Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes
INTERPRETANDO O ESPAÇO NA LITERATURA DE TEMÁTICA HOMOERÓTICA:
DESEJOS ESCONDIDOS E SEXUALIDADES TRANSGRESSORAS
Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes (UEPB) 1
Introduzindo a questão
O
estudo do espaço na literatura, de uma maneira geral, revela que diversos
aspectos podem ser interpretados a partir deste marcador, que Dimas
(1987) denomina de armadilhas virtuais de um texto, uma vez que ele
define em muitas obras ou em gêneros específicos nuances
importantíssimas ao leitor atento. Além disso, problematizar os sujeitos ficcionais é também
perceber onde eles estão situados, relacionando assim o ser ao seu estar, de modo que
descobrir onde se passa uma ação, no plano da enunciação ficcional, e quais as eventuais
funções desse espaço no desenvolvimento do enredo e na interferência psíquica da
personagem, torna-se relevante à leitura da literatura de ficção.
A relação entre a construção do espaço ficcional e a temática homoerótica na literatura
constitui a problemática central deste ensaio. A literatura gay 2 – aquela em que se lê, no plano
geral da obra, a temática, a vivência e os desejos gays – será o ponto de partida dessa reflexão,
para observar em que aspectos os espaços nela construídos contribuem para interferir na
condição homoafetiva das personagens e suas relações, podendo caracterizar assim um gênero
literário específico como propõe Silva (2007b), dentre outros tantos elementos.
Trabalhamos com a hipótese de que, sendo a relação homoerótica concebida como
transgressora pelo discurso dominante, falocêntrico e heterossexual, e sendo esta relação
abordada de maneira central na literatura gay, os elementos espaciais refletem esse “desvio”,
configurando ambientes fechados e isolados que podem esconder as relações desviantes. Do
ponto de vista cultural, supomos que os espaços pelos quais deslizam as personagens reflitam
os desejos e a vivência dos sujeitos homoeróticos, de acordo com a época a que cada obra se
refere.
A reflexão sobre espaço e literatura é discutida a partir de Dimas (1987); Moisés (1981);
Schüler (1989); Soares (1993); Santos e Oliveira (2001) e Gancho (2006), no intuito de definir o
espaço ficcional e quais suas possíveis funções em um texto literário.
Primeiramente, apresentamos um breve panorama teórico da noção de espaço e as
variações semânticas vinculadas a ela, precisando assim a definição adotada neste trabalho. Em
seguida, discutimos sucintamente a questão do espaço ficcional na literatura homoerótica, aqui
tomada como corpus de análise: Bom-Crioulo (2002), de Adolfo Caminha; O segredo de
Brokeback Mountain (2006), de Annie Proulx; Outros sabores (2005), de Rafael Luz Serafim e
Sobre rapazes e homens (2006).
1
Graduando em Letras pela Universidade Estadual da Paraíba; bolsista do PIBIC/UEPB/CNPq.
E-mail: [email protected]
2
Partimos da concepção de literatura gay, principalmente, desenvolvida por Silva (2007a e 2007b) e das reflexões sobre o
homoerotismo na literatura, a partir de Barcellos (2006).
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O espaço ficcional: discutindo e delimitando conceitos
Espaço (físico, social, psicológico), ambiente e ambientação, são termos utilizados
pelos estudos literários para referir-se aos locais ficcionais, sobretudo nas narrativas.
Antonio Dimas (1987), em obra que trata especificamente dessa temática no romance,
faz referência ao espaço e à ambientação distintamente. O autor, ao discutir esse elemento a
partir de estudo de Lins (1976 apud DIMAS, 1987), afirma que o espaço é descrito como
fazendo referência a dados da realidade; já ambientação/ambiente faz menção aos significados
simbólicos que podem ser estabelecidos a partir dos filtros de cada texto. Ainda divide
ambientação em franca, reflexa e dissimulada, categorias sobre as quais não nos deteremos.
Concordando com Dimas (1987), Gancho (2006, p. 27) afirma que “O termo espaço, de um
modo geral, só dá conta do lugar físico onde ocorrem os fatos da história; para designar um
‘lugar’ psicológico, social, econômico etc., empregamos o termo ambiente”.
Os demais autores não fazem distinção entre espaço e ambiente, tomando-os como
sinônimos. Santos & Oliveira (2001) abordam o conceito de espaço a partir da perspectiva
determinista – que concebe apenas os componentes físicos e psicológico-social – na qual os
espaços são referentes aos lugares sociais representados e/ou à configuração de cenários
íntimos das mentes das personagens, embora aconselhem não reduzir o espaço a essas duas
perspectivas (uma, determinista; a outra, psicológica e social) que, por vezes, funcionam como
camisas-de-força, inflexibilizando, portanto, um maior aproveitamento do termo, uma vez que
ambas as perspectivas podem estar imbricadas ou até mesmo configurar como inseparáveis.
(SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p. 81)
Assim, semelhante à de Soares (1993), adotamos como definição de espaço ficcional o
conjunto de elementos paisagísticos em um texto literário, quer se apresente exterior e físico ou
interior e psicológico, onde são situadas as ações das personagens. Aqui, o conceito de espaço é
entendido de maneira generalizada e, partindo de uma percepção do espaço físico mediada por
valores, projetamos significados por meio de impressões culturais no intuito de, assim, tentar
inferir em que medidas os cenários guardam tocaias 3 na construção das obras de temática
homoerótica, estudadas neste ensaio.
As funções desse elemento, de maneira geral, para os autores consultados, são situar as
personagens no tempo, no espaço, no grupo social; ser a projeção dos conflitos vividos pelos
sujeitos ficcionais ou estar em conflito com os mesmos; bem como fornecer indícios para o
andamento do enredo, principalmente em narrativas policiais (Cf. GANCHO, 2006, p. 29).
Todavia, Dimas (1987) adverte que toda tipologia literária deve ser vista com extremo
relativismo, uma vez que podemos encontrar várias modalidades de apresentação espacial, às
vezes dispersas ao longo das páginas, às vezes de modo contíguo, quando não mesclado,
cabendo a nós, leitores, detectá-las e avaliá-las em sua funcionalidade (DIMAS, 1987, p. 32).
Sabemos que a geografia literária é discutida com relevância nas narrativas. Na poesia,
não há, a rigor, a preocupação analítica com esse marcador “típico” da prosa, salvo quando este
aparece como “a natureza”, e na poesia épica, segundo Moisés (1981, p. 44-5). Esse mesmo
crítico ainda afirma que “A poesia não remete para lugar algum, nem se situa em espaço algum:
3
Termo utilizado por Dimas (1987) para designar o que ele também chama de “armadilhas virtuais de um texto”.
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é a-geográfica”. Moisés (1981, p. 44). Todavia, no que tange à questão de limites de análise do
texto literário em prosa ou poesia, concordamos com a afirmação de Santos e Oliveira (2001),
que ampliam e flexibilizam as possibilidades da interpretação:
No texto literário, tanto em formas poéticas quanto em formas narrativas, é possível
simular simultaneidade onde normalmente se encontra sucessão, propor a
coordenação de elementos a princípio subordinados, instigar derivas nos caminhos
já traçados, incerteza onde há normas a serem respeitadas, liberdade de olhar
quando o olhar tende a ser aprisionado. (SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p. 77-8)
Dessa forma, atentamos para o fato de que em alguns poemas de Rafael Luz Serafim
(2005) há menções diretas a espaços que servem de pano de fundo aos desejos do sujeito
poético. Seja uma padaria, um encontro no shopping ou no interior de um ônibus, alguns
poemas nos remetem a espaços físicos, o que nos fez observar os cenários descritos nestes
poemas, ainda que contrariem regras de estudos de análise literária, que resistem a tratar os
ambientes representados no poema.
Homoafetividade em Bom-crioulo
A narrativa Bom-Crioulo (2002) de Adolfo Caminha, publicada em 1895 e inscrita na
história da literatura sob rótulo naturalista, é considerada o primeiro romance de tema
exclusivamente homoerótico da literatura brasileira (sem querer relegar a discussão de outras
questões socioculturais presentes na obra). Nessa obra, o homoerotismo masculino é o motivo
através do qual se estrutura todo o relato. O negro Amaro (vulgo Bom-Crioulo, p. 52) e o
grumete Aleixo, protagonistas da narrativa, vestem os uniformes da marinha nacional e ocupam,
sobretudo, dois espaços marcantes na obra: a corveta – cenário cuja descrição abre o romance e
onde se inicia a paixão de Amaro por Aleixo e subseqüente relacionamento – e o quarto da Rua
da Misericórdia – lugar onde se desenvolve a relação desses dois marujos, apontando para
diferentes aspectos semânticos de acordo com a evolução do enredo.
A corveta, “a velha e gloriosa corveta” (p. 13), como assim descreve o narrador, é o
cenário central onde se passa a fábula. Conhecemos as personagens nesse espaço. Amaro –
escravo fugido que encontrou sua liberdade ao servir a Marinha – permanece na embarcação e
passa a associar o lugar à sua liberdade, lembrando sempre da corveta, atribuindo-lhe boas
referências. A vida em alto mar, a chegada de Aleixo e a paixão avassaladora que desperta em
Amaro constituem relatos ocorridos na corveta, que funciona para Bom-Crioulo como o cenário
de mudança de vida, um lugar de recomeço.
É importante ressaltar que apesar de a influência do meio sobre o indivíduo ser uma
característica do romance realista-naturalista, na obra de Caminha o homoerotismo de Amaro
não é colocado pelo narrador heterodiegético como fruto de uma influência do ambiente em
que a personagem vive. Embora se mencione a prática de relações entre marujos (e até entre
superiores), a identidade de Amaro não atravessa essas práticas, sendo sua condição
homoafetiva apresentada enquanto “força da natureza”, pois “Não havia jeito, senão ter
paciência, uma vez que a natureza impunha-lhe esse castigo”. (CAMINHA, 2002, p. 46),
limitando a causa do seu desejo homoerótico ao fator instintual.
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A relação de Amaro e Aleixo se consuma com o primeiro contato sexual dos marujos, no
convés da corveta, em uma área coberta do navio, onde dormiam e se refugiavam do frio: um
lugar escuro, escondido, que abrigou o “delito contra a natureza”, fato importante para ambas as
personagens: “Onde quer que estivessem haviam de lembrar daquela noite fria dormida sob o
mesmo lençol na proa da corveta, abraçados, como um casal de noivos em plena luxúria da
primeira coabitação”. (CAMINHA, 2002, p. 46)
Antes desse momento, já fazia parte dos planos de Bom-Crioulo alugar, quando
aportassem no Rio de Janeiro, um quarto na Rua da Misericórdia para morarem juntos. Quando
chegam a terra, recorrem à portuguesa D. Carolina, amiga antiga de Amaro, que alugava quartos
na citada rua e que arranja um quartinho a pedido do amigo:
O quarto era independente, com janela para os fundos da casa, espécie de sótão
roído pelo cupim e tresandando a ácido fênico. [...] Todo o dinheiro que apanhava
era para compra de móveis e objetos de fantasia rococó, “figuras”, enfeites, coisas
sem valor, muita vez trazidas de bordo... Pouco a pouco o pequeno cômodo foi
adquirindo uma feição nova de bazar hebreu, enchendo-se de bugigangas,
amontoando-se caixas vazias, búzios grosseiros e outros acessórios ornamentais. O
leito era uma “cama de vento” já muito usada, sobre a qual Bom-Crioulo tinha zelo
de estender, pela manhã, quando se levantava, um grosso cobertor encarnado
“para ocultar nódoas”. (CAMINHA, 2002, p. 54)
No trecho acima percebemos o cuidado da personagem Amaro para com o cômodo que
se tornou um “ninho de amor” entre ele e Aleixo, ninho cuja caracterização é bastante sugestiva:
conforme é comparado a um “sótão roído pelo cupim” e ornamentado com “objetos de fantasia
rococó”, “coisas sem valor”, “caixas vazias”, os elementos que compõem essa geografia ajudam a
inferir que o ambiente é tão sem propósito quanto à relação das personagens. A configuração
imagética desse ambiente parece confinar a relação à esquisitice, ao pouco valor, àquilo que é
somente “ornamental” e provisório, como são filtrados os objetos do quarto que abrigava o casal
gay.
Em terra, no quarto da Misericórdia, nem se falava! – ouro sobre azul. Ficavam em
ceroulas, ele e o negro, espojavam-se à vontade na velha cama de lona, muito fresca
pelo calor, a garrafa de aguardente ali perto, sozinhos, numa independência
absoluta, rindo e conversando à larga, sem que ninguém os fosse perturbar – volta
na chave por via das dúvidas... (CAMINHA, 2002, p. 55)
A referência ao espaço do quarto, que não por acaso é alocado na Rua da Misericórdia e,
por conseguinte, chamado pelo narrador de “quarto da Misericórdia”, é marcada de significados,
como o próprio termo traz em sua base semântica: de clemência, porque é o quarto da compaixão, onde ali, e somente ali os desejos de Bom-Crioulo eram atendidos, pois podia desfrutar
da beleza do jovem Aleixo, senti-lo como sempre o quis; ali eles estavam livres do mal da
repressão, independentes assim como “o quarto era independente” (p. 54). “Eles viviam um
para o outro” (p. 59), fato que cronologicamente durou quase um ano, restando daquele lugar a
lembrança de um cenário de amor, um lugar secreto onde a realização do desejo gay era
possível.
Conforme o romance se desenvolve, e novas tramas invadem o fato narrado, Bom-
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Crioulo é obrigado a deixar a corveta para servir em outro navio, o couraçado. Aleixo, já
entediado do negro, não sofre com a separação, e acaba se envolvendo com D. Carolina, que o
mimara na pretensão de conquistá-lo. Em suas vindas a terra, Aleixo não encontrava mais Amaro
(que estava preso), e o quarto da Rua da Misericórdia (antes, um ninho de amor) agora
configura um cenário repugnante e de más lembranças para o jovem marujo:
Como tudo mudara naquela casa depois que o negro saíra! O sótão, o misterioso
sótãozinho estava abandonado, Aleixo não queria saber dele, odiava-o, porque ali é
que se tinha feito escravo de Bom-Crioulo, ali é que tinha “perdido a vergonha”. O
pobre quarto era como um lugar de maldições: vivia trancado à chave, lúgubre e
poeirento. [...] o retrato do imperador, a cama de lona, os cacaréus, de BomCrioulo e do grumete, aquilo tudo que dantes fazia o encanto dos dois amigos
tinha desaparecido. Nada restava agora daquele viver comum. (CAMINHA, 2002, p.
95)
Dessa forma percebemos a corveta e o quarto da Misericórdia: espaços marcantes da
narrativa de Adolfo Caminha. Os cenários determinam como a relação dos protagonistas deve se
manter às escondidas nesses ambientes fechados e reservados, sobretudo o quarto da
Misericórdia, com sua aura de mistério e trancado à chave, ambiente que podia acolher
secretamente os desejos homoafetivos das personagens.
Espaços naturais em Brokeback Mountain
Já O segredo de Brokeback Mountain (2006), de Annie Proulx, deixa entrever no título
o espaço que dá vida ao amor dos vaqueiros Ennis del Mar e Jack Twist: a montanha Brokeback.
No conto norte-americano, o narrador menciona diversos lugares do oeste dos Estados Unidos,
a procedência dos personagens, por onde eles passam, marcando cronologicamente o tempo.
Foi em 1963 que os protagonistas se conheceram, foram contratados para cuidar de um
rebanho de ovelhas e o pasto de verão ficava na montanha Brokeback (PROULX, 2006, p. 8).
Eles exerciam funções diferentes, um cuidava das ovelhas, o outro, da comida em um
acampamento. Numa noite, motivados pelo abuso de bebida alcoólica, dormem juntos, ocorre o
contato sexual, o primeiro de muitos que embalariam aquele verão num vasto local isolado.
Como de fato foi. Eles nunca falavam sobre sexo, deixavam acontecer, a princípio
só na barraca à noite, depois em plena luz do dia com o sol batendo, e à noite no
clarão do fogo [...] Só havia os dois na montanha pairando no ar eufórico e amargo,
olhando de cima o dorso da águia e os faróis rastejantes dos veículos na planície,
suspensos acima dos assuntos corriqueiros e longe dos mansos cachorros de
fazenda que latiam quando escurecia. Eles se achavam invisíveis [...] (PROULX,
2006, p. 20)
Após deixarem a montanha, as personagens se separam, reencontrando-se quatro anos
depois, para se manterem unidos, embora os encontros íntimos não acontecessem
freqüentemente, e, quando ocorriam, eram lugares isolados ou como Ennis disse “num fim de
mundo...” (p. 38), devido às circunstâncias socioculturais em que estavam inseridos. Os espaços
rurais e as belas paisagens que são descritas dos lugares por onde Ennis e Jack passam em seus
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encontros configuram o que Dimas (1987) e Moisés (1981) denominam Lócus amoenus,
expressão latina utilizada pra classificar paisagens naturais como esta:
O rio cor de chá corria veloz com o degelo da neve, uma faixa de bolhas nas rochas
altas, lagos e rodamoinhos fluindo. Os salgueiros de galhos ocre balançavam
rígidos, os amentos carregados de pólen qual impressões digitais amarelas. Os
cavalos beberam e Jack apeou, apanhou um pouco de água gelada com a mão,
gotas cristalinas pingando dos dedos, um brilho molhado na boca e no queixo.
(PROULX, 2006, p. 46)
A configuração do espaço na obra de Annie Prouxl revela tão somente aquilo que o
título traduzido remete, um segredo. Os protagonistas refugiam-se em um paraíso natural,
construído sob uma geografia composta por montanhas, campinas, bacias hidrográficas; e,
apesar de serem espaços abertos, ao ar livre, os vaqueiros atravessavam esses cenários com o
objetivo de esconder a relação homoerótica, de poder, num lugar afastado de todos (por conta
do medo, do preconceito), viver o desejo sentido por eles. Além disso, a montanha Brokeback
torna-se, especialmente, símbolo do amor entre os dois, o começo de tudo, o desejo de Jack
que, ao morrer, pede para suas cinzas serem espalhadas lá; e a eterna lembrança de um cartão
postal da montanha, que Ennis guarda como recordação do amor dedicado ao “amigo”.
Os espaços urbanos de Outros sabores
Dos poemas de Rafael Luz Serafim (2005), nove nos chamaram atenção porque fazem
menção a espaços, sejam eles lugares reais como cidades e estados brasileiros (é o caso dos
poemas Reencontro na Cidade Baixa, Aprontes em Fortaleza e Onde estará meu amor?) ou a
determinados cenários como um shopping center, um cinema, que funcionam como pontos de
encontro do sujeito poético com outros com quem se relaciona (é o caso do poema Crônica do
Bate-Trapo, que remete também ao espaço virtual do chat).
É preciso salientar que os espaços, nesses poemas, não são descritos, eles são apenas
mencionados de modo a servirem de pano de fundo aos desejos expressos pelo sujeito poético.
No poema Padeiro safado, quando lemos o primeiro verso, temos: “Nunca imaginei gostar
tanto de uma padaria [...]” (p. 100); ou ainda na primeira estrofe no do poema Roça-roça no
Buzão:
ônibus lotado é o que há
quando passa aquele gatinho por detrás de você
aquele aperto gostoso
aquele calor no pescoço
um roça-roça tudo de bom! (SERAFIM, 2005, p. 98)
Ou ainda na segunda estrofe do poema No vestiário:
[...]
no vestiário
compartilhamos o mesmo armário
mantemos contato físico intenso... às escondidas [...] (SERAFIM, 2005, p. 94)
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Esses trechos remetem a ambientes físicos que atravessam o desejo expresso nos
poemas, porém neste último, além da referência ao espaço do vestiário, há menção ao espaço
psicológico, o armário, que pode significar a impossibilidade de o sujeito assumir a condição
gay, como bem apresenta Bachelard (1988, p. 91) “o espaço interior do armário é um espaço de
intimidade, um espaço que não se abre para qualquer um” (grifo nosso); então, no poema, a
relação se dá secretamente, pois ambos os indivíduos estão presos ao armário, à não-aceitação
plena da orientação sexual que os determina culturalmente como sujeitos, a ambigüidade
expressa pelo verso “compartilhamos o mesmo armário” nos permite assim interpretar que os
sujeitos mantêm secretas suas identidades e relação. Essa imagem também é mencionada no
poema Saindo do armário, no qual é expressa a insatisfação e o incômodo do eu-poético em
não conseguir se libertar, se assumir, enfim, “sair do armário”:
Quem são meus cicerones?
Sinto-me um hóspede de mim mesmo
Um estranho, em recluso
Num claustro absurdo
Cadeado no peito!
Fecho-me a todos os tipos de emoções
O que será que eu desejo?
[...]
Do cabide faço meu páreo
Tenho que sair do armário! SERAFIM (2005, p. 57)
Outros sabores (2005), por questões de estilo do autor ou motivos que referendam a
escrita do sujeito, aborda questões contemporâneas relativas aos sujeitos gays: reivindicações,
desejos e comportamentos, portanto a linguagem, os termos e os ambientes refletem essa
emergência de uma cultura, de uma vivência específica, com os dilemas, conquistas e desgraças
dos indivíduos de sexualidade divergente da heteronormatividade ainda considerada “modelo”.
Espaços que falam sobre rapazes e homens
Sobre rapazes e homens (2006), de Antonio de Pádua Dias da Silva, é uma obra
composta por catorze contos curtos que abordam, através da linguagem do corpo, do desejo e
do erotismo, o que, nas palavras de Souza (2007, p. 390), “há de mais íntimo nas relações
homoafetivas de corpos e identidades marcadas pela homoafetividade”. Sabemos que a
circunstância espacial pouco conta em narrativas curtas como os contos dessa obra, segundo
Moisés (1981, p. 108); todavia, os cenários onde ocorrem, principalmente, as relações sexuais e
os jogos de desejos, em alguns contos revelam aspectos importantes à configuração do espaço
na literatura gay.
Superficialmente, a maioria dos contos nos remete a espaços, seja um quarto (em
Passional ao extremo) ou a descida à margem de um rio, onde as personagens quase não
podem ser vistas (em Agente da passiva), bem como a imagem de um poça que serve de palco
para a descrição de um estado depressivo (em Esquema D). Mas, em especial, três contos
configuram cenários similares: ambientes fechados, escondidos. Esses ambientes são mais bem
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descritos, se comparados com as demais narrativas da obra, deixando sugestivamente pistas que
são associadas ao espaço da vivência da relação homoerótica dos personagens, como discutimos
adiante.
Em Esquema F, os personagens (um homem e um garoto) encontram-se num espaço
fechado e escondido do olhar do pai do menino, que representa a repressão, os valores morais
que impedem o garoto de “travar-se” com seu objeto de desejo, o falo (SOUZA, 2007, p. 391).
Diante desse temor, o homem se reveste do papel do pai e ordena que o “molequinho gostoso”
(p. 74) o obedeça, “descendo sua boca ao pau dele” (p.74) e, assim, naquele ambiente, inicia o
enlace de desejo de uma relação aparentemente pedófila:
No espaço mais apertado daquela loja, no fundo, bem ao fundo, numa sala escura,
um pouco vazia, um pouco suja, um pouco úmida. Numa sala no fim daquela loja,
como vias de despejo, como acesso a expulsão de detritos Ele e ele. Ambos
navegando um barco cujo destino era um porto de sujeira. (SILVA, 2006, p. 76)
Nesse contexto, o “caráter” espacial parece determinar a relação homoerótica que ali se
desenvolve. O ambiente caracterizado como sujo e vazio permite a interpretação de que a
relação entre ambos recebe esse mesmo atributo negativo, “um porto de sujeira”. Após a relação
sexual, o estado da sala também é descrito negativamente pelo narrador: “No chão, uma porção
de bosta misturada a sangue e sêmen. O cheiro de merda já impregnava o ar daquele ambiente
[...]” (SILVA, 2006, p. 79). Em seguida, o homem e o menino são flagrados pelo pai do último; o
primeiro foge, deixando pai e filho em uma situação embaraçosa. Essa última descrição é
semelhante à de O segredo de Brokeback Mountain (2006), quando é narrado o estado do
quarto de motel, após o reencontro amoroso dos dois vaqueiros: “O quarto fedia a sêmen,
fumaça, suor e uísque [...]” (PROULX, 2006, p. 30).
Espaço recluso também é descrito em Esquema N. Dotado de anacolutos, o texto conta
de um rapaz que ao chegar a um bar é ligeiramente conduzido pelo balconista, por força do
desejo, ao banheiro do estabelecimento, um ambiente sujo:
[...] bem lá dentro havia um banheiro imundo o vaso sanitário estava saturado de
merda esborrotava naquela catinga imunda de muitos cus cagões que por ali
tinham cagado o mijo dos bêbados corria solto pelo chão já manchado de cálcio
petrificado sal e branco sob o líquido amarelecido e podre que escorria dos poços
de urinas que se acumulavam ali [...] (SILVA, 2006, p. 94-5)
Naquele lugar, o eu-narrador envolve-se em desejos com o homem, que é tão sujo
quanto o ambiente que parece denegrir a personagem, mas ao mesmo tempo “contribuía para
tudo dar certo” (SILVA, 2006, p. 95). A relação se dá entre a dicotomia sexo/amor, sujo/limpo.
Os elementos paisagísticos parecem realmente afirmar que além de caracterizar aquele encontro
como proibido e secreto também o adjetiva como sujo, assim como o ambiente no qual ele
ocorre, engendrando um discurso preconceituoso, bastante visível no cotidiano de sociedades
ainda remanescentes dos ideais heterossexuais e machistas como a brasileira: o de que a relação
gay é “suja”, porque pecaminosa ou antinatural.
De todas as histórias, é em ...Crime perfeito não deixa suspeito que o espaço adquire
projeção mais relevante, não servindo apenas para situar o exercício do sexo entre as
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personagens, mas também para caracterizá-las. Cidinho, protagonista do conto, é apresentado a
partir da interferência de elementos paisagísticos da sua casa:
Cidinho era Euclides Carneiro de Arruda, 25 anos, filho de pais desconhecidos.
Sobrevivente da Liberdade, rua Paraná, s/n. Sua casa não era casa: uns muros
somente erguidos porque o resto fora derrubado com fortes chuvas em invernos
anteriores. Uns cacos ficaram como que abandonados. Também como que
soterrado, Cidinho ali habita. (SILVA, 2006, p. 41)
A partir dessa passagem, notamos o quanto a configuração espacial interfere na
configuração da personagem. O estado de sua casa que “não era casa”, apresentada como
abandonada, destruída, nos permite entender que também Cidinho, “o veado mais escroto do
bairro” (p. 42), é tão abandonado e decadente quanto o estado de sua residência, onde “como
que soterrado” ele habita. O narrador-personagem vigia Cidinho através de uma fenda no muro
“que dava acesso a todo o visual de onde ele dormia” (SILVA, 2006, p. 43). Então, somos levados
ao interior do lar de Cidinho para visualizar o envolvimento físico dele com o personagem
Zenóbio, estereótipo do machão, “o que mais batia em veado, o que mais era cachorro, o que
mais tinha força”, e agora “se entregava aos prazeres com a classe que mais detestava na vida, a
dos veados.” (SILVA, 2006, p. 44, grifo nosso). Na casa, “por sobre ruínas, lodo, concretos como
que exumados, dois rapazes pareciam conhecer segredos que nunca ouvira antes falar” (SILVA
2006, p. 44), Cidinho, Zenóbio e, posteriormente, o eu-narrador dão vazão aos seus desejos
mais íntimos, fazendo-nos ficar, como diz Ribeiro Neto (2006) em prefácio, “com a carne em pé”
diante da montagem narrativa do sexo entre as três personagens.
Situar onde ocorrem os momentos de desejos entre as personagens é a principal função
do espaço nos curtos contos desse autor. São espaços fechados e escondidos dos olhares
repressores da ordem vigente; ambientes que mostram o íntimo das personagens, onde os
medos, desejos e angústias do homem, sobretudo os de orientação homoafetiva, são exibidos. A
caracterização dos espaços saturados de elementos paisagísticos de conotação diminutiva, como
sujos, escuros e cheios de excrementos parecem transpor o significado destes para as relações
desenvolvidas entre as personagens, sutilmente denegrindo-as, rotulando-as como
transgressoras, sujas e que, portanto, devem se manter escondidas, não vindo à luz para que a
mancha que macula a orientação sexual de que são portadores não seja vista e, assim, possa ser
mantido limpo o discurso em favor da heteronormatividade.
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Conclusões
Após a discussão a respeito das configurações paisagísticas nas obras em questão – para
assim exemplificar o assunto na literatura de expressão homoerótica de uma maneira geral, se
faz pertinente tecer algumas considerações finais.
Silva (2007b) discute a emergência da literatura gay enquanto gênero literário. Sem
querer adentrar exaustivamente nos aspectos relevantes ou não desta classificação a que o autor
faz referência, recordamos apenas que a expressão literatura gay, como a emprega Silva (2007a
e 2007b), pode ser interpretada a partir da autoria – a literatura feita por escritores gays – e da
formulação interna, isto é, do conteúdo da obra.
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Descartando a primeira hipótese de interpretação, como ficou evidente em todo este
trabalho, foi sobre os aspectos estéticos vinculados às temáticas do universo gay, mais
precisamente a categoria estético-literária do espaço ficcional, que orientamos nosso estudo.
Como constatamos, os ambientes configurados nos permitem inferir que as relações
homoeróticas das personagens acontecem às escondidas, em espaços reclusos, que, por vezes,
caracterizados banalmente, transferem seus sentidos para as relações gays dos sujeitos
ficcionais, sutilmente definindo-as como transgressoras, sujas, proibidas, e que, portanto, devem
acontecer secretamente, longe dos olhares da “normalidade” sexual; quando não são fechados,
como é o caso de O segredo de Brokeback Mountain, refletem o intuito das personagens em se
distanciarem, de se moverem para lugares isolados, onde possam adquirir liberdade de
manifestar o desejo homoafetivo, fora da repressão social vigente, numa falsa ou aparente
independência de viver “o amor que não ousa dizer o nome”.
A configuração do espaço na literatura gay, a partir das obras aqui discutidas, revelou
que as relações homoafetivas são representadas de maneira recorrente em espaços fechados ou
que possam esconder o desejo gay. Assim como Silva (2007b) apontou a temática, nessas obras,
como uma marca para a compreensão de um gênero literário novo (a literatura gay), o espaço
como categoria estético-literária aparece de forma semelhante nos mesmos textos, seja nas
descrições, seja no significado que o marcador denota, convergindo para as considerações do
autor, que a literatura gay pode constituir um gênero literário, levando-se em conta os valores
estético-poéticos de cada texto estudado.
Acreditamos que o breve estudo deste ensaio amplia a discussão da representação dos
sujeitos de orientação homoafetiva na literatura em seus espaços de movência, apesar de
superficialmente percebermos uma construção “limpa” e sem estereótipos negativos desses
sujeitos nas obras estudadas. Ao voltarmos nossa percepção, em especial para o marcador
espacial, notamos que os locais onde as relações sexuais acontecem muito as caracterizam
negativamente, refletindo, assim, no plano da cultura, a repressão e o tabu de que o desejo gay
é transgressor e deve permanecer recluso. O espaço ficcional, então, na chamada literatura gay,
parece fechar campos de interpretação para os personagens que habitam as ficções aqui
discutidas, corroborando a prática “abusiva” e “discriminatória” de que o gay pode ser uma
espécie de projeção do ambiente por onde circula.
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Interpretando o espaço na literatura de temática homoerótica