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agosto. 2013
Jornada do Percurso
de Escola XI (II)
Gestão 2013-2014
Presidência
Marta Pedó
1ª Vice-Presidência
Liz Nunes Ramos
2ª Vice-Presidência
Eduardo Ely Mendes Ribeiro
1ª Secretaria
Gerson Smiech Pinho
2ª Secretaria
Fernanda Breda
Maria Elisabeth Tubino
1ª Tesouraria
Marcia Helena de Menezes Ribeiro
2ª Tesouraria
Ieda Prates da Silva
Mesa Diretiva
Alfredo Néstor Jerusalinsky
Ana Laura Giongo
Ana Maria Medeiros da Costa
Beatriz Kauri dos Reis
Deborah Nagel Pinho
Eduardo Ely Mendes Ribeiro
Fernanda Breda
Gerson Smiech Pinho
Lúcia Alves Mees
Lucia Serrano Pereira
Marcia Helena de Menezes Ribeiro
Maria Ângela Bulhões
Maria Ângela Cardaci Brasil
Norton Cezar dal Follo da Rosa Júnior
Renata Maria Conte de Almeida
Robson de Freitas Pereira
Sidnei Artur Goldberg
Silvia Raimundi Ferreira
Simone Goulart Kasper
Simone Madke Brenner
Tatiane Reis Vianna
Correio da APPOA / Associação Psicanalítica de Porto
Alegre. – Ano. 1, n. 1 (1993). – Porto Alegre, APPOA, 1993 –
Mensal
ISSN 1983-5337
1. Psicanálise 2. Periódicos. I. Associação Psicanalítica
de Porto Alegre – APPOA.
CDU 159.9(05)
Bibliotecária Responsável: Luciane Alves Santini CRB10/1837
editorial.
Em tempos de mobilização política intensa na cidade e no país, recebemos as notícias com a satisfação de perceber os jovens, e nós mesmos,
não tão entorpecidos pelo mundo virtual, mas, ao contrário, dispostos a
sair na chuva e no frio para caminhar e se fazer ouvir. Apesar de terem-se
iniciado como um protesto sobre os 20 centavos do transporte público, as
manifestações se expandiram a reverberar insatisfações variadas.
Dentre os efeitos dos movimentos, a dita “cura gay” foi retirada, e o
Ato Medico não foi acatado pela Presidenta. Este ainda deverá ser revisado,
e o esforço pela sua não promulgação segue, para cada um de nós.
Neste Correio, seguimos a publicação dos escritos dos jovens autores
no encerramento do Percurso.
O Final do Percurso de Escola da APPOA é brindado com uma Jornada
de trabalhos, em que cada um dos autores compartilha conosco um recorte
de sua elaboração da trajetória.
Em maio deste ano, a Turma XI responsabilizou-se pelo trabalho
de construir essa jornada, que se desdobrou em um dia mais uma noite,
quando pudemos assistir e usufruir de sentar na platéia, escutar e debater.
O trabalho da associação, em sua responsabilidade com o ensino e a
transmissão, dando lugar aos tempos de estudo em seminários, de trabalho
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editorial.
em cartéis, bem como do acompanhamento da escrita de cada um, inclui
ainda o de publicar os textos produzidos a partir do Percurso.
A sessão temática deste Correio traz, assim, mais uma oportunidade
de compartilhar os efeitos desse tempo de trabalho conjunto. Conforme
lemos, nas palavras dos autores: “Ao nos aproximar do campo psicanalítico,
não somos mais os mesmos. Nos projetamos no que lemos, nos compomos no que
lemos, e o que lemos, então, nos inclui.”
Boa leitura!
2.
correio APPOA l agosto 2013
notícias.
III Jornada do Instituto APPOA
Psicanálise e Intervenções Sociais
Desamparo e Vulnerabilidades
23 e 24 de agosto de 2013
Hotel Continental – Porto Alegre
Largo Vespasiano Julio Veppo, 77,
Centro, Porto Alegre, RS
O desamparo é uma experiência
fundamental da condição humana e é em
torno dela que se constitui a posição do
sujeito no laço social. Freud faz do estado
de desamparo (hilflosigkeit) um conceito
de referência em sua obra, enfatizando-o
Imagem: Nem tudo são flores,
de Betinha Trevisan, 1997.
como o protótipo das situações traumáticas, geradoras de angústia no adulto, pois o confronta, no tempo presente,
com a impotência de seu estado de desamparo infantil originário. Segundo
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notícias.
ele, o mal-estar, a infelicidade e as situações traumáticas nos chegam de
três direções: do sofrimento de nosso próprio corpo, do mundo externo
e das insatisfações ou da violência desencadeadas pelas relações com os
outros. O sofrimento proveniente desta última talvez seja o mais penoso
de todos eles.
A cultura com que procuramos fazer frente à condição humana e seu
inevitável mal-estar nos defronta com inúmeras situações de vulnerabilidade em seu movimento permanente de conflito entre civilização e barbárie.
Em todas estas situações, o sujeito está diretamente implicado. Quando
somos atingidos, o catastrófico se articula com o desamparo estrutural e
somos confrontados com o trauma do real irrepresentável.
O desamparo e as diferentes vulnerabilidades colocam um desafio
para a clínica da psicanálise em extensão. Propomos com esta III Jornada
do Instituto APPOA abrirmos o debate sobre nossas intervenções fundadas
no desejo do analista e na ética da Psicanálise.
PROGRAMA
Sexta-feira, 23/08/2013
17:30 – Inscrições
18:00 – Abertura – Jaime Alberto Betts (APPOA, Diretor do Instituto
APPOA)
Lançamento da Revista da APPOA nº 41-42 – Psicanálise: invenção
e intervenção
18:30 – Conferência – O desejo do analista face ao desamparo contemporâneo – Caterina Koltai (psicanalista, PUCSP)
20:00 – Mesa 1 – Passagens: Sujeito e Cultura – Catástrofe e Representação
• A colaboração da psicanálise na construção do acolhimento às vítimas
do incêndio na Boate Kiss – Volnei Antonio Dassoler (APPOA, Instituto
APPOA, Secretaria Municipal de Saúde de Santa Maria)
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Jornada do Percurso de Escola XI (II).
• É possível falar sobre esta tragédia? – Luciana Portella Kohlrausch
(APPOA, Instituto APPOA) Imagens apesar da catástrofe – Robson de
Freitas Pereira (APPOA, Instituto APPOA)
Coordenação: Norton Dal Follo da Rosa Jr. (APPOA, Instituto APPOA)
Sábado, 24/08/2013
9:30 – Mesa 2 - Psicanálise e Educação: O que pode a psicanálise no
campo da educação?
Educação impossível? Gerson Pinho (APPOA, Instituto APPOA, Centro
Lydia Coriat) e Larissa Scherer (APPOA, Instituto APPOA)
Crise do vínculo educativo – Roseli Cabistani (APPOA, Instituto
APPOA, UFRGS) e Cristina Pinto Gomes Mairesse (Psicóloga, UNIFIN)
Coordenação: Sonia Ogiba (APPOA, Instituto APPOA)
11:00 – Intervalo
11:15 – Mesa 3 - Psicanálise, Políticas Públicas e Saúde Mental
• A clínica e as práticas de cuidado na rede de atenção à infância e
adolescência – Ieda Prates (APPOA, Instituto APPOA, supervisora de
CAPSi) e Tatiane Reis Vianna (APPOA, Instituto APPOA, CIAPS/HPSP)
• Brincando de tráfico? Notas sobre o proibicionismo e a internação
compulsória – Sandra Djambolakdjian Torossian (APPOA, Instituto
APPOA, UFRGS)
• A Casa dos Cata-Ventos: uma aposta na dimensão política do brincar – Anderson Beltrame Pedroso (Casa dos Cata-Ventos, consultor
UNESCO/PIM)
Coordenação: Renata M. C. de Almeida (APPOA, Instituto APPOA,
Casa dos Cata-Ventos)
12:45 – Almoço
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notícias.
14:30 – Mesa 4 - O Desejo do Analista nas Práticas Institucionais
• Apoio matricial, uma clínica em extensão – Elaine Rosner Silveira
(Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre)
• “Secretários do alienado”? A psicose e a instituição psicanalítica –
Siloé Rey (APPOA, Instituto APPOA, ULBRA) e Liz Nunes Ramos
(APPOA, Instituto APPOA)
Coordenação: Marcia Helena de Menezes Ribeiro (APPOA, Instituto
APPOA)
16:00 – Mesa 5 - Imigrantes, Exilados e Refugiados
• Do exílio ao asilo: escutas clínicas – Barbara Conte, Alexei Indursky,
Daniela Feijó e Liege Didonet (Sigmund Freud Associação Psicanalítica)
• Os tempos do luto – Ana Maria Medeiros da Costa (APPOA, Instituto
APPOA, UERJ)
Coordenação: Otávio Winck Nunes (APPOA, Instituto APPOA)
17:30 – Intervalo
17:45 – Conferência: O desamparo da saúde mental infanto-juvenil –
Nilson Sibemberg (APPOA, Instituto APPOA, Centro Lydia Coriat, CAPSCAIS Mental Centro – Porto Alegre)
Coordenação: Lucia Serrano Pereira (APPOA, Instituto APPOA)
19:15 – Encerramento
Valores para inscrição:
Antecipadas até 17/08
Associados
Após e no evento
R$ 70,00
R$ 90,00
ou recém formado*
R$ 80,00
R$ 100,00
Profissionais
R$ 90,00
R$ 110,00
Estudantes de Graduação
* Estudantes de GRADUAÇÃO e recém formados até 2 anos devem enviar comprovante por e-mail ou fax.
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Jornada do Percurso de Escola XI (II).
Informações e inscrições:
• Na sede da APPOA.
• Horário de funcionamento da Secretaria da APPOA: De segunda a
quinta-feira, das 8h30 às 12h e das 12h às 21h30 e sextas-feiras das
8h30 às 12h e das 12h às 20h.
• Inscrições pelo site www.appoa.com.br. Após efetuar o pagamento da
sua inscrição pelo site, enviar por fax ou por e-mail o comprovante
de pagamento devidamente preenchido.
• Inscrições mediante depósito bancário, para Banco Itaú, agência
0604, conta-corrente: 32910-2 ou Banco Banrisul, agência 0032,
conta-corrente 06.039893.0-4. Neste caso, enviar, por fax ou e-mail, o
comprovante de pagamento devidamente preenchido, para a inscrição
ser efetivada.
• Estudantes de GRADUAÇÃO e recém formados até 2 anos devem
enviar comprovante por e-mail ou fax.
• Inscrições para grupos, informe-se na Secretaria da APPOA.
• As vagas são limitadas.
ATIVIDADES PREPARATÓRIAS À III JORNADA DO INSTITUTO SÃO
DIVULGADAS POR E-MAIL E NAS LINHAS DE TRABALHO DISPONÍVEIS
NO SITE www.appoa.com.br/instituto_appoa
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temática.
(Des)enlaces – O que convoca à escrita?
Carmela de Lima Tubino1
testemunha não seria somente aquele que viu com os próprios olhos.
(...) testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas
palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro:
não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a
transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento
indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos
ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra
história, a inventar o presente” (Gagnebin, J. M., 2009, p. 57).
O convite para construir uma produção escrita que traga um recorte
da experiência que se inscreveu ao longo desse “Percurso”, inicialmente,
provocou inquietação e uma pergunta: “que experiência convoca uma
escrita?”. Para conseguir lançar-me em alguma primeira palavra, fez-se
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Psicóloga, especialista em Atendimento Clínico com ênfase em Psicanálise.
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temática.
necessário lembrar onde se iniciou meu trabalho clínico. Recuperar experiências construídas em uma prática de escuta em um serviço de internação psiquiátrica teve, como efeito, a emergência de interrogantes que
sustentam e colocam em movimento minha escuta para além dos muros
do hospital. Nessa travessia de lugares algo acompanhou meu trabalho.
Meu fazer clínico manteve como inspiração a escuta de pacientes que se
encontram em um tempo de urgência na psicose. O desejo, rascunhado
nesse breve escrito parece ser revisitar – desde um outro lugar – os enigmas da clínica da psicose. Em Gagnebin (2009) encontro alguma pista
no seguinte trecho:
Tal rememoração implica uma certa ascese da atividade historiadora
que, em vez de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos,
aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações,
solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à
lembrança nem às palavras(...) (p. 55).
Inspirada pelas palavras da autora, tomo emprestado o estilo do “narrador sucateiro”, que ao realizar seu trabalho não possui como alvo os
grandes feitos, mas apanha tudo aquilo que é deixado de lado como algo
que não tem significação, aquilo que parece não ter nem importância ou
sentido. O que interessa ao sucateiro é o que sobra. Uma direção para esse
escrito aqui encontro: um possível fio que se inscreve a partir das sobras,
daquilo que fica sem nome na clínica.
Retomo, então, a pergunta de um paciente durante uma oficina de
escrita realizada no hospital: “O que se faz com palavras?”. As palavras em
sua fala parecem convocá-lo a um fazer-com, um fazer que se faz enigma.
As palavras adquirem um estatuto de algo com o qual se manuseia. Assim,
gostaria de pensar a escuta da psicose como uma clínica que convida a
um fazer-com as palavras. Um fazer-com o material possível que decanta
do sujeito. E nesse artesanato de si, acompanhar o sujeito a compor, tecer
anteparo ao gozo absoluto do Outro. Anteparo que, na psicose, não foi
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Jornada do Percurso de Escola XI (II).
produzido como efeito da organização simbólica decorrente da experiência da castração. A tela da fantasia, como assinala Guerra (2010), não se
coloca na psicose, pois não há inscrição da falta. Dessa forma, o mal-estar
da ausência de sentido da existência, como delicadamente diz a autora,
não encontra véu na fantasia.
Assim, o sujeito situado na psicose está diante do real da castração.
Para a autora, a não incidência da castração é responsável pela consistência
do objeto a que se manifesta nos olhares e nas vozes. Quinet (2011), ao
traçar uma diferença entre fala e voz, situa a fala no terreno do endereçamento ao Outro. Há, portanto, uma demanda que coloca em circulação
uma fala que irá articular os significantes na produção de uma significação. A voz é apresentada, na elaboração do autor, como aquilo que resta
do significante que não produz efeito de significação. É o equivalente ao
real do significante. Isso do significante que não pôde ser dito, que toma
corpo e toma o corpo do sujeito.
O psicótico, dessa maneira, permanece identificado à posição de objeto do gozo do Outro, numa entrega absoluta e sem intervalo. Lembro da
fala do paciente que inspira essa escrita. Ele em um momento de muita
angústia me relata ter pesquisado como extrair cirurgicamente de sua nuca
o chip que havia sido implantado para monitorar seus pensamentos. Para
ele, tratava-se de extrair no real do corpo esse elemento capaz de inaugurar
um furo no Outro, sempre onisciente e onipresente em sua vida. Uma pergunta, então, se presentifica: como fazer passar do real do corpo para uma
experiência articulada às palavras? Algo da história que resta do sujeito,
nesses momentos de crise na psicose, precisa ser encontrado, recolhido
no espaço da transferência, tal como faz o sucateiro que apanha “tudo
aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação, algo que
parece não ter nenhuma importância nem sentido (...)” (Gagnebin, 2009,
p. 54). Resto que, através da escuta, se converte em palavra possível de
endereçamento, construindo assim uma fala articulada a uma demanda,
uma narrativa.
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temática.
“Quando o corpo fica fraco...”
Assim J. – paciente que começo a escutar em sua primeira internação
– iniciava sua fala sobre a iminência de um novo tempo de crise. Estava
no Brasil para realizar mestrado em matemática. Na internação, começa
a falar sobre seu tema de pesquisa: o “espalhamento acústico”. J. procurava entender como seus pensamentos se espalhavam. E, para explicar
a dispersão de suas ideias falava da certeza de ter um chip implantado
em sua nuca. Sentia-se estranho nessa cidade com pessoas tão diferentes
dele e de seu povo. Tudo nele produzia um estranhamento aos olhos do
outro. Olhares que foram se fazendo muito ameaçadores e hostis para ele.
O chip, contudo, ao longo dos atendimentos, pôde assumir uma outra
posição. J. começa a falar do chip como uma hipótese para compreender
os efeitos de sua vinda e sua chegada em Porto Alegre. Algo que construímos a partir dos relatos dos sonhos e de suas explicações sobre a tese do
“espalhamento acústico”, que, para mim, leiga no campo da matemática,
não passavam de hipóteses.
J. pedia uma “técnica” para lidar com a angústia, parecia querer saber
como barrar, cegar, emudecer esse Outro que estava a vigiá-lo. Nas crises,
se entregava inteiro, dizia que falaria tudo, contaria todos os seus segredos
se isso o curasse. O “dizer tudo” se fazia um imperativo. O trabalho, nesses momentos, parecia ter como direção parcializar o que é possível falar
e escutar. Limite que atravessava a nós dois. Em uma das crises, me diz:
“toma tudo, todo meu dinheiro, tudo que é meu”. J. nesse dia fica devendo
a sessão, pois eu não poderia aceitar o “tudo dele”.
J. nos momentos de crise falava da vontade de abandonar tudo, de
voltar para seu quarto em seu país, de voltar para junto de seus pais. O
retorno para casa era associado ao fracasso primeiramente, para com o
tempo se fazer uma possibilidade que poderia acompanhá-lo sempre.
Permanecer em Porto Alegre poderia ser uma escolha e voltar para casa
também. A cidade natal assume em sua narrativa uma outra posição: um
lugar onde poderia ser apenas “mais um” e não o estrangeiro.
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J., a partir disso, fala da saudade de sentir-se apenas “mais um”. Aqui
é o estrangeiro, o estranho. Na medida em que sua fala podia continuar,
inicia um movimento na direção de apresentar ao outro sua cultura. Algo
do estrangeiro que se fazia estranho e ameaçador tornou-se menos persecutório, mais habitável, mais compartilhado. J. passa a experimentar-se em
outros espaços da cidade, descobre lugares onde pode dançar o merengue
e a salsa. A música de seu país e a língua materna começam a encontrar
eco no outro. Filho de donos de restaurante começa a preparar e a oferecer
pratos que trazem o gosto de sua terra.
Assim, no atendimento a pacientes em urgência, escuta-se sujeitos
estrangeiros do próprio corpo e da própria fala. Ao longo de meu trabalho
percebo que a escuta faz função ao acompanhar o sujeito por sua incursão no discurso, podendo se possível e suportável apontar elementos que
possam oferecer ao sujeito um instante de encontro com sua história. A
transferência, nessa linha associativa, assume a direção de um trabalho
possível com a psicose, principalmente em seus momentos de ruptura.
Uma pergunta, a partir disso, me acompanha: o que (ir)rompe em um
episódio de crise na psicose?
A crise psicótica, como retoma Ramalho (2007), acontece quando
alguém em algum momento da vida – momento esse caracterizado por
uma injunção imperiosa – vive a situação como sendo além de suas possibilidades psíquicas. Diante da situação, para conseguir lidar com ela, o
sujeito sente a necessidade de se referir ao saber paterno (ao significante
Nome-do-Pai) e, como não o tem simbolizado, o mundo, o saber que até
então o sustentava, desmorona. Depois da crise, quando tudo aquilo que
era insuportavelmente intenso já passou, resta, por vezes, um vazio sem
sentido. Na urgência, há algo que se desmonta no nível da palavra e o que
emerge aí é a angústia, um não nomeável, indizível que paralisa. Nem
sempre a palavra, o discurso tem efeito.
Por vezes, parece que minha função é apenas estar ali, fazendo-me
presente via olhar, voz, ritmo, como presença de um corpo outro que parece
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temática.
se fazer necessário para sustentar algo da existência de alguns pacientes.
Fernández (2004, p. 39), “(...) a intervenção na urgência faz com que o
analista tenha que olhar mais que escutar, dizer mais do que interpretar
e, sobretudo, estar e oferecer sua presença para reunir os pedaços partidos
dessa existência que está ameaçada”.
A prática com as urgências subjetivas, em minhas elaborações, é
um fazer que potencializa a delicadeza de escutar o detalhe, o destaque
singular no discurso. Detalhe que diz de uma história, que se faz âncora
para quem está à deriva de si. Palavras, imagens, detalhes que possam
remeter o sujeito a sua história, como nos destaca Mônica Fudín (2005) no
texto “Pescadores de Ilusões”. “Pescadores”, “arqueólogos” (Freud, 1937),
“sucateiros”, o lugar do analista é reinventado, renomeado na tentativa
de dizer do fazer clínico, algo que na clínica da urgência se potencializa
e desperta uma certa disponibilidade para a invenção.
Do que foi possível recolher...
O atendimento a esses pacientes se faz um constante ensaio. Há situações em que partimos da ausência do discurso para além de uma fragilidade
simbólica. Narrar o momento do “surto”, esse instante de apagamento do
sujeito, convoca esse irrepresentável que começa a ter contorno quando
alguém se põe a escutar. Na experiência de escuta na clínica da urgência
o ato de colocar-se a escutar um relato assume toda sua potência de intervenção. Tenho pensado, a partir dessa experiência, minha intervenção
como uma tessitura de enlaces, um trabalho de garimpo com as palavras.
Algo que relance o sujeito à cadeia significante, ou ofereça um lugar de
suporte, de testemunho para uma produção subjetiva.
Lembro-me de um filme que J. traz como uma ideia que lhe ajudou a
entender a razão de eu não lhe ensinar técnicas para lidar com seus medos. “O Circo das Borboletas” conta a história de um rapaz que não possui
pernas e braços e vive em um circo que tem como espetáculo “aberrações”.
O rapaz, resistente à condição de ser tomado como uma “atração”, se toma
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Jornada do Percurso de Escola XI (II).
de coragem e vai ao encontro do dono de um outro circo: “O Circo das
Borboletas” - lugar que permitia a criação de cada um. O rapaz no novo
circo questiona o dono a respeito de como os artistas montavam seus
números. O dono responde que “todos têm uma história”. O rapaz um
dia acompanhado de amigos do circo se lança em um lago e, por alguns
instantes, debate-se sem conseguir nadar. Porém, quando os amigos estão
prestes a salvá-lo, ele emerge do lago nadando! Ele ali encontra seu número. J., a partir disso, diz ter entendido meu trabalho e a razão pela qual
eu não lhe ensinava “técnicas”, pois cada um deve encontrar seu próprio
número a partir da sua história.
O trabalho, então, atravessa uma transformação: de um lugar de entrega total ao Outro, para aproximar-se de uma posição mais enlaçada a
uma história e apropriada de palavras. Lugar subjetivo que será fundado
a partir dos “precipitados psíquicos” de cada sujeito. Assim, como escreve
Lobosque (2001, p. 39) “mesmo quando a possibilidade de endereçar-se
a alguém parece inteiramente perdida, não será jamais perda de tempo
procurar resgata-la”. Nessa direção, será a escuta da história de cada um,
na sua singularidade, que permitirá encontrar palavras que indiquem o
que pode fazer marca e ajudar na construção de uma amarragem que,
delirante ou não, lhe permita outros modos de existência menos colados
ao Outro, mais próximos de uma condição de alteridade.
Referências bibliográficas
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. Rio de Janeiro: editora 34, 2009.
GUERRA, Andrea M. C. A Psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
LOBOSQUE, Ana Marta. Experiências da loucura. Rio de janeiro: Garamond, 2001.
PIPKIN, Mirta & HOLGADO, Mirta. Intervir em la emergência. A clínica psicoanalítica em los limites. Buenos Aires: Letra Viva, 2007.
QUINET, Antônio. Teoria e Clínica da Psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
RAMALHO, Rosane Monteiro. Clínica das psicoses: os impasses da transferência. Em Psicose: aberturas da clínica. Porto Alegre:
APPOA: Libretos, 2007.
SOTELO, Inés. Clínica de la urgência. Buenos Aires: JCE Edições, 2007.
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temática.
A delicadeza dos tempos
das primeiras entrevistas
Marcia Giovana Pedruzzi Reis1
Quando um sujeito formula um pedido de atendimento, o faz por
conta de um sofrimento psíquico, um sintoma, algo que lhe incomoda,
que se torna insustentável e do qual quer se ver livre. Ruptura narcísica,
partícula de Real que se apresenta ao sujeito em sua experiência para que
a angústia, o insuportável, o faça buscar um saber que dê conta, de algum
modo, de suas dores.
Mas qual é a porta de entrada de uma análise? Basta que um paciente
adentre a porta do consultório e apresente ao analista a sua queixa?
Psicóloga (UFRGS), Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), Psicóloga da equipe técnica da Clínica de Atendimento
Psicológico da UFRGS.
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temática.
Trabalho em uma instituição pública de atendimento psicológico2, e
uma das práticas mais instigantes que realizamos são as, assim nomeadas,
Entrevistas Iniciais (EIs), nas quartas-feiras. Neste dia, acolhemos e escutamos todos os pacientes que procuram a instituição. O trabalho das EIs
consiste em realizar, durante algumas sessões, as primeiras entrevistas, com
vistas ao encaminhamento do paciente para o seu tratamento propriamente
dito. Na medida em que o terapeuta que realiza o trabalho das EIs pode
fazer esta leitura, do encerramento deste primeiro tempo do tratamento,
tece um encaminhamento para um dos colegas da instituição, que, por se
tratar de uma clínica-escola, conta com o trabalho de diversos psicólogos
clínicos que ali fazem sua formação.
O exercício da clínica nos defronta com alguns questionamentos
que se desvelam no justo transcorrer do trabalho. De minha parte, me vi
capturada por algumas perguntas suscitadas pelo trabalho que venho desenvolvendo nas Entrevistas Iniciais. Dentre elas, a delicadeza de pensar
qual o momento para se fazer a passagem.
Às vezes, nos deparamos com algumas verdades rigidamente estabelecidas – por exemplo, de que nas entrevistas preliminares, em psicanálise, trata-se de transformar queixa em demanda, de se estabelecer uma
transferência e de se embasar um diagnóstico – porém, suponho haver
uma pertinência clínica na abertura para que estas questões possam ser
repensadas e aprofundadas.
Minha questão, portanto, é a respeito deste momento de passagem.
Gostaria de poder desdobrar esta discussão, a respeito do que singulariza
e do que determina este momento de passagem das primeiras entrevistas
– extravasando, portanto, o campo das EIs, ainda que delas partindo – para
a continuidade do tratamento, dialogando com os autores aqui escolhidos,
sem a pretensão de esgotar quaisquer conceitos.
Cabe situar que, quando estivermos nos referindo à instituição, utilizaremos os termos atendimento psicológico, terapeuta
e paciente, por se tratar da nomenclatura oficial e adequada ao local. No entanto, nos apontamentos teóricos, utilizaremos os
termos análise, analista e analisante.
2
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Jornada do Percurso de Escola XI (II).
A hipótese é de que opera um tempo lógico nestas entrevistas, tempo
lógico de saída, para o sujeito, desta posição de queixa para uma de demanda. No que tange aos diferentes tempos que modulam uma análise,
a delicadeza de pensar qual o momento de realizar o encaminhamento.
No transcorrer das primeiras entrevistas, existirá, pois, uma travessia
entre a demanda de alívio do sofrimento e a demanda de saber sobre o
seu sintoma e, neste sentido, não se trata de pensar em como chega este
paciente, no que o faz buscar uma análise, mas pensar como se sustenta
o desejo por aquele espaço, o que sustenta a sua permanência.
Segundo nos aponta Isidoro Veg , se nessas entrevistas se formula,
pois, uma demanda de análise, quer dizer que quem toca a nossa campainha adverte que há algo que escapa ao saber que tem para dar conta do
sofrimento. Assim,
se conseguimos nas entrevistas que o sujeito advirta que desse sofrimento há um saber que ele ignora e situa a possibilidade desse
saber no analista, o sujeito vai começar a falar. E quando alguém fala
seguindo a regra fundamental, [...] o instalamos em uma pequena
armadilha: no labirinto de suas palavras, o convidamos à sua alienação, a que advirta que a razão está fora do seu Eu (2010, p. 24).
Sendo assim, de que modo reconhecer o tempo do encerramento das
primeiras entrevistas?
Início do tratamento
A psicanálise sustenta-se de seu ato, o qual opera por meio da palavra. O ato psicanalítico é o que situa a psicanálise em sua esfera ética. É o
próprio analista que, com seu ato, dá existência ao inconsciente, regido,
pois, por seu desejo. Existe, enfim, uma profunda delicadeza envolvida
em um percurso analítico no que tange à direção do tratamento, desde
suas primeiras sessões.
Em uma interessante citação, Freud traçará certo paralelo entre as primeiras entrevistas e um jogo de xadrez: “Todo aquele que espera aprender o
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temática.
nobre jogo de xadrez nos livros, cedo descobrirá que somente as aberturas
e os finais de jogo admitem uma apresentação sistemática exaustiva e que
a infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a abertura desafia
qualquer descrição deste tipo (Freud, 2003, p. 139)”.
Segundo Freud, as regras que podem ser estabelecidas para o tratamento psicanalítico acham-se sujeitas a limitações semelhantes, ou seja, o
modo como conduzo as primeiras peças será crucial para o seguimento do
jogo de xadrez, tal qual a condução das primeiras entrevistas será crucial
para o desenrolar do tratamento analítico.
Em O início do tratamento (1913), Freud situará, pois, a relevância
do que chama de ‘tratamento de ensaio’, o qual teria duração de uma ou
duas semanas e se calcaria em razões diagnósticas e de estabelecimento
da transferência.
Em Lacan (1971/1997), o tratamento de ensaio corresponde às entrevistas preliminares, denotando que existe um momento, um limiar a ser
transposto em um determinado tempo, que separa as primeiras entrevistas
do tratamento propriamente dito, corte que corresponderá à travessia entre
aquilo que é preliminar e aquilo que já está na dimensão de um discurso
analítico. Sendo assim, podemos depreender que não há entrada em análise
sem as entrevistas preliminares (op. cit.).
No percurso das entrevistas preliminares, o analista toma sua decisão no que tange a acatar ou não aquele pedido de análise. Diz-nos Quinet
(2005) que, do ponto de vista do analista, “as entrevistas preliminares
podem ser dividas em dois tempos: um tempo de compreender e um
momento de concluir, no qual ele toma a sua decisão. É nesse momento
de concluir que se coloca o ato psicanalítico, assumido pelo analista, de
transformar o tratamento de ensaio em análise propriamente dita” (p. 15).
Nesta passagem, o sujeito estará impelido a elaborar sua demanda
de análise, o que podemos situar em dois momentos: a histericização e a
produção do sintoma analítico.
No processo de tratamento preliminar (na clínica clássica da neurose)
trata-se, pois, de uma dupla transformação da demanda. Isso implica dizer
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que a demanda inicial é estéril, e não deve ser tomada como demanda real
da análise, mas deve ser trabalhada, questionada.
No que se refere à dita histericização, trata-se eminentemente de um
reconhecimento, o sujeito reconhecendo-se como dividido, sendo capaz
de reconhecer que há algo de um saber que lhe escapa, que lhe transcende. É na forma de um enigma que um sintoma pode, enfim, ser decifrado.
Neste sentido, poder pensar sobre o que faz um paciente sustentar um
tratamento talvez seja pensar que, ao que algo de um enigma se constitua
nesta divisão subjetiva, nesta cisão entre saber e verdade, o paciente suporá
que o analista saberá resolver isso.
Lacan trabalha, igualmente, a ideia de que a demanda de análise é
correlata à elaboração do sintoma (do qual o sujeito vem queixar-se) em
sintoma analítico, este sim o âmago de uma demanda verdadeira - demanda de saber sobre si. É neste momento que se estabelece a transferência
analítica, na justa produção de um sujeito suposto saber.
De acordo com Quinet (2005), o sujeito bem pode se apresentar ao
analista com vistas a se queixar de seu sintoma ou até pedir para dele
se desvencilhar, mas isso não é o bastante: “É preciso que esta queixa se
transforme em uma demanda endereçada àquele analista, e que o sintoma
passe de estatuto de resposta para o estatuto de questão para aquele sujeito,
para que este seja instigado a decifrá-lo” (p. 16). De acordo com o autor, o
analista é colocado no lugar do Outro, e cabe a ele transformar esse sintoma
na questão que Lacan denomina “que queres?”, questão chamada desejo.
Assim, o que é decisivo para que estejamos no campo da psicanálise
é que este sujeito acredite que seu sintoma comporta alguma verdade e, a
propósito disto, recorra à figura do analista como aquela que supostamente
porta o saber que lhe escapa.
As Entrevistas Iniciais
Desde o início de suas atividades, a instituição em questão passou por
diversas etapas até a constituição das atuais Entrevistas Iniciais. As EIs
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temática.
se constituíram inspiradas nas entrevistas preliminares – aspecto clínico
–, porém, pela especificidade de ser uma clínica em uma Universidade,
situa-se também como uma espécie de triagem das muitas demandas que
chegam – aspecto de funcionamento.
As EIs funcionam em regime de plantão e os pacientes são atendidos
em ordem de chegada. Conforme já situado, neste tipo de organização
todas as pessoas que chegam são ouvidas. Este arranjo das entrevistas
inicias, segundo Brizio (1997), levou a um melhor aproveitamento do
tempo, sem a formação de listas de espera, e um olhar atento ao aspecto
teórico-clinico, que se refere às questões atinentes ao início do tratamento.
A instituição considera crucial o momento inicial de um tratamento para
o seu prosseguimento.
Esta organização do trabalho é uma vicissitude institucional, e faz-nos
deparar com uma questão: o trabalho de estabelecimento da transferência,
bem como da elaboração da queixa em demanda. Com o meu trabalho, ao
longo daquelas duas, três ou mais semanas, ofereci ao paciente uma escuta e
com ele desenvolvi uma delicada costura entre o que ele trazia como queixa
e a implicação deste pedido naquilo que é próprio do sujeito que o enuncia,
o que é próprio da sua história. Tornei-me, pois, testemunha da verdade
daquele sujeito. No momento em que a transferência enfim se constituir,
um outro direcionamento àquele pedido de tratamento a mim dirigido se
dará: endereçarei a demanda a outro terapeuta, que assumirá o caso.
O que sustenta este encaminhamento?
Minha hipótese é de que será somente através de uma aposta de que
algo pode ser trabalhado que o paciente suportará ser encaminhado, e
voltar, balizado em uma transferência já constituída, havendo suposto o
saber de que o terapeuta estaria investido, vindo a crer que a indicação
que o terapeuta lhe faz está bem fundada.
Conforme viemos pensando até aqui, existe uma linha de corte, que
se refere à mudança de posição deste sujeito com relação à queixa. Isso se
dará por conta do meu trabalho de escuta e costura, ou seja, em função do
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modo como se conduziu esta escuta. Numa situação de encaminhamento,
de passagem, o paciente seguirá a minha aposta. O que deste enigma tem
que permanecer, e em que medida o paciente precisará seguir no curso
transferencial que estou apontando, direcionando-o?
Cabe lembrar que muitos dos pacientes que nos chegam vêm transferenciados ao significante nome da instituição, cujo lugar no imaginário
social é o de produção de saber de excelência. Da transferência com a
instituição, ao longo das EIs haverá um trabalho de direcionamento para
uma transferência nominal, trabalho de quem o acolhe. No momento da
passagem, um novo trabalho se desvela, no sentido de poder, de minha
própria parte, apostar no trabalho do colega para quem eu vou endereçar
a questão, e, posteriormente, apontar esta direção ao paciente.
A fórmula instituição + saber do terapeuta de EIs + saber do próximo
terapeuta indica-nos a direção do que podemos pensar como trabalho nas
EIs e o estabelecimento da transferência, primeiro com o significante nome
da instituição, depois com o terapeuta de EIs e, por fim, na indicação para
um próximo terapeuta.
Trata-se de uma costura delicada. Que mínimo testemunho da verdade
deste sujeito precisa ser feita para ele desejar apostar no encontro com
este outro terapeuta?
Sobre a transferência
Nas primeiras entrevistas, o que está em jogo é fazer trabalhar a transferência. De acordo com Lacan (1953/1998, p.258), a assunção, pelo sujeito,
em situação de análise, de sua história é constituída pela fala endereçada
ao outro. Contudo, a questão fundamental que se coloca com relação à
transferência é a de pensar sua posição ética, ou seja, qual o lugar que o
analista ocupará frente às demandas do paciente.
O sujeito que vem em busca de um analista o faz porque supõe que
este detém a priori um saber sobre sua verdade. O analista, por seu turno,
deve abster-se de identificar-se com esta posição de saber absoluto, todavia
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temática.
faz semblante, encarna um sujeito suposto saber para o paciente. Ao fazerse semblante, montar-se-á, enfim, o cenário para que a verdade apareça.
O analista deve saber utilizar-se da transferência de saber, mencionada
por Lacan (1953; 1998, p. 258), quando refere-a tal uma ilusão na qual o
sujeito acredita que sua verdade encontra-se já dada no analista e que este
a conhece de antemão. Nas palavras de Pommier (1998), “transfiro, pois,
para outrem, – para esta aparência que detém o mistério da minha – um
saber que me escapa” (p. 20). Esse erro subjetivo é, segundo Quinet (2005),
imanente à entrada em análise. O saber será suposto, mas, por outro lado,
o analista é convidado à prudência no que tange à sua posição.
O pressuposto capital para a existência do sujeito do inconsciente
é a oferta da escuta analítica, a qual prepara a inclusão do analista no
próprio conceito de inconsciente, tendo em vista que este se constitui
como seu destinatário (Lacan, 1963, p. 848). As entrevistas preliminares
ao processo do tratamento analítico decorrem, também, da realização
desta inclusão.
O advento do sujeito do inconsciente em sua relação com o desejo
do analista é a verdadeira mola do que constitui a transferência. Cito
Lacan: “eis porque a transferência é uma relação essencialmente ligada ao tempo e a seu manejo” (1998, p. 858). Se a transferência é uma
relação ligada ao tempo e à sua manobra, podemos inferir, situados na
intimidade entre estes dois conceitos, que a transferência se estabelecerá na delicada e precisa costura dos tempos do início do tratamento,
e que será ela própria a sustentar a passagem para um novo tempo do
desenrolar do tratamento.
Dos tempos para uma aposta
Le Poulichet nos traz que os tempos acionados pela análise não se
regulam pelo relógio, mas pela transferência, que são “tempos de transposição e transformação” (p. 8). Segundo a autora, uma análise desafia a
noção de tempo linear, subvertendo a trama do tempo ao provocar tempos
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de atualização e anacronismos os quais dão lugar aos acontecimentos
psíquicos. Cito Le Polichet (1996): “É precisamente na transferência que
estes acontecimentos encontram seu lugar e seu tempo próprios. A transferência é um tempo de realização dos acontecimentos psíquicos. Ela lhes
dá presença em todas as suas ressonâncias temporais”.
No percurso entre o pedido de escuta e a demanda, qual o tempo para
fazer este giro, de entrada em análise?
Conforme Lacan (1945/1998), as entrevistas preliminares também
podem ser divididas em três tempos lógicos: instante de olhar, tempo para
compreender, que implica na questão diagnóstica e momento de concluir,
no qual o analista toma a sua decisão de acatar tal demanda de análise ou
não. Isso do lado do analista. Por seu turno, do lado do analisante, o que
se daria entre o instante de ver e o tempo de compreender?
Entendo tratar-se de um apostar. Sendo assim, a entrada em análise,
no que tange aos três tempos, parece se tratar de uma aposta no tempo de
compreender. Havendo o paciente visto algo durante as EIs, e desejando
saber algo a mais, algo para além disso, algo que se configura como um
enigma, poderá apostar em adentrar no tempo de compreender. Sendo
assim, esta passagem entre o ver e o tentar compreender pode marcar uma
posição de início de tratamento. E esta aposta toma, pois, por sustentáculo
o estabelecimento da transferência, essa, que dá matriz aos tempos da
experiência analítica.
Do lado do analista, é no momento da descontinuidade destes dois
tempos, compreender e concluir, que se coloca o ato psicanalítico de
transformação das entrevistas preliminares em análise.
Finalmente, retomemos a questão: de que modo reconhecer o tempo
do encerramento das primeiras entrevistas?
Ao longo desta escrita, entendo haverem se configurado dois tempos
capitais nesta passagem, tempos não lineares, mas que se costuram um
por sobre o outro: o primeiro deles, quando o analista é instituído, ato
em que o analista reconhece o analisante, mas, mais do que isso, no qual
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o analista venha a ser reconhecido como aquele quem irá acompanhar o
sujeito na travessia que uma análise compreende.
O primeiro ato do analista é tomar alguém em análise – ali o analista
está instituído. Todavia, não por decreto, não por um ato burocrático,
mas porque foi suposto neste lugar de sujeito suposto saber, na medida
em que, através de seu ato, de alguma maneira, provocou outro efeito, e
possibilitou ao sujeito saber que há um saber inconsciente, do qual ele, o
sujeito, nada sabe. Por seu turno, o analista devolve a suposição de saber
indicando a direção do saber inconsciente.
Para haver entrada em análise é preciso, pois, que o analista produza,
com sua intervenção, um ato analítico, ato que se desvela em um encontro
com um significante o qual produza uma torção, um corte na repetição,
significante que, ao ser descortinado, tenha tal valor para o analisante que
o faça buscar mais uma vez, pelo revelar deste sentido, outro que tanto se
buscava mas não se encontrava. Esta intervenção estabelecerá, enfim, a
virada da transferência imaginária para a transferência analítica.
O segundo tempo que pudemos vislumbrar diz respeito a certa dimensão de protagonismo da própria queixa: se o analista, por seu ato,
permite saber que existe ali um sujeito do inconsciente, que há algo que
escapa ao sujeito, uma espécie de enigma, o analisante poderá agora, ele
próprio, escutar em seu pedido de análise um algo a mais, que ultrapassa,
que está para além da queixa, e que esta investigação talvez possa ser algo
interessante. Assim, protagonismo, em EIs, trata-se de tornar o paciente
sujeito de seu desejo de saber sobre si.
Não havendo continuidade entre queixa e demanda, entre estes dois
tempos, o que funda a diferença é a posição do analista ao suscitar a implicação do sujeito na condição de protagonista da própria queixa.
Na medida em que haja o reconhecimento deste protagonismo - “qual
a minha parte nisso?” – implica-se o sujeito em uma corajosa busca, movida pelo desejo de desvelar o que é isso que, neste ponto da travessia, se
traduz como enigma.
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O que possibilita que este contrato se sustente para além da burocracia
do método será algo que o amarre e o sustente, o que implica tanto a forma
como o analista irá emprestar seus ouvidos, como uma forma que permita
ao sujeito reconhecer seu protagonismo. Este protagonismo se traduzirá,
ao longo do processo de análise, em um engajar-se em seu próprio desejo,
o que significa responsabilizar-se pelo prazer e pela dor que este suscita.
Assim, reconhecer-se na incompletude, na falta, e estar disposto a dialogar
com os fantasmas que construímos sobre nós mesmos.
Referências bibliográficas
BRIZIO, M. Abertura da II jornada do curso de especialização e comemoração do aniversário da Clínica de Atendimento Psicológico.
In: Boletim da Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS, Porto Alegre, 1997.
FREUD, S. O início do tratamento. Obras Completas. Vol. XII, Rio de Janeiro: Imago, s/d.
LACAN, J. A Direção do tratamento e os princípios de seu poder. (1958). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
_________. Posição do inconsciente. (1963). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
_________. O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada: um novo sofisma. (1945). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
_________. Função e campo da fala e da linguagem. (1953). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
_________. O saber do psicanalista. (1971). Centro de Estudos Freudianos do Recife. Publicação Interna, 1997.
LE POULICHET, S. O tempo na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
POMMIER, G. O amor ao avesso: ensaio sobre a transferência em psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
QUINET, A. As 4+1 condições da análise. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
VEGH, I. A lógica do ato na experiência da análise. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, nº. 39, jul-dez/2010.
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temática.
Aventurar-se na desventura: um ensaio
sobre política pública e laço social
Carolina Monte Lague1
Juliana liga insistentemente no início da manhã de segunda-feira.
Diz que fez algo horrível e que precisa de ajuda. A sua voz alterada expõe
o desespero de quem não sabe o que fazer. Chegamos em sua residência
e a situação encontrada é preocupante. Roupas jogadas no chão, móveis
revirados, garrafas de cachaça e um cachimbo de crack. Ao nos ver joga, literalmente, sua filha de quatro meses nos nossos braços. Sabe que, naquele
momento, não pode protegê-la. “Fica com ela, segura ela” diz aos prantos.
E enquanto isso, novos casos nos chegam, demandas do Judiciário,
do Conselho Tutelar, do Ministério Público, da Saúde, etc.
Psicóloga da Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) – Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Especialista em
Atendimento Clínico – ênfase em psicanálise (UFRGS).
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temática.
Marcela e seu marido Lucas vêm nos procurar. Ela se mostra muito
apreensiva com a possibilidade de uma nova internação de seu companheiro em função do uso excessivo de álcool. Marcela diz: “Mas e eu? Vou
ficar sozinha?”. No que imediatamente o marido rebate: “Não, a D. Carolina
é que vai cuidar de você!”.
Seguem-se mais reuniões e mais casos a serem atendidos. Casos graves
dentro de uma região em que casos graves são o que há de mais comum.
Vânia e seu psiquiatra encontravam-se com a relação estremecida.
Vânia se queixava. Dizia que ele não a entendia. Na tentativa de intermediar essa relação a acompanhamos em uma consulta. Durante o atendimento o médico solicita alguns dados pessoais. Ela diz: “Não lembro,
mas a Carol sabe!”.
Emanuele nos liga chorando e diz que está sendo expulsa de sua
casa pelos traficantes. Se não sair em poucas horas ela e seus filhos serão
assassinados. Somos os primeiros a quem ela pede ajuda.E assim, vamos
representando os nossos usuários, tecendo com cuidado os delicados
laços no social...
Aventurar-se na desventura. Esse parece ser o lema que acompanha o
profissional que atua na política de Assistência Social. Talvez seja o lema
de profissionais que atuam com populações socialmente vulneráveis. Mas
há algo dentro da política de Assistência Social que faz com que, muitas
vezes, essa aventura vá longe demais. Como política de intermediação
com outras políticas, sentimos na pele a fragilização de toda uma rede
de atendimento. Vamos traçando planos de atuação e também planos
de sobrevivência. Sobrevivência considerando os casos que nos chegam
cotidianamente. Aventurar-se num mundo que não é nosso pode ser mais
caótico do que poderíamos supor. Isso parece ficar ainda mais claro no
momento em que uma política pública está sendo implantada. Estamos
falando da criação do Sistema Único de Assistência Social, o SUAS.
Quando iniciamos nesse trabalho somos tragados por uma quantidade
enorme de apelos e situações que nos arrepiam as espinhas. Identificamo-
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nos, martirizamo-nos, culpamo-nos. Passamos a adentrar em cidades fantasmas, cidades tão informais quanto os seus nomes. Elas ficam escondidas
nas regiões periféricas das cidades oficiais em que poucos têm a chance, ou
mesmo o desejo de entrar. Às vezes, nem o Estado. É estabelecida, assim, a
divisão: cidades oficiais de um lado e cidades clandestinas de outro. Estes
são territórios da exclusão “(...) nos quais a deformação ocorre de forma
lenta e insistente, representam um ideário de cidade injusta e desigual.
Isto foi levado adiante, com a sucessiva degradação do que, na cidade,
deveria ser público e comum a todos” (Endo, 2005, p. 50).
E é nesses locais que desenvolvemos o nosso trabalho, em que realizamos escutas. Tentativas de costurar laços possíveis dessas pessoas
com o restante do mundo. Ao mesmo tempo, sabemos que trabalhar com
qualquer política pública é um desafio, pois devemos agir de acordo com
as possibilidades que nos são oferecidas dentro de contextos graves como
os das famílias e dos indivíduos que acompanhamos. De qualquer maneira,
é importante observar que o momento da implantação de uma política é
ainda mais delicado, pois impõe a todos os envolvidos no processo, sejam
eles trabalhadores, usuários e gestores, uma certa demanda de eficácia
bastante idealizada. Esse processo de idealização só parece ser visto em
tão grande conjuntura no momento em que uma política se materializa na
prática. É o que aqui estamos chamando de furor implantatório. De todos os
lados espera-se de si e dos outros uma atuação fiel ao que está apregoado
pelas leis e normas recém-lançadas.
Mas afinal, do que se trata o SUAS? Ele surge na esteira da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), que em 1993, com sua promulgação,
estabelece a organização da Assistência Social no país tratando essa política
como direito do cidadão e dever do Estado. Assim, ela passa a ser destinada
a todos que dela necessitarem sem qualquer tipo de discriminação. Em
2003, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS)
passa a ser o responsável pela Assistência Social em âmbito federal. Tanto
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temática.
a LOAS quanto a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) servem
de amparo à sua criação em 2005. O SUAS é descrito como:
(...) um sistema público, não-contributivo, descentralizado e participativo, destinado à gestão da assistência social, através da integração
das ações dos entes públicos (União, Estados, Municípios e o Distrito
Federal) responsáveis pela política socioassistencial e das entidades
privadas de assistência social (NOB-SUAS, 2005, p. 10).
Como consequência, estados e municípios passam a compartilhar
de algumas normas e critérios para a gestão e execução da política de
Assistência Social no país. De fato, desde a constituição federal de 1988
a Assistência Social se enquadrava no tripé da Seguridade Social (Previdência, Saúde e Assistência Social), mas com o SUAS isso passa ser ainda
mais potencializado.
Um dos diferenciais do SUAS é que ele passa a separar as suas ações
por complexidade de atendimento. Dessa maneira, foram criadas a Proteção Social Básica e a Proteção Social Especial, esta dividida entre média
e alta complexidades. A Proteção Social Básica tem como função atuar na
prevenção de vulnerabilidades e riscos sociais através de diversas ações no
território capitaneados pelos Centros de Referência de Assistência Social,
os CRAS. Já a Proteção Social Especial, dividida entre média e alta complexidades, visa um trabalho mais sistemático com famílias e indivíduos que
apresentam graves riscos sociais por dificuldades ou mesmo rompimentos
dos seus laços sociais.
O que está em jogo é a tentativa de resgate e/ou fortalecimento desses vínculos pensando em maneiras de atuação que possibilitem a quem
atendemos encontrar novas maneiras de circulação no mundo. Circulação
possível dentro de um mundo possível. Em se tratando da Média Complexidade, os locais que realizam essas ações são os Centros de Referência
Especializados de Assistência Social, os CREAS. Eles são responsáveis
pelo acompanhamento de situações consideradas limites, que envolvem,
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por exemplo, exploração e abuso sexual, indivíduos em situação de rua,
adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, violência intrafamiliar severa. A Proteção Social de Alta Complexidade atua nos casos
em que há ruptura dos vínculos familiares e seus espaços de atendimento
são os abrigos, albergues, casas-lares, etc.
Em se tratando do município de Porto Alegre, a sua gestão e execução é de responsabilidade da Fundação de Assistência Social e Cidadania
(FASC). De fato, antes da criação do SUAS, a cidade sempre se constituiu
como uma referência nacional no trabalho dessa política pública. Há um
certo consenso entre os trabalhadores e gestores de que o município realizava um trabalho eminentemente focado no que chamamos hoje de média
complexidade. As famílias acompanhadas eram aquelas que demonstravam
mais dificuldades e que por isso demandavam mais atenção. Além dos
espaços próprios, eram firmados convênios com diversas instituições para
também atuarem no atendimento a essa população. Foi criada, portanto,
uma maneira de trabalhar dentro dos limites que esse tipo de trabalho
permite aliado aos recursos humanos e materiais disponíveis.
Com a criação do SUAS, essa forma de se trabalhar precisou ser repensada. Assim, passaram a existir 22 CRAS divididos em nove regiões
da cidade, e em cada região um CREAS. Os espaços conveniados foram
vinculados à Proteção Básica, somando-se aos 22 CRAS da cidade. Os
CREAS, então, passaram a ser os únicos espaços de atendimento da Assistência Social para as situações mais graves da cidade. Um exemplo mais
claro e que demonstra bem o quanto a lógica de atuação mudou foi o de
que na região Eixo Baltazar-Nordeste, onde se encontra o CREAS em que
desenvolvemos o nosso trabalho, funcionavam dez espaços de atendimento da Assistência Social, entre próprios e conveniados, que atuavam
eminentemente em casos de média complexidade. Atualmente, apenas o
CREAS presta esse serviço numa região da cidade em que casos graves
são absolutamente recorrentes.
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temática.
De fato, ao entrarmos em contato com as leis, normas e orientações que
foram divulgadas as expectativas são grandes. E em se tratando do CREAS,
há muito o que se pensar sobre a presença do significante especializado
que seu nome carrega. O especializado do CREAS por si só já produz expectativas em toda uma rede de atendimento. Expectativas que também são
identificadas nos documentos lançados pelos gestores da política. Afinal,
esse significante não surge à toa. Há algo no especializado que, atualmente,
parece indicar uma luz no fim do túnel. Ele carrega uma promessa, uma
promessa de que em última instância algo funcionará. Uma última aposta,
quando todas as etapas anteriores de alguma maneira fracassaram. Falhas
em toda uma rede de atenção. As expectativas aumentaram e as equipes
reduziram. Parece simples. Parece apenas...
Somos convocados a responder desse lugar ao mesmo tempo em que
somos referências de famílias e indivíduos que há muito perderam suas
referências. Em muitos momentos somos aqueles que tentam unir laços
já tão fragilizados. Laços, inclusive, com outras políticas de atendimento.
A Assistência Social, por assumir uma posição de intermediação, acaba
sendo aquela que sustenta, muitas vezes, a posição e os direitos do usuário.
Nesse sentido, a nossa presença é, em diversas situações, o que impede
uma ruptura maior com o mundo. Trabalhamos com a contradição. Não só
a contradição social tão comentada, mas contradição de posições. Somos
não só aqueles que amparam, mas somos também aqueles que assumem
uma posição de controle, o que Julien (2000) chama de terceiro social.
Sem dúvida, constitui-se em um avanço a existência de uma política
pública destinada a uma população historicamente considerada irrelevante, colocada à margem de qualquer atenção mais cuidadosa ou especializada. Atualmente, o Brasil é uma referência através de sua política de
transferência de renda, a maior do mundo. Todos esses aspectos devem
ser valorizados e defendidos. Entretanto, reconhecer esse avanço também
implica em refletir como essa política é pensada e implantada, tanto do
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Jornada do Percurso de Escola XI (II).
ponto de vista nacional quanto regional, e entender que a magnitude dessa
proposta é diretamente proporcional ao desafio de colocá-la em prática.
Na nossa concepção, quando expectativas como essas surgem é necessário
assumir uma posição política. Como aponta Rosa (2004):
Cabe-nos resgatar a radicalidade da proposta psicanalítica e ressaltar
o caráter ético e político dessa escuta, contribuição da clínica que
pode se estender às demais situações, dentro das quais se pretende
elucidar aspectos referentes ao sujeito sob desamparo social e discursivo e aos processos de sua manutenção em tal condição, que promovem impasses nas propostas de políticas de intervenção (p. 151).
A criação do SUAS parece indicar uma nova maneira de ver uma
população que por muitos anos foi pouco vista. Uma reflexão sobre a condução dessa nova forma de olhar é necessária para que, dessa maneira, ela
não seja contaminada por velhas formas de se fazer política para os mais
pobres.
E é assim que a psicanálise se torna um instrumento de atuação e
reflexão. Afinal, o nosso trabalho clínico dentro de uma política pública
funciona no momento em que podemos escutar e cuidar. Escutar e cuidar
de todos os envolvidos nesse processo, usuários e trabalhadores. É essa a
verdadeira demanda. O que importa, em última instância, são as pessoas
que atendemos e a forma de se conduzir o trabalho em equipe, dentro
dos limites do possível. É através dessas relações que algo poderá surgir
e criar impacto social.
É na relação transferencial que se criam possibilidades para a transferência de nossos desejos a quem atendemos. Algo que lhes dê identidade.
Que lhes dê reconhecimento. É a nossa dupla função agindo em nosso
favor. Aquilo que chamamos anteriormente de contradição de posições. De
um lado quem escuta e do outro a representação do Estado. E não seriam
essas duas posições, esse dois olhares, fundamentais para o advento da
cidadania?
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temática.
O que funciona realmente é a escuta. A possibilidade de dar voz.
Deixar em suspenso a urgência das demandas e do furor implantatório
e possibilitar o surgimento de sujeitos. Nossa função é levantar dúvidas
e motivar reflexões sobre o trabalho dentro da equipe e mesmo entre os
gestores. Mais do que números de atendimentos, o que está em jogo é o
cuidado. O bom funcionamento é observado quando se criam possibilidades de intermediar e representar quem atendemos. Isso é o que faz uma
política ser bem sucedida!
Fazemos uma clínica do laço social, costurando cotidianamente novas
possibilidades de ser no mundo.
Referências bibliográficas
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social, 2005.
ENDO, P. A violência no coração da cidade: Um estudo psicanalítico. São Paulo: Escuta/Fapesp, 2005.
JULIEN, P. Abandonarás teu pai e tua mãe. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.
ROSA, M. D. Uma escuta psicanalítica das vidas secas. Em: Adolescência: Um problema de fronteiras. Porto Alegre: APPOA, 2004.
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temática.
Psicanálise e o coletivo, uma ética singular
Júlia Lângaro Becker1
Este escrito pretende abordar questões a partir de minha prática como
psicóloga numa instituição pública federal de educação, acolhendo e
acompanhando servidores públicos federais numa proposta de equipe de
saúde multidisciplinar. Lá, encontramos diferentes frentes de atuação: a
clínica individual institucional, o trabalho em equipe, a escuta de grupos,
a atuação política enquanto servidora pública, etc. Tudo isso nos convoca
a pensar sobre a prática da psicanálise em contextos institucionais. Pensar
a psicanálise em contextos diferentes daquele tradicional inaugurado por
Freud, o do setting terapêutico em quatro paredes, é um exercício constante de alguns psicanalistas. Exercício importante, na medida em que
a prática psicanalítica avança cada vez mais, se propondo a intervir em
diferentes coletivos.
1
Psicóloga na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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Debieux Rosa (2004), em seu texto A psicanálise e as instituições: um
enlace ético-político, assinala como os psicanalistas estão migrando para
as instituições (de saúde mental, de educação, jurídicas, etc), buscando
levar com eles sua posição e suas concepções. O que a autora alerta é
que algumas vezes as práticas psicanalíticas são transportadas sem que o
contexto institucional seja levado em conta. Mas afinal, como podemos
então levar em conta esse contexto institucional? Como pensar o coletivo
a partir de uma ética psicanalítica?
Na tentativa de responder a essas perguntas, nos pareceu crucial
retomar Freud em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921). Nessa
produção textual podemos acompanhar os primeiros questionamentos da
psicanálise sobre psicologia social. Freud inicia apontando que a psicologia
individual é também uma psicologia social, pois mesmo que a psicologia
individual se dedique a investigar a psique do ser individual, ela dificilmente conseguirá abstrair das relações desse ser com os outros indivíduos.
Portanto, a psicologia das massas trata o ser individual como
membro de uma tribo, um povo, uma casta, uma classe, uma
instituição, ou como parte de uma aglomeração que se organiza como massa em determinado momento, para um certo
fim (Freud, 1920-1923, p. 15).
Algumas passagens dessa elaboração freudiana são muito importantes para pensar o conceito de coletivo. O fenômeno da massa psicológica,
por exemplo, explicado por Freud (1921) a partir de Le Bon (1912), é
definido como um ser provisório de células que se soldam e formam
características diferentes de quando estão por si só. Também o conceito
de alma coletiva reforça que apenas pelos indivíduos comporem a mesma massa, eles passam a adquirir uma espécie de alma comum e, ainda,
que o indivíduo age de modo distinto quando alinhado a uma multidão
que adquiriu a característica de uma massa psicológica. Interessa-nos
essa ideia de que o indivíduo é sempre parte de um aglomerado que se
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organiza e que, em alguns casos, essa massa pode transformar a maneira
do sujeito agir.
No serviço em que atuo, por exemplo, uma das primeiras propostas
da equipe de saúde foi a de possibilitar um acolhimento dos usuários com
uma escuta individual. Essa proposta se consolidou como um serviço oferecido a toda a instituição, e até hoje se sustenta, sendo reconhecido como
de extrema relevância. Porém, o formato individual começou a mostrar-se
insuficiente na perspectiva da equipe de saúde, justamente porque sempre
houve algo da ordem do funcionamento institucional a ser escutado e
trabalhado, mas muito difícil de ser acessado no formato até aquele momento oferecido. Era preciso entender melhor de que forma essa massa
psicológica da instituição estava incidindo no modo daqueles servidores
agirem e como ela estava relacionada com suas patologias.
Kastrup (2005), em O Conceito de coletivo como superação da dicotomia indivíduo-sociedade traz algumas contribuições a respeito desta
questão. Ela propõe o coletivo não como o que se opõe ao individual,
confundindo-se com o social, mas sim como um plano de co-engendramento e de criação, que supera a dicotomia indivíduo-sociedade. Complementando essa construção, Debieux Rosa (2004), em seu outro texto
A pesquisa psicanalítica dos fenômenos sociais e políticos: metodologia e
fundamentação teórica, nos auxilia novamente neste tema quando relembra que, em Freud, a divisão indivíduo-sociedade é recusada, assim como
a divisão de psicologia individual-social. A autora ressalta que na teoria
freudiana as instituições impõem ao indivíduo algumas modificações
psíquicas, assim como a entrada na vida social impõe modificações ao
sujeito. Calligaris (1993), também aponta nessa direção em Sociedade e
Indivíduo colocando que essa dicotomia é aparente, e que, na necessidade
de conciliar esses dois termos é que se formula a questão social. Tudo isso
nos ajuda a demonstrar que, ao falar de coletivo, não temos a intenção de
dicotomizar o individual e o social, mas de seguir a pista que Freud (1921)
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nos deixou, de que ideias contraditórias e opostas coexistem tanto na vida
anímica dos sujeitos quanto na formação das massas.
Isso nos indica que existe algo na organização social que escapa ao
individual e que é da ordem do inconsciente, da ordem daquilo que faz laço.
A libido, ou o amor, é a essência da alma coletiva, pois o que caracteriza
um coletivo são os laços afetivos (investimentos libidinais) nele existentes.
A isso que escapa à individualidade, a essa soldagem libidinal que permite
algo em comum, a isso que está enlaçado, chamaremos de coletivo.
Pensando assim, fica mais fácil compreender algumas propostas que
começaram a ser elaboradas pela equipe de saúde para dar conta desses
coletivos, como a de oferecer uma escuta a equipes de trabalho em vez de
restringir-se aos pedidos individuais. Conforme a equipe multidisciplinar
foi se apropriando dessa proposta e dessa necessidade de uma clínica do
coletivo, as demandas institucionais que já existiam nesse sentido começaram a ter mais visibilidade. Quanto mais essa oferta ficava presente no
discurso do serviço de saúde, mais emergiam pedidos de trabalho dentro
dessa linha. Fica então evidente para o serviço que há um funcionamento
que só pode ser analisado a partir do encontro com coletivos e da percepção
de suas formas de organização, tanto no que diz respeito a seus processos
de trabalho quanto ao funcionamento de seus laços afetivos.
Falar em psicanálise e coletivo implica tentar dar conta de alguns
conceitos interessantes que estão sendo criados para denominar práticas
psicanalíticas em contextos sociais, institucionais e políticos: psicanálise
ampliada, psicanálise extramuros, clínica psicanalítica da instituição,
entre outros. Porém, antes de seguir este questionamento, é importante
uma parada para aprofundar o conceito de instituição.
Ao discorrer sobre Estruturas coletivas, suas lógicas e modos de subjetivação: instrumentos para uma Clínica Psicanalítica da Instituição, Betts
(2011) situa o conceito de instituição de forma esclarecedora. Para o autor,
a instituição é a rede simbólica que demarca as bordas do real impossível
de simbolizar, de forma que podemos concebê-la como as estruturas discur-
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sivas coletivas que também funcionam enquanto agentes de subjetivação
do ser humano. Dessa forma, as instituições “são simultaneamente origem
e palco da subjetividade, definindo os sintomas sociais, seus ideais, suas
formas de gozo e sofrimento” (Betts, 2011, p. 44).
Tomar a instituição como uma estrutura discursiva coletiva nos ajuda
na compreensão de alguns impasses que podem começar a surgir na própria
equipe de saúde multidisciplinar. Durante o processo de elaboração de
novas propostas de trabalho, podemos encontrar sinais de que a equipe
reproduz algumas das patologias anteriormente observadas em outros
coletivos da instituição. Ou seja, assim como existe a necessidade de
escutar uma patologia institucional emergente, fica também visível que a
própria equipe enquanto um coletivo inserido naquela instituição enfrenta
obstáculos de diferentes ordens, sejam eles relacionados a concepção do
trabalho, como relacionados aos laços afetivos que a compõe.
Com isso, podemos elaborar que, ao construir intervenções institucionais, uma equipe multidisciplinar de saúde enfrenta dois desafios: um
está relacionado à dificuldade de abrir espaço na cultura da instituição
para que os pedidos de análise institucional emerjam de forma mais natural, o que também compete à equipe um esforço para contribuir com a
mudança do discurso institucional; o outro está relacionado ao próprio
processo de construção da proposta metodológica que norteará a intervenção em equipe, um momento que dificilmente não será acompanhado
de enfrentamentos.
Ribeiro (2011), em A psicanálise nas instituições: clínica e política, traz
uma excelente contribuição para este debate ao assinalar que em contextos
institucionais ficam tensionadas diferentes concepções de sujeito que, por
sua vez, fundamentam diferentes éticas. O autor também se pergunta sobre
os limites e as possibilidades de atuação de profissionais orientados pela
psicanálise quando inseridos no cotidiano de uma equipe multiprofissional
e mostra como muitos psicanalistas encontram dificuldades para fazer com
que as funções para as quais foram contratados em instituições sociais,
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geralmente psicólogos e psiquiatras, possam ser exercidas a partir do referencial psicanalítico. Na maior parte das vezes este propósito não está
presente na contratação destes profissionais. Também é raro encontrarmos
instituições que promovam intervenções sociais orientadas explicitamente
pela psicanálise e, mais raro ainda, é identificar uma política pública que
tenha sido proposta a partir de concepções psicanalíticas.
Mas será que é isso que devemos esperar das instituições nas quais
trabalhamos enquanto profissionais da saúde? Parece-me que há uma
diferença importante entre o exercício de uma ética psicanalítica e a prática de um trabalho com referencial psicanalítico. De fato, é um desafio
pensar nisso quando estamos inseridos num contexto de trabalho onde
a ética da instituição, na qual trabalhamos, muitas vezes desencontra a
ética psicanalítica. Porém, sustentar esta ética não é levantar a bandeira
da psicanálise como visão de mundo ou muito menos querer, por exemplo, que uma equipe multidisciplinar estude psicanálise. Até porque, é
preciso considerar as outras éticas em jogo, como a ética orientada por
diferentes conselhos profissionais, a ética das políticas de governo, entre
outras. Frente a isso temos de nos perguntar então como seria afinal o
exercício da ética psicanalítica nesses coletivos compostos por diferentes
éticas? Como operar um trabalho possível? Ribeiro (2011) situa bem essa
questão quando sugere que não se trata de que as equipes façam Um,
enquanto uma totalidade, mas sim de que tenham algo em comum. Esse
comum da equipe tem de estar relacionado com o lugar de não-saber,
deslocando a suposição de saber que está na equipe para o sujeito que
procura o serviço.
Kehl(2002), em Sobre ética e psicanálise, define a ética da psicanálise enquanto aquilo que não responde a um dever conhecer, mas a um
deixar falar a verdade do sujeito. Ela nos diz que a psicanálise é, antes de
mais nada, uma prática da dúvida. O analista, que deve estar preparado
para não se identificar com o lugar (de poder) que a transferência do
analisante lhe atribui, vai ser aos poucos destituído do lugar de sujeito
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suposto saber. Dessa forma, o analisante é encorajado não a tudo saber,
mas a indagar-se.
Sobre isso, Lacan, no Seminário – livro 17, O avesso da psicanálise,
nos diz: “Ele, o analista, se faz de causa do desejo do analisante” (Lacan,
1969-1970, p. 36). Fazer-se causa de desejo é esvaziar-se de saber, fazendo
aparecer no outro a verdade do sujeito do inconsciente. É nesse sentido
que o discurso do analista é o avesso do discurso do Mestre, pois enquanto o primeiro abre espaço para a verdade do sujeito, o último assujeita. E
mais, no seu Seminário sobre a Transferência (1960-1961), Lacan mostra o
caráter exemplar de Sócrates (no Banquete) quanto à posição do analista.
Ele, Sócrates, se apresenta como nada sabendo a não ser as coisas do amor,
e quando é sua vez de falar disso, não consegue fazer outra coisa senão
citar as palavras de um outro. Manifesta com isso sua divisão de sujeito:
não pode falar do que sabe a menos que permaneça na zona do “ele não
sabia”. Lacan insiste no caráter essencialmente social desse discurso.
É assim que queremos pensar nosso lugar profissional enquanto
psicanalistas inseridos num coletivo. Nem sempre teremos o privilégio
de trabalhar em equipes onde todos estejam dispostos a indagar mais
do que responder. As diferenças estão sempre pulsando num coletivo,
mesmo que uma equipe inteira trabalhe com o mesmo referencial teórico.
Essa realidade abrange diferentes concepções do trabalho e de sujeito e,
consequentemente, diferentes concepções metodológicas, muitas delas
baseadas em teoria nenhuma. Por isso devemos sempre contar com um
tensionamento entre éticas e não apostar que um acordo ético é condição
para um trabalho possível. É nessa tensão que talvez possamos sustentar
o lugar de não-saber, fechando as portas para a disputa de saberes que
impede que o trabalho aconteça. Aqui cabe um alerta: o que propomos não
vai na direção de entregar-se à sedução da diplomacia. Apostar no lugar
de não-saber não significa submeter-se a outras éticas ou recuar perante
diferentes posicionamentos, mas, pelo contrário, significa marcar posição e
não se privar disso. É marcando posição a partir de uma ética psicanalítica
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que possibilitamos o reconhecimento do saber do outro e apostamos na
circulação da palavra.
Vale resgatar a reflexão de Kehl sobre a década de 70, quando Foucault
começou a pensar a psicanálise como mais uma manifestação do poder
disciplinar. Ela afirma que,
de fato, nas sociedades em que se popularizou, a psicanálise foi se
deslocando de sua função original, de fazer falar uma subjetividade
até então silenciada, para uma função normatizadora da subjetividade moderna. Alguns mal-entendidos na prática clínica podem fazer
de um tratamento psicanalítico uma forma sofisticada e eficaz de
pedagogia (Kehl, 2002, p. 134).
E é exatamente isso que queremos evitar. Não queremos fazer da
psicanálise mais um poder disciplinar. Se a formação de um analista está
essencialmente em seu trabalho de análise enquanto analisante, a transformação social parece também depender de um deslocamento discursivo.
Portanto, ao trabalhar com o coletivo enquanto psicanalistas, é importante
estarmos atentos às formações discursivas das quais fazemos parte.
Em Cartas a um Jovem Terapeuta, Calligaris (2004) já chamava a
atenção de jovens terapeutas no que diz respeito à vocação profissional:
ele diz que para ser um psicanalista é importante que se tenha “uma extrema curiosidade pela variedade da experiência humana com o mínimo
possível de preconceito”. Dizer isso é apostar que mesmo no constante
tensionamento que as relações humanas nos colocam, é possível compor uma prática psicanalítica que possa atuar no coletivo sem deixar
de lado a singularidade dos sujeitos, sejam eles pacientes, usuários dos
serviços, nossos colegas de profissão ou de equipe. Portanto, mesmo
não respondendo a todas as questões levantadas neste escrito, podemos
entender que ao falar de coletivo, a psicanálise nos convoca a marcar
uma ética singular.
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Referências bibliográficas
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Companhia das Letras, 2011.
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FE-USP. São Paulo, 2004.
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Irreversível? Sobre o trabalho
de transferência com crianças
e adolescentes em situação de abrigamento
Fernanda Perlin de Cesaro
Trazer questões e apontamentos sobre a transferência com adolescentes e crianças institucionalizados em situações de privações, que tiveram
experiências de falência na relação com seus pais, sempre é uma tarefa
delicada, bem como o trabalho cotidiano, que circula por pontos delicados e importantes para qualquer analista, como o amor de transferência
(Freud, 1915 [1914]. Assim, tal escrito visou compartilhar a experiência
de trabalho clínico e institucional com uma adolescente que tentava se
estabelecer e criar caminhos, após uso de drogas e passagens por alguns
lares e por instituições.
O título irreversível é polissêmico neste trabalho, pois faz pensar nos
caminhos que parecem já determinados como se apresentam no discurso
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social: “Drogas: um caminho sem volta”, foi inspirado no filme francês
homônimo de Gaspar Noé, onde o diretor e roteirista apresentam sua história mostrando o final antes do início. O filme gera angústia e desconforto
pela forma como a câmera é manejada, e aqui associo com as condições
de trabalho institucionais e a vida de adolescentes e crianças em situações
de abrigamento. O filme é narrado de trás para frente, e no início percebemos a truculência, a agitação com que a câmera é manejada, o que ao
longo do filme, que vai do presente para o passado, os personagens vão se
mostrando mais calmos e em situações emocionais diferentes. Ao chegar a
uma situação de abrigamento, muitas crianças e adolescentes encontramse em um momento de angústia de suas vidas, por rupturas de vínculos,
incertezas sobre o seu presente e o seu futuro, algumas vezes desorientadas
ao entrar em um território que desconhecem.
“Eram umas duas horas da tarde, as crianças e os adolescentes se
preparavam para um passeio. Natasha pediu à cozinheira para tomar
refrigerante, ao que esta lhe respondeu que pretendia abrir a garrafa na
volta do passeio e assim todos poderiam bebê-la junto com o lanche que
prepararia. Natasha, contrariada, pergunta a um monitor, sem que a cozinheira percebesse, se pode beber o refrigerante e este a autoriza. Outro
monitor, que havia observado as duas conversas, avisa ao monitor que a
tinha autorizado sobre a conversa de Natasha com a cozinheira. Este volta
atrás em sua decisão e diz a ela que esperasse para beber quando voltasse
do passeio, junto com os demais. Ela senta em um banco na cozinha e
começa a contar até dez, a se balançar e a sacudir uma cadeira de bebê a
sua frente. Antes de chegar aos dez ela levanta a cadeira e a joga contra a
parede, ao mesmo tempo em que começa a gritar e a arremessar objetos
que encontra a sua frente. Nesse momento a cozinheira desmaiou, a faxineira teve uma crise de pressão, os demais ficaram perplexos e o passeio
não aconteceu”.
Esta vinheta institucional, relatada por monitores, apresenta uma
das várias atuações de uma adolescente e dos funcionários, em uma Casa
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de Passagem, serviço de alta complexidade da Assistência Social de uma
cidade da Grande Porto Alegre. Trata-se de uma adolescente de 16 anos,
a quem chamarei de Natasha, inspirada na música homônima do Capital
Inicial, que remete não apenas a esta adolescente, que teve mudanças
constantes de residência, mas a tantas outras que já passaram pela situação
de abrigamento em algum momento de suas vidas. A música fala de uma
mudança de identidade (“era Ana Paula agora é Natasha”), ou no deixar
as certezas, aquilo que se tem, os amores que se tem (“...deixou pra trás os
pais e o namorado...”) e que para isso (“um passo sem pensar, um outro dia
um outro lugar”) se lançam sem pensar, sem medir as consequências para
outra situação, outro lugar, outras pessoas, outros amores. Não calculam
o preço que terão de pagar.
No que diz respeito à adolescência, sabemos de um lugar específico
na subjetividade de cada um de nós: separação dos pais da infância,
novos ideais, assim como novas experiências sexuais, habitadas, a
partir de então, não apenas pelas fantasias de procriação, mas também pela possibilidade de que essa se concretize (Alberti e Pollo,
2005, p. 26).
Os sintomas, como os de Natasha, que se apresentam em forma de repetição são muitas vezes tentativas psíquicas de encontrar uma solução para
a angústia e é seguidamente uma tentativa de simbolização e elaboração,
ainda que fracassada, ao mesmo tempo em que é o que tem de mais vital
o sujeito, pois é pelo sintoma que se faz sujeito. Assim, Natasha costuma
criar vínculos e rompê-los, mudar de casa, de lugar, num ciclo interminável, repetindo o abandono ao qual foi submetida desde sua infância.
Natasha vai ao abrigo na semana seguinte ao retorno de minhas
férias, relatando uma briga em que sua mãe se envolvera com vizinhas,
briga na qual a mãe havia apanhado, ficando muito machucada. Neste
relato Natasha menciona: “Bater não pode, né, tia Fer? É o que você dizia”.
Natasha afirma querer alugar a casa no mesmo terreno em que moram a
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sogra e o namorado para morar ‘sozinha’. Afirma que há momentos em
que ela tem vontade de bater com uma vassoura no namorado, repetindo:
“É, mas bater não pode, né, tia Fer?”. “Sim, Natasha, bater não pode”. Há
uma fragilidade na simbolização e uma construção dessa simbolização
que parece estar em curso, na alienação à fala do Outro. Natasha ainda
precisa segurar-se na fala do outro para tentar a transição no processo de
internalização da lei simbólica.
Natasha permaneceu oito meses mais ou menos em situação de
abrigamento. Nesse período envolveu-se em vários conflitos com outras
adolescentes, com monitores, com a direção e com a equipe técnica. Natasha conseguiu um trabalho e saiu do abrigo para morar com o namorado,
depois de desistir de esperar que sua mãe lhe ajudasse nessa questão. Foi
sustentada sua decisão pela equipe técnica em pareceres ao Judiciário e
nas entrevistas com Natasha, que foi convidada a ir ao abrigo para ter atendimento psicológico e desta forma manter o vínculo com a instituição. Ela
foi ao atendimento durante um mês, mais ou menos, e depois começou a
ausentar-se e ao passar algumas semanas sem contato com Natasha fomos,
a assistente social e eu, lhe fazer uma visita domiciliar interdisciplinar. Na
visita, soubemos que ela havia sido demitida, pois havia batido em uma
colega de trabalho. Nesta mesma visita, o namorado e agora companheiro
de Natasha, presente na conversa, menciona que estava entendendo o que
cada uma de nós duas (eu e a assistente social) fazíamos: “uma cuidava da
razão e a outra da emoção”. Ao que a assistente social protesta, afirmando
que ela também cuidava da emoção. Natasha, rapidamente, diz ao namorado: “A tia Fer é quem diz não.” O que aponta o quanto ela precisa que a
“tia Fer” sustente os nãos, enquanto ela ainda não pode fazê-lo sozinha.
(...) Qual é o mínimo que somente um analista pode e deve fazer, a
partir do momento em que se dirigem a ele em nome de uma criança? Qual é o mínimo que somente um analista está apto a efetuar
a partir do momento que os pais vêm consultar um ‘psi’? Eu não
tomaria como ponto de partida as chamadas adaptações técnicas
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contingentes, mas um dos fundamentos da psicanálise: a transferência (Porge, 1998, p. 8).
Aqueles que estão abrigados vivem um momento no qual o Estado
produz intervenções em sua situação familiar, escolar, cotidiana. Para
isso utiliza aparatos como varas da infância e juventude, instituições de
abrigamento adequadas às diferentes situações que as pessoas ditas de
direitos apresentam. A instituição da qual faço parte, que se propõe a
atender crianças e adolescentes de zero a 18 anos, possui alguns aparatos
para dar conta dessas intervenções: um grupo de monitores; equipe técnica
que é composta por uma psicóloga e uma assistente social; um diretor que
é vinculado à gestão partidária do município, e ainda conselheiros tutelares, o juiz e a promotoria da infância e juventude. É nesse contexto que se
exerce o cargo de psicóloga, e se é demandada a apresentar observações,
relatórios, laudos, pareceres e intervir com Natasha e outras crianças e
adolescentes em situação de abrigamento, bem como intervenções com
os demais integrantes desse aparato de proteção social, em questões relacionadas a crianças e adolescentes abrigados.
De qualquer forma, os limites, as disposições, as demandas se fazem
com muitas diferenças de uma clínica em consultório. Estar em contato
cotidiano e intenso (no espaço onde comem, dormem, assistem televisão,
etc.) com crianças e adolescentes em situações em que seus lares e seus
vínculos sofreram abalo, joga-nos a outra intensidade na relação e nas
transferências.
“Tu sabes cozinhar? Então me leva para comer na tua casa?”, “Tu é
feia, vai embora daqui!”, “Eu quero um óculos de natação. Tu me dá?”,
“Não te mete na minha vida”, “Tem homenagem do dia das mães na escola,
olha o bilhete. Tu podes ir?”, “Tu podes me dar moedas pra comprar um
salgadinho do Homem de Ferro?”, “Tu tens dinheiro e condições de me
adotar. Adota-me!”, “Olha, a Mari aprendeu a falar não igualzinho a ti, faz
até o gesto com o dedinho”. Ou, ainda, ao quase ser derrubada quando
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agarrada por três meninos de aproximadamente oito anos, que pedem que
eu os leve para minha casa. Sendo bombardeada diariamente por perguntas
sobre a minha vida: se tem cama, comida ou brinquedos em minha casa;
se tenho filhos, se sou casada, se eu levo meus filhos na pracinha, se eu
e meu marido costumamos bater em nossos filhos, etc. Frases, perguntas
e atitudes como essas são frequentes e mostram experiências vividas, ao
mesmo tempo em que apontam a esperança de constituir outros laços, tão
necessários a sua integridade psíquica
Muitas das pessoas que trabalham no abrigo acabam por levar as
crianças ou os adolescentes para passar finais de semana em suas casas
ou para passeios com suas famílias, por se sentirem sensibilizadas por
tais pedidos. Algumas vezes tais proximidades são de grande proveito
para as crianças e adolescentes e lhes permitem viver e conhecer outras
formas de dinâmicas familiares e de relações afetivas, porém há de se
ter cuidado em tais situações, pois outras vezes lhes criam esperanças
de fazer parte daquelas famílias ou de ter vínculos mais fortes do que
realmente o são, ou a gerar questionamentos nas crianças e adolescentes
como: “Por que o tio André levou Marcelo para passear e não a mim?”.
Isto pode acabar por reforçar experiências de desamparo ou de reviver
abandonos. Uma das lutas que entravo na instituição e junto ao poder
público é a de que se proporcionem, aos finais de semana, atividades
fora da instituição, de cultura e lazer, para que a instituição lhes promova tais direitos. Não ter tais atividades tem criado, na instituição, a
justificativa necessária para que os passeios sejam proporcionados por
monitores em suas residências, considerando que não há no município
o projeto Apadrinhamento Afetivo.
A demanda de amor, que nos é endereçada na transferência, nesta
convivência na Casa de Passagem torna-se mais intensa, mais escancarada e
é verbalizada diretamente por crianças e adolescentes quando são tratados
e escutados com atenção e respeito. A especificidade desde ambiente nos
permite questionar quais seriam as condições mínimas necessárias para se
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estabelecer um trabalho com essas crianças e adolescentes? Como tomar
esse endereçamento sem assumir demasiado o lugar do suposto saber?
“Se há uma ética da psicanálise – a questão que se coloca – é na medida em que, de alguma maneira, por menos que seja, a análise fornece
algo que se coloca como medida da nossa ação – ou simplesmente pretende
isso” (Lacan, 1991, p. 374.)
A ética da psicanálise nos diz da importância do lugar de escuta,
do lugar de sujeito suposto saber, ou ao menos de estar sempre com este
lugar no horizonte, pois este lugar permite a um sujeito endereçar sua
fala a alguém.
Nesta transferência transito pelo lugar materno. Natasha chegou
a verbalizar o pedido de que eu a adotasse e já se adiantando a dizer que
sabia que eu tinha dinheiro porque eu ia de carro ao abrigo e que tinha
condições de tomá-la como filha. Assim, como sua mãe dizia que nunca
tinha condições de levar sua filha para casa, sempre faltava resolver um
problema de espaço na casa, ou cuidar de uma de suas outras filhas que
ficavam doentes, ou ajudar a sogra adoentada e diversos outros impedimentos que surgiam ao longo desses oito meses, eu era colocada por Natasha
no lugar daquela que não poderia dar-lhe desculpas esfarrapadas para não
tomá-la como filha. Não adotei Natasha literalmente, mas durante esse
período em que esteve em atendimento, pude adotá-la de outra forma,
ocupar e não ocupar essa demanda que me era apresentada de forma tão
escancarada, visando operar cortes de efeitos simbólicos, de forma que
ela pudesse construir possibilidades de superação e ressignificação de sua
história.
Lacan, em seu Seminário 7, cujo título é A ética da psicanálise, nos
traz a diferença entre o “dizer o bem” e o “bem dizer”, e aponta que a
experiência moral nos conduz a um bem, a um ideal de conduta e a um
sentimento de obrigação. Lembra-nos que a análise apontou a importância
do sentimento de culpa e que Freud entende que a dimensão moral está
associada ao desejo e que é dele que se desprende a energia que ao final
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de sua elaboração se apresentará como censura. O trabalho na instituição
é atravessado pelo discurso de proteção à adolescente, de querer o bem,
que se perde às vezes um pouco da potência de uma escuta analítica.
Lacan, no seminário 8, nos fala do lugar do analista, e no começo da
experiência analítica, para ele, há amor. Entre o extremo daquilo que não
sei e; os solavancos, as brutalidades e urgências de situações limites desta
adolescente em situação de abrigamento em que o desejo do sujeito fez
junção ao desejo do Outro, ali onde se situa a transferência, há um desejo
de que esse sujeito possa, a partir dessa experiência de escuta, estabelecer
sua individualidade, que tenha o “privilégio de culminar como sujeito de
seu desejo” ( Lacan, Seminário 8, p. 173).
Pois o desejo, em sua raiz e sua essência, é o desejo do Outro, e é aqui,
falando propriamente, a mola do nascimento do amor, se o amor é
aquilo que se passa nesse objeto em direção ao qual estendemos a
mão pelo nosso próprio desejo e que, no momento em que nosso
desejo faz eclodir seu incêndio, nos deixa aparecer, por um instante,
essa resposta, essa outra mão que se estende para nós, bem como
seu desejo (Lacan, Seminário 8, p. 180).
Referências bibliográficas
ALBERTI, S. & POLLO, V. Adolescência e criminalidade. In: Revista Marraio – Formações Clínicas do Campo Lacaniano, nº 10.
Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2005.
FREUD, S. (1915 [1914]). Observações sobre o amor transferencial (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise III).
In:. O caso de Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
LACAN, J. O Seminário - Livro 7 – A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1991, 2ªed.
PORGE, E. A transferência para os bastidores. Littoral: a criança e o psicanalista. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.
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temática.
Reflexões sobre a avosidade
na contemporaneidade
Valéria Rombaldi1
Inicio esta escrita pelo termo avosidade, que aparece no título. Não
sei se o escutei de alguém ou se surgiu de uma necessidade de nomear a
função exercida pelos avós. De qualquer forma, esta palavra não aparece
no dicionário Aurélio, então coloco aqui minhas reflexões sobre o que está
implicado no ser avô/avó no contexto social em que vivemos, na tentativa
de delinear o que avosidade poderia significar.
A partir da escuta de diversos relatos e de observações sobre as relações familiares em que avós, seus filhos e netos estão em foco, algumas
mudanças não podem passar despercebidas. De alguma forma, a imagem
dos avós aparece cada vez menos associada a uma possibilidade de transmissão entre gerações, seja porque dedicam menos tempo ao convívio
1
Psicanalista.
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temática.
familiar, seja por serem demandados apenas no que se refere às tarefas de
cuidado físico dos netos, sem que sejam autorizados a menor interferência
na sua educação. Em algumas situações, os avós podem se ver convocados a assumir totalmente a responsabilidade da educação e cuidados dos
netos, quando os pais das crianças não exercem a função parental que lhe
é própria. Nestes casos, a transmissão também é deslocada pela mudança
de lugar dos avós na estrutura familiar.
Muitos de nós certamente já ouviram queixas de que os avós não têm
mais tempo para colaborar nas atividades dos netos, como buscar na escola, levar para dormir em suas casas, para que seus pais possam sair nos
finais de semana. Ouve-se que os avós só viajam e não podem participar
de festas familiares. Nestas queixas, o valor dos avós está bastante restrito
à capacidade de exercer a função de babás, não se reconhece o valor dos
avós como transmissores de experiências, de princípios morais e éticos, da
história familiar onde cada sujeito poderia se situar, ou de desejo. É como
se estas possibilidades ficassem relegadas a uma posição secundária, ou
mesmo nem fossem consideradas.
Um aforisma do poeta e escritor francês René Char, diz que: “Nossa
herança nos foi deixada sem nenhum testamento” (em Feuillets d’Hypnos).
Se não há testamento, se não está escrito em lugar algum o que se recebe de
nossos antepassados, alguém poderia se perguntar sobre como reconhecer
o que herdamos e o que nos é legado. O que pode ser transmitido de pai
para filho, de filho para seu próprio filho, de uma geração para as outras
está muito além de objetos. Mesmo não estando escrito, seu lugar está
posto. Não se tem controle sobre o que se transmite, muito é da ordem do
não dito. Certamente, o que está no centro da questão da transmissão é o
desejo, em sua presença ou ausência.
No livro Abandonarás teu pai e tua mãe, Phillipe Julien aborda várias
questões sobre a transmissão. Nos lembra que a lei do desejo funda a conjugalidade e que o amor e o gozo sexual não são suficientes para sustentar
o laço conjugal. Mas como transmitir o desejo para a próxima geração? A
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Jornada do Percurso de Escola XI (II).
conjugalidade de um homem e uma mulher funda a parentalidade que
permite a transmissão da lei do desejo, necessária para que ocorra a ruptura do vínculo filial com a família de onde se vem, a partir do que o filho
se tornará capaz de se assumir e constituir uma nova conjugalidade. “[...]
pais que graças à sua conjugalidade, permanecem em sua própria geração
não fazem recair sobre os filhos tornados adultos o peso de uma dívida de
reciprocidade” (no que diz respeito ao amor)” (p. 36). Os pais devem saber
retirar-se, permitindo que o filho, tendo se tornado capaz de se assumir,
não ocupe o lugar de gozo deles.
Considerando as três gerações, o que estaria então implicado numa
possível diminuição da participação dos avós no dia a dia dos filhos e netos
e na insatisfação dos filhos com essa falta? Uma grande disponibilidade
de tempo por parte dos avós certamente não é garantia de que assumiram
este papel na família. Qual é a função dos avós hoje? O que é a avosidade
ou como deveria ser exercida? O que se reedita para os avós quando primeiramente tem seus filhos e quando estes, por sua vez, tornam-se pais?
O que se reedita para os filhos, quando estes se tornam pais, em relação
aos próprios pais?
Faço um recorte destas questões tomando como referência para minhas
reflexões um conto de Mia Couto, publicado no livro O Fio das Missangas,
chamado O Adiado Avô.
Este conto apresenta história de uma mulher que dá à luz um menino,
fato que foi motivo de muito contentamento dos familiares, com exceção
do avô materno. Este se recusa a visitar o bebê no hospital; quando o levam para visitá-lo, vê o berço mas não olha o menino, não quer olhá-lo.
A reação surpreende o restante da família, que não consegue compreender o avô. A filha, desesperada, pede ajuda à mãe, que é muda, para que
fale com pai, para que ele pare de castigá-la. Quando o menino diz os
primeiros sons, o avô afirma: “aprender a falar é fácil. Custa é aprender a
calar”. A avó materna, a muda, agora, “tão assumidamente avó”, sacode a
cabeça. Segundo o narrador, tio do menino, o pai, nesse ponto tem razão:
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temática.
“nós, pobres, devíamos alargar a garganta não para falar, mas para melhor
engolir sapos” (p. 34). O avô conta uma experiência ruim no trabalho,
consequência de ter ficado calado, e a avó suspira. Diz o filho: “Amadalena
suspirava direito por silêncios tortos” (p. 35). Após uma outra situação
em que o avô repele o menino que aprende a engatinhar, a avó o convoca
a dar explicações. E ele se explica.
Afinal, ele sempre dissera: não queria ter netos. Os filhos não despejassem ali os frutos do seu sangue.
– Não quero cá disso, eu não sou avô, eu sou eu, sou Zedmundo
Constante.
Agora, ele queria gozar o merecido direito: ser velho. A gente morre
ainda com tanta vida!
– Você não entende, mulher, mas os netos foram inventados para,
mais uma vez, nos roubarem a regalia de sermos nós.
E ainda mais se explicou: primeiro, não fomos nós porque éramos
filhos. Depois, adiávamos o ser porque fomos pais. Agora, queremnos substituir pelo sermos avós (p. 35).
A avó, farta da situação, lhe diz que ou ele se abrandasse ou que tudo
estaria acabado entre eles. Ele que saísse, procurasse outro lugar. Eles
ficaram juntos, mas a filha, seu marido e o filho é que se mudaram para
outra cidade.
Após poucas semanas, o genro faleceu, a filha foi internada e o neto
voltou para a casa dos avós. No momento em que entrou, o avô saiu.
“Tudo o que você não falou, está certo, Amadalena, mas eu não agüento”
(p. 36), disse ele.
Ficou sumido por dias, e quando voltou estava mais magro e chorava.
A esposa o recebeu maternalmente, acatando o marido no peito. “E sentiu
que já não era apenas o espreitar da lágrima. Vendo-o assim, babado e
minguado, minha mãe entendia que o velho, seu velho homem, queria,
afinal, ser sua única atenção” (p. 37).
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Jornada do Percurso de Escola XI (II).
A avó levou o avô pela mão para ver o neto em seu berço. Este o
levantou e beijou longamente, como se saboreasse seu cheiro. Depois de
deitá-lo de volta, deitou-se com o marido no sofá, com o neto adiado ao
seu lado. Quando o filho chega, na manhã seguinte, lê um bilhete escrito
pela mãe antes de sair:
Meu Zedmundo, durma cumprido. E trate desse menino, enquanto
vou à cidade.
Entre rabiscos, emendas e gatafunhos, o bilhete era mais de ser
adivinhado que lido. Diz que meu pai ainda estava em tempo de ser
filho. Culpa era dela, que ela já tinha se esquecido: afinal, meu pai
nunca antes fora filho de ninguém. Por isso, não sabia ser avô. Mas
agora, ele podia, sem medo, voltar a ser seu filho.
“Seja meu filho, Zedmundo, me deixe ser sua mãe. E vai ver que
esse nosso neto nos vai fazer semos nós, menos sós, mais avós.”
O filho dobra o bilhete e o coloca de volta na mesa. Planeja contar a
história para a irmã, mas lembra das palavras do pai sobre o aprender
a calar. Decide não contar isto a ninguem. “Minha mãe, que é muda,
que conte (p. 37-38).
Lacan considera o estádio do espelho, o momento inaugural de constituição do eu, no qual a criança, antes de falar, vislumbra uma totalidade
corporal através da visualização da sua imagem no espelho, imagem esta
acompanhada pelo assentimento do outro que a reconhece como verdadeira. O eu é descrito por Lacan como essencialmente imaginário, embora
dependa do reconhecimento simbólico do Outro, no caso a mãe.
O que a avó do conto faz para ser considerada “tão assumida” não é
dito, como se já estivesse dado aquilo que lhe faria ser reconhecida como
tal. Os efeitos subjetivos nela são resultado do reconhecimento simbólico,
primeiramente pelos seus filhos, pais do neto e, posteriormente, pelo próprio neto. Para isso, não é preciso que diga uma única palavra. A linguagem
se impõe de outras formas, mas permite mesmo assim que ela demonstre
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temática.
que ocupou aquele lugar. Para que os pais dos pais de uma criança se
façam avós, há também uma dimensão de escolha, eles precisam desejar
ocupar este lugar. É preciso que opere uma mudança subjetiva para que
uma outra posição do sujeito se produza.
Alfredo Jesuralisnky nos lembra, em um seminário de outubro de 2004,
que Freud, no “Projeto de uma psicologia para neurologistas”, estabelece
uma discussão com a corrente já chamada Psicologia Social, sobre a causalidade das mudanças subjetivas. Intelectuais alemães sustentavam que
a causa de qualquer mudança subjetiva estava naquilo que a sociedade
como um todo apresentava para cada indivíduo, e não em cada sujeito
mesmo. Segundo Jerusalinsky, é uma polêmica que continua.
A causalidade psíquica se opera a partir do discurso social ou a
partir da posição do sujeito do inconsciente? O quanto o sujeito do
inconsciente é tributário do discurso social? O quanto o discurso é
tributário do sujeito do inconsciente? (p. 75).
Ainda segundo Jerusalinsky, a psicanálise reconhece a causa na
posição do sujeito do inconsciente, mas que causalidade? Diz que essa
causalidade é ambígua. Por um lado, se situa nas experiências primordiais
que têm como antecedente as fantasias originárias, nas quais Melanie
Klein se agarra para sustentar a tese de que a determinação da posição do
inconsciente está no constitucional, portanto, no instinto. Por outro lado
Freud apresenta outra vertente, retomada posteriormente por Lacan, em
que “a determinação está no significante, que permite a articulação do
indivíduo com o coletivo. A determinação está nesse ponto de enlace que
o significante faz entre o sujeito e o discurso” (p. 76). E ele (Lacan) diz que
quando muda a relação do sujeito com o significante, muda a história, ou
seja, a causalidade estaria na posição que este significante tem na relação
com o sujeito. Poderia-se dizer então que a posição em que o significante
avó/avô se inscreve na cadeia de significantes do sujeito determina como
este vai se posicionar no discurso social e nas relações familiares. O mesmo
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Jornada do Percurso de Escola XI (II).
em relação ao significante filho e ao significante pai/mãe. Uma vez que
há uma ordem na genealogia familiar, podemos nos perguntar como seria
possível ser avô, sem ter sido antes, filho e pai?
Zedmundo, parece nunca ter se reconhecido como alguém a não ser
na relação com a mãe, no lugar de filho. Ao recobrir a castração da mãe,
acreditou ser seu falo, precisando ser parte do outro para ser. Parece não
ter saído desta posição, o que é reforçado sob o olhar da esposa. Na relação
com o desejo da esposa, que o autorizou, através do seu desejo, a ocupar o
lugar de pai, será que conseguiu ser pai? Certamente teve que, novamente,
se haver com a própria castração simbólica e, talvez, de alguma forma, tenha transmitido a lei para os seus próprios filhos. Entretanto, não consegue
reconhecer o filho de sua filha, se recusa a fazê-lo, não quer participar da
transmissão da lei para os filhos de seus filhos, não há lugar para eles no
seu desejo. O significante avô não está inscrito, ou talvez não tenha sido
(re)significado. Agora mais velho, Zedmundo continua na busca de si,
não sabe quem é, a que veio. Parece não ter construído um mito familiar
que lhe permitisse situar-se na estrutura familiar, nos diferentes lugares
possíveis. Ao contrário de reconhecer o seu desejo, permanece desejando
o reconhecimento. De quê, de quem, não parece saber.
Maria Rita Kehl, no texto “A juventude como sintoma da cultura”, nos
faz pensar sobre o tema da juventude:
O efeito paradoxal do campo de identificações imaginárias aberto
pela cultura jovem é que ele convoca pessoas de todas as idades.
Quanto mais tempo pudermos nos considerar jovens hoje em dia,
melhor. Melhor para a indústria de quinquilharias descartáveis,
melhor para a publicidade – melhor para nós? O fato é que nas
últimas décadas viramos jovens perenes. Por que não? Se no tempo
de Nelson Rodrigues todos queriam ser velhos (imagem de velhice
associada à respeitabilidade, à seriedade); se cada época elege um
período da vida para simbolizar seus ideais de perfeição – que lei,
moral ou natural, deve determinar os critérios de maturação humana,
os padrões de longevidade, o limite para o que podemos exigir ou
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desfrutar de nossos corpos? Se ainda não se sabe do que a máquina
humana, feita de apetites e de linguagem, é capaz, por que o poder
da cultura, do dinheiro, do cinema e da televisão não podem congelar
cinco, seis gerações num estado de juventude perpétua?
Se o discurso social deixa indefinida a diferença entre as posições
subjetivas do jovem, do adulto e do velho, e não reconhece o valor do
crescimento, da maturidade, que vem com o tempo pra uns, pela força
das circunstâncias de vida para outros, ou pode ainda nunca advir, como
poderiam-se fazer inscrever /(res)significar os significantes pais e avós?
Ricardo Rodulfo nos diz em O brincar e o significante que
a tarefa eminentemente ativa que todo o ser humano deve empreender, para a qual precisa de ajuda, porque sozinho não pode
consumá-la, é encontrar significantes que o representem frente ao
e dentro do discurso familiar, no seio do mito familiar, ou seja, do
campo desejante familiar (p. 34).
Bernard Penot, no texto “A importância da noção de adolescência”,
analisando uma abordagem da patologia adolescente, a considera uma
possibilidade rica para o psicanalista “em razão da exemplaridade daquilo
que seus casos de figuras clínicas desenvolvem sob nossos olhos como
modalidades possíveis de liberação, do sujeito de um desejo próprio
através da entrada em crise de um aparato de conformidade, do eu e do
supereu” (p. 35). A adolescência, assim como a chegada de um filho, um
neto, implica fases da vida propícias para o sujeito reviver os processos
identificatórios imaginários constitutivos do Eu, prolongamento do modelo
de conformidade do Eu-ideal, e a emergência do sujeito de desejo próprio
dependente do operador psíquico Ideal-de-Eu. Com a chegada de um novo
potencial sujeito, filho ou neto, as dificuldades não superadas dos processo de constituição e de reconhecimento da castração se reeditam. Assim
como na adolescência conflitos não elaborados de origem familiar podem
novamente retornar na forma de sintoma. Não seria de se surpreender se a
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angústia que daí deriva, quando adicionada à falta de reconhecimento do
seu lugar e de seu valor pelos filhos, agora pais, e ao imperativo do gozo
presente no discurso social, pudesse provocar o afastamento dos avós e
de seus filhos e netos.
Marie-Christine Laznik aborda em O complexo de Jocasta um outro
tema, ligado diretamente ao envelhecimento: a feminilidade e a sexualidade
sob o prisma da menopausa. Fica clara a confusão entre o fim da capacidade
de reprodução e a perda da feminilidade. Para sair da alienação radical na
imagem como Eu Ideal, o sujeito vai apoiar-se em seu Ideal de Eu, de uma
identificação com um traço paterno. Numa mulher, isto não dá conta da
sua feminilidade e, portanto, “ela continuará dependente dessa imagem
como Eu Ideal, construída a partir do olhar do Outro e nunca definitivamente adquirida” (p. 108). O parceiro conjugal tem um papel fundamental
pois pode permitir à mulher ver sua imagem corporal falicizada, investida
libidinalmente, através de seu olhar, de sua voz, ao longo de toda a vida,
neutralizando, por assim dizer, a perda da qualidade estética objetiva do
corpo em sua real dimensão, puramente orgânica. Quando isso não acontece, entre as saídas encontradas por algumas mulheres para a crise da
meia idade, está a renúncia ao próprio desejo para viver em função dos
filhos adultos. O mesmo pode acontecer no que diz respeito aos netos, ou
em atividades outras, como viagens ou projetos sociais e culturais, numa
tentativa de sublimação, recurso valorizado pela nossa cultura. Aquelas
que conseguem encontrar outras formas de manter sua posição feminina,
possivelmente poderão criar diferentes e ricas relações com filhos e netos,
que comportem espaço para seu desejo se fazer presente, aproveitando
o largo horizonte de possibilidades que o mundo contemporâneo tem a
oferecer.
Para o homem de meia idade, quando o seu órgão genital já não funciona mais como na juventude, a diminuição da potência fálica no plano
imaginário pode ser compensada pela manutenção de uma oferta de falta da
parceira, junto com a indicação de que ele é quem pode suprí-la. Quando
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temática.
isto não acontece, o homem pode fazer um super investimento profissional
ou procurar na relações com outras mulheres, muitas vezes mais jovens,
o reconhecimento do falo no seu poder econômico, posição social, etc.
As crises conjugais enfrentadas por casais de meia idade, tanto pelas
questões femininas quanto masculinas, claramente afetam a manutenção
do laço conjugal e, portanto, a transmissão da lei do desejo, diretamente
para a segunda geração e direta ou indiretamente para a terceira. A psicanálise poderá ter um papel relevante para os que buscarem nela a ajuda
necessária.
Falhas nos processos constitutivos do Eu, insuficiência simbólica,
crises conjugais, vínculos filiais não rompidos, dificuldades de assumir
a parentalidade, falta de reconhecimento do valor do que os avós podem
transmitir... Certamente são muitos os elementos que podem interferir na
subjetivação das três gerações no que diz respeito a avosidade. Algumas
questões foram abordadas neste momento, certamente há outras. Mesmo
sem responder completamente as questões levantadas, espero ter podido avançar um pouco na direção de como apreender o que se passa no
discurso social sobre o tema avosidade e quais são seus efeitos sobre as
relações familiares.
Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1968.
COUTO, Mia. O Fio das Missangas. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2004.
JERUSALINSKY, A. Seminários V – O declínio do império patriarcal. São Paulo: Universidades de São Paulo, Instituto de Psicologia, 2004.
JORGE, M. A. Coutinho, Fundamentos da Psicanálise – De Freud a Lacan, vol I. Rio de Janeiro: Ed Zahar, 2000.
JULIEN, Phillipe. Abandonarás teu pai e tua mãe. Rio de Janeiro: Ed. Companhia de Freud, 2000.
KEHL, Maria Rita. A juventude como sintoma da cultura, blog da autora (acessado em maio 2013).
LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Ed Zahar, 1966.
LAZNIK, Marie-Christine. O Complexo de Jocasta. Rio de Janeiro: Ed. Companhia de Freud, 2003.
PENOT, Bernard. A importância da noção de adolescência para uma concepção psicanalítica de sujeito. In: Revista da APPOA,
número 11, 1995.
RODULFO, R. O brincar e o significante – um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas,
1990.
64.
correio APPOA l agosto 2013
agenda.
eventos do ano
2013
data
evento
local
23 e 24 de agosto
III Jornada
do Instituto APPOA
Hotel Continental – Porto Alegre – RS
Jornada clínica
Plaza São Rafael – Porto Alegre – RS
26 e 27 de outubro
agenda
agosto. 2013
dia
hora
atividade
02, 09, 16, 23 e 30
14h
Reunião da Comissão da Revista
09 e 16
16h
Reunião da Comissão de Aperiódicos
12 e 26
20h30min
Reunião da Comissão do Correio
01, 08, 15, 22 e 29
19h30min
Reunião da Comissão de Eventos
01 e 15
20h
Reunião da Comissão da Biblioteca
08
e
21h
Reunião da Mesa Diretiva
22
e
21h
Reunião da Mesa Diretiva aberta aos Membros
próximo número
Relendo Freud: Além do princípio do prazer (1920)
julho 2013 l correio APPOA
.65
normas editoriais do Correio da APPOA
O Correio da APPOA é uma publicação mensal, o que pressupõe um
trabalho de seleção temática – orientado tanto pelos eventos promovidos pela
Associação, como pelas questões que constantemente se apresentam na clínica
–, bem como de obtenção dos textos a serem publicados, além da tarefa de
programação editorial.
Tem sido nosso objetivo apresentar a cada mês um Correio mais elaborado, quer seja pela apresentação de textos que proporcionem uma leitura
interessante e possibilitem uma interlocução; quer pela preocupação com os
aspectos editoriais, como a remessa no início do mês e a composição visual.
Frente à necessidade de uma programação editorial, solicitamos que sejam
respeitadas as seguintes normas:
1) os textos para publicação na Seção Temática, Seção Debates, Seção
Ensaio e Resenha deverão ser enviados por e-mail para a secretaria da APPOA
([email protected]);
2) a formatação dos textos deverá obedecer às seguintes medidas:
– Fonte Times New Roman, tamanho 12
– O texto deve conter, em média, 12.000 caracteres com espaço
– Notas de rodapé em fonte tamanho 10
3) as notas deverão ser incluídas sempre como notas de rodapé;
4) as referências bibliográficas deverão informar o(s) autor(es), título da
obra, autor(es) e título do capítulo (se for o caso), cidade, editora, ano, volume
(se for o caso);
5) as aspas serão utilizadas para identificar citações diretas;
6) citações diretas com mais de 3 linhas devem vir separadas do corpo do
texto, com recuo de 4 cm em relação à margem, utilizando fonte tamanho 10;
7) o itálico deverá ser utilizado para expressões que se queira grifar, para
palavras estrangeiras que não sejam de uso corrente ou títulos de livros;
8) não utilizar negrito (bold) ou sublinhado (underline);
9) a data máxima de entrega de matéria (textos ou notícias) é o dia 05,
para publicação no mês seguinte;
10) o autor, não associado a APPOA, deverá informar em uma linha como
deve ser apresentado. A Comissão do Correio se reserva o direito de sugerir
alterações ao(s) autor(es) e de efetuar as correções gramaticais que forem necessárias para a clareza do texto, bem como se responsabilizará pela revisão
das provas gráficas;
11) a inclusão de matérias está sujeita à apreciação da Comissão do
Correio e à disponibilidade de espaço para publicação.
c o r r e i o
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9
(Des)enlaces – O que convoca à escrita? 9
Carmela de Lima Tubino
A delicadeza dos tempos das primeiras entrevistas 17
Marcia Giovana Pedruzzi Reis
Aventurar-se na desventura: um ensaio
sobre política pública e laço social 29
Carolina Monte Lague
Psicanálise e o coletivo, uma ética singular 37
Júlia Lângaro Becker
Irreversível? Sobre o trabalho de transferência com
crianças e adolescentes em situação de abrigamento 47
Fernanda Perlin de Cesaro
Reflexões sobre a avosidade na contemporaneidade 55
Valéria Rombaldi
Agenda 65
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