as coisas e os sentimentos, submetendo a fracasso qualquer tentativa de alteridade. A segunda natureza é esse espaço em que se insere, de forma problemática e inquietante, essa primeira natureza não reconhecida e hostilizada pelo conjunto das instituições petrificadas no mundo objetivo. A relação de divergência e mútua incompreensão entre as duas naturezas potencializa toda a ação como componente substancial do gênero. Os desejos subjetivos do herói, que funcionam como uma antítese em choque com o sistema vivido, têm um movimento pendular que vai da manutenção dessa incompatibilidade, em luta e resistência permanentes, até a integração parcial da subjetividade Nas fronteiras da linguagem ǀ 386 às instituições objetivas, sem renúncia à autenticidade dos valores. Lukács, embasado em pressupostos hegelianos, dá ênfase ao que a filosofia chama de primado da subjetividade, elegendo como categoria central a interioridade do personagem. Mas a segunda natureza é essencial à avaliação da permanência dos valores autênticos na prática do personagem. A segunda natureza renega-se a absorver qualquer valor proveniente do personagem, uma vez que a reificação da objetividade é imune a reflexões capazes de averiguar possibilidades de mudança, inviabilizando diálogos progressistas. A primeira natureza, mesmo nessa absorção necessária ao mínimo de equilíbrio social, não se sujeita a experiências que venham a distorcer e deformar sua concepção de mundo. Mas já é possível identificar, em muitos romances do século vinte (ou talvez de antes, como As ilusões perdidas, de Balzac), uma perda significativa, em alguns casos a extinção, desses valores autênticos dos personagens, apesar de eles continuarem sendo problemáticos. Lukács demarca uma linha de ação em que o personagem se apresenta com tais valores e os mantém, ainda que, em um certo grau, faça concessões ao mundo externo, como é típico do personagem da maturidade viril. Em romances do século vinte, é possível constatar que certos personagens, desde sua origem, não têm sequer esses valores. Eles têm valores, mas não autênticos, o que faz deles uma reprodução passiva do próprio sistema que os oprime. Em Cidade de Deus, de Paulo Lins, por exemplo, os personagens da boca de fumo e da linha de montagem da droga, os bichos soltos e seus colaboradores, não demonstram nenhuma oposição autêntica ao sistema capitalista, muito menos ideal de enfrentamento e superação – eles são reificados desde sua origem, desde sua “carreira profissional”, de aviõezinhos a senhores da droga. Não se trata de perder valores autênticos, como é a preocupação de Lukács, mas de nunca os possuir ou procurar aspirar a eles. Nesses casos extremos, sequer se pode falar de perda – perda esta que ainda poderia instigar o herói a uma busca por sua reabilitação ou pela recuperação de seus princípios. Em casos assim, a segunda natureza é tão enraizada nos personagens, que não se pode delinear nenhum gesto que irrompa originalmente deles. É como se a primeira natureza, anulada pela segunda, não mais existisse como força composicional do gênero, em termos de uma dialética capaz de dar prosseguimento a uma ação potencialmente transformadora. Em termos adornianos, no que respeita à falência do ideal do romance como epopeia burguesa, o triunfo da epopeia negativa reside nessas condições de inércia da primeira natureza, reduzindo o personagem a pensamentos isolados, enfermidades (loucura, por exemplo), ou simplesmente dominando-o e utilizando-o como uma expansão subjetiva do sistema. (Adorno, 2003) III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 387 No caso do romance de João Ubaldo Ribeiro, a dificuldade de classificação da personagem está na forma como ela se comporta frente ao mundo externo. A personagem parece não enfrentar uma “segunda natureza”. Na tradição romanesca, ou a segunda natureza é um forte empecilho externo, objetivo e intransponível (Dom Quixote, de Cervantes), o que se traduz em excesso de ações, ou está interiorizada como repressão e angústia pelo personagem, o que se traduz no excesso de monólogos (A educação sentimental, de Flaubert). O herói é problemático quando sua natureza (a primeira) revela uma subjetividade prejudicada por um mundo externo desinteressado na assimilação de valores autênticos. Mas esse conflito objetifica-se em ação nítida, de efeito negativo, ou mesmo em uma forma de pensamento que tem algum desdobramento prático, a exemplo da visibilidade da loucura ou da retração do personagem. No romance de João Ubaldo Ribeiro, a personagem não tem a interioridade interrompida por nenhuma intervenção externa. Mesmo a morte do seu homem mais sexualmente amado e gozado, o irmão Rodolfo, não a retrai, levando-a sempre em busca de novas experiências de prazer, em escala crescente e desafios megalomaníacos aos outros e a si mesma. Ela se demonstra resolvida, com a mente “dogmatizada” pela defesa de uma sexualidade absolutamente livre, e lhe restaria apenas o mundo externo para enfrentamento. Mas esse enfrentamento não ocorre. O conflito, na concepção hegeliana que fundamenta a argumentação de Lukács, é necessário para que haja uma dinâmica na ação. Mas é justamente essa dinâmica que falta à composição do enredo. No caso, o depoimento da narradora parece suprimir esse componente imprescindível à forma romance, subordinando-o a comentários críticos sobre as formas sociais de dissimulação de ações desejadas por todos e hipocritamente proibidas: “Em relação a irmão, posso dar meu testemunho pessoal, eu comi muito Rodolfo, meu irmão mais velho, até ele morrer a gente se comia, sempre achamos isso muito natural. Evidente que é natural, a maior parte das pessoas passa pelo menos uma fase de tesão no irmão ou na irmã, só que a reprime em recalques medonhos. Nós não. Norma Lúcia também não. Muita gente também não”. (Ribeiro, 1999: 53) O impacto nulo de suas ações, do ponto de vista social, descaracteriza a problematicidade da personagem no que concerne a uma ação exemplar (positiva ou negativa) ou à irradiação de comportamentos não-reificados. Será que a problematicidade da personagem estaria transferida para a relação depoimento/recepção, já na velhice? Sua busca de exteriorização e embate social estaria, afinal, na relação entre a publicação do relato e os efeitos morais derivados daí? Ela, como mulher, desenvolve uma habilidade de manipular os homens, não se sujeitando, pois, a uma posição de personagem hostilizada ou com desejos Nas fronteiras da linguagem ǀ 388 não realizados. Mas seria a publicação do relato, já na velhice, a evidenciação final de sua conduta, residindo aí o caráter conflitivo de sua ação? 3. Um suposto Bildungsroman do sexo A personagem, já em idade avançada, mostra seu passado inteiramente movido por uma busca incessante de prazer sexual, para além das regras familiares, porém sempre de forma velada. É o que ocorre desde a pré-adolescência, com o irmão Rodolfo, passando depois pela intimidade com o negro Domingos, o tio Afonso, os dois noivos, entre outros. Ela relata inúmeros casos com namorados, professores e outros amantes. Tomando a amiga Norma Lúcia como paradigma inquestionável para suas ações, considera a si mesma e a amiga como pertencentes a famílias de classe média, com uma certa tendência para a vida de “porra-louca”, o que parece justificar, do ponto de vista moral, suas opções obsessivas. Mas, apesar de sua procura por experiências radicais de prazer (posições não convencionais, sexo coletivo, sexo animalesco, incesto, o gozo “por todos os buracos” etc.), a narradora se mantém como personagem rasa – uma situação paradoxal frente ao que seria uma aprendizagem ou uma formação em termos de domínio sexual. A isso corresponde, estruturalmente, a predominância de sumários narrativos, em detrimento de focalizações cênicas diretas. Não há nenhuma peripécia significativa na ação/rememoração da personagem. Há um conjunto de experiências que tendem a delinear graus mais elevados de ousadia no uso do corpo, mas nada que venha à tona como provocação e exemplo negativo a contrariar a moral dominante, no que respeita a repercussões pragmáticas das atitudes. É preciso desmistificar as pretensões de originalidade, autenticidade e ousadia da luxúria da personagem, na medida em que tudo morre onde nasce, sem projeções efetivamente mais arriscadas, sem risco de ameaças e reações violentas por parte de conservadores e retrógrados. 4. Algumas reflexões metalinguísticas O romance apresenta uma divisão entre dois espaços: de um lado, os relatos de rememoração, quase sem nenhuma cena direta; de outro, uma certa reflexão metalinguística, que convém aqui comentar. A questão da autoria impõe ao leitor uma interpretação a respeito da autenticidade e, ao mesmo tempo, da camuflação da voz depoente, o que leva a uma suposição de dupla autoria. A confusão entre o depoimento do autor, no prefácio, a autora dos manuscritos, III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 389 ambos situados no mundo real, e a ficcionalidade do fato anunciado pelo autor, gera essa incompletude que não se resolve ao longo da leitura. No caso, o autor permanece no plano empírico, enquanto a autora já é uma categoria inerente à criação literária. Este entrecruzamento de situações é elaborado de forma consciente, não uma acidentalidade, pois compromete toda a lógica interna da composição do romance. Outras tendências metalinguísticas da obra revelam-se nos comentários que a personagem faz de sua carreira acadêmica, geralmente depreciando o mundo intelectual como chato, redundante e velado sob aparência de grandeza. Segundo ela, toda a aparente complexidade do discurso acadêmico, sobretudo nas ciências humanas, é um hermetismo calculado para esconder incompetências. Com tais reservas céticas, ela deprecia, em ataques rasos, ressentidos e espalhafatosos, pensadores como Lacan e obras radicais da modernidade. As reflexões dela sobre a ininteligibilidade de Lacan e da intelectualidade francesa, por exemplo, são extensivas à literatura do século vinte. Constituem uma poética contra as técnicas herméticas de narrativa, como o fluxo da consciência. A adoção de uma linguagem acessível corresponde a essa tomada de posição contra as modalidades narrativas mais consagradas e inovadoras do século vinte, marcadas propositalmente pela secundarização do enredo. Tal tendência é muito presente na década de setenta, no romance brasileiro, como Zero, de Loyola Brandão, Avalovara, de Osman Lins, Fluxo-floema, de Hilda Hilst, e, do próprio João Ubaldo Ribeiro, Sargento Getúlio. O propósito da narradora é o oposto, a começar pela opção deliberada por pornografia e pela condenação aos eufemismos linguísticos que sublimam ou distorcem expressões populares relativas a intimidades. Há momentos de fluxo da consciência da narradora, mas muito simplificados, sem intenção de sintagmas sincopados e fragmentação que venham a afetar a apreensão imediata do relato. Em meio à predominância quase absoluta da rememoração das aventuras sexuais, há exceções muito diluídas. Exceções que, conforme nos ensina Auerbach, devem apresentar algum significado na leitura inversa ao exame da dominante do texto (Auerbach, 1987). Tratase de momentos da adolescência, da vida acadêmica em Los Angeles, do golpe militar de 64 – tudo diminuído, como se não tivesse relevância alguma face às rememorações das experiências sexuais. Percebe-se, nessa extrema desproporção de temas, a revogação da vida comum do dia-a-dia, como se esta não passasse de uma vida vegetativa, indigna de figurar num depoimento marcante e provocador. A leitura seletiva do passado restringe-se exclusivamente ao que parece apelativo e distintivo de uma personalidade sádica e luxuriosa, como se experiências não-sexuais não fizessem parte da existência. Trata-se, para usar outro conceito de Lukács, da essencialização da contingência, porém sem efeitos satíricos (Lukács, Nas fronteiras da linguagem ǀ 390 2009). A personagem, em seu relato estritamente limitado a experiências íntimas extravagantes, leva muito a sério, como propósito único de vida, essa conversão da exceção em regra. O capítulo em que ela descreve suas práticas com o irmão Rodolfo é bem representativo da enorme desigualdade entre lembranças sexuais e lembranças de coisas simples: o que não é sexual reduz-se a umas poucas linhas. Há outras declarações da narradora que são extensivas à literatura. A personagem não parece ter nenhuma enfermidade psíquica, mas se autodenomina de “sádica seletiva”, sem o menor constrangimento. Qual a relação entre a felicidade alcançada pela personagem e a felicidade prevista no misticismo budista? A investigação do sentido irônico dessa relação também é demonstrativa do grau de consciência do narrador no que respeita à elaboração e ao controle do que se elenca para a ficcionalidade. Em outra perspectiva de trabalho, seria preciso pesquisar sobre o Nirvana, no sentido budista, e averiguar o significado disso retraduzido no título do depoimento (do sonho proléptico da personagem aos excessos de prática sexual que, ao contrário do budismo, elegem a vida carnal como fonte suprema de prazer e satisfação). Isso talvez possibilitasse uma melhor compreensão do real das inversões do romance. O sentido da realização alcançada no budismo prevê uma vida de absoluta diluição da individualidade e do egoísmo em um “átomo primitivo” de onde tudo proveio. No caso, a descaracterização absoluta da matéria é indispensável ao alcance da felicidade, não mais atribulada pelo sofrimento resultante de desejos inquietantes. A casa dos budas ditosos tem um adjetivo relativo à felicidade, mas desde o início os budas são descritos, em sua presença onírica, como seres que se satisfazem sexualmente. Assim, a presença do corpo não apenas faz uma leitura distorcida e avessa da placidez budista, como denuncia a mais recôndita instância psíquica da personagem – o inconsciente – inteiramente dominada pela avidez sexual. Essa obsessão pansexual estabelece e defende uma espécie de Nirvana do baixocorporal, com o intuito de liberar tudo o que foi reprimido e recalcado pela moral dominante ao longo da história e justificar a existência unicamente por essa vida. Mas, como já apontado, esse intuito radical não se expande socialmente, mantendo-se sempre às escondidas, o que ainda revela, ironicamente, a presença de mecanismos repressivos em comportamentos aparentemente libertos. Nessa medida, é a segunda natureza que isola a personagem e a pressiona a hábitos retraídos, ainda que ela se sinta realizada nesse estado privado de exceção. O enfoque dessa contradição é uma das marcas de qualidade do romance. Referências III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 391 ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003. AUERBACH, Erich. Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1987. (Estudos, 2) LUKÁCS, György. Arte e sociedade: escritos estéticos (1932-1967). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000. (Coleção Espírito Crítico) RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos. São Paulo: Objetiva, 1999. Nas fronteiras da linguagem ǀ 392 A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO AUTORAL NAS OBRAS DE VIRGINIA WOOLF: O ENSAIO COMO FORMA LITERÁRIA E ESTRATÉGIA DE EMPODERAMENTO DA AUTORIA FEMININA [Voltar para Sumário] Asenati Araújo de Melo (UNEB) 1 Juliana C. Salvadori (UNEB) 2 Mesmo uma mulher com um grande pendor para a literatura fora levada a crer que escrever um livro significava ser ridícula, e até mesmo mostrar-se perturbada. (Woolf, 1922 p. 80) 1. Introdução A proposta desse trabalho é observar como Virginia Woolf (VW), escritora inglesa modernista, busca em seus ensaios, mais especificamente em Um teto todo seu, construir um feminino autoral em meio as constrições de sua época, colocando em xeque as fronteiras entre escrita e a leitura, o literário e a crítica. A representação do feminino pela/na literatura tem sido tema de múltiplas discussões da crítica e da teoria literária e feminista, como também da própria literatura, pautada pelos aportes teóricos que os estudos culturais e pós-coloniais têm trazido à baila desde a década de 1960. Nesta linha, busca-se compreender como a literatura tem tanto refletido quanto moldado um feminino idealizado, isto é constituído a mulher como indivíduo a partir do século XIX, assim como suas funções/ papeis, como leitora e escritora, entre outros, para a construção de uma identidade própria, sujeito social, político e simbólico (literário). Deste 1 Graduanda do 5º semestre em Licenciatura em Letras, Língua Inglesa e Literaturas na Universidade do Estado da Bahia, Campus IV, Jacobina. Pesquisadora voluntária no Programa Institucional de Bolsas para Iniciação Científica Entrando no bosque: mapeamento e formação de redes de leitura.Membro do grupo de pesquisa Desleituras em série: da tradução como transcriação, adaptação, refração, diáspora (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/1792517921828602). 2 Professora Assistente da Licenciatura em Letras, Língua Inglesa e Literaturas na Universidade do Estado da Bahia, Campus IV, Jacobina. Professora Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas e mestre em Inglês e Literaturas pela UFSC. Coordenadora do projeto de pesquisa e extensão Entrando no bosque: mapeamento e formação de redes de leitura. Líder do grupo de pesquisa Desleituras em série: da tradução como transcriação, adaptação, refração, diáspora (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/179251792182 8602). III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 393 modo, busca-se mapear as representações de feminino e sua relação com os papeis de leitura e escritora que VW tece em seus ensaios, particularmente, assim como a repercussão disto nas representações que seus leitores constroem sobre a obra da escritora. É com base nessa representação e recepção contemporânea de Virginia Woolf que essa pesquisa irá se desenvolver, focalizando no diálogo que a autora estabelece entre escritor (a) /leitor (a); mais especificamente em seus ensaios, os quais centram-se na representação da mulher e a posição das mesmas como artistas dentro de uma sociedade patriarcal. Neste jogo de espelhamentos – literatura que reflete/representa/molda a vida que reflete/representa/molda a arte, busca-se compreender como a escritora constrói sua identidade como autora a partir de sua experiência como leitora. Dito de outro modo, busca-se compreender como Virginia Woolf, "constrói” esse feminino autoral colocando em xeque a escrita e a leitura, o literário e a crítica. O corpus selecionado será Um teto todo seu, dentre o qual, a autora, oferece minibiografias de autoras e personagens mulher. 2. Tradição literária e a autoria feminina A produção literária encontra-se inerentemente interligada a condição de gênero: assim como Natalia Helena Wiechmann, em seu artigo sobre A crítica literária feminista e a autoria feminina, podemos afirmar que a escrita é um ato criador e criativo. Para explicar essa relação entre criador e gênero observaremos que a análise da tradição literária dar-se-á a partir da paridade entre a autoria e a paternidade. Bailando através da cultura Ocidental, podemos observar o estabelecimento de uma hierarquia entre os gêneros -Deus representação masculina, cria o homem e tudo que existe no cosmo; da criação do homem Ele concebe a mulher. Trazendo essa analogia para a criação literária, Gilbert e Gubar (1984), citados por Wiechmann em seu trabalho, destacam que: Na cultura patriarcal ocidental, por conseqüência, o autor do texto é um pai, um progenitor, um patriarca estético cuja pena é um instrumento de poder generativo como seu pênis. Além do mais, o poder de sua pena, como o poder de seu pênis, não é apenas a capacidade de gerar a vida, mas o poder de criarn uma posteridade […]. (GILBERT; GUBAR apud WIECHMANN, p.6) (Tradução minha)3 3 No original: “In patriarchal Western culture, therefore, the text’s author is a father, a progenitor, a procreator, an aesthetic patriarch whose pen is an instrument of generative power like his penis. More, his pen’s power, like his penis’s power, is not just the ability to generate life but the power to create a posterity.” In: GILBERT, Sandra; GUBAR, Susan. The Madwoman in the Attic: The Woman Writer and the Nineteenth-century Literary Imagination. 2. ed. Londres: Yale University Press, 1984. Nas fronteiras da linguagem ǀ 394 Gilbert e Gubar ressaltam que a caneta, o instrumento associado à produção literária, pode ser vista como a representação do falo. Dito isso, observamos que, partindo do ponto de vista Criador, o poder criador através do intelecto faz parte da capacidade masculina, relacionando a capacidade criadora feminina apenas a geração por meio do histero – o útero, poder gerador/criador inferior ao intelectual porque físico. É válido ressaltar que até o século XIX as mulheres pouco escreviam - ou pouco circulava sua produção – pelo fato da escrita ser considerada como prática intelectual superior. Assim, o empoderamento autoral é restrito ao homem, excluindo a mulher da possibilidade de criação artística e reduzindo-a a sua capacidade a geração da vida por intermédio do útero: o poder criativo do papel/ escrita é do homem. Essa identificação da mulher à maternidade é geralmente figurada na imagem da mulher anjo/ Madonna. Essa representação angelical é retomada por Virginia Woolf em Um teto todo seu (1990) publicado como A Room of One’s own em 1929, na qual define a mulher de sua época como “subjugada” ao título “anjo do lar”, bem como a retratação do desejo de superioridade masculino no que diz respeito ao Criador e o Criativo: [...] É bastante evidente que, mesmo no século XIX, a mulher não era incentivada a ser artista. Pelo contrário, era tratada com arrogância, esbofeteada, submetida a sermões e admoestada. Sua mente deve ter sofrido tensões, e sua vitalidade foi reduzida pela necessidade de opor-se a isso, de desmentir aquilo. Pois aí, mais uma vez, entramos no âmbito daquele complexo masculino muito interessante e obscuro que teve tanta influência no movimento feminista, daquele desejo arraigado não tanto de que ela seja inferior, mas de que ele seja superior [...] (WOOLF,1990 p. 68). Dessa forma, podemos observar que, para a mulher ser artista, mais especificamente escritora até o século XIX, seria necessário que as mesmas escapassem de tais representações, e superassem a ideia patriarcal sobre criação e superioridades masculinas, pois, como afirma Woolf,[...] “Mas é óbvio que os valores das mulheres diferem, com freqüência, dos que foram estabelecidos pelo outro sexo; isso decerto acontece. E, no entanto, são os valores masculinos que prevalecem.” (1990 p. 91) 3. O Ensaio de Woolf e o feminino autoral Como ensaísta, Virginia Woolf abordou insistentemente as questões femininas, não especificamente as feministas – se formos considerar o termo no sentido político que foi criado a partir dos anos 60 como movimento político e social sistematizado, p que seria uma anacronia. De modo geral, a abordagem de VW esteve restritamente ligada ao direito a III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 395 capacidade intelectual e criadora no meio artístico, político e social bem, isto é, o reconhecimento da capacidade intelectual para representação do mundo presente no feminino. Em Um teto todo seu (1990), uma de suas obras ensaísticas, VW pontua a posição que a mulher ocupa na sociedade do mesmo modo que aborda os obstáculos e restrições da mulher como escritora. Nesta, VW afirma que: Faça o que fizer, uma mulher não consegue encontrar nelas a fonte de vida eterna que os críticos lhe garantem estar ali, não é apenas que eles celebrem virtudes masculinas, imponham valores masculinos e descrevam o mundo dos homens; é que a emoção de que esses livros estão permeados é incompreensível para uma mulher. (WOOLF,1990 p. 124) Nesse trecho VW discute sobre as obras mais renomadas, os ditos clássicos universais, mas que, segundo a escritora, caem em ouvidos surdos: ela questiona que a “virilidade” tornou-se consciente de si mesma, ou seja, os homens estão escrevendo a partir de suas necessidades e de seu próprio intuito – essa universalidade, portanto, diz respeito à experiência do masculino. Por ser essencialmente masculina, as mulheres que “ousam” vivenciar a escrita como ato Criativo são estereotipadas como monstruosas – porque ousam se apoderar/portar o falo/caneta. Acerca disso, Woolf pondera: Que se pudesse encontrar algumas mulheres com essa disposição de ânimo no século XVI era obviamente impossível. Basta pensar nos túmulos elisabetanos, com todas aquelas crianças ajoelhadas, de mãos unidas, e em sua morte prematura, e ver sua casa de cômodos escuros e abarrotados, para perceber que nenhuma mulher poderia ter escrito poesia naquela época. O que se esperaria descobrir seria que, talvez bem mais tarde, alguma grande dama tirasse proveito de sua relativa liberdade e conforto para publicar algo com seu nome e arriscar-se a ser considerada um monstro. (WOOLF,1990 p. 73) Em outras palavras, é necessária coragem para transgredir o paralelo estabelecido entre o mundo doméstico e o artístico e ter a ousadia para escrever. Ainda em consonância com VW, “até mesmo uma mulher com um grande pendor para a literatura fora levada a crer que escrever um livro significava ser ridícula, e até mesmo mostrar-se perturbada”. (WOOLF,1990 p. 80). É importante observar que Um teto todo seu (1990) é um ensaio cuidadosamente estruturado, induzindo-nos a pensar a característica/estilo da escrita que VW escreve. Ela chama a nossa atenção para uma de suas principais características estética “a representação pluripessoal da consciência”, a que se refere Auerbach (1971) no seu famoso ensaio sobre a escritora, intitulado “The brown stocking” (apud OLIVEIRA, 2013, p. 27). Essa característica Nas fronteiras da linguagem ǀ 396 da escrita de Wolf, na obra ensaística citada, se incorpora na escolha de uma personagem para narrativizar suas considerações/reflexões: Assim, ali estava eu (chamem-me Mary Beton, Mary Seton, Mary Carmichael ou o nome que lhes aprouver — isso não tem a menor importância), sentada à margem de um rio há uma ou duas semanas, gozando a amena temperatura de outubro, perdida em cogitações. (WOOLF,1990 p. 9) Dessa forma, Woolf correlaciona a vida ficcional da personagem aos discursos do “real’’ sobre o feminino nesse jogo de ficção e realidade. Em seu trabalho sobre A representação feminina na obra de Virginia Woolf: Um diálogo entre o projeto político e o estético, Oliveira, (2013) aborda essa voz narrativa no ensaio de VW, a partir da qual apresenta seu principal argumento: [...] A perspectiva da narradora parte do macro contexto, ou seja, da arquitetura patriarcal da cidade de Londres (a universidade, a biblioteca e o museu), para o micro contexto, os espaços vazios nos livros de história. Assim, o micro contexto reflete o macro contexto e vice-versa. Ao perceber que o acesso a determinados espaços lhe é negado, ou mesmo no pobre jantar que é servido para as mulheres, em comparação com o jantar servido aos homens em Cambridge, Woolf estabelece o argumento principal de seu ensaio: a mulher precisa de independência econômica e de certa privacidade para escrever (OLIVEIRA, 2013 p. 27) Quando Woolf afirma que a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se pretende escrever ficção, a autora/escritora, de fato, destaca que a mulher precisa de condições/ suportes que favoreçam tanto sua criatividade quanto sua liberdade para exercer sua capacidade intelectual de forma criativa, sem as restrições comumente impostas aos seus interesses. 4 O mundo das escritoras em Um teto todo seu Como já foi mencionada, a obra ensaística de VW gira basicamente em torno da (auto)afirmação de que toda escritora/criadora precisa ter “um teto todo seu” e 500 mil libras por ano: esse foco na questão econômica é central para se pensar a constituição da mulher/escritora como um indivíduo livre, emancipado de sua submissão à vida doméstica: E, como se queixaria tão veementemente Miss Nightingale — "As mulheres nunca dispõem de meia hora. . . que possam chamar de sua" —, ela era sempre interrompida. Mesmo assim, seria mais fácil escrever ali prosa e ficção do que escrever poesia ou uma peça. Exige-se menos concentração. (WOOLF,1990 p. 83) III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 397 Woolf observa que a ficção, por ser uma “uma narrativa literária que menos exigia concentração” (OLIVEIRA, 2013 p. 58), fez-se a forma mais convencional de escrita entre as mulheres, pois, além de não haver um espaço que pudessem chamar de “seu” não dispunham de um tempo restritamente “seu”; o romance, portanto, pela sua forma, era maleável e exigia menos concentração. Dentre as mais variadas personagens de Um teto todo seu, podemos destacar Judith Shakespeare, a famosa irmã de Shakespeare, personagem essa que devido às imposições da época não teria a mesma oportunidade de Shakespeare: [...] Enquanto isso, sua extraordinariamente bem dotada irmã, suponhamos, permanecia em casa. Era tão audaciosa, tão imaginativa, tão ansiosa por ver o mundo quanto ele. Mas não foi mandada à escola. Não teve oportunidade de aprender gramática e lógica, quanto menos ler Horácio e Virgílio. Pegava um livro de vez em quando, talvez algum do irmão, e lia algumas páginas. Mas nessas ocasiões, os pais entravam e lhe diziam que fosse remendar as meias ou cuidar do guisado e que não andasse no mundo da lua com livros e papéis. Com certeza, falavam-lhe com firmeza, porém bondosamente, pois eram pessoas abastadas que conheciam as condições de vida para uma mulher e amavam a filha. (WOOLF, 1990 p. 59-60) Desconhecida de algum relato da escrita feminina na época de Shakespeare, Woolf insere Judith como forma de representação as mulheres de dado período afirmando que mesmo que ela tivesse tanta imaginação e audácia quanto seu irmão ela teria sido privada de aprender a gramática ou conhecer Virgílio, sendo submetida a lidar apenas com os afazeres domésticos. Tão talentosa quanto Shakespeare, suas tentativas em apropriar-se da cultura escrita e dos fazeres criativos/intelectuais, seriam coibidas, levando-a ao desespero até suicidar-se. Acordando com Woolf concluímos que: É mais ou menos assim que se daria a história, penso eu, se uma mulher na época de Shakespeare tivesse tido a genialidade de Shakespeare. De minha parte, porém, concordo com o falecido bispo, se bispo ele era: nem pensar que alguma mulher da época de Shakespeare tivesse o gênio de Shakespeare. Isso porque um gênio como o de Shakespeare não nasce entre pessoas trabalhadoras, sem instrução e humildes. Não nasceu na Inglaterra entre os saxões e os bretões. Não nasce hoje nas classes operárias. Como poderia então ter nascido entre mulheres, cujo trabalho começava, de acordo com o professor Trevelyan, quase antes de largarem as bonecas, que eram forçadas a ele por seus pais e presas a ele por todo o poder da lei e dos costumes? (WOOLF, 1990 p.61). Percebe-se que o argumento de Woolf é amplo e continuamente reforça a questão econômica e seu papel na constituição de um indivíduo livre: não poderia haver um Shakespeare feminino naquele tempo, como não pode haver hoje, entre a classe trabalhadora, porque estes não eram/são livres para poder se concentrar – considerando energia e tempo – em atividades criativas. Desse modo, VW entrevê a liberdade feminina através da própria Nas fronteiras da linguagem ǀ 398 “caneta”, que trará além de um teto todo seu, quinhentos mil libras por ano. Woolf citado por Oliveira (2013) em seu trabalho sobre a representação feminina, afirma que: Admitindo-se que a mulher da classe média tem agora algum lazer, alguma educação, e alguma liberdade para investigar o mundo em que ela vive, não será nesta geração ou na próxima que ela vai ter ajustado a sua posição ou dado uma clara conta de seus poderes. "Eu tenho os sentimentos de uma mulher", diz Bathsheba em Longe da Multidão, "mas eu tenho apenas a linguagem dos homens." A partir desse dilema levantam-se confusões infinitas e complicações. (WOOLF apud OLIVEIRA, 2013, tradução minha)4 Woolf, neste trecho, constata que não seria em sua geração ou na próxima, que a mulher iria ter ajustado a sua posição e o seu empoderamento, pois, como vimos durante a análise, era/é preciso de tempo para que se pudesse forjar na língua uma dicção feminina – mesmo que a mulher se apodere da caneta, a linguagem ainda é a dos homens, isto é, a representação ainda é masculina. Considerações Finais Iniciemos essas considerações finais por ressaltar a escolha do objeto – não os romances ou obras ficcionais de Woolf, mas o ensaio Um teto todo seu, parte integrante de um projeto de pesquisa maior, que pretende mapear a obra ensaística da escritora traduzida no Brasil. Adorno (2003), em sua defesa do ensaio, aponta-nos o fascínio que o ensaio exerceu nos românticos e exerce nos escritores-críticos justamente por seu caráter de fragmento, ruína, na qual se inscreve e se abre o infinito leque de possibilidades interpretativas: ao elidir as fronteiras entre forma e conteúdo, fundo e forma, o ensaio se aproxima da arte – embora Adorno (2003) não aceite o pressuposto de que ele possa, também, ser arte. Segundo o autor, então, esse apreço pelo detalhe, pelo fragmento é uma opção ética, de exercício da humildade contra o desejo totalizador de se “esgotar” um texto. É essa própria forma do ensaio seu grande trunfo, uma vez que guarda a memória do processo da escrita, isto é, não procura apagar o árduo processo de tessitura no qual os conceitos se entrelaçam no próprio fazer da experiência intelectual. Essa “memória” conservada pela forma apresenta uma outra lógica, a da coordenação, não a da subordinação. Esse exercício de interpretação e escrita, logo, seria No original: “Granted that the woman of the middle class has now some leisure, some education, and some liberty to investigate the world in which she lives, it will not be in this generation or in the next that she will have adjusted her position or given a clear account of her powers. ‘I have the feelings of a woman,’ says Bathsheba in Far from the Madding Crowd, ‘but I have only the language of men.” From that dilemma arise infinite confusions and complications” (WOOLF apud Oliveira, 2013) 4 III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 399 uma escolha por uma ainda que não aparente coerência. Penso que a bela defesa de Adorno (2003) diz do ensaio e de sua proposta epistemológica: O ensaio, porém, não admite que seu âmbito de competência lhe seja prescrito. Em vez de alcançar algo cientificamente ou criar artisticamente alguma coisa, seus esforços ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros já fizeram. (...) Ele não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer: ocupa, desse modo, um lugar entre os despropósitos. Seus conceitos não são construídos a partir de um princípio primeiro, nem convergem para um fim último. Suas interpretações não são filologicamente rígidas e ponderadas, são por princípio superinterpretações, segundo o veredicto já automatizado daquele intelecto vigilante que se põe a serviço da estupidez como cão-de-guarda contra o espírito. (ADORNO, 2003, 16-17) Não por acaso, o ensaio ocupa papel relevante na produção de Woolf, espaço retomando a temática acerca da ocupação/ superioridade masculina dos espaços de representação simbólica e a transição, entrelugar, entre os papeis de leitora e escritora. Rompendo com os modelos impostos, Woolf através de sua escrita, visa propor uma voz e escrita toda sua, uma outra dicção, não masculina, em contrapartida ao discurso falologocêntrico imposto no discurso literário: “[e]la coloca-nos frente à essa complexa realidade e percebemos que apenas falar de gênero não soluciona nossos problemas, que são tão múltiplos, mas leva-nos a reflexões e questionamentos [...]” (OLIVEIRA, 2013 p. 237). A relevância de Woolf na contemporaneidade repercute na sua defesa do empoderamento feminino pela via do simbólico, pelo apoderar-se da própria “caneta”, enfatizando sua autonomia e individualidade – sua voz. Referências ADORNO, Theodor W. “O ensaio como forma”. In: Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. p. 15-45. AUERBACH, E. Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1971. BRANDÃO, Izabel F. O.Virginia Woolf and the Essay under Feminist Eyes. Alagoas, 2013. In: <http://www.litcult.net/revistamulheres_vol3.php?id=228>. Acesso em: 30 abril 2015. OLIVEIRA, Maria Aparecida de.A representação feminina na obra de Virginia Woolf: um diálogo entre o projeto político e o estético. UNESP – SP. 2013. In: <http://base.repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/103691/oliveira_ma_dr_arafcl.pdf?s equence=1>. Acesso em: 30 abril 2015 Nas fronteiras da linguagem ǀ 400 WIECHMANN, Natalia Helena. A crítica literária feminista e a autoria feminina. Vocábulo: Revista de Letras e linguagens midiáticas. In:http://www.baraodemaua.br/comunicacao/publicacoes/vocabulo/pdf/natalia.pdf. Acesso em: 01 maio 015. WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Círculo do Livro, 1990. In:<http://brasil.indymedia.org/media/2007/11/402799.pdf> Acesso em:28 abril 2015. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 401 USOS DA LÍNGUA(GEM) NA INTERNET: O QUE ESTUDANTES DE GRADUAÇÃO PENSAM SOBRE AS PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NA COMUNICAÇÃO VIA DISPOSITIVOS MÓVEIS? [Voltar para Sumário] Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP) Amanda Cavalcante de Oliveira Lêdo (UFPE) Introdução A língua, artefato dinâmico, complexo, heterogêneo e variável (BAGNO, 2007), é objeto de diferentes representações entre seus usuários, que a utilizam nas distintas práticas de linguagem de que participam. Os diferentes usos que os falantes/escritores fazem da língua estão imbuídos de valores e julgamentos sociais e adquirem status diferenciados que, muitas vezes, são transferidos para os próprios usuários. É amplamente reconhecido que, com o advento da internet, as práticas de leitura e escrita se modificaram sensivelmente, tendo em vista os novos recursos permitidos pelo meio eletrônico. A comunicação via internet, em especial no âmbito das redes sociais digitais, nas quais os jovens figuram como protagonistas e usuários centrais, muitas vezes lança mão de uma linguagem característica, conhecida como “linguagem da internet” ou “internetês”, que, por se afastar significativamente do padrão gráfico da língua, tem sido objeto de intensas discussões, tanto no âmbito acadêmico como na mídia e na sociedade em geral. Assim, a comunicação ocorrida através das mídias digitais, a exemplo daquela mediada por dispositivos móveis tais como smartphones e tablets, frequentemente inclui práticas de escrita mais flexíveis que são estigmatizadas por se afastarem do modelo de grafia “correta”. Diante do exposto, este estudo teve como objetivo investigar as concepções de alunos de dois cursos de graduação a respeito de suas próprias práticas de escrita mediadas por dispositivos móveis conectados à internet, a partir da análise das respostas desses estudantes a um questionário sobre como usam/veem a escrita nesses suportes. Na tentativa de alcançar seus propósitos, o artigo está organizado da seguinte maneira: Nas fronteiras da linguagem ǀ 402 primeiro, abordamos as noções de língua, variação linguística e internetês que assumimos, relacionando esses conceitos com as práticas de escrita mediadas pelas tecnologias digitais móveis. Finalmente, apresentamos nossa análise das respostas dos estudantes, concluindo com a discussão dos resultados nas considerações finais. 1. Língua e variação Conforme Marcuschi (2008, p. 59), a língua pode ser vista a partir de diferentes concepções: (a) como forma ou estrutura; (b) como instrumento de comunicação; (c) como atividade cognitiva; (d) como atividade sociointerativa situada. Neste trabalho, partimos da concepção de língua como atividade sociointerativa situada, assumindo que ela se constitui como fenômeno histórico e cultural, como atividade sociocognitiva e como lugar de interação social (MARCUSCHI, 2008). Nesse sentido, a língua é também marcada pela heterogeneidade e constituída por um conjunto de variedades, igualmente legítimas do ponto de vista linguístico, mas às quais são atribuídos diferentes status do ponto de vista social. Essas variedades são utilizadas pelos sujeitos em distintas situações de comunicação, de acordo com os diferentes contextos de produção (quem são os interlocutores, qual o grau de formalidade, qual o gênero de texto etc.). Dessa forma, a língua se apresenta como um organismo vivo e intrinsecamente dinâmico, flexível e variável (BAGNO, 2007; 2014). Um dos conceitos associados às variedades linguísticas é o de norma padrão, que consiste em um ideal de língua representado por um conjunto de regras prescrito pela gramática normativa. O conjunto de usos que mais se aproxima da norma padrão constitui a norma culta1, que é formada pelas variedades urbanas de prestígio e “designa o conjunto de fenômenos linguísticos que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações mais monitoradas de fala e escrita” (FARACO, 2008, p. 73). Essa variedade recebe grande valorização social e representa um instrumento de poder e status para os usuários que a utilizam, como também um fator de exclusão e preconceito contra aqueles que não a dominam. A supervalorização da norma padrão contribui para a disseminação de valores 1 Embora encontremos na literatura os termos norma padrão e norma culta como sinônimos, nesse trabalho assumimos, com Bagno (2007), que a primeira noção corresponde a um modelo idealizado e ideologizado e a segunda diz respeito a usos concretos/reais da língua. Além disso, concordamos com Faraco (2008) em que, apesar de fazermos referência a uma norma culta (no singular), o que de fato ocorre é uma diversidade de manifestações linguísticas que acarreta diferentes realizações da linguagem urbana culta. O estudioso também defende a importância de se distinguir a norma culta falada da norma culta escrita. Tais reflexões sugerem ser mais adequado pensar em “normas cultas”. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 403 autoritários e discriminatórios. Ela se torna elemento determinante da hegemonia e do controle de um grupo de prestígio, se transformando em fator de exclusão sociocultural (MONTEAGUDO, 2011). A escola figura como um dos principais agentes de valorização, disseminação e manutenção da ideologia da norma padrão. No contexto escolar, prevalece o discurso de exaltação da norma, em detrimento das demais variedades, embora recentemente tenha ocorrido a inserção do tema da variação linguística no currículo, até por força dos PCN. Contudo, o tratamento dado à questão da variação ainda é incipiente e, muitas vezes, estereotipado e preconceituoso, na medida em que a variação é tratada como um problema e não como uma característica inerente à língua2. A instituição escolar parece tentar se isolar das práticas sociocomunicativas estabelecidas em outras instâncias, a exemplo das práticas de linguagem que acontecem através das tecnologias digitais e que utilizam o internetês, sustentando que se utilize a norma padrão sempre, sob o risco de o falante sofrer graves consequências pela sua infração: ser julgado e discriminado por seu comportamento linguístico. 1.2. Imaginário social: variação linguística na oralidade e na escrita Faraco (2011) destaca o poder que têm as imagens e significados que envolvem a língua e compõem o imaginário social na construção do prestígio da norma padrão e da norma culta diante das demais variedades linguísticas. Dentre as falácias que constituem esse imaginário destacamos: (i) associação de língua (apenas) com a modalidade escrita e (ii) a crença de que a escrita é homogênea. O primeiro aspecto se relaciona, historicamente, com a eleição pelos estudiosos gregos de um ideal de língua baseado na consagrada escrita literária clássica. É nesse contexto que está a origem da gramática tradicional ou normativa, cujas regras têm o intuito de preservar a maneira mais “correta”, “bela” e “culta” de utilização da língua (BAGNO, 2012). A língua, nessa concepção, seria representada pela escrita, na medida em que essa modalidade transportaria a língua do plano abstrato para uma realidade palpável (BAGNO, 2011). Nesse processo de “corporificação”, a escrita perde o status de mera representação e passa a ser concebida como a própria língua, a língua concreta (quando na verdade é uma das modalidades em que ela se apresenta). Com isso, no senso comum, há a transferência das 2 Recomendamos a leitura de Bagno (2013) para uma discussão dos problemas relativos à abordagem da variação linguística pelos livros didáticos de língua portuguesa. Nas fronteiras da linguagem ǀ 404 características dessa modalidade para a língua, ou seja, as pessoas passam a associar os aspectos típicos de determinado modelo de escrita à língua, como se esta fosse monolítica. Tal fato também está relacionado à dicotomia entre as duas modalidades da língua: a fala (considerada desorganizada, informal, desregrada, popular) e a escrita (considerada organizada, formal, regrada, culta). Se, como lembra Faraco (2011), tradicionalmente se faz uma estreita vinculação entre “língua escrita” e norma padrão, isso significa que em geral se toma a “língua oral” (fala) como lugar de variação linguística e a escrita como intrinsecamente homogênea. Contudo, é importante ressaltar que, como modalidade semiótica ou forma de representação da língua, a escrita efetivamente se manifesta em diferentes variedades linguísticas, desde as mais valorizadas, como a norma culta, até aquelas que recebem estigma social, a exemplo do internetês, do qual trataremos a seguir. 2. Língua(gem) da internet? Considerações sobre o internetês No ambiente eletrônico, a leitura e a escrita são atividades fundamentais, visto que na maior parte do tempo, a navegação nos sites requer que os usuários leiam e escrevam com frequência. As práticas de leitura e escrita em questão se realizam por meio de diversos gêneros textuais, provenientes das diferentes esferas sociais, aspecto que evidencia como a linguagem utilizada na internet é igualmente múltipla, tanto do ponto de vista dos recursos textuais, discursivos e semióticos como das variedades linguísticas. Dessa forma, é possível, dependendo do gênero, encontrar a utilização de variedades mais ou menos prestigiadas na rede, embora alguns trabalhos façam referência à “linguagem da internet”, como se fosse única e homogênea (BEZERRA, 2013). A fim de evitar generalizações e considerando que não existe uma linguagem única, mas sim linguagens da/na internet (BEZERRA, 2013), ressaltamos que quando nos referirmos à “linguagem da internet” ou “internetês”, estamos tratando das práticas comunicativas/discursivas realizadas em contextos informais em determinados gêneros de textos, presentes especialmente em sites de relacionamento, blogs e serviços de bate-papo (chats). Ademais, essas práticas são responsáveis pela formação e manutenção das inúmeras redes sociais que se constituem em torno desses recursos. O internetês tem sido descrito como uma “forma grafolinguística” utilizada tipicamente em textos encontrados em chats, blogs e outros mecanismos mediadores de redes sociais (KOMESU; TENANI, 2009). Dentre suas principais características, costuma-se citar a prática frequente da abreviação, a supressão ou acréscimo (repetição) de sinais de pontuação, III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 405 a omissão de acentos gráficos, a troca, o acréscimo (inclusive repetição) ou a omissão de letras. Parcialmente, pelo menos, trata-se de uma escrita simplificada ou reduzida, que parece se orientar mais fortemente pelo princípio da economia, tendo em vista especialmente a velocidade da interação. No presente trabalho, o internetês é tomado como uma variedade linguística no sentido sociolinguístico do termo (ARAÚJO, 2007), “uma nova, mas não absolutamente inédita, variedade escrita de uso da língua portuguesa, que se constitui paralelamente à escrita e à ortografia oficial do português brasileiro” (BEZERRA, 2013, p. 3). Essa variedade, contudo, é desprestigiada socialmente e, muitas vezes, demonizada pelos discursos escolar e midiático, responsabilizada por estimular os estudantes a “escreverem errado”. A valorização das variedades cultas, em detrimento das variedades populares e do internetês (mais ligada ao aspecto etário), encontra respaldo em discursos sobre a “preservação” da língua portuguesa, sendo possível detectar preconceito linguístico contra o internetês inclusive da parte de estudiosos da linguagem (FERREIRA; SHEPHERD, 2011). Dessa forma, o internetês é constantemente confrontado com o ideal de escrita que é cobrado na escola e o não reconhecimento dessa variedade leva à preocupação com a “degradação” da língua. Dentre os recentes trabalhos que têm investigado o internetês, destacamos o de Bezerra (2013), no qual o autor analisa os sentidos construídos pelo discurso acadêmico a respeito das práticas de linguagem da/na internet, constatando como a “linguagem da internet” é, muitas vezes, estigmatizada. Os estudos de Galli (2008), a respeito do imaginário sobre a escrita a partir da análise de comunidades do Orkut, e de Bezerra (2014), sobre o normativismo linguístico em páginas do Facebook, também verificam o enraizamento dos discursos sobre preservação da língua na crítica do uso do internetês e constatam que, contraditoriamente, os mesmos usuários que “defendem” a língua e pregam a escrita “correta” transgridem tais normas quando escrevem. Tais exemplos permitem concluir que há necessidade de mais pesquisas que contribuam para compreender com maior profundidade a escrita realizada em suportes digitais e desconstruam os preconceitos contra os usos linguísticos emergentes da/na internet. 4. Concepções dos estudantes sobre a escrita em dispositivos móveis A fim de observar as concepções de língua escrita e seus usos em dispositivos móveis, convidamos alunos de dois cursos de graduação, Licenciatura em Letras e Bacharelado em Direito, de diferentes Universidades, para responder a um questionário com perguntas abertas Nas fronteiras da linguagem ǀ 406 a respeito de suas práticas de escrita nesses suportes. O corpus que analisamos corresponde às respostas de 20 estudantes, sendo 10 do 4º período de Licenciatura em Letras e 10 do 1º período de Direito, durante o 2º semestre de 2014. Esses alunos cursaram ou estavam cursando pelo menos uma disciplina em que se abordava a língua sob o ponto de vista de sua heterogeneidade e variabilidade. Em nossa análise, discutimos as concepções de língua e escrita subjacentes às respostas dos estudantes 4.1. Frequência de uso e preferências Sobre a frequência com que os estudantes utilizam dispositivos eletrônicos como smartphones e tablets para se comunicar, especialmente com amigos e familiares, no dia a dia, cerca de 80% dos entrevistados afirmam que utilizam com muita frequência, demonstrando que essas tecnologias fazem parte do cotidiano da maioria. Também segundo os estudantes, os aplicativos que mais usam para participar de redes sociais através de dispositivos móveis são o Whatsapp e o Facebook. Questionados sobre como avaliavam a importância desses dispositivos e aplicativos para suas atividades diárias, a maioria dos estudantes respondeu que eles são muito importantes e muito úteis, porque facilitam a comunicação no seu dia a dia, e seu uso não se restringe a entretenimento, mas, segundo os estudantes, é também essencial para a resolução de questões relacionadas a estudo e trabalho. Considerando a diversidade de pessoas e propósitos com os quais os estudantes utilizam esses dispositivos (comunicação com familiares, com amigos, com chefes, colegas de faculdade, colegas de trabalho, enfim, pessoas com diferentes graus de instrução, diferentes relações e proximidade com o estudante), é possível supor que sejam igualmente múltiplas as formas como devem utilizar a língua. No entanto, como vamos perceber, ao menos idealmente, para boa parte deles prevalece a preocupação em escrever de maneira “correta”. 4.2. Os estudantes e o “cuidado” com a língua Em outra questão, quisemos saber se eles consideravam necessário ter algum cuidado com o uso da língua portuguesa na comunicação por smartphones ou tablets e por quê. A maioria deles (60%) respondeu que sim, que é necessário ter o devido cuidado com a escrita ao usar esses dispositivos. Dentre as justificativas apresentadas, são recorrentes as ideias de que: (i) o uso “incorreto” da língua passa a imagem de falta de conhecimento sobre ela; (ii) como o uso desses meios e do internetês influencia o modo como escrevemos, devemos ter III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 407 cuidado para não escrever “errado” em uma situação formal; (iii) devemos escrever “corretamente” para que a mensagem seja entendida. É possível perceber, nas respostas dos estudantes, crenças provenientes do senso comum, tais como o pensamento de que a norma padrão deve prevalecer em todas as situações de que o usuário participar, especialmente na modalidade escrita; e que utilizar o internetês influenciaria os estudantes a escreverem “errado” em outras situações. Tais aspectos contrariam a noção de que o usuário da língua é capaz de adequar as diferentes variedades que conhece às necessidades da situação comunicativa. Também constatamos a ideia de que, se a escrita não estiver de acordo com a norma padrão, a compreensão não será possível, não será comunicação em português (o internetês é frequentemente descrito como uma “nova língua”). Entretanto, percebemos que a compreensão pode ser prejudicada (mas não impossibilitada) apenas nos casos em que o usuário não adquiriu minimamente algum letramento nas práticas digitais, o que não ocorre com os estudantes em questão, dada a frequência de uso dos dispositivos móveis que afirmam manter. Nessa questão, uma justificativa chamou nossa atenção: um estudante de Letras afirma que todos devem ter cuidado com a língua portuguesa ao usar dispositivos móveis, mas especialmente se for aluno desse curso, visto que se escrever “errado” será mais criticado. Esse comentário revela a cobrança social sofrida pelo estudante de Letras para que “preze pela língua”, ou seja, a expectativa de que sempre use a língua “corretamente”, o que significa de acordo com a norma padrão. Podemos considerar que isso revela o quanto o estudante se sente constrangido a utilizar essa norma em todas as situações. Ressalte-se que, em geral, tal cobrança não é estendida com igual intensidade a qualquer pessoa que faça um curso superior. Tal aspecto se relaciona com o imaginário social de que os estudantes de Letras, professores de língua em formação, “dominam” (ou precisam “dominar”) a norma padrão. Ainda sobre a necessidade de cuidado com o uso da língua portuguesa em dispositivos móveis, 20% dos estudantes responderam que não e 20% responderam que depende, apresentando justificativas similares para os dois pontos de vista. Dentre elas, é recorrente a ideia de que a língua deve se adequar ao ambiente/situação/interlocutor. Tal pensamento está relacionado ao reconhecimento de que há diferentes formas de se comunicar (variedades) e de que essas formas devem ser usadas adequadamente, de acordo com as necessidades comunicativas. É possível que essa ideia seja proveniente do contato dos estudantes com disciplinas que enfatizem o ponto de vista descritivo/científico da língua. Outro comentário defende que a preocupação em “seguir as regras gramaticais” (isto é, a norma padrão) depende de, por exemplo, se a escrita fica disponível para a visualização Nas fronteiras da linguagem ǀ 408 pública, para a exposição de si possibilitada pelas tecnologias digitais. Assim, seria admissível, por exemplo, não “seguir as regras gramaticais” em uma mensagem de texto (SMS) privada, mas não seria recomendável fazer isso em um comentário público no Facebook. Percebe-se que há a preocupação do usuário em não criar uma imagem negativa de si, associada a determinados usos da língua, menos prestigiados. 4.3. Avaliação dos usos da língua em dispositivos móveis A respeito de como avaliam a maneira como a maioria das pessoas (conhecidas deles ou não) utiliza a língua portuguesa ao usar dispositivos móveis para comunicação, parte dos estudantes respondeu que a maioria das pessoas escreve com displicência, de forma errada, com muitas abreviações e erros de concordância, com “uso excessivo do ‘internetês’ ou de gírias”. Já outra parte avalia que as pessoas escrevem de maneira informal, “normal” e de forma compreensível. No exemplo 01, apresentamos alguns comentários dos estudantes sobre essa questão: Exemplo 01: Avaliação dos estudantes sobre o uso da língua em dispositivos móveis Estudante A: [Essa escrita é] Diferente de uma escrita formal, pois a linguagem utilizada nesses meios procura ser a mais rápida e estratégica possível. Estudante B: Eu particularmente não os julgo conscientemente, mas de alguma maneira tenho preconceito ou ate me afasto de individuos que não se adequaram ao uso da língua em nivel basico por exemplo e tiveram condições pra isso. Logo, por assumir isso, mesmo que no subconsciente, avalio como uma desconstrução da língua, a forma como ela é usada. Com base no exemplo, podemos perceber que existem diferentes graus de aceitação das práticas de linguagem emergentes na internet e diferentes pontos de vista na avaliação que se faz dessa escrita, que variam desde assumir que ela é adequada ao meio digital até a depreciação dos usuários que a utilizam e se afastam da norma padrão (apesar de o próprio estudante dispensar o uso do acento gráfico, tal qual acontece, de maneira geral, no internetês que ele critica): o estudante A considera o internetês uma variedade adequada a situações informais, que atende a uma demanda de escrita “rápida e estratégica” própria da comunicação através desses dispositivos. Já o estudante B assume ter uma atitude preconceituosa com as pessoas que não utilizam a língua “em um nível basico”, mas que a “desconstroem”, posicionamento que defende a soberania da prescrição normativa da língua. O julgamento depreciativo das atividades linguageiras menos prestigiadas esteve presente em mais de um comentário e frequentemente foi transferido para os usuários, na imagem que o estudante faz de si mesmo e do outro, baseados na sua (in)competência linguística. Além III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 409 disso, nota-se o impacto do preconceito linguístico nas relações sociais, na forma de exclusão (“ate me afasto de individuos que não se adequaram ao uso da língua em nivel basico”). Em outra questão, perguntamos também como esses estudantes avaliam a própria maneira como usam a língua através dos dispositivos móveis. De maneira geral, dentre as respostas mais recorrentes estão que eles consideram que: (i) usam a língua de maneira eficaz (mas não esclarecem o que significa isso); (ii) escrevem de maneira informal; (iii) depende da pessoa com quem estão conversando; (iv) procuram escrever respeitando a gramática, mas às vezes têm preguiça de escrever frases longas ou querem demonstrar sentimentos (por exemplo, utilizando “kkkk” para indicar risos); (v) tentam escrever da melhor forma possível, a qual está associada a objetividade, clareza e obediência às regras ortográficas/gramaticais. Assim, a autoavaliação dos estudantes sugere que a maioria se preocupa em escrever seguindo as regras da gramática normativa, ainda que, eventualmente, por preguiça ou outra razão, faça uso do internetês. Aparentemente, os estudantes percebem que existem diferentes formas de falar e escrever e parecem transitar entre essas variedades conscientemente. Ainda sobre essa questão, destacamos no exemplo 02 alguns comentários dos estudantes: Exemplo 02: Avaliação dos estudantes sobre como utilizam a escrita em dispositivos móveis Estudante C: Entre amigos abrevio as palavras, e quando preciso escrever de forma correta, fico me perguntando qual a forma certa. Estudante D: Tento não utilizar alguns termos como “concerteza” para não trazer isso para outras situações. Em seu argumento, o estudante C considera que a abreviação de palavras que utiliza quando interage em uma situação de baixa formalidade interfere em seu desempenho quando necessita escrever segundo a norma padrão, na medida em que fica em dúvida sobre qual a forma correta. No entanto, acreditamos que, provavelmente, a dúvida sobre a grafia da palavra é anterior ou independente do uso do internetês e não em sua decorrência. Se, por exemplo, o estudante escreve na internet “pq” (e isso é suficiente naquela situação), mas quando precisa escrever segundo a norma padrão fica em dúvida sobre usar “por que”, “porque” “porquê” ou “por quê”, esse problema é fruto do desconhecimento da regra gramatical pertinente e não influência do internetês. Já o estudante D afirma que em sua escrita através dos dispositivos móveis procura evitar termos como “concerteza”. Nesse caso, parece que há uma confusão bastante comum entre as pessoas e recorrente nas respostas dos estudantes entre o que seria a escrita típica da internet (o internetês) e a escrita de outras variedades linguísticas na internet ou fora dela, ou seja, confundem problemas de ortografia com internetês. Ao considerar que a grafia de “concerteza” faz parte do internetês, o estudante não leva em conta que ela acontece com Nas fronteiras da linguagem ǀ 410 frequência em suportes convencionais de escrita com ou sem relação com a internet. Embora não seja, ao que tudo indica, responsável pelo surgimento de formas como “concerteza”, o que a internet fez foi conferir maior visibilidade a problemas de aquisição da grafia oficial que antes ficariam mais restritos a situações específicas de escrita. Esse fato, antes de ser avaliado primordialmente como algo negativo, pode ser visto como uma contribuição para um diagnóstico mais exato sobre desafios específicos para o ensino de aquisição da escrita. Considerações finais Nosso objetivo, neste artigo, foi refletir sobre as concepções de alunos de graduação sobre as práticas de escrita que realizam através de dispositivos móveis. Através da análise das respostas dos estudantes a um questionário sobre como esses estudantes usam/veem a língua quando se comunicam por meio de smartphones e tablets, buscamos investigar o imaginário construído em torno da língua e da escrita. Foi possível perceber que as tecnologias representadas pelos dispositivos móveis estão presentes no cotidiano desses estudantes e que sua frequência de uso é acentuada. Entretanto, como vimos, a maioria dos estudantes considerou ser necessário ter cuidado com a escrita, apontando a necessidade de “escrever corretamente” nesses suportes, apesar de alguns também mencionarem a adequação (à situação, ao meio, ao interlocutor) como fator decisivo para a escolha de como utilizar a língua. Embora os estudantes fossem provenientes de diferentes cursos superiores, de maneira geral suas respostas foram bastante próximas, exceto quando alguns estudantes de Letras fizeram referência à expectativa social de que eles deveriam sempre utilizar a língua “corretamente” devido à cobrança social que recebem em decorrência do seu curso. Foi recorrente nas respostas dos estudantes a identificação do valor social atribuído às variedades linguísticas, juízos que são transferidos para o falante, julgando-o mais positiva ou negativamente, bem como a preocupação diante da projeção da imagem de si e do outro através do uso da língua. Acreditamos que os estudantes, assim como os usuários em geral, têm uma concepção idealizada da própria escrita, seja por considerarem que ela está livre dos problemas que encontram na escrita dos outros ou, ao contrário, por acharem que não sabem escrever corretamente. Um desdobramento futuro da reflexão aqui apresentada seria observar empiricamente as práticas de escrita realizadas efetivamente por esses estudantes em dispositivos móveis. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 411 O internetês foi frequentemente associado ou confundido com problemas formais como a ortografia (“concerteza”), a ausência de concordância e a pontuação. O internetês, embora mais associado a uma faixa etária do que a uma classe social como é o caso das variedades linguísticas mais estigmatizadas, entretanto compartilha com essas variedades populares o estigma do “erro” e da não obediência às “regras gramaticais” (isto é, à norma padrão, tomada como a única norma dotada de regras e de gramática). Assim, de maneira geral, os posicionamentos estão polarizados basicamente em dois pontos de vista: por um lado, os estudantes reproduzem o discurso escolar de hegemonia da norma padrão e preocupação com a preservação da língua, sendo esse o ponto de vista mais recorrente e, por outro, estão conscientes de que há usos mais ou menos adequados a cada situação e ambiente. Nesse sentido, ora o internetês (especialmente, em relação à abreviação das palavras) figura como um problema que deve ser evitado, sob o risco de influenciar a escrita em situações formais, ora aparece como variedade justificada em virtude da necessidade de rapidez na escrita ou do alto grau de informalidade, entre outras razões. Referências ARAÚJO, J. C. O internetês não é língua portuguesa? Vida e educação, ano 4, n. 13, p. 28-29, mar./abr. 2007. BAGNO, M. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. BAGNO, M. Norma linguística, hibridismo e tradução. Traduzires, n. 1, p. 19-32, mai/2012. BAGNO, M. Sete erros aos quatro ventos: a variação linguística no ensino de português. São Paulo: Parábola Editorial, 2013. BAGNO, M. Língua, linguagem, linguística: pondo os pingos nos ii. São Paulo: Parábola Editorial, 2014. BEZERRA, B. G. O discurso acadêmico sobre língua e linguagem na internet. 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Delpierre) O projeto artístico do escritor pernambucano Wellington de Melo tem se destacado pela abordagem das experiências configuradoras da contemporaneidade, como a relação entre o homem, realidade e virtualidade, assunto de seu [desvirtual provisório] (poesia, 2008), os movimentos sociais e sua manipulação política, a homofobia e a pedofilia, alguns dos temas de Estrangeiro no labirinto (romance, 2013). Dada essa característica, destaca-se entre seus títulos o desafio auto-imposto pelo poeta de cantar o medo, decisão tomada em O peso do medo: 30 poemas em fúria (2010). Afinal, mais que uma experiência humana atemporal, trans-histórica, o medo, como lembra-nos Bauman (2008, p. 9), é uma sensação instintiva primordial que os humanos dividem com as mais diferentes espécies do reino animal. É a resolução dada pelo poeta a esse desafio que pretendemos evidenciar nesse estudo. Para tanto, fundamentamo-nos em três questionamentos. O primeiro é: como se representou historicamente o medo em literatura? O segundo é: há algo na vivência do medo que constitua uma experiência identificável como uma forma contemporânea de sentir medo? O último, consequência do questionamento anterior: havendo um medo específico da contemporaneidade, que formas artísticas o poeta considerou como aquelas capazes de expressar essa especificidade? As respostas a essas três indagações, esperamos, esclarecerão o papel de O peso do medo na poética que seu autor vem erigindo, fundamentando tanto novas leituras que visem a exploração desse livro como as que se debrucem sobre as demais produções do escritor. Nas fronteiras da linguagem ǀ 414 Comecemos, então, pelo lugar do medo na literatura. A primeira constatação que fazemos a esse respeito vem do título da abertura do estudo de Jean Delumeau (2009) sobre a história do medo no Ocidente. Há um silêncio sobre o medo. E esse silêncio, alerta-nos o historiador, é profundamente político. Da Era Clássica à Idade Moderna o medo foi confundido com covardia, um sentimento de almas pusilânimes, indignas e incapazes de ocupar as posições de liderança ― e, consequentemente, de exercer direitos privilegiados. Fruto e fonte dessa interpretação da experiência humana, a arte representou essa perspectiva exaltando a valentia e silenciando a representação dos temores. No domínio da literatura, a coragem é o motor central da poesia épica, considerada elevada, das novelas de cavalaria e dos romances históricos que a seguiram. Já o medo foi rotineiramente deformado na covardia característica do vilão, palavra aqui usada em toda extensão da ambiguidade: vilão-antagonista e vilão-homem da vila, homem comum. Acrescentamos a essas observações, extraídas de Delumeau (2009), duas informações importantes. A primeira ressalta que tanto já na era clássica, mas principalmente no período entre o século XIV e o século XVIII, focalizado pelo historiador, vigoraram poéticas erigidas ou digeridas dentro de normas hierarquizadoras. Ocorria nos gêneros literários aquilo que ocorria na organização social dos homens: uma hierarquização que dividia o nobre do vil. Nesse contexto, havia dois espaços artísticos para representar o medo, ambos inferiores. Num o medo, deturpado em covardia e superstição, foi alvo da ridicularização que condena os vícios, papel da comédia, da farsa, da sátira, do travestimento e da charge1. No outro, dá-se legitimidade à representação do medo porque se representa a única forma de medo desvinculada do estigma da covardia na sociedade europeia observada por Delumeau: o medo da danação espiritual pelo pecado, representado pela poesia lírica de temática religiosa. A segunda observação destaca uma presença oblíqua do medo na literatura clássica e na literatura da sociedade aristocrática estudada por Delumeau: a do medo como efeito, já previsto por Aristóteles no conceito de catarse. Aqui o medo se faz presença não como tópico, mas como fonte de prazer psíquico que educa moralmente. Aqui justapomos à tragédia ática a tragédia elizabetana e o romance gótico do século XVIII. A constatação de que o medo foi recalcado pela arte pela sua íntima vinculação com a estratificação dos regimes aristocráticos poderia sugerir que a suplantação desse modelo social resultou em uma literatura mais aberta à representação dos medos humanos. No 1 O travestimento, transposição estilística que inverte as significações da obra original, e a charge, inversão do texto original no campo da composição dos personagens e da ação, são conceitos desenvolvidos longamente por Genette (2010). III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 415 entanto, o advento da sociedade burguesa não foi mais receptivo ao medo. Assim foi porque ideologicamente a divisão entre homens nobres e homens vis, fundamentada em princípios diferentes, persistiu durante todo o século XIX. Em certo tempo, sua premissa foi a confiança absoluta no gênio criador dos românticos, reflexo do entendimento de que alguns homens eram seres de alma mais nobre que outros, sendo-lhes superiores por seus valores e sensibilidades. Subsequentemente, na época da confiança absoluta na ciência, embora igualados os homens por sua condição instintiva e animal, diferentes modalidades de superioridade foram construídas, destacadamente aquelas proporcionadas pelo domínio da ciência e aquelas erigidas pela aplicação perversa de ideias dessa mesma ciência: a que hierarquizou os homens em raças superiores e inferiores e cujos resultados políticos extremos marcaram a história do século XX. Não é a toa que uma das maiores tragédias humanas modernas tenha se dado, como caracteriza Bauman (2008, p. 21), citando Jacques Attali,, pela arrogância humana e seu desconhecimento do medo, e que tenha ocorrido justamente no momento em que expirava a sociedade burguesa erigida nas bases do Positivismo: o naufrágio do RMS Titanic. Seguindo tal raciocínio, é possível que tenhamos encontrado o principal motivo para que o medo tenha recebido maior atenção artística justamente quando se anuncia a falência das ideias que sustentaram a sociedade ocidental do século XIX. Foi a partir da insurreição à arte burguesa e às poéticas normativas das vanguardas que o medo efetivamente ingressou no rol de temas da arte, tanto fazendo parte da psique dos personagens com os quais o público relaciona-se empaticamente como sendo cantado em todas as suas manifestações pela poesia lírica. A demolição das hierarquias de gênero e de temas foi capaz de elevar a angústia existencial e os medos do cotidiano ― o medo da impotência, o medo da violência, o medo da sujeição aos outros homens, o medo do isolamento ― a motivo de algumas das grandes obras artísticas do século, como O grito, Guernica e A metamorfose. No acervo artístico brasileiro, é Drummond quem canoniza a representação do sentimento em seu Congresso Internacional do Medo. Desenvolvido tal panorama, podemos iniciar a resposta das duas primeiras perguntas. A representação do medo como uma emoção humana legítima, apesar da universalidade e atemporalidade da experiência, é um fenômeno artístico recente. Tão recente, que, considerando-se os paradigmas da história da arte, o cânone das letras nacionais, o poema de Drummond, ainda pode ser considerado, em certos termos, contemporâneo. Tais termos, no entanto, parecem-nos inadequados, visto que, embora a realização drummondiana tenha o vigor da trans-historicidade das grandes obras artísticas, sua vinculação a um contexto Nas fronteiras da linguagem ǀ 416 histórico específico, o da II Guerra Mundial, não deixa de cercar o medo drummondiano de certa contingência irrelevante para a poesia de Wellington de Melo, produzida sessenta e cinco anos mais tarde. Aqui é importante um esclarecimento. A contingência da II Guerra é que é irrelevante para a poesia de Wellington de Melo. O cânone drummondiano não só não é irrelevante como ganha o espaço em dois poemas, o gabinete e um espelho. O primeiro é centrado justamente na negação do medo drummondiano, caracterizado como aristocrático, partidário, de eventos longínquos, de causas grandiosas, identificável. O medo identificado por Melo como sendo seu medo, portanto, é o medo da coletividade da massa, apartidário, do cotidiano, das causas banais e sem identidade. É um “medinho sem-vergonha” (2010, p. 40), e “medíocre”: o medo da violência urbana, o “medo da bala”. Portanto, há algo de especificamente contemporâneo na experiência do medo e, por isso, algo que apenas a contemporaneidade literária poderia representar. Para Bauman (2008), essa especificidade deve-se à liquidez de todas as certezas, de todas as seguranças que caracteriza nosso momento histórico. Liga-se, também, a uma cultura que lucra com o medo, que o explora e o divulga para alavancar a circulação da economia. A liquidez do futuro e da felicidade do futuro alavancou, por exemplo, o uso cotidiano do crédito bancário, sob a forma de cartões de crédito e de empréstimos consignados, uma cultura de vida a crédito que se opõe à cultura da poupança (BAUMAN: 2008, p. 17) que caracterizou as práticas sociais até a década de 1980. A consequência maior dessa liquidez para a experiência de medo da contemporaneidade é a impossibilidade de redenção: os medos hodiernos “são incuráveis e, na verdade, inextirpáveis: chegaram para ficar - podem ser suspensos ou esquecidos (reprimidos) por algum tempo, mas não exorcizados” (BAUMAN, 2008, p. 43). E essa incapacidade de exorcismo do medo é representada temática e estruturalmente por Melo em sua obra. Em arte poética, texto de abertura do livro, que funciona como uma espécie de proposição autônoma da poesia em desenvolver uma anti-épica, uma odisseia às avessas, não heroica, o eu lírico (a própria poesia pós-moderna) estabelece que a empreitada de percorrer os meandros do medo é vazia: o livro é “silêncio pó (...) máscara que se arrasta” (MELO, 2010, p. 14) e “abismo” (Ibid., p. 15). Em art r rog rio, poema que finaliza o volume, “não acaba” repete-se em onze dos setenta e nove versos que realizam a capitulação ao tema ― capitulação que se efetiva, num movimento derradeiro, ao mostrar que o ponto de chegada dessa anti-odisseia, o “livros / de ventre / morto” é o mesmo da partida, “morto ventre de livros”. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 417 Tendo respondido às duas primeiras indagações, cremos que de modo satisfatório, daremos sequência ao terceiro questionamento: que formas artísticas são responsáveis pela expressão do medo contemporâneo na perspectiva estética de Wellington de Melo? Sem a pretensão de um estudo exaustivo, dado o caráter breve deste ensaio, abordaremos alguns pontos que consideramos fundamentais. O primeiro ponto que se destaca no conjunto do livro é a provocação ao leitor para a construção do ritmo. Para Octavio Paz (2012, p. 58), o ritmo é a alma do discurso poético, a estrutura organizadora de sua identidade e, mais que medida, “é visão de mundo” (Ibid., p. 66). Um ritmo confortável, estruturado de modo que a repetição dos padrões sonoros torne-se previsível, seria característico de épocas em que há uma relação harmônica entre o homem e o tempo. Já o ritmo dissoluto, que rompe padrões, torna imprevisível o rumo da organização poética, é característico ou de épocas em que a vivência do tempo incorpora a noção de velocidade e avanço ou de épocas menos confiantes no futuro. Não à toa é o ritmo do jazz e o da poesia de verso livre do início do século XX. Os ritmos dos poemas de O peso do medo não se encaixam nem no signo da constância nem no da dissolução. Isso se deve a dois recursos: a ausência de versos na estruturação de vinte e nove dos trinta textos e da organização das palavras nos textos. O poeta usa largamente a elipse de forma a demolir a maior parte dos nexos hierárquicos entre as palavras e prescinde de qualquer pontuação. Aqui está a primeira forma de participação poética do livro: a participação do leitor na construção do poema. Se é uma obviedade absoluta que a literatura só se realiza como leitura, como ação do leitor, é igualmente patente que a maior parte dos escritores procura prevenir-se do poder dessa leitura, tentando assegurar-se, pelos mais diversos expedientes, que a atividade do leitor seja controlada. O ato da leitura de literatura costuma ser hierarquizado: o autor é o destemido que pega em armas na luta contra as palavras, enquanto o leitor é alma pusilânime governada pelo bravo. Ao fazer da poesia personagem que invoca sua persona literária para dar voz ao medo da contemporaneidade, Wellington de Melo intui que o poeta e o leitor são iguais, homens amarelos e medrosos, sendo incabível a quem escreve determinar como se lê aquilo que se lê, sendo esse como o tudo da poesia. Exemplifiquemos a questão com um estudo de caso. Em “o para-brisa” a sequência “desaba sobre o para-brisa a tempestade o peso do medo afoga enfim o plástico sobre o parabrisa desabam o caos o sol ramalhetes de pássaros acorrentados” pode ser organizada, entre muitas outras possibilidades, das seguintes maneiras: Nas fronteiras da linguagem ǀ 418 1) desaba sobre o para-brisa a tempestade / o peso do medo afoga enfim o plástico / sobre o para-brisa desabam / o caos o sol ramalhetes / de pássaros acorrentados 2) desaba / sobre o para-brisa / a tempestade / o peso do medo / afoga enfim / o plástico sobre o para-brisa / desabam / o caos / o sol / ramalhetes de pássaros / acorrentados A organização das palavras no ato da leitura, privilegiando a oração, no primeiro caso, privilegiando o sintagma, no segundo, cria diferentes ritmos e diferentes relações sintáticosemânticas. Na primeira possibilidade, um objeto representado metonimicamente pela substância de que é feito, o plástico, parece estar isolado na paisagem; já na segunda, esse objeto é levado ao para-brisa pela tempestade. O confronto entre a constância e a dissolução do ritmo ao longo do livro pode ser observada como a materialização mesma do campo de batalha que o medo – e a fúria que ele engendra – estabelece dentro da linguagem, sobretudo a situação em que o medo se encontra dentro da sociedade pós-moderna: aqui, o conforto e o bem-estar residem no anseio por liberdade – liberdade essa que só pode ser alcançada dentro de um estado rigoroso de ordem e fronteiras bem-definidas, facilmente abaláveis pelos movimentos tectônicos do exterior. Wellington oferece em seu texto a “liberdade” de versos fluidos despidos que qualquer traço de pontuação, o que gera no leitor a necessidade de “ordenar”, à sua maneira, o ritmo mutante dos versos para que sua recepção seja alcançada. Essa suspensão do poema entre o constante e o dissoluto, entre ordem e caos, delineia estruturalmente a dinâmica temática da obra em si: um equilíbrio paranóico (como se isso fosse possível) entre a repulsa ao medo e o abraço ao mesmo medo. Essa dinâmica que o medo oferece à vida banal é refletida na própria estruturação da obra em si. Dividida em três partes, “o medo a fúria a alcova”, “o medo a fúria o gabinete” e “o medo a fúria a rua”, o poeta executa um movimento oposto a uma fuga esperada: ao invés de buscar refúgio da ameaça externa à ordem ensimesmando-se, consolando-se na intimidade que um quarto sobre o qual apenas ele pode exercer influência, em O peso do medo ele inicia a sua jornada de dentro para fora, da alcova para a rua, como se seus medos mais íntimos se sublimassem para o abstrato medo cotidiano e compartilhável. A primeira parte, “a alcova”, remete imediatamente à parte mais íntima do lar, o espaço mais interno e, consequentemente, de acesso exclusivo à família. Aqui vê-se o uso constante da primeira pessoa do possessivo – o poeta assume e compreende, a cada poema, o “meu” medo, a “minha” fúria, seus próprios pequenos terrores e indignações, e que tratam de III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 419 tudo o que é inalienavemente seu: seu corpo, sua casa, seu filho, sua criação. O exemplo máximo aqui é, não surpreendentemente, o poema que leva seu nome, “Wellington de Melo”: não não não não serás grande poeta porque letra não se faz com afago não se faz com pena do amigo ou de seus alfarrábios não se faz culpando fúria de crítico frustrado engolindo medo de ser culpado serás funcionário cinza de iniciativa privada terás alguns belos fins de semana na praia e um ponto zero meio usado uma vidinha classe média e uns poucos amigos sinceros (...) teu filho encaixotará teus livros não vendidos num sábado funerário e te esquecerão não serás grande poeta não não não (2010, p. 16) Na segunda parte, “o gabinete”, o poeta se torna um observador, medindo e confrontando seu medo com o de novos interlocutores que surgem nos poemas em dedicatórias, epígrafes e menções, como o já mencionado contraponto entre os medos de Wellingon de Melo e Carlos Drummond de Andrade em “um espelho”. As duas partes possuem dois poemas análogos que esclarecem essa posição entre um “eu” e um “outro”: “dois tygres” e “um cordeiro”, em clara referência a William Blake e suas Canções de Inocência e Canções de Experiência. Em “dois tygres”, na Alcova, a Experiência do poeta, que se desenvolve em sua relação com o “outro”, é personificada pelos tigres da Fúria e do Medo: para não esquecer quem sou eu pesei minha experiência e plantei dois tygres em minha retina (2010, p. 31). Já no Gabinete entra em cena “um cordeiro”. Nesse espaço de confronto a inocência, que representa o “eu” do poeta, é destroçado pelos mesmos dois tygres plantados pela experiência, ou o desejo de sobreviver ao tal “outro” que permeia essa segunda parte do livro: para não esquecer quem sou eu pesei minha inocência eu procurei em meu baú em vão meu cordeiro dos tygres devoram o cordeiro (2010, p. 44). Na cruel representação especular dos dois terços do livro, o medo do inocente alimenta a fúria do experiente – que não deixam de ser o mesmo cordeiro: o outro, o mesmo. Quando o medo desce para a rua, na parte final, o confronto é deflagrado: na cidade, “eu” e “tu” se tornam “nós” e “eles” e já não há distinção, uma vez que todos mergulham na mesma turba, o mesmo organismo multicelular regido por ambos medo e fúria, prismados em caos, em pânico. A paranóia estampada do “contacorpos” que atira ao cidadão, de hora em hora, o pavor real e imediato de uma violência burra e cega e impessoal que destrói, deliberadamente, o cordeiro e os dois tygres. Por fim, no poema “Art r Rog rio”, análogo ao “Wellington de Melo” do começo do livro, a fúria parece arrefecer, e o texto tona pela primeira vez no livro um formato reconhecível de versos e estrofes, como se agora o poeta estivesse plenamente consciente do medo e em uma espécie de paz contemplativa, como se resignado (embora suas últimas palavras, como já mencionadas, repitam as primeiras palavras Nas fronteiras da linguagem ǀ 420 do primeiro poema, permitindo assim que a serpente morda sua própria cauda e o ciclo se restabeleça, como o movimento cíclico do tempo platônico repetindo os mesmos astros do céu). Ao alcançar a rua, Wellington se resigna, ou o medo cumpre sua função de alimentar a fúria e restaurar o equilíbrio exigido pelo constante estado de alerta, de liberdade vigiada, de segurança asséptica contra o estranho exterior, que tensiona o cidadão pós-moderno e que, consequentemente, define quem ele é? O medo é uma força complexa a exercer pressão sobre o cidadão, e mantém uma origem exógena, irradiada daquele espaço alheio que se mostra como uma nódoa na tessitura de normalidade, constância e padronização higiênica do mundo esperado. O medo gera a fúria, a fúria gera o ódio: tal energia irradiará, assim, do objeto receptor do medo em direção – a quem? A fúria, aqui, acaba por não achar um objeto de atração concreto, mas sim o próprio medo, o que colabora e muito para o estabelecimento da fúria banal, mesquinha, beirando o rotineiro e o entediante, longe da grandiosa boba atômica de Drummond: o medo e a fúria do homem pós-moderno, do homem-consumidor, como Bauman o define, surgem bem definidos em “minha fúria” (2010, p. 27): (...) essa fúria bronca pesada essa fúria jornal nacional essa fúria top 10 fúria sulanca-caruaru fúria brechó-cabeça fúria cocaína-daslu fúria terceiro de magistério fúria ementa teoria três fúria trote de medicina fúria afogados da USP fúria mendigos carbonizados no altar do senhor fúria emiliano zapata fúria beira mar fúria papa doc fúria no penteado dos alternativos classe média fúria nas narinas brancas dos porraloucas classe a é minha fúria crack na veia fúria legalize já é minha fúria maconha-de-grife é minha fúria-glamour fúria chimbinha fúria maria gadú todos contra todos (...) Fúria, na realidade, contra medos que são apenas simulacros do que é realmente temível: assim Wellington assume para si a posição do cidadão pós-moderno, temeroso (e consequentemente furioso) contra tudo aquilo que perturbe a normalidade e o status quo, tudo aquilo que possa causar um ruído à sua liberdade pessoal. Aqui se estampa a reação (de medo e fúria) classe-média contra medos e fúrias alheias que não lhe dizem repseito – mas parecem se forçar, pressurosamente: o incômodo da classe A, seja ela pequeno-burguesa ou hipster, ou mesmo o medo que permeia o mundo real e que invade a normalidade por meio da televisão. O terror representado por François “Papa Doc” Duvalier, sanguinário ditador do Haiti nas décadas de 60 e 70, transmuta-se no fantasma de um terror pasteurizado que os telejornais contrabandeiam para o lar estacionamento, significando nada. casado-com-três-filhos-e-um-seminovo-na-vaga-do- III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 421 Dessa forma, o peso do medo: 30 poemas em fúria compõe, sob a forma de um mosaico, o retrato de uma sociedade que, deliberada e espontaneamente, nutre-se do medo não com o objetivo de uma evolução e sobrevivência instintivos, ou como o estigma de fraqueza e covardia condizente com períodos mais nobres e heróicos da humanidade – mas sim, como um distintivo de orgulho culpado, como o combustível para manter permanência e estabilidade em tempos pós-modernos, de identidades solidificadas e que, ao mesmo tempo, têm ojeriza a tal solidificação – essa negação à solidez identitária não estaria ilustrada, nos poemas de Wellington de Melo, na supressão de vogais nos diversos nomes próprios que surgem ao longo da obra (com a sonora exceção de seu próprio nome?). Parafraseando a leitura que Slavoj Zizek faz sobre o paradoxo lacaniano “se Deus está morto, nada é permitido”, pode-se admitir que, na pós-modernidade, enquanto houver o Medo, toda a Fúria é permitida. Referências BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. CARROLL, Noël. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus, 1999. COSTA LIMA, Luiz. Mímesis e modernidade: formas das sombras. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. DELUMEAU, Jean. O silêncio sobre o medo. In: _______. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 11 - 23. ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. _______. Os limites da interpretação. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. GENETTE, Genette. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. 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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 423 ENSINO DE ANÁLISE LINGUÍSTICA: REFLEXÕES DE BASE SOCIOINTERACIONISTA [Voltar para Sumário] Bruna Bandeira (UFPE) Introdução Na área da Linguística, a despeito de avanços teóricos acerca de uma nova concepção de linguagem — a sociointeracionista, que toma a linguagem como prática social e discursiva realizada entre sujeitos em contextos sócio-históricos específicos —, é lugar-comum a crítica de que o ensino de análise linguística (AL)1 no Brasil permanece ligado a uma tradição que concebe a linguagem como expressão de pensamento e a língua como sistema. Não refutando nem corroborando tal crítica e considerando que se vive hoje um momento de transição no ensino de língua portuguesa (LP), este artigo pretende verificar em que medida as gramáticas escolares têm avançado no sentido de considerar a linguagem — e consequentemente o uso da língua — como um processo de interação e construção permanente de sentidos. Para isso, buscou-se analisar a Gramática Reflexiva, volume único, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar — uma das gramáticas escolares para o Ensino Médio (EM) mais vendidas no País —, em sua primeira (1999) e quarta e última edição (2013). O foco de análise deste artigo são as seções Semântica e interação (da primeira edição) e sua correspondente Semântica e discurso (da última edição), que aparecem ao final dos capítulos O modelo morfossintático – o sujeito e o predicado, Termos ligados ao verbo: objeto direto, objeto indireto, adjunto adverbial, Termos ligados ao nome: adjunto adnominal e complemento nominal e Termos ligados ao nome: aposto e vocativo. A escolha pela morfossintaxe e, dentro dela, pelo estudo dos termos da oração2 deve-se ao fato de que este é 1 O termo análise linguística foi cunhado por João Wanderley Geraldi, aparecendo pela primeira vez em 1981 no texto Subsídios metodológicos para o ensino de língua portuguesa. Trata-se de uma inovação não apenas terminológica, mas também metodológica. 2 Reconhecemos que termos da oração é uma expressão típica da gramática normativa, de cunho estruturalista, mas seguiremos usando-a por falta de outra equivalente. Nas fronteiras da linguagem ǀ 424 um assunto em que normalmente os alunos demonstram certa dificuldade e que pode facilmente ser problematizado à luz de uma perspectiva sociointeracionista. Como este artigo parte do pressuposto de que a obra objeto de sua análise trata a morfossintaxe diferentemente de gramáticas mais tradicionais, cabe aqui explicar que abordagem estas vêm dando e como ela pode ser problematizada. A chamada gramática normativa3 costuma propor uma hierarquia dos termos da oração. Assim, toma como “termos essenciais”, por exemplo, o sujeito e o predicado. Como se explica, então, que possa haver uma “oração sem sujeito” se este é um “termo essencial”? Seguindo essa hierarquização, seriam “termos integrantes” os complementos verbais (objeto direto e objeto indireto) e nominais e o agente da passiva e “termos acessórios” os adjuntos verbais e nominais, o aposto e o vocativo. Mas por que chamar de “acessório” um termo como o adjunto adverbial ou o aposto, que muitas vezes carreiam as informações mais importantes do ponto de vista da intencionalidade do enunciador? Percebe-se, portanto, o quanto essa hierarquia apenas faz sentido do ponto de vista estrutural da gramática normativa. No discurso, essa “lógica” se perde. Ao analisar o ensino de LP sob a perspectiva sociointeracionista, este artigo considera essenciais as contribuições dos estudos que veem a língua como algo dinâmico, refletindo a relação instável entre a estrutura e os sentido(s) que ela é capaz de construir. A difícil superação do tradicional no ensino de análise linguística Atualmente pode-se dizer que a grande maioria dos docentes de LP em atividade no Brasil já teve algum tipo de contato com a ciência linguística, já que esta possui mais de cinco décadas de existência. Mas então, se os professores já conhecem as novas teorias linguísticas que colocam a interação e o processo de enunciação como centrais, por que permanece tão difícil superar o tradicional ensino focado na gramática normativa ou descritiva? Primeiramente, é importante ressaltar que se está falando de práticas seculares já cristalizadas. Sabe-se o quanto a gramática normativa exerceu um papel de importante embasamento nessa disciplina, acarretando um ensino focado na estrutura e, mais ainda, em uma estrutura dada como definitiva e indigna de reflexão. 3 Esclarecimentos acerca dos tipos de gramática considerados relevantes para este artigo serão dados mais adiante. Por enquanto, cabe esclarecer que os critérios de tipificação das gramáticas são diversos e que, ainda dentro do mesmo critério, alguns autores divergem quando consideram, por exemplo, normativa tanto a gramática prescritiva quanto a descritiva. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 425 Em segundo lugar, cumpre destacar que o sistema de ensino está fortemente enraizado nessa tradição e, muito provavelmente, sozinho, o recém-formado professor se sente intimidado para afrontar práticas já enraizadas. Entre os estudiosos da Linguística, há os mais radicais, que defendem o abandono total do ensino da gramática e sua substituição por “estudos da linguagem”, e os que questionam o rigor dos preceitos da gramática normativa e a forma como ela vem sendo estudada, mas não a rejeitam por completo e geralmente abordam uma perspectiva semântica, textual ou discursiva da língua. Assim, até agora o que se vê na maioria das escolas não é exatamente uma mudança da prática pedagógica em ensino de LP, e sim alterações pontuais na abordagem de alguns conteúdos gramaticais já estudados por esses linguistas. Uma rápida análise tanto de documentos orientadores — a exemplo das Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM, 2006) e do Guia de Livros Didáticos do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD, 2012) — quanto de livros didáticos de LP recentemente publicados é capaz de demonstrar a tendência de um ensino de gramática contextualizado e centrado no texto. Mas de que forma isso tem sido feito em muitas escolas? Cereja oferece uma resposta bastante convincente a esse questionamento: “O que se notava, e ainda se nota hoje, é o uso do texto como mero pretexto para o tradicional ensino da gramática da frase. [...] O texto, como unidade de sentido ou como discurso, é completamente esquecido” (CEREJA, 2002, p. 156). Mesmo entre os livros que fogem a essa prática, são poucos os que aproveitam a oportunidade de relacionar a AL com as possibilidades de leitura, analisando como a língua é utilizada em todas as suas dimensões para construir sentido(s) no texto. Ao seguir a perspectiva sociointeracionista, o ensino de LP dá um “passo a mais” procurando instrumentalizar o estudante para interagir eficientemente nas suas práticas discursivas: Se os estudos de linguagem a partir de textos representam um avanço significativo em relação à gramática normativa, a abordagem enunciativa representa um passo a mais, uma vez que, além de examinar as escolhas lingüísticas responsáveis pela construção de sentido, examina também os elementos externos ao texto, que [...] interagem com os elementos internos e participam da construção de sentido global do texto. (CEREJA, 2002, p. 159) Algumas propostas de trabalho nesse sentido foram e vêm sendo desenvolvidas como as de João Wanderley Geraldi e Luiz Carlos Travaglia. Geraldi e Travaglia: duas propostas sociointeracionistas de ensino de AL Nas fronteiras da linguagem ǀ 426 Para elaborar sua proposta de trabalho para o eixo de AL, o professor e pesquisador João Wanderley Geraldi reflete sobre três tipos de atividades, que resumidamente poderiam ser assim definidas: a atividade linguística remete à atividade da linguagem propriamente dita, ou seja, aos usos que fazemos da língua nas circunstâncias cotidianas de comunicação; a atividade epilinguística refere-se à capacidade que todo falante tem de, com a linguagem, operar sobre ela, de maneira consciente ou não, fazendo retomadas, avaliando os recursos expressivos de que se utiliza, realizando escolhas, corrigindo estruturas, etc.; e as atividades metalinguísticas são as atividades que refletem, de modo consciente e sistemático, sobre a linguagem, resultando em teorias e taxonomias. Entretanto, não se trata de uma distinção classificatória de fenômenos linguísticos, afinal essas três atividades são realizadas concomitantemente e devem ser consideradas no ensino de LP. Para Geraldi (1997), a linguagem é entendida como uma sistematização aberta de “recursos expressivos” cuja concretude significativa se dá na singularidade dos acontecimentos interativos. Por isso, refletir sobre os próprios recursos utilizados é uma constante em cada processo, ainda que isso se dê de maneira inconsciente. Feitas essas ressalvas, o pesquisador embasa sua proposta no texto do aluno, tomando-o como “ponto de partida e de chegada”.4 Considerando que, com a linguagem, falamos não só sobre o mundo, mas também sobre o modo como falamos do mundo e que o estudante chega à escola já dominando uma variedade de sua língua materna, qual seja sua gramática internalizada, centrar o ensino na produção de textos é dar a palavra ao aluno e deixá-lo apontar que caminhos deverão ser trilhados no aprofundamento da sua compreensão tanto dos fatos de que fala quanto das estratégias que utiliza. Tal trabalho daria conta de processos e fenômenos enunciativos, e não apenas de ordem estrutural. Na verdade, o que o autor propõe é que as atividades epilinguísticas realizadas intuitivamente pelos alunos sejam a ponte para a sistematização metalinguística. Ao comparar diferentes formas de escrever textos, os alunos compreendem a existência de diversas configurações textuais e variedades linguísticas e, no confronto destas, aprendem novas configurações e processam a construção de nova variedade padrão. Depois dessas reflexões, voltar aos textos dos alunos e fazê-los reescrevê-los não significa partir dos erros para mostrar os acertos, mas antes partir do erro para a autocorreção e ampliação do saber. Nesse sentido, a gramática seria usada como suporte, conforme explica o autor: 4 Como Geraldi analisa os três eixos de ensino de LP, propõe que o trabalho integral se inicie com o texto do aluno, passe por leituras complementares e volte ao texto inicial do aluno para um trabalho de AL. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 427 Penso as atividades epilingüísticas como condição para a busca significativa de outras reflexões sobre a linguagem. Note-se, pois, que não estou banindo das salas de aulas as gramáticas (tradicionais ou não), mas considerando-as fontes de procura de outras reflexões sobre as questões que nos ocupam nas atividades epilingüísticas. (GERALDI, 1997, pp. 191-192) Já o também professor e pesquisador Luiz Carlos Travaglia formula sua proposta igualmente embasada na perspectiva sociointeracionista da linguagem, encarando o texto como um conjunto de pistas que funcionam como instruções para o estabelecimento de efeito(s) de sentido em uma determinada interação comunicativa. Dessa forma, considera que o objetivo principal do ensino de língua materna é desenvolver a competência comunicativa dos alunos e, para isso, defende um “ensino produtivo”, a fim de que eles adquiram novas habilidades linguísticas. Travaglia não descarta o ensino descritivo e prescritivo da língua, mas acredita que ele deva ter seu lugar redimensionado na sala de aula. Para ele, mais importante do que ditar regras ou partir do uso da língua para estabelecê-las é refletir sobre a linguagem. A diferenciação que o autor faz de quatro tipos de gramática é fundamental para compreender sua proposta. A gramática de uso (1) seria aquela não consciente, implícita e ligada à gramática internalizada do falante. Para o ensino, ela seria útil nas atividades que buscam desenvolver o uso automático das unidades, das regras e dos princípios da língua, além dos recursos das suas diferentes variedades, mas sem que estes sejam explicitados metalinguisticamente. Serviriam para esse fim exercícios estruturais, qualquer atividade de produção e compreensão de texto, exercícios de vocabulário e atividades com variedades linguísticas. A gramática reflexiva (2) seria aquela que surge da reflexão com base tanto no conhecimento intuitivo dos mecanismos da língua que o aluno já domina quanto no trabalho com os conhecimentos linguísticos que ele ainda não domina. Para esse fim, haveria dois tipos de exercícios: os que levam o aluno a explicitar fatos da estrutura e do funcionamento da língua (em vez de dar a teoria gramatical pronta para o aluno, construir atividades que o levem a redescobrir o que as ciências linguísticas já deram a conhecer) e os que focam nos efeitos de sentido que os elementos da língua são capazes de produzir na interlocução. O autor faz uma ressalva quanto ao primeiro tipo de exercícios: “Não há evidência de que o conhecimento sobre esses aspectos mais estruturais da língua (dados por meio de várias metodologias) tenha levado ao desenvolvimento da competência comunicativa” (TRAVAGLIA, 2009, pp. 143-144). Esses exercícios serviriam como recurso auxiliar para levar o aluno a conhecer a instituição social que é a língua, ensinando-o a pensar. O mais Nas fronteiras da linguagem ǀ 428 importante, tendo em vista o objetivo de desenvolver a competência comunicativa dos alunos, seria, portanto, o segundo tipo de atividades. Já a gramática teórica (3) seria a gramática explícita, uma sistematização teórica sobre a língua e os conhecimentos que se tem dela por meio de uma metalinguagem apropriada e ditada por teorias e modelos das ciências linguísticas. Esta não deve ser confundida com a gramática normativa, que tem mais um caráter de legislação do que de descrição. O pesquisador não descarta o uso dessa gramática nas aulas de LP, mas defende que ela não seja um fim em si mesma. O objetivo dessa sistematização seria munir o aluno das ferramentas que lhe facilitem pensar cientificamente, desenvolvendo as habilidades de observação, raciocínio, levantamento de hipóteses e argumentação. Para trabalhar com essa gramática, o professor, além de ter bom-senso para selecionar as informações teóricas pertinentes, deve ter espírito crítico, e não querer passar teorias prontas e acabadas, muitas vezes problemáticas, aos aprendizes. Finalmente a gramática normativa (4), como gramática do bom uso da variedade culta e padrão da língua, também deve ser considerada no ensino/aprendizagem, mas, assim como a teórica, não como um fim em si mesma e, ademais, com os seguintes cuidados: deixando claro (i) que esta é apenas uma das variedades; (ii) que considerar esta como a única variedade correta cria preconceitos de toda espécie e ignora os usos orais da língua; (iii) que é importante conhecê-la para usá-la quando se tem que atender a normas sociais de uso em situações formais; (iv) que os recursos ensinados são uma qualidade ou um problema não em si mesmos, mas conforme o uso que o interlocutor faz deles na situação interativa específica. Enfim, de forma resumida, o que o autor propõe é que: o ensino da gramática seja basicamente voltado para uma gramática de uso e para uma gramática reflexiva, com o auxílio de um pouco de gramática teórica e normativa, mas tendo sempre em mente a questão da interação numa situação específica de comunicação e ainda [que] o que faz da sequência linguística um texto é exatamente a possibilidade de estabelecer um efeito de sentido para o texto como um todo. (TRAVAGLIA, 2009, p. 108) No entanto, como ele mesmo ressalta, os quatro tipos de gramática podem ou não ser utilizados em um mesmo conteúdo para uma mesma turma em qualquer nível de ensino. O que deve determinar isso é o conteúdo trabalhado, as condições dos alunos, o objetivo do ensino, o tempo disponível e outros fatores que o professor julgar conveniente. Análise da Gramática Reflexiva: construindo sentido(s) no e para o ensino III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 429 Diferentemente de gramáticas escolares tradicionais, a Gramática Reflexiva, desde sua primeira edição, não fala em hierarquia entre os termos oracionais, tampouco usa as denominações termos integrantes para os complementos verbais (objeto direto e objeto indireto) e nominais e o agente da passiva e termos acessórios para os adjuntos verbais e nominais, o aposto e o vocativo5. Em vez disso, destaca o sujeito e predicado colocando-os logo no primeiro capítulo e chama a atenção para o elemento a que os demais termos se ligam: se a um nome ou a um verbo. Em toda abertura de capítulo, a Gramática Reflexiva (e o próprio título sugere isso) parte de atividades que levam o aluno a tirar conclusões que irão ajudá-lo a construir os conceitos. Trata-se do primeiro tipo de exercício da gramática reflexiva de Travaglia, que, como dito acima, em vez de dar a teoria gramatical pronta para o aluno, constrói atividades que o levam a redescobrir o que as ciências linguísticas já deram a conhecer. O foco desta análise, no entanto, relaciona-se ao segundo tipo de exercício da gramática reflexiva de Travaglia: os que se centram nos efeitos de sentido que os elementos da língua são capazes de produzir na interlocução. Mais especificamente, serão analisados alguns exercícios desse tipo presentes nas seções Semântica e interação (na primeira edição) e sua correspondente Semântica e discurso (na última edição). No capítulo O modelo morfossintático – o sujeito e o predicado, a seção Semântica e interação da primeira edição da gramática traz uma tirinha de Dik Browne que mostra a interação entre Eddie Sortudo e Hagar, em que o primeiro personagem fala “Veja! Posso chutar minha cabeça! Aposto que você não pode!” e gesticula colocando os próprios pés na cabeça, ao que o segundo personagem responde “Ah, é?!” e chuta a cabeça de seu interlocutor. O primeiro quesito, ao elucidar o contexto de interação entre os personagens e a intenção comunicativa de Eddie Sortudo, induz o aluno a perceber que o predicado implícito da segunda oração (“chutar sua própria cabeça”) gerou uma ambiguidade, na qual o humor da tira se constitui. Assim, o aluno consegue facilmente identificar o efeito de sentido do texto e relacioná-lo ao objeto de estudo (predicado). Já a seção Semântica e discurso da última edição traz uma notícia retirada da revista Veja intitulada “Sopa de plástico” do Pacífico aumentou 100 vezes em 40 anos. As questões sobre esse texto levam o aluno a perceber que nem sempre o sujeito é o agente da ação verbal 5 Embora a denominação termos essenciais para o sujeito e o predicado não seja usada na divisão dos capítulos, ela aparece apenas na primeira edição e de maneira quase aleatória tanto na explicação que os autores dão a esses termos quanto nos enunciados de alguns exercícios. Nas fronteiras da linguagem ǀ 430 e dos fatos e que a escolha pela omissão ou explicitação dos responsáveis por essa ação é também uma forma de “manipular” o efeito de sentido do texto. A letra “b” do terceiro quesito pergunta: “Na notícia lida, qual é o efeito da escolha pela omissão ou explicitação dos responsáveis pela ação verbal?”. Para respondê-la, o aluno precisa voltar às questões anteriores e perceber que, quando a ação é negativa (poluir o Pacífico), a escolha da revista é omitir o ser humano como agente e colocar como sujeito as expressões “sopa de plástico”, “acúmulo de plástico” e “enorme redemoinho de lixo plástico”, fazendo parecer que a responsabilidade pelo aumento do lixo não é de ninguém; já quando a ação verbal é positiva (mostrar, revelar, alertar para descobertas científicas), o texto opta por colocar cientistas e pesquisas como sujeitos, valorizando esses estudiosos e conferindo maior credibilidade à notícia. No capítulo Termos ligados ao verbo: objeto direto, objeto indireto, adjunto adverbial, Cereja e Cochar optam por colocar o adjunto adverbial como termo ligado ao verbo embora façam a ressalva de que “Os adjuntos adverbiais de intensidade, além de acompanhar o verbo, podem acompanhar substantivos, adjetivos e advérbios” (CEREJA E COCHAR, 1999, p. 225). A seção Semântica e interação da primeira edição da gramática traz a história em quadrinhos As férias de Peteca, de Glauco, que é formada por uma sequência em que os quatro primeiros quadrinhos mostram a personagem principal, Peteca, em alguma capital do Brasil, acompanhada de um garoto. As legendas dizem: “Em Salvador, fiquei com o Rodolfinho! / Em Porto Alegre, com o Fredinho! / Em Floripa, eu fiquei com o Paulinho! / No Rio, fiquei com o Rubinho!”. O último quadro surpreende com a imagem de um garoto em cima de um edifício sozinho e uivando “Aúúúúú”. A legenda diz: “E o Bodi Pit, meu namorado, ficou em Sampa, tadinho!”. Os exercícios referentes a esse texto focam nos adjuntos adverbiais que indicam os lugares por onde Peteca passou; nos diferentes sentidos que o verbo ficar assume dependendo de sua predicação; no uso do diminutivo nos nomes próprios em função de objeto indireto nos quatro primeiros quadrinhos e no não uso deste no último quadrinho; e na intenção de Peteca ao empregar aí a variedade linguística “tadinho”. Além de usar a linguagem do jovem, esse exercício reflete sobre como as variedades linguísticas reconstroem sentidos usuais (no caso, do verbo ficar) e sobre como o uso do grau dos substantivos e adjetivos está relacionado não apenas ao tamanho ou à intensidade do referente, mas também à marcação de intenções do locutor (no caso, mostrar simpatia, afeição ou intimidade nos nomes próprios dos garotos com quem Peteca ficou ou dó, pena e ironia no uso de “tadinho”). III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 431 Já na seção Semântica e discurso da última edição da gramática traz o poema Morte de Clarice Lispector, de Ferreira Gullar. O primeiro exercício e as letras iniciais do segundo, mais estruturais, questionam sobre referente, função sintática, transitividade de verbos e reconhecimento do sujeito. O questionamento sobre o porquê de o sujeito do verbo enterrar não está explícito no verso “Enquanto te enterravam no cemitério judeu”, embora não use a expressão intenção e os tipos de sujeito ainda não tenham sido apresentados, exige que o aluno perceba que não há o interesse do enunciador em saber nem dizer quem enterrava a escritora Clarice Lispector, por isso opta pelo sujeito indeterminado. Somente na letra “c” do segundo quesito aparece mais claramente uma pergunta sobre a relação da estrutura com o sentido do poema: “Que relação semântica é estabelecida no poema entre o sujeito da forma verbal mostravam, o eu lírico e o restante do mundo?”. Referindo-se ao trecho do poema “as pedras, as nuvens e as árvores / no vento / mostravam alegremente / que não dependem de nós”, essa pergunta faz o aluno recuperar o sujeito “as pedras, as nuvens e as árvores”, pensar na situação em que o eu lírico parece ter produzido o enunciado — por ocasião da sua ida ao enterro de Clarice Lispector — e estabelecer uma relação de tudo isso com o mundo em que vive. Assim, espera-se que ele chegue à conclusão de que se estabelece aí uma relação de independência, pois a morte de uma pessoa e a tristeza de outra não impedem a alegria do mundo. Ao relacionar os tópicos trabalhados a elementos contextuais do mundo que cerca o aluno, a Gramática Reflexiva permite que se estabeleçam, em sala de aula, discussões ricas sobre possíveis interpretações e opiniões dos alunos. Com relação ao capítulo Termos ligados ao nome: adjunto adnominal e complemento nominal, a seção Semântica e interação da primeira edição traz um anúncio da Honda publicado na revista Caras e que é formado por duas partes: a primeira mostra o seguinte texto na frente da imagem do Parthenon, na Grécia: “Há 250 anos na Grécia antiga nasceu Hermes. Deus do vento, da velocidade e da liberdade. O único deus do Olimpo que não tinha templo. Porque, como tinha asas nos pés, Hermes nunca parava em casa. Na Grécia nasceu o desejo de liberdade. Nós só acrescentamos as cilindradas”. A segunda parte, com uma imagem de um pé alado em grandes proporções, diz: “A mitologia grega explica o seu desejo de vento, liberdade e velocidade”. O primeiro quesito explora a diferenciação semântica das funções sintáticas em estudo no contexto específico desse anúncio. Assim, o aluno teria que reconhecer que, em “Deus do vento, da velocidade e da liberdade”, as expressões destacadas são adj. adn. porque cumprem a função de especificar, dar atributos a “Deus” e que, em “desejo de vento, liberdade e velocidade”, as expressões em itálico são CN porque são alvo do desejo. Tal exercício é importante porque faz o aluno perceber, em situações concretas de Nas fronteiras da linguagem ǀ 432 uso, as diferentes funções dos termos estudados relacionando-as aos sentidos que constroem. Os demais exercícios levam os estudantes a ativar seus conhecimentos prévios ao terem que: reconhecer que o homem sempre teve, segundo o anúncio, desejo de voar; identificar o público-alvo do anúncio, os consumidores de motocicleta, que, em geral, apreciam a velocidade, a liberdade e o vento; elencar os prováveis valores explorados como estratégia para persuadir o interlocutor: liberdade, independência, autonomia, autossuficiência. Na seção Semântica e interação da última edição da gramática, aparece um anúncio da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) publicado na revista Gol, que, mostrando a imagem de uma esteira de raio-x no aeroporto com uma bandeja cheia de medalhas e outros objetos pessoais, como chaves, caneta, moeda e celular, traz o texto “Patrocinar o judô brasileiro é ter a certeza de duas coisas: que nossos atletas vão lutar nas maiores competições do mundo. E que não vão voltar de mãos vazias”. O primeiro exercício pede que o aluno identifique o anunciante e o público-alvo. O segundo explora a diferenciação semântica das funções sintáticas em estudo no contexto desse anúncio. O terceiro, destacando as certezas que o locutor tem, solicita que o aluno identifique os adj. adv. que correspondem às circunstâncias em que ocorrerão as ações indicadas nas construções verbais vão lutar e não vão voltar. O exercício segue perguntando sobre os adj. adn. que especificam ou conferem atributo aos núcleos dos adj. adv. (“as, maiores, do mundo”/“as, vazias”) e que sentido atribuem ao desempenho dos judocas brasileiros (o de que eles se classificam entre os maiores do mundo). Esse exercício, além de revisar um termo já estudado (adj. adv.), mostra que o adj. adn. pode estar presente em qualquer termo cujo núcleo seja um nome e que sua função será a de especificar ou conferir atributos a esse nome. Finalmente o último exercício pede que o aluno examine o conteúdo da bandeja na imagem e pergunta que relação há entre a parte verbal e não verbal do anúncio, mostrando que ambas as linguagens se complementam para construir o sentido global do texto. No capítulo Termos ligados ao nome: aposto e vocativo, a seção Semântica e interação da primeira edição traz uma charge de Adail et. alli que mostra duas mulheres sentadas conversando, sendo que uma delas, descalça, carrega um bebê no colo e diz à sua interlocutora: “Ah, minha filha, aqui nessa casa nunca faltou nada: meningite, escorbuto, mononucleose, rubéola, coccideose, cólera, esquistossomose, sífilis, chagas, virose, amebas, disenteria, brucelose...”. Os exercícios exploram o reconhecimento da classe gramatical e do valor semântico da palavra “Ah”, a identificação do aposto e do vocativo, o campo semântico dos substantivos que compõem o aposto, o significado do pronome indefinido nada no enunciado e a explicação do humor da charge, nessa ordem. Portanto, somente depois de III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 433 responder a todas as perguntas, o aluno fica munido de informações e reflexões suficientes para concluir que o humor reside na quebra de expectativa do leitor. Interessante é destacar que o pronome indefinido nada, nesse contexto, significa seu oposto quando, depois dele, vêm enumeradas “várias” doenças, corroborando a visão de que somente o ensino estrutural (focado em nomenclaturas e classificações) não dá conta das inúmeras possibilidades de uso e significado dos termos. A seção Semântica e interação da última edição apresenta o poema Os confidentes (I), de José Paulo Paes. Os dois primeiros exercícios focam na identificação do interlocutor do eu lírico e sua função sintática (vocativo), no reconhecimento do emprego de expressões em referência a Vila Rica, no papel semântico e na função dessas expressões (aposto), nessa ordem. Ou seja, somente após fazer o aluno perceber o papel que desempenham (sua função) e o valor semântico dos termos vocativo e aposto, os exercícios pedem sua nomenclatura. O último exercício faz o aluno notar que algumas estrofes do poema cantam a vileza dos habitantes de Vila Rica, enquanto outras descrevem a riqueza dessa cidade; o faz associar o tema tratado ao fato histórico Inconfidência Mineira; e finalmente pede que ele troque ideias com os colegas para concluir qual a função sintática do último verso “Vila Rica vil e rica”, que resume todo o poema. Para este último questionamento, há duas possibilidades de resposta dependendo da interpretação do poema: “Vila Rica vil e rica” pode ser um vocativo servindo como interlocutor do eu lírico; ou, considerando-se o verbo ser subentendido — “Vila Rica, (és) vil e rica” —, Vila Rica seria o sujeito e vil e rica, o predicativo do sujeito. Considerações finais Tendo-se em conta o lícito reconhecimento de que o ensino de LP precisa de mudanças; de que se deve refletir cientificamente sobre a linguagem para “construir, e não reproduzir conhecimentos”, como diz Geraldi; de que o que se deve buscar é o “desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos”, para usar as palavras de Travaglia, podemos perceber que alguns caminhos já começaram a ser apontados. Se o texto é único como enunciado, mas múltiplo enquanto possibilidade aberta de atribuição de sentidos; se a escola deve garantir o exercício de uso amplo da linguagem no seu espaço; e se há um interesse em renovar o ensino de LP, modificando, diversificando e ampliando o ponto de vista sobre seu objeto de estudo, exercícios como os analisados neste artigo — que priorizam a função dos termos estudados para somente depois chegarem às suas nomenclaturas; que mostram a forma (o estilo do autor) reforçando o conteúdo; que convidam Nas fronteiras da linguagem ǀ 434 o aluno a ser copartícipe do processo de construção de sentido(s) para o texto; que associam os recursos linguísticos à sua capacidade de potencializar significados em uma situação específica de interação; que refletem sobre como as variedades linguísticas reconstroem sentidos usuais; que exigem que os alunos recuperem (ou criem) a situação em que provavelmente os textos analisados foram enunciados; que mostram como a colocação dos termos na frase não é aleatória, mas depende da intenção do locutor; que exploram a relação “função sintática x sentido”; que relacionam os aspectos textuais aos contextuais; que remetem ao conhecimento de mundo do estudante; que pedem justificativas semânticas para um fato sintático; que dão margem a interessantes debates em sala de aula — parecem ser um bom começo. Referências CEREJA, William Roberto. Ensino de Língua Portuguesa: entre a tradição e a enunciação. In: HENRIQUES, C. C.; PEREIRA, M. T. G. (orgs.). Língua e transdisciplinaridade: rumos, conexões, sentidos. São Paulo: Contexto, 2002, p. 153-160. CEREJA, William Roberto; MAGAHÃES, Thereza Cochar. Gramática reflexiva: texto, semântica e interação. São Paulo: Atual, 1999. _______. Gramática reflexiva: texto, semântica e interação. 4. ed. São Paulo: Atual, 2013. GERALDI, J. W. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática. 14. ed. São Paulo: Cortez, 2009. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 435 AS VOZES DISCURSIVAS NO DEPOIMENTO DE PEDRO BARUSCO NA CPI DA PETROBRAS [Voltar para Sumário] Brwnno Gabryel de Araújo Silva Rosilene Felix Mamedes Introdução Este artigo tem como objetivo analisar o depoimento dePedro Barusco ( ex-gerente da PETROBRAS), na CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) , em 10 de março de 2015. Neste depoimento podemos perceber as várias vozes discursivas presentes nos enunciados e, como a interação verbal apresenta-se de forma dialógica neste discurso. Para este trabalho nos deteremos em fragmentos que têm como sujeitos da enunciação o depoente Pedro Barusco, o Presidente da mesa e o Relator da CPI. Para isso, buscaremos compreender o processo da enunciação a partir da óptica dialógica de Bakhtin em que a linguagem é processada a partir de vários discursos, dialogando com o contexto enunciativo refletindo e refratandodiscursos, que se materializam apenas e somente na enunciação linguística. Como marco teórico abordaremos as contribuições de Bakhtin, no que tange à noção de sujeito discursivo, interação dialógica, responsividade entre os envolvidos na enunciação. Como corpus para a nossa análise utilizaremos alguns fragmentos do depoimento de Pedro Barusco, mais precisamente os fragmentos e as inconsistências na limitação do período em que iniciou os repasses de propinas na PETROBRAS. Para desenvolver este artigo elegemos como objetivo geral investigar como se processa a interação argumentativa entre os sujeitos envolvidos (Pedro Barusco e os parlamentares que fazem a sabatina na CPI da PETROBRAS. Os objetivos específicos serão: Transcrever fragmentos do depoimento para análises discursiva; Capturar os discursos dos sujeitos envolvidos na situação enunciativa e seus posicionamentos ideológicos partidários ou não; Compreender como se processa a dialogicidade no processo enunciativo. Nas fronteiras da linguagem ǀ 436 Como percurso metodológico primeiramente optamos portranscrever o depoimento e, em seguida delimitar os fragmentos para as nossas análises. Após este primeiro momento, elegemos as categorias de análises epor último, confrontamos as nossas análises com as categorias da análise dialógica de Bakhtin. Tendo em vista a necessidade de constantes leituras e reflexões sobre interação verbal, discurso e sujeitos, optamos pela teoria do dialogismo e interação verbal, alicerçando nosso do aporte teórico, em Bakhtin e suas contribuições linguísticas. Um olhar teórico A linguagem e sua relação com o social teve espaço a partir da publicação de Marxismo e filosofia da linguagem de Bakhtin/Volochinov, em 1929. Nesta obra podemos encontrar, dentre outras questões, a teoria da linguagem sob a ótica da interação verbal em que os discursos acontecem em situações concretas a partir de contextos situacionais e de interações dialógicas. Ao delimitar a linguagem como objeto de estudo específico, Bakhtin observa que os estudos linguísticos foram orientados durante décadas por duas correntes principais, o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato. Dentre os conceitos-chaves de Bakhtin, nos deteremos neste artigo a discutir os princípios da interação e do dialogismo a partir do depoimento de Pedro Barusco, na CPI da lava-jato. No subjetivismo idealista o indivíduo é autônomo e possui o poder de criar, partindo do interior para o exterior, assim, a linguagem está situada no ato da fala, de modo que nesta perspectiva a interação na linguagem é totalmente anulada. Já no objetivismo abstrato “é o domínio da estrutura linguística sobre o sujeito”1, neste prisma a língua é acabada, dentro de si mesma. Nesta óptica, os estudos da linguagem e do discurso alicerçados em Bakhtin têm uma variedade de adequações, “porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo”. (BAKHTIN, p. 262, 2006) A palavra enquanto signo ideológico traz um caráter social impregnada de sentidos, atribuindo aos sujeitos discursivos múltiplas possibilidades enunciativas. Sendo assim, “ as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios”. (BAKHTIN, p. 42, 2006) Desta forma, se perfaz presente tal adequação ao cenário jurídico, onde o discurso, composto sempre por acusação e defesa, ambos na busca da aceitação de uma tese, finca-se 1 Revista Eletrônica do netlli, Vol: 2, 2013. III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 437 em outros discursos das mais distintas esferas sociais, por meio de interações sociodiscursivas, baseando-se em interações enunciativas. . Assim, para Bakhtin (p. 123, 2006), A verdadeira substância da língua é constituída, pelo fenômeno social da interação verbal, realizada por meio da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. Desta maneira, para o autor a língua (gem) passa a ser concebida como algo essencialmente social, ou seja, a língua como faculdade humana só efetiva-se em momentos reais de enunciação a partir de momentos de trocas dialógicas. A partir da reflexão bakhtiniana sobre a linguagem, esta passou a ser vista como lugar de interação social, sendo parte desta dialogicidade: as condições do discurso e as esferas sociais que se inserem o enunciado. Da mesma forma, é de fundamental relevância a relação entre o Eu e o Tu (outros), assim, para falar em discurso ou sujeito sob a óptica de Bakhtin é necessário, antes de mais nada, levar em consideração as condições discursivas existentes. Desse modo, os discursos estão sempre entrelaçados por outros discursos, pelo que espero do outro, pelo que o outro agrega aos nossos discursos, sendo a dialogicidade uma cadeia de interação que perpassa o diálogo apenas de complementação, como afirmaBakhtin “ a palavra é prenhe de respostas...” Para ele a língua é “fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ...” (BAKHTIN, 1929, p. 127). Sendo assim, na esfera jurídica não é diferente, o discurso é moldado por um estilo próprio já que é uma das esferas sociais, em que se insurge o contexto social somado ao uso concreto da língua, numa busca, em que o meio de comunicação e a enunciação são essenciais para o alcance da interação verbal, ora estudada no presente artigo. Observemos ainda, que na seara jurídica tal interação e compreensão são imprescindíveis para criação de um contexto responsivo entre os participantes. Desta forma, a verdade perseguida é extraída através da interação verbal observada entre os sujeitos enunciativos,em que o aspecto dialógico linguístico faz-se presente nas colheitas de declarações, seja daquele que se encontra denunciado (réu- testemunha do caso da CPI), no caso, o Srº Pedro Barusco, que tem a obrigação de externalizar a verdade. Nestes enunciados é observada a diferença cultural, ideológica e intelectual existente entre as testemunhas que instruem determinados processos judiciais, interagindo com o discursoe contribuindo com o processo a partir de suas declarações. Nas fronteiras da linguagem ǀ 438 Diferentemente de Saussure, que optou pelo estudo da língua, concebendo os signos como arbitrários, para Bakhtin, os signos são criados em ambientes sociais e estão relacionados com o social. Em outras palavras: Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer esta realidade, ser-lhe fiel ou apreendê-la de um ponto de vista específico (BAKHTIN, 2006, p. 32). Para o autor, o “signo” não é mais visto como algo inerte, estático, não mais abstrato; a língua (gem) é dialética, viva e dinâmica. Para ele, “tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo” (BAKHTIN, 2006,p.32). Outro conceito abordado por Bakhtin é a noção de consciência que é impregnada do conteúdo ideológico. Em outras palavras, tudo que é ideológico é um signo. Ainda, sob esses princípios, os signos estão intrinsecamente atrelados ao mundo exterior e tudo que os cercam. Desse modo, em Bakhtin, o sujeito, o “eu”, relaciona-se com o “outro” por meio da interação social. Essa relação social, também chamada de relação dialógica do eu-tu, apontada por Bakhtin. Para Bakhtin (2006, p.16), a palavra é por excelência impregnada de ideologia, sendo a responsável pelo registro das variantes sociais. Assim, se a língua é determinada por ideologia/consciência, o pensamento é condicionado pela linguagem e modelado pela ideologia. Para o autor um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural e social), sendo assim, ele reflete e refrata outra realidade, que lhe é exterior. Desse modo, a palavra é provida de supremacia dialógica, sendo “o modo mais puro e sensível da relação social” (BAKHTIN, 2006, p.36). Assim, na dialogicidade, à medida que a palavra é pronunciada pelo enunciador, ela sofrerá transformações realizadas a partir do meio social em que esse enunciado está sendo emitido, logo, o seu valor ideológico também será modificado. A partir desse prisma percebemos que o meio social é de suma importância, para as discursões sobre linguagem, tendo em vista que é exatamente neste âmbito em que a fala (linguagem) sofre interferência de aspectos externos no gênero, que neste caso, destacamos o depoimento como estrutura textual, com linguagem dialógica em que ao mesmotempo em que o depoente faz as suas declarações, ele dialogo com o discurso no momento exato da interrogação, bem como com os sujeitos envolvido no discurso, e ainda há o ato dialógica da memória do ato enunciativo em questão. “[...]a diversidade desses gêneros é determinada pelo fato de que eles são diferentes em função da situação, da posição social e das relações pessoais de reciprocidade entre os participantes da comunicação”. (BAKHTIN, p. 283, 2006) III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 439 Neste caso, podemos perceber que o tom discursivo, entendido aqui, como o ato da fala, marcará não apenas a enunciação, como a forma de dizer, como dizer, e principalmente demarcará a posição do sujeito discursivo. Em outras palavras, a partir dessa perspectiva dialógica da palavra, a teoria bakhtiniana dos gêneros discursivos coloca o texto/enunciado discursivo como fator social, sendo cada vez menos propícia à individualidade da linguagem, com exceção do gênero do discurso que exige uma forma padronizada em muitas modalidades, como, por exemplo, os documentos oficiais de ordem militar. O autor ainda acrescenta que os sinais individuais não fazem parte do plano discursivo “os enunciados e seus tipos são, isto é, os gêneros discursivos, são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem”. (BAKHTIN, 2006, p. 268). A linguagem vista nessa perspectiva mostra-se como lugar de interação entre sujeitos, estabelecendo entre eles relações de dialogicidade que favorecem o a interação discursiva entre o Eu-Outrem. Assim para a análise do discurso jurídico, nos respaldaremos na terceira concepção da linguagem, a qual possui uma maior relevância dentro das propostas dos enunciados linguísticos, já que, nela, a língua é concebida como um fenômeno interacionista, e a linguagem é entendida como um fenômeno dialógico passível de flexibilidade. Desta forma, a linguagem é um fenômeno interacional em que os indivíduos se comunicam a partir de determinadas escolhas linguísticas, tendo como foco a produção de discursos que dependerá sempre do meio em que este será pronunciado. Ou seja, os discursos sofrerão sempre influência do falante e do meio que este se insere, além da situação sóciocomunicativa em que o discurso será produzido. Por este motivo, em todas as esferas sociais comunicativas há um discurso próprio, que é moldado pelo meio, pelas ações externas a ele, pelas ações individuais dos sujeitos,e pela própria condição enunciativa que exige discursos mais ou menos formais, adequados às situações. Desse modo, no contexto sociodiscursivo jurídico não é diferente, pois há uma estrutura fixa, com uma linguagem específica que precisa ser seguida. Assim, na escolha do nosso corpus temos dois textos, que seguem a estrutura fixa de dois gêneros distintos, porém seguindo a mesma esfera social, que é a jurídica. A respeito do domínio da estrutura enunciativa do gênero Bakhtin (1992, p.302) afirma que: “as formas da língua e as formas típicas de enunciados, isto é, os gêneros do discurso, introduzem-se em nossa experiência e em nossa consciência conjuntamente. (...) Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados (porque Nas fronteiras da linguagem ǀ 440 falamos por enunciados e não por orações isoladas e, menos ainda, é óbvio, por palavras). Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a organizam as formas gramaticais (sintáticas). Aprendemos a moldar nossa fala às formas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras palavras pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (extensão aproximada do todo discursivo), a dada estrutura composicional, prever-lhe o fim, ou seja, desde o inicio, somos sensível a todo discursivo que, em seguida, no processo da fala, evidenciará suas diferenciações. Se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível.” Segundo o autora linguagem reflete e refrata o social. Consequentemente, Bakhtin atribui ao texto um patamar que passa a ser visto como um objeto concreto, partindo do uso real que o falante faz da enunciação e do discurso como um todo. Marcuschi (2008, p. 76) aponta que o texto é resultado de uma ação linguística cujas fronteiras são em geral definidas por seus vínculos com o mundo no qual ele surge e funciona. Para o autor, o texto é um tecido estruturado, uma entidade significativa, de comunicação e um artefato sócio-histórico. O autor, ao retomar a teoria de Bakhtin sobre refração da linguagem, por analogia, diz que o texto “refrata” o mundo que o “reordena e o reconstrói”. Assim, o texto só fará sentido dentro de um contexto social, já que ele é o reflexo de uma ação conjunta, sendo sempre passível de modificações, pois um texto nunca está acabado, o falante sempre poderá reconstruí-lo, atribuindo-lhe um novo significado e reordenando-o de acordo com o contexto enunciativo. Assim, como afirma Bakhtin: “a relação orgânica e indissolúvel dos gêneros se revela nitidamente também na questão dos estilos de linguagem ou funcionais. No fundo, os estilos de linguagem ou funcionais não são outra coisa senão estilos de gênero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicação2”(2006, p.266.) Na citação acima, o autor afirma que os gêneros possuem características “indissolúveis”, portanto o estilo está relacionado não apenas com o gênero, mas com as condições estruturais e sociais por ele, estabelecidas. Assim, em nosso corpuspodemos apontar que os discursos estão entrelaçados por várias outras vozes, que interferem A seguir nos deteremos a fazer as análises do nosso corpus a partir da óptica da interação verbal edo discurso Linguagem de Bakhtin. 2 Grifo nosso. apontados em Estética da Criação Verbal e Filosofia da III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 441 Análise de dados: o discurso político-jurídico e linguagem Para corpus do nosso artigo, escolhemos um auto de qualificação e interrogatório em que tem como objetivo qualificar e descrever o objeto da acusação. Como forma de analisar o corpus, iremos transcrevê-lo fragmento do discurso, para posterior análises. Fragmento 1: PEDRO BARUSCO: Então vou falar um pouquinho da trajetória para chegar nesse momento. Eu ingressei na Petrobras em 79 por concurso público. E sou engenheiro naval de formação acadêmica, e eu fui, eu inicialmente optei, depois do curso de formação, eu optei por trabalhar no centro de pesquisas. Onde eu fiquei por 15 anos.[...]. E no departamento de exploração e produção eu cheguei até gerente de produção interino. Subi mais um grau na carreira. Fiquei interino durante uns seis meses. E em 2003 eu fui convidado pra ser gerente executivo de engenharia na diretoria de serviços. No primeiro fragmento, podemos perceber a preocupação do depoente em se colocar como um profissional qualificado, livre se suspeitas para indicações a cargos políticos, uma vez que, segundo o depoente o seu cargo foi conseguido com esmero e qualificação profissional. Ao final deste fragmento o Sr Pedro Barusco, afirma que “em 2003 eu fui convidado pra ser gerente executivo de engenharia na diretoria de serviços.”A partir deste modo, destacamos alguns fragmento que o depoente ao ser indagado, há a presença de distorções nas suas afirmações, demonstrando oscilações nas suas afirmações e reiterações discursivas. Ao longo da explanação do ex-gerente da PETROBRAS, nos deteremos neste trabalho, a analisaras inconsistências do seu discurso em delimitar o período temporal do início de quando começou a receber a propina. Vamos analisar o fragmento abaixo: Fragmento 2: PEDRO BARUSCO: Como faz parte do meu termo de colaboração, né? Eu iniciei a receber a propina em 97/98, não é? Foi uma iniciativa pessoal minha junto com o representante da empresa. Eu descrevo no meu depoimento esta trajetória. E vou reiterar o que está dito no depoimento, né? Agora de uma forma mais ampla, como vossa excelência mencionou, em contato com outras pessoas da Petrobras, de uma forma mais institucionalizada foi a partir de 2004. 2003… 2004… eu não sei precisar exatamente a data, foi mais a partir dali. RELATOR : Quer dizer que do ano de 97, quando você afirma que começou a receber estes ilícitos, você era o único que recebia? Só… ... PEDRO BARUSCO: Olha sobre esta questão existe uma investigação em curso. Eu sou investigado. Então, eu até assim selecionei esta parte aqui do meu depoimento. Eu acho que vou me deter ao depoimento. Eu não vou aprofundar estas questões que estão no meu depoimento por está ocorrendo uma investigação. Então, é… eu reitero o que eu já falei no depoimento da minha colaboração com a justiça Nas fronteiras da linguagem ǀ 442 No fragmento 2, observa-se que o Relator indaga o depoente sobre suas participações na corrupção da Petrobras, buscando compreender o contexto histórico da gênese deste fraude. Neste primeiro momento, o depoente se exime da reposta, alegando que isso já consta do depoimento. Entretanto, mesmo demonstradoa fragilidade discursiva perante à veracidade da sua resposta, claramente apresentada pelo modalizador “eu acho”, ao final do fragmento, o depoente retoma a fala do Relator e confirma a afirmação que tudo começou em 97/98. Como podemos ver em “Então, é… eu reitero o queeu já falei no depoimento da minha colaboração com a justiça” Ainda, sobre o fragmento destacamos o uso do “então, é...” como forma conclusiva, e de modo que o sujeito do discurso mostra-se concordar com o que está sendo indagado, entretanto, como valor semântico-discursivopercebemos que o sujeito encontra-se um tanto perturbado com as indagações. Fragmento 3: PEDRO BARUSCO: Agora nós estamos nos remetendo a um outro assunto, que é a questão de sondas. Isto é fato. O serviço de perfuração na Petrobras, ele sempre foi realizado por empresas de perfuração, muitas delas estrangeiras, mas existem algumas brasileiras, e a Petrobras sempre contratou estas sondas. [...] E o serviço de sondagem sempre foi dominado por estas empresas. Até o ponto, eu acho que foi mais ou menos em mil. Não, 2007/2008. Até o ponto que, com a crescente demanda, chegou uma demanda na diretoria executiva pra contratar se eu não me engano. Se não estou errando com a memória. Dezoito sondas ao mesmo tempo. Foi aí que isto chamou atenção. Porque até então as sondas eram colocadas homeopaticamente... Eu acho que ainda era a presidente Dilma a ministra de minas e energia. E houve ação natural, ou uma ação contrária tentando fazer estas sondas no Brasil. E isto foi a criação da Sete Brasil. No fragmento 3, destacamos expressões modalizadoras “eu acho” e o “até então” como formas imprecisas, deixando margens de dúvidas no seu discursos, mas no segundo caso, percebe-se o oSr Pedro Barsuco, mais uma vez retoma o período histórico anterior a data que ele afirma. Desta forma,o “sujeito discursivo” coloca o seu enunciado de forma dialógica não apenas com as suas memórias e com a responsividade ideológica da linguagem, mas de modo que o “ eu acho”, faz com o sujeito seja eximido na veracidade do seu discurso, gerando assim, margens de dúvidas. Aqui, temos o caráter das modalidades discursivas, em que o marcador discursivo marca o posicionamento do sujeito. Após longo período do depoimento, o Relator mais uma vez retomao período em que se iniciou as propinas na PETROBRAS, afirmado que estava em suas mãos a versão que foi III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 443 exposta pela mídia, e que era preciso o depoente, Sr Paulo Barusco se posicionar sobre o assunto de forma oficial. Vejamos os fragmentosretirados do discurso. Fragmento 4: RELATOR : Mas em relação, ainda voltando, às propinas recebidas em 97 ou 98 da empresa holandesa SBM, você reafirma que já naquele período estava recebendo recursos ilegais dos contratas dos quais vossa senhoria fazia a intermediação? PEDRO BARUSCO: Não… olha… eu vou reiterar o meu depoimento… RELATOR : Não, mas o que ocorre é o seguinte que o que temos é uma versão. A versão não dar… porque não é um documento que chegou às nossas mãos aqui oficialmente. É uma versão que está distribuída na mídia. A pergunta é se você reafirma isto como verdade. PEDRO BARUSCO : Ué, eu reafirmo. Está escrito aqui. Eu reafirmo. É a minha versão. É a minha verdade. É o que aconteceu. Nos fragmentos acima o Relator retoma o período que se iniciou as propinas recebidas pelo Ex-gerente da PETOBRAS, Pedro Barusco, e afirma a necessidade de um posicionamento oficial. O ex-gerente, por sua vez,reitera o seu depoimento, ou seja, afirma com o seguinte fragmento “Ué, eu reafirmo. Está escrito aqui. Eu reafirmo. É a minha versão. É a minha verdade. É o que aconteceu.” Neste momento, da enunciação concordamos com Bakhtin, quando aborda a situação social da enunciação, tendo vista, que mesmo havendo uma série de inconsistências em seu discurso, que ora afirma um momento histórico, ora remota a período anteriores a era PT, o que podemos afirmar é que essas inconsistências podem ter sido geradas ou por pressão psicológica, causada pela própria estrutura enunciativa, em que o sujeito se sente acuado, ou o sujeito ao tentar esquivar-se ou apontar culpados demonstra fragilidade e inconsistência nas suas declarações, e por isso há lacunas e falhas enunciativas. A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir de seu próprio interior, a estrutura da enunciação. Na verdade, qualquer que seja a enunciação considerada [...], é certo que ela, na sua totalidade, é socialmente dirigida. (BAKHTIN, p. 113) Fragmento 5 PEDRO BARUSCO: Não, eu já falei, eu comecei em 97/98. Uma atitude isolada, né? Já detalhei até onde eu poderia detalhar sob já a investigação. E a partir de 2003 e 2004, houve uma fase onde estava institucionalizada este recebimento de propina, tá? Eu só sei isto. Eu não sei mais nada. Eu não sei dizer quem participou. Quem participou. Quem não participou. Nas fronteiras da linguagem ǀ 444 Para finalizar a nossa análise, buscamos um fragmento em que oex-gerente , Paulo Barusco, retoma o período anterior, a era LULA (PT) , entretanto, diz que nesse período ele era o sujeito (ativo) no processo das propinas de maneira individual, ou seja, aqui, o depoente inocenta o partido do PSDB, representado aqui, pelo Ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, e diz que de forma institucionalizada foi apenas após o PT na Presidência. Considerações finais Este artigo buscou discutir a importância da interação verbal, na esfera jurídica, a partir da óptica de Bakhtin. Compreendemos que o quão é relevante a discussão sobre linguagem, e como esta pode alternar-se e adaptarem-se nos mais diferentes contextos sociais. Percebemos que ao analisar o nosso corpus encontramos inúmeras vozes intra ou extra-discursiva, concordando com o que Bakhtin vai chamar de polifonia discursiva, assim, há duas formas de dialogismo;Em nosso corpus temos a presença de várias vozes, sejam de cunho políticos partidários, orientações políticas-ideológicas, diálogos com a responsividade discursiva seja no âmbito temporal, ou com os discurso que é muito mais amplo, do que o diálogo entre face a face. Desse modo, para este trabalho analisamos a interação verbale o dialogismo bakhtiniano em um corpus jurídico, buscando confrontar a situação comunicativa com a dialogicidade discursiva, tanto nos aspectos endofóricos ( intra-textual) como no exofóricos ( extra-