Fernando Pessoa: Controvérsias Literárias e Modos de
Engrandecimento na República das Letras
Pedro Manuel Marques Serrão
Tese de Doutoramento em Sociologia
Fevereiro, 2014.
Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau
de Doutor em Sociologia, realizada sob a orientação científica de
José Manuel Vieira Soares de Resende
Apoio financeiro da FCT e do FSE no âmbito do III Quadro Comunitário de Apoio.
AGRADECIMENTOS
Esta tese não teria sido realizada sem o concurso de um número alargado de
pessoas que, de forma directa ou indirecta, contribuíram para a concretização do
projecto de investigação, e a quem gostaria de agradecer: ao Professor Doutor José
Manuel Resende, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa, por ter aceitado orientar a minha
investigação e pelas suas sugestões, aconselhamento, revisão dos textos e pela paciência
que revelou nos momentos mais difíceis do processo. Ao Professor Doutor Casimiro
Balsa, do mesmo departamento, por ter assumido a responsabilidade, a título provisório,
pela minha candidatura à bolsa de doutoramento da Fundação para a Ciência e a
Tecnologia, imprescindível para a realização da investigação. Ao Doutor Stephen Dix,
do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, pela sua orientação no
projecto de doutoramento com que obtive a referida bolsa. Gostaria também de
agradecer os contributos valiosos de todos os professores e colegas que leram,
comentaram e deram sugestões para melhorar o projecto da tese e os textos de trabalho
que fui apresentando ao longo da investigação, os quais seria bastante extenso nomear.
O meu agradecimento à Professora Doutora Manuela Parreira da Silva, do
Departamento de Estudos Portugueses da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
que me revelou uma carta inédita de Fernando Pessoa e gentilmente me ofereceu uma
cópia e a sua transcrição. Agradeço igualmente aos Professores Doutores Silvina
Rodrigues Lopes, Luís Oliveira e Silva e Fernando Cabral Martins, do mesmo
departamento, por generosamente me terem franqueado as portas das suas aulas.
Agradeço ainda a entrevista concedida, na fase preparatória da investigação, pelo
Professor Doutor António Feijó, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O
meu reconhecimento também a todas as pessoas que possibilitaram a pesquisa
documental que realizei, ao longo de vários anos, em diversas bibliotecas e arquivos,
particularmente à Dra. Maria Inês Cordeiro, Directora-Geral da Biblioteca Nacional de
Portugal, e à Dra. Madalena Marques Sousa, responsável da área de leitura geral e
depósitos da mesma biblioteca, pelas facilidades concedidas. Finalmente, mas não
menos importante, o meu agradecimento pela colaboração na pesquisa documental à
Doutora Marisa das Neves Henriques e à Mestre Ana Sofia Veigas, pelo estímulo,
sugestões e revisão dos textos que integraram esta tese.
I
FERNANDO PESSOA:
CONTROVÉRSIAS LITERÁRIAS E MODOS DE
ENGRANDECIMENTO NA REPÚBLICA DAS LETRAS
Pedro Manuel Marques Serrão
RESUMO
A relevância cultural de Fernando Pessoa, cuja singularidade se manifestou,
paradoxalmente, na multiplicidade dos seus heterónimos, faz da sua vida e obra um
interessante objecto de estudo sociológico. No entanto, e apesar do diálogo que o
escritor manteve com a sociologia, este objecto tem sido menosprezado pela ciência
social. É possível fazer sociologia de um indivíduo, ainda que esse indivíduo seja
Fernando Pessoa? As suas obras literárias podem ser objecto da análise sociológica?
Partindo da questão de saber de que forma Fernando Pessoa se construiu socialmente
como grande escritor, este estudo analisa as condições, dinâmicas e processos sociais de
produção da grandeza literária. Neste estudo de caso, desenvolvemos um modelo
teórico cruzando sobretudo a sociologia pragmática de Boltanski e Thévenot com a
sociologia da singularidade de Nathalie Heinich, o qual permitiu a análise sociológica
das interacções de Pessoa na república das letras, tanto do ponto de vista da comunidade
de escritores, críticos, artistas e intelectuais, como do ponto de vista do próprio
Fernando Pessoa e da sua complexa personalidade. A operacionalização do modelo de
análise centrou-se em várias controvérsias literárias, estéticas, éticas e morais, em que o
escritor se envolveu, designadamente os escândalos literários que ficaram conhecidos
como «Literatura de Manicómio» e «Literatura de Sodoma». Neste contexto,
identificámos várias lógicas de interacção social, ou modos de engrandecimento,
praticados pelo escritor na sua luta pelo reconhecimento ao longo da vida. Desde muito
novo, o jovem Pessoa ambicionava vir a ser um grande escritor, por outro lado, dada a
erudição que alcançou, verificou que apenas postumamente poderia atingir a grandeza
genial. O paradoxal regime de singularidade instituído na república das letras produz
uma tensão constante entre a fama efémera e a grandeza perene, tornando diferido o
reconhecimento dos génios literários. Segundo Boltanski e Thévenot, todo o
engrandecimento legítimo implica um sacrifício da pessoa que pretende engrandecer.
Esta seria a razão pela qual o escritor publicou apenas o essencial, legando à posteridade
a sua extensa obra inacabada e fragmentária, que continua a ser compilada e editada,
contribuindo assim para o seu engrandecimento póstumo. Juntamente com os
heterónimos, esta foi a fórmula de investimento com que Pessoa colonizou o futuro,
sacrificando a fama efémera para atingir a grandeza perene da genialidade, tornando-se
finalmente o Super-Camões que desejava ser.
PALAVRAS-CHAVE: Fernando Pessoa, sociologia da literatura, república das letras.
II
FERNANDO PESSOA:
LITERARY CONTROVERSIES AND WAYS OF GREATNESSMAKING IN THE REPUBLIC OF LETTERS
Pedro Manuel Marques Serrão
ABSTRACT
The life and work of Fernando Pessoa, the acclaimed Portuguese writer who
expressed his uniqueness, paradoxically, through a manifold of heteronyms, is an
interesting subject of sociological study. However, despite the lifelong dialogue Pessoa
had with sociology, this subject has been neglected by social science. Is it possible the
making of an individual’s sociology, even though this individual is a celebrated writer?
Can his literary works be an object of sociological analysis? This case study starts from
the question of how Fernando Pessoa socially constructed his greatness, to analyze the
conditions, dynamics and social processes of literary greatness production. For this
purpose, we developed a theoretical framework based mainly on Boltanski and
Thévenot’s pragmatic sociology, as well as on Nathalie Heinich’s sociology of
uniqueness, thus enabling the sociological analysis of Pessoa’s interactions in the
Republic of Letters, both, from the standpoint of the community of writers, critics,
artists and intellectuals, and from the viewpoint of the writer and his complex
personality. This framework proved to be particularly suitable to analyze several
literary, aesthetical, ethical and moral controversies in which Pessoa was involved, such
as the so called scandals of “Madhouse Literature” and “Literature of Sodom”. Within
this framework we acknowledged several interaction modes or ways of greatnessmaking performed by Pessoa in his lifelong struggle for recognition. Since he was very
young, Pessoa had the ambition of becoming a genial writer. On the other hand, due to
the erudition he achieved, the writer got to know that only posthumously could he reach
that order of greatness. The paradoxical regime of singularity established in the
Republic of Letters produces a permanent tension between ephemeral fame and lasting
greatness, which delays the recognition of a genius. This is probably the reason why
Pessoa published only the essential, bequeathing his extensive, unfinished and
fragmented works, which continue to be compiled and edited, thus contributing to his
posthumous greatness. According to Boltanski and Thévenot, any legitimate greatness
implies a sacrifice of the person who wants to be greater. Along with his ingenious
heteronyms, this was Pessoa’s investment formula to colonize the future, or another
way of greatness-making, sacrificing the ephemeral fame to achieve finally the
greatness of a genial writer, becoming the Super-Camões he desired to be.
KEYWORDS: Fernando Pessoa, Sociology of Literature, Republic of Letters.
III
ÍNDICE
Introdução ........................................................................................................................... 1
Capítulo I: Sociologia pragmática e singularidade ........................................................ 6
I.1. A sociologia pragmática ..................................................................................... 7
I 1.1. Os mundos comuns ............................................................................. 9
I.1.2. Grelha de análise dos mundos comuns ............................................ 15
I.2. Sociologia da singularidade ............................................................................. 19
Capítulo II: Fernando Pessoa sociologicamente considerado .................................... 25
II.1. A sociologia pragmática na república das letras ............................................ 26
II.2. A literatura como terreno de investigação sociológica .................................. 27
II.3. Sociologia do indivíduo .................................................................................. 31
II.4. Metodologia .................................................................................................... 40
II.4.1. Pesquisa documental e selecção bibliográfica ................................ 43
Capítulo III: A «nova poesia portuguesa» .................................................................... 45
III.1. Uma «vertigem moral» .................................................................................. 46
III.1.1. O receio de enlouquecer ................................................................. 48
III.2. Loucura e genialidade .................................................................................... 55
III.2.1. Genialidade e degeneração ............................................................ 56
III.2.2. A degenerescência segundo Max Nordau ..................................... 59
III.2.3. Do artista degenerado ao escritor doente ....................................... 63
III.2.4. Literatura e alienação em Portugal ................................................ 69
III.2.5. A gramática industrial da psiquiatria positivista ........................... 73
IV
III.3. A Renascença Portuguesa e o saudosismo de Teixeira de Pascoaes ........... 76
III.4. A sociologia de Fernando Pessoa .................................................................. 78
III.4.1. A poesia portuguesa sociologicamente considerada ..................... 80
III. 4.2. História das literaturas inglesa e francesa ..................................... 84
III. 4.3. O «lúcido sonho louco» de um Super-Camões ............................ 87
III.5. O futuro da literatura ..................................................................................... 88
III.6. Literatura e sociedade .................................................................................... 91
III.6.1. A literatura na sua relação com o «movimento social» da nação . 94
III.6.2. A literatura na sua relação com outras correntes literárias ........... 96
III.6.3. A literatura na sua relação com a «alma do povo» ....................... 97
III.7. Um «Inquérito à Vida Literária» ................................................................. 100
III.7.1. A crítica industrial de Júlio de Matos .......................................... 102
III.7.2. A crítica doméstica de Lopes de Mendonça ................................ 105
III.7.3. Teixeira de Pascoaes e as justificações do mundo inspirado ...... 107
III.7.4. A crítica cívica de Augusto de Castro ......................................... 110
III.7.5. Megalomania e messianismo ....................................................... 112
III.7.6. A justificação de Fernando Pessoa .............................................. 116
III.7.7. A crítica do renome de Júlio Brandão ......................................... 120
III.7.8. A crítica comercial de Malheiro Dias .......................................... 122
Capítulo IV: A loucura de Orpheu ............................................................................... 125
IV.1. O difícil trabalho de ressocialização ........................................................... 126
IV.2. Envolvimento e distanciamento da Renascença Portuguesa ..................... 129
IV.3. Uma «comichão intelectual» ....................................................................... 137
IV.3.1. Sociogénese dos heterónimos ...................................................... 141
IV.3.2. A tensão entre os mundos inspirado e do renome........................ 146
V
IV.5. Uma revista literária .................................................................................... 151
IV.5.1. A revista luso-brasileira Orpheu .................................................. 153
IV.5.2. «Literatura de Manicómio» ......................................................... 160
IV.5.3. Um êxito de gargalhada ............................................................... 170
IV.5.4. Outro número de Orpheu ............................................................. 173
IV.5.5. A tensão entre os mundos inspirado e industrial ......................... 175
IV.6. O caso de Ângelo de Lima .......................................................................... 179
IV.6.1. Singularidade paradoxal da inspiração ........................................ 182
IV.6.2. A psiquiatrização da literatura ..................................................... 186
Capítulo V: «Literatura de Sodoma» .......................................................................... 189
V. 1. Do futurismo de Orpheu a Portugal Futurista ........................................... 190
V.1.1. A tensão entre os mundos inspirado e comercial ......................... 194
V.1.2. Portugal Futurista ......................................................................... 199
V. 2. Reconstrução da auto-identidade ................................................................ 202
V.2.1. A heteronímia como fragmentação do self ................................... 211
V.2.2. A heteronímia como universo simbólico ...................................... 215
V.2.3. Os heterónimos como papéis sociais ............................................ 219
V.3. Um destino que pertence a outra lei ............................................................. 221
V.3.1. A tensão entre os mundos inspirado e doméstico ......................... 223
V. 4. Dois poemas ingleses «muito indecentes» .................................................. 227
V. 5. Canções de António Botto .......................................................................... 230
V.5.1. A revista Contemporanea ............................................................. 233
V.5.2. «O Ideal Estético em Portugal» .................................................... 236
V.6. «Literatura de Sodoma» ............................................................................... 239
V.6.1. «O Sentido Íntimo do Ritmo» ....................................................... 244
VI
V.6.2. Sodoma Divinizada ....................................................................... 245
V.6.3. «Higiene Moral e Social» ............................................................. 250
V.6.4. Literatura e homofobia .................................................................. 254
V.6.5. A tensão entre os mundos inspirado e cívico ............................... 259
Capítulo VI: Mensagem controversa ........................................................................... 262
VI.1. A revista Athena .......................................................................................... 263
VI.2. A revista Presença e o reconhecimento da nova geração .......................... 267
VI.3. A «Política do Espírito» de António Ferro ................................................. 276
VI.3.1. Prémios literários ......................................................................... 279
VI.4. A Mensagem de Fernando Pessoa .............................................................. 282
VI.4.1. Prova modelo ............................................................................... 287
VI.4.2. A Romaria de Vasco Reis ............................................................ 293
VI.4.3. Cristianismo e paganismo literário .............................................. 298
VI.4.4. Uma «obrinha para costureiras e marçanos» .............................. 304
VI.4.5. Mensagem inteligente mas hermética .......................................... 310
VI.5. Em busca da imortalidade ........................................................................... 312
Conclusão ........................................................................................................................ 319
Referências bibliográficas ............................................................................................ 335
Publicações periódicas .................................................................................................... 346
Bibliotecas e arquivos ..................................................................................................... 351
VII
ÍNDICE DE QUADROS
Capítulo I: Sociologia pragmática e singularidade ........................................................ 6
1. Os mundos comuns segundo Boltanski e Thévenot .......................................... 14
2. Grelha de análise dos mundos comuns .............................................................. 18
3. Regimes de acção segundo Nathalie Heinich .................................................... 21
4. Posturas epistemológicas segundo Nathalie Heinich ........................................ 23
Capítulo II: Fernando Pessoa sociologicamente considerado .................................... 25
Capítulo III: A «nova poesia portuguesa» .................................................................... 45
5. Períodos de criatividade literária na história de Inglaterra e de França ............ 86
6. Estádios do período de maior criatividade literária ........................................... 92
7. Modelo de análise sociológica das correntes literárias ...................................... 98
Capítulo IV: A loucura de Orpheu ............................................................................... 125
Capítulo V: «Literatura de Sodoma» .......................................................................... 189
Capítulo VI: Mensagem controversa ........................................................................... 262
8. Tipos de público segundo Fernando Pessoa ................................................... 266
VIII
INTRODUÇÃO
A ideia para uma investigação sociológica sobre a vida e a obra de Fernando
Pessoa surgiu na Licenciatura em Sociologia do Instituto Superior de Ciências do
Trabalho e da Empresa. Foi então que o autor destas linhas fez, na cadeira de Sociologia
da Cultura da Professora Idalina Conde, «Uma Leitura Sociológica de Fernando
Pessoa», a qual esteve na origem desta investigação. O nosso interesse por este objecto
de estudo sociológico foi crescendo à medida que nos apercebemos da complexidade da
sua obra e do diálogo que Pessoa manteve com a sociologia. Nesta investigação
preliminar, tomámos conhecimento de que o escritor publicou, ainda jovem, um artigo
de crítica literária intitulado «A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente
Considerada». Além deste artigo, Pessoa manifestou o seu interesse pela ciência social
em diversas publicações e múltiplos apontamentos que escreveu ao longo da vida.
Contudo, a investigação sobre a vida e obra de Fernando Pessoa apenas foi concretizada
no Doutoramento em Sociologia da Cultura do Conhecimento e da Educação da
Universidade Nova de Lisboa, sob orientação científica do Professor Doutor José
Manuel Resende, com financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia1.
A vida e obra de um escritor com a relevância cultural de Fernando Pessoa
constituem um objecto de estudo até agora menosprezado pela sociologia em Portugal.
Neste sentido, a proposta para uma investigação sociológica sobre o escritor não foi
acolhida sem alguma reserva, uma vez que o tema escolhido não se afigura como
objecto da sociologia. Com efeito, a ciência social não parece vocacionada para estudar
individualidades, mesmo que tenham a relevância cultural de Fernando Pessoa, mas sim
as relações entre pessoas e grupos sociais, razão pela qual este projecto de investigação
provocou algumas dúvidas quanto à sua legitimidade científica e exequibilidade prática.
Para alguns críticos, a vida e obra de Pessoa não seria objecto da sociologia, mas da
psicologia ou da psicologia social. Também o facto de o escritor ter vivido entre 1888 e
1935 levantou algumas questões metodológicas, uma vez que não poderiam ser
aplicados os instrumentos empíricos mais comuns na sociologia, que geralmente estuda
o presente.
1
Financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, que atribuiu a bolsa individual de
doutoramento SFRH/BD/43574/2008 para o projecto de investigação Fernando Pessoa: A Literatura
Sociologicamente Considerada.
1
No entanto, diversos sociólogos, alguns dos quais de renome internacional, já
tinham realizado estudos culturais tomando como objecto a vida e obra de artistas
consagrados, designadamente com recurso à pesquisa documental, sistematicamente
utilizada pela sociologia histórica. Entre estes sociólogos de renome podemos citar
Norbert Elias, com a sua obra inacabada Mozart: Sociologia de um Génio, Nathalie
Heinich, com La Gloire de Van Gogh: essai d'anthropologie de l'admiration que, apesar
do título, constitui sem dúvida um estudo sociológico, ou Tia DeNora, com Beethoven
and the Construction of Genius: musical politics in Vienna, 1792-1803. Persistimos
portanto no projecto de fazer sociologia de um indivíduo, dando prioridade à
originalidade temática, bem como à actualização teórica e metodológica. A inovação
constituiu assim, desde o início, uma preocupação central na configuração do projecto
de investigação, adoptando uma abordagem que procura alargar o objecto sociológico e
estender a influência da ciência social a áreas do saber pouco exploradas pelos
sociólogos.
Fernando António Nogueira Pessôa nasceu no largo de São Carlos, em Lisboa,
no dia 13 de Junho de 1888, sendo o primogénito de Joaquim de Seabra Pessôa (18501893)
e de Maria Madalena Pinheiro Nogueira (1861-1925). O casal vivia na casa da avó
paterna de Pessoa, Dionísia Rosa Estrela de Seabra (1823-1907), viúva do general
Joaquim António de Araújo Pessôa (1813-1885), nascido em Tavira. A mãe de Pessoa era
natural de Angra do Heroísmo, bem como o avô paterno do futuro escritor, o
conselheiro Luís António Nogueira (1832-1884), casado com Madalena Pinheiro (18361898),
o qual era bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra e fez carreira na
função pública. Pessoa não conheceu nem o avô Joaquim, comendador da Ordem de
Avis e cavaleiro da Ordem da Torre e Espada que se notabilizou nas guerras liberais,
nem o avô Luís, comendador que chegou a director-geral da administração civil.
O pai de Fernando Pessoa era funcionário do Ministério dos Negócios
Eclesiásticos e da Justiça, tendo um segundo emprego como redactor no Diário de
Notícias2. Joaquim de Seabra Pessôa era também um melómano, assíduo espectador no
Teatro Nacional de São Carlos, situado mesmo em frente da sua residência, no
aristocrático bairro do Chiado, tendo chegado a publicar um opúsculo sobre a ópera de
2
Fundado em 1864, este jornal contou com a colaboração de escritores notáveis como Ramalho Ortigão
(1836-1915), Pinheiro Chagas (1842-1895) e Eça de Queiroz (1845-1900). Joaquim de Seabra Pessôa foi
colaborador do Diário de Notícias de 1868 a 1892, no qual publicou numerosas críticas musicais.
2
Richard Wagner (1813-1883), O Navio Fantasma. A mãe de Pessoa, Maria Madalena
Pinheiro Nogueira, estudara Francês e Inglês, tocava piano, tinha gosto pela leitura e, ao
que parece, também versejava. Em Janeiro de 1893 nasceu Jorge, segundo filho do casal
e irmão mais novo de Fernando, que contava então quatro anos de idade. Contudo, a
infelicidade tocou esta família quando Joaquim Pessôa faleceu, vítima de tuberculose,
em 13 de Julho desse ano, deixando órfãos Fernando Pessoa, de cinco anos, e o seu
irmão, que veio a falecer no ano seguinte, sem mesmo completar um ano de idade.
No final de 1895, a mãe de Fernando Pessoa recasou-se por procuração com um
oficial da armada, o comandante João Miguel dos Santos Rosa (1857-1919), nomeado
cônsul de Portugal em Durban3. No início do ano seguinte, Maria Madalena Pinheiro
Nogueira e o filho, acompanhados pelo tio Cunha4, partiram para Durban. Chegado a
África com sete anos, o pequeno Fernando fez a instrução primária num colégio de
freiras irlandesas e francesas, ingressando em 1899 no Liceu de Durban, onde foi um
aluno brilhante, sobretudo nas disciplinas de línguas. Em 1901, o comandante João
Miguel Rosa teve direito a um ano de férias, regressando a Lisboa com a família5.
Durante estas férias, Pessoa visitou familiares da mãe, em Angra do Heroísmo, e do pai,
em Tavira. Data desta época a primeira publicação conhecida de Fernando Pessoa, sob o
título «Um poeta de 14 anos»6, revelando a sua vocação de escritor. No ano seguinte,
Pessoa voltou para Durban, passando a frequentar a Escola Comercial, enquanto se
preparava para o exame de admissão à universidade. Apesar de ter realizado este exame,
na época não existia ensino superior na colónia britânica, pelo que, em 1905, o jovem
regressou sozinho a Lisboa para estudar diplomacia.
Aos 17 anos, Pessoa inscreveu-se no Curso Superior de Letras7 mas, ao contrário
do brilhantismo revelado em Durban, o jovem mostrou dificuldades na adaptação ao
ensino superior português. Após dois anos de fracos resultados, uma greve académica
pôs fim ao seu percurso escolar, abandonando os estudos, em 1907, para iniciar depois a
actividade de tradutor e correspondente comercial que o sustentaria até ao fim da sua
3
Principal cidade portuária da África do Sul, capital da então colónia inglesa do Natal.
4
Manuel Gualdino da Cunha (1825-1898) era casado com Maria Pinheiro, tia de Maria Madalena
Pinheiro Nogueira.
5
Nesta família recomposta, Fernando Pessoa teve mais cinco irmãos: Henriqueta Madalena (1896-1992),
Madalena Henriqueta (1898-1901), Luís Miguel (1900-1975), João Maria (1903-1977) e Maria Clara
(1904-1906) (PESSOA, 2003: 489).
6
O Imparcial, 18 de Julho de 1902.
7
Predecessor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, criada em 1911.
3
vida. Exercida ao longo dos anos em diversas empresas e estabelecimentos da baixa
lisboeta, esta profissão por conta própria era paga à tarefa, não obrigando ao
cumprimento de horários. O trabalho independente era o que mais convinha ao jovem,
que desde muito novo ambicionava vir a ser um grande escritor, deixando-lhe tempo
livre para as suas actividades literárias. Mas Pessoa foi também um empresário ou
«homem de acção», fundando diversas empresas a título pessoal ou em sociedade,
ligadas ou não à edição livreira. A primeira destas iniciativas foi a Empresa Íbis –
Tipográfica e Editora, fundada por Pessoa em 1909, na qual investiu a pequena herança
que recebeu da avó paterna, falecida em 1907. A empresa do jovem inexperiente de 21
anos, apenas chegado à maioridade, resultou num fiasco comercial, razão pela qual se
viu obrigado a vender a tipografia no ano seguinte, o da implantação da República.
Apesar da ambição colocada em algumas das suas iniciativas empresariais, Pessoa
nunca conseguiu grandes proventos como empresário, acabando por vender, trespassar
ou encerrar as empresas e publicações que criou.
Ao longo da vida, Fernando Pessoa publicou poesia e prosa em diversos jornais
e revistas, mas também crítica literária, ensaios e crónicas, bem como artigos de opinião
e análise. O escritor publicou ainda quatro livros de poesia em Inglês e apenas um em
língua portuguesa, com o título Mensagem, posto à venda em 1 de Dezembro de 1934,
um ano antes de o autor falecer, inesperadamente, com 47 anos de idade. Contudo, a
maior parte da sua obra ficou inédita, inacabada ou apenas em projecto, nas mais de
25.000 páginas do espólio pessoano, adquirido pela Biblioteca Nacional em 1988,
assinalando o centenário do seu nascimento. Após a morte do escritor, em 30 de
Novembro de 1935, a sua obra inédita tem sido estudada, compilada e publicada,
despertando grande interesse, designadamente da crítica literária, que lhe continua a
dedicar um crescente número de estudos. Actualmente, Fernando Pessoa é considerado,
sem dúvida, um dos maiores poetas portugueses e, pela crítica internacional, não apenas
um dos maiores poetas do século XX, mas também um dos mais interessantes escritores
universais, sobretudo tendo em conta a sua originalidade e a multiplicidade de
personalidades que criou, e em nome das quais escreveu.
Colocámos então a questão de saber de que forma Fernando Pessoa se construiu
socialmente como grande escritor, uma vez que, para atingir este estatuto, teria
necessariamente de ser reconhecido como tal. Porém, como construir um modelo de
análise sociológica para este estudo de caso? Enquanto editor, crítico ou escritor, ao
4
longo da vida Pessoa envolveu-se em diversas controvérsias com impacto na sua
visibilidade social e literária, designadamente o «escândalo» em torno da revista
Orpheu, publicada em 1915. Estas polémicas não foram estritamente literárias, mas
também éticas, morais, cívicas e políticas, envolvendo diversos protagonistas:
jornalistas, escritores, críticos, artistas, intelectuais, professores e estudantes.
Procurámos então teorias sociológicas que permitissem não apenas dar conta dos
discursos destes actores, mas também das opiniões e visões do mundo de Fernando
Pessoa. Neste sentido, construímos um modelo de análise cruzando, sobretudo, a
sociologia pragmática de Luc Boltanski e Laurent Thévenot com a sociologia da
singularidade de Nathalie Heinich. Estas teorias prestam-se particularmente à análise de
situações de controvérsia, permitindo assim estudar a vida e obra de Fernando Pessoa
tanto do ponto de vista singular como da sua interacção social. Que situações geraram
as controvérsias em que se envolveu Fernando Pessoa? Em que cenários irrompeu o
escândalo público? Como se traduzem pragmaticamente as operações críticas dos
intervenientes? Quais os objectos, dispositivos e competências por eles mobilizados?
Aplicando as sociologias pragmática e da singularidade, embora não exclusivamente,
tentaremos responder às diversas interrogações que foram surgindo ao longo da
investigação. Desta forma, procuraremos analisar sociologicamente o percurso
pessoano, desde o seu regresso definitivo a Portugal, em 1905, explicitando as
condições, dinâmicas e processos sociais de produção da grandeza literária.
5
CAPÍTULO I
Sociologia pragmática e singularidade
La sociologie et l’art ne font pas bon ménage. Cela tient à l’art et aux artistes qui
supportent mal tout ce qui attente à l’idée qu’ils ont d’eux-mêmes: l’univers de l’art est un
univers de croyance, croyance dans le don, dans l’unicité du créateur incréé, et l’irruption du
sociologue, qui veut comprendre, expliquer, rendre raison, fait scandale. Désenchantement,
réductionnisme, en un mot grossièreté ou, ce qui revient au même, sacrilège: le sociologue est
celui qui, comme Voltaire avait chassé les rois de l’histoire, veut chasser les artistes de l’histoire
de l’art. Mais cela tient aussi aux sociologues qui se sont ingéniés à confirmer les idées reçues
concernant la sociologie et, tout particulièrement, la sociologie de l’art et de la littérature.
Première idée reçue: la sociologie peut rendre compte de la consomation culturelle mais
non de la production. La plupart des exposés généraux sur la sociologie des œuvres culturelles
acceptent cette distinction, qui est purement sociale: elle tend en effet à réserver pour l’œuvre
d’art et le «créateur» incréé un espace séparé, sacré, et un traitement privilégié, abandonnant à la
sociologie les consommateurs, c’est-à-dire l’aspect inférieur, voire refoulé (en particulier dans sa
dimension économique) de la vie intellectuele et artistique (BOURDIEU, 1980: 207).
6
I.1.
A sociologia pragmática
Antigo colaborador de Pierre Bourdieu e investigador na École des Hautes
Études en Sciences Sociales, em meados da década de setenta, Luc Boltanski afastou-se
da linha de investigação representada pela revista Actes de la Recherche en Sciences
Sociales. Em 1984, Luc Boltanski e Laurent Thévenot estiveram na origem do Groupe
de Sociologie Politique et Morale, desenvolvendo depois uma sociologia pragmática
que tem por objecto de análise as competências políticas e morais das pessoas.
Contrariando a «sociologia crítica» de Bourdieu, pautada pela ilusão da transparência e
pelo princípio da não-consciência dos agentes sociais (BOURDIEU, CHAMBOREDON &
PASSERON, 1968: 29-34),
o modelo teórico de Boltanski e Thévenot leva a sério as críticas
e justificações das pessoas, numa abordagem interdisciplinar que rompe as fronteiras
entre sociologia, filosofia e economia. Boltanski e Thévenot inspiraram-se na tradição
americana da filosofia pragmática, na antropologia das ciências e na economia das
convenções, mas sobretudo na tradição sociológica, desde Durkheim a Bourdieu
(NACHI, 2006: 24). Este modelo teórico tem em conta as situações concretas de interacção
social, pelo que conceitos estruturais da tradição sociológica, como classes sociais ou
grupos de estatuto, estão ausentes deste quadro teórico, uma vez que os colectivos de
indivíduos podem partilhar situações muito diversificadas (BOLTANSKI & THÉVENOT,
1991: 11).
Na lógica da neutralidade axiológica weberiana, o objectivo da sociologia
pragmática não consiste em julgar as acções dos actores sociais ou participar nos seus
conflitos, mas explicitar as gramáticas de argumentação e justificação utilizadas pelas
pessoas em interacção situada, com vista à criação de dispositivos de medida de
equivalência. Os envolvimentos actuantes em que estes indivíduos se inserem tornamnos qualificados e competentes para a realização do trabalho de julgamento crítico,
sustentado em gramáticas justificativas, a partir de controvérsias que são objecto de
contestação recíproca. Nesta concepção, as pessoas são seres morais capazes de julgar e
avaliar composições de grandeza, apresentando justificações, mas também de se
envolverem em situações em que a singularidade da pessoa assume maior destaque. O
sentido crítico destes actores sociais permite julgar e avaliar as competências dos
intervenientes numa situação, utilizando para tal diferentes gramáticas e negociando, em
acordos mais ou menos precários, o estado de grandeza das pessoas e dos objectos.
Contudo, estes acordos, conseguidos pela mediação das formas de cooperação entre as
7
pessoas, apenas serão legítimos se respeitarem o bem comum (BOLTANSKI &
THÉVENOT, 1991: 86).
A herança etnometodologógica manifesta-se no modelo teórico de Boltanski e
Thévenot, designadamente nas realidades múltiplas8, ou pluralidade de mundos, com as
suas ordens de grandeza legítimas, cada qual regido por um princípio superior comum.
O pluralismo é uma característica fundamental da sociologia pragmática que, além dos
diversos mundos, reconhece também a variedade de situações sociais, de lógicas de
acção, de formas de julgamento e de ordens da grandeza de pessoas e objectos. Esta
pluralidade constitui em si um valor heurístico que confere competência aos actores
para avaliarem e justificarem as suas acções. Em princípio, todas as pessoas possuem
idênticas capacidades, mas a sua ordem de grandeza depende de provas que mobilizam
objectos e dispositivos, definindo assim um quadro de coerência sob um princípio
superior comum (NACHI, 2006: 174-184). Uma vez que cada pessoa não tem uma ordem
de grandeza fixa, o seu estatuto pode ser objecto de desacordo entre os participantes de
uma situação, o qual assume a forma de litígio sobre a distribuição dos estados de
grandeza. A grandeza é composta pela ordem atribuída em cada mundo, de forma que o
litígio surge numa situação em que as ordens de grandeza das pessoas são contestadas.
Geralmente, o primeiro movimento de contestação consiste em evidenciar as
desarmonias entre as grandezas das pessoas e dos objectos na situação, depois surgirá a
controvérsia, na qual se discute se os seres em causa merecem ou não a grandeza que
detêm. Num terceiro momento, novos objectos podem ser introduzidos na controvérsia,
a qual só terminará com nova prova de grandeza. Desta forma, os actores sociais
convencionam entre si um conjunto de princípios e de critérios sustentados por provas,
os quais estão sempre sujeitos a reavaliação, revisão ou modificação, através de novas
provas (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 174-184).
Uma vez envolvidos numa situação, os seus intervenientes procuram estabelecer
ordens de grandeza comuns, que permitam classificar e hierarquizar pessoas e objectos,
segundo princípios de justiça. Estes actores sociais expressam o seu desacordo sobre as
ordens de grandeza, através de críticas às reivindicações dos outros e justificações das
suas próprias reivindicações. As operações críticas constituem assim a controvérsia, na
8
Alfred Schutz, «On Multiple Realities» in Philosophy and Phenomenological Research, vol. 5, nr. 4,
June, 1945, pp. 533-576.
8
qual, para chegarem a acordo sobre a ordem de grandeza a atribuir a cada ser, pessoa ou
objecto, os actores em situação devem «subir em generalidade», alcançando o princípio
superior comum a que devem obedecer as suas justificações legítimas. Contudo, os
eventuais acordos alcançados são precários e sujeitos a confirmação, razão pela qual as
pessoas são postas à prova. Por outro lado, o engrandecimento implica um sacrifício da
pessoa que engrandece, através de uma fórmula de investimento que, para ser legítima,
deve respeitar o bem comum e a comum humanidade. Respeitando o bem comum, os
grandes compreendem os pequenos, conferindo-lhes dignidade, que estes retribuem
permitindo o acesso dos grandes aos benefícios inerentes às ordens de grandeza
superiores. O modelo teórico de Boltanski e Thévenot interpreta assim a realidade
social, enquanto ordem negociada segundo uma hierarquia de grandeza, na qual o bem
comum constitui, em última análise, a instância legitimadora (BOLTANSKI & THÉVENOT,
1991: 98-104).
I.1.1. Os mundos comuns
Em 1991, Boltanski e Thévenot publicaram De la Justification: les économies de
la grandeur, onde propõem um modelo analítico composto por seis mundos comuns:
inspirado, doméstico, do renome, cívico, comercial e industrial. No seu modelo teórico,
os mundos representam diferentes lógicas de acção ou realidades múltiplas vividas
pelos actores sociais, constituindo também dimensões de análise. Os autores inspiraramse em algumas obras clássicas da filosofia política que, na sua perspectiva, são
verdadeiros repositórios dos argumentos utilizados pelas pessoas nas suas operações
críticas. Através destas obras, Boltanski e Thévenot explicitam as gramáticas
argumentativas dos seis mundos comuns do seu modelo teórico, o qual permite
objectivar as representações e acções das pessoas que interagem, compreendendo assim
as suas competências para julgar e avaliar através de ordens de grandeza partilhadas. As
gramáticas argumentativas e justificativas objectivam as formas de grandeza utilizadas
pelas pessoas para classificar e hierarquizar grandes e pequenos seres numa situação,
dando corpo aos seis mundos do modelo teórico. Desta forma, as gramáticas
representam os sistemas de equivalência usados pelos actores sociais nesta economia de
grandeza ou sociologia das convenções. Neste quadro teórico, são as situações de
controvérsia, gerando operações críticas que expõem as representações dos actores em
situação, as que melhor se prestam à análise sociológica.
9
O mundo inspirado tem fundamento em A Cidade de Deus, de Santo Agostinho
(354-430)9, no qual a grandeza advém da relação com um princípio exterior,
manifestando-se num estado de graça que não depende da opinião dos outros e que se
revela no corpo puro do asceta ou do santo, mas também na inspiração, autenticidade e
criatividade do artista. O mundo doméstico funda-se em A Política, de Bossuet (162710
1704)
, no qual a grandeza advém da posição hierárquica numa cadeia de dependências
pessoais, o que, ao nível político, se traduz numa relação que conjuga a família, a
tradição e a proximidade. O mundo do renome foi criado a partir do Leviatã, de Thomas
Hobbes (1588-1679)11, no qual a grandeza depende da opinião dos outros, do número de
pessoas que entram em acordo sobre o valor e a estima a conceder, livres de qualquer
dependência pessoal. O mundo cívico foi inspirado por O Contrato Social, de JeanJacques Rousseau (1712-1778)12, em que a grandeza repousa, de forma abstracta, no
interesse colectivo, o qual prevalece sobre o individual. O mundo comercial foi criado a
partir da obra A Riqueza das Nações, de Adam Smith (1723-1790)13, no qual a grandeza
está associada ao mercado, ao sucesso comercial, e onde o interesse individual
prevalece sobre o colectivo. Finalmente, o mundo industrial foi inspirado pelo Sistema
Industrial e outras obras de Saint-Simon (1760-1825)14, onde a grandeza depende da
eficácia e do rendimento, aferidos numa escala de competências profissionais e
organizacionais vocacionadas para a produção de bens materiais (BOLTANSKI &
THÉVENOT, 1991: 84-85).
O mundo inspirado é pouco equipado e estabilizado porque carece da
aparelhagem que, nos outros mundos, permite aferir e comparar os seres,
designadamente «as medidas, as regras, o dinheiro, a hierarquia, as leis, etc.». Sem estes
instrumentos de equivalência, as suas provas são pouco objectiváveis, razão pela qual a
grandeza inspirada não está dependente da opinião dos outros, o que lhe confere
9
Santo Agostinho (Aurelius Augustinus), De Civitate Dei.
10
Jacques-Bénigne Bossuet, La Politique Tirée des Propres Paroles de l’Écriture Sainte, Paris, Pierre
Cot, 1709.
11
Thomas Hobbes, Leviathan, or the Matter, Forme and Power of a Common-Wealth Ecclesiasticall and
Civil, London, Andrew Cooke, 1651.
12
Jean-Jacques Rousseau, Du Contrat Social; ou principes du droit politique, Amsterdam, Marc-Michel
Rey, 1762.
13
Adam Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, London, Strahan and
Caldell, 1776.
14
Henri Saint-Simon, Du Système Industriel, Paris, Antoine-Augustin Renouard, 1821.
10
também fragilidades. Para aceder à grandeza inspirada é necessário sacrificar os
objectos e dispositivos que, nos outros mundos, asseguram a identidade da pessoa.
Desta forma, os grandes inspirados são frequentemente desprezados, pobres,
dependentes ou inúteis, mas é precisamente o seu estado miserável que lhes confere
grandeza, como no caso dos artistas e dos poetas, mas também dos ingénuos e dos
loucos. Indiferentes aos sinais de desprezo, os seres do mundo inspirado devem estar
preparados para mudanças de grandeza ao sabor da sua inspiração, porquanto neste
mundo a grandeza é espontânea, quer dizer, sincera e involuntária, manifestando-se em
paixões e emoções, e sendo vivida sofregamente, de forma enriquecedora,
entusiasmante, exaltante, fascinante, inquietante ou assustadora. As paixões que
animam os seres inspirados são indissociáveis do desejo de criar, da inquietação e da
dúvida, bem como do sofrimento e do amor pelo objecto desejado. No mundo inspirado,
onde as relações naturais são as da criação, quanto mais original mais geral, razão pela
qual os seres inspirados são apreciados pela sua singularidade. Neste sentido, o mundo
inspirado representa «o paradoxo de uma grandeza que se subtrai à medida e uma forma
de equivalência que privilegia a singularidade» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 200206).
O mundo doméstico vai muito para além do círculo restrito das relações
familiares, uma vez que surge nas situações em que as relações pessoais são invocadas
para estabelecer equivalências. A grandeza doméstica existe em função «da posição
ocupada nas cadeias de dependências pessoais» e é concebida na forma relacional de
«maior que» ou «menor que», na qual os seres grandes são os primeiros na ordem das
gerações ou das hierarquias. Os grandes do mundo doméstico compreendem os
pequenos que estão na sua dependência, sendo esta, aliás, a fonte da sua autoridade,
porque a compreensão é retribuída na forma de respeito, consideração e fidelidade, pelo
que a correcção, a educação e as boas maneiras são importantes como instrumentos que
induzem respeito. A função dos objectos e dos dispositivos do mundo doméstico, como
o cartão-de-visita, a carta manuscrita ou a assinatura, é evidenciar a relação hierárquica
entre os seres, porque através deles as pessoas mostram a sua ordem de grandeza. Para
manifestarem a sua importância, os grandes do mundo doméstico estão submetidos a
constrangimentos de tempo e lugar relacionados com a obrigatoriedade da sua presença
pessoal. Daqui resulta a importância que, neste mundo, adquirem as roupas e adereços
corporais, bem como os títulos e insígnias, que permitem a identificação da grandeza,
11
reduzindo a incerteza na presença dos outros. Além disto, a importância destes símbolos
tende a ligar as pessoas à sua ordem de grandeza, como sucede com os títulos
nobiliárquicos, tendo como consequência neutralizar as operações críticas. Neste
sentido, uma vez que as críticas não produzem efeito, os grandes do mundo doméstico
ficam isentos de prestar provas ou, quando o fazem, elas são desvirtuadas, assumindo a
forma de provas de confirmação. Por isso, a ordem de grandeza dos seres domésticos é
estabelecida a partir da geração, da tradição e da hierarquia, termos equivalentes na
medida em que existe dependência pessoal de um superior, tendo por referência a figura
paterna (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 206-222).
O mundo do renome, da fama ou da opinião, ao contrário do mundo doméstico,
não atribui importância à tradição ou à memória, pelo que as celebridades podem ser
rapidamente esquecidas. Tal como o mundo inspirado, o mundo do renome é pouco
estável, mas porque depende exclusivamente da opinião dos outros, a qual não tem
propriedades duráveis. Os grandes deste mundo são visíveis, famosos, célebres,
reconhecidos e mesmo reputados, segundo princípios de equivalência que se baseiam
unicamente na opinião dos outros, o que confere à celebridade uma grandeza frágil,
tornando-a alvo fácil de frequentes críticas. Pelo contrário, no mundo do renome, a
auto-estima é a principal fonte de dignidade das pessoas e objecto de consideração, na
medida em que induz o desejo de ser reconhecido, pelo que outras características dos
famosos, como a profissão, não são muito consideradas. Por esta razão, os dispositivos
do renome tanto podem engrandecer um astronauta, um cirurgião famoso, uma
apresentadora de televisão, um jogador de futebol ou uma estrela de cinema. Nesta
perspectiva, a grandeza do renome é fortemente democrática por ser virtualmente
acessível a todos, desde que apoiados por um dispositivo eficaz de comunicação, um
«movimento de opinião» ou «rede de propagandistas benévolos», que crie uma
«imagem de marca». Na lógica do renome, as sondagens de opinião permitem avaliar e
actualizar as flutuações inerentes à condição de famoso, a qual implica a renúncia ao
secretismo, ou seja, o ser que quer engrandecer deve aceitar nada esconder e tudo
revelar ao seu público. Este é o caso das vedetas que renunciam à sua vida privada, mas
também a atitudes extravagantes que poderiam desagradar ao grande público
(BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 222-230).
O mundo cívico atribui grande importância aos seres que não são indivíduos,
mas pessoas colectivas, pelo que os entes individuais apenas acedem à grandeza cívica
12
quando integrados em colectivos, particularmente como seus representantes. Contudo, a
existência destes colectivos pode facilmente ser contestada, porque são desprovidos de
corpo, razão pela qual os objectos e dispositivos do mundo cívico se destinam,
sobretudo, a objectivar e estabilizar as pessoas colectivas, conferindo-lhes uma
existência corpórea. A relação de equivalência no mundo cívico é estabelecida entre os
seres pertencentes a um colectivo que os compreende e os transcende, e mesmo as
pessoas colectivas estão incluídas noutros colectivos de dimensão superior, até ao mais
completo, que é a humanidade. Neste sentido, todos os seres cívicos partilham a mesma
justiça, produzida à imagem da consciência colectiva, subordinando a sua vontade à
vontade geral do colectivo que integram. Esta consciência permite a formação e
estabilização dos seres colectivos, ultrapassando as singularidades individuais e
tornando pertinentes as acções colectivas que, por sua vez, dão sentido e justificam as
individuais. Neste mundo, onde os seres têm direitos e deveres, a lei, as normas e os
regulamentos são particularmente apreciados, pelo que a legalidade define uma certa
forma de grandeza, dando corpo aos colectivos e reconhecendo os seus representantes.
A grandeza destes colectivos reside na capacidade de mobilização dos seus membros
em torno do interesse comum, razão pela qual a dignidade das pessoas se manifesta no
seu desejo de união. Desta forma, no mundo cívico, os indivíduos são grandes ou
pequenos na medida em que se integram ou se isolam das pessoas colectivas
(BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 231-241).
O mundo comercial não se limita às relações económicas, nem se destina a
reabilitar um suposto equilíbrio do mercado concorrencial, mas apenas a interpretar uma
ordem de generalidade, entre outras, como forma de coordenação. «No mundo
comercial, as acções são orientadas pelos desejos dos indivíduos, que os impelem a
possuir os mesmos objectos», bens raros cuja propriedade é alienável. A dignidade das
pessoas, neste mundo onde todos são movidos pelos seus desejos, advém do princípio
superior comum que é a concorrência, pelo que os litígios exprimem a competição e a
rivalidade. A relação natural entre os seres do mundo comercial é o negócio, mediado
pelo valor e o custo, ou preço, o qual traduz a desejabilidade do objecto transaccionado,
ou seja, o número de pessoas dispostas a pagá-lo. Os grandes do mundo comercial são
ricos, como os milionários que vivem «em grande» e cuja riqueza lhes permite adquirir
o que os outros apenas podem desejar. No mundo comercial, onde a circulação de
pessoas e bens é livre, os objectos de luxo, apenas acessíveis aos grandes, exprimem o
13
seu sucesso. Neste sentido, a grandeza comercial inscreve-se num espaço que não
conhece limites e que, tal como a grandeza do renome, não inclui memória do passado
nem projecto de futuro, razão pela qual o mundo comercial também é marcado pela
instabilidade e a insegurança. O oportunismo caracteriza os grandes deste mundo, os
quais «sabem tirar o melhor partido de tudo». Por outro lado, as pessoas que falham são
rejeitadas ou detestadas, ficando assim privadas dos meios que permitem o acesso ao
bem comum e garantem a sua dignidade, sendo condenadas à pobreza que caracteriza os
pequenos seres do mundo comercial. Contudo, se o egoísmo é o sentimento que domina
o mundo comercial, pela paixão de satisfazer os seus próprios desejos, a pessoa que
quer engrandecer tem de fazer um sacrifício, colocando o bem comum acima dos seus
desejos pessoais (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 241-252).
QUADRO 1
Os mundos comuns segundo Boltanski e Thévenot
Mundo
Obras
Gramática
Inspirado
A Cidade de Deus
Santo Agostinho
Valoriza os objectos que remetem para
a singularidade do génio criador.
Doméstico
A Política
Bossuet
Funda-se na família, na autoridade e na
tradição.
Do renome
Leviatã
Thomas Hobbes
Tem como principais referências a
fama, o renome e a notoriedade.
Cívico
O Contrato Social
Jean-Jacques Rousseau
Na qual o interesse colectivo prevalece
sobre o individual.
Comercial
A Riqueza das Nações
Adam Smith
Baseada no mercado e onde o interesse
individual prevalece sobre o colectivo.
Industrial
Sistema Industrial e outras
obras de Saint-Simon
Assente na organização, no rendimento
e na eficácia.
O mundo industrial também não se confina aos limites da empresa ou das
organizações e, sendo o lugar privilegiado dos objectos técnicos e dos métodos
científicos, deve ser interpretado como simétrico do mundo comercial. As suas provas
assentam em factos científicos, mas também na pluralidade de acções de ordem
industrial, designadamente económicas e tecnológicas. A ordem do mundo industrial
reside na eficácia dos seres, na sua produtividade e rendimento, isto é, na capacidade
para responder utilmente às necessidades das pessoas. Esta funcionalidade requer
14
organização e articulação entre os seres deste mundo, cuja forma de coordenação
permite uma equivalência entre as situações presentes e futuras, possibilitando a
previsão. Neste sentido, os grandes do mundo industrial são funcionais, profissionais ou
operacionais, tendo capacidade para se integrarem nas organizações, e cuja
previsibilidade e fiabilidade dão garantias de cumprimento de projectos realistas. Pelo
contrário, os seres improdutivos ou inúteis são pequenos no mundo industrial,
encontrando-se neste caso os absentistas, inactivos, grevistas e deficientes. No mundo
industrial são também pequenas as pessoas ineficazes, cujo trabalho não tem qualidade,
como os inadaptados, os desqualificados e os desmotivados. Sendo o progresso a
fórmula de investimento deste mundo, as relações naturais entre os seres residem no seu
bom e regular funcionamento, pelo que a dignidade das pessoas depende da sua energia,
da qualificação profissional e da capacidade de trabalho, traduzida pela expressão
«homem de acção». (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 252-262).
I.1.2. Grelha de análise dos mundos comuns
Tomando os mundos comuns como dimensões de análise da sua teoria,
Boltanski e Thévenot criaram uma grelha analítica, comportando treze indicadores, para
analisar as operações críticas dos actores envolvidos em controvérsias. Os mundos
comuns encontram-se em tensão entre eles, pelo que as operações críticas não se
limitam a um determinado mundo, mas cruzam-se com os restantes, resultando assim
em gramáticas argumentativas que se confrontam. Contudo, as categorias que se
seguem são comuns aos seis mundos do modelo de análise de Boltanski e Thévenot:
O «princípio superior comum» é uma convenção que funciona como norma de
coordenação característica do respectivo mundo, estabelecendo uma equivalência entre
os seres. Este princípio estabiliza e generaliza uma forma de acordo, proporcionando a
medida para avaliar o estado de grandeza de pessoas e objectos. Nas controvérsias, o
princípio superior comum apenas é enunciado como último recurso, pois geralmente
basta invocar a ordem de grandeza das pessoas e objectos na situação.
O «estado de grande» é a medida para aferir os diferentes estados de grandeza,
ajudando também a definir, pela negativa, o estado de pequeno. A hierarquia
estabelecida entre os estados de grandeza e a sua relação com as formas de bem comum
concorrem para que cada ordem de grandeza corresponda a uma escala de valores que
15
vai do geral ao particular. Neste sentido, os grandes seres garantem o princípio superior
comum, porque a sua existência proporciona a medida da grandeza e a sua generalidade
serve de referência, contribuindo desta forma para a coordenação das acções dos outros
seres.
A «dignidade das pessoas» expressa a comum humanidade de uma ordem
legítima, exprimindo também a sua capacidade de aceder ao bem comum. Esta
dignidade comum é conferida pelos seres grandes de um mundo, legitimando assim a
sua grandeza. A dignidade das pessoas inscreve-se na natureza humana e fundamenta-se
na sua capacidade de «subir em generalidade» para conseguir um acordo, ainda que
precário, com os seus semelhantes.
O «repertório dos sujeitos» designa as características das pessoas, segundo o
seu estado de grandeza, e depende das qualificações e competências que apresentam
num determinado mundo.
O «repertório dos objectos e dos dispositivos», em conjunto com o repertório
dos sujeitos, contribui para objectivar a grandeza das pessoas, embora não esteja
igualmente desenvolvido em todos os mundos. Os objectos podem ser considerados um
conjunto diversificado de equipamentos ou instrumentos da grandeza, designadamente
regulamentos, diplomas, códigos, aparelhos, edifícios e máquinas. A distinção entre
objectos materiais e imateriais não constitui uma propriedade fundamental na teoria de
Boltanski e Thévenot, porque equipamentos de natureza muito diversificada podem
servir para estabelecer equivalências e atribuir uma ordem de grandeza às pessoas.
Aliás, a desigualdade dos objectos entre os diversos mundos facilita a medida da
grandeza como, por exemplo, no mundo inspirado, no qual os objectos são dificilmente
separáveis das pessoas, cujo próprio corpo é o principal instrumento de grandeza.
A «fórmula de investimento» constitui uma das principais condições de
equilíbrio interno dos mundos, pois ligando o engrandecimento ao sacrifício, ela produz
uma «economia de grandeza». Na fórmula de investimento, os benefícios são
contrabalançados pelos seus respectivos custos, pelo que a grandeza pressupõe o
sacrifício dos prazeres particulares associados ao estado de pequeno. Esta fórmula não
proporciona apenas benefícios à pessoa que engrandece, uma vez que os grandes
compreendem os pequenos, possibilitando assim também o seu engrandecimento, de
acordo com a sua dignidade.
16
A «relação de grandeza» objectiva a ordem entre os estados de grandeza,
especificando a forma como os grandes compreendem os pequenos do seu mundo,
contribuindo assim para o bem comum. Neste sentido, os grandes explicitam também os
pequenos, embora «em termos que não se confundem com a qualificação da grandeza».
As «relações naturais entre os seres» são expressas pelos verbos, devendo
conciliar as grandezas dos sujeitos e dos objectos que elas unem. Estas
correspondências constituem relações de equivalência que fundamentam as ordens de
grandeza do respectivo mundo, estabelecendo grandezas semelhantes ou desiguais entre
os seres. As «relações naturais entre os seres» pressupõem um imperativo humano de
justificação, podendo contudo mobilizar e qualificar diversos objectos.
A «figura harmoniosa da ordem natural» é invocada, em cada mundo, como
realidade conforme ao princípio de equidade. No modelo teórico de Boltanski e
Thévenot, em cada mundo as relações de equivalência estabelecem uma ordem
harmoniosa de grandezas, de acordo com a respectiva fórmula de investimento.
A «prova modelo», ou «grande momento», é uma situação preparada para testar
a grandeza de uma pessoa e cujo resultado é incerto. Nesta prova é aplicado «um
dispositivo puro, particularmente consistente».
O «modo de expressão do julgamento» é a forma diferenciada pela qual, em
cada mundo, se exprime a sanção associada a cada prova. O modo de expressão do
julgamento decorre do princípio superior de cada mundo comum.
A «forma de evidência» é a modalidade de conhecimento própria de cada
mundo.
O «estado de pequeno e declínio do mundo» decorre da auto-satisfação. O
estado de pequeno é mais difícil de caracterizar do que o estado de grande, na medida
em que não constitui apenas a sua negação. Com efeito, a classificação dos seres tornase mais difícil na fronteira do caos em que se desmorona esse mundo, uma vez que se
encontram em vias de desnaturalização, mas também porque a sua pequenez deixa
transparecer grandezas de outros mundos, ocultas nas gramáticas argumentativas
invocadas por essas pessoas (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 177-181).
17
QUADRO 2
Grelha de análise dos mundos comuns na teoria de Boltanski e Thévenot
Mundo
Princípio
superior
comum
Estado de
grande
Inspirado
Doméstico
Do renome
Cívico
Comercial
Industrial
A
efusividade
da
inspiração
O indizível
e etéreo
A geração a
partir da
tradição
A realidade
da opinião
A preeminência dos
colectivos
A
concorrência
A eficácia
A
superioridade
hierárquica
O à-vontade
do hábito
A
celebridade
Regulamentar e
representativo
A aspiração
aos direitos
cívicos
Desejável
Rentável
O interesse
O trabalho
Colectivos
e os seus
representantes
As formas
legais
Os
concorrentes
Os
profissionais
Riqueza
Os meios
A
renúncia ao
particular
Oportunismo
Progresso
As relações
de
delegação
Possuir
Mestria
Interessar
Funcionar
A imagem
pública
A reunião
para uma
acção
colectiva
A república
democrática
Mercado
Organização
A apresentação do
acontecimento
O
julgamento
da opinião
A manifestação por
uma causa
justa
O veredicto
do
escrutínio
Negócio
Teste
Preço
Eficaz
A evidência
do sucesso
O texto da
Lei
Dinheiro
Medida
A
indiferença
ea
banalidade
A divisão
Indesejado /
a servidão
do dinheiro
Ineficaz /
a acção
instrumental
Dignidade
das pessoas
A
inquietação
da criação
Repertório
dos sujeitos
Os
iluminados
Os
superiores e
os inferiores
As vedetas
e os seus
admiradores
Repertório
dos
objectos e
dispositivos
Fórmula de
investimento
O sonho
acordado
As regras de
etiqueta
A evasão
para fora
dos hábitos
A rejeição
do egoísmo
Nomes nos
meios de
comunicação social
A
renúncia ao
anonimato
O valor
universal da
singularidade
A alquimia
dos
encontros
imprevistos
A
realidade do
imaginário
Respeito e
responsabilidade
A errância
do espírito
A cerimónia
familiar
Modo de
expressão
do
julgamento
Forma da
evidência
O fulgor de
génio
A certeza
da intuição
Saber
conceder a
sua
confiança
A história
exemplar
Estado de
pequeno e
declínio do
mundo
A tentação
de retorno à
terra
O desleixo
da boa
educação
Relação de
grandeza
Relações
naturais
entre os
seres
Figura
harmoniosa
da ordem
natural
Prova
modelo
A sociabilidade das
pessoas
educadas
O espírito
do lar
O desejo de
ser
reconhecido
Ser
reconhecido
e identificar-se
A persuasão
18
I.2.
Sociologia da singularidade
Segundo Pierre Bourdieu, «a sociologia e a arte não se dão bem» porque, se por
um lado, os artistas dificilmente aceitam tudo o que contraria a imagem que têm de si
próprios, por outro, a entrada dos sociólogos nesse universo de crença, procurando
compreender, racionalizar e explicar o que é sacralizado, constitui em si um sacrilégio
(BOURDIEU, 1980: 207)15. A reforçar o antagonismo entre sociologia e arte estaria o
preconceito de que a sociologia pode dar conta dos consumos culturais mas não da
produção artística, uma vez que esta, existindo supostamente no «nimbo» associal da
inspiração, estaria mergulhada na opacidade intelectual, sendo por isso inacessível ao
cientista social. Nathalie Heinich, que integrou desde a sua formação o Groupe de
Sociologie Politique et Morale de Luc Boltanski, desenvolveu uma «sociologia da
singularidade» a partir da dicotomia bourdiana entre a arte e a ciência social. Segundo
Nathalie Heinich, a arte constitui um terreno de investigação específico, um mundo à
parte na realidade social, em regime de singularidade, para o qual a sociologia estaria
pouco vocacionada e conceptualmente mal equipada. Se as actividades artísticas foram
até então analisadas na perspectiva da sociologia, em Ce que l’Art Fait à la Sociologie,
obra publicada em 1998, Nathalie Heinich procede de certa forma a uma inversão,
propondo analisar a arte na perspectiva do que ela «faz à sociologia». Neste sentido, a
socióloga aplica o paradigma teórico de Boltanski e Thévenot, que reconhece as
particularidades da criatividade no mundo inspirado. Contudo, enquanto para estes
autores as pessoas teriam de subir em generalidade para chegarem a acordo sobre a
grandeza a atribuir a cada ser, na perspectiva de Heinich, o valor artístico obedece a
uma lógica inversa, na qual os seres inspirados, os artistas e as suas obras, apenas
poderão engrandecer através de uma dupla subida em originalidade e objectividade.
Na perspectiva de Nathalie Heinich, a arte questiona fortemente a sociologia
porque a tradição sociológica não desenvolveu instrumentos teóricos e procedimentos
empíricos adequados para analisar o universo peculiar do mundo inspirado, criticando
por isso o seu «sociologismo». Para Heinich, «o domínio da arte é por excelência onde
se afirmam os valores contra os quais se constituiu a sociologia»: «o individual oposto
ao colectivo, o sujeito ao social, a interioridade à exterioridade, o inato ao adquirido, o
dom natural às aprendizagens culturais». Neste contexto, a socióloga poderia seguir
15
Vera Zolberg contribuiu para reforçar esta ideia no seu livro Constructing a Sociology of the Arts, no
qual traduziu a frase de Bourdieu: «Sociology and art make an odd couple» (ZOLBERG, 1990: 1).
19
duas vias. Uma primeira via consistiria em adoptar os princípios epistemológicos da
tradição sociológica, tomando a arte como fenómeno colectivo, ou seja, na perspectiva
«do que a sociologia faz à arte». Esta é a perspectiva assumida, designadamente, por
Howard Becker em Mundos da Arte16. Heinich segue a outra via, a qual obriga a romper
com o «paradigma dominante» na sociologia, optando por uma abordagem que a leva a
repensar não apenas a sociologia da arte, mas a própria ciência social. Neste sentido, a
sua sociologia da singularidade inverte a lógica do «paradigma dominante», propondo
outros princípios epistemológicos, na perspectiva «do que a arte faz à sociologia».
Abandonando algumas posturas, rotinas e hábitos mentais enraizados na tradição
sociológica, esta abordagem permitiria abrir a disciplina às especificidades do universo
artístico, alargando assim o objecto da sociologia (HEINICH, 1998: 1-2). Em Ce que l’Art
Fait à la Sociologie, obra que constitui uma ruptura epistemológica com o «paradigma
dominante» na sociologia, Heinich propõe cinco «posturas epistemológicas» que o
sociólogo deve adoptar para analisar o mundo inspirado da criação artística.
A primeira proposta é a «postura anti-reducionista», através da qual Nathalie
Heinich contraria o que designa como «reducionismo sociologista» da tradição
sociológica. Para a socióloga, esta proposta implica o abandono da «postura crítica»,
que privilegia a ordem de valores implícita na perspectiva «social» contra os valores da
perspectiva «individual» (HEINICH, 1998: 11-21). Afastando-se dos debates ideológicos
que caracterizaram a sociologia europeia, Heinich propõe também uma «postura
acrítica», «enraizada na tradição americana da etnometodologia», que leve a sério as
controvérsias sobre a arte. Esta postura implica que as operações críticas devem ser
exclusivas dos actores sociais, mantendo o sociólogo a distância epistemológica
necessária à passagem da «sociologia crítica» a uma «sociologia da crítica». Para tal, os
valores e representações dos indivíduos devem ser levados a sério, enquanto objecto da
análise sociológica, e não como ilusões a desmistificar pela confrontação com o real.
Não se trata, portanto, de substituir o reducionismo generalista por um outro
reducionismo particularista, mas de uma «postura acrítica» que recupere a neutralidade
axiológica weberiana. Segundo Nathalie Heinich, o paradoxal regime de singularidade
impôs-se no universo artístico no decorrer do século XIX, obrigando assim a sociologia
16
«Isto quer dizer que, em tudo o que abordo ou penso estudar, envolvo sempre todas as pessoas,
incluindo em especial as convencionalmente tidas como pouco importantes. E que, além disso, trato tudo
o que está relacionado com o meu tópico – incluindo todos os artefactos físicos – como resultado da
acção de pessoas em conjunto» (BECKER, 2010: 11).
20
da arte a uma perspectiva histórica, pondo em evidência as variações do gosto ao longo
do tempo. Esta perspectiva, tal como a aplicou Norbert Elias, constitui um instrumento
heurístico que permite ao sociólogo perceber as constantes e variações na percepção da
arte. Desta forma, a «postura acrítica» torna possível uma sociologia das representações
«imaginárias e simbólicas» presentes no universo artístico (HEINICH, 1998: 23-29).
QUADRO 3
Regimes de acção segundo Nathalie Heinich
Regime
De comunidade
(tradição sociológica)
De singularidade
(paradoxo estético)
Mundos
– Outros mundos
– Mundo inspirado
Grandeza
– Pluralidade
– Subida em generalidade
– Singularidade
– Dupla subida em
singularidade e objectividade
Ética
– Da conformidade
– Tende a privilegiar o que é
social, geral, colectivo,
impessoal, público.
– Da raridade
– Tende a privilegiar o sujeito, o
pessoal, o individual, o privado.
Paradigma
– Sociologista
– Procura a explicação
– Novo paradigma (singularista)
– Procura a explicitação
Posturas
– Reducionista
– Normativa
– Critica
– Anti-reducionista
– Acrítica
– Descritiva
– Pluralista
– Relativista
Autores
– Bourdieu, Moulin, Becker,
etc.
– Elias, Heinich, etc.
A terceira perspectiva epistemológica adoptada por Nathalie Heinich é a que ela
designa como «postura descritiva», a qual decorre do regime de singularidade que se
instalou no universo da arte, remetendo para um processo simétrico «de generalização e
de particularização». Inspirada na sociologia compreensiva de Max Weber, bem como
na etnometodologia, a socióloga propõe então analisar os discursos dos actores sociais
para determinar o sentido que atribuem às suas acções. Segundo Nathalie Heinich, a
postura descritiva privilegia a explicitação em detrimento da explicação, evidenciando a
lógica interna, a complexidade e a coerência dos sistemas de representações dos
21
intervenientes no universo da arte. Nesta perspectiva, os indivíduos não são
considerados vítimas das suas convicções, mas sim autores ou utilizadores de «sistemas
de representação coerentes». A postura descritiva remete assim para a sociologia
pragmática, descrevendo situações concretas de controvérsia entre os diversos actores
sociais envolvidos. Contudo, a explicitação não se reduz à experiência consciente dos
indivíduos, pois vai mais longe, procurando «a dimensão recorrente e colectiva da
experiência» para descrever as suas motivações. Segundo Nathalie Heinich, a sociologia
entrou num impasse ao tentar «explicar» as obras de arte, razão pela qual se impõe a
mudança para um novo paradigma que contemple novas formas de construção do
objecto sociológico. Na perspectiva da socióloga, as obras de arte têm «propriedades
intrínsecas» que «agem sobre as emoções» e os «quadros perceptivos», influenciando as
«categorias cognitivas» e os «sistemas de valores» e representações de quem as
experiencia. Recusando uma sociologia interpretativa e valorativa, a postura descritiva
permitiria abordar as obras de arte numa perspectiva pragmática, não pelo que as obras
valem, mas pelo que «fazem» enquanto objectos que interagem com as pessoas no
universo artístico (HEINICH, 1998: 31-40).
Para Nathalie Heinich, as controvérsias são situações privilegiadas para
explicitação das «referências comuns», dos «esquemas perceptivos» e dos «quadros
axiológicos». Mantendo a neutralidade axiológica, o sociólogo não deve interferir nas
querelas artísticas, defendendo ou atacando determinadas interpretações ou registo de
valores, para decretar a legitimidade ou a dominação desta ou daquela posição. Pelo
contrário, deverá evitar problemas ontológicos, explicitando a pluralidade de pontos de
vista e diversidade de interpretações dos intervenientes nas polémicas, através das suas
críticas e justificações. Neste sentido, Heinich propõe uma «postura pluralista» que
permita dar conta da heterogeneidade do universo artístico, patente na diversidade de
valores mobilizados nas controvérsias, designadamente cívicos, estéticos, éticos,
funcionais ou mesmo jurídicos. Contudo, invocando o «irreducionismo» que caracteriza
a «postura pluralista», Heinich critica a teoria de Boltanski e Thévenot, que contempla
apenas a «subida em generalidade» como forma de gerar acordos. Na sua perspectiva, o
paradoxo estético instituído no universo da arte pelo «regime de singularidade»
privilegia a invenção de formas inéditas e a passagem à posteridade, em detrimento do
reconhecimento imediato e do sucesso comercial. Sendo a inovação e originalidade
características fundamentais do universo artístico, a generalização desqualifica as obras
22
de arte. Desta forma, para Heinich, mais do que a «subida em generalidade», «construir
um valor partilhado» em arte implica sobretudo uma «subida em singularidade». Mas
apenas a singularização também não seria suficiente, razão pela qual, na sua
perspectiva, para produzir grandeza artística será necessário que a «subida em
singularidade» seja acompanhada por uma «subida em objectividade», capaz de
ultrapassar a subjectividade do julgamento estético. Heinich ilustra a ambivalência do
universo artístico com o exemplo do «louco genial», o artista singular visto como louco
pelos seus contemporâneos, bem como o dos escritores apanhados entre o «imperativo
de singularidade», que privilegia o isolamento, e o «imperativo de comunidade», que
favorece os laços sociais com o meio literário, particularmente com o seu grupo de
pares (HEINICH, 1998: 41-54).
QUADRO 4
Posturas epistemológicas segundo Nathalie Heinich
Postura
Crítica
Justificação
Antireducionista
– Regime de comunidade
– Paradigma sociologista
– Reducionismo
– Regime de singularidade
(mundo inspirado)
– Vocação, dom, inspiração,
desinteresse, revelação.
Acrítica
– Sociologia crítica
– Valoração das obras
e dos artistas
– Sociologia da crítica
– Sociologia pragmática
– Neutralidade axiológica
Descritiva
– Objectivo de explicação
– Perspectiva normativa
«sociologia das obras»
– Objectivo de explicitação
– Duplo processo de particularização
e generalização
Pluralista
– Reducionismo
– «Subida em generalidade»
– Boltanski & Thévenot
– Controvérsias, críticas, justificações.
– Dupla «subida» em singularidade
e em objectividade
Relativista
– Dominação e crença
– Teoria dos campos
– Bourdieu
– Autonomização do domínio artístico
– Sistemas de valores incompatíveis
Na perspectiva de Nathalie Heinich, quanto maior for a autonomia do universo
artístico, maior será também a pluralidade dos valores investidos pelos seus
protagonistas. Este investimento manifesta-se sobretudo no julgamento dos pares, em
detrimento do público profano, e mais no reconhecimento do talento do que em
proveitos materiais. Segundo a socióloga, a autonomia da arte resulta numa
23
descoincidência entre os valores dos grupos socialmente dominantes e os valores
dominantes do universo artístico. «Quanto mais a arte se autonomiza, mais se inscreve
no regime de singularidade, assentando em valores antinómicos daqueles sobre os quais
se construiu uma tradição sociológica ancorada no regime de comunidade». Heinich
justifica assim a necessidade de uma «postura relativista», como forma de ultrapassar as
contradições que necessariamente emergem no universo da arte. Esta relativização será
tanto mais necessária quanto maior for o investimento dos indivíduos em valores
estéticos, morais ou outros. Para Heinich, a «postura relativista» tem em conta a
«pluralidade de pontos de vista sobre a criação artística, cada qual com a sua lógica
própria». Neste sentido, o sociólogo deverá praticar uma «neutralidade axiológica
militante» para apreender os julgamentos dos actores sociais como juízos de valor do
universo artístico e não como asserções a validar ou invalidar pelo confronto com a
realidade (HEINICH, 1998: 55-64).
24
CAPÍTULO II
Fernando Pessoa sociologicamente considerado
A qualidade de formação da auto-regulação de um ser humano – e pense-se por
exemplo na sua língua materna – é graças ao facto de crescer num determinado colectivo,
absolutamente «típica» e, em simultâneo, graças ao seu crescimento como um ponto de
referência singular na teia da sua sociedade, absolutamente individual, nomeadamente um
aperfeiçoamento singular deste ser típico. Assim como todos os animais são diferentes uns dos
outros indubitavelmente, também os homens – por «natureza» – o são. Mas esta heterogeneidade
biológica é algo de diferente da heterogeneidade na formação e estruturação da auto-regulação
psíquica dos adultos que encontra a sua expressão no nosso conceito de «individualidade». Da
mesma forma que um animal, e convém aqui mais uma vez frisá-lo, também um ser humano que
cresça fora de uma sociedade humana não adquire esta tal «individualidade». Só e unicamente
por uma longa e difícil cinzelagem das suas funções psíquicas, moldáveis no relacionamento
com outros seres humanos, é que a sua conduta comportamental atinge a tal qualidade de
formação específica que caracteriza uma individualidade especificamente humana. Só por uma
modelação social é que, dentro do quadro de determinados carácteres sócio-típicos, também nele
se desenvolvem os tais carácteres e modos de comportamento pelos quais ele, dentro da sua
sociedade, se distingue de todos os outros seres humanos. A sociedade não é só o igualador e
tipificador mas também o individualizador (ELIAS, 1993: 80).
25
II.1.
A sociologia pragmática na república das letras
A «república das letras»17, uma metáfora com longa tradição literária, constitui
um espaço social onde interagem os diferentes actores da literatura, designadamente os
escritores, críticos, jornalistas, intelectuais, etc. Dispondo geralmente de competências
discursivas e argumentativas qualificadas, estes actores são fortemente interventivos,
exercendo os direitos cívicos e políticos de que gozam os cidadãos da república das
letras, particularmente a liberdade de expressão. Esta comunidade virtual constituiu-se
progressivamente na Europa desde a renascença, como comunidade de intelectuais e
literatos humanistas, numa época em que as categorias de letras e ciências não tinham
ainda sido estabelecidas. Sendo um espaço social de livre circulação de ideias, ou rede
de correspondentes eruditos, a república das letras desempenhou um importante papel
no debate político e religioso que conduziu à reforma protestante no século XVI18.
Contudo, a sua época de ouro verificou-se dois séculos mais tarde, com a emergência
das «gazetas», do enciclopedismo e do espaço público, tendo a imprensa como
poderoso meio de comunicação e difusão das ideias. A terceira edição do Dictionaire
Historique et Critique, de Bayle, publicada em Roterdão, em 1715, apresenta uma
primeira definição da república das letras como «um Estado extremamente livre», onde
vigora «o império da verdade e da razão», e em que «cada um é simultaneamente
soberano e litigante», tendo «o direito de escrever contra os autores que se enganam»,
direito que se «pode exercer sem pedir licença aos que governam». Distanciando-se da
maledicência e da difamação, a crítica honesta não acusaria sem provas nem
prejudicaria os autores, que poderiam assim «fruir de todos os direitos e de todos os
privilégios da sociedade», devendo apenas «dar a conhecer ao público os seus erros»
(BAYLE, 1715: 102). Desta forma, a república das letras emergiu como espaço
privilegiado para a crítica política, social e literária na modernidade.
17
A «república das letras» esteve desde o seu início ligada ao republicanismo: a primeira referência
conhecida a este conceito surge numa carta escrita em 1417 por Francesco Barbaro (1390-1454) que, dois
anos depois, seria nomeado senador da República de Veneza. Mais tarde foi Pierre Bayle (1647-1706),
calvinista francês exilado na então República da Holanda, professor na Universidade de Roterdão e
precursor do enciclopedismo, que daria corpo a esta metáfora, iniciando em 1684 a publicação de
Nouvelles de la République des Lettres, o periódico literário e filosófico mais influente do seu tempo. A
época áurea da «república das letras» foi contudo o «século das luzes», durante o qual o livre debate de
ideias nessa comunidade virtual de literatos, cientistas e intelectuais, que transcendia as fronteiras
nacionais, contribuiu significativamente para a emergência da revolução francesa.
18
O movimento protestante foi iniciado pelo frade agostiniano e professor de teologia Martin Luther
(1483-1546), tradutor da Bíblia para Alemão, que publicou as suas teses em 1517, tendo sido
excomungado em 1521.
26
Segundo Boltanski e Thévenot, «na ausência de uma grandeza cívica fortemente
estabelecida nas instituições do Estado», a república das letras apenas existiria como
«possibilidade teórica», dado que as relações de dependência do mundo doméstico
seriam inultrapassáveis. Por isso, para Jean-Jacques Rousseau, «a república das letras,
essa cidade ideal fundada na razão», não seria mais do que «uma conspiração de
velhacos». Contudo, ao analisarem a obra de Rousseau, As Confissões19, autobiografia
de um dos mais influentes intelectuais do século XVIII, Boltanski e Thévenot verificam
ser na relação dos escritores com os grandes deste mundo que mais se manifesta a
ambiguidade do seu estatuto. «A tensão entre a grandeza inspirada do génio, a grandeza
do renome, de que se pode valer o escritor célebre, […] e a grandeza ligada à posição
social, fica provisoriamente exposta pela instauração de um dispositivo destinado a
colocar no primeiro plano a autenticidade das relações inspiradas». A comunhão no
amor pelo belo, bem como a singularidade destas relações sem equivalência,
suspenderiam as diferenças de grandeza relativa entre o escritor célebre e o nobre ou
rico mecenas (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 148-149). Libertos dos laços de
dependência doméstica, seria esta relativa igualdade que permitiria a participação cívica
e a livre expressão das ideias na república das letras. Esta liberdade de opinião confere
capacidade aos seus cidadãos para criticar, justificar, julgar e avaliar as obras, os
escritores, as correntes e as instituições literárias. Desta forma, pensamos ser pertinente
convocar o modelo teórico de Boltanski e Thévenot para analisar as recorrentes
controvérsias que mobilizam os actores deste espaço social.
II.2.
A literatura como terreno de investigação sociológica
É possível uma sociologia das obras de arte? Esta questão tem dividido os
sociólogos, sobretudo em França, onde a sociologia da arte está mais desenvolvida.
Neste sentido, a crítica de Nathalie Heinich ao «paradigma sociologista», bem como a
sua rejeição das obras de arte enquanto objecto sociológico, cedo geraram controvérsia,
a qual foi explicitada na conferência Vers une Sociologie des Oeuvres, realizada em
1999 na cidade de Grenoble. Nesta conferência de sociólogos da arte, Bruno Péquignot
foi um dos que mais questionaram a perspectiva de Heinich, defendendo que as obras
artísticas constituem um objecto sociológico legítimo. Contudo, para a Nathalie
19
Les Confessions de J. J. Rousseau, suivies des Rêveries du Promeneur Solitaire, Genève, 1782.
27
Heinich, a relevância destas obras não advém do que elas «são», mas do que elas
«fazem», sobretudo porque, na sua perspectiva, a arte questiona fortemente a tradição
sociológica. Desta forma, ela recusou a sociologia que procura a «explicação» das obras
de arte, propondo em substituição a sua «explicitação». Jean-Pierre Esquenazi, outro
participante na conferência de Grenoble, também discordou de Heinich porque, na sua
perspectiva, os sociólogos da arte não se devem limitar a descrever as obras,
defendendo que a sociologia deveria, não apenas explicitar mas também analisar, isto é,
«explicar» as obras de arte. Segundo Esquenazi, a postura epistemológica de Heinich
corria o risco de reduzir a sociologia a um «paradigma descritivo», criticando a
socióloga por subvalorizar a perspectiva semiótica, que enfatiza a função social das
obras de arte enquanto signos produtores de sentido. Contrariando Heinich, Esquenazi
propôs uma «semiótica sociológica», contemplando a dupla origem da obra de arte que,
na sua perspectiva, resulta tanto de um universo artístico como da situação concreta que
a originou, sendo por isso simultaneamente objecto e acontecimento. Segundo Jacques
Leenhard, que também participou na conferência de Grenoble, esta ambivalência da
obra de arte está na origem da sua natureza controversa, pois se a obra constitui um
objecto de estudo sociológico, apresenta contudo problemas epistemológicos
específicos.
Neste
sentido,
o
sociólogo
propôs
contornar
estes
obstáculos
epistemológicos através de uma abordagem pragmática da obra de arte, entendida como
«operador de transformação» da realidade social (MAJASTRE & PESSIN, 2001).
Segundo Pierre Bourdieu, a obra literária pode «por vezes dizer mais,
inclusivamente sobre o mundo social, do que muitos escritos com pretensões
científicas» (BOURDIEU, 1996: 54). Esta ideia não é inteiramente nova, pois já em 1963 o
sociólogo americano Lewis Coser propunha uma «sociologia através da literatura»20.
Coser afirma que os sociólogos raramente utilizam obras literárias nas suas
investigações e, no entanto, parece óbvio que a sensibilidade de um poeta ou de um
romancista pode constituir uma «fonte de percepção social» mais rica do que as
impressões de informantes não privilegiados, nas quais se baseiam geralmente os
inquéritos sociológicos. «Existe uma intensidade de percepção num grande romancista,
quando descreve um lugar, uma acção ou um encontro de personagens, que dificilmente
pode ser igualada pelos observadores em quem os sociólogos estão geralmente
20
Lewis Coser (ed.), Sociology Through Literature: an introductory reader, Englewood Cliffs, PrenticeHall, 1963.
28
habituados a confiar». Para Coser, um bom escritor tem talento, experiência e treino
para articular, através da sua fantasia, os problemas existenciais dos seus
contemporâneos. Nesta perspectiva, a ficção «não é um substituto do conhecimento
sistematicamente acumulado e certificado», mas oferece ao cientista social um acervo
de «material sociologicamente relevante», com múltiplas pistas teóricas e sugestões
para a investigação sociológica. O sociólogo coloca então a questão de saber se, para
compreender o homem e a sociedade, a sociologia não deveria aproveitar o rico e
inexplorado repositório documental que a literatura constitui (COSER, 1963: 2-3).
Alguns grandes sociólogos recorreram à literatura como meio de inspiração, para
criarem modelos conceptuais ou para apoiarem e desenvolverem as suas teorias. Em O
Suicídio21, Durkheim usou diversas personagens, como Werther, de Goethe (1749-1832),
René, de Chateaubriand (1768-1848), ou Raphaël, de Lamartine (1790-1869), para
construir o seu modelo analítico e caraterizar os diferentes tipos de suicídio. Em A Ética
Protestante e o Espírito de Capitalismo22, Max Weber refere também vários artistas,
escritores e obras, designadamente A Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265-1321), O
Peregrino, de John Bunyan (1628-1688), ou Robinson Crusoe, de Daniel Defoe (16601731),
citando ainda o Paraíso Perdido, de John Milton (1608-1674), para fundamentar as
suas hipóteses e ilustrar os ideais-tipo23. Coser, Elias, Goffman, Bourdieu, Lahire ou
Martuccelli são também exemplos de sociólogos que se inspiraram em obras literárias
para exemplificar, ilustrar ou tipificar as suas análises. Erving Goffman usou
frequentemente a literatura e outras manifestações artísticas, não como forma de
evidência ou meio de prova, mas enquanto «descrições esclarecedoras, como quadros
imaginários que permitem, através das inúmeras liberdades dos seus autores, celebrar as
nossas crenças sobre o funcionamento do mundo» (GOFFMAN, 1974: 15). Mais
recentemente, em L’Esprit Sociologique, Bernard Lahire afirma que a literatura «não é
desprovida de interesse para o sociólogo», pois a ficção leva o leitor ao âmago das
relações sociais, colocando-o perante cenas íntimas que lhe permitem «observar»
experiências, paixões, acções e interacções inacessíveis aos sociólogos na vida real.
21
Émile Durkheim, Le Suicide: étude de sociologie, Paris, Félix Alcan, 1897. O Suicídio: estudo
sociológico, 8.ª edição, tradução de Luz Cary, Margarida Garrido e J. Vasconcelos Esteves, Lisboa:
Editorial Presença, 2007.
22
Max Weber, Die Protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus, Tübingen, J.C.B. Mohr, 1934.
A Ética Protestante e o Espírito de Capitalismo, 6.ª edição, tradução de Ana Falcão Bastos e Luís Leitão,
Lisboa, Editorial Presença, 2005.
23
Laurence Ellena, Sociologie et Littérature: la référence à l’œuvre, Paris, L´Harmattan, 1999.
29
Afastando a ilusão realista, Lahire sugere uma apropriação pragmática da literatura para
conceber novas investigações sociológicas, como instrumento pedagógico de exercício
da análise sociológica em múltiplas situações e acontecimentos virtuais, ou para testar a
aplicabilidade de modelos e esquemas interpretativos (LAHIRE, 2005: 173-175).
As
obras
literárias
podem
contribuir
para
estimular
«a
imaginação
sociológica»24, exercitar «o pensamento relacional»25 ou apurar «a inteligência do
social»26. Esta perspectiva heurística não passou despercebida a Anne Barrère e Danilo
Martuccelli, para quem o romance pode funcionar como um laboratório, transformando
o conhecimento literário em imaginação sociológica. O seu livro Le Roman Comme
Laboratoire: de la connaissance littéraire à l’imagination sociologique, no qual
analisam duzentas obras de vinte escritores franceses contemporâneos, constitui um
desafio para o sociólogo ortodoxo. Segundo os autores, a compreensão do mundo
contemporâneo não é possível se ignorarmos a produção artística, contudo, desde a sua
fundação, a sociologia tem-se afastado cada vez mais da literatura, na sua procura de
legitimação científica27. Neste contexto, a actual indiferença da sociologia pela literatura
seria paradoxal face à relevância do romance como manancial de significação social e
de reflexividade sociológica, designadamente na sua conceptualização do mundo, na
descrição de situações de interacção e na perspectiva das personagens. Enquanto
equivalente funcional das relações sociais, o enredo literário gera supostamente as
forças que mobilizam os actores retratados nas personagens romanescas. Barrère e
Martuccelli afirmam que a estranha relação entre a sociologia e a literatura advém
sobretudo das gramáticas analíticas que partilham, uma vez que o omnipresente
narrador assume um papel que se aproxima do sociólogo empírico. Contudo, o escritor
tem mais liberdade criativa do que o sociólogo, que se encontra condicionado por
protocolos epistemológicos e metodológicos. Através da observação e da intuição, o
escritor consegue, por vezes, apreender com uma certa rapidez o que, ao sociólogo,
demora bastante tempo e, sobretudo, exige muito trabalho de investigação para
compreender (BARRÈRE & MARTUCCELLI, 2009: 7-59).
24
Charles Wright Mills, The Sociological Imagination, New York, Oxford University Press, 1959.
25
Guy Bajoit, Pour une Sociologie Relationelle, Paris, Presses Universitaires de France, 1992.
26
Jean-Michel Berthelot, L’Intelligence du Social. Paris: Presses Universitaires de France, 1990.
27
Wolf Lepenies, As Três Culturas, tradução de Maria Clara Cescato, São Paulo, Editora da
Universitdade de São Paulo, 1996.
30
II.3.
Sociologia do indivíduo
Existe um pressuposto, nunca explícito mas sempre presente, segundo o qual a
sociologia aborda simultaneamente muitos indivíduos, enquanto a psicologia apenas
abordaria um. Neste sentido, a simples tentativa de associar as palavras sociologia e
indivíduo, numa expressão com nexo, parece um absurdo, qualquer coisa de paradoxal
que desperta reacções de perplexidade e repúdio entre os sociólogos ortodoxos. O
verdadeiro paradoxo reside, contudo, no facto desta prática sociológica não ser nova,
pois para procurar as suas raízes seria necessário recuar até aos primórdios da ciência
social,
designadamente
a
George
Herbert
Mead
(1863-1931),
precursor
do
interaccionismo simbólico e autor póstumo da obra Mind, Self and Society, publicada
em 1934. Segundo Mead, o indivíduo é um produto social, criado na interacção com os
outros membros da sociedade com quem a pessoa interage. Neste contexto, o self
emerge no processo de socialização, quando o indivíduo intelectualiza esse «outro
generalizado», razão pela qual o self é um processo reflexivo e, mais do que isso, é a sua
reflexividade que, segundo Mead, distingue os humanos dos outros animais (MEAD,
1934: 137).
A dualidade entre indivíduo e sociedade deve-se, em boa parte, aos esforços de
institucionalização da sociologia desenvolvidos por Émile Durkheim que, em As Regras
do Método Sociológico28, operou um corte da ciência social com a psicologia. Nesta
obra, Durkheim afirma que «a sociedade não é uma simples soma de indivíduos»,
porque «o sistema formado pela associação destes representa uma realidade específica»
com «as suas características próprias». O sociólogo recorreu à analogia entre a química
e a biologia para diferenciar a psicologia da sociologia, pois se a biologia não se pode
reduzir à química das células vivas, também a sociologia não poderia ser reduzida a
uma psicologia de massas. «Numa palavra, entre a psicologia e a sociologia existe a
mesma solução de continuidade que entre a biologia e as ciências físico-químicas».
Segundo Durkheim, «nada se pode produzir de colectivo se não houver consciências
particulares», mas esta condição necessária não seria suficiente para a emergência da
«vida social», a qual resultaria da agregação destas consciências. «Ora, afastado o
indivíduo, resta-nos apenas a sociedade; é, pois, na natureza da própria sociedade que
28
Émile Durkheim, Les Règles de la Méthode Sociologique, Paris, Félix Alcan, 1895. As Regras do
Método Sociológico, 8.ª edição, Lisboa, Editorial Presença, 2001.
31
deve procurar-se a explicação da vida social. Efectivamente, concebe-se que, por
ultrapassar infinitamente o indivíduo, tanto no tempo como no espaço, ela esteja em
condições de impor-lhe as maneiras de agir e de pensar que a sua autoridade consagrou»
(DURKHEIM, 2001: 128-130). Durkheim justifica a sua perspectiva argumentando a
contrario sensu:
Mas, dir-se-á, dado que os únicos elementos que formam a sociedade são
indivíduos, a origem primeira dos fenómenos sociológicos só pode ser psicológica.
Raciocinando assim também se pode afirmar que os fenómenos biológicos se explicam
analiticamente pelos fenómenos inorgânicos. Com efeito, é bem certo que não há, na célula
viva, senão moléculas de matéria bruta; simplesmente, estão associadas, e é esta associação
que é a causa desses fenómenos novos que caracterizam a vida e cujo gérmen é impossível
encontrar em qualquer dos elementos associados. É que um todo não é idêntico à soma das
suas partes; é algo de diferente cujas propriedades diferem das que revelam as partes de
que é composto. A associação não é, como por vezes se pensou, um fenómeno, por si mesmo
infecundo, que consiste simplesmente em relacionar exteriormente factos adquiridos e
propriedades constituídas. Não será antes, pelo contrário, a origem de todas as novidades
que se foram produzindo sucessivamente no decorrer da evolução geral das coisas?
(DURKHEIM, 2001: 128-129)
Em oposição à perspectiva epistemológica e metodológica durkheimiana, Max
Weber afirma que a acção dotada de sentido é sempre um «comportamento de uma ou
várias pessoas singulares». Tal como Durkheim justificou a sua postura em As Regras
do Método Sociológico, também a insistência de Weber no indivíduo como unidade de
análise decorria da sua «sociologia compreensiva», uma vez que, na sua perspectiva,
apenas os «indivíduos singulares» são «portadores compreensíveis de um agir orientado
segundo o sentido». Em Economia e Sociedade29, Weber parece responder a Durkheim,
quando descreve «processos e regularidades», recusando os conceitos de «factos» e
«regras sociológicas». Para Weber, não só as «formações sociais […] são simplesmente
decursos e entrosamentos do agir específico de homens singulares», como até seria
conveniente «tratar determinadas formações sociais […] como indivíduos singulares».
Neste sentido, Weber reverteu a analogia biologista de Durkheim, uma vez que «pode
ser útil ou necessário conceber o indivíduo singular, por exemplo, como uma associação
29
Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, Tübingen, J.C.B.Mohr, 1922. Conceitos Sociológicos
Fundamentais, tradução de Artur Morão, Lisboa, Editorial Presença, 2009, primeiro capítulo de
Economia e Sociedade.
32
de “células” ou um complexo de reacções bioquímicas, ou a sua vida “psíquica” como
constituída por elementos individuais» (WEBER, 2009: 30-32).
Por seu turno, para outros fins de conhecimento (por exemplo, jurídicos) ou para
metas práticas pode, por outro lado, ser conveniente e até inevitável tratar determinadas
formações sociais («Estado», «cooperativa», «sociedade anónima», «fundação») como
indivíduos singulares (por exemplo, como sujeitos de direitos e deveres, ou como autores de
acções juridicamente relevantes). Pelo contrário, para a interpretação compreensiva da
acção mediante a sociologia, essas formações são simplesmente decursos e entrosamentos
do agir específico de homens singulares, já que só estes são para nós portadores
compreensíveis de um agir orientado segundo o sentido. Apesar de tudo, a sociologia não
pode decerto ignorar, mesmo para os seus fins, aquelas formações conceptuais colectivas de
outros modos de consideração. (WEBER, 2009: 31-32)
Já na segunda metade do século XX, Norbert Elias, autor de A Sociedade dos
Indivíduos30 e de Mozart: sociologia de um génio31, tentaria conciliar as posturas
epistemológicas de Durkheim e Weber, denunciando a divisão artificial entre os níveis
micro e macro da análise sociológica. Na sua Introdução à Sociologia32, Elias cita uma
obra anterior de Durkheim, A Divisão do Trabalho Social33, na qual o autor parece
apoiar a sua postura conciliadora: «É uma verdade evidente que não há nada na vida
social que não esteja nas consciências individuais. Contudo, tudo o que encontramos
nestas vem da sociedade. A maior parte dos nossos estados de consciência não se teriam
produzido entre seres isolados e produzir-se-iam de um modo totalmente diferente entre
seres que se agrupassem de uma outra maneira». Segundo Norbert Elias, que compara
esta questão ao problema «do ovo e da galinha», não se justifica qualquer hiato ou
antagonismo entre indivíduo e sociedade, uma vez que a sociedade é constituída por
indivíduos (ELIAS, 2005: 128-129). Na sua perspectiva, a distinção que fazemos entre o
conceito de indivíduo e o de sociedade seria devida à crescente especialização
30
Norbert Elias, Die Gesellschaft der Individuen, herausgaben Michael Schröter, Frankfurt, Suhrkamp,
1987. A Sociedade dos Indivíduos, tradução de Mário Matos, Lisboa, Edições Dom Quixote, 1993.
31
Norbert Elias, Mozart: zur Soziologie eines Genies, herausgaben Michael Schröter, Frankfurt,
Suhrkamp Verlag, 1991. Mozart: sociologia de um génio, tradução de Madalena Almeida, Porto, Asa,
1993.
32
Norbert Elias, Was ist Soziologie?, München, Juventa Verlag, 1970. Introdução à Sociologia, tradução
de Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Lisboa, Edições 70, 2005.
33
Émile Durkheim, De la Division du Travail Social, Paris, Félix Alcan, 1893. A Divisão do Trabalho
Social, tradução de Maria Inês Mansinho e Eduardo de Freitas, Lisboa, Presença, 1977.
33
científica, que torna quase uma ilegalidade ou infracção, com as respectivas
consequências, as tentativas que envolvem «o estudo científico da pessoa relativamente
ao estudo científico das pessoas». Para Norbert Elias, o indivíduo e a sociedade não são
dois objectos independentes, mas apenas dois níveis distintos, porém inseparáveis, da
realidade social. Neste contexto, o sociólogo considera que o divórcio artificial entre
indivíduo e sociedade é uma das «falhas mais sérias das teorias sociológicas», a qual
consistiria precisamente na dificuldade em apresentar uma concepção clara das «pessoas
enquanto indivíduos» (ELIAS, 2005: 140).
É pouco comum hoje em dia que uma obra sobre problemas da sociedade trate de
um modo profundo a noção de indivíduo, da pessoa singular. A especialização científica é
actualmente tão rigorosa que a inclusão na consideração das características universais da
sociedade de problemas que envolvam as pessoas no singular e no plural aparece quase
como uma ilegalidade, uma infracção de fronteiras ou mesmo como uma alteração das
linhas de demarcação. Talvez já se tenham feito suficientes sugestões de que o divórcio
convencional do estudo científico da pessoa relativamente ao estudo científico das pessoas é
um problema discutível – mas notemos que se trata apenas de divórcio e não de distinção.
Uma das falhas mais sérias das teorias sociológicas convencionais reside no facto de
estarem de acordo quando tentam apresentar uma concepção clara das pessoas enquanto
sociedades, fracassando quando pretendem fazer o mesmo no que respeita às pessoas
enquanto indivíduos. (ELIAS, 2005: 140)
Segundo Norbert Elias, a «sociedade não é só o igualador e tipificador mas
também o individualizador» (ELIAS, 1993: 80). A sociologia do indivíduo procura
precisamente resolver, pelo menos parcialmente, o que, na perspectiva de Elias,
constitui uma séria falha das «teorias sociológicas convencionais» ou, na perspectiva de
Nathalie Heinich, do «paradigma sociologista». Por outro lado, e parafraseando Berger
e Luckmann, poderemos afirmar que a sociologia do indivíduo «fornece uma
perspectiva complementar essencial a todas as áreas da sociologia», analisando a
«dialéctica do indivíduo e da sociedade, da identidade pessoal e da estrutura social».
Isto não impede que as «análises estruturais dos fenómenos sociais sejam por completo
adequadas para grandes áreas da pesquisa sociológica» (BERGER & LUCKMANN, 1999:
190).
Neste sentido, e tal como a sociologia do conhecimento, a sociologia do indivíduo
não se constitui como receita universal para resolver todos os problemas da sociologia,
sendo apenas uma perspectiva, entre outras, para investigar a realidade social. Uma das
34
críticas recorrentes à sociologia do indivíduo sustenta que esta área disciplinar não seria
verdadeiramente sociologia, mas antes uma espécie de psicologia ou psicologia social.
Para contestar este argumento psicologista bastaria invocar A Apresentação do Eu na
Vida de Todos os Dias34, de Erving Goffman, A Construção Social da Realidade35, de
Peter Berger e Thomas Luckmann, ou Modernidade e Identidade Pessoal36, de Anthony
Giddens, em cuja introdução o autor afirma:
Embora foque sobretudo o self, não se trata de uma obra de psicologia. O acento
prevalecente do livro é sobre a emergência de novos mecanismos de auto-identidade que
são moldados (ainda que também as moldem) pelas instituições da modernidade. O self não
é uma entidade passiva, determinada por influências externas; ao forjarem as suas autoidentidades, e independentemente do carácter reduzido dos seus contextos de acção
específicos, os indivíduos contribuem para, e promovem directamente, influências sociais
com consequências e implicações globais. (GIDDENS, 2001: 1-2)
Segundo Giddens, a «organização social moderna pressupõe a coordenação
rigorosa das acções de muitos seres humanos que estão fisicamente ausentes». Na sua
perspectiva, a «globalização da actividade social» na modernidade promoveu a
«reorganização
do
tempo
e
do
espaço»,
através
de
«mecanismos
de
descontextualização». A problemática de Giddens não consiste, portanto, na divisão
entre indivíduo e sociedade, mas sim na separação entre tempo e espaço, o que
implicaria, pela primeira vez na história da humanidade, que o self e a sociedade se
inter-relacionassem a nível global. Para Giddens, «a reflexividade da modernidade»
pressupõe «propriedades globalizantes», numa «ligação entre a mudança pessoal e a
mudança social». Desta forma, a reflexividade «estende-se até ao núcleo do self» ou,
por outras palavras, «no contexto da ordem pós-tradicional, o self torna-se num projecto
reflexivo». Neste processo, as ciências sociais desempenhariam um papel fundamental,
embora, no que respeita ao conhecimento científico, a reflexividade acabe «por
desautorizar as expectativas do pensamento iluminista», apesar de ser um produto desse
mesmo pensamento. Neste sentido, «a reflexividade da modernidade frustra […] a
34
Erving Goffman, The Presentation of Self in Everyday Life, New York, Doubleday, 1959.
35
Peter Berger & Thomas Luckmann, The Social Construction of Reality: a treatise in the sociology of
knowledge, New York, Doubleday, 1966.
36
Anthony Giddens, Modernity and Self-Identity: self and society in the late modern age, Oxford,
Blackwell, 1991.
35
certeza do conhecimento, mesmo nos domínios centrais da ciência natural», razão pela
qual, na perspectiva de Giddens, a ciência já não depende da acumulação de provas,
mas «do princípio metodológico da dúvida» (GIDDENS, 2001: 15-29).
Os progenitores originais da ciência e da filosofia modernas acreditavam que estavam a
preparar o caminho para um conhecimento com fundamentos seguros dos mundos social e
natural: as reivindicações da razão eram supostas ultrapassar os dogmas da tradição,
fornecendo um sentimento de certeza em lugar do carácter arbitrário do hábito e do
costume. Mas a reflexividade da modernidade frustra afinal a certeza do conhecimento,
mesmo nos domínios centrais da ciência natural. A ciência depende não da acumulação
indutiva de provas, mas sim do princípio metodológico da dúvida. Por muito querida, e
aparentemente bem estabelecida, que seja uma dada doutrina científica, ela está aberta a
revisão – ou pode ser completamente posta de lado –, à luz de novas ideias e descobertas. A
relação integral entre modernidade e a dúvida radical é um assunto que, uma vez exposto,
não só é perturbador para os filósofos como é existencialmente perturbador para o comum
dos indivíduos. (GIDDENS, 2001: 19)
Noutra crítica menos óbvia, a sociologia do indivíduo seria incompatível com a
sociologia da acção, contudo, esta apenas teria fundamento se os indivíduos fossem
inactivos. Segundo Berger e Luckmann, a «tipificação das formas de acção exige que
estas tenham um sentido objectivo», donde resulta que «uma acção e o seu sentido
podem ser apreendidos à parte dos seus desempenhos individuais e dos variáveis
processos subjectivos que lhes estão associados». Com efeito, nesta perspectiva
sociológica, tanto «o próprio como o outro podem ser apercebidos como executantes de
acções objectivas, em geral conhecidas, que são recorrentes e duplicáveis» (BERGER &
LUCKMANN, 1999: 83).
Isto tem consequências muito importantes para a auto-experiência. No decurso da
acção há uma identificação do próprio com o sentido objectivo das acções. A acção em
execução determina, para esse momento, a auto-percepção do actor e fá-lo no sentido
objectivo que foi atribuído à acção pela sociedade. Embora continue a haver uma
consciência marginal do corpo e de outros aspectos do eu sem implicação directa na acção,
o actor, nesse momento, apreende-se a si mesmo como identificado, em essência, com a
acção objectivada no social […]. (BERGER & LUCKMANN, 1999: 83)
36
Alain Touraine, autor de uma Sociologia da Acção37 cujo primeiro capítulo é
precisamente «A Descoberta do Sujeito», procura «romper absolutamente com uma
sociologia dos valores», uma vez que, na sua perspectiva, «a sociologia é o
conhecimento da acção social», enquanto esta, por sua vez, «é antes de mais criação,
inovação, atribuição de sentido». Segundo Touraine, «o trabalho é por excelência uma
acção histórica» e não «uma situação nem uma intenção, mas uma actividade humana».
Cada indivíduo, sendo portador de modelos culturais, contribuiria assim, com o seu
trabalho, para a produção da sociedade (TOURAINE, 2000: 29). Em O Retorno do Actor38,
Touraine afirma que «este livro deveria talvez chamar-se “o regresso do indivíduo”,
porque o indivíduo é o nome do actor quando este se situa ao nível da historicidade, da
produção das grandes orientações normativas da vida social». Para o sociólogo, «a
distância que o sujeito toma em relação à organização da sociedade não deve fechá-lo
em si mesmo, mas preparar o seu regresso à acção, levá-lo a investir num movimento
social ou numa inovação cultural». Já em 1984, Alain Touraine chamava a atenção para
o facto de que «a transformação dos modelos culturais e a presença cada vez mais
visível de uma nova etapa da actividade económica tornam urgente uma nova reflexão
das ciências sociais sobre si mesmas» (TOURAINE, 1996: 12-13). Mais tarde, numa longa
entrevista com Farhad Khosrokhavar publicada em 2000, A Procura de Si: diálogo
sobre o sujeito, o sociólogo já não aborda tanto o «sujeito histórico» mas «actores
concretos», sobretudo o indivíduo que «descobre o desejo de se construir como sujeito
da sua própria existência» (TOURAINE & KHOSROKHAVAR, 2001: 122).
A noção de sujeito, que ainda conserva uma conotação materialista na época do
Renascimento, identifica-se a partir da Reforma com a ideia de consciência, que não cessa
de ganhar importância ao longo de todo o século XIX. A humanidade já não surge então
como senhora da Razão e da Natureza, mas como criadora do Eu. Esta ideia fez nascer um
dos géneros literários mais típicos do Ocidente: o Bildungsroman, de Goethe a Flaubert, de
Thomas Mann a Gide, de Hemingway a Styron. A valorização do sujeito e da consciência
confere um princípio de unidade moderna, inteiramente secularizada, à vida social, que
pode a partir daí ser definida independentemente da intervenção do Estado […].
(TOURAINE, 1996: 66)
37
Alain Touraine, Sociologie de l’Action: essai sur la société industrielle, Paris, Éditions du Seuil, 1965.
38
Alain Touraine, Le Retour de l’Acteur, Paris, Fayard, 1984.
37
Neste interesse crescente dos sociólogos pelo indivíduo39 destacam-se estudos
como Ego: pour une sociologie de l’individu, de Jean-Claude Kaufmann, La Culture
des Individus: dissonances culturelles et distinction de soi, de Bernard Lahire,
Grammaires de l’Individu, de Danilo Martuccelli, ou Matériaux pour une Sociologie de
l’Individu: perspectives et débats, do mesmo autor e de Vincent Caradec, bem como Les
Sociologies de l’Individu, de Danilo Martuccelli e François de Singly. Esta abordagem
sociológica também tem sido praticada em Portugal. Basta recordar, por exemplo, o
artigo de Idalina Conde «Alvarez: Ambiguidades na biografia de um pintor», publicado
em 199140 ou, mais recentemente, a tese de doutoramento em Sociologia da Cultura,
Luiz Pacheco: Maldição e consagração no meio literário português, defendida por João
Pedro George, na Universidade Nova de Lisboa, em 2011.
A sociologia do indivíduo foi acompanhada por uma viragem para a
metodologia biográfica41, como é o caso da história de vida42. Esta translação fica bem
39
Desde 1991, ano em que Michael Schröter editou o original inacabado de Norbert Elias sobre Mozart,
foram publicados diversos trabalhos sociológicos que, de uma forma ou outra, abordam o indivíduo,
designadamente:
Nathalie Heinich, La Gloire de Van Gogh: essai d'anthropologie de l'admiration, Paris, Minuit, 1991.
Tia DeNora, Beethoven and the Construction of Genius: musical politics in Vienna, 1792-1803,
Berkeley, University of California Press, 1995.
Nathalie Heinich, Harald Szeemann: un cas singulier, Paris, L’Échoppe, 1995.
Alain Ehrenberg, L’Individu Incertain, Paris, Calmann-Lévy, 1996.
Guy Bajoit & Emmanuel Belin (dir.), Contributions à une Sociologie du Sujet, Paris, L’Harmattan,
1997.
Nathalie Heinich, Être Écrivain: création et identité, Paris, La Découverte, 2000.
Zygmunt Bauman, The Individualized Society, Cambridge, Polity Press, 2000.
Jean-Claude Kaufmann, Ego: pour une sociologie de l’individu, Paris, Nathan, 2001.
Danilo Martuccelli, Grammaires de l’Individu, Paris, Gallimard, 2002.
Bernard Lahire, La Culture des Individus: dissonances culturelles et distinction de soi, Paris, La
Découverte, 2004.
Jean-Claude Kaufmann, L’Invention de Soi: une théorie de l’identité, Paris, Armand Colin, 2004.
Danilo Martuccelli & Vincent Caradec (eds.), Matériaux pour une Sociologie de l’Individu:
perspectives et débats. Villeneuve d’Ascq, Septentrion, 2005.
Jean-Claude Kaufmann, Quand Je Est un Autre: pourquoi et comment ça change en nous, Paris,
Armand Colin, 2008.
Danilo Martuccelli & François de Singly, Les Sociologies de l’Individu, Paris, Armand Colin, 2009.
Bernard Lahire, Franz Kafka: éléments pour une théorie de la création littéraire, Paris, La Découverte,
2010.
Guy Bajoit, Socio-Analyse des Raisons d’Agir: études sur la liberté du sujet et de l’acteur, Québec,
Presses de l’Université de Laval, 2010.
40
Idalina Conde, «Alvarez: ambiguidades na biografia de um pintor» in Sociologia: problemas e
práticas, n.º 9, 1991, pp. 207-225.
41
Sobre esta viragem, ver por exemplo:
Isabelle Astier & Nicolas Duvoux (dir.), La Société Biographique: une injonction à vivre dignement,
Paris, L’Harmattan, 2006.
Chamberlayne, Bornat & Wengraf (eds.), The Turn to Biographical Methods in Social Science:
Comparative issues and examples, London, Routledge, 2000.
38
ilustrada pelo caso de Pierre Bourdieu, que assumiu uma postura crítica em relação ao
método biográfico, documentada no seu artigo «L’Illusion Biographique»43, publicado
em 1986, mas não resistiu à pressão biográfica, organizando em 1993 o monumental
volume La Misère du Monde44, baseado em histórias de vida. À luz da teoria do
conhecimento de Berger e Luckmann, seria possível compreender a dificuldade que a
sociologia do indivíduo tem tido em afirmar-se. Enquanto «universo simbólico
alternativo», esta prática sociológica minoritária constituiria uma ameaça ao que
Nathalie Heinich designa «paradigma sociologista», sobretudo «porque a sua simples
existência demonstra de maneira empírica» que este paradigma «não é inevitável»
(BERGER & LUCKMANN, 1999: 116).
Em Les Sociologies de l’Individu, Martuccelli e Singly afirmam que o facto de a
sociologia tomar o indivíduo como objecto de estudo, ou mesmo objecto central da sua
análise, tem suscitado algumas resistências. Contudo, na opinião dos sociólogos, as
críticas devem-se essencialmente a um mal-entendido, pois o sujeito da sociologia do
indivíduo não é isolado da sociedade nem puramente racional, como no individualismo
metodológico. Pelo contrário, o processo de singularização dos indivíduos na
modernidade engendrou uma singularidade societal que decorre desse processo,
concedendo um espaço cada vez maior ao indivíduo. A sintonia destes autores com o
pensamento giddeniano é evidente, mas o processo de singularização, ou individuação,
já tinha sido reconhecido implicitamente por Durkheim, quando afirmou que o
individualismo se tornou a religião da modernidade (MARTUCCELLI & SINGLY, 2009: 79).
Neste sentido, e não apenas no domínio das artes, mas estendendo-se a diferentes
áreas da análise sociológica, as sociologias do sujeito, de Touraine ou Bajoit, a
sociologia do génio, de Elias, ou a sociologia da singularidade, de Heinich, podem ser
consideradas sociologias do indivíduo (MARTUCCELLI & SINGLY, 2009: 115-117).
42
Para Richard Zenith, que organizou o livro de Fernando Pessoa, Escritos Autobiográficos, Automáticos
e de Reflexão Pessoal: «Há quem defenda que todas as obras de um poeta ou ficcionista são, em certa
medida, autobiográficas. Esta tese ganha especial credibilidade quando aplicada a um escritor como
Fernando Pessoa, não pelas teorizações que ele faz acerca do seu desdobramento em seres ficcionais, mas
pelo facto de estes seres – os heterónimos – quase não agirem: falam. E os discursos que fazem e as
opiniões que afirmam, com todas as suas contradições, são em grande parte o que Pessoa interiormente
diz e pensa» (PESSOA, 2003: 13).
43
Pierre Bourdieu, «L’Illusion Biographique» in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n.º 62/63,
1986, pp. 69-72.
44
Pierre Bourdieu, La Misère du Monde, Paris, Seuil, 1993.
39
A sociologia do indivíduo tem sido, sobretudo, uma prática sociológica
contestada, mas essa contestação endógena da ciência social reflecte precisamente a sua
originalidade e inovação. Como o nome indica, a sociologia do indivíduo é antes de
mais sociologia, quer dizer que o seu objectivo principal é produzir conhecimento
sociológico a partir do ponto de vista do indivíduo. Não se trata, portanto, de um
qualquer psicologismo, mas de compreender os contextos sociais e as formas efectivas
que assume o triplo trabalho do indivíduo: a par do já conhecido trabalho da sociedade
sobre o indivíduo e do indivíduo sobre a sociedade, a sociologia do indivíduo estuda
sobretudo o trabalho do indivíduo sobre si próprio. Desta forma, a compreensão da
acção social é sempre mediada pelo trabalho efectuado pelo indivíduo, enquanto
processo do qual resulta um ser complexo e trágico, sujeito a um grande número de
ambivalências. O indivíduo é assim entendido como produto de um trabalho sobre si,
movido pelas tensões entre os diversos modelos identitários e as provas societais com
que é confrontado. Animada pela vocação empírica, a sociologia do indivíduo
caracteriza-se por uma descrição pormenorizada das trocas de sentimentos, quer dizer,
uma análise minuciosa do trabalho incessante de interrogação da vivência interior.
Neste sentido, esta prática sociológica estuda com grande precisão a relação entre o
estado da sociedade e o trabalho do indivíduo sobre si mesmo (MARTUCCELLI &
SINGLY, 2009: 50-52).
Chegamos assim à questão central desta investigação, que remete
para o trabalho de Fernando Pessoa sobre si próprio: de que forma ele se construiu
socialmente como grande escritor?
II.4.
Metodologia
Para analisar a vida e obra de Fernando Pessoa construímos um modelo teórico
cruzando sobretudo a sociologia pragmática de Boltanski e Thévenot com a sociologia
da singularidade de Nathalie Heinich. Este modelo permite analisar a vida e obra de
Fernando Pessoa, não apenas na perspectiva das recorrentes situações de controvérsia na
república das letras, mas também do ponto de vista do próprio escritor e da sua
complexa personalidade. Desta forma, analisaremos o percurso pessoano na dupla
perspectiva das operações críticas da comunidade de críticos, escritores, jornalistas e
outros actores sociais, bem como do trabalho que Fernando Pessoa realizou sobre si
próprio para se engrandecer como escritor. A república das letras é entendida como um
espaço social com as suas exigências de justificação da ordem de grandeza a atribuir a
40
pessoas e objectos, os escritores e as suas obras. Neste contexto, utilizamos a grelha de
análise de Boltanski e Thévenot para identificar as gramáticas argumentativas utilizadas
pelos actores sociais envolvidos nas controvérsias literárias. Procurando explicitar os
sistemas de valores e as ordens de grandeza atribuídas, adoptamos a ruptura
epistemológica proposta por Nathalie Heinich, a qual permite o distanciamento e a
neutralidade axiológica necessários à análise sociológica das controvérsias literárias.
Este modelo de análise será completado por outras teorias, particularmente no que se
refere à análise sociológica dos principais heterónimos de Fernando Pessoa. A
sociologia da singularidade não está apenas presente no modelo analítico, mas sustenta
todo o trabalho de investigação, na medida em que adoptamos as cinco posturas
epistemológicas propostas por Heinich.
A estratégia da investigação assenta na reflexividade, convocando a imaginação
sociológica, a inteligência do social e o pensamento relacional para explicitar as
condições, dinâmicas e processos sociais de produção da grandeza literária. Este estudo
de caso, cujo objecto é a vida e obra de Fernando Pessoa, remete para a metodologia
indutiva, a qual parte do particular para a generalização, num conjunto de cenários ou
controvérsias onde o escritor interagiu com outros actores sociais. Neste sentido, a
unidade de análise é o indivíduo e o universo, ou população a estudar, são os outros
significativos: escritores, artistas, intelectuais, críticos e jornalistas, cidadãos da
república das letras com recursos argumentativos mais ou menos elevados que, de
alguma forma, participaram nas polémicas literárias. A metodologia será portanto
intensiva, com investigação em profundidade de algumas controvérsias literárias em que
Pessoa participou. Esta análise minuciosa permite explicitar momentos chave da sua
vida e obra, mas também abrir uma janela sobre a república das letras em Portugal
durante o período analisado de 30 anos. Este período vai desde 1905, quando o jovem
Pessoa regressou definitivamente a Portugal, até 1935, ano em que o escritor faleceu,
compreendendo assim toda a sua vida adulta e intervenção na república das letras, bem
como a parte mais significativa da sua produção literária. O período analisado decorreu
na primeira metade do século XX, época de forte agitação política e recomposição
social, destacando-se os 16 anos que durou a República45, de 1910 a 1926.
45
O termo República não é aqui usado para designar a República Portuguesa, mas no sentido mais restrito
do regime republicano que vigorou em Portugal desde a revolução de 5 de Outubro de 1910, que
derrubou a Monarquia, até à revolução de 28 de Maio de 1926, que implantou a Ditadura, convertida
depois em Estado Novo com a Constituição de 1933.
41
A metodologia adoptada é devedora da sociologia da literatura, mas também da
sociologia histórica, tal como praticada, designadamente, por Max Weber ou Norbert
Elias, bem como, enquanto estudo de caso, de uma sociologia do indivíduo. Neste
sentido, a principal técnica de investigação utilizada é a pesquisa documental de fontes
escritas, a qual consiste sobretudo na recolha e análise de materiais produzidos durante a
vida de Fernando Pessoa, bem como publicados postumamente nas vastas literaturas
primária e secundária do e sobre o escritor. Este terreno de investigação revelou-se
particularmente fértil em documentos com elevado interesse para a análise sociológica
que pretendemos realizar, designadamente a imprensa periódica, literária ou não, bem
como o acervo bibliográfico. Nesta matéria, Pierre de Saint-Georges corrobora as
perspectivas metodológicas de autores já citados sobre a importância da literatura como
«fonte não negligenciável de informações acerca de um assunto preciso ou de uma
determinada época». Na sua perspectiva, os romances, colectâneas de poemas, relatos e
obras de ficção, ou de «expressão literária e estética», enquanto fenómeno social, «são
também um objecto de pesquisa significativo», exprimindo «toda uma sociedade
implícita». Desta forma, a literatura proporcionaria ao sociólogo uma análise «em
segundo grau», descrevendo com «enorme precisão» os «fenómenos sociais» (SAINTGEORGES, 1997: 24-25).
Pierre de Saint-Georges considera que a imprensa ilustra «as opiniões de grupos
ou de categorias sociais determinadas e, por isso, desempenha um papel essencial na
vida política e social». Contudo, para o sociólogo, «quanto mais rápido é o ritmo de
publicação maiores são os riscos de erro, uma vez que «o distanciamento é
insuficiente». Por outro lado, devido à sua periodicidade mais lenta, as revistas
permitem «a difusão de textos mais elaborados que podem alcançar um certo
distanciamento em relação aos acontecimentos» e uma reflexão mais aprofundada.
Além disto, «graças à regularidade da sua publicação, a revista também se insere na
própria corrente das novas ideias, das tendências recentes, das últimas descobertas, e é
muito frequente os pontos de vista, tanto políticos e sociais como científicos, surgirem
nela antes de serem expostos em livro» (SAINT-GEORGES, 1997: 23-24). Acresce ainda
que as novas ideias e correntes literárias também se exprimem geralmente nos
periódicios e revistas antes de serem publicadas em livro, razão pela qual as revistas
literárias assumem particular relevo nas recorrentes controvérsias da república das
letras.
42
II.4.1. Pesquisa documental e selecção bibliográfica
Segundo Pierre de Saint-Georges, a pesquisa bibliográfica é a parte da
investigação empírica que procura documentos escritos, ou seja, fala-se em «pesquisa
bibliográfica quando se trata de descobrir textos (livros, artigos, documentos) sem
omitir uma referência essencial, mas sem se deixar submergir pelo que não tem
interesse». Neste sentido, a pertinência dos documentos para o estudo a realizar é o
principal factor a ter em conta na pesquisa bibliográfica, ainda que a exaustividade
também possa ser considerada em determinadas investigações. Não existe apenas uma
maneira de realizar a pesquisa documental, e cada investigador ou equipa de
investigação deve lançar mão da forma que for mais conveniente ao seu estudo,
conjugando, se necessário, as diversas possibilidades ao seu dispor. Para Pierre de
Saint-Georges, uma maneira prática de fazer pesquisa documental é a consulta prévia de
um ou mais especialistas da área que pretendemos estudar (SAINT-GEORGES, 1997: 32-33).
Foi o que fizemos, realizando entrevistas exploratórias com o Professor Doutor António
Feijó, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e o Professor Doutor
Fernando Cabral Martins, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa, que coordenou o Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo
Português.
Outra forma de realizar a pesquisa bibliográfica, é a que Pierre de Saint-Georges
designa por exaustiva, a qual consiste num «trabalho aprofundado do problema
formulado, o que nos permitirá formar uma ideia mais precisa dos domínios que o
problema aflora e descobrir um certo número de temas que decompõem o assunto
central» (SAINT-GEORGES, 1997: 33). Neste sentido, consultámos várias obras referidas
pelos entrevistados, revelando-se fundamental, pelas inúmeras pistas e sugestões de
investigação, a Vida e Obra de Fernando Pessoa: história de uma geração, de João
Gaspar Simões, crítico literário, amigo e biógrafo do escritor. Apesar da já provecta
idade desta obra, cuja primeira edição remonta a 1950, das múltiplas críticas que então
suscitou e de alguns erros que lhe são apontados, constitui ainda hoje a matriz
informativa sobre a vida e a obra de Fernando Pessoa. Outras obras mais recentes foram
também consultadas, designadamente os dois volumes de Pessoa por Conhecer, de
Teresa Rita Lopes, publicados em 1990; os dois volumes da Correspondência do
escritor, editados por Manuela Parreira da Silva em 1999; Fernando Pessoa: entre
génio e loucura, de Jerónimo Pizarro, publicado em 2007; a fotobiografia de Fernando
43
Pessoa, de Richard Zenith ou o referido Dicionário de Fernando Pessoa e do
Modernismo Português, ambos publicados em 2008.
Todas estas consultas desencadearam um processo de referências bibliográficas,
em «bola-de-neve», que permitiu identificar e seleccionar a maior parte dos livros,
jornais, revistas literárias e demais documentos necessários à investigação. A selecção
de documentos foi assim realizada através de um processo dinâmico e interactivo,
guiado pelos objectivos da pesquisa, no qual a própria bibliografia consultada também
influiu no objecto sociológico, obrigando a revisões teóricas, epistemológicas e
metodológicas, bem como ao reenquadramento e reajustamento do projecto de tese.
Além dos livros disponíveis no mercado, a consulta bibliográfica foi realizada em
diversas bibliotecas e arquivos, sobretudo na Biblioteca Nacional de Portugal, na
Hemeroteca Municipal de Lisboa e na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste
Gulbenkian. A recolha e consulta de documentos digitalizados através da Internet
também foi importante, designadamente, nos portais da Casa Fernando Pessoa e da
Biblioteca Nacional Digital.
Na operacionalização do modelo teórico, a principal técnica utilizada é a análise
de conteúdo, aplicada na sua forma compreensiva à bibliografia seleccionada, uma
análise hermenêutica devedora dos métodos da sociologia histórica. Tendo em conta as
particularidades do terreno de investigação, foi necessário seleccionar os documentos a
analisar respeitando alguns princípios geralmente aceites na delimitação do corpus
empírico. O princípio da pertinência, segundo o qual o seu conteúdo deve ser adequado
aos objectivos da investigação. O princípio da exaustividade, seleccionando documentos
que permitam cobrir o mais amplamente possível as dimensões analíticas. O princípio
da representatividade, nos casos em que os documentos são demasiados para serem
todos analisados, segundo o qual é necessária uma triagem prévia para seleccionar os
mais representativos de cada situação a analisar. Finalmente, o princípio da
homogeneidade, ou seja, a selecção dos documentos que apresentam mais informações
comparáveis (BARDIN, 2002: 97-98). Desta forma foi possível seleccionar a bibliografia e
os documentos analisados na investigação empírica.
44
CAPÍTULO III
A «nova poesia portuguesa»
GAZETILHA
Dos Lloyd Georges da Babilónia
Não resa a história nada.
Dos Briands da Assíria ou do Egito,
Dos Trotskys de qualquer colónia
Grega ou romana já passada,
O nome é morto, inda que escrito.
Só o parvo dum poeta, ou um louco
Que fazia filosofia,
Ou um geómetra maduro,
Sobrevive a êsse tanto pouco
Que está lá para traz no escuro
E nem a história já historía.
Ó grandes homens do Momento!
Ó grandes glórias a ferver
De quem a obscuridade foge!
Aproveitem sem pensamento!
Tratem da fama e do comer,
Que amanhã é dos loucos de hoje!
Álvaro de Campos
(PRESENÇA, 18: 1)
45
III.1. Uma «vertigem moral»
Após uma década em Durban, em Setembro de 1905, Fernando Pessoa regressou
definitivamente a Lisboa, para estudar diplomacia no Curso Superior de Letras. Apesar
dos excelentes resultados escolares obtidos em Durban, o estrangeirado Pessoa, que
contava então dezoito anos, reprovou no primeiro ano do Curso Diplomático, em
virtude de ter faltado aos exames, por se encontrar doente. Enquanto a família
permanecia em África, o jovem Pessoa viveu em casa da tia «Anica»46, mas em 1906
voltou a residir com a sua família, regressada a Lisboa durante o ano de licença do seu
padrasto, o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal em Durban. Em Maio de
1907, com a partida da família para África, o jovem já não voltou a residir com a
madrinha e os primos, indo viver em das tias da mãe, Rita e Maria, que cuidavam da sua
avó paterna, Dionísia de Seabra, mentalmente perturbada47. Aliás, os episódios
delirantes da avó já se manifestavam antes da partida do neto para Durban, em 1895, o
que teria motivado, nessa época, o internamento da idosa no manicómio de Rilhafoles48
(ZENITH, 2008: 20).
Desde Abril de 1907, uma greve académica, que irrompera no mês anterior na
Universidade de Coimbra, paralisou o Curso Superior de Letras e alastrou a outros
estabelecimentos de ensino, aumentando a contestação, não apenas ao governo de João
Franco49, mas ao próprio regime monárquico. Pessoa aproveitou o ócio para escrever e
46
Ana Luísa Pinheiro Nogueira (1860-1940), irmã da mãe e madrinha de Fernando Pessoa, que também
nasceu em Angra do Heroísmo, Ilha Terceira, Açores, tendo enviuvado em 1904. Chegou a Lisboa com
os dois filhos, Mário e Maria, em Setembro de 1905, poucos dias antes de Pessoa, ficando a residir na
Rua de São Bento (ZENITH, 2008: 57).
47
Pessoa ficou a residir na Rua da Bela Vista à Lapa com as duas tias-avós, as irmãs Rita (1828-1916) e
Maria Pinheiro (1830-1911), esta, viúva do falecido Manuel Gualdino da Cunha (ZENITH, 2008: 62).
48
O manicómio de Rilhafoles foi o primeiro hospital psiquiátrico em Portugal, tomando o nome da antiga
quinta onde existia o convento de S. Francisco de Paula. Fundado em 1848, no Hospital de São José,
ocupou depois as instalações desse convento, sendo mais tarde designado Hospital Miguel Bombarda, em
homenagem a este prestigiado psiquiatra republicano, seu director desde 1892, ali assassinado por um exdoente mental dois dias antes da revolução de 5 de Outubro de 1910.
49
João Ferreira Franco Pinto Castelo Branco (1865-1929), licenciado em Direito pela Universidade de
Coimbra, foi um dos políticos mais influentes no final do regime monárquico. Ocupou diversos cargos na
magistratura e, em 1884, foi eleito deputado pelo Partido Regenerador. Em 1890 foi nomeado ministro da
fazenda, ocupando depois os cargos de ministro das obras públicas, ministro da instrução e ministro do
reino. Em ruptura com o Partido Regenerador de Hinze Ribeiro, João Franco fundou o Partido
Regenerador Liberal em 1901, chegando a primeiro-ministro em 1906. Perante a greve académica de
1907, a crescente agitação social e contestação política, João Franco mandou encerrar o parlamento em 2
de Maio, passando, na prática, a governar em ditadura, com o apoio do rei Carlos I. Por ter seguido então
uma política fortemente repressiva de republicanos e anarquistas, João Franco foi responsabilizado por ter
criado as condições que levaram ao atentado em que morreram o rei e o príncipe herdeiro, Luís Filipe, em
46
frequentar a Biblioteca Nacional, lendo obras de literatura, filosofia e psiquiatria. O seu
desinteresse pela vida académica, aliado ao desejo de ser um grande escritor, era motivo
de recriminações familiares. «Não tenho ninguém em quem confiar. A minha família
não entende nada. Aos meus amigos não posso incomodar com estas coisas». Em 25 de
Julho de 1907, escreveu no seu diário que a família não compreendia o seu «estado
mental», o qual descreveu como «uma vertigem moral» (PESSOA, 2003: 71-73).
Acabo de ter uma espécie de cena com a tia Rita por causa de F. Coelho. No final,
senti novamente um daqueles sintomas que se tornam cada vez mais claros e mais horríveis
em mim: uma vertigem moral. Na vertigem física há um rodopiar do mundo exterior à
nossa volta; na vertigem moral um rodopiar do mundo interior. Pareceu-me perder, por
momentos, o sentido das verdadeiras relações das coisas, perder a compreensão, cair num
abismo de dormência mental. É uma sensação pavorosa, que nos acomete de um medo
desmesurado. Estas sensações estão a tornar-se comuns, parecem abrir-me o caminho para
uma nova vida mental, que será, evidentemente, a loucura.
Na minha família não há compreensão do meu estado mental – não, nenhuma.
Riem-se de mim, zombam de mim, não me acreditam; dizem que desejo ser alguém
extraordinário. Nada fazem para analisar o desejo de ser extraordinário. Não podem
compreender que entre ser-se e desejar-se ser extraordinário apenas há a diferença de se
acrescentar consciência a esse desejo. É o mesmo que me acontecia brincando com
soldadinhos de chumbo aos sete e aos catorze anos de idade; no primeiro caso eles eram
coisas, no segundo, coisas e brinquedos ao mesmo tempo; todavia, o impulso para brincar
com eles persistia, e esse era o estado psíquico real, fundamental. (PESSOA, 2003: 71,
traduzido do Inglês)
Segundo Boltanski e Thévenot, «a inspiração manifesta-se de forma espontânea,
súbita, desordenada», através de «uma intuição insólita que incomoda, resultando numa
“ebulição confusa”, um “turbilhão estranho”. Para o ser inspirado, «o mundo é
apreendido pelas impressões e sentimentos, pela aura de felicidade, a vertigem, o medo
e os tremores» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 205). Seria esta a causa da «vertigem
moral», da «sensação pavorosa» e do «medo aterrador» sentidos pelo jovem Pessoa que,
após dois anos lectivos consecutivos sem ter concluído o primeiro ano do Curso
Diplomático50, desistiu definitivamente dos seus estudos. Este abandono, que teria uma
influência decisiva na vida e obra do escritor, contrasta fortemente com o sucesso e
1 de Fevereiro de 1908. Na sequência do regicídio, João Franco demitiu-se do cargo de primeiro-ministro,
sendo substituído, em 4 de Fevereiro de 1908, pelo almirante Francisco Joaquim Ferreira do Amaral.
50
Por motivo de doença durante a época de exames, em 1906, e devido à greve académica de 1907.
47
brilhantismo do jovem em Durban, prendendo-se com a sua «nova vida mental», a qual
seria «evidentemente, a loucura» (PESSOA, 2003: 71). No mundo inspirado, os
«conhecimentos adquiridos pela educação, a rotina escolar ou o hábito familiar,
constituem também obstáculo no que respeita à grandeza, ao encantamento ou
entusiasmo» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 206). Os familiares do jovem Pessoa não
compreendiam o seu «desejo de ser extraordinário», de ser um grande escritor,
criticando as suas pretensões e, sobretudo, o abandono escolar (PESSOA, 2003: 71). Esta
crítica seria proveniente do mundo doméstico, no qual as pessoas são definidas por uma
relação de subordinação, tolhendo a liberdade criativa de que necessitam os seres
inspirados. Desta forma, o mundo doméstico antagoniza o mundo inspirado, uma vez
que o carácter instável deste mundo perturba a estabilidade hierárquica das relações
domésticas (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 215). No mundo doméstico, os grandes
compreendem os pequenos, porém, os «grandes» do mundo doméstico de Pessoa, dos
quais dependia, não compreendiam o seu desejo de se tornar grande no mundo
inspirado, razão pela qual se rebelava contra a sua autoridade. O jovem revela esta
tensão no rascunho de uma carta que escreveu nessa época para a mãe, referindo-se ao
padrasto:
O Papá é um homem honesto, a quem eu sou muito grato e a quem muito respeito
e estimo, mas neste assunto não tem palavra, nem entra no Templo. Desculpo-lhe que não
me compreenda; custa-me a desculpar-lhe que não compreenda que me não compreende e
se meta em assuntos onde a sua boa vontade não é piloto, nem a sua honestidade guia.
Há um campo onde podemos entender-nos: é no da nossa estima comum. Fora
disso, desde que passa para o que é meu, e começa às alfinetadas à minha alma, já não é
possível acordo nem bem-estar relacional.
A Mamã gosta de mim; não simpatiza comigo.
Não nos daremos mal. Por intolerante que a Mamã seja, eu não o sou.
Eu compreendo que a Mamã não compreenda e, ainda que essa incompreensão me irrite e
me fira, e a sua revoltante falta de tacto me fira e me irrite bem mais, sofro demais os
ímpetos de quase-ódio que isso causa, e escrevo com este incómodo […]. (PESSOA, 2003:
63)
III.1.1. O receio de enlouquecer
A fértil imaginação de Fernando Pessoa cedo começou a criar personagens
literárias, em nome das quais escrevia, pois a sua «união e a coexistência […] num
48
sujeito, isto é, em mim próprio, suscitavam a ilusão peculiar de uma dor agradável»
(PESSOA, 2003: 97). Ainda em Durban, o jovem Pessoa fez o exame de admissão à
universidade, em Novembro de 1903, tendo conseguido o prémio Rainha Vitória,
instituído nesse ano para o melhor ensaio51. Estimulado pelo prémio recebido, com
apenas 15 anos de idade, e com mais tempo livre, nos dois últimos anos que passou em
África o jovem dedicou-se mais à leitura e a escrever poesia e prosa em Inglês. No ano
seguinte, o jornal local, The Natal Mercury, publicou um poema satírico de Pessoa52,
alimentando uma «polémica sobre a tradução de um poema de Horácio»53, em que o
autor ocultava a sua verdadeira identidade, assinando C. R. Anon (ZENITH, 2008: 39).
Segundo Fernando Pessoa, Charles Robert Anon era «um poeta, com pretensões a
escritor humorista, cidadão do mundo, filósofo idealista, etc., etc.». Assumindo a
identidade deste poeta, um «megalómano, com traços de dipsomania, dégénéré
supérieur»54, Pessoa escreveu: «Eu era um génio, percebi a verdade, e também vi esta
outra verdade: que, sendo um génio, eu era um louco»55 (PESSOA, 2003: 61).
Possivelmente já em Lisboa, Alexander Search, outra personalidade literária mais
duradoura e produtiva56, assumiu o papel de Anon como alter ego de Pessoa, herdando
tanto a sua genialidade como a loucura (PESSOA, 2003: 499). Segundo Boltanski e
Thévenot, a inspiração é uma «aventura interior», uma «viagem de espírito», uma
51
Pessoa obteve a melhor classificação no ensaio em língua inglesa entre os 899 cadidatos. O Queen
Victoria Memorial Prize era constituído por uma colecção de livros, os quais deram origem à biblioteca
pessoal de Fernando Pessoa (ZENITH, 2008: 39).
52
The Natal Mercury, 6 de Julho de 1904.
53
Quintus Horatius Flaccus (65 a.C.-8 d.C.) foi um filósofo, autor de Ars Poetica, e um dos maiores
escritores da Roma Antiga.
54
«Les héréditaires dégénérés, rappelons-le sommairement, peuvent être divisés en quatre grands
groupes, suivant le degré de développement des facultés intellectuelles: les idiots, chez lesquels la vie
cérébrale est presque nulle; les imbéciles, susceptibles d’une certaine éducation, mais incapables de se
diriger, le jugement et l’intelligence restant rudimentaires; les débiles, à facultés intellectuelles
insuffisantes, mais capables dans des conditions déterminées d’un certain développement; enfin les
déséquilibrés, les dégénérés supérieurs, toujours mal pondérés, chez lesquels, à côté de facultés parfois
brillantes, existent des lacunes intellectuelles et morales: les troubles de leur développement cérébral, très
atténués si on les compare à ceux des idiots, offrent, néanmoins, des caractères généraux communs.
Malgré les différences considérables qui séparent les malades placés aux deux extrémités de l’échelle de
la dégénérescence, ils sont cependant tous de la même famille, et des types intermédiaires conduisent des
uns aux autres par gradation insensible» (MAGNAN, 1893: 214).
55
«I was a genius, I realized the truth, and saw also this other, that being a genius, I was a madman»
(PESSOA, 2003: 60).
56
Segundo Luísa Freira, «Alexander Search, considerado pelos eruditos que sobre ele se debruçaram
como pseudónimo, heterónimo, sub-heterónimo, semi-heterónimo, personalidade literária e personagem,
é, sem dúvida, uma figura misteriosa, ambígua e perturbante na galeria de ficções pessoanas» (PESSOA,
1999c: 435).
49
«procura» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 204-205). Assim se compreende a razão pela
qual Alexander Search (procura) sucedeu a Anon (anónimo), na busca da nova
identidade cultural do jovem Pessoa, agora vivendo longe da sua família, numa
realidade social bastante diferente da que viveu em Durban.
Em 6 de Setembro de 1907, após prolongada demência, faleceu Dionísia de
Seabra, avó paterna de Pessoa, que era o seu único descendente vivo e a quem deixou
uma pequena herança. Certamente influenciado pela doença da avó, o jovem escreveu,
pela mão de Alexander Search, que uma das suas «complicações mentais» era «o medo
da loucura, o qual é, em si mesmo, loucura»57. O alter ego de Pessoa sentia «uma
tendência horrível para a acção» em impulsos, «uns criminosos outros dementes»58,
detestava «o princípio e o fim das coisas» e horrorizava-o a ideia de «que se descubra
uma solução para os males da sociedade» e, contudo, afirmava não ser mau nem cruel,
mas sim «louco, e isso de um modo difícil de conceber». Talvez por isto, Search
manifesta a intenção de «examinar melhor, discriminar, os elementos constituintes» do
seu carácter, revelando a curiosidade de Pessoa em compreender melhor a sua própria
personalidade (PESSOA, 2003: 87-103).
Uma das minhas complicações mentais – horrivel para além de quaisquer palavras
– é o medo da loucura, o qual é, em si mesmo, loucura. Em parte encontro-me naquele
estado que Rollinat diz ser o seu no poema inicial (segundo creio) das suas Névroses.
Impulsos, uns criminosos outros dementes – que chegam, no meio da minha agonia, a uma
tendência horrível para a acção, uma terrível musculosidade, sentida nos músculos, quero
eu dizer – são em mim frequentes e o horror deles e da sua intensidade, agora maiores do
que nunca tanto em número como em intensidade, é indescritível. (PESSOA, 2003: 91,
traduzido do Inglês)
57
Pessoa planeou publicar, em nome de Alexander Search, títulos como «Delirium», «Mens Insana» ou
«Documents of Mental Decadence». Num dos seus poemas ingleses, intitulado «Prayer», Pessoa
escreveu:
[…]
Oh God, let me not fall insane!
I know that half-mad I am now;
[…]
(PESSOA, 1999c: 224).
58
O jovem Pessoa leu L’Homme Criminel, do italiano Cesare Lombroso, conforme anotou no seu diário,
em 11 de Maio de 1906: «Began reading seriously all the books I had read in childhood and boyhood,
uselessly enough. Read Byron’s “Child Harold”, Cantos I & II, “Hebrew Melodies”, Keats’ “St. Agnes’
Eve”, the first chapters of Lombroso’s Homme Criminel and one small poem of Schiller’s (translated with
difficulty, for I am but beginning to learn German)» (PESSOA, 2003: 38).
50
Mais tarde, o extrovertido engenheiro naval Álvaro de Campos substituiu, por
sua vez, Alexander Search, numa espécie de tradução portuguesa do alter ego inglês,
herdando também a sua loucura. Esta substituição parece indicar que o processo de
busca de Pessoa estaria completo. «O conhecimento de Pessoa é particularmente
indispensável para a compreensão de Álvaro de Campos. E a compreensão de Álvaro de
Campos conduz ao entendimento de Pessoa» (LOPES, 1990a: 247). Na perspectiva de
Boltanski e Thévenot, o suposto engenheiro pode ser interpretado como uma parte da
personalidade de Pessoa, arrancada ao mundo industrial. No poema «Lisbon Revisited
(1923)», Álvaro de Campos afirma ter «técnica só dentro da técnica»59, isto é, no
mundo industrial, o «engenheiro doido»60 seria um indivíduo equilibrado e previsível,
«casado, fútil, quotidiano e tributável». Porém, uma vez introduzido por Pessoa no
mundo inspirado, o engenheiro naval transfigura-se num «doido, com todo o direito a
sê-lo»61. A evasão do mundo industrial, das «ciências, das artes, da civilização
moderna», permitiria ao engenheiro «o contrário disto», ou seja, entrar no mundo
inspirado da poesia, «ir sozinho», contemplar o «Tejo ancestral e mudo», e sonhar com
o «céu azul» da sua infância (CONTEMPORANEA 8: 92).
LISBON REVISITED (1923)
[…]
Não me apregoem systemas completos, não me enfileirem conquistas
Das sciencias (das sciencias, Deus meu, das sciencias!) –
Das sciencias, das artes, da civilização moderna!
[…]
Sou um technico, mas tenho technica só dentro da technica.
Fora d’isso sou doido, com todo o direito a sel-o.
Com todo o direito a sel-o, ouviram?
[…]
Queriam-me casado, futil, quotidiano e tributavel?
Queriam-me o contrario disto, o contrario de qualquer cousa?
59
«Técnico de máquinas, técnico de gente, técnico da moda» (PESSOA, 2002: 421).
60
«O engenheiro doido fora da engenharia» (PESSOA, 2002: 357).
61
A loucura dos poetas remonta à Antiguidade Clássica. Horácio (65 a.C.-8 d.C.) alude o tema na sua
Arte Poética:
Porque crera Demócrito, que o génio
Valia muito mais para a Poesia,
Que a miseravel Arte, e do Parnaso
Excluira os Poetas de juízo;
(FLACCO, 1758: 135)
51
Se eu fôsse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciencia!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sòsinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Ó céu azul – o mesmo da minha infância –,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó magua revisitada, Lisboa de outr’ora de hoje!
[…]
ALVARO DE CAMPOS
(CONTEMPORANEA 8: 92)
Seria o receio de enlouquecer, inspirado pela doença da avó, mas também a
procura (search) da grandeza literária, que impelia Pessoa a tentar compreender a sua
própria personalidade. Neste contexto, a curiosidade do jovem sobre si próprio e o seu
carácter levou-o a encenar a personalidade do Dr. Faustino Antunes62, supostamente o
seu médico psiquiatra. Este engenhoso ardil foi a forma que Pessoa encontrou para
realizar um verdadeiro inquérito junto de outros significativos, que o conheceram de
perto, durante o tempo que viveu em Durban63. Num rascunho atribuível ao Dr.
Faustino Antunes, o suposto psiquiatra pretende reconstituir a história de vida do
paciente, para estudar a evolução da «doença de P.». Segundo o seu diagnóstico, Pessoa
seria um «neurasténico vesânico», «peridispéptico», com características histéricas, mas,
faltando-lhe dados sobre a história de vida do paciente, o psiquiatra procurava entender
como a neurastenia teria surgido nesse «pobre temperamento hiposténico de nascença».
O Dr. Faustino Antunes atribui ao jovem Pessoa um «carácter reservado», de
«ponderação melancólica» e «uma seriedade, que espantam», definindo os principais
traços da sua personalidade como «precocidade intelectual, imaginação prematuramente
62
Tal como nos heterónimos Charles Robert Anon (anónimo) ou Alexander Search (procura), o escritor
joga mais uma vez com os nomes: Faustino Antunes tem as mesmas iniciais dos nomes próprios de
Fernando António Nogueira Pessoa.
63
Pessoa planeou enviar quatro cartas, mas apenas duas respostas são conhecidas:
LETTERS FOR INFORMATION AS TO CHARACTER OF MYSELF:
1. Registrar (Essays) – Self as mentally ill
2. Geerdts. Oxford (Lincoln College) – giving self as dead.
3. Belcher – giving self as mentally ill.
4. Dr. Haggar – self as mentally ill.
(PESSOA, 2003: 64)
52
intensa, malevolência, medo, necessidade de isolamento», marcados por uma «raiva
impulsiva e quase odienta» (PESSOA, 2003: 67-69).
Ora faltam-me dados para essa «história de uma vida» ou «história de uma alma».
Conheço, nos limites do possível, a vida mental de P. até 1895 (Dezembro), época em que
foi (com apenas 7 anos de idade) para Durban. Ela não é inteiramente normal. Nessa idade
já existe no observado uma certa neurastenabilidade bem vincada: aos 7 anos já é – ainda
que indistintamente – um peridispéptico […]. Mais, aos 7 anos de idade P. revela já este
carácter reservado não infantil – uma ponderação (não a ponderação do bom-senso
inteiramente burguês, mas a ponderação melancólica e intelectual), uma seriedade, que
espantam. Já se isola, gosta de brincar sozinho, de ler, de escrever (aprendeu a fazê-lo
sozinho). É um solitário – vê-se bem. E a tudo isso há que juntar muita raiva impulsiva e
quase odienta (nem sempre com uma causa proporcional) e muito medo. O seu carácter
pode
resumir-se
assim:
precocidade
intelectual,
imaginação
prematura
intensa,
malevolência, medo, necessidade de isolamento. É um neuropata em miniatura. (PESSOA,
2003: 67-69, traduzido do Francês)
Assumindo a autoridade clínica do Dr. Faustino Antunes, Fernando Pessoa
escreveu a Ernest Belcher, seu antigo professor de língua inglesa no Liceu de Durban,
ficcionando a sua própria demência e pedindo informações sobre o seu carácter
enquanto adolescente64. O professor respondeu ao suposto psiquiatra, em 14 de Julho de
1907, declarando-se chocado com a doença mental de Pessoa. Apesar do contacto
mantido com o ex-aluno em Durban, Ernest Belcher confessa que o seu conhecimento
de Pessoa «pouco ia além do seu trabalho» escolar, embora sempre tivesse mantido
«uma boa amizade com o rapaz», que considerava «leal e prestável». Segundo Ernest
Belcher, Pessoa não era do tipo atlético e não participava nas actividades desportivas,
mas gostava de assistir aos jogos de futebol. O professor juntou à sua carta um artigo
sobre Thomas Macaulay65, escrito pelo ex-aluno aos 17 anos de idade, que considerava
de «um mérito excepcional». Na opinião de Belcher, a «sua redacção em Inglês era, em
64
O livro de W. C. Rivers, Walt Whitman’s Anomaly, London, George Allen & Company, 1913, existente
na biblioteca pessoal de Fernando Pessoa, apresenta a advertência: «The sale of this book is restricted to
the Members of the Legal and Medical professions». Este livro, que pertenceu a Fernando Pessoa, pode
indicar que esta não foi a única vez que o escritor utilizou a identidade do Dr. Faustino Antunes. A
limitação da venda a «membros das profissões médicas e legais» devia-se ao facto de a obra
problematizar a homossexualidade do grande poeta americano Walt Whitman (1819-1892).
65
Thomas Babington Macaulay (1800-1859) foi um eminente político liberal, historiador, poeta e crítico
literário britânico, cujo túmulo se encontra na abadia de Westminster, em Londres. A sua grandeza era
então inquestionável, mas veio a perder reconhecimento ao longo do século XX.
53
geral, notável e por vezes raiava o génio», revelando assim grande apreço pelo jovem
Pessoa, o qual tinha «na conta de um rapaz de excepcional originalidade de pensamento
que, com uma orientação judiciosa, teria um futuro promissor, se não brilhante»
(PESSOA, 2003: 391-393).
Por sugestão do professor, Pessoa escreveu também a Clifford Geerdts, que fora
seu colega e concorrente ao título de melhor aluno do Liceu de Durban. Apesar da carta
do Dr. Faustino Antunes se ter perdido, tal como a enviada a Ernest Belcher, sabe-se
pela resposta que foi escrita em 21 de Setembro de 1907, duas semanas após o óbito da
avó paterna de Pessoa. Clifford Geerdts, que nessa época residia em Elbing, na então
Prússia Ocidental66, respondeu às questões colocadas pelo Dr. Faustino Antunes, em 4
de Outubro, afirmando ter convivido mais com o suposto paciente em 1904. O excolega confirma a opinião do professor, afirmando que Pessoa era «pálido e magro e
parecia pouco desenvolvido fisicamente. Tinha um tórax estreito e contraído e tendência
para se curvar. Tinha um modo de andar peculiar e algum defeito na vista também lhe
dava aos olhos um aspecto estranho, parecendo que as pálpebras lhe descaíam sobre os
olhos». Segundo Geerdts, Pessoa «não teve nenhum caso amoroso», mas «tinha em seu
poder alguns jornais cómicos franceses e portugueses indecentes». Geerdts comunica
também ao Dr. Faustino Antunes que Pessoa era «considerado como um rapaz de
inteligência brilhante pois, apesar de não ter falado Inglês na sua infância, aprendera-o
tão rapidamente e tão bem que possuía um estilo esplêndido nesta língua». Segundo o
ex-colega, Pessoa tinha um «espírito tolerante e liberal», pelo que «não era difícil
persuadi-lo a fazer fosse o que fosse. Era dócil e inofensivo e evitava normalmente
associar-se aos seus condiscípulos», dedicando certamente «os seus tempos livres à
leitura». Geerdts não se lembrava de «nenhuma peculiaridade […] que sugerisse, ainda
que vagamente, qualquer desequilíbrio mental», mas Pessoa causara-lhe «a impressão
de ter alguma propensão para a morbidez», porque «trabalhava demais» e «não
participava em nenhum tipo de actividade desportiva». Na opinião do ex-colega, Pessoa
«arruinaria a sua saúde com isso», pois para «um rapaz da sua idade, pensava muito e
aprofundadamente». Neste sentido, Clifford Geerdts lembrava-se de uma carta que
Pessoa lhe escrevera, na qual se queixava de «fardos espirituais e materiais de uma
extrema adversidade» (PESSOA, 2003: 395-399).
66
Actualmente Elblag, cidade do norte da Polónia.
54
III.2. Loucura e genialidade
Enquanto estudante do Curso Superior de Letras, Pessoa anotou no seu diário,
em 24 de Março de 1906: «Curso – História; maçador embora o Ramos tenha graça67.
Sentei-me entre dois membros da aristocracia; diagnóstico: degenerescência
(inferior)»68 (PESSOA, 2003: 31). Influenciado pela psiquiatria positivista, mas também
pelo evolucionismo organicista de Herbert Spencer69, o jovem Pessoa chegou a esboçar
uma teoria própria sobre «o processo da degeneração humana», a partir dos conceitos de
evolução, reversão, dissolução e degeneração70. Oriundo da biologia, o conceito de
degeneração foi introduzido na medicina pelo médico francês Bénédict Augustin Morel
(1809-1873), director do Asilo dos Alienados de Saint-Yon, no seu Traité des
Dégénérescences, publicado em 1857. Curiosamente, no mesmo ano em que Charles
Baudelaire (1821-1867) era condenado pela publicação da sua obra-prima, Les Fleurs du
Mal71. Morel definiu a degeneração humana como «desvio patológico de um tipo
primitivo», pelo efeito «duma influência mórbida, tanto de ordem física, como de ordem
moral». Na perspectiva do psiquiatra, a degenerescência resultava da transmissão
hereditária agravada, a qual impedia o progresso intelectual, já ameaçado nos
«degenerados», ficando ainda mais comprometido nos seus descendentes que, de
geração em geração, se tornariam cada vez mais incapazes de «cumprir a sua função na
humanidade». A transmissão hereditária agravada teria como consequência a
degradação progressiva da humanidade se, na teoria de Morel, a natureza não se
67
Manuel Maria de Oliveira Ramos, professor da cadeira de História Antiga, era invisual, dotado de
«forte inteligência» e «poder crítico apreciável». Nas suas aulas «amenizava com finos gracejos qualquer
assunto árido» (PRISTA, 2001: 161-162).
68
«Curso – History; dull though Ramos is amusing. Sat between two members of the aristocracy;
diagnosis: degeneration (inferior). Walked to the Biblioteca with some other conventional (of a low class
– as they say – this time); these are also conventional, though they are not aristocratic» (PESSOA, 2003:
30).
69
Na biblioteca pessoal de Fernando Pessoa existem três livros de Herbert Spencer (1820-1903): Seven
Essays Selected from the Works of Herbert Spencer, London, Watts & Co., 1907; Social Statics Abridged
and Revised, London, Watts & Co., 1910 e The Man Versus the State, London, Watts & Co., 1914.
70
«The Process of Human Degeneracy» (caderno de notas E3/144T-24, espólio Fernando Pessoa,
Biblioteca Nacional de Portugal).
71
Charles Baudelaire, Les Fleurs du Mal, Paris, Poulet-Malassis et De Broise, 1857. Poeta maior da
língua francesa, precursor do simbolismo, juntamente com Walt Whitman, Baudelaire é considerado um
dos fundadores da modernidade literária. O escritor foi também um teórico que renovou a estética do
século XIX. A sua obra-prima, Les Fleurs du Mal, foi apreendida, sendo o autor e os editores acusados de
«delito de ultraje à moral pública e aos bons costumes», e condenados ao pagamento de multas e a
suprimir seis dos poemas na reedição do livro. A sentença apenas seria revogada em 1949, por
requerimento do presidente da Société des Gens de Lettres.
55
encarregasse de eliminar os «degenerados» através da esterilidade, tornando-os assim
incapazes de reproduzirem os seus desvios nos descendentes (MOREL, 1857: 5).
III.2.1. Genialidade e degeneração
A psicopatologia dos génios foi um dos mais polémicos desenvolvimentos da
psiquiatria positivista da segunda metade do século XIX, particularmente nos trabalhos
de Cesare Lombroso72 e de Max Nordau73. O tema do «génio e loucura» é bastante
antigo, encontrando-se explícito no ditado popular segundo o qual, «de génio e de louco
todos temos um pouco». Em O Elogio da Loucura, Erasmo de Roterdão (1466-1536)
questionava-se acerca da diferença entre sábios e loucos, chegando à conclusão
paradoxal de que não haveria diferença alguma se não fossem mais felizes os últimos.
Honoré de Balzac (1799-1850) chegou mesmo a escrever que «o génio é uma horrível
doença»74. Segundo Cesare Lombroso (1835-1909), «por mais cruel e dolorosa que
pareça a teoria que identifica o génio à neurose, ela não é destituída de sólidos
fundamentos, mesmo considerando certos aspectos negligenciados pelos observadores
mais recentes»75. Hesitando na aplicação da teoria da degeneração ao estudo da
genialidade, este psiquiatra atribui o seu embaraço à inevitável perplexidade que advém
72
Cesare Lombroso (1835-1909), oriundo de uma abastada família de Verona que o baptizou Marco
Ezechia Lombroso, mudou depois o nome para Cesare. Completou os estudos de medicina na
Universidade de Pavia em 1858 e mais tarde foi director do manicómio de Pádua. Expoente do
positivismo, tornou-se célebre como psiquiatra, sendo considerado o fundador da criminologia moderna.
Na sua influente obra, destacam-se: Genio e Follia, Milano, Giuseppe Chiusi, 1864; L’Uomo
Delinquente, Milano, Hoepli, 1876; e L’Uomo di Genio, Torino, Bocca, 1888.
73
Max Nordau (1849-1923) nasceu em Budapeste, que então pertencia ao Império Austro-Húngaro, filho
de pais judeus, que lhe deram o nome de Simcha Südfeld. Aos quinze anos abandonou os estudos
judaicos e integrou-se totalmente na cultura alemã, iniciando depois uma carreira jornalística. Em 1872
licenciou-se em medicina e, no ano seguinte, após o falecimento do seu pai, mudou o nome para
Maximilian Nordau. Iniciou então uma série de viagens ao estrangeiro, vivendo em Paris de 1876 a 1878,
cidade que o encantou. Em 1880 estabeleceu-se definitivamente em Paris, onde viveria a maior parte da
sua vida como correspondente de grandes jornais, tais como o Neue Freie Presse, de Viena, o Vossische
Zeitung, de Berlin, ou o La Nación, de Buenos Aires. Interessado pelos problemas sociais, exerceu
medicina de forma filantrópica, escrevendo a sua notável e controversa obra em Alemão.
74
«Le génie est une horrible maladie. Tout écrivain porte en son cœur un monstre qui, semblable au ténia
dans l’estomac, y dévore les sentiments à mesure qu’ils y éclosent. Qui triomphera? la maladie de
l’homme, ou l’homme de la maladie? Car il faut être un grand homme pour tenir la balance entre le génie
et le caractère». Honoré de Balzac, Illusions Perdues: un grand homme de province à Paris, tome II,
Bruxelles, Hauman et Cie., 1839, p. 231.
75
Lombroso cita obras de diversos autores, designadamente de Joseph Henri Reveille-Parise, Physiologie
et Hygiène des Hommes Livrés aus Travaux de l’Espri, Paris, Baillière et fils, 1856. Jacques Joseph
Moreau, La Psychologie Morbide dans ses Rapports avec la Philosophie de l’Histoire, ou, de l’Influence
des Névropathies sur le Dynamisme Intellectuel, Paris, V. Masson, 1859. Joseph Octave Delepierre,
Histoire Littéraire des Fous, London, Trübner & co., 1860. Paul Radestock, Genie und Wahnsinn: eine
psychologische Untersuchung, Breslau, E. Trewendt, 1884.
56
de «associar a idiotas e criminosos aqueles que representam as mais elevadas
manifestações do espírito humano». Contudo, Lombroso afirma que «os sinais da
degenerescência se encontram ainda mais frequentemente neles do que nos alienados»
(LOMBROSO, 1889: XIX-XX). Segundo o psiquiatra, algumas «investigações muito ricas
mas nem sempre suficientemente rigorosas» parecem confirmar a hipótese de que «o
génio é sempre uma neurose e frequentemente uma verdadeira loucura» (LOMBROSO,
1889: 3).
Para justificar a sua postura, Lombroso recorre à literatura, citando o «exemplo
de uma obra genial, um dos produtos mais requintados da inteligência humana, o Dom
Quixote de Cervantes» (1547-1616), personagem literária destinada «a acabar num
hospício de alienados» e que, segundo o psiquiatra, personifica verdadeiramente a
loucura (LOMBROSO, 1889: XVII).
Cesare Lombroso cita a Enciclopédia de Diderot (1713-1784): «Oh! Como o
génio e a loucura estão próximos! Os que o céu marcou para o bem e para o mal estão
sujeitos mais ou menos a estes sintomas: têm-nos mais ou menos frequentes, mais ou
menos violentos. Encarceremo-los e agrilhoemo-los, ou erijamos-lhes estátuas…»76
(LOMBROSO, 1889: 3). O psiquiatra descreve então o que, na sua perspectiva, era a
sintomatologia apresentada pelos génios, a qual, adoptando o conceito introduzido por
Morel, atribuía etiologicamente à degenerescência. Como sintomas morais, ele sublinha
«a apatia, a perda do sentido moral, a frequente tendência impulsiva, a propensão para a
dúvida, as desigualdades e as desproporções psíquicas criadas por um desenvolvimento
excessivo de certas faculdades ou pela ausência de outras, verbosidade ou mutismo
exagerado, vaidade louca, excentricidade, excessiva preocupação da personalidade,
interpretação mística dos factos mais simples, abuso dos símbolos e dos termos
especiais». Como sintomas físicos, Lombroso aponta «as orelhas de abano, a barba rala,
a dentição irregular, as assimetrias excessivas do rosto ou da cabeça, que é
frequentemente enorme ou pouco volumosa, a precocidade sexual, a pequenez e as
desproporções do corpo, o mancinismo, a gaguez, o raquitismo, a tísica, a fecundidade
excessiva, neutralizada mais tarde pelos abortos, ou a completa esterilidade»
(LOMBROSO, 1889: 6-7). Neste sentido, Lombroso contraria Morel, na medida em que
considera «a precocidade sexual» e «a fecundidade excessiva» características dos
génios.
76
ENCYCLOPEDIE ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers, tome sezieme,
Neufchastel, Samuel Faulche & Compagnie, MDCCLXV, p. 260.
57
Na sua abordagem antropológica, Lombroso estudou, entre outras, as biografias
de Newton, Ampère, Darwin, Rousseau, Richelieu, Napoleão, Baudelaire, Auguste
Comte, Schuhmann, Schopenhauer, Nicolau Gogol e Pasteur, concluindo que entre «a
fisiologia do homem de génio e a patologia do alienado existem, portanto, numerosos
pontos de coincidência». Para o psiquiatra, haveria mesmo uma verdadeira continuidade
entre eles, sendo esta a razão porque «se encontram tão frequentemente loucos de génio
e génios alienados» que, embora tendo caracteres próprios, se limitavam ao exagero dos
sintomas que apresenta o génio: frequência e multiplicidade dos delírios, características
de degenerescência e de perda de afectividade, derivando ou sendo mesmo descendentes
de alcoólicos, de imbecis, de idiotas ou de epilépticos. Na opinião de Lombroso,
«estudos recentes» demonstravam que «a epilepsia está associada a todas as formas de
alienação, principalmente à megalomania e à loucura moral», bem como aos «delírios
múltiplos». Segundo o médico, este quadro clínico e, sobretudo, o carácter especial da
inspiração «mostram que o génio é uma psicose degenerativa do grupo epiléptico;
conclusão que é confirmada ainda pela frequência de uma genialidade temporária entre
os loucos, e pelo novo grupo de mattoïdes77 aos quais a doença confere todas as
aparências externas do génio, sem a substância» (LOMBROSO, 1889: 490).
Para Lombroso, Charles Baudelaire ilustrava perfeitamente a sua teoria,
descrevendo o escritor como um «verdadeiro louco possuído pela mania das grandezas:
ar provocador, olhar de desafio, auto-satisfação extravagante». Segundo o psiquiatra,
Baudelaire descendia de uma família de doidos e excêntricos, sofria de alucinações
desde criança e apresentava sintomas contraditórios de hiperestesia e apatia. De
natureza impulsiva, o escritor abusaria do álcool, envolvendo-se em desacatos.
Baudelaire procuraria a todo o custo ser original, recorrendo a excentricidades como
pintar o cabelo de verde ou usar roupas extravagantes. Além disso, seria atraído por
mulheres feias ou exóticas, como as negras, as anãs ou as gigantes. Na opinião de
Lombroso, Baudelaire era orgulhoso e misantropo, ridicularizando Molière (1622-1673) e
Voltaire (1694-1778), a quem invejaria a grandeza. Para o médico, o escritor exaltava o
desprezo e comprazia-se no ódio, invectivando os críticos e os seus pares com
77
«On a trouvé pour ceux-ci une quantité de dénominations. Maudsley et Bail les nomment «habitants
des pays-frontières», c’est-à-dire des régions limitrophes à la raison, intacte et à la folie déclarée. Magnan
les appelle «dégénérés supérieurs», et Lombroso parle de «mattoïdes» (du mot italien matto, fou), et de
«graphomanes», désignant par ce mot ces demi-fous qui ressentent le besoin d’écrire. En dépit de la
multiplicité de ces dénominations, il s’agit d’une espèce unique d’individus, qui manifestent leur parenté
par la similitude de leur physionomie intellectuelle» (NORDAU, 1894: 34).
58
impropérios. Baudelaire teria apodando de imbecil o crítico Gustave Planche (18081857),
de farsante Alexandre Dumas (1802-1870), de estúpido Eugène Sue (1804-1857), de
idiota Paul Féval (1816-1887) e de George Sand (1804-1876) dizia ser «um Veuillot sem
finura». Segundo o psiquiatra, Baudelaire faleceu devido à «paralisia geral progressiva
dos alienados», cujo primeiro sintoma teria sido a sua ambição excessiva ou «mania das
grandezas» (LOMBROSO, 1889: 92-95).
III.2.2. A degenerescência segundo Max Nordau
O anátema que envolvia os escritores, nos finais do século XIX, atingiu o
paroxismo na obra de Max Nordau, Entartung, cuja tradução francesa, Dégénérescence,
foi publicada em 1894, com enorme êxito mundial, celebrizando o seu autor78. A
Degenerescência foi inspirada, sobretudo, nos trabalhos de Lombroso, autor de L’Uomo
di Genio e de L’Uomo Delinquente, a quem Nordau dedicou o seu livro. Para este
médico, Lombroso estudara algumas áreas obscuras «da psiquiatria, do direito criminal,
da política e da sociologia», mas teria negligenciado o «domínio da arte e da literatura».
Estas eram as disciplinas que Nordau se propunha iluminar com a luz da psiquiatria
positivista e recorrendo ao conceito de degenerescência. Em resposta ao psiquiatra
italiano, Nordau afirma que «nem sempre os degenerados são criminosos, prostitutas,
anarquistas ou loucos». Na sua opinião, muitas vezes os degenerados eram escritores e
artistas com os mesmos traços intelectuais, e até físicos, dos membros da «família
antropológica» que, em vez da pena ou do pincel, «satisfazem os seus instintos doentios
com o punhal do assassino ou o cartucho do dinamitador». Segundo Nordau, «alguns
destes degenerados da literatura, da música e da pintura» tinham obtido «uma fama
extraordinária e inúmeros admiradores que os exaltam como criadores de uma arte
nova, os arautos dos séculos futuros». Contudo, o sucesso desta «literatura degenerada»
constituiria um grave problema social, na medida em que cada época deposita nos livros
e nas obras de arte o seu ideal de moral e de beleza, pelo que eles exercem sobre as
massas uma poderosa influência. Sendo absurdos e anti-sociais, os livros influenciariam
de forma nefasta e perniciosa sobretudo os jovens, mais expostos e vulneráveis a tudo o
que é estranho ou aparenta novidade (NORDAU, 1894: V-VI).
78
Entartung, 2 vol. Berlin, Carl Dunder, 1892. Dégénérescence, 2 vol., tr. Auguste Dietrich. Paris, Félix
Alcan, 1894. Degeneração, 5 vol., tr. M. C. da Rocha. Rio de Janeiro, Laemmert & Cia., 1896.
59
Ao contrário de Lombroso, que se penitenciara por comparar os génios a comuns
doentes mentais, Nordau tem uma postura mais incisiva, considerando que a crítica
vulgar, dotada de uma cultura exclusivamente estético-literária, não seria competente
para reconhecer o carácter patológico das obras dos «degenerados». Na sua opinião, a
crítica literária, mais ou menos floreada, apenas tecia impressões subjectivas, com maior
ou menor aprovação, sendo incapaz de julgar se a obra criticada era produto de um
cérebro doente, bem como a natureza das patologias mentais que ela reflectiria.
Receando uma recepção hostil à sua obra, Nordau adverte para o «destino infeliz dos
que têm a audácia de assinalar os modos estéticos como formas de decomposição
intelectual», acrescentando ainda que «o escritor ou artista visado nunca perdoa quem
reconhece nele um alienado ou um charlatão». A «crítica da retórica subjectiva fica
furiosa quando se prova o quanto ela é superficial e incompetente, ou a forma cobarde
como se deixa ir na corrente; e o próprio público fica irritado quando o obrigam a ver
que enfileira atrás de doidos, curandeiros e saltimbancos, como se fossem profetas».
Reivindicando o carácter «realmente científico» do seu ensaio, Nordau recusa julgar as
obras literárias «pelas emoções que elas despertam», sempre contingentes e «variáveis
segundo o temperamento e a disposição» de cada leitor. Em alternativa, propõe uma
análise das tendências da arte e da literatura a partir dos «elementos psico-fisiológicos
que lhe deram origem», usando para tal o método seguido por Lombroso. Desta forma,
Nordau esperava provar, como «verdade científica», que as obras em voga na arte e na
literatura tinham «origem na degenerescência dos seus autores, e que os que as admiram
se entusiasmam com manifestações de loucura moral, de imbecilidade e de demência»
(NORDAU, 1894: VI-VIII).
No «primeiro livro» de Dégénérescence, intitulado «Fin de Siècle», o autor
interpreta um sentimento colectivo de insegurança ontológica, presente no final do
século XIX79. Para Nordau, a degenerescência anunciava o «Crepúsculo dos Povos»,
apresentando a perspectiva sombria de um futuro em que, numa «natureza moribunda»,
a humanidade pereceria gradualmente com todas as suas instituições e criações
(NORDAU, 1894: 3). Neste sentido, ele contraria o optimismo de Morel, que confiava na
natureza para neutralizar a degradação humana resultante da degenerescência, através
da esterilidade dos «degenerados». Nordau herdou a perspectiva de Lombroso, para
quem «a precocidade sexual» e «a fecundidade excessiva» eram características dos
79
O conceito de segurança ontológica foi desenvolvido por Anthony Giddens (GIDDENS, 2001: 34).
60
génios, que apresentariam sintomas semelhantes aos «degenerados». Contudo, enquanto
para Morel a degeneração era o «resultado de uma influência mórbida», para Nordau, a
degenerescência tinha causas eminentemente sociais. Na sua opinião, estas causas
prendiam-se com o crescimento desmesurado das cidades e a consequente degradação
das condições de vida, bem como o aumento insuportável do esforço exigido aos
trabalhadores nas sociedades industrializadas. Neste sentido, Nordau aponta a vida
agitada, a poluição, a deficiente qualidade alimentar e, sobretudo, as degradantes
condições de vida que promoviam o vício, a prostituição e o alcoolismo, aumentando
assim a criminalidade e as doenças físicas e mentais (NORDAU, 1894: 66-76). Desta
forma, a visão antropológica de Lombroso foi complementada pela perspectiva
sociológica de Nordau80, retomando as condições de vida insalubres nas metrópoles,
anteriormente estudadas por Le Play (1806-1882)81, as quais contribuiriam decisivamente
para a degeneração dos seus habitantes. O pessimismo de Max Nordau é comparável ao
de Max Weber (1864-1920), patente no seu conceito de «desencantamento do mundo»82,
descrevendo o desenvolvimento burocrático do capitalismo com a metáfora de uma
«jaula de aço» que aprisionaria os sonhos e ambições dos trabalhadores.
«Com o crescimento das grandes cidades aumenta paralelamente o número de
degenerados de toda a espécie, criminosos, loucos e “degenerados superiores”», sendo
«natural que estes últimos desempenhem na vida intelectual um papel cada vez mais
evidente, esforçando-se por introduzir na arte e na literatura cada vez mais elementos de
loucura» (NORDAU, 1894: 66). A perspectiva de Nordau parecia aplicar-se perfeitamente
ao simbolismo e sobretudo ao decadentismo, corrente estética que emergiu em meados
do século XIX. O escritor Théophile Gautier (1811-1900), amigo de Baudelaire a quem
este dedicou Les Fleurs du Mal, escreveu um longo prefácio para a primeira edição
póstuma, publicada em 1868, no qual justifica a obra e o seu autor, falecido no ano
anterior83. Segundo Gautier, Baudelaire «amava o que se chama impropriamente estilo
80
Max Nordau é também o autor de Paradoxes Sociologiques, Paris, Félix Alcan, 1897.
81
Frédéric Le Play, Ouvriers Européens: études sur les travaux, la vie domestique et la condition morale
des populations ouvrières de l’Europe, précédée d’un exposé de la méthode d’observations, Paris,
Imprimerie Impériale, 1855.
82
«Die Entzauberung der Welt», conceito que Weber retomou de Friedrich Schiller (1759-1805).
83
Charles Baudelaire, Les Fleurs du Mal, édition définitive, précédée d’une notice par Théophile Gautier.
Paris, Calmann-Lévy, 1868. Após a proibição da primeira edição da obra de Baudelaire, em 1857, esta
terceira edição (primeira edição póstuma), extirpada dos seis poemas interditos, foi publicada em 1868
com um longo prefácio do escritor e amigo Théophile Gautier. Os poemas censurados, «Les Bijoux», «Le
Léthé», «À Celle qui est Trop Gaie», «Lesbos», «Femmes Damnées» e «Les Métamorphoses du
61
de decadência, e que não é outra coisa senão a arte chegada ao ponto de maturidade
extrema», determinada pelas «civilizações que envelhecem». Para o seu amigo, o estilo
de Baudelaire era «engenhoso, complicado, erudito, rebuscado e cheio de nuances,
voltando sempre às origens da língua, bebendo em todos os vocabulários técnicos,
tomando cores de todas as paletas, notas de todos os teclados, procurando tornar o
pensamento no que ele tem de mais inefável». Gautier teria inspirado Nordau, uma vez
que, na sua opinião, o decadentismo traduz «as confidências subtis da neurose, as
confissões da paixão envelhecendo que se perverte e as alucinações estranhas da ideia
fixa que se transforma em loucura» (BAUDELAIRE, 1868: 16-17).
Max Nordau afirma que o «verdadeiro talento é sempre individual», pelo que
«os escritores sãos, em que o espírito se encontra num estado de equilíbrio normal,
jamais sonhariam em constituírem-se numa associação». Para o médico, um verdadeiro
artista nunca se reuniria em qualquer «seita ou bando, para redigir um catecismo; para
se ligar a dogmas estéticos determinados, e para entrar na liça por eles com a
intolerância fanática dos inquisidores». Na sua opinião, a existir actividade humana
individual, ela era certamente a arte, pelo que, o simples facto de um escritor ou um
artista aderir a um dogma, a um «ismo», a uma «capela artística ou literária»84,
constituía uma prova da sua «completa falta de personalidade, quer dizer, de talento».
Neste sentido, um dos fenómenos «característicos de um alto grau de degenerescência»
seria «a formação de grupos ou de escolas fechadas, isolando-se intratavelmente das
escolas vizinhas», como se observa na literatura (NORDAU, 1894: 54-55).
Vampire», bem como outras poesias do autor, integraram um Complément aux Fleurs du Mal de Charles
Baudelaire, publicado no ano seguinte em Bruxelas.
84
Em A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias, Erving Goffman problematizou o conceito de
capela da seguinte forma: «Os membros de uma “capela” informal, designando-se por este termo um
número reduzido de pessoas que se juntam para ocuparem os seus tempos livres de maneira informal,
podem também constituir uma equipa, pois é provável que queiram cooperar na dissimulação cuidadosa
da exclusividade do grupo que formam perante certos não membros, ou na sua exibição, por snobismo,
perante outros. Contudo, há um significativo contraste entre os conceitos de equipa e de “capela”. Nas
organizações sociais alargadas, os indivíduos de determinada categoria formam um conjunto pelo facto de
terem que cooperar na manutenção da definição da situação frente aos que se encontram acima ou abaixo
deles próprios. Assim, um conjunto de indivíduos, que poderão ser diferentes sob numerosos aspectos e,
por conseguinte, desejar manter certas distâncias sociais entre si, acabam por se descobrir numa relação
de familiaridade forçada, característica de companheiros de equipa que encenam uma representação. Com
frequência, parecem formar-se “capelas” pouco numerosas, não em vista de garantir os interesses
daqueles com os quais o indivíduo encena uma representação, mas antes a fim de proteger o indivíduo de
uma identificação não desejada com os outros. As “capelas”, portanto, funcionam muitas vezes
protegendo o indivíduo não das pessoas de outra condição, mas das pessoas da sua própria condição.
Assim, embora todos os membros da “capela” de um indivíduo possam ter o mesmo estatuto, será por
vezes decisivo que nem todas as pessoas com o mesmo estatuto que o indivíduo sejam autorizadas a fazer
parte da “capela”» (GOFFMAN, 1993: 104-105).
62
Segundo Nordau, os simbolistas constituíam um exemplo notável dos grupos
que reuniam em si «todas as características dos degenerados e dos fracos de espírito: a
vaidade sem limites e a opinião exagerada do seu próprio mérito, a forte emotividade, o
pensamento confuso e incoerente, a verborreia, a completa inaptidão para o trabalho
sério» (NORDAU, 1894: 180). As «divagações» destes «grafómanos» teriam chegado às
mãos de jornalistas que, «por falta de assunto», lhes dedicaram crónicas, unicamente
para os ridicularizar. Na opinião do médico, era precisamente isto que os simbolistas
pretendiam, pouco lhes importando o escárnio ou o elogio, desde que falassem deles,
pois uma vez admitidos no circuito mundano, procurariam acesso aos grandes jornais.
Quando um dos simbolistas conseguisse franquear as portas de uma redacção, a
curiosidade do público, a falta de sentido crítico ou o carácter desprezível de certos
redactores contribuiriam para tornar célebres esses escritores ávidos de sucesso. Nesta
perspectiva, a tendência consciente e intencional destes indivíduos para fundar escolas
literárias com um nome específico, mas sem princípios artísticos comuns nem
objectivos estéticos claros, seria devida a uma agenda escondida, embora facilmente
reconhecível. Para Nordau, esta agenda teria como finalidade apenas a propaganda,
atraindo a atenção com recurso à extravagância para conseguirem a fama e a glória, «a
satisfação de todos os apetites e de todas as vaidades». O médico conclui que o triunfo
da corrente simbolista representa «a vitória do bando sobre o indivíduo» degenerado,
cuja «maneira de ser está em contradição com as leis em que assenta a estrutura da
sociedade e da civilização» (NORDAU, 1894: 178-186).
III.2.3. Do artista degenerado ao escritor doente
Na linha de Lombroso, Max Nordau critica as obras de Paul Verlaine (1844-1896)
e Stéphane Mallarmé (1842-1898), incluídos na sua lista de «escritores degenerados»85.
Mas Dégénérescence constitui também uma operação crítica severa sobre as
«aberrações culminantes» de Guaita e de Papus, «a androginia de um Péladan, a
85
Paul Verlaine, autor de Poèmes Saturniens (1866) e Les Poètes Maudits (1884), escritor decadentista e
simbolista, nasceu em Metz, em 1844, e estudou em Paris. Em 1870 casou-se com Mathilde Mauté, de
quem teve um filho, mas em 1872 abandonou a família, partindo para Londres na companhia do poeta
Arthur Rimbaud (1854-1891), com quem manteve uma relação conjugal. No ano seguinte, na sequência
de desavenças, disparou dois tiros sobre Rimbaud, o que lhe valeu dois anos de prisão. Em 1877 voltou
definitivamente para França, vivendo os seus últimos anos no alcoolismo, na toxicodependência e na
pobreza. Ainda assim, viveu o suficiente para ser eleito «príncipe dos poetas franceses», em 1894. Os
seus últimos livros foram prosas autobiográficas: Mes Hôpitaux (1892), Mes Prisons (1893) e
Confessions (1895). Morreu em Paris, em 1896, com 52 anos de idade.
63
ansiomania de um Rollinat, a baba idiota de um Maeterlinck»86. Nordau critica ainda
«os histéricos, os basbaques e os pretensiosos da modernidade ainda capazes de algum
discernimento», que colaborariam de alguma forma no «obscurantismo intelectual»
(NORDAU, 1894: 428-429). Na opinião do médico, a tendência para o misticismo era uma
característica fundamental dos «degenerados» e dos «histéricos», «um estado de alma
no qual se crê perceber ou pressentir relações desconhecidas e inexplicáveis entre os
fenómenos» (NORDAU, 1894: 84). Tal como Lombroso ilustrara a sua teoria com o
exemplo de Baudelaire, um «verdadeiro louco possuído pela mania das grandezas»,
também Nordau tipifica o «degenerado» na figura do poeta Maurice Rollinat (18461903),
autor de Les Névroses e de L’Abîme87.
Ao analisar a obra de Rollinat, Max Nordau encontrou todos os «estigmas de
degenerescência» em poemas como «Le Fou», «La Céphalalgie», «La Maladie»,
«L’Enragée» ou «L’Angoisse», «produtos dum delírio que se observa frequentemente
nos degenerados». Segundo o médico, Rollinat padecia de «loucura angustiante»,
descrita por Magnan como «ansiomania», a qual seria o verdadeiro motivo de
admiração de «todos os histéricos franceses e de muitos histéricos estrangeiros», que o
consideravam um grande poeta. Entre estes «histéricos estrangeiros» estaria certamente
o jovem Pessoa, para quem Rollinat, que segundo Nordau sentia «instintos criminosos»,
foi um dos modelos estéticos (NORDAU, 1894: 399-404)88. Inspirado por Maurice Rollinat,
Pessoa também sentia impulsos, «uns criminosos, outros dementes», pelo que «gostaria
de cometer todos os crimes, todos os vícios, todas as acções belas, nobres, grandiosas,
beber o belo, o verdadeiro, o bem de um só trago e adormecer em seguida para sempre
no seio tranquilo do Nada» (PESSOA, 2003: 91). A admiração de Pessoa pela poesia de
Rollinat foi talvez a razão da sua ruptura, não apenas com a teoria de Nordau mas
também com a de Lombroso, a quem criticaria, num rascunho intitulado «A
Imoralidade das Biografias», a equivalência que o psiquiatra estabeleceu entre loucura e
genialidade:
86
Maurice Maeterlinck (1862-1949), escritor belga da corrente simbolista que recebeu o prémio Nobel da
literatura em 1911 pelo conjunto da sua obra. Maeterlinck esteve em Portugal em Junho de 1935, onde se
refugiou também em 1939-1940. Prefaciou a tradução francesa de discursos de Salazar, Une Révolution
dans la Paix, Paris, Flammarion, 1937.
87
Maurice Rollinat, Les Névroses, Paris, G. Charpentier, 1883. L’Abîme, Paris, G. Charpentier, 1886.
88
Numa relação do trabalho literário realizado após o seu regresso a Lisboa, Pessoa escreveu:
«December, 1905: Poesque, complicated with Baudelaire and Rollinat style. January, 1906: Continuation
of the same. “Hand”, “Comedy”; Baudelaire – Rollinat» (PESSOA, 2003: 22).
64
O génio, o crime e a loucura provêm, por igual, de uma anormalidade,
representam, de diferentes maneiras, uma inadaptação ao meio. Se repousam, porém,
sobre um igual fundo degenerativo, se o génio constitui, de por si, uma espécie nosográfica
– são cousas que não sabemos. Manifestação especial de epilepsia larvada, como
precipitadamente quis Lombroso, ou manifestação de uma diatese degenerativa, o certo é
que o génio é, de sua natureza, uma anormalidade.
Sucede que a imaginação simplista das multidões não destrinça de instinto entre o
que na personalidade do homem superior constitui, ou representa, superioridade, e o que
nela resulta de concomitante, ou intercorrente, anormalidade psíquica, patentemente tal.
No fundo, esta intuição espontânea é justa. Na personalidade tudo se liga, se interrelaciona.
Não podemos «separar», salvo por um processo analítico conscientemente truncador da
realidade, na personalidade de Goethe, por exemplo, a modalidade específica da sua
ideação literária e a tendência alucinativa que, como se sabe, obriga a autoscopia externa;
nem podemos separar na personalidade de Shakespeare a intuição dramática de, por ex., a
inversão sexual. (PESSOA, 1994: 133-134)
Fernando Pessoa teceu também uma dura operação crítica sobre a
Degenerescência, pois o «misticismo e o egotismo, encontrados por Nordau na arte
moderna, são os aspectos mórbidos do misticismo equilibrado e do personalismo
característico da arte moderna, e que produziram Goethe, tão querido de Max Nordau».
Para o escritor, a «verdadeira arte decadente é a dos românticos», na qual «o ponto de
partida é o sentimento», e não a literatura dos simbolistas, como pretendia o médico. Na
opinião de Pessoa, a crítica literária de Nordau assentava no mais grosseiro equívoco,
confundindo uma corrente literária de progresso, ainda que indecisa e titubeante no seu
início, com um movimento de retrocesso ou regressão. Neste contexto, o escritor acusa
Nordau de várias confusões e, sobretudo, de ter observado os traços decadentes do
movimento simbolista, ignorando contudo a grande poesia que neles se oculta (PESSOA,
1994: 154-160).
Nordau caiu no mais flagrante e grosseiro dos erros de que um raciocinador pode
fazer [ser?] vítima em matéria sobre que raciocina. Confundiu um movimento de
progresso, porque de diferenciação, com um movimento de regressão; tomou o princípio,
hesitante e perplexo como todos os começares, de uma nova forma de arte por uma arte já
feita; e não soube destrinçar entre o essencial e o ocasional, o instintivo e o teórico e postiço
num movimento artístico, porquanto, não descendo à compreensão do unde e do quo da
civilização actual […].
Viu os elementos de decadência que o movimento simbolista continha – o que
pouco o elogia, porque esses elementos são flagrantes – e não viu o que, por detrás desses
65
elementos, faz de Dante Gabriel Rossetti um grande poeta, e um grande poeta de Paul
Verlaine. Nordau fez mais de asneiras e incompreensão: confundia, sob a mesma
classificação de «místicos» e «tísicos», formas de arte de diferente significação [.] (PESSOA,
1994: 158-159)
Apesar da sua crítica a Max Nordau, Fernando Pessoa concordava com o
médico, no sentido de que toda «a produção artística superior é, por sua natureza, um
produto da decadência e da degeneração». Para o escritor, «todo o génio é um
degenerado (nem superior, nem inferior, porque há só degenerados de uma espécie, mau
grado a absurda escapatória dos psiquiatras modern style)». Contudo, na sua opinião, os
génios «da inteligência assumem um relevo máximo de degeneração», razão pela qual a
teoria «de que o génio é uma nevrose – a tese que Lombroso estragou, mas que existe
soberbamente defendida na Insanity of Genius de Nisbet – tem só o defeito de ser
axiomática»89. Para Pessoa, «o génio implica originalidade, desvio do tipo normal,
desadaptação do aceite e do usual. Se assim é, está nas próprias palavras, exposta a
noção do carácter degenerativo do génio e do talento»90. Neste sentido, o escritor afirma
que seria «interessante inquirir, num estudo sociológico, de que serve, dentro da
sociedade este fenómeno degenerativo chamado arte» e qual a acção desses «produtos
mórbidos» na vida social. «Como toda a vida não passa, em todas as suas formas de
actividade, de uma oscilação, maior ou menor, em torno de um tipo normal que não
existe, bem se pode considerar a anormalidade absoluta e radical do génio como
supremamente interpretativa da vida». Pessoa conclui então que a «teoria da decadência
na arte […] é a teoria que a Natureza tem da Arte», pelo que o artista deveria cumprir «à
risca o seu papel de doente»» (PESSOA, 1999a: 226-228). Nesta perspectiva, Pessoa
89
John Ferguson Nisbet, The Insanity of Genius and the General Inequality of Human Faculty,
Physiologically Considered, third edition, London, Ward & Downey, 1893. Obra existente na biblioteca
de Fernando Pessoa, bem como, do mesmo autor, Marriage and Heredity: a view of psychological
evolution, Edinburgh, John Grant, 1908.
90
No seu artigo «O sentido da “Neutralidade Axiológica” nas Ciências Sociológicas e Económicas»,
originalmente publicado em 1917, Max Weber afirma: «Um pormenorizado exame dos trabalhos
históricos revela facilmente que a continuidade do encadeamento causal, histórico e empírico, seguido
radicalmente até ao final, se deteriora geralmente, quase sem excepção, com prejuízo dos resultados
científicos, a partir do momento em que o historiador começa a “avaliar”. Assim, por exemplo, expõe-se a
“explicar” como consequência de um “erro” ou de uma “degenerescência”, o que talvez tenha sido apenas
um efeito dos ideais dos participantes na acção, diferentes dos seus próprios ideais» (WEBER, 1977:
167). Contudo, o próprio Weber personificaria o «carácter degenerativo do génio e do talento», o qual se
manifestava, segundo Frank Parkin, conhecido comentador do sociólogo alemão, nos «seus ataques
ocasionais de loucura» (PARKIN, 2000: X).
66
assumiu uma postura interaccionista, antecipando o conceito de «papel social», mais
tarde desenvolvido por Goffman na sua metáfora teatral da interacção social91.
Constatado que todo o trabalho artístico é mórbido e anti-social, pois que é
produto da degenerescência, e a degenerescência involve uma sintomação por factos
psíquicos tipicamente inúteis ou prejudiciais para a vida da espécie e do corpo político,
resta saber como deve o artista – assim dado a si próprio como um doente – encarar o seu
papel social. Deve, visto que a natureza o faz doente, visto que ela só através da doença o
possibilita artista, viver inteiramente essa sua doença, cumprir integralmente a vontade da
Natureza, seguindo à risca o papel de doente que ela lhe distribuiu no drama absurdo da
Vida.
A teoria da decadência na arte é pois a teoria que a Natureza tem da Arte.
Seguindo essa teoria, somos tão naturalistas que somos a própria Natureza falando-nos
pela nossa própria boca, médiuns inspirados do obscuro destino das coisas.
O artista tem pois para com a Natureza o dever de cumprir o seu papel de artista,
isto é, de doente. Deve com um paciente escrúpulo destruir no seu espírito qualquer coisa
que lhe reste de são, de fraterno e de justo. No artista, não só ele próprio está imolado a
Deus, mas a espécie inteira se imola a Deus nele.
Seria interessante inquirir, se fosse possível, qual o fim com que a Natureza cria
estes produtos mórbidos, para que se serve ela de produtos mórbidos na acção da vida
social. (PESSOA, 1999a: 228-229)
Receando a loucura, mas encontrando-se no «estado mental» de querer «ser
extraordinário», Pessoa pretendia «acrescentar consciência a esse desejo», procurando
superar a diferença entre desejar e ser realmente um génio. Para realizar a sua ambição
de se tornar num escritor que «raiava o génio», seria necessário conhecer a psicologia
da criação artística, isto é, a relação entre loucura e genialidade. Assim se compreende
que o jovem Pessoa comparasse a sua própria personalidade com os elementos
constituintes do carácter do génio. Neste sentido, os conhecimentos de psicologia
seriam importantes para o escritor, não apenas devido à curiosidade sobre si próprio e
para avaliar o seu potencial de génio mas, sobretudo, como instrumento de trabalho
literário, indispensável na criação de personagens realistas dos muitos contos e novelas
que pretendia escrever. Inspirado pela psiquiatria positivista, em Setembro de 1907,
pouco depois de a sua avó Dionísia falecer, Pessoa chegou a planear redigir três ensaios
91
Erving Goffman, A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias, Lisboa, Relógio D’Água, 1993.
67
sobre o tema génio e loucura92. Tendo antecedentes familiares de loucura, Pessoa teria
possibilidade de se enquadrar na categoria de «degenerado hereditário», segundo a
classificação de Lombroso, para assim aceder ao estatuto singular do génio93. Mais
tarde, numa carta para José Osório de Oliveira94, Pessoa revelaria a forte influência que
nele exerceu a Degenerescência, de Max Nordau95 (Suplemento Literário, 4859: 3).
Em minha infancia e primeira adolescencia houve para mim, que vivia e era
educado em terras inglesas, um livro supremo e involvente – os «Pickwick Papers», de
Dickens; ainda hoje, e por isso, o leio e releio como se não fizesse mais que lembrar.
Em minha segunda adolescencia dominaram meu espírito Shakespeare e Milton,
assim como, acessoriamente, aqueles poetas romanticos ingleses que são sombras
irregulares deles; entre estes foi talvez Shelley aquele com cuja inspiração mais convivi.
No que posso chamar a minha terceira adolescencia, passada aqui em Lisboa,
vivi na atmosfera dos filosofos gregos e alemães, assim como na dos decadentes franceses,
cuja acção me foi subitamente varrida do espirito pela gimnastica sueca e pela leitura da
«Dégénérescence», de Nordau.
Depois disto, todo o livro que leio, seja de prosa ou de verso, de pensamento ou de
emoção, seja um estudo sobre a quarta dimensão ou um romance policial, é, no momento
em que o leio, a única coisa que tenho lido. Todos eles têm uma suprema importancia que
passa no dia seguinte.
Esta resposta é, absolutamente sincera. Se ha nela, aparemente, qualquer coisa
de paradoxo, o paradoxo não é meu: sou eu. (Suplemento
Literário, 4859: 3)
92
Depois de ter esboçado um «Ensaio Sobre Pascal», em Setembro de 1907, Pessoa propunha-se escrever
três outros ensaios: «Essay on Genius», «Essay on Disease» e «Essay on Madness» (caderno de notas
E3/144T-45, espólio Fernando Pessoa, Biblioteca Nacional de Portugal).
93
«Hérédité du génie. – Suivant Galton et Ribot, l’hérédité exerce très souvent une grande influence sur
le génie, principalement dans l’art musical qui donne un contingent si considérable à la folie»
(LOMBROSO, 1889 : 180).
94
José Osório de Castro e Oliveira (1900-1964), natural de Setúbal, era filho de Ana de Castro Osório
(1872-1935) e de Paulino de Oliveira (1864-1914). Em 1922, publicou o seu primeiro ensaio sobre
Oliveira Martins e Eça de Queiroz. Foi redactor da revista Descobrimento, fundada pelo seu irmão, João
de Castro Osório (1899-1970) (MARTINS, 2008: 562).
95
Na biblioteca pessoal de Fernando Pessoa encontram-se cinco obras de Nordau: Vus du Dehors: essai
de critique scientifique et philosophique sur quelques auteurs français contemporains, traduit de
l’allemand par Auguste Dietrich, Paris, Félix Alcan, 1903; On Art and Artists, translated by W. F.
Harvey, London, T. Ficher Unwin, MCMVII; Paradoxes Sociologiques, traduit de l’allemand par
Auguste Dietrich, cinquième édition, Paris, Félix Alcan, 1907; Paradoxes Psychologiques, traduit de
l’allemand par Auguste Dietrich, septième édition, Paris, Félix Alcan, 1911 e Psycho-Physiologie du
Génie et du Talent, traduit de l’allemand par Auguste Dietrich, cinquième édition, Paris, Félix Alcan,
1911. Curiosamente, na biblioteca de Pessoa não existe a obra que celebrizou Nordau, a qual poderia ter
lido na Biblioteca Nacional, onde existem três edições: a segunda (1894), a quinta (1899) e a sétima
(1907) edição de Dégénérescence, Tome I: Fin de Siècle - Le mysticisme e Tome II: L’Egotisme - Le
Realisme - Le Vingtième Siècle.
68
III.2.4. Literatura e alienação em Portugal
Num livro intitulado A Paranoia: ensaio pathogenico sobre os delirios
systematisados, publicado em 1898, o notável psiquiatra Júlio de Matos (1857-1923)96
considerava indispensável discutir «a noção de degenerescência, que não é idêntica para
todos os psiquiatras, que não tem o mesmo alcance em todos os livros» (MATTOS, 1898:
115).
Segundo Júlio de Matos, «certos autores, à maneira de Mendel, só consideram
degenerados aqueles que, pela presença de estigmas físicos de uma extrema decadência,
profundamente se afastam do tipo humano comum, outros há que, seguindo a tradição
de Morel, descobrem a degenerescência onde quer que surjam indícios de uma
constitucional desarmonia de funções psíquicas, de um originário desequilíbrio mental,
ainda quando compatível com a vida colectiva e mesmo com parciais superioridades de
entendimento». Quanto à etiologia, certos psiquiatras atribuiriam a degenerescência
exclusivamente à hereditariedade, enquanto, para outros, na sua origem estariam as
doenças infantis, as do feto, ou ainda «o estado mental dos pais no acto da
procriação»97. Contudo, para Júlio de Matos, a hereditariedade seria «a causa por
excelência de todas as doenças mentais» e não apenas da degenerescência. Desta forma,
o psiquiatra critica Morel pelo facto de ter introduzido «abusivamente a noção de
doença no conceito de degenerescência», pois na sua opinião, «uma anomalia de ordem
psíquica ou moral pode tanto desvanecer-se nos descendentes como transmitir-se e
acentuar-se». Segundo Júlio de Matos, todas estas opiniões contraditórias contribuiriam
96
Júlio Xavier de Matos nasceu em 1857 e licenciou-se na Escola Médico-Cirúrgica do Porto em 1880.
Iniciou a sua actividade clínica no Hospital de Alienados do Conde de Ferreira, do qual se tornou director
em 1890. Foi professor de psiquiatria na Faculdade de Medicina do Porto mas, em 1911, foi nomeado
director do Hospital Miguel Bombarda e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa,
da qual também foi reitor. O Dr. Júlio de Matos foi sócio da Academia das Ciências, da Société MédicoPsychologique de Paris, da Société Clinique de Médicine Mentale, e membro do Conselho Médico-Legal,
tendo publicado uma obra considerável: Manual das Doenças Mentais (1884), A Loucura: estudos
clínicos e médico-legais (1889), A Paranóia (1898), Os Alienados nos Tribunais, 3 vol. (1902, 1903,
1907), Assistence aux Aliénés (1903) e Amnésia Visual (1906).
97
Em Le Suicide: étude de sociologie, Paris, Félix Alcan, 1897, Durkheim demonstrou como a «lei da
hereditariedade homócrona não tem aqui cabimento», aparentemente, concordando com a tese de Max
Nordau sobre as causas sociais da loucura: «De facto, para se ter o direito de sustentar que uma afecção é
hereditária, à falta de prova peremptória que consiste em ver o germe no feto ou no recém-nascido, seria
pelo menos necessário provar que ela se produz frequentemente nas crianças de pouca idade. Aqui está a
razão pela qual se fez da hereditariedade a causa fundamental dessa loucura especial que se manifesta
logo na primeira infância e a que por isso mesmo se chamou loucura hereditária. […] Além do mais, nada
nos leva a crer que estes factos extraordinários possam ser atribuídos à hereditariedade. Com efeito, é
preciso não esquecer que também a criança está colocada sob a acção das causas sociais e que estas
podem ser suficientes para determinar o seu suicídio. O que prova a influência destas, até neste caso, é o
facto de os suicídios de crianças variarem segundo o meio social. Elas não são em parte alguma tão
numerosas como nas grandes cidades» (DURKHEIM, 2007: 88-90).
69
para acentuar o «carácter eminentemente obscuro e vago» da noção de degenerescência
(MATTOS, 1898: 169-170).
Faz dó vêr um homem de genio a debater-se contra phantasmas; e mais entristece
reconhecer que os seus erros se transmitiram até nós, reapparecendo em trabalhos
contemporaneos, como os de Magnan.
Quem não vê que os iniciaes desvios de typo normal, qualquer que elle seja,
podem, por condições imprevistas de cruzamento, progredir ou attenuar-se? E, sendo
assim, quem não vê tambem que uma anomalia de ordem psychica ou moral póde tanto
desvanecer-se nos descendentes como transmittir-se e accentuar-se até á monstruosidade?
O proprio Morel, reconhecendo a tendencia da natureza á reconstituição do typo especifico
normal, admitiu a regeneração ao lado da degenerescencia. (MATTOS, 1898: 178-179)
Apenas dois anos após a publicação de A Paranoia, o médico e escritor Júlio
Dantas (1876-1962)98 publicou a sua dissertação de licenciatura em medicina, na Escola
Médico-Cirúrgica de Lisboa, intitulada Pintores e Poetas de Rilhafolles, «onde
naturalmente se fundem a arte e a psiquiatria». O autor analisou a «arte de hospital»,
destacando o interesse do seu estudo «para a crítica geral da arte sã» e para o
diagnóstico de «certas formas de loucura, especialmente nos delírios sistematizados»
(DANTAS, 1900: 1-5). O livro revela influências de Lombroso e de Nordau, para quem
«uma cultura exclusivamente estético-literária é também a pior preparação imaginável
para reconhecer a natureza patológica das obras de degenerados» (NORDAU, 1894: VI).
Júlio Dantas retoma a questão levantada por Nordau, considerando que a crítica não
seria competente para distinguir a arte patológica das verdadeiras obras artísticas, pois
«as viciações que ferem a arte do louco aparecem por igual na literatura e na arte
consagrada» (DANTAS, 1900: 47). Desta forma, para que «a educação de um crítico de
arte assente sobre bases sólidas, é preciso partir da estranha e monstruosa arte dos
manicómios para a arte oficialmente cotada» (DANTAS, 1900: 3). Segundo Júlio Dantas,
«o que resulta de tudo isto, brilhantemente, é o admirável poder de expansão da
medicina que, pela psiquiatria, tende a invadir todos os ramos da mentalidade humana».
98
Licenciado em medicina em 1900 e médico do exército a partir de 1902, Júlio Dantas colaborou
regularmente na imprensa, vindo a conhecer grande sucesso como escritor e dramaturgo. Foi deputado em
1905, director do Conservatório Nacional e presidente da Academia das Ciências de Lisboa a partir de
1922. Com extensa obra literária publicada, sobretudo teatral, em 1925 foi fundador e presidente da
Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses. Nomeado ministro da instrução pública em
1920, e dos negócios estrangeiros em 1921 e 1923. Presidiu à Comissão Executiva das Comemorações
dos Centenários de 1938 a 1940, sendo nomeado embaixador no Brasil em 1949.
70
Para o psiquiatra, o papel do crítico estaria intimamente ligado à medicina,
considerando que a literatura, inútil para o antigo físico, seria um poderoso instrumento
nas mãos do médico moderno. «O estudo das manifestações de arte, ou antes, dos
documentos escritos e picturais que nos dão os manicómios, será a gramática do crítico
profissional, quando a crítica, por melhor armada, servir para alguma coisa nesta terra
de inúteis e de bonifrates» (DANTAS, 1900: 4).
A mentalidade paranoica, com o seu colorido de anachronismo, de ausência de critica, de
egocentricidade, forma o fundo incontestado de grande numero de talentos. É necessário,
por conseguinte, ensinar a critica quaes as viciações caracteristicas que a paranoia imprime
á obra d’arte, para que as saiba procurar, para que saiba observal-as, para que saiba
distinguir, por exemplo, a originalidade sã do genio, da extravagância poiética,
manifestamente insana, do paranóico reformatorio. Ha casos de differenciação difficil e
delicada, bem entendido: mas quem nos diz que um constante progresso de analyse e uma
pesquiza constante da arte manicomial nos não permittirão amanhã, diante d’um quadro
suspenso na cimalha d’um museu e a despeito das suas brilhantes qualidades de execução,
diagnosticar a invalidade psychica do pintor? O caso é tanto mais interessante, quanto é
certo que, muitas vezes, as viciações pathologicas, apenas sensiveis para o psychiatra,
constituem exactamente, para o vulgo profano e para a critica leiga, as mais luminosas e
impressivas qualidades da obra e a face por que ella mais se impõe. De resto, não é para
extranhar o erro, dada a natural receptividade da grande maioria tarada das multidões
para a extravagancia, para a monstruosidade, para o brilho todo exterior da arte que
degenéra. (DANTAS, 1900: 13-14)
Na perspectiva de Júlio Dantas, seria pela «decadência artística» que se devia
aferir «o estado de dissolução duma raça ou dum povo. No início das psicoses orgânicas
são os sentimentos estéticos os primeiros que desaparecem. Em ponto grande, dá-se o
mesmo com as raças: é pela arte que elas principiam a morrer» (DANTAS, 1900: 15).
Depois de apresentar alguns casos exemplares de artistas e escritores internados no
hospital de Rilhafoles, Júlio Dantas nomeia as principais características da arte
manicomial: anacronismo e regressão, simbolismo e alegoria, simetria, cromofilia, autoreprodução somática, onomatopoese e neologismo, incoerência, erro egocêntrico e
viciações epilépticas. O psiquiatra considerava que algumas destas características da
arte do louco transpareciam na escrita, sobretudo, dos «poetas menores» e decadentes,
«evidentemente, criaturas que degeneram». Tais «figuras da dissolução» seriam
71
facilmente reconhecíveis pelos stigmata99, como a «assimetria, a mandíbula em galocha,
os dentes irregulares», os septos nasais oblíquos, as orelhas «em asa de fogareiro», a
face glabra ou «os crânios plagiocéfalos, oxicéfalos, acrocéfalos». À semelhança de
Nordau, para Júlio Dantas seria «a arte decadente a que mais pontos de contacto oferece
com a arte manicomial», considerando que os poetas que cultivam essa postura
«fazendo a crítica dos seus próprios livros», mostrariam abertamente a sua «mentalidade
paranóica». O psiquiatra descrevia assim a sintomatologia destes escritores:
«exagerados, egoístas dentro da sua lírica, referindo o mundo circunlatente à sua pessoa
escalavrada, incoerentes a ponto de nos darem rosários de palavras musicais ou
crómicas sem construção sintáxica, vaidosos como fêmeas, mergulhados num
misticismo untuoso onde há toques sexuais». Contudo, não seriam apenas os pequenos
escritores que mostravam sintomas de «paranóia» pois, segundo Júlio Dantas, alguns
dos nossos «palavrosos e balofos» escrevinhadores, «oficialmente sagrados», também
apresentavam sintomas de degenerescência (DANTAS, 1900: 48-49).
Alguns dos nossos poetae minores são, evidentemente, creaturas que degeneraram.
A estygmatisação somatica, as heranças morbidas, o anachronismo, a egocentricidade, a
ausencia de critica, reunem-se ás vezes nas mesmas figuras da Dissolução dando o typo do
paranoico indifferente. As mascaras feridas de asymetria, a mandibula em galocha, os
dentes irregulares, mal plantados e roidos como réstos de ruína romana, os septos nasaes
obliquos, as orelhas mal modeladas, em aza de fogareiro, os craneos plagiocephalos,
oxycephalos, acrocephalos, a face glabra e sacerdotal, emfim, tudo se conspira contra o
nephelibata para o tornar presa do alienista. A vultu vitium, diziam os latinos: il ciuffo e nel
ceffo, diz o proverbio toscano; Deus que o marcou algum defeito lhe encontrou, dizemos nós.
Pessoaes exaggerados, egoístas dentro da sua lirica, referindo o mundo circumlatente á sua
pessôa escalavrada, incoherentes a ponto de nos darem rosarios de palavras musicaes ou
chrómicas sem construção syntaxica, vaidosos como femeas, mergulhados n’um mysticismo
unctuoso onde ha toques sexuaes, sensualmente beatos como aquelle frade do agiologío
«que pendurava relicarios d’oiro nos bicos dos peitos», cultivando a attitude e fazendo a
critica dos seus proprios livros, os poetae minores trahem, abertamente, a mentalidade
99
Erving Goffman problematizou sociologicamente o conceito de estigma da seguinte forma: «Os gregos,
que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma para se referirem a sinais
corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status
moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o
portador era um escravo, um criminoso ou traidor – uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia
ser evitada, especialmente em lugares públicos. Mais tarde, na Era Cristã, dois níveis de metáfora foram
acrescentados ao termo: o primeiro deles referia-se a sinais corporais de graça divina que tomavam a
forma de flores em erupção sobre a pele; o segundo, uma alusão médica a essa alusão religiosa, referia-se
a sinais corporais de distúrbio físico» (GOFFMAN, 1982: 11).
72
paranoica. Mas não são só elles. Escrevinhadores ha, officialmente sagrados, com a corôa
de loiros a bolir-lhe no craneosinho agudo, palavrosos e balofos, fazendo artigos
illuminados d’uma falsa tinta erudita, córneos, angulosos, eriçados, torcidos como as
figuras caricaturaes de Jossot, – artigos onde não ha uma idéa, áridos, seccos, e d’onde
punge a vaidade dos mattoides, profundamente cómica, profundamente grotesca!
(DANTAS, 1900: 47-49)
Júlio Dantas discordaria de Lombroso, para quem «o génio é sempre uma
neurose e frequentemente uma verdadeira loucura», pois o «preconceito leigo de que
não há grande poeta ou grande pintor que não tenha “aduela de menos” poderia dar
margem a que se esperassem preciosidades da arte de Rilhafoles. Puro engano. O
grande valor do documento do louco é exclusivamente psiquiátrico. O valor estético é
mínimo ou nulo» (DANTAS, 1900: 8). Segundo o psiquiatra, apenas depois de internados
alguns paranóicos revelavam a sua tendência artística, confiando ingenuamente ao papel
os seus delírios, devido à sua forte necessidade de exteriorização. Os delírios inventivos,
muito comuns nos paranóicos, explicariam a profusão de desenhos com planos de
«balões dirigíveis» e «motores eléctricos» observados pelo psiquiatra em Rilhafoles.
Por outro lado, os megalómanos acometidos de delírio nobiliárquico teriam tendência a
desenhar «estranhas figurações heráldicas». Na opinião de Júlio Dantas, o conceito
antropológico de paranóia, tal como definido pela escola psiquiátrica italiana, permitiria
incluir nesta categoria, não apenas os doentes mentais internados, mas também, do lado
de fora dos manicómios, os revolucionários, os anarquistas, os semi-loucos e os santos.
Enfim, toda a «galeria de figuras de cera da literatura e da arte decadente, a que é de uso
chamar-se simbolistas, místicos, neogóticos, bizantinos, pré-rafaelitas e vários outros
nomes da gíria bárbara, criados com pior ou melhor fortuna pelos pseudo-génios da
dissolução» (DANTAS, 1900: 12).
III.2.5. A gramática industrial da psiquiatria positivista
Ao abordarem o tema do «génio e alienação», Boltanski e Thévenot invocam o
conceito de «cidadão capaz», desenvolvido pelo inglês Francis Galton (1822-1911), como
exemplo da grandeza ilegítima, na medida em que impõe uma escala de «valor cívico»
que não respeita o princípio da comum humanidade. O conceito de «cidadão capaz»,
usado por Galton, pressupõe diferenças biológicas não contempladas no modelo teórico
de Boltanski e Thévenot, no qual todas as pessoas dispõem de competências e
73
capacidades equivalentes. Neste sentido, eles criticam o eugenismo de Galton, patente
na sua obra Hereditary Genius100, na qual o autor analisa, tal como Lombroso, homens
de génio, artistas e escritores (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 104-105). Na perspectiva
de Boltanski e Thévenot, ao comparar homens excepcionais a loucos, Lombroso
colocou ao mesmo nível pessoas cujo «valor eugénico» é o mais alto e o mais baixo na
escala elaborada por Galton. Desta forma, as teorias eugénicas foram desenvolvidas por
referência a um «homem são» ou, para Fernando Pessoa, «um tipo normal que não
existe», pelo qual o ser humano é aferido e analisado segundo uma escala de «valor
eugénico», instituindo assim uma espécie de ordem industrial perversa. «A ordem
eugénica pode com efeito ser vista como uma ordem industrial degenerada, na medida
em que a produção de homens e a produtividade associada são consideradas nos mesmo
termos que os objectos manufacturados» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 105).
Segundo Boltanski e Thévenot, os grandes do mundo inspirado «escapam às
medidas industriais, à razão, à determinação, às certezas da técnica e afastam-se do
comum das coisas para “tomarem atitudes excêntricas”», inusuais ou insólitas. Com
efeito, as pessoas inspiradas não se podem definir nos mesmos termos que, noutra
lógica, as depreciam, classificando-as como irracionais. Pelo contrário, no mundo
inspirado é grande o ser singular e original, «particularmente, o que escapa à medida,
sobretudo nas suas formas industriais». Neste sentido, Boltanski e Thévenot afirmam
que os grandes do mundo inspirado são frequentemente desprezados por serem pobres,
dependentes ou inúteis. Contudo, é precisamente o seu estado miserável que favorece o
acesso às figuras harmoniosas desse mundo. Tal é o caso dos ingénuos, dos loucos, dos
poetas e dos artistas, que «sabem reconhecer e acolher o que é misterioso, imaginativo,
original, indizível, inominável, etéreo, ou invisível», quando tocados pelo desejo de
criar, pela inquietação, pela dúvida ou pelo sofrimento causado pela inspiração101
100
Francis Galton, Hereditary Genius: an inquiry into its laws and consequences, second edition,
London, Macmillan & Co., 1892. First edition, 1869.
101
Fernando Pessoa manifestou recorrentemente o seu sofrimento: Numa carta para a sua tia «Anica», de
24 de Junho de 1916, escreveu: «Já sei o bastante das ciências ocultas para reconhecer que estão sendo
acordados em mim os sentidos chamados superiores para um fim qualquer que o Mestre desconhecido,
que assim me vai iniciando, ao impor-me essa existência superior, me vai dar um sofrimento muito maior
do que até aqui tenho tido, e aquele desgosto profundo de tudo que vem com a aquisição destas altas
faculdades. Além disso, já o próprio alvorecer dessas faculdades é acompanhado duma misteriosa
sensação de isolamento e de abandono que enche de amargura até ao fundo da alma». Em 4 de Setembro
do mesmo ano, noutra carta, esta para Armando Côrtes Rodrigues, Pessoa escreveu: «Não me sobra o
tempo para lhe relatar por que gradações de mim-e-as-coisas se me infiltrou este mal-de-viver: uma grave
doença de minha mãe, que a levou até à possibilidade de morte, mas de que hoje, felizmente, parece estar
de todo salva; o suicídio do Sá-Carneiro; a loucura do Cunha Dias» (PESSOA, 1999a: 218-220). Noutra
74
(BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 201). Desta forma, o misticismo dos poetas, denunciado
por Nordau a partir do mundo industrial, é justificado porque «o verdadeiro mundo não
é directamente acessível aos sentidos», manifestando-se através de sinais que revelam a
sua existência sem contudo o mostrarem. «Esses sinais, veiculados pela palavra ou pela
imagem, assumem a forma da coincidência, da analogia ou da metáfora» e, sendo a
inspiração um «caminho mal definido, cheio de desvios, feito de encontros e mudanças
de direcção», revela forte tensão com as certezas, a previsibilidade e a rotina
características do mundo industrial (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 204-205). Neste
sentido, o sofrimento da inspiração, referido por Boltanski e Thévenot, foi
admiravelmente descrito por Fernando Pessoa, designadamente no seu conhecido
poema «Autopsicografia»:
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que êles não têm.
E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
FERNANDO PESSOA
(PRESENÇA 36: 9)
carta ainda, de 1 de Março de 1920, para Ofélia Queiroz, o escritor perguntava: «Por que não é franca
comigo? Que empenho tem em fazer sofrer quem não lhe fez mal – nem a si, nem a ninguém –, a quem
tem por peso e dor bastante a própria vida isolada e triste [?]» (PESSOA, 1999a: 313).
75
III.3. A Renascença Portuguesa e o saudosismo de Teixeira de Pascoaes
Na primavera de 1871, um grupo de jovens intelectuais organizou, em Lisboa,
uma série de colóquios que ficou conhecida por «conferências do casino», nas quais
participaram Antero de Quental (1842-1891), Eça de Queiroz (1845-1900), Oliveira
Martins (1845-1894) e outros. Este grupo de jovens foi depois designado «geração de
70». Em 24 de Maio, Antero de Quental, que tinha proposto a realização dos colóquios,
iniciou os debates com a célebre conferência Causas da Decadência dos Povos
Peninsulares e, em 19 de Junho, Francisco Adolfo Coelho apresentou A Questão do
Ensino. Das dez conferências previstas apenas metade foi realizada, sendo as restantes
proibidas pelas autoridades, o que gerou intensa polémica no meio intelectual. Estas
conferências não foram certamente alheias à formação, em 1870, do Directório
Republicano Democrático, organização política que deu origem ao Partido Republicano
Português, criado em 1876. O regime monárquico terminaria com a revolução
republicana de 5 de Outubro de 1910, após a greve académica de 1907, o duplo
regicídio do rei Carlos I e do príncipe herdeiro, em 28 de Janeiro de 1908, a que se
seguiu a vitória dos republicanos em Lisboa, nas eleições municipais, em Outubro do
mesmo ano.
Com a revolução de 5 de Outubro de 1910, renascia a esperança no futuro de
Portugal. A Constituição Política da República Portuguesa, promulgada em 1911, foi
então um dos principais instrumentos políticos das mudanças sociais e culturais
preconizadas pelos republicanos, consagrando as liberdades de expressão, reunião e
associação102. Foi neste contexto de liberdade e esperança que surgiu a Renascença
Portuguesa, associação cultural e patriótica, sediada no Porto, que reuniu alguns
intelectuais, escritores e artistas republicanos, sob a direcção do poeta Teixeira de
Pascoaes103 (1877-1952). A Águia: revista mensal de literatura, arte, ciência, filosofia e
crítica social104, tornou-se então o «Órgão da Renascença Portuguesa», associação que
102
A Constituição Política da República Portuguesa: promulgada por decreto de 21 de Agosto de 1911,
determinava, no artigo 3.º, número 13.º: «A expressão do pensamento, seja qual for a sua forma, é
completamente livre, sem dependência de caução, censura ou autorização prévia» e, no 14.º, «O direito de
reunião e associação é livre».
103
Pseudónimo de Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, natural de Amarante. Oriundo de uma
família aristocrática, cursou Direito na Universidade de Coimbra e exerceu advocacia no Porto. Em 1911
foi nomeado magistrado em Amarante, cargo que abandonou dois anos depois, para se dedicar à
literatura.
104
O primeiro número da revista A Águia foi publicado no Porto, em 1 de Dezembro de 1910, tendo como
«director e proprietário» o jornalista republicano Álvaro Pinto (1889-1957) e Tércio de Miranda como
76
introduziu em Portugal o movimento das universidades populares, funcionando também
como editora105. Esta associação propunha-se criar «um novo Portugal, dentro do seu
carácter, das suas qualidades íntimas e originais que lhe dêem relevo e destaque,
fisionomia própria entre os outros povos» (PASCOAES, 1912a: 1). Neste sentido, seria
fundamental estimular o espírito patriótico nacional, dar nova vida à «alma portuguesa»,
fortemente afectada pelo ultimato inglês de 1890, pela crise finissecular e pela lenta
agonia do regime monárquico.
Neste momento genesico e cahotico da nossa Patria, é necessario que todas as
forças reconstrutivas se organisem e trabalhem, para que ela atinja rapidamente a sonhada
e desejada harmonia.
O fim d’esta Revista, como orgão da «Renascença Portuguesa» será, portanto, dar
um sentido ás energias intelectuaes que a nossa Raça possue; isto é, colocá-las em condições
de se tornarem fecundas, de puderem realisar o ideal que, n’este momento histórico,
abrasa todas as almas sinceramente portuguesas: – Crear um novo Portugal, ou melhor
resuscitar a Patria Portuguesa, arrancá-la do tumulo onde a sepultaram alguns séculos de
escuridade fisica e moral, em que os corpos definharam e as almas amorteceram.
Por isso, a Sociedade a que me referi, se intitula «Renascença Portuguesa». Mas
não imagine o leitor que a palavra Renascença significa simples regresso ao Passado. Não!
Renascer é regressar ás fontes originarias da vida, mas para crear uma nova vida.
(PASCOAES, 1912a: 1)
Segundo o poeta Teixeira de Pascoaes, a Renascença Portuguesa procurava «dar
um sentido às energias intelectuais que a nossa raça possui», usando como principal
instrumento da sua acção a revista A Águia. Nessa época de renovação política, social e
cultural, Pascoaes assumiu a direcção da associação, imprimindo uma orientação que
visava mobilizar os intelectuais, sobretudo através da literatura, com destaque para a
poesia. Entre o simbolismo e o decadentismo que marcaram a literatura no final do
século XIX e as novas correntes artísticas do século XX, que se manifestavam já na
Europa, o poeta propunha uma solução estética que servisse os ideais patrióticos da
«editor e administrador». Esta primeira série, com periodicidade quinzenal, publicou dez números, de
Dezembro de 1910 a Julho de 1911. A segunda série de A Águia, com periodicidade mensal, surgiu em
Janeiro de 1912, «propriedade de “A Renascença Portuguesa”», tendo por «director literário – Dr.
Teixeira de Pascoais», figurando Álvaro Pinto como «secretário da redacção, editor e administrador».
Acompanhando a República ao longo de vinte anos, A Águia só viria a desaparecer em 1932.
105
A Renascença Portuguesa teve como primeiro presidente o poeta Guerra Junqueiro (1850-1923),
membro do Partido Republicano Português, que tivera um papel preponderante na controvérsia que
ocorreu aquando do ultimato inglês, mas em 1912 Teixeira de Pascoes era já o dirigente da associação,
imprimindo a sua orientação à revista A Águia.
77
República, defendendo a literatura nacional dos estrangeirismos, sobretudo importados
de Paris. Neste sentido, Pascoaes procurava uma característica cultural de autenticidade
que diferenciasse a «raça portuguesa» da «massa amorfa da Europa», tendo encontrado
na saudade essa marca distintiva da «alma lusitana» (PASCOAES, 1912a: 2). Com o seu
saudosismo, o poeta procurava harmonizar a tradição, as raízes culturais de Portugal,
com a modernidade que a República representava. Contudo, a personalização da
Renascença Portuguesa, em torno da figura de Teixeira de Pascoaes, custaria algumas
inimizades e dissidências, designadamente de Raul Proença, António Sérgio e Fernando
Pessoa.
A verdade é que o Saudosismo representa o culto da alma portuguesa no que ela
encerra de novo e, de nova emoção poetica, em virtude da sua ascendencia étnica. Sendo
ela a perfeita resultante espiritual da fusão dos sangues semita e romano creadores do
christianismo e paganismo, contem fatalmente uma nova concepção da vida, o que é para
nós, portugueses, inexgotavel fonte de belêsa divina, de religiosa arte puramente lusitana,
tão precisa á independencia moral da nossa Patria. A alma lusitana que se revela como
síntese do pincipio sensual e do principio espiritual pela sua creação da «Saudade», que é a
velha Lembrança gerando o novo Desejo, torna-se assim a propria alma da nova
«Renascença» respondendo, em linguagem portuguesa, a este despertar da alma que se nota
nos mais adeantados povos europeus, e é o grande sinal dos tempos…
Ahi está o que é o «Saudosismo», nada incompativel com o moderno espírito
europeu, mas antes acompanhando-o, embora sem perder o seu espírito inconfundível.
(PASCOAES, 1912a: 101)
III.4. A sociologia de Fernando Pessoa
Em 1912, a revista A Águia, «Órgão da Renascença Portuguesa», publicou o
artigo de Fernando Pessoa,
«A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente
Considerada», ao qual se seguiram «Reincidindo…» e «A Nova Poesia Portuguesa no
Seu Aspecto Psicológico»106. Com estes textos, Pessoa emerge na república das letras,
curiosamente, não como escritor, mas como crítico literário, em sintonia com o
saudosismo de Teixeira de Pascoaes, os ideais republicanos e o espírito patriótico da
Renascença Portuguesa, procurando assim contribuir para a renovação da cultura
106
«A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada» in A Águia, n.º 4 (2.ª série), Abril de
1912; «Reincidindo…» in A Águia, n.º 5 (2.ª série), Maio de 1912; e «A Nova Poesia Portuguesa no Seu
Aspecto Psicológico» in A Águia, n.º 9, 11 e 12 (2.ª série), Setembro, Novembro e Dezembro de 1912.
78
nacional. Neste contexto, o jovem crítico literário procurava engrandecer a «nova poesia
portuguesa», desenvolvendo uma análise literária, para mostrar «em termos de
compreensibilidade lógica o valor e a significação, perante a sociologia, desse
movimento literário e artístico» (PESSOA, 1912a: 101). Nesta perspectiva sociológica,
Fernando Pessoa efectuou uma análise histórica comparativa, não apenas de épocas
anteriores da literatura nacional, mas sobretudo no contexto europeu, particularmente
das literaturas inglesa e francesa.
Um livro da biblioteca pessoal de Fernando Pessoa chama a atenção pela
semelhança do título com o do artigo «A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente
Considerada». Trata-se da obra póstuma L’Art au Point de Vue Sociologique, de JeanMarie Guyau (1854-1888), que na época gozava de grande reconhecimento107, o qual,
aparentemente, inspirou Pessoa. Apesar de Guyau ter sido quase esquecido, foi
influenciado, entre outros, por Herbert Spencer e influenciou directamente grandes
pensadores como Friedrich Nietzsche e Piotr Kropotkin, através da sua obra
fundamental, Esquisse d'une Morale Sans Obligation ni Sanction
108
. Guyau inspirou
também Émile Durkheim, que dele recolheu os conceitos sociológicos de anomia e de
solidariedade social, e ainda a perspectiva moral de que a religião, tal como a arte, são
factos sociais109. Guyau sublinhou a importância social da arte e a sua função
intrinsecamente moral, «fundada nas leis da simpatia e da transmissão das emoções», o
que lhe permitiria «seja fazer avançar, seja fazer recuar a sociedade real em que a sua
acção se exerce, consoante ela a faz simpatizar pela imaginação com uma sociedade
melhor ou pior, idealmente representada». Segundo Guyau, a natureza eminentemente
social da arte manifesta-se em três níveis: na sua origem, na sua finalidade ou função e
na sua essência ou coerência interna. Neste sentido, a arte seria influenciada pela
107
Jean-Marie Guyau, L’Art au Point de Vue Sociologique, Paris, Félix Alcan, 1889. Na biblioteca
pessoal de Fernando Pessoa existe um exemplar da oitava edição deste livro, publicada em 1909, que em
1923 contava já treze edições. Recentemente renasceu o interesse por esta obra de Guyau, que teve
reedições em 2001 e 2010.
108
Jean-Marie Guyau, Esquisse d'une Morale Sans Obligation ni Sanction, Paris, Félix Alcan, 1885. Em
1921 este livro contava já dezasseis edições.
109
Sobre a influência de Guyau em Durkheim, ver a obra de Jean-Marie Guyau, L’Irréligion de l’Avenir:
étude sociologique, Paris, Félix Alcan, 1887, e a sua recensão por Émile Durkheim: «Guyau. –
L’Irréligion de l’avenir, étude de sociologie» in Revue Philosophique de la France et de l'Étranger,
XXIII, 1897, pp. 299-311. Consultar sobretudo a obra de Jordi Riba, La Morale Anomique de Jean-Marie
Guyau, Paris, L'Harmattan, 1999, bem como o artigo seminal de Marco Orru, «The Ethics of Anomie:
Jean Marie Guyau and Émile Durkheim» in British Journal of Sociology, vol. 34, nr. 4, 1983, pp. 499518; e o de Michael Behrent, «Le débat Guyau-Durkheim sur la théorie sociologique de la religion. Une
nouvelle querelle des universaux?» in Archives de Sciences Sociales des Religions, 142, 2008, pp. 9-26.
79
sociedade, mas exerceria também a sua acção social e moral, promovendo a
solidariedade e a coesão social, pelo que ela constituiria uma forma superior de
sociabilidade, engrandecendo assim a vida intelectual (GUYAU, 1909: 383-384).
III.4.1. A poesia portuguesa sociologicamente considerada
O artigo de Fernando Pessoa, «A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente
Considerada»110, abre o quarto número da segunda série da revista A Águia, publicado
em Abril de 1912. O jovem crítico, que contava então 23 anos de idade, inicia o seu
texto considerando que ao «movimento literário representativo e peculiar da nascente
geração portuguesa tem sido feito pela opinião pública o favor de o não compreender».
No seu discurso jocoso, Pessoa atribui essa incompreensão ao público literário
português, o qual classifica em três categorias: a dos «incompreendedores natos», a dos
«incompreendedores de ocasião» e a que «não tomou ainda consciência de si como o
que realmente é». A primeira categoria, de «incompreendedores natos», parece ter sido
inspirada pelas teorias da degeneração. A segunda categoria, cujo «estado de pseudoalma descritível como sendo de incompreendedores de ocasião», parece inspirada no
conceito hegeliano de alienação. Na opinião de Pessoa, esta categoria seria constituída
pela «bacharelosa espécie educativa, ou por descuidada na manutenção espiritual do
sentimento de raça, ou ainda por sentimentos de desviado e estéril entusiasmo gerados
por absorção na intensa e mesquinha vida política nossa». A terceira categoria, de quem
«não tomou ainda consciência de si», aparenta ter sido inspirada no conceito
durkheimiano de consciência colectiva, ou mesmo na antítese do conceito de alienação,
o conceito marxiano de consciência de classe111. Contudo, neste caso, o crítico não se
refere a qualquer classe social, mas sim a uma elite cultural, «aquela de que são os
novos poetas e literatos e os que os acompanham no obscuro sentimento racial que os
guia». Para Pessoa, esta elite cultural seria vulnerável «porquanto o movimento poético
actual é ainda embrião quanto a tendências, nebulosa quanto a ideias que de si ou de
110
O título do artigo de Pessoa revela, eventualmente, influência de obras fundadoras da sociologia da
literatura, como De la Littérature, considérée dans ses rapports avec les institutions sociales (1800), de
Germaine de Staël, ou L’art au Point de Vue Sociologique (1889), de Jean-Marie Guyau.
111
Amante de paradoxos, oxímoros e epigramas, em 1908, Fernando Pessoa teve a intenção de escrever
uma sátira intitulada The Gospel According to Marx (caderno de notas E3/144I-8, espólio Fernando
Pessoa, Biblioteca Nacional de Portugal). Aliás, a ideia da tomada de «consciência de si como o que
realmente é», não do proletariado mas de uma elite de «novos poetas e literatos e os que os
acompanham», constitui uma caricatura da teoria de Marx, tal como seria O Evangelho Segundo Marx.
80
outras coisas tenha». Nesta perspectiva, a vulnerabilidade desta elite poderia «despertar
pelo ridículo, que a sua obscuridade para os profanos causa, o interesse alegre do
inimigo social». O receio de Pessoa, de ridicularização da «nova poesia portuguesa»
pelos «profanos» viria, aliás, a revelar-se premonitório (PESSOA, 1912a: 101).
Urge que – pondo de parte mysticismos de pensamentos e de expressão, uteis
apenas para despertar pelo ridiculo, que a sua obscuridade para os profanos causa, o
interesse alegre do inimigo social – com raciocinios e cingentes analyses se penetre na
comprehensão do actual movimento poetico portuguez, se pregunte á alma nacional, n’elle
espelhada, o que pretende e a que tende, e se ponha em termos de comprehensibilidade
logica o valor e a significação, perante a sociologia, desse movimento literário e artístico.
(PESSOA, 1912a: 101)
Aparentemente inspirado em Guyau, Fernando Pessoa parte do pressuposto de
que «aquilo a que se chama uma corrente literária deve de algum modo ser
representativo do estado social da época e do país em que aparece», na medida em que a
literatura deriva da consciência social dos escritores de cada sociedade em determinada
época. O crítico coloca então a questão de partida da sua investigação, procurando que
«com raciocínios e cingentes análises se penetre na compreensão do actual movimento
poético português, se pergunte à alma nacional, nele espelhada, o que pretende e a que
tende». Delimitando o seu objecto de estudo ao «movimento literário representativo e
peculiar da nascente geração portuguesa», o crítico define a sua problemática «em
termos de compreensibilidade lógica o valor e a significação, perante a sociologia, desse
movimento literário e artístico». Pessoa estabelece o seu programa de investigação:
«saber se a literatura nos poderá ser um indicador sociológico, se nos pode ser ponteiro
para indicar a que horas da civilização estamos, ou, para falar com clareza, para nos
informar do estado de vitalidade e exuberância de vida em que se encontra uma nação
ou época, para que, pela literatura simplesmente, possamos prever ou concluir o que
espera o país». Neste sentiso, em sintonia com Teixeira de Pacoaes, o crítico associa o
«movimento literário» à «alma nacional», tomando-os como conceitos centrais da sua
análise sociológica (PESSOA, 1912a: 101-102).
Saber pela litteratura as idéas de uma época só pode ter interesse para a posteridade, que
não tem outro meio de a tornar presente ao seu raciocinio. O que nos occupa é saber se a
litteratura nos poderá ser um indicador sociologico, se nos pode ser ponteiro para indicar a
81
que horas da civilização estamos, ou, para falar com clareza, para nos informar do estado
de vitalidade e exuberancia de vida em que se encontra uma nação ou época, para que, pela
litteratura simplesmente, possamos prever ou concluir o que espera o paiz em que essa
litteratura é actual. E é precisamente isto que à priori se não pode imaginar. Reportemon’os, pois, á evidencia analysada dos factos. (PESSOA, 1912a: 102)
Importa sublinhar que Fernando Pessoa desenvolveu um estudo sociológico na
acepção científica do termo, usando a metodologia das ciências sociais, pelo que «A
Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada» merecerá uma análise atenta.
Neste interessante texto, após ter colocado a questão de partida, Pessoa problematiza os
principais conceitos. O «tom», termo que curiosamente se aproxima de dom, é um dos
conceitos utilizados pelo crítico, definindo-o como o «que de comum têm os escritores
de determinado período, e que representa, postas de parte as inevitáveis peculiaridades
individuais, um conceito geral do mundo e da vida, e um modo de exprimir esse
conceito». Neste sentido, o conceito pessoano de «tom» tem paralelo no que Durkheim
designou como consciência colectiva, correspondendo, neste caso, a uma consciência
literária. Para Pessoa, a «vitalidade de uma nação», de uma sociedade em determinado
momento histórico, corresponde à sua «exuberância de alma, isto é, a capacidade de
criar, não já simples ciência, o que é restrito e mecânico, mas novos moldes, novas
ideias gerais». Com esta frase, o crítico antecipava, de certa forma, A Estrutura das
Revoluções Científicas, opondo a «simples ciência, o que é restrito e mecânico», ou
«ciência normal» segundo Thomas Kuhn, a «novos moldes, novas ideias gerais» ou
«novo paradigma científico»112. Pessoa associa a República e as correspondentes
mudanças sociais ao novo paradigma das letras portuguesas, representado pela
emergente corrente literária, cujo «tom» deveria «forçosamente ter raiz» na época e no
«país em que vivem ou em que se integram» os seus escritores. Desta forma, na
perspectiva de Fernando PEssoa, existiria uma forte correlação entre literatura e
sociedade (PESSOA, 1912a: 101-102).
Servir-nos-hão de material para a analyse duas nações apenas – a Inglaterra e a
França; e isto porque, tendo essas uma unidade nacional, uma continuidade de vida e uma
influencia civilizacional accentuada, o problema se limita simplesmente á analyse que
desejamos fazer, sem impor, como imporia o estudo de qualquér nação ou mais complexa,
ou mais affastada no tempo, uma previa analyse differencial. A escassez do material,
112
Thomas Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, Chicago, University of Chicago Press, 1962.
82
porém, importa apenas quando é superficial a analyse; porque, se pour expliquer un brin de
paille il faut démonter tout le systéme de l’univers113, ao raciocinador ideal bastaria, visto
que o systema do universo se acha logicamente contido no brin de paille, analysal-o bem, a
elle brin de paille, para deduzir o systema do universo. (PESSOA, 1912a: 102)
Nem o reduzido espaço de que dispunha na revista A Águia nem a escassez
documental inibiram a análise sociológica de Pessoa. Porém, ao contrário do que se
poderia inferir do texto, no qual refere «deduzir o sistema do universo», o crítico seguiu
uma metodologia indutiva, pois se «o sistema do universo» está contido numa
«palhinha», bastaria analisar bem essa «palhinha» para compreender todo o universo.
Neste sentido, Pessoa esboça uma sucinta análise histórica da literatura europeia em
«períodos nítidos», isto é, em épocas determinadas, designadamente a antiguidade
clássica, a renascença e o período romântico, para inferir a evolução provável da
literatura portuguesa no século XX. Assim, como Talcott Parsons construiu o seu
edifício teórico estrutural-funcionalista com um persistente esquema classificatório de
quatro categorias, que aplicou até à exaustão a sistemas, funções e instituições sociais,
Fernando Pessoa classificou sistematicamente a realidade social em três categorias114.
Desta forma, tal como dividiu os leitores portugueses em três tipos, o crítico considera
também que a «história literária de Inglaterra mostra três períodos distintos»: o
isabelino, que vai desde cerca de 1580 a 1688115, o «neo-clássico», aproximadamente
entre esta data e 1780, e o «moderno», desde então até à data em que Pessoa escreve.
Destes três períodos, Pessoa destaca o primeiro pela sua grandeza, uma época
extremamente criativa para a qual contribuíram os que, na sua opinião, foram os
maiores escritores de língua inglesa: Spenser, Shakespeare e Milton. O segundo período
seria inferior e o terceiro de grandeza intermédia, com autores como Coleridge, Shelley
e Browning, indiscutivelmente grandes, mas que, para Pessoa, não atingiriam a
grandeza dos primeiros (PESSOA, 1912a: 102-103).
113
Frase atribuída ao escritor simbolista francês Henry de Régnier (1864-1936).
114
Em 20 de Março de 1906, Pessoa anotou no seu diário: «Reflexão sobre as Categorias para a minha
projectada Metafísica. Grande satisfação: a solução está muito perto. [,,,] Estabeleci uma classificação das
Categorias em três; grande parte do problema fica assim resolvida. Ainda tenho de determinar as
subdivisões das Categorias» (PESSOA, 2003: 27).
115
Ano da Revolução Gloriosa, em que o parlamento inglês substituiu o último rei católico, Jaime II, pelo
protestante Guilherme III de Orange.
83
III.4.2. História das literaturas inglesa e francesa
Após mostrar que a literatura é fortemente determinada pela sociedade,
Fernando Pessoa analisa as relações entre os períodos literários e as respectivas épocas
históricas. Neste sentido, o período mais grandioso da literatura inglesa seria o
isabelino, culminando na República de Cromwell116, a qual teria proporcionado «ao
mundo moderno um dos grandes princípios civilizacionais», o de «governo popular»
que, na perspectiva de Pessoa, possibilitou mais tarde a «democracia republicana»
instituída pela revolução francesa. O segundo período, «neo-clássico», teria sido inferior
aos outros dois devido ao seu «tom poético», o qual foi, para Pessoa, um tempo
«absolutamente nulo e estéril», em que a «apática» Inglaterra nada criou, visto que o seu
«tom poético» era «aquele, intolerável, que a França do ancien régime derramou pela
Europa de que tinha a hegemonia social». O terceiro período, ou «moderno», teria sido
literária e politicamente de grandeza intermédia, no qual a Inglaterra conseguiu a
hegemonia europeia, mas sem nada ter criado de grandeza «civilizacional» (PESSOA,
1912a: 103).
Analisando a literatura francesa, Fernando Pessoa distingue igualmente três
períodos, embora descoincidentes dos que verificou na literatura inglesa. Um primeiro
período, correspondendo ao ancien régime, teria culminado no reinado de Luís XIV e
terminando nos finais do século XVIII. Para o crítico, o segundo período, designado
«romântico», teve início com a revolução francesa e atingiu o auge na realização do
republicanismo117, extinguindo-se na década de 1870118. Um terceiro período da
literatura francesa, que Pessoa designa «anti-romântico», corresponderia ao último
quartel do século XIX e princípio do século XX. Na análise política que o crítico fez do
primeiro período, correspondendo ao ancien régime, a França conseguiu a hegemonia
europeia, criando a sua própria grandeza, sem contudo nada ter criado para a
civilização. Segundo Pessoa, o período «romântico» foi literariamente o mais intenso,
durante o qual a França revolucionária teria criado «para a civilização a ideia de
116
Após a guerra civil e a execução do rei Carlos I, foi instaurada em Inglaterra uma República Puritana
ou Commonwealth of England (1649-1660), na qual se notabilizou Oliver Cromwell (1599-1658) como
Lorde Protector.
117
A revolução francesa foi uma série de acontecimentos políticos e sociais ocorridos em França, a partir
da abertura dos Estados Gerais, em 5 de Maio de 1789, e que marcaram a transição da monarquia
absoluta do ancien régime para a I República.
118
Instauração da III República Francesa, em 4 de Setembro de 1870, a qual se prolongou até à invasão
alemã, em 1940.
84
democracia republicana». Finalmente, no terceiro período, a partir de 1870, a França
nada criou «para a civilização, nem mesmo a sua própria grandeza». Este último
período, «anti-romântico», teria sido o menos criativo, no qual a França, apática e
displicentemente, tal como a Inglaterra no seu segundo período, teria decaído em «valor
europeu» (PESSOA, 1912a: 103-104).
As correntes litterarias do segundo periodo inglez e o terceiro francez – aquelles periodos
em que essas nações nada crearam, nem para os outros nem para si – oferecem como mais
importante facto espiritual a desnacionalisação da litteratura; visto que a litteratura ingleza
do seculo dezoito é vazada em moldes francezes e a litteratura franceza de 1880 para cá é
tudo menos franceza de espirito. Assim, para dar o unico exemplo que o espaço pode
admittir, o symbolismo, essencialmente confuso, lyrico e religioso é absolutamente
contrario ao espirito lucido, rhetorico e sceptico do povo francez. – As correntes litterarias
do terceiro periodo inglez e primeiro francez – as dos periodos em que os paizes crearam a
sua propria grandeza e hegemonia social, mas, de civilizacional, nada – mostram um
equilibrio entre o espirito nacional e a influencia estrangeira: assim, a influencia allemã é
patente mas não dominante no romantismo inglez e a influencia da antiguidade tão
importante como a do espirito nacional na litteratura dos seculos dezassete e dezoito em
França. – Finalmente, nos periodos creadores – o primeiro inglez e segundo francez –
temos na litteratura o espirito nacional patente e dominante, absorvendo e absolutamente
eliminando qualquer influência estrangeira que haja. Assim, nada mais francez do que
Victor Hugo com a sua rhetorica, a sua pseudo-profundeza, a sua lucidez epigrammatica
em pleno seio do lyrismo, onde não está bem. E Spenser, Shakespeare e Milton – mas
Spenser e Shakespeare mais do que Milton – são ingleses, inconfundivelmente. (PESSOA,
1912a: 105)
Após esta breve análise sociológica, Fernando Pessoa considerou «evidente a
analogia, quanto a valor civilizacional, e, portanto, a vitalidade nacional», entre o
primeiro período inglês e o segundo francês; entre o segundo inglês e o terceiro francês,
e entre o terceiro período inglês e o primeiro francês. O crítico julgou ainda tão perfeita
«a analogia social e civilizacional como a analogia literária», pelo que a literatura
inglesa teria atingido maior grandeza no seu primeiro período, enquanto a francesa
apenas a atingiria no segundo. Os períodos de menor criatividade literária teriam sido o
segundo inglês e o terceiro francês, enquanto o terceiro período inglês e o primeiro
francês seriam de criatividade intermédia. Segundo Pessoa, «o valor dos criadores
literários corresponde ao valor criador das épocas» respectivas, concluindo que «a
literatura não só traduz as ideias da sua época», como «o valor da literatura, perante a
85
história literária, corresponde ao valor da época, perante a história da civilização»
literaturas (PESSOA, 1912a: 104-105).
QUADRO 5
Períodos de criatividade literária na história de Inglaterra e de França
segundo Fernando Pessoa
Criatividade
Inglaterra
Período
Grandeza
Político
1.º
exterior
grande
Período
interior
grande
2.º
exterior
pequeno
Período
interior
pequeno
3.º
exterior
grande
Período
interior
França
Valor
Literário
maior
anterior
Político
Valor
Literário
médio
simultâneo
maior
anterior
menor
posterior
grande
pequeno
grande
menor
posterior
grande
pequeno
médio
simultâneo
pequeno
pequeno
Na sua análise, Fernando Pessoa estabeleceu uma correspondência entre história
e literatura, verificando a homologia entre mudança social e criação literária, que
aplicou à poesia portuguesa. O crítico concluiu ainda que «a posição cronológica das
literaturas se dá, relativamente aos correspondentes movimentos sociais, de modo
diverso nos três períodos», observando que, tanto em Inglaterra como em França nos
períodos de maior criatividade, o máximo valor literário precederia no tempo o
correspondente movimento político. Nos períodos de menor criatividade, o movimento
literário seria posterior ao respectivo auge político, enquanto nos períodos de
criatividade intermédia haveria uma sincronia entre literatura e política. Finalmente,
Pessoa realça uma característica comum a estes dois países, a qual se manifestaria na
«desnacionalização da literatura» nos períodos de menor criatividade. Nas épocas de
criatividade intermédia, a literatura manifestaria um «equilíbrio entre o espírito nacional
e a influência estrangeira», enquanto nos períodos de maior criatividade o «espírito
nacional» dominaria em absoluto as respectivas literaturas (PESSOA, 1912a: 104-105).
86
III.4.3. O «lúcido sonho louco» de um Super-Camões
Apesar da sua breve análise, Pessoa considerou ter reunido dados suficientes
para extrapolar os seus resultados ao «caso sociológico» português, fazendo uma
«apreciação ponderada da moderna poesia». O crítico considera então três
características fundamentais desta «corrente poética lusitana». A primeira residiria no
facto de que «a actual corrente literária portuguesa é absolutamente nacional», uma vez
que transmite «ideias especiais, sentimentos especiais, modos de expressão especiais e
distintos». Pessoa considera também que, apesar de não ter «Miltons nem
Shakespeares», o movimento poético português teria «individualidades de vincado
valor», não apenas «pelo tom, que é da corrente», mas também intrinsecamente, «pelo
valor mesmo, dentre os contemporâneos europeus». Finalmente, como «terceiro e
último facto que se impõe», este movimento poético seria coincidente «com um período
de pobre e deprimida vida social, de mesquinha política, de dificuldades e obstáculos de
toda a espécie à mais quotidiana paz individual e social, e à mais rudimentar confiança
ou segurança num, ou de um, futuro» (PESSOA, 1912a: 105-106).
É que os caracteristicos que acabamos de descobrir no nosso actual movimento
poetico indicam, absolutamente, a sua analogia com as litteraturas ingleza do primeiro e
franceza do segundo periodo, e, portanto impõem que se conclua d’ahi a fatal analogia com
as épocas de que aquellas litteraturas são representativas.
A analogia é absoluta. Temos, primeiro, a nota principal da completa
nacionalidade e novidade do movimento. Temos, depois, o caso de se tratar de uma corrente
litteraria contendo poetas de indiscutivel valor. E note-se – para o caso de se argumentar
que nenhum Shakespeare nem Victor Hugo appareceu ainda na corrente litteraria
portugueza – que esta corrente vae ainda no principio do seu principio, gradualmente
porém tornando-se mais firme, mais nitida, mais complexa. E isto leva a crêr que deve
estar para muito breve o inevitavel apparecimento do poeta ou poetas supremos, d’esta
corrente, e da nossa terra, porque fatalmente o Grande Poeta, que este movimento gerará,
deslocará para segundo plano a figura, até agora primacial, de Camões. Quem sabe se não
estará para um futuro muito proximo a ruidosa confirmação d’este deduzidissimo asserto?
(PESSOA, 1912a: 106)
Na perspectiva de Fernando Pessoa, haveria uma absoluta analogia entre o
movimento poético português analisado e os grandes períodos literários inglês e francês.
Para o crítico, esta semelhança ficaria a dever-se não apenas à «completa nacionalidade
e novidade» da corrente literária, mas também ao «indiscutível valor» dos seus poetas.
87
Na medida em que o movimento literário «precede sempre a corrente social nas épocas
sublimes de uma nação», Pessoa ousa afirmar que «a actual corrente literária portuguesa
é completa e absolutamente o princípio de uma grande corrente literária, das que
precedem as grandes épocas criadoras das grandes nações de quem a civilização é
filha». Em conclusão, «a mais extraordinária, a mais consoladora, a mais estonteante
que se pode ousar esperar», Pessoa previa uma «renascença extraordinária, um
ressurgimento assombroso» para Portugal. Este «lúcido sonho louco», ou crença «num
futuro mais glorioso do que a imaginação o ousa conceber», permitiria ao crítico o
«deduzidíssimo asserto» de que «deve estar para muito breve o inevitável aparecimento
do poeta ou poetas supremos, desta corrente, e da nossa terra, porque fatalmente o
Grande Poeta, que este movimento gerará, deslocará para segundo plano a figura, até
agora primacial, de Camões». Segundo Pessoa, o «momento político» não parecia
favorável a gerar «génios poéticos supremos», por ser «reles e mesquinho» mas, por
analogia com as literaturas inglesa e francesa, argumenta que essa era precisamente a
razão de ser plausível para que o «supra-Portugal de amanhã» gerasse «um SuperCamões na nossa terra» (PESSOA, 1912a: 106-107).
Pode objectar-se, além de muita cousa desdenhavel n’um artigo que tem de não ser
longo, que o actual momento politico não parece de ordem a gerar genios poeticos
supremos, de reles e mesquinho que é. Mas é precisamente por isso que mais concluivel se
nos afigura o proximo apparecer d’um supra-Camões na nossa terra. É precisamente este
detalhe que marca a completa analogia da actual corrente litteraria portugueza com
aquellas, franceza e ingleza, onde o nosso raciocinio descobriu o acompanhamento
litterario das grandes épocas creadoras. Porque a corrente litteraria, como vimos, precede
sempre a corrente social nas épocas sublimes de uma nação. Que admira que não vejamos
sinal de renascença na vida politica, se a analogia nos manda que o vejamos apenas uma,
duas ou trez gerações depois do auge da corrente literária?
Ousemos concluir isto, onde o raciocinio excede o sonho: que a actual corrente
litteraria portugueza é completa- e absolutamente o principio de uma grande corrente
litteraria, das que precedem as grandes épocas creadoras das grandes nações de quem a
civilização é filha. (PESSOA, 1912a: 106-107)
III.5. O futuro da literatura
Em 23 de Abril de 1912, o jornal monárquico O Dia publicou, na sua rubrica
«CARTA DE COIMBRA», a crítica «A literatura e o Futuro», sobre o artigo de
88
Fernando Pessoa «A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada», que
abria a edição do mês anterior da revista A Águia. O comentador anónimo critica o
«pomposo título» e a «fantasiosa alegria» de Pessoa, bem como o cariz apologético da
sua análise. Neste sentido, considera «a leitura do artigo entristecedora porque, se o seu
autor nele muito afirma de verdadeiro, enquanto a referências a leis sociológicas mais
ou menos conhecidas», por outro lado, é «levado pelo seu risonho e louvaminheiro
optimismo a fazer afirmações demasiado arrojadas e a tirar delas conclusões erróneas,
em absoluto inversas da que alcançaria se desapaixonadamente visse os factos tais quais
são» (O DIA, 239: 2). No entanto, o crítico concorda com Pessoa, para quem «a corrente
literária precede sempre a corrente social nas épocas sublimes de uma nação», mas põe
em causa a sua conclusão de que a «nova poesia portuguesa» seria «completa e
absolutamente o princípio de uma grande corrente literária, das que precedem as
grandes épocas criadoras das grandes nações de quem a civilização é filha» (PESSOA,
1912a: 107).
Embora reconhecendo um «tanto de elevação e de homogeneidade» na «nova
poesia portuguesa», o crítico de O Dia considera exagero «atribuir tão importante
papel» a esta corrente literária, «por certo inferior às dos dois últimos quartéis do século
XIX». Contrariando a justificação de Fernando Pessoa, para quem a «completa
nacionalidade e novidade do movimento» era o principal argumento de grandeza, o
comentador vê, na «nova poesia portuguesa», «mais uma fuga às tradições de
nacionalidade». Na sua opinião, existiria uma diferença fundamental entre a literatura
portuguesa e as correntes literárias de Inglaterra e de França com que Pessoa
estabeleceu um paralelo, pois, ao contrário da portuguesa, estas literaturas nunca se
teriam desnacionalizado. Segundo o crítico anónimo, «o esforço colossal que os
portugueses produziram» no século XVI «elevou-os ao máximo sob o ponto de vista
literário» e a «tentativa romântica que no campo literário acompanhou quase pari passu
o movimento político do liberalismo não passou de um episódio. A sua influência durou
tão pouco que dela nada veio afinal a resultar de positivo» (O DIA, 239: 2).
O comentador anónimo defende que Luís de Camões e Afonso de Albuquerque
«são os mais legítimos representantes desse triunfo aniquilador da raça que, para
alcançá-lo, comprometeu toda a sua capacidade futura. E de tal modo o fez que ao
primeiro embate deixou que lhe roubassem a própria autonomia, para só mais tarde a
reconquistar por graça da fraqueza de seus dominadores». Para o crítico, desde essa
89
época existiria em Portugal um divórcio crescente das tradições nacionais, por parte dos
políticos e escritores, o qual se teria acentuado com a «política anti-nacional» da
República. Neste sentido, a «nova poesia portuguesa» seria uma «corrente literária bemintencionada», mas que apenas procurava «notabilizar-se pela novidade», vivendo
«apartada das tendências e dos sentimentos portugueses, pretendendo amoldar-se a
ideias inacessíveis à grande massa, que precisa, agora mais do que nunca, de quem a
oriente e guie» (O DIA, 239: 2).
Onde topar hoje um poeta nacional que possa ser comparado a qualquer dos que no
seculo de quinhentos precederam aquelle a que o generoso articulista ainda concede por
algum tempo o «primacial logar»? E, dando mesmo por bem que algum se lhes semelha,
decerto o não buscaremos na nova e esperançosa corrente, pois d’ella vive cuidadosamente
arredado, temendo que alguem possa comparal-o ao trovador que Junqueiro um dia
indicou como «uma especie de ignorante divino, de sublime analphabeto, vivendo fora
d’esta realidade prosaica nos mundos vaporosos do sonho, do extasi e do mystério.»
Poetas de valor amesquinhado por uma orientação desviada do verdadeiro caminho
pela anceiada novidade alguns existem hoje na nossa terra, merecedores apezar de seus
erros, de viva admiração. Mas se existem não são elles em verdade nacionaes.
Differença ha entre ter valor como poeta e ser poeta nacional.
É precisamente por isso que d’entre elles ninguém espera se dê «o próximo
apparecer d’um supra-Camões na nossa terra. (O DIA, 239: 2)
Na sua crítica, o exegeta empenha-se em desmontar a argumentação de
Fernando Pessoa, rebatendo sucessivamente todos os seus argumentos. Embora
ressalvando que alguns dos novos escritores seriam «merecedores apesar dos seus erros,
de viva admiração», o comentador contesta que os novos poetas se aproximassem da
grandeza de Camões, ou mesmo da que atingiram os maiores escritores das duas
gerações precedentes. Contrariando a justificação de Pessoa, para quem a superioridade
da «nova poesia portuguesa» decorria, sobretudo, da «completa nacionalidade e
novidade do movimento», o exegeta atribui um «valor amesquinhado» aos novos
escritores, porque, na sua opinião, seguiam «uma orientação desviada do verdadeiro
caminho pela ansiada novidade». Neste sentido, ele critica Pessoa por prever que
«fatalmente o Grande Poeta, que este movimento gerará, deslocará para segundo plano a
figura, até agora primacial, de Camões» (PESSOA, 1912a: 106). Sublinhando a diferença
entre «ter valor como poeta e ser poeta nacional», o comentador conclui, parafraseando
90
Pessoa, ser «precisamente por isso que dentre eles ninguém espera se dê “o próximo
aparecer de um Super-Camões na nossa terra”» (O DIA, 239: 2).
III.6. Literatura e sociedade
Lançada a controvérsia sobre a grandeza do novo movimento literário português,
a réplica de Fernando Pessoa surgiu em Maio de 1912, no seu artigo «Reincidindo…»,
publicado no número 5 da revista A Águia. Reconhecendo que o crítico do jornal O Dia
dava resposta, «até certo ponto lúcida, a dúvidas e pasmos» que o seu artigo suscitara, o
jovem desenvolveu a sua análise da «nova poesia portuguesa», procurando «clarificar
uns pontos e intensificar outros». Sem abdicar da jocosidade do seu artigo inicial,
Pessoa usava a sua verve mordaz para «tornar, pela lógica, mais próximo da
possibilidade de compreender, que concebivelmente entre bacharéis haja». Neste
sentido, ele aprofunda a sua análise da «nova poesia portuguesa», propondo-se
«arrancar às épocas criadoras, aos seus períodos literários, o seu segredo sociológico»
(PESSOA, 1912b: 137).
Qualquer corrente literaria tira os caracteristicos que o raciocinador lhe pode
encontrar, de uma tripla relacionação sociologica. Essa tripla relação revela-se á nossa
analise como sendo; – 1.º, com o movimento social da nação em que aparece; 2.º, com as
outras correntes literarias, nacionaes ou estrangeiras, passadas ou antemporâneas; 3.º, com
a alma do povo a que pertence. Exgotando, por uma analise minuciosa, os caracteristicos
de uma corrente literaria em face destes tres elementos sociologicos, aqui logicamente
normativos, tel-a-hemos caracterisado nitida – e diferencialmente. A analise esboçada no
nosso anterior artigo, e feita sobre os periodos inglez e francez de maxima grandeza
literaria e social, levou-nos a atribuir ao movimento literario, que corresponde a uma epoca
creadora, tres caracteristicos – o preceder o movimento social criador, o ter novidade, e o
ter nacionalidade. Isto é, como se vai vêr, incompleto, ainda que não erroneo. Vamos agora
arrancar ás épocas creadoras, aos seus periodos literarios, o seu segredo sociologico, em
tudo que a sua tripla relacionação sociológica, citada, possa envolver. Paralelamente
iremos apontando as coincidencias dos caracteristicos, que essas epocas nos fôrem
revelando, com os característicos, que chemin faisant incontestabilisaremos, da nossa actual
corrente literaria. (PESSOA, 1912b: 137)
Na perspectiva sociológica de Fernando Pessoa, todas as correntes literárias de
máxima grandeza seriam divisíveis em três períodos, conforme descrito no seu artigo
91
anterior: o primeiro período, agora designado «precursor», seria parcialmente
coincidente com o final do período literário antecedente; um segundo período, em que a
corrente literária se realiza completamente; e um terceiro, no qual o «tom» desse
período se dissolve na alma do período literário subsequente. Para Pessoa, o período
precursor caracterizar-se-ia mais por escritores de certa grandeza do que pela
emergência de um efectivo espírito dessa corrente literária. Desta forma, o sinal da
futura grandeza nacional residiria apenas no valor individual desses precursores, como
seria este o caso de Chaucer (1343?-1400)119 em Inglaterra e de Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778) em França (PESSOA, 1912b: 137-138).
QUADRO 6
Estádios do período de maior criatividade literária
em Inglaterra, França e Portugal
segundo Fernando Pessoa
País
Inglaterra
França
Portugal
Corrente
«isabelismo»
romantismo
«nova poesia»
Precursor
Chaucer
Rousseau
Quental
Estádio
Escritores
1.º
juventude
Wyatt,
Surrey,
Spenser
Chenier,
Chateaubriand
Nobre,
Castro,
Junqueiro
2.º
virilidade
Shakespeare
Lamartine,
Hugo,
Musset
Pascoaes,
Oliveira
3.º
velhice
Milton
Lisle,
Prudhomme
?
Sucessor
Dryden
Verlaine
?
Segundo Fernando Pessoa, um período de máxima grandeza literária, por sua
vez, subdividir-se-ia em três «estádios». Um primeiro estádio, que o crítico designou
«juventude», no qual «aparece já o tom, o espírito da época, incompletamente
caracterizado», seria personificado, em Inglaterra, por Spenser (1552?-1599) e, em
119
A data e o local exactos onde nasceu Geoffrey Chaucer são desconhecidos, mas terá sido
provavelmente em Londres, cerca de 1343. A sua poesia ocupa um lugar cimeiro na literatura medieval
inglesa, com destaque para a obra inacabada Contos de Cantuária. Chaucer é também referido por vezes
como o «pai» da literatura inglesa.
92
França, por escritores como André Chenier (1762-1794) e Chateaubriand (1768-1848). Um
segundo estádio, de «virilidade», em que «o espírito da época se intensifica» e «se
alarga a toda a amplitude de que a sua alma é capaz», geraria os «máximos poetas».
Estariam nesta categoria, em Inglaterra, Shakespeare e, em França, as figuras tutelares
de Lamartine (1790-1869), Hugo (1802-1885) e Musset (1810-1857). No terceiro e último
estádio, «o espírito da época como que se torna mais rígido, mais reflectido, por mais
cansado», o que é ilustrado, em Inglaterra, por Milton e, em França, por Leconte de
Lisle (1818-1894) e Sully-Prudhomme (1839-1907). Após este estádio subsistiria um resto
de vida, «uma espécie de sobrevivência vaga do espírito da época, mas já sob a forma
essencial da época subsequente», a qual se manifestaria pela «intensidade e relativa
grandeza nos poetas em que alvorece a época seguinte». Dryden (1631-1700), em
Inglaterra, e Verlaine (1844-1896), em França, iniciadores do período literário
subsequente, estariam nesta categoria de escritores. Além disso, para Pessoa, a transição
entre estádios literários foi mais longa em França do que em Inglaterra, o que atribui à
«extraordinária rapidez do movimento social moderno» (PESSOA, 1912b: 138).
Fernando Pessoa compara então a «nova poesia portuguesa» com as «máximas
correntes literárias» de Inglaterra e de França. Na sua opinião, o precursor da «nova
poesia portuguesa» teria sido Antero de Quental (1842-1891), que Pessoa associa a
Chaucer e Rousseau porque a sua obra, embora não tendo ainda nacionalidade, estaria já
imbuída de plena originalidade. Contudo, para o crítico, o «tom» característico da «nova
poesia portuguesa» apenas teria começado a ganhar forma na última década do século
XIX, nas poesias de António Nobre (1867-1900), de Eugénio de Castro (1869-1944) e de
Guerra Junqueiro (1850-1923). A este primeiro estádio juvenil da nova corrente literária
portuguesa sucederia o estádio viril, inaugurado por Teixeira de Pascoaes e incluindo os
poetas da geração de António Correia de Oliveira (1878-1960). Neste segundo estádio,
em que um novo estilo se desenvolveria completamente, «o modo de exprimir
intensifica-se, complica-se de espiritualidade», e «o conteúdo sentimental e intelectual
alarga-se até aos confins da consciência e da intuição». A análise de Pessoa chega assim
até à época em que escreve, não lhe permitindo mais comparações. No que «abrange
porém, a analogia é perfeita», reiterando desta forma que a «nova poesia portuguesa» se
assemelha às «máximas correntes literárias da França e da Inglaterra» (PESSOA, 1912b:
139).
93
Vejamos, agora, se, sob este ponto de vista exterior, a actual corrente literaria
portugueza alguma analogia offerece com as outras correntes que estudámos. Note-se,
primeiro, quando a nossa corrente principia. O seu tom especial e distinctivo, quando
começa a apparecer? É facil constatal-o. É com o Só de Antonio Nobre, com aquela parte
da obra de Eugenio de Castro que toma aspectos quinhentistas, e com Os Simples de
Guerra Junqueiro. Começa, portanto, pouco mais ou menos coincidentemente com o
começo da última década do seculo dezenove. Fixado o inicio do periodo, procuremos o
precursor. Continúa a não haver dificuldade: o precursor é Anthero de Quental. É
exactamente analogo a Chaucer e a Rousseau-poeta em, a par de não ter ainda
nacionalidade (compare-se o seu tom com o de Antonio Nobre, inferior como poeta, mas
superior como portuguez), ter já plena originalidade, isto é, ser já nacional por não ser
inspirado em elemento algum poeticamente estrangeiro; originalidade que nem Junqueiro,
na primeira phase, que é a coincidente com Anthero, nem outro qualquér – innacionalisado
ainda aquelle por huguesco, os outros por huguismos120, parnasianismos ou symbolismos –
se pode considerar como tendo. – Egualmente marcado está o primeiro estadio da corrente
literaria propriamente dita. Vimos em que obras começa: é facil vêr que vae desde ellas até
á Oração á Luz de Junqueiro, e á Vida Etherea de Teixeira de Pascoaes, onde começa a
apparecer já o segundo estadio, onde se vê a corrente, ao continuar-se, tomar um aspecto
outro absolutamente. O modo de exprimir intensifica-se, complica-se de espiritualidade, o
conteúdo sentimental e intelectual alarga-se até aos confins da consciencia e da intuição. A
nova phase de Antonio Corrêa d’Oliveira, o apparecimento de novos poetas, escrevendo já
no novo estylo, marcam nitidamente a existencia do segundo estadio. (PESSOA, 1912b:
139)
III.6.1. A literatura na sua relação com o «movimento social» da nação
Após esta «aproximação» à «nova poesia portuguesa», Pessoa realizou «uma
análise minuciosa» das «características de uma corrente literária», na sua relação com
«três elementos sociológicos»: «1.º, com o movimento social da nação em que aparece;
2.º, com as outras correntes literárias, nacionais ou estrangeiras, passadas ou
antemporâneas; 3.º, com a alma do povo a que pertence» (PESSOA, 1912b: 139).
Estudando cada uma destas três dimensões, o crítico pretendia caracterizar o espírito da
nova corrente literária, analisando, em primeiro lugar, a correspondência das grandes
correntes
literárias
com
o
«movimento
social» da nação
que
a produz.
Consistentemente, Pessoa classifica de novo em três categorias as relações de uma
120
Nestes dois termos da mesma etimologia, Pessoa expressa a influência na literatura portuguesa do
escritor, político e académico francês Victor Hugo (1802-1885).
94
grande época criadora: com o período literário que a precede, com o período com que
coincide e com o período que lhe sucede (PESSOA, 1912b: 139).
Segundo Fernando Pessoa, a grande época criadora de Shakespeare foi
precedida, em Inglaterra, pelo «período pré-Tudor» e, em França, pelo reinado de Luís
XVI. «Que têm, de análogo, estes dois períodos sociais? São ambos períodos de
apagada e estéril vida política, de despotismo fácil, de agitação nula e como que servil».
Do grande período subsequente não haveria então qualquer sinal senão na literatura, na
qual emergiram os precursores do «magno período literário» que se seguiu.
Analogamente, segundo Pessoa, a «nova poesia portuguesa» sucedeu «à parte prérevolucionária do nosso período constitucional, porquanto começando com a última
década do século dezanove, a actual corrente literária coincide no seu início com o
movimento de 31 de Janeiro» de 1891121. «Politicamente estéril, infecunda e
servilmente agitado, nulo de grandezas e de utilidades, o nosso período constitucional é
socialmente análogo àqueles da França e Inglaterra». Sucedendo a um período «reles e
mesquinho», a «nova poesia portuguesa» estaria em perfeita consonância com as
grandes correntes literárias desses dois países, no que respeita ao «movimento social»
da época que a precede. Prova disso seria o facto de Antero de Quental, precursor da
«nova poesia portuguesa», ter surgido nesse período constitucional (PESSOA, 1912b: 139).
A época áurea da literatura inglesa, segundo Fernando Pessoa, teve início no
reinado de Henrique VIII, terminando aproximadamente com a revolução de 1688, e em
França esse período literário foi concomitante com a época que vai da revolução
francesa até 1870. Para o crítico, a característica comum a estes dois períodos era a
agitação social, em flagrante analogia com a «nova poesia portuguesa», iniciada após o
levantamento de 1891 e terminando o seu primeiro estádio com a revolução de 1910,
correspondendo assim ao período revolucionário republicano. Apesar de não ter
interesse comparativo, visto o seu estudo ter chegado à época em que Pessoa escreve,
tornando impossível a confrontação com a literatura portuguesa, o crítico continua a sua
análise do período que sucede as grandes épocas criadoras, para eventual comparação
futura. Desta forma, ele observa «que, depois do auge, ou segundo estádio, da corrente
literária, vem, coincidindo com o terceiro estádio, a época vincadamente e
121
Embora rechaçada, a revolta de 31 de Janeiro de 1891 foi o primeiro movimento revolucionário
republicano em Portugal. Este levantamento militar, na cidade do Porto, foi motivado pelo ultimatum
inglês, de 1890, e a consequente cedência, pelo Governo Português, dos territórios africanos do «mapa
cor-de-rosa».
95
terminantemente criadora. Passada ela, e já em coincidência com o princípio do período
literário seguinte, vem a fixação do sistema político criado: o constitucionalismo em
Inglaterra, a república em França, cada qual o sistema em acordo com o carácter do
povo a que pertence» (PESSOA, 1912b: 140).
III.6.2. A literatura na sua relação com outras correntes literárias
Fiel ao seu modelo analítico tridimensional, Fernando Pessoa considerou, de um
ponto de vista «exclusivamente literário», três «elementos distintivos» indispensáveis
para caracterizar os grandes períodos literários: «a novidade (ou originalidade), a
elevação, e a grandeza». Por elevação, Pessoa entendia a qualidade do «tom literário
geral» do respectivo período, e por grandeza, o valor individual dos seus representantes,
principalmente os grandes poetas. Quanto à originalidade, ou inovação estética, o crítico
considerava que, por si só, ela pode ser apenas «um novo género de poesia artificial»,
ficando «próxima da mera esquisitice e extravagância, do puro delírio», carecendo, por
isso, dos dois outros elementos distintivos, para constituir uma corrente literária
suprema. Na opinião de Pessoa, teria sido a tripla condição de originalidade, elevação e
grandeza que caracterizou tanto o «isabelismo» inglês como o romantismo francês,
procurando então verificar se estas características estariam também presentes na «nova
poesia portuguesa» (PESSOA, 1912b: 141).
Ainda que o espaço seja para pouco, duas expressões, que qualquér ledor das cousas do
tempo reconhecerá como probamente citaveis como representativas, podem aduzir-se aqui,
para allivio de scepticos. Tomemos isto, de Teixeira de Pascoaes,
A folha que tombava
Era alma que subia,
e isto, de Jayme Cortezão,
E mal o luar os molha,
Os choupos, na noite calma,
Já não tem ramos nem folha,
São apenas choupos d'Alma.
96
Em nenhuma literatura do mundo atingiu nenhum poeta maior elevação do que estas
expressões, e especialmente a extraordinaria primeira, conteem. (PESSOA, 1912b: 141)
Pessoa considera inquestionável a originalidade da «nova poesia portuguesa»,
pois «o próprio crítico de O Dia não a nega, antes se confessa apavorado por ela»,
acrescentando que «há entre nós um modo de pensar, de sentir, de exprimir tão
inconfundivelmente original como o do romantismo francês ou o do isabelismo, se não
mais original ainda». Quanto à elevação do «tom poético» geral da nova corrente
literária, Pessoa afirma que «em nenhuma literatura do mundo atingiu nenhum poeta
maior elevação». Finalmente, no que respeita à grandeza, se bem que o exercício de
comparação com os períodos áureos das literaturas estrangeiras apenas possa ser feito
com o primeiro estádio do movimento poético português, o crítico não hesita em
afirmar: «Junqueiro escusa de se acanhar na comparação com Châteaubriand-poeta, ou
mesmo com a Faerie Queene, de Spenser». Desta forma, Pessoa conclui que existe
«analogia absoluta» entre a «nova poesia portuguesa» e as máximas correntes das
literaturas inglesa e francesa (PESSOA, 1912b: 141-142).
No que respeita ao primeiro estadio, o poema supremo do nosso, a Patria, de Junqueiro,
excusa de se acanhar na comparação com Châteaubriand-poeta, ou mesmo com a Faerie
Queene, de Spenser. Com respeito ao primeiro, a superioridade do nosso poeta é manifesta.
Com respeito ao segundo, a questão de superioridade é caso para argumentos. Porque, se
não ha duvida que em originalidade e exuberancia imaginativa o poema de Spenser
sobreleva ao de Junqueiro, tambem se não pode negar que em intensidade lyrica, em
espírito dramático, em poder de construcção poética, a Pátria domina a Faerie Queene.
De modo que, se ha n’este mundo analogias e absolutos, entre a nossa actual
corrente literaria e as maximas, que nos vêm servindo para a comparação, ha, nos pontos
já analisados, uma analogia absoluta. (PESSOA, 1912b: 142)
III.6.3. A literatura na sua relação com a «alma do povo»
Fernando Pessoa analisa, finalmente, a terceira «relação sociológica» dos
grandes períodos literários, considerando fácil «examinar as características das magnas
épocas literárias em face da alma do povo que a produz». Uma vez mais, o crítico
reconhece três aspectos fundamentais da literatura, na sua relação «com a alma do povo
a que pertence»: a não-popularidade, a anti-tradicionalidade e, sobretudo, a
nacionalidade, que já referira no seu primeiro artigo. Para o crítico, as grandes correntes
97
literárias «interpretam completamente a alma nacional», isto é, representam com plena
elevação «as inconscientes tendências filosóficas ou religiosas em detalhes intelectuais e
espirituais, traduzindo a alma popular para arte suprema», eximindo-se assim à
compreensão popular. Esta seria a principal razão da não-popularidade das grandes
correntes literárias, enquanto arte de elites ou da «aristocracia de inteligência», a qual
surge reforçada pela novidade do «tom poético» nos seus momentos mais altos,
distanciando-se da arte popular. Em suma, as grandes correntes literárias, apesar de
«filiadas absolutamente na alma do povo, não a exprimem: representam-na, interpretamna», estando neste caso, segundo Pessoa, tanto o «isabelismo» como o romantismo
(PESSOA, 1912b: 142).
QUADRO 7
Modelo de análise sociológica das correntes literárias
segundo Fernando Pessoa
Dimensão
Relação sociológica
Movimento
social da nação
Outras correntes
literárias
Alma do povo
a que pertence
Conceito (características)
Indicadores
precedente
período
coincidente
estádios
sucedente
período
originalidade
obras
elevação
tom geral
grandeza
escritores
não-popularidade
intelectualização
anti-tradicionalidade
novidade
nacionalidade
raça
Na perspectiva de Fernando Pessoa, para atingir o seu máximo e chegar a ser
verdadeiramente grande, um movimento literário teria de romper com o espírito da
corrente ou correntes que o precedessem, na medida em que estas seriam
necessariamente menores. Sendo a corrente anterior desnacionalizada, como no caso do
romantismo, o qual foi precedido pelo classicismo, a ruptura estética seria evidente e
conflituosa. Contudo, no caso do movimento estético anterior ser apenas parcialmente
98
desnacionalizado, a ruptura seria menos abrupta e ideológica, como no caso do
«isabelismo». Quanto à «nova poesia portuguesa», devido à sua «complexa
intelectualização», poucos movimentos literários se teriam afastado tanto «de toda a
tradição literária da sua terra» e «colocado mais acima da compreensão geral», razão
pela qual o crítico considera evidentes tanto a anti-tradicionalidade como a nãopopularidade do seu «tom poético». Neste sentido, pessoa afirma que a «nova poesia
portuguesa» interpretava «directamente, nuamente e elevadamente» a «alma da raça»,
isto é, o espírito nacional, dando assim como provada «a analogia entre a nossa corrente
literária e as grandes correntes literárias precursoras dos grandes períodos criadores da
civilização» (PESSOA, 1912b: 143).
No seu estudo, Fernando Pessoa chega a três conclusões: «A primeira é que para
Portugal se prepara um ressurgimento assombroso, um período de criação literária e
social como poucos o mundo tem tido». Em resposta aos seus críticos, Pessoa reitera
com veemência as suas opiniões, expressas no primeiro artigo sobre a «nova poesia
portuguesa», a qual revelaria maior afinidade com o «isabelismo» do que com o
romantismo. Desta forma, para o crítico, seria mesmo modesta a sua previsão do «breve
aparecimento na nossa terra do tal Super-Camões», não lhe parecendo exagerado
substituir o poeta nacional pelo surgimento da figura colossal «de um Shakespeare». Em
segundo lugar, uma vez que a «nova poesia portuguesa» teria acompanhado o
movimento republicano, o crítico conclui que o seu «glorioso futuro» seria realizado
pela e na República. Finalmente, como terceira conclusão, Pessoa afirma que «o
republicanismo, que fará a glória da nossa terra e por quem novos elementos
civilizacionais serão criados, não é o actual, desnacionalizado, idiota e corrupto»
(PESSOA, 1912b: 143).
Não nos admire que isto assim seja. No reinado de Izabel, periodo da Inglaterra
que corresponde ao nosso actual, ainda nada se vislumbrava do principio de governo
popular que havia de ser creação da epoca. Conservemo-nos, por enquanto, absolutamente
portuguezes, rigidamente republicanos, intransigentemente inimigos do republicanismo
atual. Brevemente começará a raiar nas nossas almas a intuição politica do nosso futuro.
Talvez o supra-Camões possa dizer alguma cousa sobre o assumpto. Esperemos, que ele
não se demore. No entretanto, sursum corda! Sabemos que o futuro será glorioso.
Confiemos nele. Por emquanto abstenhamo-nos de agir, a não ser negativamente para
combater e apenas pela palavra e pelo escrito os portuguezes estrangeiros que nos
desgovernam e isso só se a indignação nol-o impuzér como desabafo. A hora da acção ainda
99
não chegou. Primeiro, virá a teoria política da epoca. Depois virá o pôl-a em pratica. E
quando a hora chegar, virá – não tenhamos duvida – o homem de força que a imporá,
eliminando os obstaculos, que são esta gente de agora, monarchicos e republicanos.
(PESSOA, 1912b: 143-144)
III.7. Um «Inquérito à Vida Literária»
A operação crítica do jornal O Dia ao seu artigo «A Nova Poesia Portuguesa
Sociologicamente Considerada» teria dado a Fernando Pessoa a ideia de continuar a
controvérsia, através de um «inquérito à nossa vida intelectual»122. Este inquérito
inseria-se numa corrente de jornalismo literário, na qual pontificou Jules Huret que, em
1891, publicou, no jornal L’Écho de Paris, sessenta e quatro «conversas» com
romancistas, poetas e críticos. Entre os entrevistados, contavam-se escritores dos menos
conhecidos aos de maior nomeada, como Goncourt, Émile Zola, Guy de Maupassant,
Anatole France, Stéphane Mallarmé, Paul Verlaine, Maurice Maeterlinck, Leconte de
Lisle e François Copée. Apesar deste elenco de celebridades literárias, Jules Huret
assume o protagonismo como mediador do seu «Enquête sur l’Évolution Littéraire».
Dado «o sucesso sem precedentes» desta «reportagem experimental», Huret procurou
chegar a um público mais «informado e exigente», publicando um livro com essas
«conversas» sobre «as querelas intestinas da arte» (HURET, 1891: V-VIII). Teria sido este
exemplo que levou Pessoa a sugerir a realização de um inquérito literário ao seu amigo
José Boavida Portugal (1889-1931), jornalista do diário República123.
A dois anos de um facto historico, que cremos propulsor de uma nova ordem de
idéas, e tendo a República inquirido largamente da vida económica e social do país, justo e
até necessário era que inquirisse tambem da sua vida literária.
A literatura é como que a floração de uma civilização. A sua decadencia ou o seu
esplendor marcam a decadencia ou o esplendor da vida de um povo.
Assim convencidos e crentes de que prestávamos um serviço ao país, chamámos os
homens tidos como competentes a depor num inquérito à vida literária portuguesa.
122
No rascunho de uma carta para Boavida Portugal, transcrita por Manuela Parreira da Silva, Fernando
Pessoa escreveu: «Extensas conversas particulares entre nós havidas dispensam-me de principiar esta
carta com a apreciação elogiosa, que v. já sabe que eu tenho, da sua idéa de um inquerito á nossa vida
intellectual. Sahida de mim que foi essa idéa. Dados os inevitaveis termos do questionario e conhecidos
os nomes dos seus entrevistados – immediatamente antevi que a Renascença Portugueza e o seu orgão A
Aguia haviam de ser objectos de ataques» (BNP/1143-77, 1143-81).
123
O jornal República iniciou a sua publicação em Janeiro de 1911 e foi a tribuna que difundiu o ideário
do seu director, António José de Almeida, médico e político republicano de grande dom oratório, que
funddou o Partido Evolucionista em Fevereiro de 1912.
100
O grande publico que lê deseja encontrar nos livros o caminho a trilhar. E os livros
andarão bem possuídos de idéas novas que seja preciso sagrar na alma do povo? e quem
nos garante a nós que a revolução política entrou já nos livros, revolucionando as idéas?
por êles o grande publico saberá já para onde caminha?
Estas e outras interrogações hão de ter sido feitas (porque a alma portuguesa
flutúa incerta e timida) e os livros talvez não hajam respondido. (REPUBLICA, 590: 1)
Foi assim que, em 3 de Setembro de 1912, Boavida Portugal iniciou a
publicação do seu «Inquérito à Vida Literária», na primeira página do jornal República,
com o artigo introdutório «Sinfonia de Abertura»124. Sob a epígrafe «PORTUGAL
INTELECTUAL», o jornalista anunciava «a publicação de opiniões de notáveis
escritores e professores». Entre estes estariam os nomes de Júlio de Matos, Guerra
Junqueiro, Adolfo Coelho, Júlio Brandão, Gomes Leal, Gonçalves Viana, João Grave,
Eugénio de Castro e Lopes de Mendonça. «Apesar de nos jornais não ser muito habitual
tratarem-se largamente assuntos literários», o jornalista esperava, «com muita fé, muita
tolerância e muito trabalho», dar ao público esse «repasto intelectual». Na sua opinião, a
dificuldade dos jornalistas em abordar a literatura não se devia à falta de interesse do
assunto, «mas porque os intelectuais são pessoas mais de apreciar quando precisam dos
jornais do que quando estes precisam deles». Neste sentido, Boavida Portugal afirma
que
os
«intelectuais
portugueses
parecem
não
prezar
devidamente
a
sua
responsabilidade social. Muitos desprezam-na a ponto de se não lhes poder pedir»
(REPUBLICA, 590: 1). Com efeito, respondendo a algumas críticas no artigo intitulado
«Ponto Final», que encerrou o seu inquérito em 21 de Dezembro de 1912, o jornalista
escreveu que foram várias as «figuras de destaque no nosso meio intelectual»
convidadas a responder ao inquérito mas que o não fizeram (REPUBLICA, 697: 2). Dos
doze intelectuais que acederam, apenas o Dr. Júlio de Matos e o poeta Gomes Leal
foram entrevistados por Boavida Portugal, tendo os restantes respondido por escrito às
questões colocadas pelo jornalista (REPUBLICA, 590: 1).
Sabemos recair sobre nós a gravissima acusação de não havermos citado a depôr
no inquérito figuras de destaque no nosso meio intelectual. Não é bem assim: é que nós
124
O «Inquérito à Vida Literária», de Boavida Portugal, teve forte repercussão na imprensa da época,
dando origem ao livro de Garcia Pulido, Rompendo Fogo… (A Renascença e o Inquérito), Coimbra,
Livraria Neves, 1912. Mais tarde, Boavida Portugal compilou também em livro os artigos publicados, não
apenas no jornal República, mas também noutros periódicos: Inquérito Literário, Lisboa, Livraria
Clássica Editora, 1915.
101
ainda não dissemos os nomes de todos que consultámos e não quizeram responder. E detraz
disto está toda uma via-dolorosa de esforços baldados, de respostas desanimadoras, de
passos perdidos.
Por exemplo: os snrs. Manuel de Oliveira Ramos, lente da Universidade de Lisboa;
Eugenio de Castro, o poeta ilustre; Marcelino Mesquita, o dramaturgo insigne, nem se
dignaram responder ás nossas cartas. Outros não quizeram depôr, como os snrs. José
Sampaio (Bruno) por andar mal disposto de espirito; Mendes dos Remédios não pôde
concentrar a atenção por envolvido nas lidas do governo académico; Carlos de Mesquita
agradeceu o nosso excesso de amabilidade, mas pediu que riscasssemos da lista o seu nome,
por não poder dar uma resposta satisfatória; Teixeira de Queiroz, confessou-se humilde no
caso, declinando a honra por não ser critico, apezar de, como toda a gente, pensar, bem ou
mal, alguma coisa sobre todos os nossos pontos de vista, que são outros tantos assuntos
literários e filosoficos; Antero de Figueiredo disse não ser critico e só os criticos poderem
dar serenas respostas; mas para que nos não agastássemos inteiramente quiz responder ao
quésito que preguntava qual o seu papel na literatura portuguesa com a palavra:
humílimo!; Manuel da Silva Gaio, tendo dado todas as provas do seu apreço pela nossa
ideia, andava doente, oferecendo-se, aliás, para outra vez; Coelho de Carvalho prometeu
sempre, marcou muitos rendez-vous por só lhe faltar passar a resposta a limpo e… faltou
sempre; Julio Dantas, depois de querer saber quem eram os companheiros que lhe
haviamos escolhido (não pela sua pessoa, mas pelo lugar que ocupava), encontrou bem,
mas fugiu sempre; Guerra Junqueiro mandou-nos telegramas, falámos-lhe em Lisboa,
prometeu sempre, mas...
Ora, com gente assim, nada de completo se pode conseguir. Mas, enfim, foi a
primeira e a falta de hábito desculpa-os. Para a outra vez… (REPUBLICA, 697: 2)
III.7.1. A crítica industrial de Júlio de Matos
Tendo em conta a controvérsia sobre os escritores degenerados, a entrevista com
o psiquiatra Júlio de Matos foi a primeira publicada por Boavida Portugal, em 4 de
Setembro de 1912. Segundo o jornalista, o «Dr. Júlio de Matos» era conhecido «em
todo o país» como cientista notável, professor na Universidade de Lisboa e director do
Hospital Miguel Bombarda. O discurso do psiquiatra reflecte o seu espírito
positivista125, na linha de Auguste Comte, apresentando desde logo uma gramática
regida pelo rigor da objectividade científica, coerente com o mundo industrial.
Respondendo às questões do jornalista, Júlio de Matos nega terminantemente a
125
Em 1878, Teófilo Braga (1843-1924), que viria a ser presidente da República e primeiro-ministro,
juntamente com o seu cunhado, Júlio de Matos, fundaram O Positivismo: revista de philosophia, que
exerceu um papel relevante nas letras e ciências portuguesas no último quartel do século XIX,
designadamente introduzindo a sociologia em Portugal.
102
existência de uma renascença literária, afirmando que «vai por tudo uma desorientação,
um atraso secular, uma apelação para o passado, que não pode, de modo algum, ser
indício de qualquer renascimento». A forma de coordenação industrial, constituindo
uma temporalidade, permite a equivalência entre situações presentes e futuras, pois «o
bom funcionamento dos seres prolonga o presente no futuro, abrindo assim a
possibilidade de uma previsão» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 254). Contudo, «a
flutuação, a incerteza em que anda o espírito nacional» não permitiria manter uma
relação de coordenação temporal, função essencial no mundo industrial. A quebra desta
temporalidade pelos portugueses, com a consequente incapacidade para «colonizar o
futuro» (GIDDENS, 2001: 103), é uma das principais críticas de Júlio de Matos.
Segundo o psiquiatra, a Renascença Portuguesa exprimia o «atraso secular» de
Portugal, associado à saudade e ao desalento lamecha, ao «voltar para trás, quando as
outras nações têm toda a sua atenção posta no futuro». Na sua opinião, Teixeira de
Pascoaes estaria a «amarrar-se ao passado», denunciando assim o paradoxo entre o o
suposto anacronismo passadista da Renascença Portuguesa e o progressismo do ideário
republicano. Sendo o progresso a fórmula de investimento do mundo industrial, longe
de constituir uma renascença literária, o saudosismo de Teixeira de Pascoaes seria uma
«excrescência do passado», o que inviabilizaria o engrandecimento dos escritores
renascentes no mundo industrial. «O saudosismo é uma espécie de sebastianismo. Mas
os sebastianistas ainda têm fé num messias, ainda têm um ideal por que lutam. Os
lamechas que só têm saudades… não têm mais nada», afirma o psiquiatra. Ao contrário
da «prática» e «utilitária Inglaterra», em Portugal faltaria «l’esprit de suite», a
«tenacidade e persistência numa decisão tomada». Esta incapacidade dos portugueses
para realizar, para pôr em prática, impedindo a relação natural entre os seres do mundo
industrial, justificaria a «depressão intelectual, moral e física» em que o país mergulhara
e «claro que a literatura há-de, necessariamente, reflectir este estado geral dos espíritos»
(REPUBLICA, 591: 1).
Mas, de tudo o que lhe tenho dito, o que não pode concluir-se é que haja qualquer
renascença literária, ao que me parece.
– V. Ex.ª decerto conhece aquela revista do Porto, A Aguia, que se diz órgão de
uma renascença portuguesa…
– Sim, existe. São rapazes, não é verdade? Mas tudo aquilo é muito ordinário.
103
– Rapazes… nem todos. Guerra Junqueiro, por exemplo, não é já fácil passar por
isso.
– Ora, em que se baseia essa renascença? na saudade? Mas isso póde lá ser! A
saudade é, por sua natureza, um sentimento depressivo. A saudade é a recordação de uma
pessoa querida que nos faltou. Cultivar a saudade é amarrar-se ao passado, é alimentar um
estado mórbido, é ajudar a definhar mais a raça.
Todos esses rapazes cantam tristezas, maguas que eles proprios criam; mas isso
não é modo de renascer. Todos eles descendem de uma fase de decadencia, de regressão,
iniciada pelos Simples, E aí tem porque Junqueiro está com êles.
Nesse livro, Junqueiro tornou-se contemplativo, asceta. Veja quão grande
distancia vai dêle até á Morte de D. João! O que neste é vida, entusiasmo e fé, é no outro a
lamuria, o regresso á vida rural, a contemplação da propria sombra. (REPUBLICA, 591: 1)
Júlio de Matos critica o ascetismo contemplativo de Guerra Junqueiro (18501923),
característico do mundo inspirado, o qual associa à «lamúria», ao «regresso à vida
rural» e à «contemplação da própria sombra». Pelo contrário, o mundo industrial, é
regido pela organização, o rendimento, a eficácia e o desempenho, razão pela qual o
psiquiatra critica a desorganização e o desalento dos portugueses, contrapondo a
eficácia da Inglaterra, onde «há bons poetas e magníficos prosadores», bem como a
energia da Alemanha, «um país cheio de vida» que se «procura engrandecer». «Ainda
se os nossos escritores lessem os livros ingleses e alemães», mas nós «só estamos em
correspondência mental com a França». Segundo Júlio de Matos, «a nossa literatura,
como todas as manifestações da vida nacional», atravessava «uma fase de assustadora
desorientação», não se constituindo por isso, na gramática do mundo industrial, em
figura harmoniosa da ordem natural. A desorganização da literatura portuguesa era, para
o psiquiatra, justificada pela «correspondência mental» com os franceses, que «mais
procuram escolher títulos do que escrever obras de valor», remetendo assim os novos
poetas portugueses para um pequeno estatuto literário. Desta forma, Júlio de Matos
desqualifica os escritores de A Águia, em que tudo seria «muito ordinário», os quais,
tomados por «um sentimento depressivo» de desalento saudosista, não teriam dignidade
nem energia para se engrandeceram, produzindo o bem comum que é a literatura
(REPUBLICA, 591: 1).
104
III.7.2. A crítica doméstica de Lopes de Mendonça
Em 6 de Setembro de 1912, Boavida Portugal publicou, igualmente na primeira
página do jornal República, o depoimento escrito de Lopes de Mendonça (1856-1931),
«um nome bem conhecido no nosso país; não tanto como oficial da marinha, que foi a
carreira que lhe deram, mas como escritor, que foi a carreira que tomou». Lopes de
Mendonça era o autor da letra de «A Portuguesa», adoptada como hino nacional no ano
anterior126, contando já extensa obra publicada, sobretudo dramática. O escritor nega a
existência de «uma forte corrente literária, por falta do indispensável estímulo, que são
os leitores», sendo um dos inquiridos que Boavida Portugal acusa de se esquivar «a
responsabilidades, a questões, a coisas…». No seu discurso diplomático, espirituoso e
sem pretensões intelectuais, Lopes de Mendonça assume uma postura de sábio
benevolente face à nova geração de escritores, porque «perdemos o norte literário desde
que correntes várias nos desviaram do romantismo». O escritor mobiliza, sobretudo,
uma gramática doméstica, para criticar a evasão à rotina do mundo inspirado da «nova
poesia portuguesa», considerando preferível que «não viessem desengonçar-nos o
pescoço com torcegões violentos para nos obrigarem a olhar para outra banda». Lopes
de Mendonça critica também a indolência, pois «nós, os portugueses, temos grande
tendência para nos deslumbrarmos com as novidades», estando «sempre dispostos a
acolher sem grande critério as últimas doutrinas aparecidas, por mais exageradas ou
revolucionárias». A indolência corresponde à menor ordem de grandeza das pessoas no
mundo doméstico, sendo também a causa do seu declínio. Neste sentido, a «facilidade
de assimilação, para não dizer de imitação», com que «nós prejudicamos e
desnaturamos a seiva riquíssima que sobretudo se revela na nossa obra poética», seria
reveladora do definhamento intelectual e literário dos portugueses.
Lopes de Mendonça concorda com Júlio de Matos, para quem «vivemos a imitar
a literatura francesa», pois, na sua opinião, «os nossos homens de letras» são acusados
«de recortar as suas criações pelos figurinos de França». A principal função dos
objectos, no mundo doméstico, consiste em afirmar e manter a relação de dependência
hierárquica entre as pessoas (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 211). Lopes de Mendonça
126
Com letra de Henrique Lopes de Mendonça (1850-1923) e música de Alfredo Cristiano Keil (18561931) «A Portuguesa» foi composta em 1890, na sequência do ultimatum inglês. Esta marcha foi usada
como hino do movimento revolucionário do Porto, em 31 de Janeiro de 1891. Proibida pelo regime
monárquico, «A Portuguesa» foi adoptada como hino nacional em 1911, embora com ligeiras alterações:
foram substituídos os versos «Contra os bretões» por «Contra os canhões».
105
sublinha a dependência da literatura francesa, não apenas dos escritores mas também
dos leitores, afirmando que nas «principais livrarias de Lisboa» seria difícil
«descortinar, no meio da avalanche das novidades de Paris, o recanto onde se encolhem,
trémulos de pejo, os livros portugueses». No mundo doméstico, marcado por relações
de dependência pessoal, os pequenos imitam os grandes, aliás, essa é mesmo a sua
actividade preferida, pelo que a imitação dos franceses comprova a reduzida grandeza
dos escritores portugueses (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 217). Contudo, enquanto
para Júlio de Matos, na revista A Águia tudo era «muito ordinário», Lopes de
Mendonça, pelo contrário, declara-se «verdadeiramente surpreendido pela beleza de
versos, subscritos por nomes» quase desconhecidos de «uma revista de rapazes». A
alusão do escritor à revista A Águia afirma a sua autoridade literária sobre «a rapaziada
mais nova», manifestando assim a tensão entre uma geração mais velha, a dos escritores
reconhecidos, e a geração dos novos escritores que procuravam afirmar-se na república
das letras. Enquanto objecto literário, a revista A Águia desempenha uma função
específica no discurso de Lopes de Mendonça, na medida em que «manifestar a relação
hierárquica entre as pessoas constitui, no mundo doméstico, a determinação principal
dos objectos» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 212). Sendo a hierarquia o princípio
superior do mundo doméstico, o escritor expressa o seu julgamento neste apreço pelos
jovens escritores «quase desconhecidos», respeitando assim o princípio da comum
humanidade (REPUBLICA, 593: 1).
Ainda ha dias, espreitando para fóra do meu poço, eu passei os olhos por varios
numeros de uma revista de rapazes, e fiquei verdadeiramente surpreendido pela beleza de
versos, subscritos por nomes para mim quase desconhecidos. Pezou-me que os maculassem
certas extravagancias de fórma, certos exotismos de linguagem, certas nebulosidades
rebuscadas, um certo formulário escolastico e artificial… Eu bem sei que isto são pecados
de mocidade, que os anos remediarão. Mas a generalização destas tendencias revela, a meu
vêr, uma falta de substractum nacional, assás resistente para neutralisar influencias
estranhas e por vezes morbidas. É possível que eu veja mal, o que não admira, em vista de
ir entrando pela velhice dentro. Sim! Porque sempre consola o nosso amor-proprio o
atribuir estas deficiencias à velhice.
Mas como quer tambem que em Portugal exista uma forte corrente literaria, bem
nacional e exuberante, se nos falta o indispensavel estimulo, que são os leitores? Não ha
medalha que não tenha o seu reverso. O que principalmente prejudica a nossa literatura é
sabermos todos – todos, é claro, falo da gente culta – sabermos todos francês. Entra a gente
em qualquer das principais livrarias de Lisboa, e custa-nos a descortinar, no meio da
106
avalanche das novidades de Paris, o recanto onde se encolhem, tremulos de pejo, os livros
portugueses. (REPUBLICA, 593: 1).
«É por referência à geração, à tradição e à hierarquia que uma ordem pode ser
estabelecida entre os seres de natureza doméstica». Segundo Boltanski e Thévenot, os
três termos são equivalentes na medida em que «o laço de dependência pessoal que liga
ao superior, sempre à imagem do pai – em que o estado de grandeza é o mais elevado
porque ele é a encarnação da tradição» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 207-208). Neste
sentido, Lopes de Mendonça engrandece-se porque encarna a tradição quando elogia a
«revista de rapazes», estabelecendo uma relação geracional, característica do mundo
doméstico. Neste repertório dos sujeitos, «sempre definidos por uma relação de
subordinação equivalente à relação dos filhos com o pai, os adultos, os idosos e as
pessoas importantes são homólogos» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 211). Esta relação
pessoal homóloga permitiu ao dramaturgo converter a sua ascendência geracional em
grandeza literária, sobretudo devido ao conhecimento e experiência que a idade lhe
conferia, colocando assim na sua dependência a nova geração de escritores. Ao admitir
a eventualidade de estar errado, Lopes de Mendonça afirma de facto a sua autoridade,
«em vista de ir entrando pela velhice dentro», porque «sempre consola o nosso amorpróprio o atribuir estas deficiências à velhice». Neste sentido, o dramaturgo denuncia
como «pecados de mocidade, que os anos remediarão», «certas extravagâncias de
forma, certos exotismos de linguagem, certas nebulosidades rebuscadas», que atribui
aos escritores da nova geração. Contudo, o que para Lopes de Mendonça são
«influências estranhas e por vezes mórbidas», constituem uma descrição fiel da fórmula
de investimento literário dos novos poetas, que ele designa como «formulário
escolástico e artificial». Desta forma, os «pecados de mocidade» apontados por Lopes
de Mendonça, enquanto transgressões da tradição literária, revelam uma operação
crítica ao mundo inspirado dos jovens poetas que reforça a hierarquia, remetendo estes
escritores para uma ordem de grandeza menor no mundo doméstico (REPUBLICA, 593: 1).
III.7.3. Teixeira de Pascoaes e as justificações do mundo inspirado
Uma das questões do inquérito de Boavida Portugal prendia-se com a
«existência e fins da renascença literária em Portugal», pelo que «o nome do Sr. Dr.
Teixeira de Pascoaes, não só como poeta, mas, sobretudo, como director da revista107
órgão da Renascença Portuguesa A Águia, impunha-se naturalmente». Desta forma, o
depoimento escrito do «chefe dos renascentes», no qual ele afirma que «a poesia
religiosa da Raça é o primeiro sinal do seu renascimento», foi o terceiro publicado no
diário República, em 7 de Setembro de 1912. Pascoaes tinha então uma obra «de dez
volumes compostos e publicados num período de onze anos», contudo, o seu
pensamento poético desenvolveu-se «com tal rapidez que, para não lhe ficar atrás», teve
de «o exteriorizar em livros escritos à pressa». Por isso, o poeta pretendia «corrigir e
aperfeiçoar» a sua obra, quer dizr, a sua vida, remetendo assim para um mundo
inspirado na «Caridade» e na «Modéstia». Neste sentido, a justificação de Pascoaes
revela uma gramática em que a efusividade da inspiração constitui o princípio superior
comum (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 200).
Segundo Teixeira de Pascoaes, a sua obra dera «ao espírito português alguma
coisa que lhe faltava», mas porque o mundo inspirado se encontra em permanente
tensão com o mundo do renome, causava ao poeta repugnância em falar de si próprio,
pois a sua pessoa podia «ser posta de parte sem que se torne sensível a sua falta». Com
efeito, «uma das características principais da grandeza inspirada» consiste na renúncia
de si próprio para valorizar os outros (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 113). Pascoaes
nomeia então uma série de poetas que «criaram em Portugal uma poesia profundamente
portuguesa e original», bebendo «a sua inspiração no mais íntimo veio religioso da alma
lusitana, criadora da Saudade». Na sua opinião, o saudosismo cultivou «a poesia
religiosa da Raça», inspirada no «sentimento lusitano», nascido «do casamento do
Paganismo com o Cristianismo». Portugal seria assim «a terra natal da Elegia», «a
forma divina do Lirismo Português», «a nossa alma religiosa», isto é, «o próprio olhar
da saudade» (REPUBLICA, 594: 1).
Para aceder à grandeza inspirada é necessário deixar a postura racional e disporse a «tudo abandonar para se consagrar à sua vocação», o que implica o afastamento da
rotina, o desprendimento da vida mundana e o sacrifício da estabilidade proporcionada
por outros mundos (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 203). Esta fórmula de investimento
levou Pascoaes a abandonar o cargo de magistrado, que desempenhava em Amarante,
para se dedicar à literatura, recolhendo-se na propriedade da família, na qual viveria até
ao fim dos seus dias. O poeta contemplativo da natureza surge então como um exemplo
da singularidade artística, com o correspondente dom literário e a dedicação à sua obra,
a «única razão» da sua vida, através da ascese, do misticismo e do sacrifício que
108
caracterizam o mundo inspirado (HEINICH, 2000: 316). Neste mundo hagiográfico, a
ascese do anacoreta Pascoaes, com o inerente sacrifício de abandonar a segurança de
outros mundos, constitui a fórmula de investimento pela qual ele procurou a grandeza
legítima (REPUBLICA, 594: 1).
Na época actual, pertence á Poesia o lugar mais alto na nossa literatura. Não digo
isto por causa da minha pessoa, que pode ser posta de parte sem que se torne sensível a sua
falta. Nem quero mesmo referir-me aos dois maiores poetas europeus – Guerra Junqueiro
e Gomes Leal.
Basta-me falar de Antonio Correia de Oliveira, Jaime Cortesão, Afonso Lopes
Vieira, Mario Beirão, Augusto Casimiro, Afonso Duarte, e, depois destes, dos novissimos
poetas, Carlos de Oliveira, Augusto Santa Rita, Afonso Mota Guedes. Eis uma vasta seara
espiritual dadivosa e prometedora dos mais belos frutos. Estes poetas criaram em Portugal,
uma poesia profundamente portuguesa e original. Eles bebem a sua inspiração no mais
intimo veio religioso da alma lusitana, criadora da Saudade, a Virgem do Desejo e da
Lembrança, nascida do casamento do Paganismo com o Cristianismo. Os seus versos são
feitos de luz do sol e de lágrimas, de terra e ceu, de beijos e de preces, de sombras e
claridades. É a poesia religiosa da Raça o primeiro sinál do seu renascimento. Quando a
alma de um Povo está para criar uma nova primavéra espiritual, a Poesia é a primeira flôr
que aparece. (REPUBLICA, 594: 1)
No mundo inspirado, nebuloso, vago e em constante transformação, «as relações
naturais são de criação», em que cada «ser cria e se deixa criar pelos outros». Por isso,
Teixeira de Pascoaes afirma que «o português vive pouco dentro da alma humana; a sua
vida dispersa-se pela natureza, a sua dor é mais feita das lágrimas das coisas, recebe-a
mais do exterior que dos íntimos sobressaltos do espírito». O poeta procurou no
saudosismo a figura harmoniosa da ordem natural, justificando a grandeza literária
através de uma equivalência mística que apela ao imaginário e ao subconsciente. «Os
grandes inspirados compreendem os outros seres, englobam-nos e realizam-nos, não
representando o que eles teriam de comum, mas, pelo contrário, afirmando a sua
singularidade». Esta evidência confere ao poeta a certeza da intuição, razão pela qual
Pascoaes não hesitou em conceder «à Poesia o lugar mais alto na nossa literatura»,
considerando mesmo Guerra Junqueiro e Gomes Leal os «dois maiores poetas
europeus» (REPUBLICA, 594: 1). O mundo inspirado afasta-se assim da «desmoralizante
realidade», obrigando o poeta a «adoptar uma “linguagem diferente”, aquela das
imagens, dos fantasmas, dos símbolos, dos mitos, das lendas». O discurso de Teixeira
109
de Pascoaes torna-se então mais místico, mais nebuloso, reflectindo a «misteriosa
alquimia da criação, a alquimia das coisas e a alquimia do verbo» (BOLTANSKI &
THÉVENOT, 1991: 203-205).
III.7.4. A crítica cívica de Augusto de Castro
Em 9 de Setembro de 1912, Boavida Portugal publicou, no jornal República, o
depoimento escrito de Augusto de Castro (1883-1971), «sem dúvida, uma figura de
relevo dentro das letras portuguesas. Não porque ele cultive todos os géneros literários,
como muita gente; mas, sobre tudo, pelo amor que dedica ao teatro». O jornalista afirma
saber «quanto vale», o mais jovem inquirido, «inteligente e estudioso», que contesta a
existência de uma literatura nacional. Para Augusto de Castro, a sua época seria de
hesitação e de dispersão, na qual «a humanidade procura estados novos de solidariedade
e de síntese» e, sendo «a literatura, expressão moral desse esforço, tacteia também o
caminho em busca de fórmulas novas». Na sua gramática argumentativa, o jovem
dramaturgo valoriza os seres colectivos e a vontade geral, princípio superior comum do
mundo cívico. Neste mundo, em que o interesse geral prevalece sobre o particular, os
indivíduos apenas acedem às ordens superiores de grandeza enquanto membros do
colectivo a que pertencem e que os representa, embora a frágil existência desses seres
colectivos possa facilmente ser questionada (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 231). Desta
forma, o dramaturgo não vê «em Portugal quaisquer correntes literárias dominantes»,
negando mesmo a existência de uma literatura nacional, como também, na sua opinião,
não existiria um público literário. Neste sentido, o jovem Augusto de Castro concorda
com o veterano Lopes de Mendonça, segundo o qual não existia «uma forte corrente
literária, por falta do indispensável estímulo que são os leitores».
«Não temos, pois, uma literatura – o que não quer dizer, repito, que não
tenhamos uma elite literária e, dentro dessa elite, figuras eminentes e de sensível acção
mental». Contudo, para Augusto de Castro, essas figuras «devem ver essa acção isolada
e restrita a camaradagens literárias, a coteries, a círculos limitados de admirações ou
afectos», devidos «apenas ao momento e ao meio em que vivem». O dramaturgo refere
então «uma ou duas dúzias de escritores de mérito», que «vinte ou trinta anos» antes
exerciam no «país uma acção moral e mental», mas cujo falecimento ou distanciamento
da vida literária teriam privado os portugueses das suas «ideias representativas». Para
Augusto de Castro, a grandeza destes «escritores de mérito» resultava de serem «figuras
110
representativas» do «homem de letras em Portugal», pelo que, desprovidos dessa
representatividade, os jovens escritores seriam comparativamente menores. Com efeito,
no mundo cívico, um ser é considerado grande se for reconhecido como representativo,
o que equivale a compreender os outros e a sua relação de grandeza. É a
representatividade que confere, no mundo cívico, autoridade e capacidade para o
exercício do poder no colectivo representado (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 232).
Segundo Augusto de Castro, a nova geração de escritores movia-se em «círculos
limitados de admirações ou afectos» e, ainda que tivesse leitores, mostrar-se-ia incapaz
de compreendê-los, não gerando, portanto, a «coesão mental» necessária para criar o
seu próprio «público literário». Para o dramaturgo, a ausência deste actor colectivo seria
a principal razão pela qual negava a existência de uma verdadeira literatura nacional.
Nesta perspectiva sociológica, os escritores portugueses podiam ter leitores mas não
tinham público, o qual seria constituído por um «número de indivíduos, fisicamente
separados», mas com «uma determinada “coesão mental”». Na opinião de Augusto de
Castro, em Portugal não se verificava tal coesão, o que impedia a formação de um
«público literário», sem o qual «a literatura é uma palavra – mas não pode ser uma
realidade moral». No mundo cívico, o gosto comum pela leitura traduziria a dignidade
das pessoas, enquanto a sua união através da literatura, formando um colectivo,
engrandeceria os escritores. Contudo, a singularidade dos novos escritores implicaria a
incompreensão dos leitores, com a consequente incapacidade para conseguir a sua
adesão à literatura. A dificuldade dos renascentes em transformar uma produção literária
única e original em geral e universal, ou seja, a sua incapacidade para subir em
generalidade, impedia-os de exercer a sua «função social», donde resultaria a falta de
«coesão mental» dos leitores. Em consequência, estes não constituiriam um público,
impedindo assim a emergência de uma verdadeira literatura nacional. O particularismo e
o isolamento determinariam assim o pequeno estatuto da nova geração de escritores,
enquanto a falta de unidade, ou «coesão mental», dos leitores assinalaria o declínio da
literatura portuguesa (REPUBLICA, 596: 1).
A estas causas de caracter geral, outras causas de disciplina acrescem em Portugal.
Portugal atravessa um periodo de combate, sem ter, aliás, uma literatura ou uma arte de
combate. Certamente porque êsse combate é muito mais de homens do que de ideias, muito
mais de pessoas do que de principios – e as proprias ideias e principios que há em luta estão
111
atrazados, no movimento intelectual da Europa, pelo menos, quarenta ou cincoenta anos e,
na sua expressão literária, fizeram já em toda a parte o seu tempo.
Daí, meu caro amigo, o divorcio entre a sociedade em que vivemos e a arte que
produzimos. Por isso, especificadamente, no caso que interessa ao seu inquérito, dir-lhe-ei
mesmo que, neste momento, não só não vejo em Portugal quaisquer correntes literárias
dominantes, como, apesar de encontrar e admirar algumas figuras literárias de relevo, eu
contesto que nós tenhamos presentemente uma literatura. (REPUBLICA, 596: 1)
Augusto de Castro considera a literatura «uma força espiritual dirigente»,
sobretudo como realidade e expressão do mundo cívico, no qual teria a «função social»
de exercer «uma acção moral e mental». Contudo, o dramaturgo verifica um «divórcio
entre a sociedade em que vivemos e a arte que produzimos», o que atribuia ao facto de
os portugueses estarem «atrasados, no movimento intelectual da Europa, pelo menos,
quarenta ou cinquenta anos». Para Augusto de Castro, este atraso revelava a decadência
da literatura nacional, a qual «pode ser, porém, uma fase de renovação e é, sem dúvida,
um aspecto da crise geral portuguesa». Com efeito, as pessoas podem escapar ao caos
que representa a sua divisão, acedendo à grandeza, porque são seres políticos que
transportam em si valores de unidade que, no mundo cívico, lhes conferem dignidade
(BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 233). Neste sentido, o jovem dramaturgo considera
indispensável «uma acção social e moral» dos escritores, «que são num país os naturais
detentores da tradição do sentimento e da língua». A missão dos literatos seria «a de
concorrer, pelo seu esforço artístico, para o fortalecimento do espírito de
nacionalidade», abandonando o isolamento e os interesses particulares para atingir o
bem comum. Interpretando o interesse geral, Augusto de Castro defende o
engrandecimento da literatura portuguesa através de uma «subida em generalidade»,
que geraria um sentimento patriótico colectivo, produzindo assim um «público literário»
(REPUBLICA, 596: 1).
III.7.5. Megalomania e messianismo
Em 16 de Setembro de 1912, igualmente na primeira página do jornal República,
Boavida Portugal publicou o depoimento escrito de Francisco Adolfo Coelho (18471919),
«incontestável autoridade», tanto «na cátedra como no livro». Segundo o
jornalista, «o distinto filólogo» e «lente da Faculdade de Letras» da Universidade de
Lisboa tinha sabido manter «uma linha de superior critério e sabedoria» que o tornara
112
«ídolo dos seus discípulos e dos seus leitores». Francisco Adolfo Coelho leccionava a
cadeira de Filologia Românica no Curso Superior de Letras127, tendo sido professor de
Fernando Pessoa nos anos lectivos de 1905-1906 e 1906-1907 (PRISTA, 2001: 159-163) 128.
O filólogo declara estar «longe de conhecer toda a produção literária» dos últimos doze
anos, e por isso começa por se interrogar sobre a melhor forma de «julgar com
segurança» o «movimento literário novíssimo», avaliando, «com algum rigor», a «mais
recente geração» de escritores. Na opinião de Adolfo Coelho, para essa apreciação seria
essencial «um estudo rigoroso» da «vida nacional», principalmente dos aspectos sociais,
«sobretudo pelos lados artísticos, ético, religioso, científico». Usando uma metodologia
semelhante à do seu ex-aluno, o professor propunha-se aplicar o «processo indutivo» ao
«problema literário», fazendo um «exame comparativo» do «período iniciado» e do
«período imediatamente anterior da nossa literatura». Para Adolfo Coelho, este período
teria começado na década de 1860-1870, «pela chamada escola coimbrã, cujo decano
foi João de Deus», na qual se destacaram também Antero de Quental e Teófilo Braga,
«em cujo movimento entraram ainda outros, mais ou menos distintos», como Oliveira
Martins, Eça de Queiroz e Guerra Junqueiro (REPUBLICA, 603: 1):
A comparação entre o que se fez em Coimbra, naquele lembrado decenio de 18601870, e o que se faz agora, principalmente, ainda em Coimbra, e no Porto; uma
comparação, por exemplo, de A Águia e o Dionysos com o esquecido Tira-Teimas, revelaria
tendencias em parte muito analogas. Diferença notavel consiste em que então pontificava o
velho Castilho, por cuja chancelaria se passavam cartas de talento e genio e se decretava a
destituição de Camões, promovendo ao logar suposto vago o bacharel Tomás Ribeiro,
poeta de agua de groselhas, segundo a classificação de Ricardo Burton. Os de 60 e tantos
tinham no seu caminho, na chancelaria de Castilho, uma delenda Carthago, de que não
existe paralelo no seculo XX, a não se tomar como tal a temerosa mediocridade e inercia de
espírito da enorme maioria. (REPUBLICA, 603: 1)
127
Com a fundação da Universidade de Lisboa, em 1911, este «Curso» foi convertido na Faculdade de
Letras.
128
Em 20 de Abril de 1906, o jovem Pessoa anotou no seu diário: «Have three dissertations to do for the
Curso; this will take my time, which is precious. Have to finish many little poems yet fragmentary». Em
11 de Maio, dia em que leu os primeiros capítulos de L’Homme Criminel, de Lombroso, Pessoa escreveu:
«Preparing my philosophical phalacy – “On the Phenomenology of the Lexicon”, for the Philology Class;
the subject given us was “A Orientação do Lexicon”». No dia 14 escreveu: «Curso – Philology.
Wandered about. Vagabondage by obsession». Em 18 acrescentava: «Am continuing at home my
dissertation on philology, or rather the parody meant for one. Read nothing; no time», e no dia seguinte:
«My philological dissertation is lagging on account of lack of fictious arguments» (PESSOA, 2003: 3640). Pessoa concluiu o seu ensaio «Da Impossibilidade de uma Ciência do Lexicon» em Junho de 1906
(PESSOA, 2003: 406).
113
Adolfo Coelho critica os artigos de Pessoa publicados na revista A Águia, o qul é
o principal visado, concluindo que não existiam condições para uma «verdadeira
renovação literária». O filólogo não descarta a hipótese de ela «surgir num futuro mais
ou menos próximo», mas comparando os dois períodos literários, apesar das
semelhanças, ele encontra uma diferença fundamental: embora no século XIX houvesse
«o mesmo culto de Camões», essa época «não tinha visão messiânica». Na opinião de
Adolfo Coelho, os jovens escritores «daquela geração contavam só consigo mesmos e, a
pensarem em Messias, cada um no foro íntimo se julgaria tal». Sem nomear o autor, o
professor cita então o artigo de Fernando Pessoa, «Reincidindo…», segundo o qual,
«para Portugal se prepara um período de criação literária e social como poucos o mundo
tem tido… conclui-se o breve aparecimento na nossa terra do tal supra-Camões?».
Adolfo Coelho acrescenta, ironicamente, que a «frase é humilde e acanhada. A analogia
impõe mais. Diga-se de um Shakespeare e dê-se por testemunha o raciocínio, já que não
é citável o futuro (A Águia, 1912, n. 5, pág. 143)». Para o filólogo, a geração de Antero
de Quental e Teófilo Braga não estaria totalmente isenta de «megalomania», pois, entre
amigos, este considerava-se «um dos três homens máximos da história». Mas na sua
opinião estaria «ainda mais, muito mais, generalizada» no século XX, uma vez que a
«megalomania» já não era apenas individual, mas sobretudo colectiva. Desta forma,
respondendo ao tom jocoso dos artigos de Pessoa, o professor critica não apenas a
«megalomania» e o «messianismo» do seu antigo aluno, mas também a revista A Águia
e os escritores da Renascença Portuguesa (REPUBLICA, 603: 1).
Oliveira Martins escrevia em 1892, quando era chamado a acudir á crise
financeira do país: «As nações não morrem enquanto há homens», isto é, enquanto
possuem um Oliveira Martins. A megalomania está hoje ainda mais, muito mais,
generalizada; há-a individual e colectiva. Na Faculdade de Letras, por exemplo, aparecem
sujeitos que se dizem de posse da filosofia definitiva, da filosofia que há-de dominar o
futuro, mas que ignoram o que há de mais elementar em lógica e psicologia. Talvez cada
um dos nossos poétas se julgue o tal sobre-Camões, o tal Shakespeare. O titulo Aguia é
caracteristico, não sei se reminiscência do Condorismo brasileiro, cujos representantes
como Castro Alves, Fagundes Varela, se me afiguram (apesar da zombaria de Camilo,
sobretudo por causa do nome Fagundes – coisas de Camilo!) muito superiores aos nossos
novíssimos. Não queira todavia o destino que o libertar-se da Aguia lembre antes o
esvoaçar do môcho. (REPUBLICA, 603: 1)
114
Segundo Fernando Pessoa, estaria «para muito breve o inevitável aparecimento»
do «Grande Poeta» que «deslocará para segundo plano a figura, até agora primacial, de
Camões» (PESSOA, 1912a: 107), mas o seu antigo professor não acreditava nessa «aurora
de um verdadeiro renascimento literário». Na contundente operação crítica que teceu à
revista A Águia, Adolfo Coelho procurou contrariar a análise encomiástica de Fernando
Pessoa à «nova poesia portuguesa». Para o filólogo, alguns dos novíssimos escritores
pensavam que «a poesia do futuro deverá ser simples, muito simples, como já tinham
tentado por vezes João de Deus e outros». Contudo, a simplicidade facilmente se
converteria em chateza, banalidade, e «vacuidade de sentidos e ideias». Adolfo Coelho
refere então o exemplo dos românticos e seus seguidores, que introduziram muitas
vezes o espírito da natureza na sua poesia. O «hilozoísmo, a personificação ou
animismo, fizeram subir a natureza à altura do homem», mas, na sua opinião, os
novíssimos escritores eram, em geral, «de grande infelicidade nesses processos de
apercepção estética». Referindo-se a Fernando Pessoa, mas nunca citando o seu nome, o
professor afirma, jocosamente, que neste «género parece que A Águia só chega a soltar
pios como os seguintes, aliás com admiração de um crítico do grupo». Adolfo Coelho
justifica a sua perspectiva com os mesmos versos que Pessoa usou, no seu artigo
«Reincidindo…», para chegar a conclusões opostas (REPUBLICA, 603: 2).
No genero parece que A Aguia só chega a soltar pios como os seguintes, aliás com
admiração de um critico do grupo:
A folha que tombava
Era alma que subia
E mal o luar os molha,
Os choupos, na noite calma,
Já não tem ramos nem folha,
São apenas choupos de alma.
Ha paralelos disto do seculo XVII.
A deficiência técnica, em que tantas vezes naufragaram os arrojos do Junqueiro,
manifesta-se muito em os novíssimos. Afundam-se estes nas suas pretenções á
originalidade, evitando leituras e estudos reveladores da existencia de uma estética
normativa que são incapazes de sacar integra do proprio espirito. Condição essencial do
progresso para cada um está em que se reconheça como um elo na cadeia da Evolução e
não se julgue capaz de se constituir em começo absoluto. Há nessa pretenção a uma
originalidade absoluta erro fundamental e ruinoso, muito do português, em todos os
115
dominios da actividade mental. Parece rara no estrangeiro. Há pouco um crítico da Revue
bleue castigava-a nalguns escritores franceses. O grande Goethe, ao contrario dêsses
originais, tinha sêde de informação e o vasto manancial da que adquiria não lhe fazia
perder jamais o cunho da sua personalidade. Os verdadeiros originais, dizia um psiquiatra,
encontram-se nos manicomios. (REPUBLICA, 603: 2)
Segundo Adolfo Coelho, «tudo na vida do homem, como na natureza, tem seu
lado poético, como lado moral», pelo que «as questões sociais, religiosas, políticas, a
filosofia, nos seus mais elevados aspectos, ministram objecto para nova poesia ainda
muito pouco aproveitado». Para o professor, os novos escritores tocavam «apenas de
leve nesse pomo dourado», embora visse como «um bom sintoma» o descrédito em que
caíra «o positivismo contista, que aliás não fora o Credo de muitos da geração anterior».
Embora aceitando que os novos escritores pudessem evoluir, Adolfo Coelho não
encontrou «correntes bem caracterizadas, nas diversas formas literárias cultivadas pelos
novíssimos», nem «individualidades suficientemente distintas». Desta forma, o
professor contrariou a crítica de Fernando Pessoa, «A Nova Poesia Portuguesa
Sociologicamente Considerada», pois, na sua opinião, os novos escritores eram
«inferiores aos melhores, pelo menos, do período anterior» (REPUBLICA, 603: 2).
III.7.6. A justificação de Fernando Pessoa
«Agora é o colaborador d’A Àguia, Sr. Fernando Pessoa, que vem responder ao
ilustre filólogo e lente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Sr. Dr.
Adolfo Coelho, que não crê no “Super-Camões”». Boavida Portugal anunciou assim a
carta que publicou no jornal República, em 21 de Setembro de 1912, sob o título «Uma
Réplica ao Sr. Dr. Adolfo Coelho». Enquanto sócio da Renascença Portuguesa, Pessoa
sentia-se no dever de responder a todas as críticas lançadas contra a associação, mas «as
dimensões escritas da resposta excederiam, e de muito, as dimensões de um artigo de
jornal». Por isso, reservava para um folheto, a editar pela Renascença Portuguesa, a sua
réplica completa, «discutindo, ponto por ponto, a como que argumentação dos
adversários da nossa novíssima poesia». Contudo, o Professor Adolfo Coelho tinha feito
«incidir uma parte do seu depoimento sobre um artigo» de Pessoa, motivando o
envolvimento do autor no «Inquérito à Vida Literária», para responder «às vagas
objecções feitas contra o carácter renovador e grande da nossa novíssima poesia». Além
disso, esta réplica ao professor Adolfo Coelho serviria também «para responder a outros
116
adversários da Renascença Portuguesa», tratando no tom «merecido alguns indivíduos
pouco inteligentes ou menos correctos», que responderam ao inquérito de Boavida
Portugal (REPUBLICA, 608: 1).
Essas duas objecções, que não pecam por explicitas nem por argumentadas se perdem, são:
1.º – que a nossa nova poesia não mostra avanço, especialmente no que diz respeito á
grandeza individual dos seus representantes, sobre a poesia da geração de 1860 a 1870; 2.°
– que não mostra avanço espiritual – isto é, em compreensão da Natureza, expressão de
emoções, etc., – sobre qualquer outra corrente poética – a romantica, suponha-se,
consoante exemplos indicados de Byron e Victor Hugo. Concretizando mais: para o Prof.
Adolfo Coelho a nossa novissima poesia nem pela grandeza dos seus poetas, nem pela
originalidade e grandeza do seu caracter geral se impõe como poesia caracteristica de uma
renascença; ou mesmo de um grande periodo poético. Isto é o essencial e o basilar do
artigo; o resto ou provém disto ou não tem nada que vêr para o caso.
As duas considerações citadas reduzem-se, para o contra-argumentador, a uma só.
É que a grandeza dos poetas de uma corrente literaria está sempre em relação com a
originalidade, o equilibrio e a nacionalidade (isto é, o caracter nacional) dessa corrente.
(REPUBLICA, 608: 1)
Segundo Fernando Pessoa, o «quase-erudito artigo» de Adolfo Coelho,
«aparentemente lúcido e motivado», carecia do «fio condutor de uma lógica»,
apresentando «uma íntima desconexão». Para o jovem crítico, a argumentação do
professor resumia-se, no essencial, a duas objecções «submersas em elementos
acidentais e anedóticos». O crítico sintetiza, aliás, os dois argumentos que atribui a
Adolfo Coelho em apenas um, «de modo que a questão se reduz simplesmente a
procurar o grau de originalidade, equilíbrio e nacionalidade no actual período poético
português». Usando o raciocínio dedutivo, Pessoa vai reduzindo o número de hipóteses
a verificar, uma vez que, na sua opinião, sendo provada a plena e equilibrada
originalidade de uma corrente literária, ficaria «ipso facto, provado o seu carácter
absolutamente nacional». Mas mesmo esta hipótese seria supérflua, «pois que perfeita e
verdadeira originalidade não existe sem equilíbrio perfeito». Segundo Pessoa, uma
corrente literária é «uma comunidade de ideias ou intuições característica de poetas e
literatos de uma época». Nesta perspectiva, para verificar a existência de uma nova
renascença literária «que de Portugal se derramará para a Europa, como de Itália se
derramou a outra Renascença», haveria que «analisar os estádios anteriores da evolução
literária da Europa moderna» e, a partir daí, deduzir as características do estádio
117
literário seguinte. Para Fernando Pessoa, os dois estádios anteriores eram a Renascença
e o Romantismo, pelo que, deduzidas as características do estádio seguinte, o problema
ficaria reduzido à verificação da hipótese de que etstas características seriam
coincidentes com as da «nova poesia portuguesa» (REPUBLICA, 608: 1-2).
Qual é a atitude da Renascença perante o Universo e a vida? O que é que para ela
constitue essencialmente a Realidade? É a alma e só a alma: a Renascença não tem o
sentimento da Natureza. Vejamos. Quais são as formas poeticas da Renascença? São ou
poemas de amôr (Petrarcha), ou poemas de acção humana (os poetas épicos) ou dramas
(Shakespeare e os dramaturgos do seu tempo). São portanto tres formas de poesia de Alma,
só de Alma – visto que tratam ou do sentimento que liga as almas – o amôr –; ou de acção
humana, acção de almas, portanto; ou, no seu poeta culminante, Shakespeare, mais
completamente ainda de almas em acção. Quanto á Natureza, os poetas da Renascença não
a sentem, por mais nitidamente que a vejam: assim, o mais observador de todos êles,
Shakespeare, não é poeta perante a Natureza, é observador simplesmente. Descreve o que
vê em maravilhosos versos; mas nenhuma simpatia o liga a essa Natureza que tão
nitidamente vê.
Dá-se com o romantismo o caso inverso. Para os romanticos a unica verdadeira
Realidade é a Natureza; da Alma conhecem só cada um a sua alma individual. Daí o
caracter inteiramente diverso da poesia romantica em relação á da Renascença.
(REPUBLICA, 608: 2)
Pessoa coloca então a questão central de saber em que consistia essencialmente a
realidade nestes dois períodos literários. Para ele, os poetas da renascença inspiravam-se
em ideias, enquanto os românticos se inspiravam em imagens, «isto é, os primeiros
pensam em termos de Alma e os segundos em termos de Natureza». Enquanto «para a
renascença a realidade é a Alma, para o romantismo a realidade é a Natureza». Uma vez
que Pessoa considera esgotado o conhecimento humano nestes dois objectos, um
terceiro estádio literário não teria novas realidades a explorar, restando-lhe apenas a
hipótese de uma fusão das realidades anteriores numa nova realidade. Pessoa deduz
assim que uma nova renascença literária teria como realidade a natureza-alma, razão
pela qual seria necessário realizar a fusão entre natureza e alma. Desta forma, a nova
corrente literária teria de conceber a natureza como alma, para se constituir como
renascença literária. Com efeito, segundo Pessoa, cada verso, cada frase dos novos
poetas exprimia o conceito de natureza-alma, chegando assim à conclusão de que a
118
«nova poesia portuguesa» apresentava as características de uma renascença literária
(REPUBLICA, 608: 2).
Para não fugir, porém, ao exemplo directo e individual, examinemos aqueles dois
trechos citados por mim e re-citados pelo professor Adolfo Coelho, cuja erudita
incompreensão não encontrou diferença entre êles e uma estancia, citada, de Byron,
inteiramente diversa no seu sentimento, perfeitamente romantico, de Natureza como
Natureza. O primeiro trecho é este, de Jaime Cortezão:
E, mal o luar os molha,
Os choupos, na noite calma,
Já não teem ramos nem folha,
São apenas choupos de alma.
Aqui temos, flagrantissimamente, o material concebido como espiritual – choupos
de alma. Vejamos o outro trecho: são os dois versos de Pascoais:
A folha que tombava
Era alma que subia.
Aqui temos o acto material, que é a queda de uma folha, concebido como acto
espiritual; e repare o professor Adolfo Coelho que Pascoais não compára a queda da folha á
ascenção da alma – a queda da folha, é materialmente, a subida da alma.
Comparando estes maravilhosos trechos a trechos de Byron e de Victor Hugo,
mostrou o professor Adolfo Coelho que não sabe olhar para além das palavras, e da méra
gramática das frases.
Eu bem sei que o professor Adolfo Coelho não pode sentir a nossa nova poesia;
ouso esperar que possa compreendê-la de longe, através do meu raciocinio. (REPUBLICA,
608: 2)
Segundo Fernando Pessoa, a «nova poesia portuguesa» seria «perfeita e
plenamente original», anunciando o dealbar de uma nova renascença literária. O jovem
crítico contraria assim não apenas Adolfo Coelho, mas também outros adversários da
Renascença Portuguesa, críticos da nova corrente literária, «que a consideram doentia e
confusa», lançando sobre os novos escritores o anátema da sua própria incompreensão.
Uma vez que, na sua perspectiva, a «nova poesia portuguesa» era «original e
equilibrada», Pessoa considera provado o seu carácter «inteiramente nacional»,
contestando por isso os que falavam em «estrangeirismos a propósito dela». Finalmente,
119
se a nova corrente literária era original, equilibrada e nacional, resulta da análise do
crítico que produziria «máximas figuras de poeta», contrariando assim o filólogo que,
na sua opinião, não saberia «olhar para além das palavras» nem «sentir a nossa nova
poesia». Desta forma, o antigo aluno contesta o Professor Adolfo Coelho, «primeiro
quando acha inferiores os nossos novíssimos poetas, e depois quando considera
messianismo a ideia de um Super-Camões» (REPUBLICA, 608: 2).
III.7.7. A crítica do renome de Júlio Brandão
Em 24 de Setembro de 1912, Boavida Portugal publicou o depoimento de Júlio
Brandão (1869-1947), «literato por demais conhecido» na república das letras,
procurando «esclarecer a situação da literatura portuguesa». A operação crítica deste
escritor e jornalista, fortemente jocosa e truculenta, repousa numa argumentação ad
hominem que visa sobretudo a figura de Teixeira de Pascoaes, não apenas como «sócio
gerente» da Renascença Portuguesa, mas sobretudo como poeta que «entrelaça na fronte
de Ária e de Semita os loiros do maior génio europeu contemporâneo». A gramática
argumentativa usada por Júlio Brandão na sua resposta ao «Inquérito à Vida Literária»,
remete para o mundo do renome, da reputação, da fama, da celebridade ou da
notoriedade. Neste mundo, a grandeza depende da opinião dos outros, antagonizando
assim o mundo inspirado, no qual a grandeza advém de um dom, princípio hagiográfico
ou inspiração interior, independente dessa opinião. Desta forma se compreende a
virulenta crítica de Júlio Brandão, usando a ironia e o sarcasmo, pois «a tentação do
renome constitui um dos principais motivos de declínio» no mundo inspirado
(BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 304).
A publicação de sondagens de opinião contribui para a transparência do estado
de grandeza dos famosos, permitindo perceber a tensão entre a grandeza ideal, autoatribuída por Pascoaes, e a grandeza real, atribuída pela opinião pública. Esta tensão é
patente no «Inquérito à Vida Literária», particularmente no discurso de Júlio Brandão, o
qual denuncia o «embuste» criado pelo poeta, bem como a sua alegada falsa modéstia.
Pascoaes procuraria a notoriedade, encenando a figura de um grande poeta, uma vez
que, no mundo do renome, «a opinião pública condiciona em larga medida o sucesso»
(BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 223). Para Júlio Brandão, o poeta alimentava a imagem
pública de uma figura harmoniosa «afectando modéstia, bondade, ternura ariana», mas
«nas entrelinhas pelo menos, ele é sempre o Supremo Génio, o mais profundo filósofo
120
contemporâneo». Neste repertório dos sujeitos, ele «afirma-o, e a rapaziada mais nova
acredita-o sob a palavra de honra de Pascoaes». Desta forma, Júlio Brandão questiona a
autenticidade do poeta, ou seja, o seu dom, expresso no saudosismo, escrevendo que «o
impagável Pascoaes», «na essência um tartufo», «é uma bexiga de porco, a rebentar de
vaidade». No mundo do renome, a inspiração é vista como loucura, na medida em que
advém de uma opinião singular, sendo impermeável à opinião dos outros (BOLTANSKI &
THÉVENOT, 1991: 304).
Por isso, segundo Júlio Brandão, a «poesia moderna tem, na
realidade, cultores notáveis», mas Pascoaes seria «um caso de manicómio», pois «as
baboseiras que escreve, em prosa de colegial», de «uma ignorância e de uma
abundância poética aflitiva», revelariam «uma arte pobríssima, sem o menor equilíbrio
estético». Para Júlio Brandão, a obra de Pascoaes, que ironicamente designa «a maior da
Europa», e «que o digno homem está a refundir em Amarante», apenas suscitaria
«aplausos ingénuos ou inconscientes» (REPUBLICA, 611: 3).
Deixei de propósito para ultimo lugar o caso do renascimento literário entre nós –
e quem o representa. Era o ponto burlesco.
É certo que existe uma taboleta «Renascença», com uma revista pendurada; mas
tudo isso me parece uma patuscada de vaudeville. Não quer isto dizer que não colaborem
nesse grupo homens de real talento; mas que fazem êles renascer? Não, a Renascença é
uma filarmónica, ou melhor, uma cooperativa, em que o sócio gerente, o impagavel
Pascoais, entrelaça na fronte de Aria e de Semita os loiros do maior génio europeu
contemporâneo. Ele afirma-o, e a rapaziada mais nova acredita-o sob a palavra de honra
de Pascoais.
Um movimento dirigido por êle – para orientar as classes mais cultas – é uma coisa
imprevista de audacia e de estupidez. As classes mais cultas! O snr. Pascoais é uma bexiga
de porco, a rebentar de vaidade, – e afectando modestia, bondade, ternura ariana. Na
essência é um tartufo. É um Budasinho que usasse navalha de ponta e mola. De uma
ignorancia e de uma abundância poética aflitiva. É ver as baboseiras que escreve em prosa
de colegial; é ver as suas notas de crítica – em que, nas entrelinhas pelo menos, êle é sempre
o Supremo Génio, o mais profundo filósofo contemporâneo. (REPUBLICA, 611: 3)
A renúncia ao segredo, à singularidade, à solidão e à vida privada, constituem o
sacrifício que devem fazer os grandes do mundo do renome e, entre os objectos que
servem a propaganda na república das letras encontram-se os jornais e as revistas. Para
ser reconhecido no mundo da fama, é recomendável ter «um nome, inscrito num
suporte, uma etiqueta, um emblema» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 225), por isso
121
Júlio Brandão aponta jocosamente «uma tabuleta “Renascença”, com uma revista
pendurada», numa alusão ao «Órgão da Renascença Portuguesa», a revista A Águia.
Enquanto para Júlio de Matos «tudo aquilo» era «muito ordinário, na opinião do
escritor, A Águia representava o «burlesco» de uma «patuscada de vaudeville» destinada
a «amparar no seu trono de papelão, por pouco tempo, o pateta de revista de ano que a
dirige». Apesar de tentar o sucesso e a fama através dos seus livros, e de procurar o
engrandecimento tendo por objecto a revista A Águia, para Júlio Brandão, Pascoaes não
passaria afinal de um poeta banal, subalterno, afirmando assim a sua pequena ordem de
grandeza. Neste sentido, a Renascença Portuguesa era vista, pelo escritor, como
colectivo destinado a influenciar a opinião pública, um dispositivo para engrandecer a
figura de Teixeira de Pascoaes. Tanto mais que o poeta, monárquico «desde os tempos
do franquismo129, que tão ardentemente amou», «apareceu republicano». Esta «rede de
propagandistas benévolos» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 228) ou «sociedade de
elogio mútuo» (REPUBLICA, 605: 1), apresentada como um movimento «para orientar as
classes mais cultas», seria «uma coisa imprevista de audácia e de estupidez». Dada a
tensão entre os mundos inspirado e do renome, Júlio Brandão não previa o surgimento
de qualquer Super-Camões, mas a queda iminente de Pascoaes do seu «trono de
papelão». Desta forma, apesar de ter na revista A Águia o seu objecto de propaganda no
mundo do renome, o poeta arrastaria consigo, para o abismo do desconhecimento, os
novos escritores renascentes (REPUBLICA, 611: 3).
III.7.8. A crítica comercial de Malheiro Dias
Carlos Malheiro Dias (1875-1941) foi o último inquirido por Boavida Portugal,
que publicou o seu depoimento em 10 de Outubro de 1912. Distanciando-se dos
escritores que recusaram o «Inquérito à Vida Literária», o romancista não teme «pôr em
estado de guerra a nossa conflituosa República das Letras». Para Malheiro Dias, era
compreensível a renitência dos escritores, na medida em que as questões colocadas por
Boavida Portugal pareciam «subentender a distribuição de um papel social importante
aos homens de letras portugueses». Contudo, na sua opinião, uma «profissão
economicamente inviável não pode corresponder senão a um valor social precário».
Neste sentido, o romancista afirma que o homem de letras em Portugal apenas poderia
129
Júlio Brandão referia-se à ditadura de João Franco (1855-1929), entre 1907 a 1908.
122
ser «um proletário, um parasita, ou um dilettante», vivendo «uma existência de
atribulações comovedoras». Malheiro Dias justifica a sua afirmação fazendo
corresponder estas categorias às três classes em que divide os escritores portugueses: «a
do que vive exclusivamente do produto da sua pena; a do que vive subvencionado pelo
Estado; a do que vive de recursos próprios ou adquiridos em outra ocupação que não
seja a literária». No mundo comercial, regido pela concorrência, o individual prevalece
sobre o colectivo e a dignidade das pessoas depende do seu interesse. Por isso, na
operação crítica de Malheiro Dias, as «desinteressadas dedicações» dos escritores
portugueses não permitiam manter «a dignidade da casta literária» ao nível dos «artistas
opulentos e adulados da França e da Inglaterra». Na sua opinião, a «profissão de homem
de letras não existe entre nós», o «que não revela mais do que a triste necessidade em
que se encontram os plumitivos de recorrer, para viverem, a profissões que deviam serlhes vedadas, por incompatíveis com as suas vocações». O discurso do romancista
remete para o conhecido binómio weberiano profissão/vocação ou, nas palavras de
Fernando Pessoa, ele próprio «empregado no comércio»130, «ser poeta e escritor não
constitui profissão, mas vocação»131 (REPUBLICA, 619: 1-2).
Um escritor vivendo da sua pena, altivamente, absorvido na sua tarefa de artista,
isolado de quaisquer subserviências burocraticas ou políticas, onde se encontra? A
profissão de homem de letras não existe entre nós. Quer isto significar que escritores não
existam dignos de fundar e honrar essa profissão? Não. Seria injustiça ingrata o admiti-lo.
Para exemplo bastará indicar esse artista admiravel, homem de letras até à medula, que
sucessivamente ou simultaneamente tem sido médico militar, professor do Conservatório,
comissario do govêrno junto ao Teatro Nacional e inspector das Bibliotecas – e se chama
Julio Dantas. É necessário que se seja fundamentalmente um escritor para, resistindo á
solicitação absorvente de tais tarefas, que sempre desempenhou com dedicação inexcedivel,
ter podido nos intervalos em que elas o deixavam em liberdade produzir uma obra
consideravel como a sua.
Já não é pouco o conseguir-se que esses funcionários do Estado, que são na sua
quase totalidade os nossos homens de letras, satisfaçam o luxo superfluo de uma literatura
que não poderia sobreviver sem as suas desinteressadas dedicações. Pedir-lhes ainda que
sejam mentores e directores da opinião, que exerçam com altiva independência um
sacerdócio para que lhes faltam fieis, e mantenham a dignidade da casta literária á altura
130
Bilhete de Identidade de Fernando Pessoa (ZENITH, 2008: 147).
131
Nota Biográfica de 30 de Março de 1935 (PESSOA, 2003: 204).
123
em que os artistas opulentos e adulados da França e da Inglaterra a elevaram, é exigir
muito. (REPUBLICA, 619: 1)
Para Malheiro Dias, não existia em Portugal uma verdadeira «vida literária»,
mas apenas «actividades literárias isoladas», concordando assim com Augusto de
Castro, o qual contestava a existência de uma literatura nacional. O romancista concorda
também com Lopes de Mendonça, para quem faltava «o indispensável estímulo, que são
os leitores». No mundo comercial, as acções são movidas pelos desejos das pessoas,
mas a falta de oportunismo dos novos escritores, fórmula de investimento deste mundo,
inviabilizaria a sua «subida em generalidade», resultando na fraca procura de livros.
Segundo Malheiro Dias, só conseguiriam «produzir obras de mérito» os «escritores, a
quem o Estado estipendiou, preservando-os da luta esterilizante contra a miséria», ou os
«que souberam criar meios de subsistência para custear esse dispendioso luxo de fazer
arte escrita num país analfabeto». Contudo, para o romancista, um «grande escritor não
se faz nas secretarias, com os resíduos cerebrais que lhes deixam as ocupações de que se
alimenta», o que impediria «a literatura nacional de corresponder em obra produzida ao
que devia esperar-se da qualidade mental de muitos dos seus cultores». Uma vez que o
engrandecimento legítimo implica sempre um sacrifício, os raros homens de letras que
conseguiriam «a glória», partilhavam a miséria da «geração literária que desperta». Na
gramática argumentativa de Malheiro Dias, a dependência do dinheiro, que determina
um pequeno estatuto no mundo comercial, patente na «impossibilidade em que se
encontra o homem de letras de viver para a sua arte e da sua arte», seria a principal
causa de decadência da literatura portuguesa (REPUBLICA, 619: 1).
124
CAPÍTULO IV
A loucura de Orpheu
16
Esta inconstancia de mim próprio em vibração
É que me ha de transpôr ás zonas intermédias,
E seguirei entre cristais de inquietação,
A retinir, a ondular... Soltas as rédeas,
Meus sonhos, leões de fôgo e pasmo domados a tirar
A tôrre d’ouro que era o carro da minh’Alma,
Transviarão pelo deserto, muribundos de Luar –
E eu só me lembrarei num baloiçar de palma...
Nos oásis, depois, hão de se abismar gumes,
A atmosfera ha de ser outra, noutros planos:
As rãs hão de coaxar-me em roucos tons humanos
Vomitando a minha carne que comeram entre estrumes…
[…]
As mesas do Café endoideceram feitas ar...
Caiu-me agora um braço... Olha, lá vai êle a valsar
Vestido de casaca, nos salões do Vice-Rei...
(Subo por mim acima como por uma escada de corda,
E a minha Ansia é um trapézio escangalhado...).
Lisboa – Maio de 1914
Mário de Sá-Carneiro
(ORPHEU 1: 12)
125
IV.1. O difícil trabalho de ressocialização
Após dois anos consecutivos sem ter concluído o primeiro ano do Curso
Diplomático, Fernando Pessoa abandonou os estudos para integrar o mercado laboral,
acalentando o sonho de vir a ser um grande escritor. Socializado em Durban na cultura
anglo-saxónica, o jovem Pessoa pensava e escrevia sobretudo em Inglês, deparando-se
com dificuldades de adaptação à realidade sociocultural portuguesa132. A desintegração
social e cultural do jovem estrangeirado, bem como a incerteza quanto ao seu futuro,
afiguram-se como causas do sentimento depressivo em que Pessoa mergulhou aos 18
anos. Num apontamento escrito em 27 de Julho de 1907, época em que abandonou os
estudos, o jovem tímido lamentava o seu isolamento e, não tendo «amigos
verdadeiramente íntimos», amante ou namorada, sentia-se «tão sozinho como um navio
naufragado» (PESSOA, 2003: 73).
Não tenho amigos verdadeiramente íntimos, e mesmo que houvesse um amigo
íntimo, como o mundo o entende, ainda assim não seria íntimo no sentido em que eu
entendo a intimidade. Sou tímido e não gosto de dar a conhecer as minhas angústias. Um
amigo íntimo é um dos meus ideais, um dos meus sonhos, mas um amigo íntimo é algo que
nunca terei. Nenhum temperamento se adapta ao meu; não há um carácter neste mundo
que dê o mais leve indício de se aproximar do que eu sonho num amigo íntimo. Basta, não
falemos mais nisto.
Amante ou namorada não tenho; é outro dos meus ideais e um ideal pleno, até à
sua alma, de uma total não-existência. Não pode ser como eu sonho. Ai de mim! Pobre
Alastor! Shelley, como eu te compreendo! Poderei confiar na Mãe? Quisera tê-la comigo.
Também não me posso confiar a ela, mas a sua presença mitigaria grande parte da minha
dor. Sinto-me tão sozinho como um navio naufragado no mar. E sou, na verdade, um
náufrago. (PESSOA, 2003: 73, traduzido do Inglês)
Ao chegar à maioridade, em 1909, Fernando Pessoa teve acesso à herança da sua
avó Dionísia, falecida em Setembro de 1907, usando o pecúlio para fundar a sua própria
editora, a Empresa Ibis133, «desastre inútil» do qual se desfaria em 1910. O jovem
Pessoa trabalhava então, em regime de avença, como correspondente e tradutor em
algumas casas comerciais de Lisboa, sobretudo firmas importadoras que mantinham
132
Sobre o conceito de socialização ver, por exemplo, a obra de Claude Dubar, A Socialização:
construção das identidades sociais e profissionais, Lisboa, Porto Editora, 1997.
133
«Emprêza Ibis, typographica e editora, officinas a vapor, 38 – Rua da Conceição da Glória – 40,
Lisboa» (ZENITH, 2008: 75).
126
contactos no estrangeiro. Para além dos recursos linguísticos, relativamente raros na
Lisboa da época, Pessoa frequentara também, durante o ano que antecedeu o seu
regresso a Portugal, a Escola Comercial de Durban, o que lhe conferia excelentes
qualificações para a tarefa. Sem horários fixos, estes trabalhos relativamente bem
remunerados concediam-lhe o tempo indispensável para prosseguir as suas actividades
literárias. Além disso, o jovem Pessoa aproveitou a onda patriótica que antecedeu a
implantação da República e se prolongou depois da revolução de 1910, realizando um
notável trabalho de ressocialização e reconversão à língua e cultura portuguesas134. Na
ressocialização portuguesa do jovem teria exercido uma influência importante o seu tio
adoptivo, Henrique dos Santos Rosa135. «Espírito enorme e maravilhoso», segundo
Pessoa, este general aposentado e poeta era «um pessimista filosófico de muito grande
categoria», o qual teria introduzido o jovem no meio intelectual e literário lisboeta.
Neste sentido, compreende-se que Pessoa tenha escrito em língua inglesa o seu diário de
1906, enquanto o diário de 1913 foi já redigido em Português136. O «empregado no
comércio» encontrava-se então já integrado no seu grupo de jovens artistas e escritores,
frequentando assiduamente os espaços de sociabilidade intelectual da capital.
Nos primeiros anos da República, Pessoa era cliente habitual de diversos cafés
de Lisboa, designadamente A Brasileira do Chiado, próximo do Largo de São Carlos,
onde o jovem nasceu, casa inaugurada em 1905, ano em que regressou a Portugal. Este
era então um dos seus cenários preferidos de interacção com outros jovens escritores,
artistas e intelectuais, com quem tinha afinidades estéticas. Neste grupo incluíam-se,
entre outros, José Pacheco (1885-1934), Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), Armando
Côrtes-Rodrigues (1891-1971), Alfredo Pedro Guisado (1891-1975), José de Almada
Negreiros (1893-1970) e António Ferro (1895-1956). Apesar de esta configuração ter sido
alterada em 1912, com a partida de Sá-Carneiro, para estudar Direito em Paris, e de
Côrtes-Rodrigues, colocado como professor no Liceu de Angra do Heroísmo em 1914,
134
«A ressocialização é um corte do nó górdio do problema da coerência, com a renúncia à busca de
coerência e reconstrução da realidade de novo» (BERGER & LUCKMANN, 1999: 168).
135
Henrique dos Santos Rosa (1850-1925) tinha representado o irmão, João Miguel dos Santos Rosa, no
seu casamento por procuração com a mãe de Fernando Pessoa, em 1895. Segundo Richard Zenith,
Henrique Rosa «foi um intelectual e poeta que colaborou intensamente em jornais e revistas da época.
Muito estimulou o jovem Pessoa que, mais tarde, publicaria poemas seus na revista Athena». Em 16 de
Maio de 1906, o jovem anotou no seu diário: «Called Henrique Rosa. Heard him read – to me – a
marvellous critique of Sampaio’s Palavras Cínicas. An enormous and wonderful mind; a philosophic
pessimist of a very high order. His scientific knowledge is enormous. He lent me Palavras Cínicas and
Silva Passos’ Evangelho Novo. Read half of the first at night» (PESSOA, 2003: 40).
136
Não obstante ter escrito outro diário, em 1915, quase na totalidade em Inglês.
127
Pessoa manteve contacto epistolar com os dois amigos. Longe iam os difíceis tempos de
ressocialização na capital, quando não tinha «esperança em qualquer amizade» e
pensava partir para Inglaterra137, desejo que o escritor concretizaria simbolicamente, em
1914, através do seu alter ego Álvaro de Campos. O entusiasmo de Pessoa contrastava
fortemente com o estado depressivo que viveu após o seu regresso definitivo a Lisboa,
no tempo da Monarquia. A autoconfiança que então irradiava traduzia o clima de
optimismo e esperança que dominou os primeiros anos da República Portuguesa,
manifestando a inspiração que o novo regime lhe infundiu. Num trecho de 1913,
redigido em Inglês, Pessoa revela o seu enorme ego, afirmando que se encontrava «na
plena posse das leis fundamentais da arte literária», pelo que Shakespeare já não lhe
poderia ensinar a ser subtil, nem Milton a ser completo. Ele afirma mesmo que já nada
tem a aprender, porque o seu intelecto «atingiu uma flexibilidade e um alcance» que lhe
permitiam «assumir qualquer emoção» e «entrar à vontade em qualquer estado de
espírito». Para o jovem escritor, a leitura seria então pura perda de tempo, pois poderia
ser vantajosamente substituída pelo «contacto com a natureza e a observação da vida».
Contudo, não se tendo «libertado da tirania da arte literária», Pessoa conclui que «a
leitura é uma forma servil de sonhar», preferindo por isso viver os seus próprios sonhos
através da escrita (PESSOA, 2003: 137-139).
Deixei para trás o hábito da leitura. Já não leio nada excepto um ou outro jornal,
literatura ligeira e, ocasionalmente, livros técnicos relativos a qualquer matéria que esteja
a estudar e em que o simples raciocínio possa ser insuficiente.
A literatura propriamente dita quase abandonei. Podia lê-la por aprendizagen ou
por prazer. Mas não tenho nada a aprender, e o prazer que se obtém dos livros é de um
género que pode ser substituído com proveito pelo que o contacto com a natureza e a
observação da vida me podem proporcionar directamente.
Estou agora na plena posse das leis fundamentais da arte literária. Shakespeare já
não me pode ensinar a ser subtil, nem Milton a ser completo. O meu intelecto atingiu uma
flexibilidade e um alcance tais que me permitem assumir qualquer emoção que deseje e
entrar à vontade em qualquer estado de espírito. Para atingir aquilo por que sempre se
luta com esforço e angústia, a plenitude, não há livro que possa ajudar.
137
Enquanto estudante no Curso Superior de Letras, Fernando Pessoa anotou no seu diário, em 24 de
Março de 1906: «I have no hope now in any friendship here, I shall strive to get away as soon as
possible». No dia 28 acrescentava: «Voyage to England projected. No money; must get it. Have to be
operated first: circumcision. It is of no advantage to go to foreign countries with such an evil not
remediated». E em 11 de Maio: «Must obtain money from England by sending my compositions. It is
unfortunate that I have no typewriter. With the money coming I shall attempt to buy one» (PESSOA,
2003: 30-38).
128
Isto não significa que me tenha libertado da tirania da arte literária. Assumi-a
simplesmente em submissão a mim próprio. (PESSOA, 2003: 137-139, traduzido do Inglês)
Numa carta para o amigo Mário Beirão (1890-1965), poeta e colaborador de A
Águia, em 1 de Fevereiro de 1913, Fernando Pessoa descrevia a sua abundância criativa.
À semelhança do estro poético de Teixeira de Pascoes, «desenvolvido com tal rapidez
que, para não lhe ficar atrás», teve de o «exteriorizar em livros escritos à pressa»
(REPUBLICA, 594: 1), também
Pessoa refere o intenso «estado de rapidez ideativa» em que
se encontrava. Segundo o escritor, o seu caderno de apontamentos transbordava de
versos «ingleses, portugueses, raciocínios, temas, projectos, fragmentos de coisas»,
algumas perdendo-se «por com mais que muita pressa escritas». A efusividade criativa
impelia o jovem escritor a dar prioridade à sua literatura, em detrimento da crítica
literária, pois desejava tornar-se um grande escritor. Com efeito, a publicação dos seus
três artigos de crítica na revista A Águia, em 1912, e a subsequente polémica que
deliberadamente provocou, revelam a sua fórmula de investimento. Esta aproximação à
república das letras, como crítico literário, proporcionou alguma visibilidade e
autoridade a Fernando Pessoa, até então praticamente desconhecido, particularmente
entre a geração mais jovem de escritores (PESSOA, 1999a: 79-80).
Estou actualmente atravessando uma daquelas crises a que, quando se dão na
agricultura, se costuma chamar «crises de abundância».
Tenho a alma num estado de rapidez ideativa tão intenso que preciso fazer da
minha atenção um caderno de apontamentos, e, ainda assim, tantas são as folhas que tenho
a encher, que algumas se perdem, por elas serem tantas, e outras se não podem ler depois,
por com mais que muita pressa escritas. As ideias que perco causam-me uma tortura
imensa, sobrevivem-se nessa tortura, escuramente outras. V. dificilmente imaginará que
Rua do Arsenal em matéria de movimento, tem sido a minha pobre cabeça. Versos ingleses,
portugueses, raciocínios, temas, projectos, fragmentos de coisas que não sei o que são,
cartas que não sei como começam ou acabam, relâmpagos de críticas, murmúrios de
metafísicas… Toda uma literatura, meu caro Mário, que vai da bruma – para a bruma –
pela bruma… (PESSOA, 1999a: 79-80)
IV.2. Envolvimento e distanciamento da Renascença Portuguesa
Segundo Norbert Elias, «a possibilidade de uma vida colectiva organizada
baseia-se na combinação do impulso de distanciamento com o impulso de envolvimento
129
no comportamento e pensamento humanos; impulsos esses que se controlam
mutuamente». Para o sociólogo, os impulsos de envolvimento e distanciamento «podem
entrar em colisão, lutar para atingir compromissos ou hegemonias e formar coligações
em que estejam presentes nas mais diversas proporções e sob as mais variadas formas».
Na perspectiva de Elias, estas variantes e composições de envolvimento e
distanciamento estabelecem uma relação «que determina o percurso do indivíduo»
(ELIAS, 1997: 17-18). Após a sua aproximação à Renascença Portuguesa e a publicação
dos seus artigos na revista A Águia, que permitiram a Fernando Pessoa entrar na
república das letras, o «impulso de distanciamento» parece ter superado o de
envolvimento, dando início a um percurso divergente que o iria afastar do saudosismo.
Em 1 de Março de 1913, Pessoa publicou em Teatro: Revista de Crítica138, o texto
«Naufrágio de Bartolomeu», recensão demolidora do livro de poesia infantil
Bartolomeu Marinheiro, de Afonso Lopes Vieira (1878-1946)139, colaborador da revista
A Águia140, que, na opinião do crítico, era «um criminoso».
O sr. Lopes Vieira é um criminoso. É-o por três razões. Está estragando, com o seu
gato-por-lebre de simplicidade, o rudimentar senso estético de crianças, que, mesmo que
sejam só duas, são classificáveis de inúmeras, ante o horror do crime. – Está tornando
ridículos assuntos que conviria tratar com uma decência que a estupidez, mesmo quando
involuntária, nunca tem. Pobres cães nossos amigos tinhosos de Lopes Vieira. Pobre
Bartolomeu Dias, tão embobecido de pedagogias! – E, por último, para tudo de nocivo ser,
o sr. Lopes Vieira é até antipedagógico, porque quem escreve
138
Em 22 de Fevereiro de 1913, foi publicado, em Lisboa, um primeiro número de Teatro: revista de
crítica, tendo como director Boavida Portugal e editor Rogério de Vilhena. A revista teve quatro
números: em 1 de Março de 1913 foi publicado o número 1, tendo os números 2 e 3 saído nos dias 8 e 25
do mesmo mês. Em Novembro de 1913, Boavida Portugal fundou também Teatro: jornal d’arte, e em
Abril de 1915, O Jornal. Fernando Pessoa colaborou nas três publicações do seu amigo.
139
Bartolomeu Marinheiro, versos de Affonso Lopes Vieira, ilustrações de Raúl Lino, Lisboa, Livraria
Ferreira, 1912.
140
No dia 19 de Fevereiro de 1913, Pessoa anotou no seu diário: «Encontrei Boavida e fui com ele à
redacção do Teatro, nova revista dele. Estivemos a discutir a utilidade e fins da revista. Talvez eu lá
publique a crítica, ainda em esboço, ao Bartolomeu Marinheiro do Lopes-Vieira». Dois dias depois,
escrevia no mesmo diário: «Durante a tarde toda estive na redacção do Teatro falando com Boavida e
Eduardo Freitas. Este provocou-me a que escrevesse o ataque ao Bartolomeu Marinheiro de LopesVieira. Entre tentado e querendo fugir à maçada, sentei-me, e das 16 ¾ às 18 ¼ escrevi o artigo. Boavida
apreciou-o muito». No dia seguinte, anotou ainda: «Levantei-me cedo e cedo almocei para ir à tipografia
ver as provas do artigo sobre Bartolomeu Marinheiro. Estive lá, excepto pequenos períodos nos
escritórios do Mayer e Lavado (uma carta), todo o dia até às 19. – Fui a casa jantar. Voltei para a
tipografia, vi começar a tirar o jornal: meu artigo teve de ser cortado. Tive pena e disse que era justo e não
fazia mal, porque assim eu sentia que era» (PESSOA, 2003: 111-114).
130
Que era de antes o mar? Um quarto escuro
Onde os meninos tinham medo de ir
merece uma inquisição de professores.
Educados na estupidez pela leitura das obras infantis do sr. Lopes Vieira, levados
ao antipatriotismo pelo inevitável desdém que um livro como o Bartolomeu Marinheiro leva
a ter pelo navegador que ali aparece vestido de bebé de Carnaval, cheios de fobias por lhes
terem sido metaforizadas na infância coisas como que um quarto escuro é logicamente
terrível, os homens do Portugal de amanhã (adoptados escolarmente, como tudo o dizemos
neste artigo leva a crer que sejam, os livros do sr. Lopes Vieira) terão por Shakespeare o sr.
Júlio Dantas, por Shelley o sr. Lopes Vieira… e serão espanhóis. (PESSOA, 2000c: 79-80)
Em 3 de Março de 1913, dois dias após a publicação desta crítica, Fernando
Pessoa recebeu «um bilhete postal, plutôt desagradável», de Álvaro Pinto (1889-1956) 141,
editor e administrador de A Águia, cuja «rudeza delicada» das palavras o «feriu um
pouco» (PESSOA, 2003: 118). No dia seguinte, Pessoa respondeu ao editor, justificando a
sua crítica truculenta: «No sábado passado saiu, no 1º número da revista Teatro, de
Lisboa, o meu pequeno artigo de ataque às baboseiras do Lopes Vieira. Como este é da
Renascença, e dada a atitude de dúvida que o meu amigo tem para comigo, pareceu-me
possível que, lido esse escrito, me traduzisse para inimigo da Renascença». Contudo,
para Pessoa, nada haveria «que espiritualmente relacione a Renascença com os
disparates que o Lopes Vieira atira à cabeça das crianças». O crítico procura dissipar a
reserva de Álvaro Pinto, negando ter «falta de interesse pela Renascença» ou «por
questões literárias», mas, «para que não surjam dúvidas futuras», adverte que não está
disponível «para coisa alguma que se pareça com coterie ou seita». Pessoa avisa
também o editor de que o seu prometido «folheto sobre o inquérito literário», de
Boavida Portugal, «contém uns parágrafos de crítica por vezes severa» ao que considera
«defeitos de atitude na Renascença e em alguns dos seus autores», manifestando,
contudo, o seu empenhamento em escrever «uma ampla e completa defesa da
Renascença. Mas, para o ser, urge que seja uma defesa do que nela é bom, que é muito,
e um ataque firme e explicado ao que nela é mau». Neste sentido, Pessoa não faria uma
defesa incondicional da Renascença Portuguesa, revelando a Álvaro Pinto que o seu
texto trataria com «especial severidade a pavorosa crítica do Pascoaes ao livro de
141
Sócio da Renascença Portuguesa, Fernando Pessoa trocou abundante correspondência com o editor de
A Águia de 1912 a 1914, não apenas para propor a publicação de trabalhos seus, mas também de amigos,
designadamente de Armando Côrtes-Rodrigues e de Mário de Sá-Carneiro.
131
Basílio Teles, e o artigo (tão estranho para quem tem responsabilidades de raciocinador)
que o Leonardo Coimbra escreveu sobre o Regresso ao Paraíso» (PESSOA, 1999a: 82142
84)
. O crítico justifica desta forma a demora em enviar a Álvaro Pinto o referido
folheto:
Circunstâncias várias da minha vida, acrescentadas ao que é talvez uma morbidez
de escrúpulo em que não falhe elo na argumentação, têm-me reduzido a um estado de
espírito que talvez seja muito bom para a produção de obras de imaginação, mas que para
a calma e esforçada elaboração de raciocínios não é auxiliador. Essas circunstâncias de
minha vida, que são, umas de ordem material, outras de espécie moral – parece-me que o
meu amigo não considera que possam existir, visto que declara não perceber o meu silêncio
literário.
Não é das coisas mais agradáveis a quem já sem auxílio da incompreensão alheia
tem bastante com que se ralar, estar a ler atribuída a outra causa que não a um estado de
espírito infeliz a inactividade – efeito desse estado de espírito.
Se o que diz sobre o folheto do Inquérito deve ser entendido como significando que
o meu amigo acha que à Renascença não convém, por considerações comerciais ou outras,
publicar o meu folheto, teria sido melhor que com absoluta franqueza mo tivesse escrito,
sem o subinsinuar na rudeza delicada das suas palavras. Eu não tenho vaidade nenhuma,
de espécie nenhuma. Nada em mim feria se francamente me dissesse que a Renascença, ou
não está disposta a publicar o folheto, ou acha inútil a sua publicação. Nem por isso eu
deixava de pertencer a ela e de a auxiliar conforme pudesse. (PESSOA, 1999a: 83)
Noutra carta para Álvaro Pinto, de 7 de Março de 1913, Fernando Pessoa
justifica mais uma crítica verrinosa, que publicou, no dia seguinte, na revista Teatro:
«Há aqui várias coteries, (meras e reles coteries) que nos fazem uma guerra esquerda e
assolapada. Uma delas – a do João de Barros, Sousa Pinto, Joaquim Manso, etc. –
estende-se até incluir o Lopes Vieira e (parece-me) até enganchar, em Coimbra, gente
que espiritualmente é o mais Renascença possível». Depois do artigo sobre o livro de
poesia Bartolomeu Marinheiro, Pessoa propunha-se romper fogo contra O Gomil dos
Noivados, romance do jornalista e crítico literário Manuel de Sousa Pinto (1880-1934)143:
142
Pessoa refere-se à crítica encomiástica de Teixeira de Pascoaes «O Livro de Job – Tradução em verso
com um estúdo sobre o poema por Bazílio Teles – Livraria Chardron – Porto – 1912», publicada na
rubrica «Revista Bibliográfica», no número 5 da revista A Águia, em Maio de 1912. Foi também neste
número que Pessoa publicou a sua crítica «Reincidindo…». O crítico refere ainda a recensão do filósofo
Leonardo Coimbra, «O Regresso ao Paraiso por Teixeira de Pascoaes. – Edição de “A Renascença
Portuguesa” – 1912», publicada no número seguinte de A Águia.
143
Manuel de Sousa Pinto, O Gomil dos Noivados, Coimbra, Moura Marques e Paraísos, 1912.
132
«O que acho especialmente preciso (e é o que estou fazendo) é atacá-los pela troça, que
é ataque que eles não esperam e a que não estão acostumados» (PESSOA, 1999a: 87).
Com efeito, no segundo número da revista Teatro, Fernando Pessoa publicou
uma crítica ao romance de Sousa Pinto, com o longo e sarcástico título «Coisas
Estilísticas que Aconteceram a um Gomil Cinzelado, que se Dizia Ter Sido Batido no
Céu em Tempos da Velha Fábula, Por um Deus Amoroso». Para Pessoa, o autor era um
«crítico de segunda ordem» com «tanto poder de teorizar como uma tainha ou um
caracol». Na sua opinião, o «estuporadíssimo» Gomil era «uma artificialidade vesga»
cheia «de quedas esticantes na banalidade de expressão», enfim, uma léria «impossível
de gramar». Desta forma, Pessoa alvitra: «Deixe-se disso, Sousa Pinto. Torne à crónica,
homem; escreva como deve e pode e deixe os romances aos romancistas. […] Quem lhe
mandou tocar rabecão? O Sr. não sabe música…» (PESSOA, 2000c: 81-83).
O terceiro e último número da revista Teatro publicou outra crítica de Fernando
Pessoa, desta vez a três novas publicações, uma delas Teatrália: revista de arte144,
«iniciativa dos alunos da Escola de Arte de Representar», cujo director era então o Dr.
Júlio Dantas. Nesta operação crítica, Pessoa não perde o ensejo de ridicularizar «pela
troça», designando falsamente «alunos» Sousa Pinto e Júlio Dantas, bem como o seu
antigo professor Francisco Adolfo Coelho, com quem polemizara no «Inquérito à Vida
Literária».
O aluno F. Adolfo Coelho, por exemplo, oferece-nos um estudo que revela um
grave conhecimento pelo menos de algumas passagens dos trágicos gregos e de uns coros da
Castro de António Ferreira. Se é ainda muito novo, talvez venha a conseguir, com o deixar
de ser muito novo, alguma coisa em matéria de exposição erudita. Por enquanto vê-se bem
a sua inexperiência nisto de transmitir erudição. Porque não é assim que se ensina. É
preciso mais leveza, mais cingir de perto a alma do assunto, mais poder vibrante de
interessar e comunicar. E o modo-de-expor do sr. F. A. Coelho dá-nos a impressão de nos
estarem esfregando nas costas um remédio para uso interno. Mas esta nossa crítica pouco
quer morder. Quer apenas dizer que o sr. F. A. Coelho não tem jeito para professor. Para
outras coisas pode ser que o tenha.
O aluno Manuel de Sousa Pinto (cujo nome nos não soa desconhecido) distribui
uns raciocínios um pouco pálidos mas interessantes por páginas que sofrem duma
lamentável incompatibilidade pessoal entre o gravador e o impressor. […] Os alunos Júlio
144
Teatrália: revista de arte, editor: Francisco Lage, Lisboa. Dois números publicados em Fevereiro e
Março de 1913.
133
Dantas, Luís Barreto e Bento Mântua também navegam nestas águas. (PESSOA, 2000c: 8485)
Em mais uma carta para Álvaro Pinto, com data de 22 de Março de 1913,
Fernando Pessoa promete, de novo, escrever o folheto sobre a «nova poesia
portuguesa». Neste sentido, informa o editor de que Boavida Portugal publicaria em
breve um «livro contendo as respostas ao Inquérito», pelo que estaria a «preparar o
folheto para sair logo depois do livro». Pessoa afirma mesmo que, «com certeza», teria
«o folheto pronto a tempo», porquanto lhe bastariam os dias que o livro levava a
imprimir para completar o que já tinha escrito. A verdade é que o livro de Boavida
Portugal não seria publicado nesse ano, proporcionando ao crítico, que condicionara o
seu folheto a essa publicação, uma excelente desculpa para o protelar. Em Abril de
1913, A Águia publicou «As Caricaturas de Almada Negreiros», um «estudo» de
Fernando Pessoa a propósito de uma exposição, em Lisboa, de trabalhos deste artista (A
ÁGUIA, 16: 134-135).
Em Agosto, Pessoa publicou, ainda na revista da Renascença
Portuguesa, a sua prosa «Na Floresta do Alheamento» (A ÁGUIA, 20: 38-42), na mesma
edição em que surge também «o maravilhoso conto» de Mário de Sá-Carneiro, «O
Fixador de Instantes» (PESSOA, 1999a: 91).
NA FLORESTA DO ALHEAMENTO
[…]
De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto um vento lento varre
um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou actual, d’estes vagos
moveis e reposteiros e do seu torpôr de nocturna. Depois esse vento passa e torna a ser toda
só-ella a paysagem d’aquelle outro mundo…
Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma no horizonte d’essa
terra diversa… E ha momentos em que o chão que alli pisamos é esta alcova visivel…
Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher… Um grande cansaço é um fogo
negro que me consome... Uma grande ancia passiva é a vida falsa que me estreita…
Ó felicidade baça!… O eterno estar no bifurcar dos caminhos!… Eu sonho e por
detraz da minha attenção sonha commigo alguem. E talvez eu não seja senão um sonho
d’esse Alguem que não existe… (A ÁGUIA, 20: 38-39)
Em Fevereiro de 1913, Fernando Pessoa revelara a Mário Beirão a efusividade
criativa dos seres inspirados, com «a alma num estado de rapidez ideativa tão intenso»
que a sua «pobre cabeça» mais parecia a «Rua do Arsenal» (PESSOA, 1999a: 79). Mas no
134
ano seguinte, numa carta para o amigo e escritor João Lebre e Lima (1889-1959), de 3 de
Maio de 1914, Pessoa afirma que caiu num «abismo de torpor de todo o Eu». O escritor
revela então o seu estado de apatia e depressão: «Estou num destes momentos em que
tudo perde o sabor a vida que tem e em que adoece dentro de nós o nosso modo de
sentir as coisas». No seu papel de escritor doente, Pessoa descreve ao amigo a prosa
«Na Floresta do Alheamento», publicada no ano anterior pela revista A Águia: «É o
único trecho meu publicado em que eu faço do tédio, e do sonho estéril e cansado de sipróprio mesmo ao ir começar a sonhar-se, um motivo e o assunto. Não sei se lhe
agradará o estilo em que o trecho está escrito: é um estilo especialmente meu, e a que
aqui vários rapazes amigos, brincando, chamam “o estilo alheio”, por ser naquele trecho
que aparece». Pesso esclarece ainda que o texto em causa pertence a um livro «de que
há outros trechos escritos mas inéditos», em «que falta muito para acabar», e cujo título
seria «Livro do Desassossego, por causa da inquietação e incerteza que é a sua nota
predominante» (PESSOA, 1999a: 112).
Em 25 de Maio de 1914, Pessoa escreveu mais uma vez a Álvaro Pinto,
afirmando que estava a sair do estado depressivo em que tinha caído, podendo «agora
mais frequentemente colaborar n’A Águia». Nesta carta, o escritor propunha que a
Renascença Portuguesa publicasse, numa «mera plaquette», a sua «peça num acto, dum
género especial» a que chama «estático», desaconselhando a sua publicação na revista
«porque para esse fim é, além de extensa, vagamente imprópria». Pessoa pede uma
resposta ao editor, com «franqueza absoluta», afirmando mesmo que não se ofenderia
no caso de a peça ser recusada. «Claro está que o meu amigo com toda a franqueza me
dirá, depois de ler a peça, se convém realmente editá-la». Além disso, volta a prometer a
Álvaro Pinto: «Veremos se para o mês que vem consigo pôr de pé o panfleto sobre as
críticas da Renascença. É hora de tratar disso, porque o livro do Boavida aparecerá –
creio – não daqui a muito tempo» (PESSOA, 1999a: 114). A «peça num acto», proposta
pelo autor a Álvaro Pinto era «O Marinheiro»:
O MARINHEIRO
Drama Estático em um Quadro
a Carlos Franco.
[…]
Primeira. – Vejo pela janella um navio ao longe. É talvez aquelle que vistes…
135
Segunda. – Não, minha irmã; esse que vêdes busca sem duvida um porto
qualquér… Não podia ser que aquelle que eu vi buscasse qualquér porto…
Primeira. – Por que é que me respondestes?… Pode ser… Eu não vi navio nenhum
pela janella… Desejava ver um e fallei-vos d’elle para não ter pena… Contae nos agora o
que foi que sonhastes á beira mar…
Segunda. – Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha
longinqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por ellas…
Não vi se alguma vez pousavam… Desde que, naufragado, se salvára, o marinheiro vivia
alli… Como elle não tinha meio de voltar á patria, e cada vez que se lembrava della soffria,
poz-se a sonhar uma patria que nunca tivesse tido: poz-se a fazer ter sido sua uma outra
patria, uma outra especie de paíz, com outras especies de paysagens, e outra gente, e outro
feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janellas… Cada hora elle construía
em sonho esta falsa patria, e elle nunca deixava de sonhar, de dia á sombra curta das
grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite,
estendido na praia, de costas, e não reparando nas estrellas.
[…]
(ORPHEU, 1: 27-33)
A proposta de Fernando Pessoa, para que a Renascença Portuguesa publicasse
em folheto o seu drama, não recebeu resposta de Álvaro Pinto, silêncio interpretado
pelo autor como recusa. O novel escritor era então conhecido essencialmente pelos seus
«trabalhos de crítica ou sociologia» da literatura, sendo as suas «produções
propriamente literárias» pouco apreciadas na república das letras. Além disso, a sua
estética modernista suscitava «pouca simpatia» entre os «amigos e conhecidos» da
Renascença Portuguesa. Pessoa afirma compreender a «radical e inevitável
incompatibilidade» entre a sua obra e a da maioria dos escritores e colaboradores da
revista A Águia, «cuja orientação de espírito» era «lusitanista ou saudosista». Por isso,
não se espantaria nem ofenderia com a recusa de Álvaro Pinto em publicar o seu
«drama estático», tendo até pedido que este «dissesse francamente se a Renascença
podia ou queria editar aquele trabalho» (PESSOA, 1999a: 129). Contudo, a recusa
subentendida de «O Marinheiro» deu a Fernando Pessoa o pretexto que faltava para
desistir do seu prometido folheto, em defesa da «nova poesia portuguesa». Ao tomar
consciência do antagonismo entre o saudosismo e os valores estéticos que defendia, a
ruptura tornou-se inevitável, sendo visível na sua recusa em engrandecer os escritores
saudosistas através da sua crítica literária. O distanciamento de Fernando Pessoa da
136
Renascença Portuguesa é evidente na carta que escreveu a Álvaro Pinto, em 12 de
Novembro de 1914145:
Tomei o seu silêncio por uma recusa, e mesmo com esse silêncio me não ofendi,
tomando-o por o possível efeito de uma prolongada hesitação – apesar de eu ter facilitado
uma resposta negativa – em nitidamente me recusar a edição da obra.
Isto, que é muito pouco, é tudo que há sobre o assunto. Se lho expus prolixamente,
foi para ser explícito e para não dar com a secura das poucas palavras, a impressão, que
seria errónea – de todo errónea – de que eu, ou por isto ou por outra coisa, realmente
estava melindrado.
Quanto ao referido trabalho, ou outros trabalhos quaisquer, permita-me o meu
Amigo, que lhe peça para colaborar comigo em não falarmos mais nisso. Cessei.
Compenetrei-me celularmente da absoluta inutilidade de qualquer esforço e da ridícula
incongruência do acto fundamental de escrever – expor aos outros coisas que ou são
opiniões ou sonhos, como se as opiniões, quando por acaso alguma acção têm, fizessem mais
do que perturbar para fora dos seus saudáveis e naturais instintos os pobres cérebros
humanos; e como se o destino lógico e nobre dos sonhos não fosse ficarem apenas sonhados
dentro de nós, sem a ousada imperfeição de serem expressos. Não podendo ter a
maravilhosa e natural saúde de não ter opinião nem sonhos, esforcemo-nos ao menos por
adquirir a artificial saúde da renúncia. (PESSOA, 1999a: 130)
IV.3. Uma «comichão intelectual»
Segundo Boltanski e Thévenot, ao contrário do mundo industrial, onde «a rotina
estabiliza a relação entre objectos» no «cumprimento de uma determinação», através de
«uma trajectória previsível e por isso “aborrecida”», o «caminho para a inspiração é
“um caminho mal definido, cheio de desvios, feito de encontros e de mudanças de
direcção”» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 204-205). Uma vez que «seguir este caminho
é “encontrar as suas próprias vias”», Fernando Pessoa distanciou-se do saudosismo,
145
Neste percurso, as dúvidas e hesitações de Fernando Pessoa, tanto em relação à Renascença
Portuguesa como à sua própria capacidade de realização, são notórias. Poucos dias depois, em 21 de
Novembro de 1914, o escritor mostrava-se arrependido do seu distanciamento: «Cessaram as grotescas
vontades de erigir uma Europa; voltou a mim o desejo de auxiliar e colaborar com a Renascença, porque
para o anarquismo intelectual, social em mim o caminho é aquele. De ali é que se pode agir sobre a Pátria.
E sumiu-se a minha última veleidade de ser homem de acção (comercial outra vez! – o fim, seria, do
desastre inútil que a tipografia inaugurou). Tomo consciência do meu papel, social, político, intelectual, e
do que posso e devo fazer. A minha impressionabilidade tinha-me levado muita longe. Felizmente tudo
evitou que eu realizasse, e assim houvesse de me arrepender» (PESSOA, 2003: 148).
137
desenvolvendo várias estéticas literárias, designadas paúlismo, interseccionismo146 e
sensacionismo147. Neste caminho sinuoso e cheio de obstáculos, Pessoa publicou na
revista A Renascença, em Fevereiro de 1914, dois poemas com o título comum de
«Impressões do Crepúsculo»148. O segundo destes poemas causou tal impressão que
passou a funcionar como o manifesto, que não existiu, do grupo de jovens escritores que
rodeava Pessoa. Na esteira de «Na Floresta do Alheamento», esta invulgar composição
traduzia uma nova corrente literária que, à falta de outro nome, Pessoa designou
«paúlismo»149. Desde então, os jovens escritores que rodeavam o autor e que se
identificavam com esta corrente começaram a ser conhecidos, de forma algo jocosa,
como «paúlicos»150. Estes jovens devolviam o epíteto, apodando os seus críticos,
esteticamente mais conservadores, de «lepidópteros». Fernando Pessoa teria escrito o
146
Mais tarde, numa carta para o editor inglês Harold Monro, Pessoa escreveria «que o termo
“interseccionista”, aplicado aos poemas, não serve para distinguir uma escola ou corrente, como
“futurista” ou “imagista”», pois «é uma mera definição do processo». Nesses poemas, o escritor apenas
pretenderia «registar, em intersecção, a simultaneidade mental de uma imagem objectiva e subjectiva, tal
como o quarto onde o sonhador está e as imagens que o seu sonho contém» (PESSOA: 1999a: 194).
147
Em 1916, na revista Exílio, Fernando Pessoa escreveu na recensão intitulada «Movimento
Sensacionista»: «O Sensacionismo surgiu, pois, como primeira manifestação de um Portugal-Europa,
como a unica “grande arte” literaria que em Portugal se tem revelado, livre da estreiteza chronica que tem
prendido no seu leito de Procustes todos os nossos impulsos estheticos, desde a tisica espiritualidade que
subjaz ao pseudo-petrarchismo dos tristes poetas da nossa Renascença, até á secca commotividade em
torno á qual nucleou o neo-huguismo (grande embora) do actual chefe honorario da intelectualidade
portugueza» (EXILIO: 1: 46).
148
A Renascença: revista de crítica, literatura, arte, n.º 1, Lisboa, Fevereiro de 1914. Neste único
número publicado colaboraram, para além de Fernando Pessoa, Júlio Dantas, Mário de Sá-Carneiro,
Alfredo Pedro Guisado, Coelho Pacheco e André Brun, entre outros. Os primeiros versos dos dois
poemas de Pessoa são «Ó sino da minha aldeia» e «Paúis que roçarem ânsias pela minha alma em
ouro…».
149
«Em Portugal hoje debatem-se duas correntes, antes não se debatem por enquanto, mas em todo o caso
a sua existência é antagónica.
Uma é a da Renascença Portuguesa, a outra é dupla, é realmente duas correntes. Divide-se no
sensacionismo, de que é chefe o sr. Alberto Caeiro, e no paúlismo, cujo representante principal é o sr.
Fernando Pessoa. Ambas estas correntes são antagónicas àquela que é formada pela Renascença
Portuguesa. Ambas são cosmopolitas, porquanto cada qual parte de uma das duas grandes correntes
europeias actuais. O sensacionismo prende-se à atitude enérgica, vibrante, cheia de admiração pela Vida,
pela Matéria e pela Força, que tem lá fora representantes com Verhaeren, Marinetti, a Condessa de
Noailles e Kipling (tantos géneros diferentes dentro da mesma corrente!); o paúlismo pertence à corrente
cuja primeira manifestação nítida foi o simbolismo. Ambas estas correntes têm entre nós este igual
característico em relação ao seu ponto de partida e que é para nos orgulharmos – de que são avanços
enormes nas correntes em que se integram. O sensacionismo é um grande progresso sobre tudo quanto lá
fora na mesma orientação se faz. O paúlismo é um enorme progresso sobre todo o simbolismo e neosimbolismo de lá fora» (PESSOA, 1966: 125-126).
150
Mário de Sá-Carneiro, inscrito no Curso de Direito da Sorbonne, manteve abundante correspondência
com Fernando Pessoa. Em 1 de Agosto de 1914, escrevia de Paris sobre a iminência da Grande Guerra,
respondendo à anterior carta de Pessoa: «E entusiasmou-me muito alto – por o “paulismo” lhe ser um
forte apoio. Cada vez me vanglorio mais de pertencer a essa escola – e mais creio nela: mais creio em
você – mais creio em mim. Que belíssima coisa seria agora com essa orientação “total” a nossa revista –
Europa!» (SÁ-CARNEIRO, 2001: 135).
138
poema «Paúis» em 29 de Março de 1913, o qual renegaria em 1915, considerando-o
insincero porque a sua «atitude para com o público é a de um palhaço» (PESSOA, 1999a:
151
142-143)
:
Paúis de roçarem ânsias pela minha alma em ouro...
Dobre longínquo d’Outros Sinos... Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minha alma...
Tão sempre a mesma, a Hora!... Balouçar de cimos de palma!…
Silêncio na parte inferior das folhas, outono delgado
D’um canto de vaga ave… Azul esquecidos em ‘stagnado…
Ó que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!...
Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora?...
Estendo as mãos para Além, mas ao estender delas já vejo
Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...
[…]
(PESSOA, 1999a: 145)
Na carta para Mário Beirão, de 1 de Fevereiro de 1913, em que refere a sua
«crise de abundância», Pessoa enviou ao amigo o poema «Abdicação», exemplificando
o «fenómeno curioso de desdobramento» que habitualmente sentia, mas nunca antes
com aquela intensidade (PESSOA, 1999a: 80). Em 8 de Abril do mesmo ano, Pessoa
escreveu ao amigo que estava «altamente neurastenizado» e que, na sua «consciência
quotidiana», tinha a impressão de se ter perdido dentro de si próprio, andando
continuamente em sua procura, embora tivesse receio de se encontrar, não fosse
descobrir-se outro (PESSOA, 1999a: 92). Em 5 de Junho de 1914, Fernando Pessoa
escreveu para a mãe, referindo ter «passado bem de saúde» e «curiosamente menos maldisposto». Contudo, queixa-se de «uma vaga inquietação», algo que, numa «linguagem
absurda», seria «uma comichão intelectual», como se fosse ter «bexigas na alma».
Pessoa atribuía este estado de espírito ao facto de, no seu círculo de amizades, tudo se
estar «afastando e desmoronando»: «Amanhã vai para – não a, mas para – Paris o meu
maior e mais íntimo amigo. A tia Anica (veja a carta dela) não é improvável que vá
breve para a Suíça com a filha, casada então. Vai para a Galiza, para lá estar bastante
151
Em 3 de Abril de 1913, Fernando Pessoa anotara no seu diário: «Pelo correio da manhã recebi a Vida
Portuguesa. Saí de Casa às 12½. Fui ao Grémio Literário às 4 com Valério e Rui Coelho para ouvir a 1.ª
conferência do Teatro que, porém, não se realizou. Depois andei até às 6 passeando com Valério e Rui
Coelho. Rui Coelho vai pôr em música a minha poesia “Ó Naus”, de que gostou, horrorizando-o o
“Pauis”» (PESSOA, 2003: 131).
139
tempo, um ourto rapaz, muito meu amigo. Passa a viver no Porto um outro rapaz que é,
depois do primeiro que lhe citei, o meu amigo mais próximo» (PESSOA, 1999a: 115-116).
Vivendo nessa época em casa da tia, Pessoa sentia-se abandonado, o que «não
pode deixar de nos roçar pela alma», e temia pelo seu futuro: «Que serei eu daqui a dez
anos – de aqui a cinco anos mesmo? Os meus amigos dizem-me que eu serei um dos
maiores poetas contemporâneos – dizem-no vendo o que eu já tenho feito, não o que
poderei fazer». O jovem escritor planeava então publicar um livro, mas essa
possibilidade não o animava, pois desta forma também perderia alguma coisa «– o ser
inédito. E assim mudar para melhor, porque mudar é mau, é sempre mudar para pior».
Pessoa continua o seu paradoxo, concluindo: «Talvez a glória saiba a morte e a
inutilidade, e o triunfo cheire a podridão» (PESSOA, 1999a: 116). A «comichão
intelectual» que atormentava Pessoa, em Junho de 1914, prendia-se com a metamorfose
do crítico em escritor, ou melhor, em escritores. Em Agosto desse ano tiveram início as
hostilidades da I Grande Guerra, causando-lhe «alguma depressão» (PESSOA, 1999a: 120).
Mau grado a alguma depressão, constante desde que lá fora é guerra, tenho
passado com razoável calma pela ilusão sucessiva dos dias. Nada tenho escrito que valha a
pena mandar-lhe. Ricardo Reis e Álvaro futurista – silenciosos. Caeiro perpetrador de
algumas linhas que encontrarão talvez asilo num livro futuro. Mas essas linhas são esboços
de poesias, não poesias propriamente falando. O que principalmente tenho feito é
sociologia e desassossego. V. percebe que a última palavra diz respeito ao «livro» do
mesmo; de facto tenho elaborado várias páginas daquela produção doentia. A obra vai pois
complexamente e tortuosamente avançando.
Quanto à sociologia, além de ter acrescentado alguns raciocínios e análises à minha
«Teoria da República Aristocrática», tenho deliberado teorias várias sobre a guerra
presente e sobre as forças sociais, nacionais e civilizacionais em acção. Creio ir-me
aproximando de uma interpretação do conflito com visos de verdadeira, ou, pelo menos
(sejamos sempre um pouco cépticos), de plausível.
O facto é que neste momento atravesso um período de crise na minha vida.
Preocupa-me quotidianamente a necessidade de dar ao conjunto da minha orientação,
tanto intelectual como «existente na vida», uma linha metódica e lógica. Quero disciplinar a
minha vida (e, consequentemente, a minha obra) como a um estado anárquico, anárquico
pelo próprio excesso de «forças vivas» em acção, conflito e evolução interconexa e
divergente. Não sei se estou sendo perfeitamente lúcido. Creio que estou sendo sincero.
Tenho pelo menos aquele amargo de espírito que é trazido pela prática anti-social da
sinceridade. Sim, eu devo estar a ser sincero. (PESSOA, 1999a: 120-121)
140
A inquietação sentida pelo escritor desde o início da Grande Guerra, que
desencadeou uma nova crise intelectual, afectava a sua produção literária, apenas lhe
permitindo escrever para o Livro do Desassossego. Nas suas próprias palavras, o que
Fernando Pessoa fez no Verão de 1914 foi, principalmente, sociologia, a qual seria
importante para compreender a sociedade em que vivia. O escritor aplicou a ciência
social na literatura, estudando a história dos movimentos literários para descrever as
complexas relações entre literatura e sociedade. É possível até que o seu interesse pela
sociologia tenha sido despertado pela perspectiva sociológica de Max Nordau. Se, na
sua juventude, Pessoa foi fortemente influenciado pela psiquiatria, a sociologia
permitia-lhe agora elaborar «sobre as forças sociais, nacionais e civilizacionais em
acção». O interesse de Pessoa também não seria estranho ao conhecimento
proporcionado pela ciência social, que, juntamente com a psicologia, o ajudaria a
imaginar o enredo e as personagens dos muitos contos e novelas que pretendia escrever.
Neste sentido, a sociologia teria inspirado também Fernando Pessoa na criação dos seus
heterónimos, dramatis personae interagindo entre si num «drama em gente», uma
espécie de sociedade imaginada de homens de letras152.
IV.3.1. Sociogénese dos heterónimos
Completando 26 anos de idade em 13 de Junho de 1914, este foi certamente um
dos anos literariamente mais fecundos para Fernando Pessoa, que descreveu a data de 8
de Março como o «dia triunfal» da sua vida (PESSOA: 1999b: 343). Durante a
adolescência, o jovem imaginou diversas personagens fictícias como Charles Robert
Anon, em nome do qual publicou pequenas composições ainda em Durban, usando
também os nomes de David Merrick, Horace James Faber e Alexander Search para
escrever em Inglês. Contudo, segundo o próprio escritor, as três «subpersonalidades»
literárias mais significativas da sua obra são Alberto Caeiro (1889-1915), Álvaro de
Campos (1890-?) e Ricardo Reis (1887-?), as quais têm biografias e universos simbólicos
próprios, sendo socialmente diferenciadas. Com estes três heterónimos, escrevendo de
forma diversificada e interagindo entre si, Pessoa imprimiu uma nova dinâmica à sua
obra, criando «um drama em gente» até então desconhecido na literatura.
152
«As obras heterónymas de Fernando Pessoa são feitas por, até agora, trez nomes de gente – Alberto
Caeiro, Ricardo Reis, Alvaro de Campos. Estas individualidades devem ser consideradas como distinctas
da do auctor dellas. Fórma cada uma uma espécie de drama; e todas ellas juntas formam outro drama.
[…] É um drama em gente, em vez de em actos» (PRESENÇA, 17: 10).
141
Depois de algum tempo de indefinição, em que teria esboçado, «numa penumbra
mal urdida, um vago retrato da pessoa», Pessoa lembrou-se «um dia de fazer uma
partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico de uma espécie complicada»
(PESSOA: 1999b: 342). O escritor estaria «disposto a colocar-se no estado de pesquisa, a
“entrar em relações de afectividade, as únicas relações que engendram o calor, a
originalidade e a criatividade entre indivíduos”, a sonhar, a “imaginar”, quer dizer a
“conceber o que não existe”, a criar» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 204). Muito mais
tarde, Pessoa daria conta disto mesmo na longa carta que escreveu, em 13 de Janeiro de
1935, ao crítico e escritor Adofo Casais Monteiro (1908-1972), na qual refere que, após
«uns dias a elaborar o poeta» sem nada conseguir, desistiu. Foi então que o seu estado
de graça se revelou numa epifania e, de pé, Pessoa teria escrito «trinta e tantos poemas a
fio, numa espécie de êxtase», que não poderia definir. Nesse «dia triunfal», único e
irrepetível, em que diz ter criado «O Guardador de Rebanhos», Pessoa manifesta «a
sensação imediata» de que não era ele que escrevia, mas que teria sido tomado por
alguém que escrevia por ele153. Segundo o escritor, por mais absurdo que isso fosse,
tinha surgido dentro de si um «mestre», a quem dera, desde logo, o nome de Alberto
Caeiro 154.
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns
poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de
Campos, mas num estilo de meia irregularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me,
contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo.
(Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao SáCarneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me
não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas
nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 –
acerquei-me de uma cómoda alta, e tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como
escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase
cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter
153
Não obstante, a análise crítica dos rascunhos do espólio pessoano da Biblioteca Nacional mostra que
os poemas de «O Guardador de Rebanhos» não foram escritos em 8 de Março de 1914, mas sim num
período mais longo, entre Março e Maio desse ano (CASTRO, 1986: 319-328).
154
Carta parcialmente reproduzida por Natalie Heinich no seu livro Être Écrivain: création et identité, em
que comenta a «crise de inspiração» de Fernando Pessoa: «Faut-il alors s’étonner qu’il ait pu inventer
cette étrange aventure identitaire qu’est la multiplication de soi par des “hétéronymes”, au cours d’une
crise d’inspiration qui constitue la plus spectaculaire description d’un état médiumnique projeté dans la
solitude de la création artistique?» (HEINICH, 2000: 199-200).
142
outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o
aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro.
Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação
imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas,
imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem
a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente… Foi o regresso de
Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou melhor, foi a reacção de
Fernando Pessoa contra a sua própria inexistência como Alberto Caeiro. (PESSOA: 1999b:
342-343)
«Nestes grandes momentos, por exemplo, na criação da obra-prima, a inspiração
manifesta-se de forma espontânea, súbita, desordenada, apoderando-se do criador e
obrigando-o a “transcender-se a si próprio”» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 204-205).
Uma vez aparecido Alberto Caeiro, o escritor pensou imediatamente em procurar-lhe
«uns discípulos», arrancando Ricardo Reis ao seu «falso paganismo» e, «de repente, e
em derivação oposta», teria surgido «impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e
à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda», Pessoa teria escrito a «Ode
Triunfal», de Álvaro de Campos, «a Ode com esse nome e o homem com o nome que
tem» (PESSOA: 1999b: 343). Segundo Boltanski e Thévenot, apenas nos «universos
distintos da realidade, da “desmoralizante realidade”», se pode manifestar a verdadeira
grandeza inspirada. Para tal, é necessário «favorecer os encontros», «fazer nascer as
questões», criar «jogos de palavras e de raciocínios», que permitam realizar
transmutações noutros universos. Neste sentido, é indispensável «escapar à realidade»
para «se lançar na mais louca imaginação», transformando os indivíduos em
«exploradores do imaginário» e levá-los a fazer uma «descida ao inconsciente», porque
«toda a criação apela ao inconsciente» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 204).
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e
subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis
latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de
repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo
indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode
Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade.
Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as
divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que
ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim, e parece que assim ainda
143
se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro
de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria. (PESSOA:
1999b: 343-344)
Segundo Fernando Pessoa, a origem mental dos heterónimos residia na sua
«tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação». Na
personalidade do «seu mestre» Caeiro, ele teria transposto todo o seu «poder de
despersonalização dramática», no Reis, teria investido toda a sua «disciplina mental
vestida da música que lhe é própria» e para Campos, teria transferido «toda a emoção»
que não tinha na sua vida quotidiana de «empregado no comércio», uma vivência algo
apagada para quem pretendia ser um grande escritor (PESSOA: 1999b: 340). Procurando
transcender-se, o criador deverá descer onde a grandeza se possa manifestar, «quer
dizer, em si mesmo, “fazer uma espécie de viagem mental”, “de alguma forma uma
viagem sem drogas”, ao inconsciente, para aí acordar para o sonho e para o sonho
acordado das “faculdades latentes”, “saber utilizar o sono”, abandonar-se ao sonho, não
pensar nunca em ser útil, eficaz, lógico, racional» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 202).
Neste sentido, seria inútil e contraproducente procurar uma explicação lógica e racional
para a grande literatura, ou mesmo descobrir-lhe alguma utilidade ou eficácia imediata,
pois ela vagueia no universo do sonho e da fantasia. Por isso, Pessoa pede desculpa
«pelo absurdo da frase», consciente do seu percurso interior, dessa descida ao
inconsciente, como que uma viagem mental dentro de si mesmo. Pouco depois, em
resposta a Casais Monteiro, o escritor afirma que permanecia igual a si próprio, pois não
evoluía, simplesmente viajava «de um para outro lugar» (PESSOA: 1999b: 350):
O que sou essencialmente – por trás das máscaras involuntárias do poeta, do
raciocinador e do que mais haja – é dramaturgo. O fenómeno da minha despersonalização
instintiva, a que aludi em minha carta anterior, para explicação da existência dos
heterónimos, conduz naturalmente a essa definição. Sendo assim, não evoluo: VIAJO. (Por
um lapso da tecla das maiúsculas, saiu-me sem que eu quisesse essa palavra em letra
grande. Está certo, e assim deixo ficar.) Vou mudando de personalidade, vou (aqui é que
pode haver evolução) enriquecendo-me na capacidade de criar personalidades novas, novos
tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes, de fingir que se pode compreendê-lo.
Por isso dei essa marcha em mim como comparável, não a uma evolução, mas a uma
viagem: não subi de um andar para outro; segui, em planície, de um para outro lugar.
Perdi, é certo, algumas simplezas e ingenuidades, que havia nos meus poemas de
adolescência; isso, porém, não é evolução, mas envelhecimento. (PESSOA: 1999b: 350)
144
«No mundo inspirado, os objectos e os dispositivos que equipam a grandeza não
estão afastados da pessoa. Eles provêm indiferentemente da mente e do corpo, (o dom
pode manifestar-se tanto por gestos como por palavras) que estão preparados para
acolher a inspiração, quer dizer cortados do que os liga aos dispositivos de outras
naturezas e colocados num estado de disponibilidade» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991:
202).
A realidade do imaginário, no mundo inspirado pessoano, revela os heterónimos
como figuras harmoniosas da ordem natural. Por isso, o escritor via, «no espaço incolor
mas real do sonho», as caras e os gestos dos seus heterónimos: Ricardo Reis,
supostamente nascido no Porto, em 1887, foi educado num colégio de jesuítas, era
médico, mas emigrou para o Brasil em 1919, «por ser monárquico». Este heterónimo,
certamente proveniente da «classe alta», escrevia melhor do que Pessoa, mas com um
purismo exagerado. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, em 1890, e após «uma
educação vulgar de liceu», foi estudar para Glasgow, na Escócia. Este engenheiro
mecânico e naval fez uma viagem pelo Oriente e trabalhou em Inglaterra, regressando
depois a Lisboa, onde se encontrava desempregado. Escrevia «razoavelmente mas com
lapsos», pertencendo certamente a uma «classe média». Alberto Caeiro seria
socialmente o menos favorecido dos três heterónimos, tendo nascido em Lisboa, em
1889, ficou órfão muito novo, pelo que «viveu quase toda a sua vida no campo», com
uma tia-avó. Pertencia certamente à «classe baixa», pois possuía apenas a instrução
primária e «escrevia mal o Português», nunca exerceu qualquer profissão e morreu
tuberculoso, em 1915 (PESSOA: 1999b: 344-345).
Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro,
Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu
em 1887 (não me lembro do dia e do mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está
presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em
Lisboa mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão, nem educação quase
alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da
tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está
certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa
em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu
tuberculoso) não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco,
mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais dois cm
do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos – o Caeiro louro
sem cor, olhos azuis; Reis de vago moreno mate; Campos, entre o branco e moreno, tipo
vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado,
145
monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução
primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns
pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num
colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou
espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semihelenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu;
depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval.
Numas férias fez a viagem a Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio
beirão que era padre. (PESSOA: 1999b: 344-345)
IV.3.2. A tensão entre os mundos inspirado e do renome
Com a herança da avó paterna, Fernando Pessoa tornara-se economicamente
independente. A venda da tipografia a vapor, em 1910, e o trabalho de correspondente
comercial garantiram-lhe essa independência durante algum tempo, mas, em 1912,
coincidindo com a sua estreia como crítico literário, a herança parece ter-se esgotado e o
jovem refugiou-se em casa da sua tia «Anica». Dois anos mais tarde, com a partida da
tia para a Suíça, o escritor ficou entregue a si próprio, mergulhando de novo na
depressão155. Em 19 de Novembro de 1914, Pessoa escreveu a Armando CôrtesRodriges156: «Eu já não sou eu. Sou um fragmento de mim conservado num museu
abandonado. Agora que a minha família que aqui estava foi para a Suiça, desabou sobre
mim toda a casta de desastres que podem acontecer. Por isso estou numa abulia
absoluta, ou quase absoluta, de modo que fazer qualquer coisa me custa como se fosse
levantar um grande peso ou ler um volume do Teófilo». O escritor declara que está
falido, perguntando ao amigo se lhe poderia emprestar vinte mil réis: «Eu não sei
quando lhos poderei devolver, e de mais a mais, já lhe devo aqueles cinco que v. uma
vez me emprestou na Avenida. Mas se lhe peço isto, meu caro, é que estou
absolutamente à bout de ressources. Literalmente naufragado, meu caro Amigo». A
crise financeira que afligia Pessoa fazia-se acompanhar de outra crise, esta psicológica.
Dois meses mais tarde, em 19 de Janeiro de 1915, escreveu de novo a Armando Côrtes-
155
Ana Luísa Pinheiro Nogueira acompanhou a filha Maria e o genro Raul Soares da Costa, que
conseguiu uma bolsa para estudar engenharia na Suíça.
156
Segundo Madalena Dine, Armando César Côrtes-Rodrigues (1891-1971) nasceu em Vila Franca do
Campo, São Miguel, Açores, e licenciou-se em filologia românica na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa. Nessa época, tornou-se amigo de Fernando Pessoa e seu interlocutor
privilegiado, tendo publicado poemas, na revista A Águia, pela mão de Pessoa. Em 1914, CôrtesRodrigues leccionava no Liceu de Angra do Heroísmo (MARTINS, 2008: 184-185).
146
Rodrigues uma extensa carta do «género psicológico», na qual revelava a «natureza da
crise psíquica que há tempos» vinha atravessando. Sentindo necessidade de desabafar
com alguém, o escritor escolheu este amigo, por ser o único que teria uma noção precisa
da sua «realidade espiritual» (PESSOA: 1999a: 131-139).
Em ninguém que me cerca eu encontro uma atitude, para com a vida que bata
certo com a minha íntima sensibilidade, com as minhas aspirações e ambições, com tudo
quanto constitui o fundamental e o essencial do meu íntimo ser espiritual. Encontro, sim,
quem esteja de acordo com actividades literárias que são apenas dos arredores da minha
sinceridade. E isso não me basta. De modo que, à minha sensibilidade cada vez mais
profunda, e à minha consciência cada vez maior da terrível e religiosa missão que todo o
homem de génio recebe de Deus com o seu génio, tudo quanto é futilidade literária, mera
arte, vai gradualmente soando cada vez mais a oco e a repugnante. Pouco a pouco, mas
seguramente, no divino cumprimento íntimo de uma evolução cujos fins me são ocultos,
tenho vindo erguendo os meus propósitos e as minhas ambições cada vez mais à altura
daquelas qualidades que recebi. Ter uma acção sobre a humanidade, contribuir com todo o
poder do meu esforço para a civilização vêm-se-me tornando os graves e pesados fins da
minha vida. E, assim, fazer arte parece-me cada vez mais importante cousa, mais terrível
missão – dever a cumprir arduamente, monasticamente, sem desviar os olhos do fim
criador-de-civilização de toda a obra artística. E por isso o meu próprio conceito
puramente estético da arte subiu e dificultou-se; exijo agora de mim muita mais perfeição e
elaboração cuidada. Fazer arte rapidamente, ainda que bem, parece-me pouco. Devo à
missão que me sinto uma perfeição absoluta no realizado, uma seriedade integral no
escrito. (PESSOA: 1999a: 140-141)
Os «graves e pesados fins» de Fernando Pessoa, contribuindo com todo o seu
«esforço para a civilização», remetem para a carta que Clifford Geerdts escreveu ao Dr.
Faustino Antunes em 1907, e segundo o qual, já em Durban o jovem se queixava de
«fardos espirituais e materiais de uma extrema adversidade» (PESSOA, 2003: 397).
Confirmando o testemunho do ex-colega, a enigmática confissão atribuída a Pessoa fica
esclarecida, perante pelo misticismo revelado na sua carta para Côrtes-Rodrigues. Tal
como o amigo, também Pessoa se afirmava «fundamentalmente um espírito religioso»,
enquanto os outros amigos, por superiores que fossem como artistas, não contariam
«como almas». Nenhum dos outros amigos literatos estaria consciente «da terrível
importância da Vida, essa consciência que nos impossibilita de fazer arte meramente
pela arte, e sem a consciência de um dever a cumprir para com nós próprios e para com
a humanidade». Pessoa confidenciava a Côrtes-Rodrigues ter vivido «há meses numa
147
contínua sensação de incompatibilidade profunda com as criaturas» que o cercavam,
«mesmo com as mais próximas». A postura dos seus «amigos, literários é claro»,
colidiria com a sua sensibilidade de escritor, com as suas «aspirações e ambições», com
tudo o que era fundamental e essencial no seu «íntimo ser espiritual». Para o escritor, a
«consciência cada vez maior da terrível e religiosa missão que todo o homem de génio
recebe de Deus» tornava gradualmente mais repugnante «tudo quanto é futilidade
literária, mera arte», sentindo «uma impaciência para com todos quantos fazem arte para
vários fins inferiores, como quem brinca, ou como quem se diverte». Esta interpretação
mística da literatura, como «divino cumprimento íntimo», coloca o escritor no mundo
inspirado, no qual a grandeza advém de uma profunda convicção interior. A «terrível e
religiosa missão» de «fazer arte», numa ordem de grandeza superior, exige um
sacrifício, o qual é interpretado pelo escritor como «dever a cumprir arduamente,
monasticamente, sem desviar os olhos do fim criador-de-civilização de toda a obra
artística» (PESSOA: 1999a: 139-141).
Passou de mim a ambição grosseira de brilhar por brilhar, e essa outra,
grosseiríssima, e de um plebeísmo artístico insuportável, de querer épater. Não me agarro
já à ideia do lançamento do Interseccionismo com ardor ou entusiasmo algum [157]. É um
ponto que neste momento analiso e reanaliso a sós comigo. Mas, se decidir lançar essa
quase-blague, será já, não a quase-blague que seria, mas outra cousa. Não publicarei o
Manifesto «escandaloso». O outro – aquele dos gráficos – talvez. A blague só um momento,
passageiramente,
a
um
mórbido
período
transitório,
de
grosseria
(felizmente
incaracterística), me pôde agradar ou atrair. Será talvez útil – penso – lançar essa corrente
como corrente, mas não com fins meramente artísticos, mas, pensando esse acto a fundo,
como uma série de ideias que urge atirar para a publicidade para que possam agir sobre o
psiquismo nacional, que precisa [de ser] trabalhado e percorrido em todas as direcções por
novas correntes de ideias e emoções que nos arranquem à nossa estagnação. Porque a ideia
patriótica, sempre mais ou menos presente nos meus propósitos, avulta agora em mim; e
não penso em fazer arte que não medite fazê-lo para erguer alto o nome português através
do que eu consiga realizar. É uma consequência de encarar a sério a arte e a vida. Outra
atitude não pode ter para com a sua própria noção-do-dever quem olha religiosamente
para o espectáculo triste e misterioso do Mundo. (PESSOA: 1999a: 141)
157
«Mas não poderá ficar o Interseccionismo como cousa esquisita a sério (segundo manifesto) e, assim, a
antologia também? – Ver isto.
O Interseccionismo é, primeiro, uma aproximação de outra gente, um chinfrim de escola assumida por
mim, vindo cair sobre mim os sibilados da dos outros» (PESSOA: 2003: 149).
148
A missão em que Fernando Pessoa se sentia investido exigia de si próprio
«perfeição absoluta», o que implicaria uma «seriedade integral no escrito», razão pela
qual teria renegado o seu poema «Paúis», considerando que resultara de uma postura
pouco séria perante o público. A «inspiração exprime-se indirectamente pela crítica das
outras formas de grandeza, quer se trate da dependência pessoal dos grandes deste
mundo, ou ainda da procura do renome e da glória» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991:
114).
Por isso, Pessoa denuncia o «plebeísmo artístico insuportável» e a «ambição
grosseira de brilhar por brilhar», procurando assim «separar a grandeza inspirada das
outras formas de grandeza que são denunciadas como interesses terrenos» (BOLTANSKI
& THÉVENOT, 1991: 111).
Neste sentido, o escritor classificou como «sincera» a criação
literária que transmite «uma noção da gravidade e do mistério da Vida», enquanto seria
«insincera» a mera literatura «para fazer pasmar» e «que não contém uma fundamental
ideia metafísica»158. Segundo Boltanski e Thévenot, «a grandeza do renome, que
depende da opinião dos outros, não é compatível com a grandeza inspirada cuja
confirmação assenta na segurança de uma convicção interior». Seria esta a razão da
«crise de incompatibilidade com os outros» manifestada por Pessoa, pois «no mundo da
inspiração, a tentação do renome constitui um dos motivos principais da decadência».
Por outro lado, no mundo do renome, a inspiração é criticada como loucura, uma vez
que é percebida como concepção singular, «cega à opinião alheia» (BOLTANSKI &
THÉVENOT, 1991: 304).
Regresso a mim. Alguns anos andei viajando a colher maneiras de sentir. Agora,
tendo visto tudo e sentido tudo, tenho o dever de me fechar em casa no meu espírito e
trabalhar, quanto possa e em tudo quanto possa, para o progresso da civilização e o
alargamento da consciência da humanidade. Oxalá me [não] desvie disto o meu perigoso
feitio demasiado multilateral, adaptável a tudo, sempre alheio a si próprio e sem nexo
dentro de si.
158
«HOJE, AO TOMAR DE VEZ a decisão de ser Eu, de viver à altura do meu mister, e, por isso, de
desprezar a ideia do reclame, e plebeia sociabilização de mim, do Interseccionismo, reentrei de vez, de
volta da minha viagem de impressões pelos outros, na posse plena do meu Génio e na divina consciência
da minha Missão. Hoje só me quero tal qual meu carácter nato quer que eu seja, e meu Génio, com ele
nascido, me impõe que eu não deixe de ser.
Atitude por atitude, escolher a mais nobre, a mais alta e a mais calma. Pose por pose, a pose de ser o
que sou.
Nada de desafios à plebe, nada de girândolas para o riso ou a raiva dos inferiores. A superioridade não
se mascara de palhaço; é de renúncia e de silêncio que se veste.
O último rastro de influência dos outros dos outros no meu carácter cessou com isto. Recobrei – ao
sentir que podia e ia dominar o desejo intenso e infantil de “lançar o interseccionismo” – a tranquila posse
de mim» (PESSOA, 2003: 147).
149
Mantenho, é claro, o meu propósito de lançar pseudonimamente a obra CaeiroReis-Campos. Isso é toda uma literatura que eu criei e vivi, que é sincera, porque é sentida,
e que constitui uma corrente com influência possível, benéfica incontestavelmente, nas
almas dos outros. O que eu chamo literatura insincera não é aquela análoga à do Alberto
Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos (o seu homem, este último, o da poesia
sobre a tarde e a noite). Isso é sentido na pessoa de outro; é escrito dramaticamente, mas é
sincero (no mais grave sentido da palavra) como é sincero o que diz o Rei Lear, que não é
Shakespeare, mas uma criação dele. Chamo insinceras às cousas feitas para fazer pasmar,
e às cousas, também - repare nisto, que é importante – que não contêm uma fundamental
ideia metafísica, isto é, por onde não passa, ainda que como um vento, uma noção da
gravidade e do mistério da Vida. Por isso é sério tudo o que escrevi sob os nomes de Caeiro,
Reis, Álvaro de Campos. Em qualquer destes pus um profundo conceito da vida, diverso
em todos três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de existir. E por
isso não são sérios os Paúis, nem o seria o Manifesto interseccionista de que uma vez lhe li
trechos desconexos. Em qualquer destas composições a minha atitude para com o público é
a de um palhaço. Hoje sinto-me afastado de achar graça a esse género de atitude.
(PESSOA: 1999a: 142-143)
A grandeza legítima respeita o bem comum e a comum humanidade. Por isso,
«tendo visto tudo e sentido tudo», Pessoa sente o dever de se fechar em casa «e
trabalhar, quanto possa e em tudo quanto possa, para o progresso da civilização e o
alargamento da consciência da humanidade». Com efeito, uma das principais
características da grandeza inspirada consiste na renúncia a si próprio, razão pela qual
esta carta para Côrtes-Rodrigues revela o «génio próprio» de Pessoa, no que ele tem «de
mais original e de mais singular», «entregando-se aos outros e servindo o bem
comum»159. O escritor distancia-se então dos companheiros literatos, procurando na
ascese a sua «libertação individual, não para um fim egoísta, mas para promover a
dignidade humana restabelecendo entre os seres relações autênticas» (BOLTANSKI &
THÉVENOT, 1991: 203).
Desta forma, «pensando esse acto a fundo», Pessoa não renega a
publicidade, «mas não com fins meramente artísticos», desejando sobretudo «agir sobre
159
Os objetos e dispositivos que equipam o mundo inspirado provêm «indiferentemente do espírito e do
corpo» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 202). Pessoa revela a sua inspiração no desejo de se
engrandecer pelo sofrimento, mesmo com o sacrifício do seu próprio corpo:
«Não conto gozar a minha vida nem; nem gozá-la posso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso
tenha de ser o meu corpo […] a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito
impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim toma o misticismo da nossa Raça» (PESSOA, 2003: 105).
150
o psiquismo nacional», o qual careceria de ser «trabalhado e percorrido em todas as
direcções por novas correntes de ideias e emoções que nos arranquem à nossa
estagnação». Neste sentido, o escritor «olha religiosamente para o espectáculo triste e
misterioso do Mundo», afirmando a sua «ideia patriótica, sempre mais ou menos
presente», de fazer arte «para erguer alto o nome português» (PESSOA: 1999a: 140-141).
NÃO FAÇO VISITAS, nem ando em sociedade alguma – nem de salas, nem de
cafés. Fazê-lo seria sacrificar a minha unidade interior, entregar-me a conversas inúteis,
furtar tempo senão aos meus raciocínios e aos meus projectos, pelo menos aos meus sonhos,
que sempre são mais belos que a conversa alheia.
Devo-me à humanidade futura. Quanto me desperdiçar desperdiço do divino
património possível dos homens de amanhã; diminuo-lhes a felicidade que lhes posso dar e
diminuo-me a mim-próprio, não só aos meus olhos reais, mas aos olhos possíveis de Deus.
Isto pode não ser assim, mas sinto que é meu dever crê-lo. (PESSOA, 2003: 144)
IV.5. Uma revista literária
O distanciamento de Fernando Pessoa da Renascença Portuguesa não foi
certamente alheio ao projecto dos jovens escritores «paúlicos» para uma revista literária
que publicasse os seus trabalhos. Inicialmente pensada com o título Lusitânia160, depois
Europa161, em breve o projecto da revista evoluía para uma Antologia do
Interseccionismo. Em 4 de Outubro de 1914, Pessoa escreveu a Côrtes-Rodrigues: «Em
vez de uma revista interseccionista, contendo o manifesto e obras nossas, decidimos (e
v., estou certo concordará), para evitar possíveis fiascos e não se poder continuar a
revista, etc., e, ao mesmo tempo, ficar coisa mais escandalosa e definitiva, fazer
160
No espólio de Fernando Pessoa existe um projecto para o primeiro número de uma revista com o título
Lusitânia, com poesia inédita de Camilo Pessanha e forte componente política, incluindo artigos de
Pessoa como «Oligarquia das Bestas», «A República Portuguesa na Política Internacional» e «O
Pensamento Europeu». Segundo Richard Zenith, Mário de Sá-Carneiro também deixou no seu espólio o
projecto de uma revista de teor mais literário e da qual Fernando Pessoa seria o director, tendo previsto
para colaboradores, além de Pessoa, Sá-Carneiro, Camilo Pessanha, João Correia de Oliveira, Alfredo
Pedro Guisado, Côrtes-Rodrigues, António Cobeira e Almada Negreiros (PESSOA, 2003: 411).
161
Em 18 de Fevereiro de 1913, Pessoa anotou no seu diário: «Passou João Correia de Oliveira e disseme que ia para a Brasileira. Fui lá ter, encontrei-o com o Augusto Santa-Rita. Discuti O Doido e a Morte
de Pascoaes, ele fraternalmente contra, eu quase calado. Falámos do plano da minha revista Lusitânia,
plano completo, e ele ficou um tanto preso do assunto, prometendo escrever para um editor do Porto»
(PESSOA, 2000c: 110). Dois anos depois, em 4 de Março de 1915, numa carta para Côrtes-Rodrigues,
Pessoa referia também: «Ora, a propósito de assinaturas, ocorre-me que, quando nós aqui falámos em
sair, não sei se era com a Lusitânia, se era com a Europa, v. me citou nomes de várias pessoas cuja
assinatura para a revista v. disse poder obter» (PESSOA, 2000c: 155).
151
aparecer o interseccionismo, não em uma revista nossa, mas em um volume, uma
Antologia do Interseccionismo. Seria este, mesmo, o título». Como autor da ideia,
Fernando Pessoa contava com a colaboração de Mário de Sá-Carneiro, Armando
Côrtes-Rodrigues e Alfredo Pedro Guisado, bem como do heterónimo Álvaro de
Campos. «Decidimos não incluir na Antologia, por ainda crianças, social e
paulicamente, o Ferro, o Mourão, etc.». Neste sentido, Pessoa questiona CôrtesRodrigues se poderia «entrar com 10.000 réis para o custo da produção» do livro, que
deveria «ter entre 96 e 128 páginas», e ser editado assim que possível, ou seja, «logo
depois de acabada a guerra» (PESSOA, 1999a: 126-127).
O projecto editorial dos jovens «paúlicos» teve desenvolvimento, ainda antes de
terminada a Grande Guerra, com o regresso a Lisboa, no início de 1915, de Luís de
Montalvor162. Após três anos no Rio de Janeiro, onde trabalhou como secretário da
embaixada de Portugal, os contactos estabelecidos no Brasil permitiram a este jovem
poeta propor aos seus amigos «paúlicos» a edição de uma revista literária lusobrasileira163. Em 19 de Fevereiro de 1915, Fernando Pessoa escreveu a Armando
Côrtes-Rodrigues, informando que ia «entrar imediatamente no prelo» a «revista
Orpheu, de que é director em Portugal um poeta. Luís de Montalvor, amigo íntimo de
Sá-Carneiro, e meu amigo também, e no Brasil um dos mais interessantes e nossos dos
poetas brasileiros de hoje, Ronald de Carvalho»164. Pessoa pedia ao poeta açoriano que
162
Pseudónimo do escritor, crítico e editor Luís Filipe de Saldanha da Gama da Silva Ramos (18911947), nascido em Cabo Verde e falecido em Lisboa, que foi colega de Mário de Sá-Carneiro no Liceu de
S. Domingos (actual Escola Secundária de Camões), no qual ambos pertenceram ao Grupo Dramático.
Luís de Montalvor publicou em folheto o poema «Revolução», dedicado ao seu padrinho, Bernardino
Machado (1851-1944), a quem acompanhou como secretário, quando este foi nomeado como primeiro
Embaixador de Portugal no Brasil. Depois de ter sido director do primeiro número da revista Orpheu,
publicado em Março de 1915, Luís de Montalvor editou também o único número da revista Centauro, em
1916, na qual publicou o poema «Passos da Cruz», de Fernando Pessoa. Em 1930, fundaria a editora
Ática que, a partir de 1942, publicou as obras de Pessoa e heterónimos. Manuela Parreira da Silva cita
João Gaspar Simões, que descreveu a aparência física invulgar de Luís de Montalvor, mencionando «o
seu glabro rosto, o seu crânio inteiramente calvo, os seus olhos sem pestanas, o seu ar de fetus, ou de ser
prematuro» (MARTINS, 2008: 486-487).
163
Numa carta para Álvaro Pinto, editor da revista A Águia, de 10 de Julho de 1913, Pessoa já
mencionava «um amigo meu, poeta e português, que está no Rio e que se dá com literatos e artistas de lá»
(PESSOA, 1999a: 97).
164
Ronald de Carvalho (1893-1935) foi um poeta, jornalista e diplomata brasileiro, natural do Rio de
Janeiro, que só mais tarde viria a aderir ao modernismo, assumindo um papel de destaque na célebre
Semana de Arte Moderna que decorreu no Teatro Municipal de São Paulo em 13, 15 e 17 de Fevereiro de
1922. Cinco anos mais novo do que Fernando Pessoa, nesta época Ronald de Carvalho publicou nas
revistas A Águia, Alma Nova e Atlântida. Na biblioteca pessoal de Fernando Pessoa existe o livro de
Ronald de Carvalho, Luz Gloriosa, que o autor lhe ofereceu, enviando-o por Luís de Montalvor. Pessoa
escreveu uma carta a Ronald de Carvalho, em 29 de Fevereiro de 1915, na qual agradeceu o livro e fez
uma apreciação crítica: «Não sei o que lhe diga do seu livro, que seja bem um ajuste entre a minha
152
lhe enviasse com urgência poesia original para a nova revista, que deveria ser trimestral
e «ter perto de 80 páginas», das quais pretendia publicar «umas seis» com poemas de
Côrtes-Rodrigues. O escritor pedia ao amigo «o mais interseccionista que tiver», se
possível «excedendo bastante o necessário», perguntando se ele se importava que
escolhesse dessas poesias «as mais adaptadas» ao fim da revista (PESSOA: 1999a: 148).
Noutra carta para Côrtes-Rodrigues, de 4 de Março de 1915, Pessoa estava ciente das
dificuldades inerentes à publicação de uma revista de novos escritores, mas, apesar de
tudo, parecia optimista: «Temos que firmar esta revista, porque ela é a ponte por onde a
nossa Alma passa para o futuro» (PESSOA: 1999a: 156).
Tudo isto deve dar para cima de 80 páginas. A revista – não sei se já lhe disse – é
trimestral. O primeiro número deve sair no fim de Março corrente; os outros,
correspondentemente, em fins de Junho, Setembro, Dezembro. O preço de cada número é
de 300 réis. A assinatura para continente e ilhas é 1000 réis por ano, pelos 4 números.
Vamos a ver se conseguimos aguentar a revista até, pelo menos, ao 4.º número,
para que ao menos um volume fique formado. Vai ficar uma coisa muito boa, com um ar
definitivo, de coisa que fica. Bem orientada, deve pegar a valer. Parece-me isto, sobretudo
por causa da venda e das assinaturas no Brasil, que o Luís de Montalvor (director em
Portugal), que esteve bastante tempo no Brasil, e o Ronald de Carvalho, director do Brasil,
devem conseguir obter. (PESSOA: 1999a: 154-156)
IV.5.1. A revista luso-brasileira Orpheu
Enquanto a Grande Guerra prosseguia, a República Portuguesa continuava com
as suas idiossincrasias, cada vez mais vulnerável à beligerância. Em Janeiro de 1915,
Afonso Costa, chefe do maioritário Partido Democrático, propôs a participação
portuguesa na guerra como forma de defender as colónias, contrariando assim a posição
sensibilidade e a minha inteligência. Ele é deveras a obra de um Poeta, mas não ainda de um Poeta que se
encontrasse, se é que um Poeta não é, fundamentalmente, alguém que nunca se encontra. Há imperfeições
e inacabamentos nos seus versos. Vêem-se ainda entre as flores as marcas das suas passadas. Não se
deveriam ver». Contudo, Pessoa afirma também ser «o mais severo dos críticos que tem havido»,
exigindo «a todos mais do que eles podem dar», e reconhece que o livro de Ronald de Carvalho era dos
mais belos que tinha lido recentemente: «Há em si o com que os grandes poetas se fazem. De vez em
quando a mão do escultor faz falar as curvas ideais da sua matéria. E então é o seu poema sobre o Cais e a
sua impressão do Outono, e este e aquele verso, caído dos deuses como o que é azul no céu nos intervalos
da tormenta. Exija de si o que sabe que não poderá fazer. Não é outro o caminho da Beleza» (PESSOA,
1999a: 150).
153
assumida por Brito Camacho (1862-1934), chefe do Partido da União Republicana165. O
discurso de Afonso Costa, no parlamento, desencadeou uma sublevação militar em 22
de Janeiro (movimento das espadas), da qual resultou a demissão do primeiro-ministro
Azevedo Coutinho e a nomeação, pelo presidente Manuel de Arriaga, do general
Pimenta de Castro, que passou a governar em ditadura. Foi um primeiro golpe na
República, que terminou, em 14 de Maio, numa sangrenta revolta militar que depôs o
presidente e o governo, restabelecendo eleições em 13 de Junho. O projecto de
Fernando Pessoa para criar uma revista «de carácter europeu» teria de ser adiado, uma
vez que a Grande Guerra ainda não terminara. Bem pelo contrário, o exército português
entraria na beligerância, no início de 1917, realizando a proposta de Afonso Costa.
Desta forma, teve acolhimento, dos jovens escritores «paúlicos», a ideia de Luís de
Montalvor para publicar uma revista literária luso-brasileira que, obviamente, não se
intitulava Europa, como Fernando Pessoa pensara166. Mais tarde, no artigo «Um Poeta
que Morre», publicado em 22 de Fevereiro de 1935, no Suplemento Literário do Diário
de Lisboa, evocando Ronald de Carvalho, recentemente falecido, Luís de Montalvor
recordaria a génese da revista, afirmando ter ele próprio escolhido o título Orpheu167:
165
Em 18 de Dezembro de 1914, na sequência de escaramuças que se prolongavam desde Outubro, as
tropas alemãs desencadearam um ataque ao forte fronteiriço de Naulila, no sul de Angola, em que as
tropas portuguesas foram desbaratadas. Nos dias seguintes, Manuel Brito Camacho (1862-1934) publicou
no diário A Lucta (de que era director e foi um dos fundadores em 1906) dois artigos, nos quais defendia a
neutralidade portuguesa na Grande Guerra. Contrariando Brito Camacho, Afonso Costa (director do
diário República, por ele fundados em 1911), propunha a intervenção militar portuguesa na Grande
Guerra.
166
Na carta para Côrtes-Rodrigues, de 19 de Novembro de 1914, Fernando Pessoa perguntava: «A nossa
ideia da Antologia está de pé, mas, é claro, só pode ser posta em prática depois de terminar a guerra, visto
que é um acto estético de carácter europeu, não é verdade? Quando será isso?» (PESSOA, 1999a: 132).
167
No seu Dicionário de Mitologia Grega e Romana, Pierre Grimal refere que o «mito de Orfeu é um dos
mais obscuros e carregados de simbolismo que a mitologia helénica conhece», o qual, difundido na
literatura clássica, «não deixou de exercer influência determinante na formação do cristianismo
primitivo»167. Na mitologia grega, Orfeu era filho de Eagro, rei da Trácia, habitando, tal como as musas,
perto do monte Olimpo. «Cantor por excelência», músico e poeta, Orfeu tocava cítara e lira, instrumento
que inventara ou que, pelo menos, tinha aperfeiçoado. «Orfeu sabia cantar melodias tão suaves que até as
feras o seguiam, as árvores e as plantas se inclinavam na sua direcção e os homens mais rudes se
acalmavam». Orfeu teria casado com a musa Eurídice, filha de Apolo, a qual foi mordida por uma
serpente que a matou. Desgostoso, Orfeu arriscou-se a descer aos infernos em busca da esposa falecida,
encantando com a sua lira os monstros subterrâneos. Impressionados com tal prova de amor, Hades e
Perséfone, deuses que regiam o mundo dos mortos, permitiram que Eurídice acompanhasse o esposo de
volta ao mundo dos vivos, na condição de que este deixasse as trevas seguido da mulher e sem se voltar
para trás. Orfeu aceitou e, quando estava quase a ver a luz do dia, uma dúvida assaltou o seu espírito:
«Perséfone não o teria enganado?». Ao voltar-se para trás, viu Eurídice morrer pela segunda e derradeira
vez, voltando assim, inconsolável, à superfície. «Depois da morte de Orfeu, a sua lira foi levada para o
céu, onde se transformou numa constelação», enquanto a sua alma «passou a habitar os Campos Elísios».
O mito de Orfeu converteu o cantor em patrono de músicos e poetas (GRIMAL, 1992: 340-341).
154
Ora, em Ronald, havia entre o artista e a pessoa humana, uma intima analogia, um
perfeito cantacto, do que resultava, quer nas suas relações sociais, ou entre amigos, uma
fina transparencia da sua delicadeza espiritual o doce acento de uma estranha simpatia.
Conheci-o, tinha ele regressado de uma longa estadia pela Europa, nesse dealbar
do avant-guerre, saturado do bulicio nostalgico e dos mestres da latitude intelectual de
Paris, daqueles, bem entendido, que se tinham alinhado na ala do movimentoo simbolista
francês. […]
Data dessa época a gestação, o plano, in mente, da fundação de uma revista
eclética, repositorio vivo, documentario incisivo dos varias modos de ser dos anceios das
curiosidades estéticas da gente nova, de ritmo independente e livre, unanimes no repudio
das fórmulas triviais e gastas, revista esta que mais tarde eu batisei com o titulo de Orpheu,
de trilho escandaloso e efeitos violentos, a cuja direcção pertencemos eu e Ronald, e
seguidamente os nomes queridos de Sá Carneiro e Fernando Pessoa. (Suplemento Literário,
4405: 1)
Em finais de Março de 1915, foi posto à venda, em Lisboa168, o primeiro
«fascículo» de Orpheu: Revista Trimestral de Literatura169, com direcção, em Portugal,
de Luís de Montalvor e, no Brasil, de Ronald de Carvalho, tendo como editor o jovem
António Ferro. Com capa desenhada por José Pacheco, este primeiro número abria com
uma «Introdução» de Luís de Montalvor, seguida dos poemas «Para os “Indícios de
Oiro”», de Mário de Sá-Carneiro, e incluía «Poemas», de Ronald de Carvalho e de
Côrtes-Rodrigues. De Fernando Pessoa, publicava «O Marinheiro: drama estático em
um quadro», dedicado a Carlos Franco170, que o escritor tinha proposto, sem êxito, para
publicação em A Águia, e também «duas composições» do seu heterónimo Álvaro de
Campos: «Opiário», dedicada «ao senhor Mário de Sá-Carneiro», e «Ode Triunfal», a
qual faria parte «dum livro chamado Arco de Triunfo, a publicar». Neste «fascículo»,
constavam ainda «Treze Sonetos», de Alfredo Pedro Guisado, e «Frisos», textos «do
desenhador» José de Almada Negreiros. Este primeiro número da revista era algo
168
«São nossos depositários em Portugal os Srs. Monteiro & C.ª, Livraria Brazileira – 190 e 192, Rua
Aurea, Lisboa. […] Orpheu publicará um numero incerto de paginas, nunca inferior a 72, ao preço
invariavel de 30 centavos o numero avulso, em Portugal, e 1$500 réis fracos no Brazil» (ORPHEU, 1: -).
169
«Orpheu é uma “revista trimestral de litteratura”, destinada a Portugal e Brazil e de que veiu agora a
lume o primeiro numero, correspondente a janeiro, fevereiro e março. As 83 paginas da revista, impressas
em excellente papel e tipo elegante, abrem por uma “Introducção” de Luiz de Montalvor, em que se
pretende definir os intuitos da obra a que metteu hombros um grupo de jovens que com frequencia se
topam ahi por alguns cafés da Baixa» (A CAPITAL, 1670: 1).
170
Carlos Augusto Lyster Franco (1880-1959), amigo de José Pacheco e Fernando Pessoa, nasceu em
Lisboa, mas radicou-se na cidade de Faro, onde foi colocado como professor do liceu em 1901. Jornalista
e pintor, exerceu posteriormente diversos cargos públicos, tendo sido vereador e presidente da Câmara
Municipal de Faro.
155
ambíguo e enigmático, de acordo com a «Introdução» de Luís de Montalvor, para quem
Orpheu era «um exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou
tormento…» (ORPHEU 1: 5).
Esta linha de que se quer acercar em Beleza, ORPHEU, necessita de vida e de
palpitação, e não é justo que se esterilise individual e isoladamente cada um que a sonhar
nestas cousas de pensamento, lhes der orgulho, temperamento e esplendor – mas pelo
contrario se unam em selecção e a dêem aos outros que, da mesma espécie, como raros e
interiores que são, esperam ansiosos e sonham nalguma cousa que lhes falta, – do que
resulta uma procura esthética de permutas: os que nos procuram e os que nós esperamos…
Bem representativos da sua estructura, os que a formam em ORPHEU,
concorrerão a dentro do mesmo nivel de competencias para o mesmo rithmo, em elevação,
unidade e discreção, de onde dependerá a harmonia esthética que será o typo da sua
especialidade.
E assim, esperançados seremos em ir a direito de alguns desejos de bom gosto e
refinados propósitos em arte que isoladamente vivem para ahi, certos que assignalamos
como os primeiros que somos em nosso meio, alguma cousa de louvavel e tentamos por esta
forma, já revelar um signal de vida, dos que formam o publico leitor de selecção, os
esforços do seu contentamento e carinho para com a realisação da obra literaria de
ORPHEU. (ORPHEU, 1: 6)
No plano formal, a ortografia anacrónica do título da revista expressaria uma
operação crítica velada, dos jovens «paúlicos», à política cultural republicana,
epitomizada na oposição à reforma ortográfica de 1911, segundo a qual, o «ph» de
Orpheu teria de ser substituído pela letra «f» (AA.VV., 1911: 10). Aliás, enquanto filólogo,
o professor Francisco Adolfo Coelho integrou a comissão que estudara e propusera ao
governo esta reforma, mais uma razão de discórdia para Fernando Pessoa171. Privados
da liberdade literária que a ausência de regras ortográficas permitia, os jovens escritores
171
O Governo republicano nomeou, em 15 de Fevereiro de 1911, uma comissão para estudar a reforma
ortográfica, a qual foi constituída por Gonçalves Viana, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Cândido de
Figueiredo, Francisco Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos, Gonçalves Guimarães, Ribeiro de
Vasconcelos, Júlio Gonçalves Moreira, José Joaquim Nunes e Borges Grainha. Em 4 de Setembro de
1911, menos de um ano após a revolução republicana, o Diário do Governo oficializava a primeira
reforma ortográfica da língua portuguesa, que até então não tinha grafia uniformizada: «Manda o
Govêrno da República Portuguesa, pelo Ministro do Interior: 1.º Que o relatório da referida comissão seja
publicado no Diário do Govêrno, devendo ser para o futuro adoptada em todas as escolas, e bem assim
nos documentos e publicações oficiais, a ortografia proposta pela comissão; 2.º Que se dê a tolerância
máxima de três anos, a contar da data da publicação da presente portaria, para a conservação das grafias
existentes nos livros didácticos actualmente em uso, a fim de não prejudicar os respectivos autores ou
editores» (DIÁRIO DO GOVERNO, 206: 5). O relatório da comissão seria publicado, em 12 de Setembro
de 1911, pelo que a reforma ortográfica entrou definitivamente em vigor em Setembro de 1914.
156
perderam este recurso criativo, mostrando o seu desacordo com a ortografia oficial172.
Esta constatação é reforçada pela rejeição do anacronismo ortográfico do título da
revista
trimestral
de
literatura
pela
imprensa
republicana,
que
o
grafou
sistematicamente «Orfeu» nos numerosos artigos, publicados nessa época, sobre a
revista173.
Segundo Luís de Montalvor, Orpheu procurava a «harmonia estética», contando
para tal com escritores «dentro do mesmo nível de competências para o mesmo ritmo,
em elevação, unidade e discrição». A suposta harmonia seria devida, sobretudo, ao
simbolismo dos jovens escritores, incluindo o próprio director da revista, que procurava
seduzir o público, invocando a protecção do seu patrono. Neste sentido, Orpheu
constituía um «acto estético» menos europeu, numa Europa onde a corrente modernista
era já uma realidade174. Apesar da pretensa «harmonia estética», Mário de Sá-Carneiro e
Álvaro de Campos surgem como os autores mais marcadamente modernistas, afirmando
a dissonância com o simbolismo, designadamente de Luís de Montalvor e de Ronald de
Carvalho. A dualidade estética da revista fica bem ilustrada pelas «duas composições»
do heterónimo, «publicadas por Fernando Pessoa», as quais fecham o primeiro número
de Orpheu: «Opiário»175, supostamente escrita no «Canal de Suez, a bordo», em Março
172
Fernando Pessoa escreveu recorrentemente contra a reforma ortográfica de 1911, como, por exemplo,
num rascunho sem data, intitulado «Ortografia e Aristocracia»:
«A linguagem falada é popular. A linguagem escrita é aristocrática. Quem aprendeu a ler e a escrever
deve conformar-se com as normas aristocráticas que vigoram n’aquele campo aristocrático.
A linguagem falada é nacional e deve ser o mais nacional possível. A linguagem escrita é – ou deve ser
– o mais cosmopolita possível. Philosopho deve escrever-se com 2 vezes PH porque tal é a norma da
maioria das nações da Europa, cuja ortografia assenta nas bases clássicas ou pseudo-clássicas».
Noutro rascunho, simplesmente intitulado «Ortografia», o escritor manifesta-se explicitamente contra a
reforma ortográfica: «A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto um fenómeno espiritual. O
Estado nada tem com o espírito. O Estado não tem direito a compelir-me, em matéria estranha ao Estado,
a escrever numa ortografia que repugno, como não tem direito a impor-me uma religião que não aceito».
(PESSOA, 1993: 112-119).
173
Mais tarde, referindo-se à Revista de Comércio e Contabilidade, que publicou com o seu cunhado,
Francisco Caetano Dias (1897-1969), em 1926, Pessoa mostra-se ainda mais crítico da reforma
ortográfica: «Peca de estar impressa em ortografia “moderna” – crime anticivilizacional que as
circunstâncias tornaram inevitável. Mas, infelizmente, a ortografia está por vezes errada. A Europa ainda
existe como Grécia…» (PESSOA, 1999b: 113).
174
Vinte anos depois, Almada Negreiros recordava desta forma a revista: «Sem programa a não ser o de
reunir autores, assim se fez “Orpheu”. Todos autores e sem chefes, o que de verdade só é possível entre
gente de Arte. Independencia da colaboração. Até a ortografia era a dos autores. E foi esta independencia
da colaboração o que afinal deixava perceber uma unanimidade de idéas entre os seus colaboradores: A
necessidade da “elite” portuguesa, a qual não estava no seu lugar, a qual não estava em parte nenhuma!»
(Diário de Lisboa: suplemento literário, 1935: 1).
175
Na carta para Adolfo Casais Monteiro, de 13 de Janeiro de 1935, Fernando Pessoa revela: «Quando foi
da publicação de Orpheu, foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar o número de
páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos – um
157
de 1914, e «Ode Triunfal», pretensamente criada em Londres, em Junho desse ano, que
eventualmente teria sido escrita para a planeada revista Europa. O primeiro destes
poemas revela fortes traços decadentistas e simbolistas, enquanto o segundo apresenta
características modernistas, e mesmo futuristas176, decididamente «um acto estético de
carácter europeu». O denominador comum a estas duas composições seria,
eventualmente, a «degeneração» do seu autor fictício, patente no vício de opiómano, na
primeira, e na personalidade masoquista, na segunda.
OPIÁRIO
Ao senhor Mário de Sá-Carneiro
É antes do ópio que a minh’alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estióla
E eu vou buscar ao ópio que consóla
Um Oriente ao oriente do Oriente.
[…]
Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência.
E assim fiz o “Opiário”, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme
haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro.
Foi, dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização
que tive de desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão…» (PESSOA,
1999b: 344).
176
Numa carta para o director do Diário de Notícias, de 4 de Junho de 1915, assinada por «Álvaro de
Campos, engenheiro e poeta sensacionista», Fernando Pessoa escreveu: «O que quero acentuar, acentuar
bem, acentuar muito bem, é que é preciso que cesse a trapalhada, que a ignorância dos nossos críticos está
fazendo, com a palavra futurismo. Nenhum futurista tragaria o Orpheu. O Orpheu seria, para um futurista,
uma lamentável demonstração de espírito obscurantista e reaccionário.
A atitude principal do futurismo é a Objectividade Absoluta, a eliminação, da arte, de tudo quanto é
alma, quanto é sentimento, emoção, lirismo, subjectividade em suma. O futurismo é dinâmico e analítico
por excelência. Ora se há coisa […] típica do Interseccionismo (tal é o nome do movimento português) é
a subjectividade excessiva, a síntese levada ao máximo, o exagero da atitude estática. «Drama estático»,
mesmo, se intitula uma peça, inserta no 1.º número do Orpheu, do Sr. Fernando Pessoa. E o tédio, o
sonho, a abstracção são as atitudes usuais dos poetas meus colegas naquela brilhante revista.
A César o que é de César. Aos Interseccionistas, chame-se interseccionistas. Ou chame-se-lhes
paúlicos, se se quiser. Esse termo, ao menos, caracteriza-os, distinguindo-os de outra qualquer escola.
Englobar os colaboradores do Orpheu no futurismo é nem sequer saber dizer disparates, o que é
lamentabilíssimo. […]
A minha Ode Triunfal, no 1.º número do Orpheu, é a única coisa que se aproxima do futurismo. Mas
aproxima-se pelo assunto que me inspirou, não pela realização – e em arte a forma de realizar é que
distingue as correntes e as escolas.
Eu, de resto, nem sou interseccionista (ou paúlico) nem futurista. Sou eu, apenas eu, preocupado apenas
comigo e com as minhas sensações» (PESSOA, 1999a: 163-164).
158
A minha vida camfora na aurora.
[…]
Volto á Europa descontente, e em sortes
De vir a ser um poeta sonambólico.
Eu sou monarquico mas não católico
E gostava de ser as coisas fortes.
[…]
Caio no ópio por força. Lá querer
Que eu leve a limpo uma vida destas
Não se pode exigír. Almas honestas
Com horas pra dormir e pra comer,
[…]
Se ao menos eu por fóra fosse tão
Interessante como sou por dentro!
Vou no Maelstrom, cada vez mais pró centro. [177]
Não fazer nada é a minha perdição.
Um inutil. Mas é tão justo sê-lo!
Pudesse a gente despresar os outros
E, ainda que co’os cotovelos rotos,
Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!
Tenho vontade de levar as mãos
Á boca e morder nélas fundo e a mal.
Era uma ocupação original
E distaria os outros, os tais sãos.
[…]
Álvaro de Campos
(ORPHEU, 1: 71-75)
177
Em 1903, enquanto estudante em Durban, o jovem Fernando Pessoa recebeu o prémio «Queen
Victoria Memorial Prize», para a melhor prova de língua inglesa na admissão à universidade, que incluía
um conjunto de livros, do qual constava um volume de obras escolhidas de Edgar Allan Poe (1809-1849).
Este livro, ainda existente na biblioteca de Fernando Pessoa, foi publicado em 1902, com uma introdução
de Charles Baudelaire (1821-1867), e inclui o conto «A Descent into the Maelström» (POE, 1902: 157172). Poe e Baudelaire foram escritores que influenciaram Fernando Pessoa, pelo que este conto teria
inspirado também o poema «Opiário», de Álvaro de Campos. Curiosamente, o mesmo conto de Allan Poe
sobre o «Maelström», um fenómeno marítimo que ocorre ao largo da ilha norueguesa de Moskenes,
inspirou também Norbert Elias, que escreveu, em 1980, o ensaio «Os Pescadores no Turbilhão do
Maelström» (ELIAS, 1997: 69-159):
«Talvez possamos clarificar o que se pretende dizer com a expressão double bind através de um
episódio do conto de Poe sobre a queda no turbilhão do Maelström.
Recordemos: enquanto os pescadores iam sendo gradualmente arrastados para dentro do abismo criado
pelo turbilhão das águas, flutuaram ainda durante algum tempo à deriva, em conjunto com outros
destroços, ao longo das paredes desse funil, cada vez mais estreito» (ELIAS, 1997: 75).
159
IV.5.2. «Literatura de Manicómio»
Contrariando a lenda grega, Orpheu não teve um efeito tranquilizador, bem pelo
contrário, excitou os ânimos178, provocando uma torrente de críticas que transcendeu
largamente a república das letras, alimentando durante meses a imprensa e as conversas
de café179. A revista Orpheu foi satirizada por jornalistas e críticos, em artigos e até
ilustrações fortemente jocosos que os ridicularizavam, convertendo os escritores
«paúlicos» em motivo de chacota pública180. Na «Ode Triunfal», publicada nas páginas
finais da revista, Álvaro de Campos refere as «vidas complexas» das «multidões
quotidianas». O heterónimo parece inspirado pela perspectiva sociológica de Max
Nordau, quando denuncia a pobreza, a exclusão social, a prostituição, a pedofilia ou a
delinquência da «gente ordinária e suja», «gente humana que vive como os cães».
Contrastando fortemente com as maravilhas da ciência e da técnica modernas, descritas
na «Ode Triunfal», este reverso civilizacional, que Nordau apontara como causa social
da degeneração, foi mais ou menos ignorado e, curiosamente, omitido pela imprensa.
Contudo, a controvérsia não demorou, na qual a «rapaziada do Orpheu» foi sujeita a
operações críticas severas, sobretudo os dois autores mais modernistas, Mário de SáCarneiro e o heterónimo Álvaro de Campos.
ODE TRIUNFAL
Á dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, féra para a beleza disto,
178
No seu caderno de notas, em 27 de Março de 1915, Pessoa escreveu: «Falei com A. Ferro a respeito da
revista. Ele citou várias opiniões, quase todas adversas; J. Rocha Peixoto disse-lhe que uma “alta
individualidade” da nossa terra lhe tinha declarado que a revista era uma revista de malucos, o “órgão dos
malucos”» (PESSOA, 2003: 153).
179
«Todos os jornais da capital fizeram referência ao Orpheu, quase todos os jornais do Porto e Coimbra,
alguns da província, do Sul, dois da Galiza, e um do Brasil, além de muitas revistas», refere Fernando
Hilário no seu livro Orpheu: percursos e ecos de um escândalo. «Nos dois cadernos de Pessoa, onde o
poeta coleccionou os artigos da imprensa sobre Orpheu, constam 68 referências para o primeiro número
da revista e 24 para o segundo – manancial jornalístico bem elucidativo da importância que a revista
assumiu nesse Portugal do início do século XX, ou, se se preferir, do escândalo que provocou»
(HILÁRIO, 2008: 169).
180
Segundo Manuela Parreira da Silva, o «Século Cómico refere-se por várias vezes a Orpheu, ao longo
de 1915: “ORPHEU” (8 de Abril), “O ORPHEU” (22 de Abril), “Futurismo” de Bramão de Almeida (3
de Junho), “A Rapaziada do Orpheu” e “Em FOCO SANTA RITA PINTOR (do ORPHEU)” (8 de
Junho). Publica também versos com o título “Orpheu” (Ode Simétrica), com assinatura de “Pablo Perez
futurista-electricista”, em 22 de Julho» (SÁ-CARNEIRO, 2001: 321).
160
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
[…]
Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolôr anónimo e onde eu não me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós comsigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguem o pode ver!
[…]
Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! –
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai pra casa
Por vielas quase irreais de estreitesa e podridão.
[…]
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!
[…]
Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-lá! He-hô Ho-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
[…]
Álvaro de Campos
(ORPHEU, 1: 77-83)
161
Em 30 de Março de 1915 e nas colunas centrais da primeira página, A Capital:
diário republicano da noite, próximo do Partido Democrático de Afonso Costa,
publicou um artigo intitulado «Literatura de Manicómio», com a manchete «OS
POETAS DO “ORPHEU” foram já cientificamente estudados por Júlio Dantas, há 15
anos, ao ocupar-se dos “artistas” de Rilhafoles» – «Casos de paranóia – Tem a palavra o
Sr. Júlio de Matos!». Segundo o jornalista anónimo, os «nefelibatas ou decadentes» que
tinham «por pontífice máximo Eugénio de Castro» (1869-1944), «nas suas
extravagantes composições», revelavam «o seu belo talento, já anteriormente
manifestado em trabalhos de mérito». Pelo contrário, «os colaboradores do Orpheu»
nunca se teriam afirmado como literatos senão em «manifestações idênticas às que
enchem as páginas da revista», pelo que não era possível «ajuizar do seu real valor». O
crítico recorre então à tese do Dr. Júlio Dantas, então já um escritor de sucesso, citando
Pintores e Poetas de Rilhafolles, para sustentar que os «moços literatos» da revista
Orpheu eram «casos de paranóia» (A CAPITAL, 1670: 1).
Occupando-se, ha quinze annos, dos Pintores e poetas de Rilhafolles, Julio Dantas
fornecia-nos já todas as caracteristicas do estado mental d'esses moços litteratos que hoje
ahi surgem arvorando o Orpheu como estandarte. A chromophilia, o símbolo, a allegoria, o
neologismo, o egocentrismo, a autophilia, a «linguagem de malhas perdidas, fragmentaria,
desconchavada, cheia de lacunas correspondentes a palavras, phrases ou pensamentos
inteiros que não tiveram tempo de fixar-se, gafa de vocabulos e detrictos sillabicos reunidos
por simples aliterações ou consonancias, ferida, emfim, da incoherencia mais desastrosa e
tomando a feição de uma algaravia ás vezes brilhante, mas sempre grotesca e
tumultuaria»[181] – tudo isso que assignala a arte do paranoico litterato se depara nas
producções dos individuos acima citados e nas de outros que collaboram com elles.
Julio Dantas escreveu que «na idiotia intellectual, na imbecilidade, a incoherencia
vem pela reunião ou pela incrustação de vocabulos ou phrases segundo um criterio de
maior riqueza chromica ou musical, ordinariamente colhidos na obra alheia, succedendo-se
n’um rithmo unctuoso e embalador, e onde nem por milagre se enxerga a sombra de uma
ideia»[182].
Correntemente, eis o que se verifica na obra dos jovens do Orpheu, alguns dos
quaes talvez tenham ideias, mas tão singulares que só confirmam o seu desvio vesanico.
Vae o leitor ter ensejo de notal-o nos trechos que em seguida inserimos, convindo accentuar
que um dos paúlicos (alcunha posta nos cafés aos litteratos do Orpheu), o sr. Alvaro de
181
Júlio Dantas, Pintores e Poetas de Rilhafolles, Lisboa, Libanio Guimarães & Cia., 1900, p. 43.
182
Idem, p. 44.
162
Campos, se affasta n'uma das suas composições, a Ode triunfal, dos processos dos seus
camaradas e canta as coisas menos delicadas e menos poeticas dos nossos tempos em
espantosas expressões verbaes por vezes pornographicas… (A CAPITAL, 1670: 1)
Segundo o jornalista anónimo, os «supostos literatos» consideravam a sua obra
de uma «beleza absolutamente nova» mas, na sua opinião, seria «tudo velho», conforme
poderiam atestar os psiquiatras que, na revista Orpheu, teriam «abundante matéria de
estudo». Alguns dos jovens escritores talvez tivessem ideias, mas «tão singulares» que
só confirmavam o seu «desvio vesânico», destacando a poesia de Álvaro de Campos
como «arte do paranóico literato», que «canta as coisas menos delicadas e menos
poéticas» com «espantosas expressões verbais por vezes pornográficas». O crítico
conclui assim que os autores dos «chamados poemas» de Orpheu «pertencem a uma
categoria de indivíduos que a ciência definiu e classificou dentro dos manicómios, mas
que podem sem maior perigo andar fora deles…»183 (A CAPITAL, 1670: 1).
Com effeito, o sr. Alvaro de Campos distancia-se em muito dos confrades e a sua
authentica paranoia, em que a influencia do chamado futurismo é evidente, tem aspectos
diversos, tão dignos de estudo como a dos outros. Na Ode triunfal escreve elle:
Mettam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me e bordo de navios!
Masóquismo atravez de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu barulho!
E n’outro ponto:
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os caes.
Giro dentro das helices de todos os navios
Eia! eia-hô! Eia!
Eia! sou o calor mecanico e a electricidade!
Tem a palavra o sr. dr. Julio de Mattos. (A CAPITAL, 1670: 1)
183
A «categoria de indivíduos» referida pelo jornalista remete para o conceito de mattoïde, desenvolvido
por Cesare Lombroso, ou para o «paranóico» de Júlio de Matos.
163
No dia seguinte, 31 de Março, o mesmo jornal publicou outra crítica de primeira
página a Orpheu, com o título «Praxedes Futurista», na crónica diária «Migalhas», do
jornalista e escritor André Brun (1881-1926). Neste pequeno texto, a personagem
Praxedes considera «quase todos os poetas como uma classe de malucos à parte com a
tineta de pensarem e escreverem duma maneira diversa da nossa». Quanto aos escritores
«paúlicos», o crítico considera que «o seu cenáculo não irrita ninguém e tem a
vantagem de proteger o comércio tipográfico». Contudo, sendo «a maluqueira destes
muito mais visível», André Brun tece uma crítica às «odes opiáricas do Sr. Álvaro de
Campos», na qual remete o heterónimo para uma cultura nacional da indolência,
dessingularizando assim o escritor, para quem «Não fazer nada é a minha perdição».
Mas a a operação crítica de André Brun não se limita apenas à gramática industrial da
psiquiatria positivista, pois a sua análise de Álvaro de Campos invoca também o mundo
doméstico, desqualificando o «mancebo», que é assim reduzido à ordem de grandeza de
«rapazinho» (A CAPITAL, 1671: 1).
– Aqui para nós, eu considerei sempre quasi todos os poetas como uma classe de
malucos á parte com a tineta de pensarem e escreverem d’uma maneira diversa da nossa.
Evidentemente, a maluqueira d’estes é muito mais visivel. Aquelle rapazinho que se sente
correia de transmissão, embolo de machina a vapor e lampada electrica é no genero
d’aquelle maluco da anecdota, que se sentia vaso de noite. A mania é muito semelhante. A
differença é que este pende para o movimento e o outro via-se attrahido para os perfumes.
Este de que falo tem uma qualidade que o recommenda: é um poeta eminentemente
nacional. Veja como elle diz a certa altura: – «Não fazer nada é a minha perdição». É cá
dos meus este mancebo, ou, por outra, é dos nossos. Portuguez direitinho. Felizmente para
elle, não tem que tratar da vida e sustentar a familia e entretem-se a ver a sua existencia,
«canfora na aurora» deslisar «pelo canal de Suez» «cada vez mais para o centro do
Maelstrom». Eu, por meu mal, não tenho posses para isso, quando não, meu amigo, ia
passar o meu tempo a ouvir aquella rapaziada. Não ha duvida que devem ser curiosos. Pelo
menos o seu cenaculo não irrita ninguem e tem a vantagem de proteger o commercio
typographico. (A CAPITAL, 1671: 1)
No dia 8 de Abril de 1915, foi a vez do conhecido crítico literário, jornalista e
escritor, Albino Forjaz de Sampaio (1884-1949) publicar, no jornal A Lucta, a sua crónica
«PELA LITERATURA – A nova fauna literária: criacionistas e saudosistas. A “Galera”
e o “Orfeu”». Segundo o crítico, enquanto «os mocinhos de Coimbra escrevem A
164
Galera184, tristonha e sombria carroça de despautérios, os de Lisboa fundam Orpheu,
revista destinada a arrastar atrás de si o riso e o motejo de todas as pessoas sensatas».
Na sua operação crítica, Sampaio estabelece uma equivalência entre a revista coimbrã A
Galera, «qualquer coisa de abstruso e disparatado», com a lisboeta Orpheu, que seria «a
Loucura em plena festa». Contudo, se por um lado o crítico relaciona a «nova fauna
literária» de Coimbra com a de Lisboa, por outro ele distingue estes moços «esquisitos»
que «tresvariam» numa «prosa de palavras sem nexo», da geração «de prosadores, ainda
escrevendo à antiga», «de uma maneira muito diversa», «livros que toda a gente
entende». Comparados com os grandes escritores do século XIX, Camilo Castelo
Branco (1825-1890), Eça de Queiroz (1845-1900) ou Fialho de Almeida (1857-1911), que
escreviam «com talento, com alma e com gramática», na sua opinião, os novos
escritores constituiam uma «incrível, espantosa geração de patetas». A operação crítica
de Sampaio, centrada na gramática do mundo doméstico, diminui os escritores de
Orpheu, reduzindo-os à pequenez de «meninos futuristas». Mas a sua crítica cnvoca
também a gramática industrial da psiquiatria positivista, a partir da qual, o mundo
inspirado dos jovens escritores é visto, sobretudo, como um foco de vesânia que
produziu «uma geração de paranóicos». Nesta perspectiva, Albino Forjaz de Sampaio
continua a polémica sobre a sanidade mental dos escritores «paúlicos», apelando
ironicamente ao Dr. Júlio de Matos para que «declare se a doença é contagiosa» (A
LUCTA, 3340: 3).
Emquanto os mocinhos de Coimbra escrevem a Galera, tristonha e sombria
carroça de dispauterios, os de Lisboa fundam Orpheu, revista destinada a arrastar atraz de
si o riso e o motejo de todas as pessoas sensatas. Dir-se-hia que desabrochou
repentinamente uma geração de paranoicos preocupada em estabelecer o ritmo e côr a
uma prosa de palavras sem nexo. Não sei se o Dr. Julio de Matos já vaticinou, com a sua
incontestada superioridade de homem superior que sabe escrever. Se o não fez, que quando
o fizer declare se a doença é contagiosa. Havia já, no Porto o saudosismo e o creacionismo.
Em Coimbra a Galera é qualquer cousa de abstruzo e disparatado. Em Lisboa o Orpheu é a
Loucura em plena festa. Que incrivel, espantosa geração de patetas não está ahi
abeberando! (A LUCTA, 3340: 3)
184
A Galera: revista de lettras, arte e sciencia, dirigida por Alves Martins, Costa Cabral, Ferreira
Monteiro, Nicolau Sobrinho e Joaquim Mathias Lopes, publicou cinco números em Coimbra, de 28 de
Novembro de 1914 a 25 de Fevereiro de 1915. Colaboraram nesta revista, entre outros escritores,
Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Alfredo Pedro Guisado.
165
Respondendo aos apelos para que interviesse na controvérsia, o Dr. Júlio de
Matos, «director do Manicómio Bombarda», tomou a palavra numa entrevista publicada
pelo mesmo diário, em 11 de Abril de 1915. Nesta edição, A Lucta noticiava também a
construção de um sanatório para «doenças nervosas», «cuja iniciativa se deve a um
especialista nervopata, que, animado por um grupo de amigos e capitalistas
inteligentes», construiria o melhor estabelecimento do género na península Ibérica (A
LUCTA, 3343: 3).
Em duas colunas da primeira página, onde incluía a reprodução da capa
da revista trimestral de literatura, o diário publicava um artigo não assinado, intitulado
«ARTE EXOTICA: Os poetas do “Orfeu” e os alienistas – Dois ilustres psiquiatras
portugueses, um dos quais o Sr. Dr. Júlio de Matos, dão a sua opinião sobre o
“paúlismo”». No texto introdutório, o jornalista anónimo escreveu, com sarcasmo, que
«apareceram aí, soluçando máguas de fantasmagoria, evocando requintes de visionismo
nebuloso, uns mancebos», com «linguagens desconhecidas», que «lacrimejaram
gemidos incompreensíveis». Na sua opinião, estes «mancebos preciosos da nova escola
literária produziram uma inqualificável aberração. Publicaram o 1.º número da sua
bíblia trimensal, o Orfeu, e a humanidade riu». Atendendo à juventude dos escritores,
ninguém se teria indignado com a revista, pelo contrário, num «épico uníssono de bom
humor, a humanidade premiou-lhes as esquisitices à gargalhada» (A LUCTA, 3343: 1).
À semelhança de Albino Forjaz de Sampaio, o jornalista anónimo compara
também a revista Orpheu com a sua homóloga coimbrã, A Galera, mas contraria o
senso comum jornalístico, considerando os jovens escritores «criaturas que têm dado
excelentes provas da normalidade constitucional das respectivas cabeças». O crítico
justifica a sua opinião sarcasticamente, afirmando que os «paúlicos» falavam e
escreviam correntemente «e até – Ó cúmulo da saúde! – bastante mediocremente».
Apesar de não se considerar competente para avaliar a sanidade mental dos jovens, o
jornalista avança a hipótese destes escritores terem sido vítimas de «degenerescência
cruel, tarados de perversões implacáveis, que traduziram em sonoridade verbal, as
perturbações cerebrais, o bailado diabólico das suas alucinações». Reiterando a opinião
de Albino Forjaz de Sampaio, o crítico sugere também que a «efervescência doentia de
literaturas cabalísticas que por aí apareceram» podia originar uma epidemia de loucura,
«uma grande corrente de nevrose colectiva, digna do estudo dos homens da ciência». O
jornalista justifica assim as entrevistas, registando a opinião autorizada de «dois ilustres
psiquiatras que nos poderiam elucidar seguramente sobre o assunto» (A LUCTA, 3343: 1).
166
A final os poetas são os profetas. Ha poemas feitos de nevrose e ha poemas em que
a suavidade modula hinos de paz e de doçura. E no delirio febril das convulsões e da
melodia enternecida das baladas pastoris, a Beleza transparece e escravisa, espiritualisa e
vence.
Mas os mancebos preciosos da nova escola literaria produziram uma inqualificavel
aberração. Publicaram o 1.º numero da sua bíblia trimensal, o Orfeu, e a humanidade riu.
Ora os profetas que andaram tangendo o alaúde mistico da Fé foram cuspidos e açoitados,
crucificados e apedrejados. Os paúlistas não. Ninguem se indignou contra eles. Num epico
unisono de bom humor, a humanidade premiou-lhes as esquisitices á gargalhada.
Comtudo, talvez eles fossem antes dignos de piedade. Quem sabe? Victimas de
uma degenerescencia cruel, tarados de perversões implacaveis, que traduziram em
sonoridade verbal, as perturbações cerebraes, o bailado diabolico das suas alucinações.
Em verdade, não acreditavamos muito nisso. Os poetas do Orfeu, como os seus
manos da revista coimbrã A Galera, são creaturas que teem dado excelentes provas da
normalidade constitucional das respectivas cabeças. É vel-os por ahi a falarem e a
escreverem em vulgata, correntiamente, e até – Ó cumulo da saude! – bastante
mediocremente… (A LUCTA, 3343: 1)
Solicitando ao jornalista que mantenha o seu nome no anonimato, o primeiro
psiquiatra é descrito como «um dos mais afamados médicos portugueses, cuja clara
inteligência se tem nitidamente afirmado quer no campo da política, onde tem exercido
a sua actividade, quer na sua obra científica. É, além de um especialista de doenças
nervosas e mentais, um diletantti em coisas de arte, e por isso, tudo o indicava para
apreciar, sob o duplo ponto de vista patológico e artístico, a poesia dissonante do
Orfeu»185. Divergindo do positivista Júlio de Matos que, em 1912, criticara a «nova
185
Tanto Jerónimo Pizarro (PIZARRO, 2007: 209) como Sara Afonso Ferreira (MARTINS, 2008: 485)
sugerem que o «ilustre psiquiatra» anónimo seria o médico neurologista Egas Moniz (1874-1955), que
recebeu o Prémio Nobel da medicina em 1949, apesar de jamais ter sido psiquiatra. O próprio Fernando
Pessoa, ainda jovem, foi paciente deste médico, a quem se referiu mais tarde no artigo «O que um
Milionário Americano Fez em Portugal», publicado na revista Fama em 10 de Março de 1933: «Quando,
em 1907, o prof. Egas Moniz me passou, para fins ginásticos, para as mãos de Luís furtado Coelho, para
ser cadáver só me faltava morrer. Em menos de três meses, e a três lições por semana, pôs-me Furtado
Coelho em tal estado de transformação que, diga-se com modéstia, ainda hoje existo – com que vantagens
para a civilização europeia, não me compete a mim dizer» (PESSOA, 2000c: 479). Por outro lado, Júlio
Dantas (1876-1962) estudou com o célebre psiquiatra Miguel Bombarda, no Manicómio de Lisboa, tendo
publicado a tese Pintores e Poetas de Rilhafolles em 1900. Deputado no tempo da Monarquia, o «capitãomédico» Júlio Dantas ocupou também diversos cargos públicos durante a República, pelo que
corresponde ao perfil do psiquiatra anónimo entrevistado pelo repórter de A Lucta. O Manifesto AntiDantas, de Almada Negreiros, bem como uma carta de Fernando Pessoa para William Bentley, editor da
revista Portugal, reforçam esta hipótese: «Mr. Dantas does not write literature, and his attitude, either
towards the past, or towards any other thing, has no importance at all; the kindest thing that can be done
to him is to suppose he does not exist. To mention him in a paper on Portuguese literature is to stand selfaccused of incompetence and critical incapacity» (PESSOA, 1999a: 196).
167
poesia portuguesa» a partir, sobretudo, do mundo industrial, este psiquiatra anónimo
baseia-se no mundo doméstico para fazer uma operação crítica severa aos jovens
escritores. A inspiração antagoniza o mundo doméstico, uma vez que o seu carácter
instável, bem como o desconhecimento dos estados de grandeza, perturbam as ordens
hierárquicas, desordenando este mundo. Neste sentido e em sintonia com Albino Forjaz
de Sampaio, o médico considera os poetas de Orpheu «meninos sem talento que querem
chamar sobre si as atenções do público vomitando asneiras», reduzindo-os assim a um
pequeno estatuto no mundo doméstico. Contudo, uma vez que «um grande número de
propriedades afectas aos pequenos são, pelo contrário, atributos da grandeza no mundo
da inspiração» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 297), o psiquiatra afirma que os jovens
escritores não são «artistas nem loucos», mas «chuchadores de mau gosto» que
pretendem gozar à custa do público, criando «um simbolismo idiota e grotesco, sem
elevação nem critério» (A LUCTA, 3343: 1).
– Doutor. Os rapazes são malucos?
– Ora! São meninos sem talento que querem chamar sobre si as atenções do
publico vomitando asneiras. Uns copiam detestavelmente Eugenio de Castro, na sua fase
dos Oaristos, outros plagiam horrivelmente alguns poemas do Só. Ha um novel poeta que
publica um soneto sem pontuação alguma. É a sua originalidade. E todos fazem um
simbolismo idiota e grotesco, sem elevação nem criterio. Pergunta-me se são produções de
degenerados. Nada disso. Esses escreveriam melhor. Querem chamar sobre si o escandalo,
mas nem isso conseguem. Repare nos nomes: Carneiro, Guisado. Um mau carneiro
pessimamente guisado. Intoleravel.
– Quê!? Não são artistas nem loucos, nem profetas?
– Não. São chuchadores de mau gosto.
– Lá chuchadores… Os homens, afinal, parece que fazem aquilo muito a serio.
– Então levem-nos para os manicomios, e metam-nos nos pavilhões dos dementes.
Não são dignos de se juntarem com os perseguidos e delirantes. Eses são muito mais
espertos… (A LUCTA, 3343: 1)
Entrevistado pelo jornalista no seu gabinete em Rilhafoles, Júlio de Matos
confessa não ter lido ainda a revista Orpheu, prestando-se, contudo, a tecer alguns
comentários sobre os seus jovens autores. Concordando com o psiquiatra anónimo, o
director do Hospital Miguel Bombarda afirma que os escritores «do Orpheu são apenas
simuladores», pois os «doentes atacados de histeria […] não são capazes de dar forma
às suas alucinações». À semelhança do seu colega, Júlio de Matos compara as
168
produções dos jovens escritores com as obras da geração anterior, afirmando que «são
em geral indivíduos que querem à fina força celebrizar-se pelo escândalo». Contudo,
talvez pela controvérsia que resultou da sua entrevista para o «Inquérito à Vida
Literária» de Boavida Portugal, em 1912, e recentemente publicado em livro, Júlio de
Matos mostra-se agora mais prudente, manifestando alguma indulgência relativamente
aos jovens escritores186. Desta forma, o director de Rilhafoles concede o benefício da
dúvida aos jovens poetas, até porque ainda não tinha lido a revista, divergindo, por sua
vez, do psiquiatra anónimo, que manifestou uma opinião depreciativa sobre os poetas de
Orpheu. Apesar disso, Júlio de Matos conclui «que estas criaturas não são
absolutamente equilibradas. Mas também não é justo chamar-lhes doidos. Deixem-nos
lá. A minha opinião resume-se nisto: os senhores fazem mal em ligar-lhes importância,
em fazer-lhes reclame. Isso é o que eles querem» (A LUCTA, 3343: 1-2).
É evidente que quem quizer ser estravagante tem de se assemelhar aos loucos. O terreno
comum onde se encontram é o disparate. Em França, com os romanticos, sucedeu um
pouco o mesmo. Para escandalisarem a susceptibilidade burgueza, passaram a andar
vestidos de cores berrantes, de maneira diferente de todos. Beaudelaire, um dia, chegou-se
ao pé de um sujeito que estava em companhia de tres filhas e perguntou-lhe qual delas é
que se destinava á prostituição… Ora isto significaria que Beaudelaire era malcriado, no
verdadeiro sentido da palavra? Por certo que não. Apenas significava o proposito
consciente e premeditado de ferir, de épater le bourgeois. Um dia, este poeta teve a
excentricidade de pintar os cabelos de verde. Os amigos, que já estavam prevenidos, não
fizeram caso. Beaudelaire, que queria causar impressão, ficou fulo por não lhe ligarem
importância. E tratou logo de rapar o cabelo á escovinha, coisa que não se usava, para ver
ainda se conseguia despertar as atenções. É evidente que estas creaturas não são
absolutamente equilibradas. Mas tambem não é justo chamar-lhes doidos. Deixem-nos lá.
A minha opinião resume-se nisto: Os senhores fazem mal em ligar-lhes importancia, em
fazer-lhes reclame. Isso é o que eles querem.
Portanto não são doidos. É escusado ter dó. Podemos rir-nos deles… (A LUCTA,
3343: 1-2)
186
Boavida Portugal publicou em 1915 o Inquérito Literário, livro que reconstitui a controvérsia
desencadeada, em 1912, pelo seu «Inquérito à Vida Literária». Em 4 de Abril de 1915, Fernando Pessoa
publicou uma crítica ao livro do seu amigo na primeira edição de O Jornal, diário dirigido por Boavida
Portugal, do qual foi também redactor. É possível que a controvérsia sobre a «nova poesia portuguesa»
tenha contribuído para que o «especialista de doenças nervosas e mentais, um diletantti em coisas de
arte», preferisse o anonimato.
169
IV.5.3. Um êxito de gargalhada
Em 4 de Abril de 1915, foi publicado o primeiro número de O Jornal, um novo
periódico dirigido por Boavida Portugal, contando com a colaboração de Fernando
Pessoa, que escreveu, para este número, uma crítica ao Inquérito Literário do amigo
jornalista. Na mesma data, o escritor redigiu uma carta para Armando Côrtes-Rodrigues,
na qual dava conta que o Orpheu deveria «esgotar-se rapidamente». «Foi um triunfo
absoluto», especialmente com o reclame que a A Capital nos fez com uma tareia na 1.ª
página, um artigo de duas colunas». Pessoa escreveu que, «sem exagero», os escritores
«paúlicos» eram «o assunto do dia em Lisboa». «O escândalo é enorme. Somos
apontados na rua, e toda a gente – mesmo extra literária – fala no Orpheu». O escritor
acrescenta ainda que o «escândalo maior» foi motivado pelo poema «16 do Sá-Carneiro
e a Ode Triunfal. Até o André Brun nos dedicou um número das Migalhas» (PESSOA,
1999a: 161).
O retumbante sucesso do primeiro número da revista Orpheu foi corroborado
por Júlio Dantas numa nota intitulada «Poetas-paranóicos», publicada em 19 de Abril de
1915, na crónica semanal que escrevia para a revista Ilustração Portuguesa187. Tal
como André Brun e Albino Forjaz de Sampaio, Júlio Dantas desqualifica os «rapazes,
com muita mocidade e muito bom humor», a partir do mundo doméstico e corcorda
com Júlio de Matos, ao aformar que Orpheu apenas teria de «notável a extravagância de
algumas, senão de todas as suas composições». Segundo Júlio Dantas, em vez de
receber a publicação com «as duas linhas indulgentes e discretas que é de uso consagrar
às singularidades literárias», a imprensa fez «um tão extraordinário reclame, que a
primeira edição esgotou-se e já se está a imprimir a segunda». Neste sentido, Júlio
Dantas conclui que «os loucos não são precisamente os poetas, mais ou menos
extravagantes, que querem ser lidos, discutidos e comprados; quem não tem juízo, é
quem os lê, quem os discute e quem os compra» (ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA, 478: 481):
187
Assoberbado de trabalho, talvez tenha sido este artigo de Júlio Dantas que lembrou a Pessoa a carta
que devia a Armando Côrtes-Rodrigues, a qual escreveu no mesmo dia: «mal tenho tempo para as minhas
simples coisas da vida intelectual, de modo que por pouco me não escapou o dia de lhe escrever.
Lembrou-me hoje de repente, e felizmente lembrou-me a tempo, visto que são 19. E não tenho tempo
para tratar de reunir alguns, pelo menos, dos artigos que têm escrito sobre o Orpheu; tenho pena de que o
não possa fazer, porque v. havia de rir imenso com eles. Para a outra mala – definitivamente lho prometo
– não me esquecerei. Tantos e tais foram os artigos, que em três semanas o Orpheu se esgotou –
“totalmente, completamente se esgotou”» (PESSOA, 1999a: 162). Mais tarde, Pessoa escreveria: «Houve
tempo em que a Águia pouco mais teve com que caminhar nas bocas do mundo do que o Super-Camões,
e o primeiro número de Orpheu, mercê da Ode e do braço de um amigo meu, esgotou-se em três
semanas» (PESSOA, 2003: 175).
170
Alguns rapazes, com muita mocidade e muito bom humor, publicaram, ha dias,
uma revista literaria em Lisboa. Essa revista tinha apenas de notavel a extravagancia e a
incoerencia de algumas, senão de todas as suas composições. Como a recebeu a imprensa
diaria? Com o silencio que merecia? Com as duas linhas indulgentes e discretas que é de
uso consagrar ás singularidades literarias de todos os moços? Não. A imprensa recebeu
essa revista com artigos de duas colunas, – na primeira pagina. A imprensa fez a essa
revista um tão extraordinário réclame, que a primeira edição esgotou-se e já se está a
imprimir a segunda. Ora semelhante atitude está longe de ser inofensiva ou indiferente. Em
primeiro lugar, consagra uma injustiça fundamental; em segundo logar, favorece e prepara
uma seleção invertida. Eu bem sei que o réclame a certas obras é ás vezes feito á custa da
veemente suspeita de alienação mental que pesa sobre os seus autores. Mas n’este caso,
como em outros muitos, é justo confessar que os loucos não são precisamente os poetas,
mais ou menos extravagantes, que querem ser lidos, discutidos e comprados; quem não tem
juizo, é quem os lê, quem os discute e quem os compra. (ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA, 478:
481).
Em 6 de Abril de 1915, O Jornal publicou a justificação de Fernando Pessoa,
num artigo intitulado «Orpheu – Revista Trimestral de Literatura». Sendo colaborador
da revista, o escritor não faz a sua crítica, preferindo «dar uma ideia da sua orientação»
aos «espíritos curiosos». Pessoa invoca o movimento romântico inglês para contrariar as
críticas jocosas a Orpheu e refutar os comentários que ridicularizavam os seus autores,
escrevendo que a obra poética Lyrical Ballads, quando foi publicada em 1798, «teve por
toda a Inglaterra um êxito de gargalhada». Segundo o escritor, este livro «contém dois
dos maiores poemas de todas as literaturas»: «Ancient Mariner», de Samuel Taylor
Coleridge (1772-1834), e «Tintern Abbey», de William Wordsworth (1770-1850). Como
justificação de Orpheu, Pessoa cita então o testemunho de Wordsworth, que teria escrito
em 1815: «Se há conclusão que, mais do que qualquer outra, nos seja imposta pela
revista, que fizemos, da sorte e do destino das obras poéticas, é a seguinte: que todo o
autor, na proporção em que é grande e ao mesmo tempo original, tem tido sempre que
criar o sentimento estético pelo qual há-de ser apreciado; assim foi sempre e assim
continuará a ser…»188 (PESSOA, 2000c: 107-108):
188
Em resposta a uma crítica «ao extraordinário livro do Sr. Mário de Sá-Carneiro», publicada no Diário
de Notícias, Fernando Pessoa escreveu ao director deste jornal, em 4 de Junho de 1915: «Não é à crítica
que me quero referir, porque ninguém pode esperar ser compreendido antes de aprender a língua em que
fala. Repontar com isso seria, além de absurdo, indício de um grave desconhecimento da história literária,
onde os génios inovadores foram sempre, quando não tratados como doidos (como Verlaine e Mallarmé),
tratados como parvos (como Wordsworth, Keats e Rossetti) ou como, além de parvos, inimigos da pátria,
171
Como o leitor não sabe, o movimento romântico inglês foi iniciado definitivamente
pela publicação, em 1798, das Lyrical Ballads de Wordsworth e Coleridge. Este livro – que
contém dois dos maiores poemas de todas as literaturas, o Ancient Mariner de Coleridge e a
Tintern Abbey de Wordsworth – teve por toda a Inglaterra um êxito de gargalhada. […]
Escusamos de historiar como o meio inglês se foi adaptando, e como Wordsworth acabou
Poet Laureate […].
Nas sóbrias laudas do seu Essay Suplementary à edição de 1815 das Lyrical Ballads,
Wordsworth escreveu estes períodos:
«Se há conclusão que, mais do que qualquer outra, nos seja imposta pela revista,
que fizemos, da sorte e do destino das obras poéticas, é a seguinte: que todo o autor, na
proporção em que é grande e ao mesmo tempo original, tem tido sempre que criar o
sentimento estético pelo qual há-de ser apreciado; assim foi sempre e assim continuará a
ser […].»
Estas palavras pertencem já à Eternidade. Chamamos sobre elas a atenção e o
raciocínio do leitor. Não lhe diremos se é nossa opinião, ou não, que haja homens de génio
entre os colaboradores de Orpheu. (PESSOA, 2000c: 107-108)
Uma semana depois, em 13 de Abril de 1915, era a vez de Almada Negreiros,
outro colaborador de Orpheu, ver o seu depoimento publicado em O Jornal, uma
entrevista alegadamente realizada no café A Brasileira, habitualmente frequentado pelos
«poetas paúlicos»189. Num artigo intitulado «O Suposto Crime do “Orfeu”», que inclui
desenhos do entrevistado, o jornalista anónimo afirma que o «caso é já do domínio
público, longos dias transitou ruidosamente nos noticiários»190. O repórter escreve que,
para «o ilustrado analfabetismo da nossa Academia», onde pontificava «a jurisprudência
da religião e da moralidade, como aconteceu a Antero de Quental, sobretudo nos significativos panfletos
de José Feliciano de Castilho, que, aliás, não era nenhum idiota» (PESSOA, 1999a: 163).
189
«O PAULISMO é, como nos disse, na Brasileira, o João Correia de Oliveira, uma intoxicação de
artificialidade.
O papel do Guilherme de Santa Rita nisto. Um pobre rapaz em quem o artifício suprime a falta de
originalidade real. Audaz como todos que não podem ser outra cousa que chame a atenção legitimamente.
O paulismo é o culto insincero da artificialidade.
Há três maneiras de ser artificial: (1) cultivando a artificialidade como filosofia – é o caso de Oscar
Wilde; (2) representando-se como admirando ou sendo qualquer cousa de muito vil, criminoso, violento,
cínico; (3) fingindo ser doido e achando graça a pensar simililoucamente.
Em nenhuma obra minha, feita a sério e com ideias de grandeza, há uma única frase paulista.
Necessidade de diminuir o elemento paúlico.
O culto das cousas secundárias.
Como tudo quanto é grande causa pasmo, o artificial desata a querer causar pasmo para dar de si
próprio a impressão de ser grande.
Como tudo quanto é novo irrita, o artificial desata a querer irritar. Mas além do novo há uma cousa que
irrita também: é o absurdo, o meramente irritante. Confusão.
Como para abrir um caminho a uma nova arte é preciso audácia, o artificial limita-se a ser audaz, sem
ter razão de alma para o ser.
Dá-se assim uma inversão do elemento psíquico» (PESSOA, 2003: 146-147).
190
Seria este jornalista anónimo o próprio Fernando Pessoa?
172
clínica do Sr. Júlio de Matos», Orpheu era uma «brincadeira de mau gosto». O repórter
glosa então o psiquiatra, afirmando que não leu a revista Orpheu, mas baseado na
«crítica das gazetas», teria havido «divergência, e grande […] na classificação do delito
– se delito houve, como querem alguns, na perpetração voluntária, e talvez intencional,
dessas oitenta páginas de esquisito texto alarmante». Quem teria afinal razão? O senso
comum, «que sorri benevolamente diante dos versos alvoroçadores do Sr. Sá-Carneiro,
ou a sisudez profissional dos entendidos, que pedem para o Sr. Fernando Pessoa uma
camisa-de-forças?» (O JORNAL, 10: 3).
Almada Negreiros desenha. O trabalho do lapis não o impede, porém, de dizer da
sua justiça no celebrado caso do Orfeu.
– A crítica – diz – foi inepta. De facto não nos disse nada que valesse uma opinião.
Transcreveu-nos e mandou-nos para Rilhafoles. Banal, não acha? Taine…
Suspende-se, a olhar-nos de novo, com os seus olhos estridentes, quasi sensacionais.
E repete, familiarmente: «Taine…
Fala de lento, um pouco para nós, um pouco para a publicidade, na certeza de que
as suas palavras irão correr mundo nas colunas d’O Jornal,
– … Taine disse um dia que gostaria de ter tempo para lêr os livros que criticára…
Taine prestara-nos um mau serviço, divulgando o segredo de fazer crítica… (O JORNAL,
10: 3).
IV.5.4. Outro número de Orpheu
Correspondendo ao segundo trimestre de 1915, o número dois da revista Orpheu
foi publicado nos finais de Junho, quando os ecos do primeiro «fascículo» ainda se
faziam ouvir. Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro assumem neste número a
direcção da revista trimestral de literatura, continuando o projecto luso-brasileiro de
Luís de Montalvor com colaboração de Eduardo Guimaraens (1892-1928)191. Uma nota
da redacção informava os leitores de que, por várias razões, «tanto de ordem
administrativa» como «de responsabilidades perante o público», seria «preferível que a
direcção da revista fosse assumida pelos actuais directores». Segundo a mesma nota, a
mudança na direcção de Orpheu não decorria de qualquer discordância com «Luís de
Montalvor, cuja colaboração, aliás, ilustra o presente número» (ORPHEU, 2: -). Com
efeito, se o primeiro número de Orpheu tinha sido, pelo menos parcialmente, financiado
191
Eduardo Guimaraens foi escritor, tradutor e jornalista, sendo considerado um dos expoentes do
simbolismo brasileiro.
173
pelos seus colaboradores, o segundo número foi custeado pelo pai de Sá-Carneiro,
compreendendo-se assim a nova direcção de Fernando Pessoa e do amigo. Entre os dois
existia uma sólida amizade e cumplicidade literária, a qual é testemunhada pela
abundante correspondência trocada desde 1912. Nessa época, Sá-Carneiro foi para
Paris, escrevendo a Pessoa sobre a actualidade artística e literária da capital francesa e
vice-versa192. Influenciando-se mutuamente, esta ligação pode ser explicada pela forte
sintonia estética, mas os dois tinham também histórias de vida semelhantes em certos
aspectos, o que os aproximaria193. Vivendo entre Paris e Lisboa, e tendo total confiança
no amigo, Sá-Carneiro partilhou a direcção do segundo número de Orpheu com
Fernando Pessoa, reconhecendo assim a sua competência literária e editorial.
O segundo número da revista Orpheu incluía «Poemas Inéditos», de Ângelo de
Lima (1872-1921), «Poemas sem Suporte», de Mário de Sá-Carneiro, dedicados a SantaRita Pintor, «Poemas», «dum anónimo ou anónima que diz chamar-se» Violante de
Cysneiros194, «Atelier», «novela vertígica» por Raul Leal (1886-1964), «Ode Marítima»
por Álvaro de Campos, também dedicada a Santa-Rita Pintor195, «Narciso», poema de
Luís de Montalvor, dedicado a Fernando Pessoa, e «Chuva Oblíqua», «poemas
interseccionistas» de Fernando Pessoa. Este número da revista trimestral de literatura
incluía ainda 4 desenhos «do futurista Santa-Rita Pintor». Tendo implícita a crítica
política, o poema decadentista «Manucure», de Mário de Sá-Carneiro, constituía um
desafio estético à renovação social promovida pela República. À semelhança de Álvaro
de Campos, que em «Opiário» se revelara «monárquico mas não católico», Sá-Carneiro
assumia agora uma postura também politicamente provocatória, na qual «as mesas
fluídicas» eram «já como eu católicas, e são como eu monárquicas!» (ORPHEU, 2: 103).
192
Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, edição de Manuela Parreira da Silva, Lisboa,
Assírio & Alvim, 2001.
193
Mário de Sá-Carneiro nasceu em Lisboa, em 1890, sendo dois anos mais novo do que Pessoa e, tal
como Côrtes-Rodrigues, era órfão de mãe. Concluído o liceu em Lisboa, frequentou a Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra no ano lectivo de 1911-1912. Persuadiu então o pai para que o
deixasse estudar em Paris, matriculando-se no Curso de Direito da Sorbonne. O pai de Sá-Carneiro,
recasado e a viver em Moçambique, foi o mecenas involuntário de Orpheu. À semelhança de Pessoa,
também o amigo se desinteressou dos estudos, dedicando-se à literatura. Sá-Carneiro publicou, em 1912,
Amizade (peça de teatro escrita em parceria com o colega Tomás Cabreira Júnior, que se suicidara no
Liceu de S. Domingos) e Princípio: novelas originais, em 1913, Dispersão (poesia), em 1914, A
Confissão de Lúcio: narrativa e, em 1915, Céu em Fogo: oito novelas.
194
Pseudónimo do poeta açoriano Armando Côrtes-Rodrigues.
195
Santa-Rita Pintor (1889-1918) era o pseudónimo de Guilherme de Santa Rita, que o distinguia do
irmão, o escritor Augusto de Santa Rita (1888-1956). Santa-Rita Pintor foi um dos primeiros bolseiros da
República, tendo estudado na Academia de Belas-Artes de Paris. Na capital francesa conviveu com Mário
de Sá-Carneiro e outros artistas, regressando a Lisboa em 1914, ano em que deflagrou a I Grande Guerra.
174
MANUCURE
Na sensação de estar polindo as minhas unhas,
Subita sensação inexplicavel de ternura,
Tudo me incluo em Mim – piedosamente.
Emtanto eis-me sózinho no Café:
De manhã, como sempre, em bocejos amarelos.
De volta, as mesas apenas – ingratas
E duras, esquinadas na sua desgraciosidade
Boçal, quadrangular e livre-pensadora…
[…]
– Olha as mesas… Eis! Eia!
Lá vão todas no Ar ás cabriolas,
Em séries instantâneas de quadrados
Ali – mas já, mais longe, em lozangos desviados…
E entregolfam-se as filas indestrinçavelmente,
E misturam se ás mesas as insinuações berrantes
Das bancadas de veludo vermelho
Que, ladeando-o, correm todo o Café…
[…]
Rólo de mim por uma escada abaixo…
Minhas mãos aperreio,
Esqueço-me de todo da ideia de que as pintava…
E os dentes a ranger, os olhos desviados,
Sem chapéu, como um possesso:
Decido-me!
Corro então para a rua aos pinotes e aos gritos:
– Hilá! Hilá! Hila-hô! Eh! Eh!
Tum… tum… tum… tum tum tum tum…
[…]
Lisboa – Maio de 1915.
Mario de Sá-Carneiro
(ORPHEU, 2: 98-107)
IV.5.5. A tensão entre os mundos inspirado e industrial
Em 28 de Junho de 1915, sempre em duas colunas da primeira página, A Capital
publicou uma crítica intitulada «ARTISTAS DE RILHAFOLES», «Outro número do
“Orfeu”», «Sá Carneiro poeta católico e monárquico – uma ode marítima escandalosa».
175
O jornalista anónimo escreveu que o primeiro número de Orpheu, «singularíssima
revista sobre a qual chamámos há três meses a atenção do público e especialmente dos
psiquiatras», tinha constituído «um acontecimento, pela risota que provocou, e pela
excepcional extracção que obteve, a ponto de se esgotar». Retomanando a gramática
industrial da psiquiatria positivista, esta operação crítica continua a controvérsia sobre
Orpheu, o qual teria mesmo inspirado um dos mais divertidos quadros de um
espectáculo de revista então em cena196. «Dividiram-se as opiniões sobre os moços que
subscrevem as extravagâncias inacreditáveis do trimensário, afirmando-se ora que são
loucos, varridinhos de todo, ora que apenas querem divertir-se à nossa custa» (A
CAPITAL, 1758: 1).
O segundo numero do Orpheu abre com «poemas ineditos» de Angelo de Lima.
Este poeta reside, ha muitos annos, em Rilhafolles e a sua originalidade consiste em semear
de maiusculas os versos que compõe e que denotam um profundo aggravamento de
inspiração. […]
A Angelo do Lima segue-se o sr. Mario de Sá-Carneiro, que ainda não reside no
manicomio Miguel Bombarda, mas que, se proseguir com a tenacidade e o fulgor que
caracterisam a sua obra, corre o risco de o collocarem sob a vigilancia do sr. dr. Julio de
Mattos. Intitulam-se «Poemas sem supporte» os versos do Sr. Sá-Carneiro e são dedicados
a Santa Rita Pintor. […]
Uma das suas occupações mais caras consiste em pulir as unhas suas mãos
preciosas; d’ahi o poema que intiulou Manucure […]. (A CAPITAL, 1758: 1)
Segundo o jornalista, o poema «Manucure», de Mário de Sá-Carneiro, «vai num
crescendo indescritível de disparates», em que o autor «se encontra num café, vendo,
como é seu costume, as mesas a dançar». No entanto, como já fizera em 30 de Março
relativamente à «Ode Triunfal», A Capital destaca a «Ode Marítima» como «a
trapalhada mais extraordinária e mais assombrosa» do segundo número de Orpheu. Para
o crítico anónimo, este poema de Álvaro de Campos revela «qualquer coisa de superior
ao resto», admitindo que «o seu autor tem talento apesar da maluqueira». Contudo, este
julgamento não se ficava a dever, de forma alguma, ao reconhecimento da «Ode
196
O Diabo a Quatro, revista em dois actos e oito quadros da parceria Ernesto Rodrigues, Félix
Bermudes e João Bastos, estreou no Eden-Teatro em 23 de Junho de 1915: «Na sequência da publicação
do primeiro número do Orpheu, e como já foi notado, Rodrigues, Bermudes e Bastos não hesitaram em
satirizar o Primeiro Modernismo, a corrente “futurista” como era designada por alguma imprensa, que
amiúde também se questionava sobre a “sanidade mental” dos jovens vanguardistas…» (RODRIGUES
2011: 96).
176
Marítima» como obra artística, mas apenas como documento que permitiria «apreciar
com mais segurança a fisio-psicologia, tão profundamente mórbida, daqueles a que
chamam os paúlicos». «Elegendo como poisadouro alguns cafés da Baixa e juntando-se,
de preferência na Brasileira do Chiado, são aparentemente pessoas muito sossegadas,
não falam alto, não gesticulam, não incommodam ninguem e quasi todos, se não todos,
possuem fina educação e viajaram». Considerando já suficiente o «reclame» feito ao
segundo número de Orpheu, o jornalista afirma que gostaria de terminar o seu artigo
com alguns excertos da «Ode Marítima», mas as «passagens que desejaríamos
transcrever são irreproduzíveis porque não queremos que nos acoimem de
pornográficos…» (A CAPITAL, 1758: 1).
A trapalhada mais extraordinaria e mais assombrosa quo encerra o novo numero
do Orpheu é a «Ode maritima», de Alvaro de Campos. Torna-se forçoso reconhecer que ha
n’ella qualquer coisa de superior ao resto e que o seu auctor tem talento apesar da
maluqueira. Não queremos com isto dizer que se possa considerar a «Ode maritima» um
lavor artístico. De modo nenhum! Mas parece-nos que a sua leitura permitte apreciar com
mais segurança a phisio-psichologia, tão profundamente morbida, d’aquelles a que
chamam os paúlicos. As passagens que desejariamos transcrever são irreproduziveis
porque não queremos que nos acoimem de pornographicos... E basta de reclamo, que já
não é pequeno! (A CAPITAL, 1758: 1)
A imprevisibilidade da criação literária ameaça a rotina e previsibilidade do
mundo industrial, no qual o princípio superior comum é a eficácia e a figura
harmoniosa, a organização. A partir do mundo industrial da psiquiatria positivista, a
revista Orpheu era percebida como objecto insólito, extravagante, razão pela qual o
jornalista refere que Sá-Carneiro «faz o elogio dos caracteres tipográficos» e «inclui na
versalhada, em grandes caracteres, anúncios de toda a raça e de todo o tamanho» (A
CAPITAL, 1758: 1).
Segundo Boltanski e Thévenot, este «modo de translação opõe-se a
tudo o que, noutros mundos e, particularmente uma vez mais, no mundo industrial, tolhe
o movimento no cumprimento de uma determinação, numa trajectória, previsível»
(BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 204). Para o jornalista, os jovens escritores sofriam
«quase todos da cabeça, embora o desarranjo mental de que são vítimas» se
manifestasse «apenas, mas duma forma iniludível, na pretensa produção literária», em
que cada «poema é um documento de raro valor para o estudo patológico destes jovens»
(A CAPITAL, 1758: 1).
Neste sentido, o crítico concorda com André Brun, que considerava
177
«quase todos os poetas como uma classe de malucos à parte com a tineta de pensarem e
escreverem duma maneira diversa da nossa» (A CAPITAL, 1671: 1). Desta forma, o mundo
inspirado dos escritores de Orpheu é descrito como loucura porque a «grandeza
industrial, suporte de uma coordenação para o futuro, é perturbada pela qualidade
eminentemente incerta dos seres do mundo inspirado» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991:
330).
Ode marítima
[…]
Façam enxácias das minhas veias!
Amarras dos meus músculos!
Arranquem-me a pele, preguem-a às quilhas.
E possa eu sentir a dôr dos pregos e nunca deixar de sentir!
Façam do meu coração uma flâmula de almirante
Na hora de guerra dos velhos navios!
Cálquem os pés nos convezes meus olhos arrancados!
Quebrem-me os ossos de encontro às amuradas!
Fustíguem-me atado aos mastros, fustíguem-me!
A todos os ventos de todas as latitudes e longitudes
Derramem meu sangue sôbre as ágoas arremessadas
Que atravessam o navio, o tombadilho, de lado a lado,
Nas vascas bravas das tormentas!
[…]
Álvaro de Campos
(ORPHEU, 2: 139-140)
No mundo industrial, a dignidade das pessoas depende do seu trabalho, razão
pela qual o jornalista anónimo critica a suposta ociosidade de Mário de Sá-Carneiro,
pois uma «das suas ocupações mais caras consiste em polir as unhas». Também André
Brun criticara Álvaro de Campos que, no poema «Opiário», declara pertencer «a um
género de portugueses» que, depois da «Índia descoberta», ficaram «sem trabalho».
Sendo a relação de grandeza no mundo industrial a mestria, a qualificação ou o domínio
da técnica, o heterónimo é o mais criticado porque fingiu estudar engenharia e foi
«sempre um mau estudante». Na gramática argumentativa de André Brun, centrada no
mundo industrial, «este mancebo» é descrito como «português direitinho», pelo facto de
«não fazer nada». Desta forma, André Brun desqualifica Álvaro de Campos, que não
178
precisava de «tratar da vida e sustentar a família», não apenas no mundo doméstico,
mas, sobretudo, no mundo industrial (A CAPITAL, 1671: 1).
IV.6. O caso de Ângelo de Lima
Segundo Francisco Adolfo Coelho, antigo professor de Fernando Pessoa, «os
verdadeiros originais, dizia um psiquiatra, encontram-se nos manicómios» (REPUBLICA,
603: 2).
Neste sentido, o segundo número da revista Orpheu abria com «Poemas
Inéditos», de Ângelo de Lima, desenhador e poeta internado no Hospital Miguel
Bombarda desde o tempo em que este era ainda o manicómio de Rilhafoles197. A
provocação à crítica era evidente, tendo em conta o prognóstico de Júlio Dantas
(possivelmente o psiquiatra referido por Adolfo Coelho), para quem «o estudo das
manifestações de arte, ou antes, dos documentos escritos e picturais que nos dão os
manicómios, será a gramática do crítico profissional, quando a crítica, por melhor
armada, servir para alguma coisa nesta terra de inúteis e de bonifrates» (DANTAS, 1900:
4).
CANTICO – SEMI-RAMI
– Oh! Noute em Teu Amor Silenciosa!
– Oh! Estrellas na Noute, Scintillantes,
Como Ideaes e Virginaes Amantes!…
– Oh! Memoria de Amor Religiosa!…
– Já Fui… uma Creança Pubescente
Que des’brocha em Amor Inconsciente
Como n’um Vago Sonho… Commovente
197
Ângelo Vaz Pinto Azevedo Coutinho de Lima nasceu no Porto em 1872, filho do poeta Pedro Augusto
de Lima (1842-1883), que morreu louco. Ângelo de Lima frequentou o Colégio Militar, em Lisboa, donde
foi expulso, e também a Academia de Belas Artes do Porto. Foi director artístico da revista A Geração
Nova, onde publicou desenhos, bem como na Revista Azul. Em 1894, deu entrada no Hospital do Conde
de Ferreira, no Porto, onde ficou internado por mais de três anos, sendo o diagnóstico (possivelmente do
Dr. Júlio de Matos), «delírio de perseguição num degenerado hereditário». Em 1901, Ângelo de Lima
voltou a ser internado, desta vez no manicómio de Rilhafoles, em Lisboa, onde permaneceria vinte anos,
até morrer, em 1921. Após um ano em observação, Ângelo de Lima foi considerado inimputável pelo Dr.
Miguel Bombarda, director deste hospital psiquiátrico, que o descreveu assim no seu relatório: «Grande
altura (1,70m). Corpo e membros “élancés”. Dedos muito longos, encurvados. Orelhas grandes, mal
formadas, de lóbulo muito curto em ponta aderente. Crânio muito alto; depressão na glabela; convexidade
frontal muito pronunciada. Índice cefálico: 78,4 (14,2) 18,1. Face muito longa. Campo visual normal (por
60-85 nos diversos raios). Cavidade bucal muito espaçosa. Dentes cariados, alguns mal plantados. Queixo
recuado. Tempo de reacção: 21,2 (mínimo 14, máximo 29)» (LIMA, 2003: 136).
179
Desabrocha uma rosa Rosa Olorescente
– A Adolescente… Casta e Curiosa!
[…]
Ângelo de Lima
(ORPHEU, 2: 87)
Internado no Hospital de Rilhafoles em 19 de Dezembro de 1901, «por proferir
obscenidades» quando assistia a um espectáculo no Teatro Dona Amélia198, Ângelo de
Lima aí permaneceu o resto da sua vida. Em 26 de Novembro do ano seguinte, o Dr.
Miguel Bombarda, director do manicómio, fez o relatório médico do paciente que
contava então 30 anos de idade. Segundo o psiquiatra, o «fundo mental» de Ângelo de
Lima era «de um formidável desequilíbrio», uma vez que «ao lado de qualidades
artísticas», que talvez os seus amigos exagerassem um pouco mas em todo o caso
incontestáveis, tinha também «coisas lamentáveis». Se a produção literária de Ângelo
de Lima tinha «coisas de valor», na opiniõa do médico apresentava igualmente
«bocados de prosa sem redacção nem gramática, tentando guindar-se e caindo». Para tal
contribuiria «um caminhar de ideias tendo a inteira aparência de normalidade», mas que
seriam «a falsa interpretação das coisas, como se palavras menos usuais ouvidas
tivessem logo despertado uma tradução de pura imaginação e faltasse o critério bastante
para o reconhecimento da ignomínia». Miguel Bombarda conclui assim que, mais do
que «simples aspecto clínico de uma loucura moral», «a que talvez o álcool não tivesse
sido estranho», Ângelo de Lima era, «com toda a evidência», «um degenerado» (LIMA,
2003: 136-137).
O fundo mental deste doente é de um formidável desequilíbrio. Ao lado de
qualidades artísticas, que os seus amigos talvez exagerem um pouco, mas que em todo o
caso são incontestáveis, apresenta no mesmo campo coisas lamentáveis. Assim, com o lápis,
é um emérito desenhista; um pouco académico, não perdoa a nitidez dos contornos, sendo,
talvez, um pouco duro. Mas o claro-escuro é de grande primor e as figuras que desenha
oferecem um alto relevo. Com o pincel, porém, é uma lástima e não chega a ter consciência
do seu nulo valor; dois quadros que estão no Rilhafoles mostram-no com toda a evidência.
[…] Apesar desta lacuna, porém, não pode haver dúvida sobre o estado mental do doente
submetido à nossa observação. Trata-se, com toda a evidência, de um degenerado, ao
198
Em 1910, esta sala de espectáculos passou a designar-se Teatro República, sendo actualmente São
Luiz Teatro Municipal. Na época era propriedade do empresário Visconde de S. Luís Braga, sendo
reconstruído após o incêndio que o consumiu, em 13 de Setembro de 1914, e inaugurada em 14 de
Fevereiro de 1916 (EXILIO, 1: 44).
180
princípio parecendo afectar o simples aspecto clínico de uma loucura moral, hoje levado
para a fabricação de delírios alucinatórios, a que talvez o álcool não tivesse sido estranho –
não como originando um delírio alcoólico, qualquer que ele seja, mas perturbando ainda
mais uma evolução cerebral já de si desviada. (LIMA, 2003: 136-138)
Em 1911, Ângelo de Lima teria enviado a Albino Forjaz de Sampaio um
projecto para a nova bandeira nacional, destinado ao «Governo Provisório da República
Portuguesa». O crítico considerou a proposta inaproveitável, tal como o drama A Deusa
Rhada: mistério budista, que o paciente de Rilhafoles também lhe enviou. Ângelo de
Lima confirmava assim a tese de Júlio Dantas, que alguns anos antes verificara a
proliferação da heráldica e dos dourados nas criações artísticas dos doentes de
Rilhafoles. Protestando contra o novo «modelo de bandeira», Ângelo de Lima
«propunha, assim como se reflectisse que só dos carentes tempos anteriores», podia ter
vindo a «descura, da substituição económica de, opor paninho amarelo (assim mesmo
branco para a grande estrela de Prata) do ouro do pavilhão, na Bandeira Insigne da
Pátria, Ouro e Prata mesmo é que fielmente se empregasse em seu enlavor simbólico»
(LIMA, 2003: 119-121). Nessa ocasião, Albino Forjaz de Sampaio fez uma reportagem
sobre Ângelo de Lima, com o título «Um Poeta em Rilhafoles», publicada na revista
Ilustração Portuguesa, em 14 de Agosto de 1911. Acerca do mistério budista, o crítico
afirmava que a «loucura povoou abundantemente aquelas páginas, enchendo-as de
guinchos, de exclamações, de trechos incompreensíveis». Desta forma, Albino Forjaz de
Sampaio concordava com Miguel Bombarda, escrevendo que «a sua produção é cheia
de incoerências, de símbolos, de palavras tornadas simbólicas pela abusão da inicial»
(ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA, 286: 212-214).
Ha alguns annos, mais de nove, morava Angelo n’um quarto alugado da travessa
do Cabral. Andava nú por casa e era assim que ele pintava, acocorado sobre a cama. A
vizinhança um dia protestou da sua toillete mais do que primitiva e elle depois de ter
gritado n’uma recita do Zacconi no D. Amelia uma exclamação violenta pelo barulho que
se fazia na sala, imcompatibilisado com toda a gente, foi internado no hospital. Foi assim
nú que elle traçou um retrato de Herculano e que elle fazia a mór parte dos seus trabalhos.
[…] Hoje a sua producção é cheia de incoherências, de symbolos, de palavras tornadas
symbolicas pela abusão da inicial. E ha um mundo mais além da razão. Dragões que
luctam, com focinhos de homem, comboios com azas de morcego, navios com cortejos de
extravagancias. Vae o pensamento normal até certo ponto. Depois como um homem que a
181
nossos olhos desaparecesse por detraz de um tapume elle perde-se em fuga, cabriolando
doido, gochinhante, perdido. (ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA, 286: 212-214)
Ângelo de Lima contestou esta crítica numa carta para o «Albino», «lembrando
estimosamente o adolescente esperançado» que conhecera, na qual agradecia ao
jornalista por ainda se lembrar dele, «e com alguma estima mas… tu chamas-me muito
maluco de mais». Segundo o paciente de Rilhafoles, a tal Deusa Rhada, «com as suas
maiúsculas, com as minhas simbólicas, são tais aproveitáveis… como fosse isso
publicado tu verias que plumas de pavão para muito peru… É o mundo que te defende».
«Um é famoso e é um asno, e é sempre bem – ora reflecte um pouco mais sobre o que te
cerca». Ângelo de Lima justificava assim o seu universo simbólico: «falou-me o
Martins Figueira de características de degeneração… e afinal já soube do Sr. Júlio de
Matos – e também sei eu – que o normal – o igual… esse é que é um mal desenvolvido
e equilibremente…» (LIMA, 2003: 117-118).
Sou sensato: passei é certo por tenebrosas em delírios, quando não compreendo o
meu orgânico e incomodado por subsequentes, e de tabagismo, abstraía no exaspero, em
alucinações de espírito – hoje estou à espera da minha cura, pelo que sinto em mim, de
mim, como diria, para amanhã…
E quanto a, seja Filosoficamente, Arte, como Religião, como Política e sua
Economia, como Ciência – ou Bélica – eu sei quase totalmente para fundamentar um
justamente eminente critério, que te dizer que o meu simbolismo sensato, até condena as
presunções de muitos famosos […]. (LIMA, 2003: 117-118)
IV.6.1. Singularidade paradoxal da inspiração
Em La Gloire de Van Gogh, Nathalie Heinich refere o testemunho de Paul
Gauguin (1848-1903), amigo de Vincent Van Gogh (1853-1890), pintor conhecido pelo
episódio de auto-mutilação parcial da orelha esquerda e que viria a ser internado num
manicómio. Segundo Paul Gauguin, Van Gogh teria escrito na parede do seu quarto:
«sou são de espírito, sou o espírito santo»199 (HEINICH, 1991: 119). A singularidade
paradoxal da inspiração, descrita por Nathalie Heinich a propósito do pintor holandês,
afirma-se fulgurantemente em Fernando Pessoa na multiplicidade dos seus heterónimos
e pseudónimos, como desdobramentos da sua complexa personalidade literária. À
199
«Je suis sain d’Esprit, Je suis le Sait-Esprit».
182
semelhança de Van Gogh, o escritor afirmou a sua sanidade mental em diversas
ocasiões, designadamente em 6 de Dezembro de 1915, quando sentiu «a necessidade
psíquica absoluta» de escrever a Mário de Sá-Carneiro. Pessoa manifesta a sua
perturbação «num desvairamento e numa angústia intelectual», revelando ser «presa de
todas as crises imagináveis», o que atribuía aos livros teosóficos que estava a traduzir200.
Contudo, tranquilizava o amigo: «Não me julgue V. a caminho da loucura; creio que
não estou. Isto é uma crise grave de um espírito felizmente capaz de ter crises destas»
(PESSOA, 1999a: 181-182).
Renasceu a minha crise intelectual, aquela de que lhe falei, mas agora renasceu
mais complicada, porque, à parte ter renascido nas condições antigas, novos factores
vieram emaranhá-la de todo. Estou por isso num desvairamento e numa angústia
intelectuais que V. mal imagina. Não estou senhor da lucidez suficiente para lhe contar as
coisas. Mas, como tenho necessidade de lhas contar, irei explicando conforme posso.
A primeira parte da crise intelectual, já V. sabe o que é; a que apareceu agora
deriva da circunstância de eu ter tomado conhecimento com as doutrinas teosóficas. O
modo como as conheci foi, como V. sabe, banalíssimo. Tive de traduzir livros teosóficos. Eu
nada, absolutamente nada, conhecia do assunto. Agora, como é natural, conheço a essência
do sistema. Abalou-me a um ponto que eu julgaria hoje impossível, tratando-se de
qualquer sistema religioso. O carácter extraordinariamente vasto desta religião-filosofia; a
noção de força, de domínio, de conhecimento superior e extra-humano que resumam as
obras teosóficas, perturbaram-me muito. Coisa idêntica me aconteceu há muito tempo com
a leitura de um livro inglês sobre Os Ritos e os Mistérios dos Rosa-Cruz. A possibilidade de
que ali, na Teosofia, esteja a verdade real me «hante». Não me julgue V. a caminho da
loucura; creio que não estou. Isto é uma crise grave de um espírito felizmente capaz de ter
crises destas. (PESSOA, 1999a: 181-182)
Meses depois, em 14 de Março de 1916, Pessoa escreveu de novo a Sá-Carneiro,
«por uma necessidade sentimental – uma ânsia aflita» e do «fundo de uma depressão
sem fundo». «Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste
200
Fernando Pessoa traduziu nessa época várias obras para a colecção «teosófica e esotérica», da Livraria
Clássica Editora, de Lisboa:
Annie Besant, Os Ideaes da Theosophia, 1915.
C. W Leadbeater, Compêndio de Theosophia, 1915.
C. W Leadbeater, Auxiliares Invisíveis, 1916.
C. W Leadbeater, A Clarividência, 1916.
AA.VV., Luz Sobre o Caminho e o Karma, 1916.
AA.VV., A Voz do Silêncio e outros fragmentos selectos do Livro dos Preceitos Aureos, 1916.
183
momento. Como à veladora do “Marinheiro” ardem-me os olhos, de ter pensado em
chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios»». O escritor conclui: «Isto
não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um
gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes»201 (PESSOA, 1999a:
208-209).
Noutra carta, de 24 de Junho desse ano, para a sua tia «Anica», então a viver
na Suíça, Pessoa revelava que, involuntariamente, começara a ter sintomas mediúnicos,
pedindo sigilo porque «não há vantagem nenhuma, e há muitas desvantagens» em «falar
nisto»202. «Eu não digo tudo, porque nem tudo se pode dizer: Mas digo o bastante para
que vagamente me compreenda». O escritor, que afirma ter sido «um elemento
atrasador nas sessões semiespíritas» que faziam na casa da tia, em Lisboa, tinha
começado, «de repente, com a escrita automática» (PESSOA, 1999a: 215-219).
Aí por fins de Março (se não me engano) comecei a ser médium. Imagine! Eu, que (como
deve recordar-se) era um elemento atrasador nas sessões semiespíritas que fazíamos,
comecei, de repente, com a escrita automática. Estava uma vez em casa, de noite, tendo
vindo da Brasileira, quando senti a vontade de, literalmente, pegar numa pena e pô-la
sobre o papel. É claro que depois é que dei por o facto de que tinha tido esse impulso. No
momento, não reparei no facto, tomei-o como o facto, natural em quem está distraído, de
pegar numa pena para fazer rabiscos. Nessa primeira sessão comecei por a assinatura (bem
conhecida de mim) «Manuel Gualdino da Cunha». Eu nem de longe estava pensando no tio
Cunha. Depois escrevi mais umas coisas, sem relevo, nem interesse nem importância.
De vez em quando, umas vezes voluntariamente, outras obrigado, escrevo. Mas
raras vezes são «comunicações» compreensíveis. Certas frases percebem-se. E há sobretudo
uma coisa curiosíssima – uma tendência irritante para me responder a perguntas com
números; assim como há a tendência para desenhar. Não são desenhos de coisas, mas sinais
cabalísticos e maçónicos, símbolos do ocultismo. E coisas assim que me perturbam um
pouco. Não é nada que se pareça com a escrita automática da Tia Anica ou da Maria – uma
narrativa, uma série de respostas em linguagem coerente. É assim mais imperfeito, mas
muito mais misterioso. (PESSOA, 1999a: 215-216)
Na mesma carta, Pessoa descreve, aparentemente, o aparecimento dos três
principais heterónimos (aos quais acrescenta Vicente Guedes ou Bernardo Soares?), em
201
Em Post Scriptum à carta, Pessoa confessava: «Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu
psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histeroneurastenia
fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas na consciência de si próprio que dele são
características…» (PESSOA, 1999a: 209-210).
202
Carta citada por Natalie Heinich em «Pessoa en état de médium» (HEINICH, 2000: 199-200).
184
visões que se reflectem num espelho: «Perguntará a Tia Anica em que é que isto me
perturba, e em que é que estes fenómenos – aliás ainda tão rudimentares – me
incomodam. Não é o susto. Há mais curiosidade do que susto, ainda que haja às vezes
coisas que metem um certo respeito, como quando, várias vezes, olhando para o
espelho, a minha cara desaparece e me surge um fácies de homem de barbas, ou um
outro qualquer (são quatro ao todo os que assim me aparecem)». Estas manifestações
renovam o seu receio da reacção dos outros: «Não sei se realmente julgará que estou
doido. Creio que não. Estas coisas são anormais, sim, mas não antinaturais». Neste
sentido, Pessoa tranquiliza a tia sobre o seu «estado nervoso», afirmando que tinha
passado bem ultimamente: «O que me incomoda um pouco é que eu sei pouco mais ou
menos o que isto significa. Não julgue que é loucura. Não é: dá-se até o facto curioso
de, em matéria de equilíbrio mental, eu estar bem como nunca estive» (PESSOA, 1999a:
218-219).
Muito mais tarde, na já citada carta para Adolfo Casais Monteiro, de 13 de
Janeiro de 1935, Pessoa voltaria a afirmar a sua sanidade mental: «Interrompo. Não
estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente, tão depressa quanto a
máquina mo permite, e vou-me servindo das expressões que me ocorrem, sem olhar a
que literatura haja nelas» (PESSOA, 1999b: 339). O escritor descreve então a génese dos
heterónimos, concluindo: «Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte
o fez cair, por leitura, em meio deste manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a
incoerência com que o tenho escrito» (PESSOA, 1999b: 346). Contudo, a «incoerência»
que, segundo o psiquiatra Júlio Dantas, era uma característica da arte manicomial, não
impediu o escritor de fazer o seu auto-diagnóstico, explicando a origem heteronímica:
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço
de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais
propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em
mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos
seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha
tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes
fenómenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero
dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com os outros;
fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os
fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas –, cada poema do Álvaro de
Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas
sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo
acaba em silêncio e poesia… (PESSOA, 1999b: 340-341)
185
IV.6.2. A psiquiatrização da literatura
Apesar das justificações de Fernando Pessoa, o senso comum jornalístico
apropriou-se do discurso da psiquiatria positivista para estabelecer uma equivalência
entre a loucura e a «pseudo-literatura» da revista Orpheu. Desta forma, desacreditou os
jovens escritores «paúlicos», reduzindo estes «mocinhos» ao pequeno estatuto dos
alienados mentais. O próprio Fernando Pessoa participou neste jogo desqualificador,
dando precedência aos «Poemas Inéditos» de Ângelo de Lima no segundo número da
revista trimestral de literatura. Abrindo este «fascículo» de Orpheu com a poesia do
doente de Rilhafoles, Pessoa usou o mesmo objecto para publicar a «arte manicomial» e
a literatura produzida fora dos muros dos hospitais psiquiátricos. Se as críticas a Orpheu
diminuíram os seus escritores, descrevendo-os como loucos, Pessoa e Sá-Carneiro
procuraram engrandecer a «Literatura de Manicómio», de Ângelo de Lima, elevando-a
ao estatuto da revista literária. Nesta acção, os directores de Orpheu transgrediram o
princípio da hierarquização dos seres, assumindo assim, aparentemente, uma menor
grandeza literária. Este paradoxo remete, de novo, para a obra de Nathalie Heinich, La
Gloire de Van Gogh, designadamente para o capítulo «Loucura e Sacrifício: A
ambivalência do singular» (HEINICH, 1991: 119-146), no qual avulta o título «Da
medicalização da arte à estetização da loucura», que a revista Orpheu poderia
perfeitamente ilustrar. Com efeito, é possível interpretar desta forma a revista, cujo
primeiro número foi «medicalizado» pelo discurso dos jornalistas e médicos psiquiatras
que participaram na controvérsia. Reagindo a esta «medicalização» com um movimento
simétrico, Pessoa e Sá-Carneiro «estetizaram» a loucura, publicando os poemas de
Ângelo de Lima no segundo número de Orpheu.
Segundo Nathalie Heinich, a «literatura psiquiátrica sobre a arte, que tinha
começado a emergir, no virar do século, serviu ela própria de introdução ao tema da
loucura – e não mais apenas da melancolia – na literatura artística do século XIX».
Nesta perspectiva, o desenvolvimento conjunto da psiquiatria e da literatura promoveu
uma «ambivalência da loucura, simultaneamente qualificante e desqualificante, interior
(portanto autêntica) e exterior (portanto alienante)». Qualificante, para Nathalie
Heinich, «porque o artista louco é autêntico na medida em que não é condicionado por
influências exteriores, rotinas, imitações; e desqualificante, porque ele está condenado à
inautenticidade desde o momento em que é outro que se exprime nele próprio através da
sua criação» (HEINICH, 1991: 128-129). Neste sentido, Heinich concorda com Boltanski e
186
Thévenot, para quem os seres do mundo inspirado agem segundo princípios interiores,
por oposição ao mundo do renome, onde a grandeza dependente da opinião dos outros.
Fernando Pessoa revela a sua inspiração precisamente na independência da opinião
alheia, assistindo «de longe, desprendidamente, sorrindo ligeiramente das coisas» que
lhe aconteciam. Como «espectador da vida», sem se «misturar nela», para o escritor, «as
conveniências sociais» eram ocas de sentido, razão pela qual não entendia «como é que
uma criatura fica desqualificada, nem como é que ela o sente» (PESSOA, 2003: 145):
PERTENÇO A UMA GERAÇÃO que ainda está por vir, cuja alma não conhece
já, realmente, a sinceridade e os sentimentos sociais. Por isso não compreendo como é que
uma criatura fica desqualificada, nem como é que ela o sente. É oca de sentido, para mim,
toda essa [coisa] das conveniências sociais. Não sinto o que é honra, vergonha, dignidade.
São para mim, como para os do meu alto nível nervoso, palavras de uma língua
estrangeira, como um som anónimo apenas.
Ao dizerem que me desqualificaram, eu não percebo senão que se fala de mim, mas
o sentido da frase escapa-me. Assisto ao que me acontece, de longe, desprendidamente,
sorrindo ligeiramente das coisas que acontecem na vida. Hoje, ainda ninguém sente isto;
mas um dia virá quem o possa perceber.
Nunca tive ideias sobre um assunto qualquer, que não buscasse logo ter outras.
Achei sempre bela a contradição, assim como criador de anarquias me pareceu
sempre o papel digno de um intelectual, dado que a inteligência desintegra e a análise
estiola. (PESSOA, 2003: 144-146)
Na perspectiva de Nathalie Heinich, a ambivalência da loucura na arte, «uma
constante nos trabalhos psiquiátricos consagrados aos artistas», comporta um duplo
risco, tanto para os artistas, como para os seus admiradores. Para a socióloga, este risco
consiste, não apenas em «desacreditar a obra pela hipótese da loucura», mas também em
privar a pessoa da «comum humanidade». Nathalie Heinich afirma que a
«psiquiatrização, contudo, é uma forma extrema de evacuação do singular: sem chegar à
imputação da loucura, basta ver em todo o artista um “caso” mais de ciência do que de
estética, «para o reduzir na sua unicidade, generalizando-o por assimilação às
características comuns, a tipos, a categorias não apenas estéticas mas psicológicas,
sociológicas, ou seja, fisiológicas». Neste sentido, a redução da singularidade não se
realiza apenas por acção da psiquiatria, que destaca as particularidades invulgares,
expulsando os artistas da humanidade comum dos «normais», mas sobretudo pelo
trabalho científico de dessingularização, que consiste em naturalizar o estatuto do
187
artista, generalizando a sua condição em certas categorias, tal como no «homem de
génio» analisado por Galton e Lombroso (HEINICH, 1991: 125-127). Com a publicação,
em lugar de destaque no segundo número de Orpheu, da poesia de Ângelo de Lima,
Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro terão pretendido, afinal, reconhecer no autor a
comum humanidade que a crítica literária lhe negou. Desta forma, os directores da
revista contrariaram a gramática industrial da psiquiatria positivista, que estabeleceu
uma equivalência entre a arte manicomial e a literatura desviante.
A «psiquiatrização» foi, com efeito, o instrumento utilizado pela crítica para
desqualificar os jovens escritores de Orpheu, designadamente porque «a sua leitura
permite apreciar com mais segurança a fisio-psicologia, tão profundamente mórbida,
daqueles a que chamam os paúlicos» (A CAPITAL, 1758: 1). Esta operação de
dessingularização reduziu os jovems escritores de Orpheu na dimensão estética,
generalizando-os na dimensão psíquica para comprometer a sua originalidade e
autenticidade. Desta forma, a inclusão da polémica «arte manicomial», de Ângelo de
Lima, no segundo número da revista Orpheu, não deve ser lida como auto-diminuição
dos seus directores. Deverá antes ser interpretada como afirmação da singularidade e
autenticidade da sua literatura, isto é, como fórmula de investimento destinada a
valorizar a dimensão estética, conferindo simultaneamente a dignidade que era negada a
Ângelo de Lima. Contudo, dada a tensão entre os mundos inspirado e do renome, o
sucesso da revista trimestral de literatura foi um êxito de gargalhada. O preço pago
pela fama, pelo conhecimento nacional e até internacional dos escritores de Orpheu, foi
a sua desqualificação literária, reduzindo-os, não apenas à pequena ordem de grandeza
de «meninos» no mundo doméstico, mas sobretudo à de «degenerados» ou alienados
mentais, na ordem industrial da psiquiatria positivista. Contra esta ordem de grandeza
estabelecida pela crítica, Fernando Pessoa escreveria mais tarde «que é a loucura que
dirige o mundo. Loucos são os heróis, loucos os santos, loucos os génios, sem os quais a
humanidade é uma mera espécie animal, cadáveres adiados que procriam» (LEAL, 1989:
125).
188
CAPÍTULO V
«Literatura de Sodoma»
PREFÁCIO
Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma
inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem, e é nisso que
consistem o temperamento e a sua expressão, são de mulher. As minhas faculdades de relação –
a inteligência, e a vontade, que é a inteligência do impulso – são de homem.
Quanto à sensibilidade, quando digo que sempre gostei de ser amado, e nunca de amar,
tenho dito tudo. Magoava-me sempre o ser obrigado, por um dever de vulgar reciprocidade –
uma lealdade do espírito – a corresponder. Agradava-me a passividade. De actividade, só me
aprazia o bastante para estimular, para não deixar esquecer-se, a actividade em amar daquele que
me amava.
Reconheço sem ilusão a natureza do fenómeno. É uma inversão sexual fruste. Pára no
espírito. Sempre, porém, nos momentos de meditação sobre mim, me inquietou, não tive nunca a
certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposição do temperamento não pudesse um dia descerme ao corpo. Não digo que praticasse então a sexualidade correspondente a esse impulso, mas
bastava o desejo para me humilhar. Somos vários desta espécie, pela história abaixo – pela
história artística sobretudo. Shakespeare e Rousseau são dos exemplos, ou exemplares, mais
ilustres. E o meu receio da descida ao corpo dessa inversão do espírito – radica-mo a
contemplação de como nesses dois desceu – completamente no primeiro, e em pederastia;
incertamente no segundo, num vago masoquismo. (PESSOA, 2003: 186-187)
189
V.1.
Do futurismo de Orpheu a Portugal Futurista
No segundo número de Orpheu, uma nota da redacção informava que o terceiro
número seria publicado em Outubro de 1915, anunciando também uma série de
conferências para essa época: «A Torre Eiffel e o Génio do Futurismo» por Santa-Rita
Pintor, «A Arte e a Heráldica» pelo pintor Manuel Jardim, «Teatro Futurista no Espaço»
pelo Dr. Raul Leal, e «As Esfinges e os Guindastes: estudo do bi-metalismo
psicológico» por Mário de Sá-Carneiro» (ORPHEU, 2: -). Nem o terceiro número da
revista foi publicado, nem as anunciadas conferências se realizaram, mas A Capital:
diário republicano da noite respondeu às provocações de Fernando Pessoa e SáCarneiro. Em 5 de Julho de 1915, na mesma página em que noticiava que «o estado do
Sr. Dr. Afonso Costa é animador, embora se mantenha ainda melindroso», A Capital
inseria um pequeno artigo com o título «GENTE PARA TUDO… Uma récita do
“Orpheu”!». Numa clara referência ao «drama estático» de Fernando Pessoa, publicado
no primeiro número da revista trimestral de literatura, o artigo informava que os jovens
escritores, «entre outras produções cénicas pensam em representar um “drama
dinâmico”…». Segundo o jornalista anónimo, esta «récita paúlica, planeada em
segredo», intitulava-se «A Bebedeira», mas a pretensa notícia era apenas um pretexto
para, mais uma vez, cobrir de ridículo os escritores de Orpheu (A CAPITAL, 1765: 2):
Graças a Deus, ha gente para tudo. Nunca, porém, as boas tradições historicas
foram tão religiosamente respeitadas como n’esse grupo de inoffensivos futuristas que se
propõem enriquecer a teratologia litterária e artística da nossa terra, publicando o Orpheu,
planeando conferencias e dispondo-se até a exhibir a maluqueira no tablado de um theatro.
Os antigos reis não dispensavam, na côrte, o concurso dos bobos; Ha pessoas que imaginam
ser ainda indispensavel esse concurso á vida das sociedades do nosso tempo…
A última é uma recita paúlica, planeada em segredo, destinada a irritar o
burguesismo artístico e a crear mais um motivo para que se fale no assumpto, porque estes
pobres moços, afinal, não desejam outra coisa mais senão que se fale d’elles. Bem ou mal,
pouco importa. O essencial é que não fiquem ignorados. E, na realidade, tem-se-lhes
satisfeito essa ingénua aspiração.
Pois apesar da recita ter sido preparada em segredo, já alguma coisa d’isso
transpirou nos cafés. O clou do espectaculo é um drama dinamico (!) intitulado A bebedeira,
representado por… pernas. O panno sóbe apenas até á altura do joelho dos actores, de
fórma que o espectador não vê mais do que pernas humanas, pernas de cadeiras, pernas de
mesas, tudo isto illuminado por estranhos effeitos de luz, dançando coisas macabras e
desconexas… (A CAPITAL, 1765: 2)
190
No dia seguinte, Fernando Pessoa respondeu a mais esta afronta, em nome do
engenheiro Álvaro de Campos, mostrando o seu inesgotável sarcasmo, numa carta
dirigida ao director de A Capital. O «engenheiro e poeta sensacionista» reagia assim,
não apenas à pretensa notícia publicada por este diário mas de forma mais geral, a todos
os artigos que escarneceram da revista Orpheu e da sua obra, desconstruindo a falsa
informação acerca da «récita paúlica». Neste sentido, Álvaro de Campos não nega o
projecto de tal récita, antes corrigindo a notícia ironicamente, afirmando mesmo que ela
tinha a sua «diligente orientação». Segundo o irreverente engenheiro, o suposto «drama
dinâmico» era um «estudo sintético do jornalismo português», intitulado «Os
Jornalistas», no qual se observariam «apenas os doze pés dos três jornalistas que estão
em quase-cena». Além disso, Álvaro de Campos terminava carta com uma alusão
sarcástica ao grave acidente sofrido pelo Dr. Afonso Costa três dias antes203:
A notícia inserta em A Capital de ontem regista uma informação imperfeita com
respeito aos intuitos teatrais que tomaram alguns dos meus colegas de Orpheu, sob minha
diligente orientação.
Não se trata nem de futurismo nem de representar um drama dinâmico da
categoria litográfica que V. Ex.a indica. Para esclarecer bem o assunto – e visto que já se
fala nele em público – direi que o drama que tencionamos apresentar se chama «Os
Jornalistas», que é um estudo sintético do jornalismo português, e que, como (em parte) V.
Ex.a diz, se vêem apenas os doze pés dos três jornalistas que estão em quase-cena.
Passo em branco – porque seria inútil protestar nesse lance – sobre a atribuição de
futurismo que nos pretendem lançar. Seria de mau gosto repudiar ligações com os
futuristas numa hora tão deliciosamente dinâmica em que a própria Providência Divina se
serve dos carros eléctricos para os seus altos ensinamentos.
[…]
ÁLVARO DE CAMPOS
engenheiro e poeta sensacionista
(PESSOA, 1999a: 167)
Nos anos que antecederam a República, Fernando Pessoa viveu um fervor
revolucionário e patriótico do movimento estudantil de 1907 contra o governo de João
203
O então primeiro-ministro saltou de um carro eléctrico em andamento na noite de 3 de Julho de 1915,
julgando ser alvo de um atentado. Nessa época, os atentados eram frequentes, os explosivos eram de
venda livre e a dinamite até era anunciada no próprio jornal A Capital.
191
Franco, «um tirano de merda»204. Contudo, após a implantação da República, esse
entusiasmo foi cedendo perante o que, para o escritor, era o desgoverno
«desnacionalizado, idiota e corrupto do tri-partido republicano»205. (A ÁGUIA, 5: 143).
Este desencanto ou descrédito de Pessoa na República, nos políticos e nos seus
plumitivos, foi crescendo depois da cisão do Partido Republicano, em 1912, sendo
evidente na carta de Álvaro de Campos para A Capital: diário republicano da noite.
Este jornal era próximo do Partido Democrático de Afonso Costa, o qual vencera as
eleições em 13 de Junho, compreedendo-se assim o sarcasmo de Fernando Pessoa
através do seu heterónimo. A Capital tinha noticiado o acidente do político na sua
edição de 4 de Julho, no dia anterior ao artigo sobre a «récita paúlica», numa notícia
intitulada «O Desastre de Ontem: o Sr. Dr. Afonso Costa continua em estado grave»:
Já os jornaes da manhã narraram as condições em que se produziu o tristissimo
desastre. Acompanhavam o illustre estadista seu irmão, o sr. Arthur Costa, e os seus
amigos dr. Germano Martins, Antonio Tudella e dr. José Tavares. Só pelo panico terrivel
que se produziu dentro do carro electrico no momento da explosão é possível explicar o
gesto desvairado do sr. dr. Affonso Costa, saltando pela janella quando o carro seguia
vertiginosamente pela linha fóra. Mas deu-se uma coincidencia lamentável, no dia de
hontem, e que muito devia ter contribuido tambem para aquella resolução precipitada. Foi
o aviso, que o sr. dr. Affonso Costa recebeu, de que alguns dos seus inimigos machinavam
contra elle novo atentado. Essa prevenção foi-lhe feita por um dos elementos civis que
estiveram a bordo do «Vasco da Gama» depois do almoço que ali se realisou. É natural que
o sr. dr. Affonso Costa, ouvindo o formidavel estampido da explosão, que encheu o carro
d’uma fumarada densa, supuzesse que se tratava de qualquer bomba de dynamite
arremessada pelos seus inimigos. D’ahi, o gesto desesperado de tentar salvar-se por um
meio extermo. (A CAPITAL, 1764: 1)
204
Sobre Afonso Costa, Fernando Pessoa escreveu num rascunho: «Franco seria um tirano de merda; este
é um tirano de caca» (PESSOA, 1979: 182).
205
Fernando Pessoa alude os três maiores partidos republicanos, resultantes da cisão, em Fevereiro de
1912, do Partido Republicano Português, que unira as forças republicanas no tempo da Monarquia. Da
esquerda para a direita: o Partido Democrático, herdeiro do aparelho político do Partido Republicano e
dirigido por Afonso Costa, controlava o jornal O Mundo; o Partido Republicano Evolucionista, de
António José de Almeida, director do Jornal República; e o Partido da União Republicana, de Brito
Camacho, director do jornal A Lucta. «De modo que é bom fixar isto, tambem: que se ser monarchico é
ser traidor á alma nacional, ser correligionario do sr. Afonso Costa, do sr. Brito Camacho, ou do sr.
António José d’Almeida, assim como de varia horrorosa sub-gente syndicalistica, socialistica e outras
cousas, representa paralela e equivalente traição. […] Para nada de morte lhes faltar, nem antitradicionaes são: herdaram cuidadosamente os metodos de despotismo, de corrupção e de mentira que a
monarchia tão como seus amou» (A ÁGUIA, 5: 143).
192
Com a sua vida «indisciplinadora de almas»206, Fernando Pessoa, tinha sido
afastado de O Jornal, onde era redactor, devido a uma crónica publicada em 21 de Abril
de 1915., com a qual o «criador de anarquias» provocou, inadvertidamente, a
indignação da «classe dos Chauffeurs»207. Em 6 de Julho, o escritor entregou na
redacção de A Capital, a referida carta de Álvaro de Campos, suscitando também a
indignação dos jornalistas deste diário. No mesmo dia, A Capital inseriu outro artigo,
este na primeira página, intitulado «ANTIPÁTICO FUTURISMO – Os poetas do
“Orpheu” – Não passam, afinal, de criaturas de maus sentimentos». Segundo o
jornalista anónimo, os «cérebros destrambelhados do Orpheu não podem injuriar
ninguém. Mas a carta contém uma repugnante alusão ao desastre de que foi vítima o Sr.
Dr. Afonso Costa, e essa faz-nos modificar bastante o conceito em que tínhamos os
sensacionistas». A última frase da referida carta foi reproduzida na notícia, sendo
considerada indigna e revoltante. «E de hoje em diante, podem os futuristas, até há
pouco simplesmente ridículos, agora ridículos e maus, contar com uma nova forma de
tratamento por parte dos jornalistas que estupidamente pretendem insultar» (A CAPITAL,
1766: 1).
A carta de Álvaro de Campos ao director de A Capital levou ao distanciamento
do editor, o jovem António Ferro, e de Alfredo Pedro Guisado, colaborador de Orpheu.
A sua postura relativamente à revista foi anunciada em carta que os dois subscreveram,
publicada pelo diário O Mundo, em 7 de Julho de 1915. A ameaça de represálias dos
jornalistas de A Capital aos escritores «futuristas» mereceu também uma carta de Mário
de Sá-Carneiro, reproduzida no mesmo dia na primeira página deste diário, numa nota
intitulada «PONTO FINAL… – O caso do “Orpheu” – O seu director repele toda a
solidariedade com o «engenheiro sensacionista» Álvaro de Campos». Para Sá-Carneiro,
a carta de Álvaro de Campos «representa apenas um gesto individual e, por forma
alguma, uma manifestação colectiva do “Orpheu”». O director afirma que, enquanto
revista literária, Orpheu não tinha «qualquer opinião política ou social», razão pela qual
206
Na carta para Armando Côrtes-Rodrigues, de 19 de Abril de 1915, Pessoa escreveu: «Com a minha
vida, indisciplinadora de almas, no escritório, acrescida da minha vida jornalística de agora (sou redactor
desta nova folha que aqui há, O Jornal – caí nesta vida temporariamente)» (PESSOA, 1999a: 162).
207
Tratava-se da rubrica diária «Crónica da vida que Passa…», que Pessoa partilhava com outros
jornalistas na primeira página de O Jornal: «Quando surgiu a industria automobilista, foi preciso criar a
classe dos chauffeurs; ninguem, a não ser um ou outro atropelado mais plebeu, se revoltaria decerto
contra a imperícia inicial dos guiadores dos carros. Estavam aprendendo o oficio – o que é natural; e
ganhando a sua vida – o que é repeitavel. Depois ficaram sabendo da sua arte, e, embora a maioria
continue guiando mal, o facto é que são chauffeurs definitivamente» (O JORNAL, 18: 1).
193
seria injusto responsabilizar a empresa pelo «deplorável incidente» causado por um dos
seus colaboradores. A nota refere ainda que Almada Negreiros se tinha dirigido
pessoalmente à redacção de A Capital para justificar a carta de Álvaro de Campos, que é
identificado como «pseudónimo literário do Sr. Fernando Pessoa, o qual aos seus
amigos, segundo nos referem, confessou que, no momento em que escreveu a referida
carta, se encontrava em manifesto estado de embriaguez» (A CAPITAL, 1767: 1). Fernando
Pessoa preparou ainda uma réplica à notícia «ANTIPÁTICO FUTURISMO» que,
eventualmente, os amigos o teriam demovido de enviar. Reincidindo na ironia, Pessoa
afirma nesse rascunho que daria «por não escritas as frases que constituem a única
parte» da sua carta «que podia ser tida por insolente», se o jornalista que escreveu a
notícia lhe garantisse «que o seu primitivo artigo não era escrito no espírito de pura
insolência, e que não havia a intenção de insultar o Orfeu». Contudo, esta réplica seria
apenas um pretexto para Pessoa tecer uma crítica ainda mais mordaz a Afonso Costa208
(PESSOA, 1979: 171-172).
V.1.1. A tensão entre os mundos inspirado e comercial
A partida precipitada de Mário de Sá-Carneiro para Paris, em 11 de Julho de
1915, e mais tarde a recusa do seu pai em continuar o mecenato involuntário da revista,
ditaram o fim de Orpheu, apesar das persistentes tentativas de Fernando Pessoa para
publicar o terceiro número209. Em 19 de Setembro, Santa-Rita Pintor, que colaborara no
segundo número, escreveu a Fernando Pessoa, propondo continuar a publicação, mas o
escritor considerava-o um «pobre rapaz em quem o artifício suprime a falta de
originalidade real. Audaz como todos que não podem ser outra cousa que chame a
atenção legitimamente» (PESSOA, 2003: 146). Pessoa respondeu ao Pintor dois dias
208
Pessoa teria iniciado nesta época um ensaio intitulado Oligarquia das Bestas, para o qual escreveu
alguns rascunhos:
«Vem o Sr. Afonso Costa… Aquilo é que é uma besta!
Empurramo-lo ao poder e agora fere-nos, estando nós por detrás dele. […]
É daqueles homens a quem o epíteto ilustre anda sempre atado como uma lata ao rabo dum cão, a
pertencer-lhe, tanto como a lata ao cão pertence» (PESSOA, 1979: 170-171).
209
Em 13 de Setembro de 1915, Mário de Sá-Carneiro escreveu de Paris a Fernando Pessoa: «Custa-me
muito a escrever-lhe esta carta dolorosa – dolorosa para mim e para você. Mas por mim já estou
conformado. A dor é pois neste momento sobretudo pela grande tristeza que lhe vou causar. Em duas
palavras: temos desgraçadamente de desistir do nosso Orfeu. Todas as razões lhe serão dadas, melhor pela
carta do meu Pai que junto incluo e lhe peço não deixe de ler. Claro que é devida a um momento de
exaltação. No entanto cheia de razões pela conta exorbitante que eu obrigo o meu Pai a pagar» (SÁCARNEIRO, 2001: 209).
194
depois, agradecendo «comovidamente a proposta», mas recusando, porque Orpheu
representava uma «determinada corrente». Com efeito, para Pessoa, a revista
representava o sensacionismo210, do qual foi fundador, com o apoio de Mário de SáCarneiro. Sendo Santa-Rita Pintor declaradamente futurista, o escritor não poderia
«encarar afirmativamente a sua proposta» porque, a «transferir para alguém essa revista,
só podia ser, como no exemplo baconiano da traditio lampadis dos antigos, ad filios»,
isto é, «aos discípulos». Pessoa invoca então a «mitologia dos antigos», que o seu
«espírito radicalmente pagão se não cansa nunca de recordar», para assegurar ao Pintor
que «Orpheu não acabou», pois «Orpheu não pode acabar» (PESSOA, 1999a: 172-173)211.
Neste sentido, Pessoa escreveu ainda ao poeta Camilo Pessanha (1867-1926), então
funcionário público em Macau, solicitando autorização para a publicação, «em lugar de
honra do terceiro número, de alguns dos seus admiráveis poemas»212 (PESSOA, 1999a:
185):
A nossa revista acolhe tudo quanto representa a arte avançada; assim é que temos
publicado poemas e prosas que vão do ultra-simbolismo até ao futurismo. Falar do nível
que ela tem mantido será talvez inábil, e possivelmente desgracioso. Mas o facto é que ela
210
«O sensacionismo afirma, primeiro, o princípio da primordialidade da sensação – que a sensação é a
única realidade para nós.
Partindo de aí, o sensacionismo nota as duas espécies de sensações que podemos ter – as sensações
aparentemente vindas do exterior, e as sensações aparentemente vindas do interior. E constata que há uma
terceira ordem de sensações resultantes do trabalho mental – as sensações do abstracto.
Perguntando qual o fim da arte, o sensacionismo constata que ele não pode ser a organização das
sensações do exterior, porque esse é o fim da ciência; nem a organização das sensações vindas do interior,
porque esse é o fim da filosofia; mas sim, portanto, a organização das sensações do abstracto. A arte é
uma tentativa de criar uma realidade inteiramente diferente daquela que as sensações aparentemente do
exterior e as sensações aparentemente do interior nos sugerem» (PESSOA, 1966: 190-191).
211
Em 25 de Setembro de 1915, Sá-Carneiro escreveu a Pessoa: «Você tem mil razões: O Orfeu não
acabou. De qualquer maneira, em qualquer «tempo» há-de continuar. O que é preciso é termos “vontade”.
Mas junto envio-lhe um coup-de-thêatre: a carta recebida do futurista Rita-Pintor que não quer que o
Orfeu acabe, e o continuará com alguns haveres que possui, caso nós não nos oponhamos etc., etc. – e
contando comigo e consigo – pois já lhe não chama nomes feios!... O caso é bicudo – especialmente para
você que o tem de aturar. Dou-lhe carta branca. O meu querido amigo diz-lhe o que entender, resolve o
que entender. Por mim limito-me a escrever-lhe logo uma carta vaga: que sim e mais que também… Esse
sarilho, resolva-o você. Claro que Santa-Rita «maître» do Orfeu acho pior que a morte» (SÁCARNEIRO, 2001: 215).
212
«Decerto que V. Ex.ª de mim não se recorda. Duas vezes apenas falámos no «Suíço», e fui apresentado
a V. Ex.ª pelo general Henrique Rosa. Logo da primeira vez que vimos, fez-me V. Ex.ª a honra e deu-me
o prazer, de me citar alguns poemas seus. Guardo dessa hora espiritualizada uma religiosa recordação.
Obtive, depois, pelo Carlos Amaro, cópias de alguns desses poemas. Hoje, sei-os de cor, aqueles cujas
cópias tenho, e eles são para mim fonte contínua de exaltação estética. […] Entre os poemas que era
empenho nosso inserir, contam-se os seguintes: “Violoncelos”, ”Tatuagens”, ”O Estilista” (só conheço,
deste, o segundo soneto), ”Castelo de Óbidos”, ”O Tambor”, ”Nocturno”, ”Passeio no Jardim”, ”Ao longe
os barcos de flores”, ”O meu coração desce…”, ”Passou o Outono já”, ”Floriram por engano as rosas
bravas…”, ”O Fonógrafo”» (PESSOA, 1999a: 183-185).
195
tem sabido irritar e enfurecer, o que, como V. Ex.ª muito bem sabe, a mera banalidade
nunca consegue que aconteça. Os dois números não só se têm vendido, como se esgotaram,
o primeiro deles no espaço inacreditável de três semanas. Isto alguma coisa prova – atentas
as condições artisticamente negativas do nosso meio – a favor do interesse que conseguimos
despertar. E serve ao mesmo tempo de explicação para o facto de não remeter a V. Ex.ª os
dois números dessa revista. Caso seja possível arranjá-los, enviá-los-emos sem demora.
(PESSOA, 1999a: 184-185)
Segundo Mário de Sá-Carneiro, entregar a revista Orpheu a Santa-Rita Pintor
seria «pior que a morte», uma vez que, na sua opinião, ele só tinha «interesse em
publicar os seus bonecos e do Picasso». A passagem da direcção da revista ao Pintor foi
assim recusada, tanto por Sá-Carneiro como por Fernando Pessoa, que chegou a registar
Orpheu em seu próprio nome213. Numa carta de 2 de Outubro de 1915, Sá-Carneiro
declarou a Pessoa: «Escrevi ao Santa-Rita pelo mesmo correio o seguinte, em resumo:
longe e atravessando demais a minha vida vários perigos (sic) – desinteresso-me por
completo da questão do Orfeu, do qual – se ele continuasse – eu seria apenas um
colaborador intermitente. Mas isto nada quer dizer pois por mim eu coisa alguma posso
decidir. O Orfeu é propriedade espiritual tanto minha como sua. Eu desisti da minha
parte: logo hoje o Orfeu é propriedade exclusiva de você, Fernando Pessoa – que se
encontra assim actualmente ser o seu único árbitro» (SÁ-CARNEIRO, 2001: 219-221).
Contudo, Santa-Rita Pintor não desistiu da ideia, planeando então publicar uma revista
com outro nome, para a qual Pessoa lhe enviou colaboração, sua e de Sá-Carneiro, em
Outubro de 1915214. Vivendo em Paris, Mário de Sá-Carneiro era nessa época o
213
Em 2 de Outubro de 1915, em Paris, Sá-Carneiro escreveu a Pessoa: «O Santa-Rita deveras é um
grande maçador. Estou farto de o aturar aqui com a questão do Orfeu. Hoje vai uma carta para você ler e
que chegou hoje mesmo. Aí já está disposto a que você dirija inteiramente a revista: ele só tem interesse
em publicar os seus bonecos e do Picasso. Em primeiro lugar isto é uma chuchadeira pois eu não creio de
forma alguma que o Santa-Rita vá pagar o Orfeu mesmo para publicar os seus bonecos. […] Que hei-de
eu responder ao Pintor? Olhe, continuo a dizer que sim e mais que também – que se entenda com você:
que eu não quero fazer o Orfeu – e que ele é meu e de você, unicamente. Você mande-o para o diabo. […]
– Fez muito bem em registar o nome da revista» (SÁ-CARNEIRO, 2001: 219-220).
214
Numa carta para o Santa-Rita Pintor, com data de 23 de Outubro de 1915, Pessoa escreveu:
«Aí lhe mando a colaboração do Sá-Carneiro, segundo as instruções que ele me mandou, em carta
chegada ontem. Tenho pena que seja pouco extensa essa colaboração, mas, enfim, mando os poemas que
ele me indicou.
Na segunda-feira deve aí ter a minha colaboração. Tenho tido muito que fazer – coisas aqui do
escritório – e só amanhã me posso realmente dedicar a passar os meus poemas a limpo.
Diga-me qualquer coisa a respeito da sua Revista. Quando a manda imprimir? Já falou ao Ângelo de
Lima?
O Raul Leal mostrou-me ontem o trecho do seu Manifesto ou Prefácio, em que se refere ao
Sensacionismo. Acho que está muito bem, como expressão de opinião. Claro está que não concordo com
a sua interpretação, mas isso nada tem para o caso de que se trata» (PESSOA, 1999a: 178-179).
196
correspondente privilegiado de Fernando Pessoa, trocando frequentemente notícias da
república das letras. Enquanto a Grande Guerra prosseguia em França, a mesada paterna
era insuficiente para o estilo de vida boémio de Sá-Carneiro, que na correspondência
manifestava a sua crescente angústia215. Em 31 de Março de 1916, escreveu uma carta
de despedida a Pessoa, revelando a sua disposição suicidária216:
A menos de um milagre na próxima 2.ª-feira 3 (ou mesmo na véspera) o seu Mário
de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim
tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas
“cartas de despedida”… Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho
o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui… já
dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me
coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade –
numa situação para a qual, a meus olhos, não há uma outra saída. Antes assim. É a única
maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive
tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do
seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo,
tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas: mas eu não tenho dinheiro. (SÁCARNEIRO, 2001: 279-280)
Segundo Boltanski e Thévenot, o mundo comercial, habitado por indivíduos que
procuram satisfazer os seus desejos, rege-se pelo presente, razão pela qual «não
comporta nenhuma memória do passado, nenhum projecto de futuro» (BOLTANSKI &
THÉVENOT, 1991: 245).
Sá-Carneiro viveu sobretudo o presente: quinze dias, durante os
quais teria realizado os seus desejos sexuais e a fantasia do ópio. No mundo comercial,
é grande quem consegue o desejável, razão pela qual Sá-Carneiro afirma que a vida lhe
corria «às mil maravilhas», uma vez que realizara «o que tanto sempre quis». Nesse
215
De Paris, em 22 de Fevereiro de 1916, Sá-Carneiro voltou a escrever a Pessoa: «Nem uma vez, em
cartas até hoje recebidas, o meu pai se referiu à minha partida daqui: mas que cenas não terá que sustentar
para a continuação da minha situação presente. Acresce que eu não posso ter juízo. Pedi ao meu Pai 250
francos por mês. Actualmente recebo 280: mas, como em Lisboa, eu não sei viver, eu não tenho coragem
para viver com menos de 350-400 francos» (SÁ-CARNEIRO, 2001: 272).
216
Em 13 de Julho de 1914, Sá-Carneiro já tinha escrito a Pessoa: «O meu futuro literário é este: a
conclusão da “Grande Sombra”, a composição de mais alguns contos para o volume Céu em Fogo, (talvez
mesmo só das “Asas”) possivelmente alguma outra novela importante – só uma – e várias poesias. Não
quero fazer mais. E não posso fazer mais. E tudo quanto mais farei sê-lo-á feiro automaticamente, melhor
– já está feito. Foi feito em alma antes do fim – mas «no fim» sê-lo-á executado materialmente. Meu
amigo, creia-me, tudo quanto doravante eu hoje escrever são escritos póstumos. Infelizmente não me
engano – como não me enganei na minha volta a Paris. Não lhe dizia tanta vez que não “me via” com
uma obra muito longa? Entretanto qual será o meu fim real? Não sei. Mas, mais do que nunca acredito, o
suicídio… pelo menos o suicídio moral… Acabarei talvez em corpo exilado da minha alma. Mas creio
menos nesta hipótese» (SÁ-CARNEIRO, 2001: 126).
197
mundo, a relação de grandeza reside na posse, por isso o escritor, que teve «tudo»
durante quinze dias, se sentiu grande na capital francesa. Vivendo a vida com que
sempre sonhara, o escritor não teria razão para se suicidar se não fosse a sua
incapacidade económica para manter esse estilo de vida, razão pela qual não se matava
«por coisa nenhuma», mas apenas por não ter dinheiro. Na sua dramática carta, SáCarneiro escreveu que poderia «ser feliz mais tempo» mas, sem «coragem para viver
com menos de 350-400 francos» e não vendo «outra saída», decidira suicidar-se (SÁCARNEIRO, 2001: 272-298).
Com efeito, o dinheiro constitui a forma de evidência do
mundo comercial, mas a indesejável dependência dele implica o declínio217 e a redução
a uma pequena ordem de grandeza. Por outro lado, a servidão do dinheiro é uma das
principais críticas dos seres inspirados ao mundo comercial (BOLTANSKI & THÉVENOT,
1991: 295).
Afinal, o suicídio foi adiado, pelo que Pessoa escreveu a Sá-Carneiro, em 26 de
Abril de 1916, referindo «o grande sofrimento» que o amigo, sem querer, lhe causara,
com a sua terrível crise». «O facto é que a sua grande crise foi uma grande crise minha,
e eu senti-a, como já lhe disse não só pelas suas cartas, como, já de antes,
telegraficamente, pela “projecção astral” (como eles dizem) do seu sofrimento»218.
Contudo, o amigo não chegou a receber esta carta pois, no mesmo dia em que Fernando
Pessoa lhe escreveu, pôs realmente termo à vida, quando contava 25 anos de idade.
Enquanto ser inspirado, Mário de Sá-Carneiro viveu a forte tensão entre este mundo e o
comercial, patente na satisfação dos seus desejos, a qual terminou tragicamente em
suicídio. Em 4 de Maio, Pessoa escreveu a Côrtes-Rodrigues, referindo a sua «crise
intelectual», para dar conta da «enorme tragédia» que se abatera sobre os escritores de
Orpheu, pedindo colaboração do poeta açoriano para um folheto que pretendia publicar
em memória de Mário de Sá-Carneiro (PESSOA, 1999a: 211-213):
Não lhe tenho escrito. Tenho atravessado uma enorme crise intelectual. E agora
estou muito pior, com a enorme tragédia que nos aconteceu a todos.
217
Nesta época, Mário de Sá-Carneiro compôs um conjunto de poemas com o título «Sete Canções de
Declínio» (AA.VV. 1994: 167).
218
Numa carta para José Régio, em que comenta o seu livro Biografia, em 17 de Janeiro de 1930,
Fernando Pessoa escreveria: «Faz-me saudades do maior amigo meu, do único grande amigo que tive – o
Mário de Sá-Carneiro, a quem a leitura dos seus sonetos entusiasmaria como uma boa nova. Sonhei sem
querer – em um daqueles sonhos retrospectivos e erróneos – que estivéssemos lendo juntos os seus
sonetos, e reconheço a voz dele e a minha no consenso entusiástico da apreciação» (PESSOA, 1999b
1994: 194-195).
198
O Sá-Carneiro suicidou-se em Paris no dia 26 de Abril. Não tenho cabeça para lhe
escrever, mas não quero deixar de lhe comunicar isto.
Claro está que a causa do suicídio foi o temperamento dele, que fatalmente o
levaria àquilo. Houve, é claro, uma série de perturbações que foram as causas ocasionais da
tragédia.
Ele suicidou-se com estricnina. Uma morte horrorosa. Já tencionara suicidar-se
três vezes – em 3 de Abril a primeira. Uma grande desgraça! (PESSOA, 1999a: 212-13)
V.1.2. Portugal Futurista
Em Abril de 1916, mês em que Mário de Sá-Carneiro suicidou, Augusto de
Santa-Rita, irmão do Pintor, publicou a revista Exilio219, que inseriu o poema de
Fernando Pessoa «Hora Absurda». Em Outubro, foi a vez de Luís de Montalvor
publicar a revista Centauro220, que incluiu o poema «Passos da Cruz», catorze sonetos
de Fernando Pessoa, e o conto de Raul Leal «A Aventura dum Sátiro ou a Morte de
Adónis», bem como «Poemas Inéditos», de Camilo Pessanha, alguns dos quais Pessoa
tinha pedido ao poeta para publicar no terceiro número de Orpheu. Ainda em 1916,
Santa-Rita Pintor e José de Almada Negreiros, ambos artistas plásticos, fundaram o
Comité Futurista de Lisboa. Os futuristas eram apoiados, em Faro, por Carlos Lyster
Franco, proprietário do jornal O Heraldo, e Carlos Filipe Porfírio, que manteve neste
jornal a rubrica «Futurismo», na qual publicou, entre outros, poemas de Fernando
Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros221. No mesmo ano foi publicado o Manifesto
Anti-Dantas e por Extenso, «por José de Almada-Negreiros poeta d’Orpheu futurista e
219
Exilio: Revista Mensal de Arte, Lettras e Sciencias, número 1, Abril de 1916, único publicado, com
direcção de Augusto de Santa-Rita. Além deste e António Ferro, colaboraram nesta revista os escritores
de Orpheu Fernando Pessoa, Côrtes-Rodrigues e Pedro de Menezes. Pessoa colaborou com «Hora
Absurda», poema datado de 4 de Julho de 1913, e «Bibliografia: Movimento Sensacionista», crítica dos
livros Elogio da Paisagem, de Pedro de Menezes, e As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruínas, de
João Cabral do Nascimento.
220
Centauro: Revista Trimestral de Literatura, volume I, número 1, Outubro-Novembro-Dezembro,
1916, número único com direcção de Luís de Montalvor, que co-dirigira também o primeiro número da
revista Orpheu. Os «Poemas Inéditos» de Camilo Pessanha, nesta revista, foram a única publicação
significativa em vida do seu autor.
221
Carlos Lyster Franco (1880-1959), a quem Pessoa dedicara o seu «drama estático», «O Marinheiro»,
publicado no primeiro número de Orpheu, adquiriu em 1912 o jornal O Heraldo, de Tavira, que passou
então a ser publicado em Faro, tendo como colaborador o jovem Carlos Filipe Porfírio (1895-1970). Este
bissemanário, próximo do Partido Democrático de Afonso Costa, dedicou um espaço generoso à
literatura, primeiro na rubrica «Gente Nova» e, em 1916 e 1917, na rubrica «Futurismo», do jovem
colaborador. Além de muitos outros autores, designadamente Kernok (pseudónimo de Carlos Franco),
publicou os poemas «Litoral» de Almada Negreiros, «Além» de Mário de Sá-Carneiro e «A Casa Branca,
Nau Preta» de Fernando Pessoa. O Heraldo encerrou em Agosto de 1917 e, três meses depois, Carlos
Filipe Porfírio surgia como director e fundador da «publicação eventual» Portugal Futurista.
199
tudo», no qual vilipendia, com a violência das letras maiúsculas, não apenas o Dr. Júlio
Dantas, «vergonha da intelectualidade portuguesa», mas toda uma geração de
«indignos», «charlatães» e «vendidos» (NEGREIROS, 2000: 5-7):
UMA GERAÇÃO, QUE CONSENTE DEIXAR-SE REPRESENTAR POR UM
DANTAS É UMA GERAÇÃO QUE NUNCA O FOI! É UM COIO D’INDIGENTES,
D’INDIGNOS E DE CEGOS! É UMA RÊSMA DE CHARLATÃES E DE VENDIDOS, E
SÓ PÓDE PARIR ABAIXO DE ZERO!
ABAIXO A GERAÇÃO!
MORRA O DANTAS, MORRA!
PIM!
UMA GERAÇÃO COM UM DANTAS A CAVALO É UM BURRO
IMPOTENTE!
UMA GERAÇÃO COM UM DANTAS Á PROA É UMA CANÔA EM SECCO!
O DANTAS É UM CIGANO!
O DANTAS É MEIO CIGANO!
O DANTAS SABERÁ GRAMMÁTICA, SABERÁ SYNTAXE, SABERÁ
MEDICINA, SABERÁ FAZER CEIAS P’RA CARDEAIS SABERÁ TUDO MENOS
ESCREVER QUE É A UNICA COISA QUE ELLE FAZ!
[…]
(NEGREIROS, 2000: 5-6)
Em 1917, Fernando Pessoa faria ainda uma última tentativa para publicar o
terceiro número da revista Orpheu mas, apesar de terem sido impressas as provas de
página, este número apenas seria publicado, postumamente, em 1984. O terceiro
Orpheu incluiria «Poemas de Paris», de Mário de Sá-Carneiro, «Gládio e Além-Deus»,
poemas de Fernando Pessoa, e «A Cena do Ódio», de José de Almada Negreiros, «poeta
sensacionista e narciso do Egipto», dedicada a Álvaro de Campos. Em 14 de Abril de
1917, Santa-Rita Pintor e Almada Negreiros organizaram a «Primeira Conferência
Futurista», que teve lugar no Teatro República222. Envergando fato de piloto, Almada
Negreiros leu o seu «Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX», o
«Manifesto Futurista da Luxúria», de Valentine de Saint-Point223, e «O Music-Hall:
manifesto futurista de Marinetti»224.
222
Antigo Teatro Dona Amélia, e actual São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa.
223
Pseudónimo da escritora e artista francesa Anna Jeanne Valentine Marianne de Glans de CessiatVercell (1875-1953). O «Manifeste Futuriste de la Luxure» foi originalmente publicado em 11 de Janeiro
200
Em Novembro de 1917, foi editada a revista Portugal Futurista, tendo como
director e fundador Carlos Filipe Porfírio, constituindo um instrumento de propaganda
do movimento futurista. Esta revista de vanguarda artística publicou o «Manifeste des
Peintres Futuristes» e «O Futurismo»225, interpretação e «tradução livre de F. T.
Marinetti, Boccioni, Carrá», por Bettencourt-Rebelo226. Santa-Rita Pintor é a figura
central da revista, surgindo num retrato de página inteira com a legenda «SANTA-RITA
PINTOR o grande iniciador do movimento futurista em Portugal»227. Contudo, a pérola
desta ostra é o «Ultimatum», de Álvaro de Campos, no qual o engenheiro doido não
poupa escritores, militares nem políticos. «Tendo escapado à censura por qualquer
inexplicável golpe de sorte, esta desapareceu quando alguém chamou para Ultimatum a
atenção das autoridades já depois de a revista se encontrar nos escaparates das livrarias.
Portugal Futurista foi imediatamente apreendida pela Polícia e instaurado processo
contra todos os escritores que colaboraram». Segundo Fernando Pessoa escreveu mais
tarde, isto aconteceu «durante o ministério democrático derrubado por Sidónio Pais na
revolução de 5 de Dezembro de 1917. No entanto, é difícil imaginar como qualquer
ministério, estando o país em guerra, poderia consentir na publicação de Ultimatum»
(PESSOA, 1966: 409).
de 1913, na sequência do «Manifeste de la Femme Futuriste» de 25 de Março de 1912, ambos da autoria
de Valentine de Saint-Point.
224
Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944), escritor italiano nascido no Egipto, iniciador do movimento
futurista. O «Manifesto del Futurismo», de Marinetti, foi publicado em 5 de Fevereiro de 1909 no diário
de Bolonha La Gazzetta dell’Emilia, e republicado em diversos periódicos italianos durante esse mês. À
semelhança do manifesto de Jean Moréas, «Le Symbolisme», publicado vinte e três anos antes em Le
Figaro, também Marinetti publicou o seu «Manifeste du Futurisme» na primeira página da edição de 20
de Fevereiro de 1909 do mesmo diário parisiense. Graças a um amigo do pai de Marinetti, accionista
deste jornal, o futurismo obtinha assim projecção internacional. Este foi o primeiro de uma série de
manifestos futuristas que expandiram o futurismo a várias artes, exportando-o para diversos países,
designadamente França, Portugal e Rússia.
225
«E o que é o Futurismo? A renovação da Vida. A renovação, a emancipação e a consciencia exacta da
vida. A arte que a revive deve ter tambem essa mesma consciencia. Nada mais falso que cantar tristezas e
desesperos quando tudo é força e valentia; nada mais ridiculo do que pintar uma paisagem ou um Nú que
nada dizem, que nada conteem de grande, de ideal ou de agressivo» (PORTUGAL FUTURISTA, 1: 6).
226
O «Manifesto dei Pittori Futuristi» foi publicado em Milão, em 11 de Fevereiro de 1910, e subscrito
pelos artistas italianos Umberto Boccioni (1882-1916), Carlo Carrà (1881-1966), Giacomo Balla (18711958), Gino Severini (1883-1966) e Luigi Russolo (1885-1947).
227
Em 13 de Julho de 1914, numa longa carta para Pessoa, Sá-Carneiro escreveu: «Pela segunda vez
depois que aqui estou estive hoje com o Santa-Rita que foi ao meu hotel. Uma notícia sensacional: o
Santa-Rita vai para (não a) Lisboa em Setembro próximo! É claro que, como tem de ir, ele se mostra
satisfeito por isso mesmo (quando o ano passado me dizia ser essa a maior tragédia). Disse. «Compreende
vou lá para baixo fazer a minha obra, impor-me socialmente. De resto é muito duro Paris durante tanto
tempo, esgota-nos!» Veio-me pedir para eu arranjar um editor para a tradução portuguesa dos manifestos
do Marinetti (livro Le Futurisme e os últimos trabalhos). Pedido – disse – feito em nome de Marinetti.
Para ser amável escreverei a qualquer livreiro daí que dirá que não…» (SÁ-CARNEIRO, 2001: 128).
201
MERDA!
A Europa tem sêde de que se crie, tem fome de Futuro!
A Europa quer grandes Poetas, quer grandes Estadistas, quer grandes Generaes!
Quer o Politico que construa conscientemente os destinos inconscientes do seu
povo!
Quer o Poeta que busque a Immortalidade ardentemente, e não se importe com a
fama, que é para as actrizes e para os productos pharmaceuticos!
Quer o General que combata pelo Triumpho Constructivo, não pela victoria em
que apenas se derrotam os outros!
A Europa quer muitos d’estes Politicos, muitos d’estes Poetas, muitos d’estes
Generaes!
A Europa quer a Grande Idéa que esteja por dentro d’estes Homens Fortes – a
idéa que seja o Nome da sua riqueza anonyma!
A Europa quer a Intelligencia Nova que seja a Forma da sua Materia chaotica!
Quer a Vontade Nova que faça um Edificio com as pedras-ao-acaso do que é hoje a
Vida!
Quer a Sensibilidade Nova que reuna de dentro os egoismos dos lacaios da Hora!
A Europa quer Donos! O Mundo quer a Europa!
[…]
Álvaro de Campos
(PORTUGAL FUTURISTA, 1: 32)
V.2.
Reconstrução da auto-identidade
Após a publicação do primeiro número da revista Orpheu, a ausência de
reconhecimento, bem como o desencanto da República228, remeteu de novo Fernando
Pessoa para a língua inglesa229. O escritor não rejeitara totalmente esta língua mas, uma
vez dissipado o ardor patriótico que o convertera à língua e cultura portuguesas, voltou
a dedicar maior atenção à escrita em Inglês230. Enquanto escritos autobiográficos, os
228
Mais tarde, em 7 de Janeiro de 1929, numa carta para o irmão Luís Miguel Nogueira Rosa, radicado
em Ingaterra, Pessoa escreveria «If I had been told in 1905, say, when I came back from Durban and
found almost every student a Republican here, that in 1920 to 1929 almost every student here would be an
absolutist Royalist, I should have considered the prophet mad or drunk» (PESSOA, 2003: 194).
229
Segundo Richard Zenith, Fernando Pessoa teria começado a escrever o seu poema Antinous em 6 de
Maio de 1915 (PESSOA, 2003: 504).
230
Luísa Freire afirma que «Pessoa nunca abandonou, até ao final da sua vida, a língua que aprendeu na
infância e na adolescência na África do Sul e dentro da qual, de certa maneira, moldou o pensamento,
através da sua formação britânica e das literaturas nela expressas, que o poeta atentamente estudou e
202
seus três diários revelam-se exemplares para a compreensão das metamorfoses do
jovem Pessoa, prestando-se a confirmar esta asserção231.
Segundo Berger e Luckmann, em comparação com a realidade original
«naturalizada» na infância, todas as posteriores realidades são «artificiais», daí «a
qualidade afectiva da “língua materna”» (BERGER & LUCKMANN, 1999: 150-151). Desta
forma, Pessoa não deixou de considerar o Português a sua «própria língua», a qual,
«tendo uma gramática mais complexa do que a inglesa (uma gramática que inclui coisas
como um infinitivo pessoal), pode transcrever gradações de sentimento com um rigor
maior do que o Inglês»232 (PESSOA, 1999a: 194-195). Assim se compreendem as oscilações
do escritor entre as culturas portuguesa e inglesa, no processo de ressocialização em que
o engenheiro Álvaro de Campos substituiu o alter-ego Alexander Search. Nascido em
Lisboa, a 13 de Junho de 1888 (LOPES, 1990b: 195), este inglês era um duplo de Pessoa,
uma personalidade de transição na procura da coerência interna do novo universo
simbólico do jovem. O seu sucessor, o engenheiro Álvaro de Campos, era um algarvio
que estudou na Escócia, constituindo uma ruptura com a cultura inglesa e a reconstrução
de uma nova coerência ou adaptação simbólica à realidade social portuguesa. Esta foi a
solução encontrada pelo jovem Pessoa na reconstrução da sua auto-identidade
assimilou». No entanto, os «períodos mais férteis de escrita em língua inglesa» decorreram em 1915,
1916, 1917 e 1920 (PESSOA, 2000b: 259).
231
O diário de 1906, iniciado em 15 de Março e terminado em 3 de Junho, foi redigido em língua inglesa,
enquanto o jovem Pessoa frequentava o Curso Superior de Letras, no primeiro ano em Lisboa após o seu
regresso definitivo de Durban. O diário de 1913, escrito em Português entre 15 de Fevereiro e 3 de Maio,
corresponde ao período da jovem República. Finalmente, o diário de 1915 foi iniciado na língua
portuguesa em 1 de Novembro de 1915, a qual foi substituída três dias depois pela inglesa, que manteria
até ao final, em 7 de Dezembro.
232
Sobre esta questão, Pessoa escreveu no Livro do Desassossego de Bernardo Soares:
«Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias
visíveis, sensualidades incorporadas. […] Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas
de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança,
li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. […] E fui lendo, até ao
fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar,
como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua
majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele
assombro vocálico em que os sons são cores ideais […] aquela grande certeza sinfónica.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento
patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal,
desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que
sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia
simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata,
a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração
greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha» (PESSOA, 1998: 254255).
203
portuguesa, porém, privado de um heterónimo inglês, seria o próprio Fernando Pessoa
que, doravante, assinaria os seus poemas em língua inglesa.
Aprende-se uma segunda língua construindo sobre a realidade indiscutível da
nossa «língua materna». Durante longo tempo a pessoa continua a traduzir na língua
original quaisquer elementos da nova língua que for adquirindo. Só desta maneira a nova
língua poderá começar a ter alguma realidade. À medida que esta realidade começa a
estabelecer-se por si mesma, vai-se tornando possível dispensar a tradução. A pessoa
mostra-se capaz de «pensar» na nova língua. Entretanto, é raro que uma língua aprendida
tarde na vida alcance a inevitável e evidente realidade da primeira língua aprendida na
infância. Daí deriva, sem dúvida, a qualidade afectiva da «língua materna». Mutatis
mutandis, as mesmas características de construção a partir da realidade «caseira», com
ligação à mesma e, à medida que a aprendizagem prossegue, a lenta ruptura desta ligação,
pertencem a outras sequências de aprendizagem na socialização secundária. (BERGER &
LUCKMANN, 1999: 151)
Uma vez que a sua produção literária na língua portuguesa não era levada a
sério, Fernando Pessoa procuraria em Inglaterra o engrandecimento que não conseguia
em Portugal233. Após a desistência de Mário de Sá-Carneiro da revista Orpheu,
Fernando Pessoa não perdeu tempo, escrevendo ao editor londrino John Lane, em 23 de
Outubro de 1915, para lhe propor a publicação de um livro seu de poesia em Inglês234.
Nesta carta, Pessoa revela ter outros «poemas mais longos escritos em Inglês, mas não
poderiam ser impressos num país onde existe uma activa moralidade pública», pelo que
o escritor nem pensava na «possibilidade de serem publicados em Inglaterra» (PESSOA,
1999a: 177).
Além das diligências para editar as suas poesias, Pessoa sondou também o
233
«Nenhum jornal, que eu saiba, se dá ao trabalho de pôr em relevo a produção literária, ou de para ela
estabelecer uma crítica que possa ter esse, ou qualquer, nome, salvo qualquer que seja obsceno. A crítica
corrente nos países onde se lê tem especial interesse em descobrir novos escritores, em descobrir novos
aspectos literários, em, por vezes, [dar] aos consagrados aquelas chicotadas de discordância que os não
deixam adormecer, segundo a sua natural tendência.
Nenhum editor, que eu saiba, se dá ao trabalho de procurar novos escritores, de os lançar, de animar o
mercado do livro com eles. Fazem-no os editores de toda a parte onde se lê, sendo notável o esforço nesse
sentido dos editores ingleses. Aqui não. Não há diferença mental entre o editor e o merceeiro, salvo que o
merceeiro é obrigado, até contra vontade, de ter um bocado mais de escrúpulo na mercadoria que vende
(PESSOA, 1999a: 229-230).
234
Segundo Richard Zenith, John Lane era um cliente inglês para quem Fernando Pessoa fazia traduções.
Em 3 de Novembro de 1915, o escritor anotou no seu diário: «Dia bastante bom; começou com a
recepção do postal de J Lane (insignificante mas agradável)» (PESSOA, 2003: 157). John Lane «editou
muita poesia inglesa moderna», pelo que o escritor lhe propôs a publicação de um livro seu de poemas
ingleses, com cerca de 200 páginas (PESSOA, 1999a: 177). Noutra carta, Pessoa escreveu que a sua
proposta mereceu «um desprezo absoluto», apesar de se ter prontificado a pagar as despesas de edição do
livro (PESSOA, 1999a: 188).
204
editor inglês Frank Palmer sobre as condições de distribuição em Inglaterra de um
suplemento de Orpheu, «uma revista de todas as espécies de literatura superior, de um
quase-futurismo a que nós chamamos aqui interseccionismo»235. O projecto deste
suplemento, de 80 páginas em Inglês, incluía traduções de poemas publicados na revista
trimestral de literatura, bem como poemas ingleses inéditos de Fernando Pessoa. Neste
sentido, o escritor enviou a Frank Palmer um exemplar do segundo número de Orpheu,
procurando saber qual «seria o preço mais alto possível, em Inglaterra, para uma revista
como a que envio», tendo em conta «que o número seria impresso aqui» (PESSOA, 1999a:
191).
A rejeição dos seus poemas pelo editor John Lane levantou outra questão
importante para Pessoa, remetendo para o facto de Orpheu ter «certos poemas e
trabalhos em prosa que são “repreensíveis” de um ponto de vista estritamente moral. No
presente número, a parte central da “Ode Marítima” de Álvaro de Campos está neste
caso». Segundo o escritor, o «pior» que o suplemento inglês de Orpheu teria era um
poema seu, «escrito em Inglês, chamado “Antinous”», do qual juntava uma cópia «para
evitar esclarecimentos longos e insatisfatórios». Na carta a Frank Palmer, Pessoa mostra
reservas quanto ao teor moral deste poema, salientando contudo que «ele não é, na
realidade, tão “inconveniente” como os sonetos de Shakespeare, mas nunca ninguém vê
alguma coisa fundamentalmente», razão pela qual questiona o editor, se «poderia uma
revista ser vendida em Inglaterra com um poema como este». «Suponha que uma revista
ou um livro eram realmente publicados ou introduzidos em Inglaterra trazendo uma tal
composição, o que poderia acontecer?». Os receios do escritor quanto às consequências
legais de uma publicação moralmente “repreensível” eram compreensíveis, devido ao
seu desconhecimento da legislação inglesa. A este respeito, Pessoa informa o editor que
«em Portugal, embora exista uma lei bastante rigorosa para este e outros assuntos do
mesmo género, somente os escritores políticos, e isso apenas em períodos de grande
235
Em 1914, Pessoa seleccionou e traduziu 300 provérbios portugueses para Frank Palmer. Este trabalho
foi encomendado pelo editor inglês em 2 de Outubro de 1913, mas só passados meses o escritor parece ter
começado a tarefa. Com efeito, em 11 de Março de 1914, Pessoa escreveu uma carta ao poeta e
colaborador de A Águia, António Correia de Oliveira, na qual pede «os nomes dos livros dos quais se
serviu para travar conhecimento com os nossos provérbios». «Sei que um deles foi o pequeno volume de
“Provérbios” da Biblioteca do Povo e das Escolas, mas o meu amigo referiu-se a haver outros. São esses
cujos nomes lhe peço, porque antes do fim deste mês tenho que fazer chegar a Inglaterra a minha escolha
traduzida de provérbios portugueses» (PESSOA, 1999a: 107). Pessoa enviou as suas traduções em 30 de
Abril de 1914. Em Agosto, tiveram início as primeiras hostilidades da I Grande Guerra, sendo a
publicação cancelada devido a dificuldades daí resultantes, segundo uma carta do editor para Pessoa com
data de 29 de Outubro (PESSOA, 1999a: 425-426).
205
perturbação, correm algum risco. Do ponto de vista moral, quase toda a espécie de
literatura pode ser publicada, mesmo entrando no claramente obsceno» (PESSOA, 1999a:
192).
Fernando
Pessoa
teria
contactado
também
outros
editores
ingleses,
designadamente Harold Monro, a quem enviou «um pequeno número de poemas» seus
e mais um exemplar de Orpheu, do qual traduziu «Chuva Oblíqua», que fecha o
segundo número da revista. Nesta carta, o escritor refere duas «“plaquettes” de 32
páginas que o senhor edita», considerando o número de poemas enviados «suficientes
para encher uma “plaquette”\» e atribuindo ao editor o papel de juiz da «qualidade e
valor» da sua poesia (PESSOA, 1999a: 194-195). Mais tarde, Pessoa abandonou o projecto
do suplemento da revista Orpheu e retomou a velha ideia de publicar uma antologia,
desta vez uma «Antologia da Poesia Portuguesa “Sensacionista”» traduzida para Inglês
(PESSOA, 1999a: 236). Numa carta para Armando Côrtes-Rodrigues, de 4 de Setembro de
1916, Fernando Pessoa anunciava ao amigo o terceiro número de Orpheu, que deveria
«sair por fins do mês presente»: «É aí que, no fim do número, publico dois poemas
ingleses meus, muito indecentes, e, portanto, impublicáveis em Inglaterra» (PESSOA,
1999a: 220).
Estou agora saindo de um período de esterilidade literária quase total, período que
tem durado muito. Estou-me reconstruindo. Quando tornar a escrever-lhe – o que será
para a outra mala – espero poder dar-me por RECONSTRUÍDO EM SETEMBRO DE
1916. Além disso, vou fazer uma grande alteração na minha vida: vou tirar o acento
circunflexo do meu apelido. Como (nas circunstâncias adiante indicadas) vou publicar
umas coisas em inglês, acho melhor desadaptar-me do inútil, que prejudica o nome
cosmopolitamente.
Vai sair Orpheu 3. É aí que, no fim do número, publico dois poemas ingleses meus,
muito indecentes, e, portanto, impublicáveis em Inglaterra. Outra colaboração do número:
Versos do Camilo Pessanha (a propósito; «não cite isto a ninguém»), versos inéditos do SáCarneiro, A Cena do Ódio do Almada-Negreiros que está actualmente homem de génio em
absoluto, uma das grandes sensibilidades da literatura moderna, prosa do Albino de
Meneses (não sei se v. conhece) e, talvez, do Carlos Parreira, e uma colaboração variada do
meu velho e infeliz amigo Álvaro de Campos.
Orpheu 3 trará, também, quatro hors-textes do mais célebre pintor avançado
português – Amadeu de Sousa Cardoso.
A revista deve sair por fins do mês presente. Para a mala que vem já lhe poderei
dar notícias mais detalhadas. (PESSOA, 1999a: 220-221)
206
Nesta época, Fernando Pessoa parecia ainda fazer o luto do amigo Mário de SáCarneiro, que se suicidara em Abril, referindo a sua «longa história de Depressão, com
detalhes lentes-de-aumentar vindas do Exterior…». Descreve então as causas dessa
«depressão: uma grave doença» da mãe, «o suicídio do Sá-Carneiro» e «a loucura do
Cunha Dias (um rapaz meu antigo amigo, muito falador e vivo, que v. várias vezes deve
ter visto na Brasileira)». Pessoa refere também ao amigo o aparecimento «de fenómenos
de mediumnidade… Isto tudo e a Vida…», ou seja, as sucessivas recusas de editores
ingleses em publicar a sua poesia (PESSOA, 1999a: 219-220). Para Berger e Luckmann, a
experiência da morte de outros significativos estabelece uma situação limite como
consequência da antecipação da própria morte236. Na experiência do luto, o «universo
simbólico protege o indivíduo do terror supremo, conferindo uma legitimação
fundamental às estruturas protectoras da ordem institucional», evitando assim «paralisar
o desempenho contínuo da vida quotidiana» em sociedade (BERGER & LUCKMANN, 1999:
109-110).
Uma função legitimadora estratégica dos universos simbólicos para a biografia
individual é a «localização» da morte. A experiência da morte dos outros e, como
consequência, a antecipação da própria morte, estabelece a situação limite, por excelência,
para o indivíduo. Sem necessidade de entrar em pormenores, a morte estabelece também a
mais aterrorizadora ameaça às realidades tidas como asseguradas da vida quotidiana. A
integração da morte na realidade dominante da existência social tem a maior importância
para qualquer ordem institucional. Esta legitimação da morte é, por conseguinte, um dos
frutos mais importantes dos universos simbólicos. […] Todas as legitimações da morte
devem realizar a mesma tarefa essencial: elas devem capacitar o indivíduo para continuar
a viver em sociedade depois da morte de outros significativos e antecipar a sua própria
morte com o terror mitigado pelo menos o suficiente, de modo a não paralisar o
desempenho contínuo das rotinas da vida quotidiana. (BERGER & LUCKMANN, 1999:
109-110)
Segundo Berger e Luckmann, a identidade é «um fenómeno que emerge da
dialéctica entre indivíduo e sociedade», um elemento-chave da realidade subjectiva,
«formada por processos sociais», a qual, uma vez constituída, «é mantida, modificada
236
«Hans H. Gerth and C. Wright Mills, em Character and Social Structure (Nova Iorque, Harcourt,
Brace and Co, 1953), sugere o termo “outros íntimos” para outros significantes ocupados na manutenção
da realidade, numa fase posterior da vida. Preferimos não usar este termo por causa da sua semelhança
com Intimsphäre que foi muito usado na sociologia recente de língua alemã e que tem uma conotação
bastante diferente» (BERGER & LUCKMANN, 1999: 205).
207
ou mesmo remodelada pelas relações sociais». No seu livro A Construção Social da
Realidade, estes autores argumentam que os tipos de identidade são produtos sociais,
razão pela qual constituem o tema das teorizações em qualquer sociedade, «mesmo
quando são estáveis e a formação das identidades individuais é bastante desprovida de
problemas» (BERGER & LUCKMANN, 1999: 179-180).
A identidade é um elemento-chave evidente da realidade subjectiva e, tal como
toda a realidade subjectiva, encontra-se em relação dialéctica com a sociedade. A
identidade é formada por processos sociais. Uma vez cristalizada, é mantida, modificada ou
mesmo remodelada pelas relações sociais. Os processos sociais implicados na formação e
conservação da identidade são determinados pela estrutura social. Por outro lado, as
identidades produzidas pela interacção do organismo, da consciência individual e da
estrutura social reagem sobre a estrutura social dada, mantendo-a, modificando-a ou
mesmo remodelando-a. As sociedades têm histórias no decurso das quais emergem
identidades específicas. Estas histórias, porém, são feitas por homens também com
identidades específicas. (BERGER & LUCKMANN, 1999: 179)
Em Modernidade e Identidade Pessoal, Anthony Giddens afirma que uma
pessoa com «sentido de auto-identidade razoavelmente estável tem um sentimento de
continuidade biográfica que é capaz de alcançar reflexivamente e, mais ou menos, de
comunicar a outras pessoas». Neste sentido, a «identidade de uma pessoa não se
encontra no comportamento, nem – por muito importante que o sejam –, nas reacções
dos outros, mas na capacidade de manter a continuidade de uma narrativa». Por esta
razão, a «biografia do indivíduo, se ele quiser manter uma interacção regular com outros
no mundo do dia-a-dia, não pode ser totalmente ficcional, deve integrar continuamente
eventos que ocorrem no mundo exterior, e escolhê-los para a “estória” contínua sobre o
self» (GIDDENS, 2001: 51).
Mas o que é ao certo a auto-identidade? Uma vez que o self é um fenómeno algo amorfo, a
auto-identidade não se pode referir meramente à sua persistência ao longo do tempo, da
maneira que os filósofos poderão falar da «identidade» de objectos ou coisas. A
«identidade» do self, em contraste com o self enquanto fenómeno genérico, pressupõe a
consciência reflexiva, É aquilo de que o indivíduo está consciente no termo
«autoconsciência». A auto-identidade, por outras palavras, não é algo que é apenas dado,
como resultado das continuidades do sistema de acção do indivíduo, mas algo que tem de
208
ser rotineiramente criado e sustentado nas suas actividades reflexivas. (GIDDENS, 2001:
48-49)
Segundo Giddens, a «auto-identidade não é um traço distintivo, ou sequer uma
colecção de traços, possuídos pelo indivíduo. É o self tal como reflexivamente
compreendido pela pessoa em termos da sua biografia». Nesta perspectiva, «a
identidade ainda pressupõe continuidade através do tempo e do espaço, mas a autoidentidade é uma continuidade tal como interpretada reflexivamente pelo agente. Ser
uma “pessoa” não é apenas ser um actor reflexivo, mas sim ter um conceito de pessoa»
(GIDDENS, 2001: 49). Pessoa procura reconstruir a sua auto-identidade fazendo o que
considerava ser «uma grande alteração» na sua vida, a qual consistia simplesmente em
«tirar o acento circunflexo» do seu apelido237. O escritor, que em 1888 tinha sido
baptizado na igreja dos Mártires com o nome de Fernando António Nogueira Pessôa,
passaria a assinar «Fernando Pessoa», tendo em conta o seu projecto de publicar em
Inglês.
Como com as outras arenas existenciais, o «conteúdo» da auto-identidade – os
traços a partir dos quais as biografias são construídas – varia social e culturalmente.
Nalguns aspectos isto é suficientemente óbvio. O nome de uma pessoa, por exemplo, é um
elemento primário da sua biografia; as práticas sociais de apelação, o grau em que os
nomes exprimem relações de parentesco, a mudança ou não dos nomes em certos estádios
da vida – todas estas coisas diferem entre culturas. Mas há outras diferenças, mais subtis,
mas também mais importantes. As biografias reflexivas variam quase do mesmo modo que
as estórias – em termos de, por exemplo, forma e estilo. (GIDDENS, 2001: 51-52)
Na perspectiva de Giddens, o nome de uma pessoa «é um elemento primário da
sua biografia», razão pela qual «a mudança ou não dos nomes em certos estádios da
vida» se reveste de um significado particular (GIDDENS, 2001: 51-52). Compreende-se
assim que uma diferença ortográfica subtil no apelido se revista afinal de grande
significação simbólica para Pessoa, na medida em que o destapar do «o» permitiria
aliviar o seu sofrimento, correspondendo ao fim do luto. Esta transformação da
identidade apresenta-se como um gesto libertador que, facilitando a reconstrução da sua
narrativa, permitiria relançar o seu projecto reflexivo. Segundo Giddens, «o projecto
237
Esta ligeira alteração no seu próprio nome remete para a questão do título da revista Orpheu,
confirmando a relevância atribuída pelo escritor aos detalhes ortográficos.
209
reflexivo do self implica a reconstrução emocional do passado, com vista a projectar
uma narrativa coerente para o futuro», razão pela qual o escritor Pessoa esperava dar-se
por «RECONSTRUÍDO EM SETEMBRO DE 1916» (GIDDENS, 1996: 41).
Um sentimento estável de auto-identidade pressupõe os outros elementos da
segurança ontológica – uma aceitação da realidade das coisas e dos outros –, mas não pode
derivar directamente deles. Tal como as outras dimensões existenciais da segurança
ontológica, os sentimentos de auto-identidade são ao mesmo tempo robustos e frágeis.
Frágeis, porque a biografia que o indivíduo mantém reflexivamente em mente é apenas
uma «estória» entre muitas outras estórias potenciais que podiam ser contadas sobre o seu
desenvolvimento como self; robustos, porque um sentido de auto-identidade é com
frequência mantido de forma suficientemente segura como para resistir a tensões grandes
ou transições nos ambientes sociais em que a pessoa se move. (GIDDENS, 2001: 51)
Mantendo coerentemente a continuidade da sua narrativa biográfica, Pessoa
readquiria a segurança ontológica para reconstruir a sua identidade deteriorada238,
reganhando também a confiança necessária para escapar à paralisação criativa. De facto,
segundo Giddens, a «criatividade, que significa a capacidade de agir ou pensar
inovadoramente em relação a modos de actividade preestabelecidos, está intimamente
ligada à confiança. A confiança em si, pela sua natureza, é em certo sentido criativa,
porque implica um compromisso que é um “salto para o desconhecido”, o que significa
uma preparação para abraçar experiências novas» (GIDDENS, 2001: 38). A publicação de
«umas coisas em Inglês» constituiria então o fio condutor do projecto reflexivo do
escritor, razão pela qual pretendia libertar-se do «inútil» acento «que prejudica o nome
cosmopolitamente». Para Giddens, uma «pessoa pode usar a diversidade de modo a
criar uma auto-identidade distinta que incorpora positivamente elementos de diferentes
cenários numa narrativa integrada. Assim, uma pessoa cosmopolita é precisamente
aquela que se fortalece com o facto de se sentir em casa numa variedade de contextos»
(GIDDENS, 2001: 175). Com efeito, numa carta não datada, dirigida ao director do jornal
O Heraldo, de Faro239, Pessoa afirma que o «cosmopolitismo expressa-se em literatura
não pela preocupação cosmopolita (isso não seria uma expressão, mas uma explicação),
mas pela admissão adentro do âmbito literário de todas as formas de sensações, de todos
238
Erving Goffman, Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, Rio de Janeiro,
Zahar Editores, 1982.
239
Carlos Lyster Franco, a quem Pessoa dedicou «O Marinheiro» no primeiro número da revista Orpheu.
210
os feitios de literatura. Isto é, o cosmopolitismo, fenómeno que se dá no espaço, é
representado por um fenómeno literário que se dá no tempo: a escola literária que queira
representar a nossa época, tem de ser aquela que procure realizar o ideal de todos os
tempos, de ser a síntese viva das épocas passadas todas» (PESSOA, 1999a: 224).
A uma arte assim cosmopolita, assim universal, assim sintética, é evidente que
nenhuma disciplina pode ser imposta, que não a de sentir tudo de todas as maneiras, de
sintetizar tudo, de se esforçar por de tal modo expressar-se que dentro de uma antologia da
arte sensacionista esteja tudo o que de essencial produziram o Egipto, a Grécia, Roma, a
Renascença e a nossa época. A arte, em vez de ter regras como as artes do passado, passa a
ter só uma regra – ser a síntese de tudo. (PESSOA, 1966: 124)
V.2.1. A heteronímia como fragmentação do self
Em 24 de Julho de 1915, Fernando Pessoa escreveu a Alfred Braley, editor da
revista Modern Astrology e autor do livro 1001 Notable Nativities, afirmando ser
«estudante de astrologia» e «muitíssimo interessado» no horóscopo de Francis Bacon240.
A curiosidade de Pessoa prendia-se com facto de Alfred Braley referir no seu livro o
horóscopo de Bacon mas não o apresentar, o que lhe despertou no «estudante de
astrologia» o «desejo de ver até que ponto o horóscopo de Bacon regista a sua
característica peculiar de ser capaz de escrever em estilos diferentes». Pessoa pretendia
sobretudo investigar a «faculdade geral de transpersonalização» atribuída, «num grau
extraordinário», a Francis Bacon. A semelhança do escritor inglês com a sua própria
transpersonalização, ou «outramento», revelava-se na heteronímia, resultante da
capacidade de «assumir o carácter de alguém que não existe», mas que era mediador da
sua escrita (PESSOA, 1999a: 170). Daí o interesse do escritor pela personalidade de Francis
Bacon, famoso precisamente devido a essa mesma característica, razão pela qual Pessoa
solicitava ao astrólogo que lhe enviasse o respectivo horóscopo.
240
Francis Bacon (1561-1626) foi um notável filósofo, jurista e cientista, contemporâneo de William
Shakespeare, que chegou a chanceler de Inglaterra. Para Manuela Parreira da Silva, a «atribuição a
Francis Bacon de parte da obra dramática de Shakespeare, questão que interessou e ocupou Fernando
Pessoa durante vários anos, teria sido lançada por Herbert Lawrence, já em 1796, no seu livro The Life
and Adventure of Common Sense. Diversos livros sobre o tema foram publicados nas primeiras décadas
do século XX, alguns dos quais Pessoa possuía na sua biblioteca» (PESSOA, 1999a: 434). Segundo
Richard Zenith, «Pessoa, fascinado por esta hipótese, elaborou uma bibliografia com mais de 30 títulos
sobre a “Questão Shakespeare-Bacon” (144-D2/16-17), datável de 1912 ou 1913, e deixou muitos trechos
para um ensaio sobre a matéria» (PESSOA, 2003: 138).
211
O meu interesse pelo horóscopo de Francis Bacon deve-se a várias circunstâncias,
entre as quais a controvérsia Shakespeare-Bacon é apenas uma241. O principal interesse
resulta de um desejo de ver até que ponto o horóscopo de Bacon regista a sua característica
peculiar de ser capaz de escrever em estilos diferentes (un facto que mesmo os nãobaconianos admitem) e a sua faculdade geral de transpersonalização.
Eu possuo (em que grau, ou com que qualidade, não me cabe a mim dizê-lo) a
característica a que aludo. Sou escritor, e sempre achei impossível escrever na minha
própria personalidade; sempre dei por mim, consciente ou inconscientemente, a assumir o
carácter de alguém que não existe, e através de cuja mediação imaginária escrevo. Desejo
estudar a que é que isto é devido, pela posição ou aspecto e estou, portanto, interessado no
horóscopo de um homem que é conhecido por possuir esta faculdade num grau
extraordinário. (PESSOA, 1999a: 170, tradução do Inglês)
«A questão existencial da auto-identidade liga-se à natureza frágil da biografia
que o indivíduo “fornece” sobre si mesmo» (GIDDENS, 2001: 51) na medida em que, no
«projecto reflexivo do self, a narrativa é eminentemente frágil» (GIDDENS, 2001: 171). «O
self na sociedade moderna é débil, quebradiço, fracturado, fragmentado». Nestas
condições, «o self deixa efectivamente de existir: o único sujeito é um sujeito
descentrado que encontra a sua identidade nos fragmentos da linguagem ou do
discurso» (GIDDENS, 2001: 156). Mais tarde, em 24 de Agosto de 1930, Pessoa revelaria a
fragmentação do self num poema que descreve os seus fragmentos como estilhaços do
ser. Com «a alma em pedaços», o poeta torna-se «impreciso e diverso», não se
reconhecendo nessas «coisas dispersas» (PESSOA, 2005b: 380-381):
[…]
Do alto de ter consciência
241
Mais tarde, em 20 de Junho de 1919, Pessoa escreveu uma carta a Frank Woodward, co-autor,
juntamente com o seu irmão Parker, do livro Secret Shakespearean Seals, que assinaram a obra
pseudonimamente como Fratres Rosae Crucis (Irmãos Rosa Cruz). Pessoa pretendia adquirir este livro
que se encontrava aparentemente esgotado: «Estou muito interessado na controvérsia em torno da
identidade do autor das obras de Shakespeare, e nos curiosos argumentos apresentados a favor do facto
dessas obras terem sido escritas por Fra. Bacon, ou por uma sociedade de dramaturgos ou de escritores
sob a sua orientação (como na última atribuição, francesa), pelo Lord Derby. A atribuição ao Conde de
Rutland (por Celestin Demblon) parece-me inaceitável. O livro do seu irmão, The Early Life of Lord
Bacon, é um dos que tenho sobre esse assunto» (PESSOA, 1999a: 293). O livro que Pessoa pretendia
adquirir, Secret Shakespearean Seals: Revelations of Rosacrucian Arcana, discoveries in the Shakespeare
plays, sonnets and work, printed circa 1586-1740, of «secreti sigilli», concealed author’s marks and
signs, by Fratres Rosae Crucis, Nottingham, Herbert Jenkins, 1916, bem como a outra obra referida, The
Early Life of Lord Bacon: Newly Studied by Parker Woodward, London, Gay and Bird, 1902, integram a
biblioteca pessoal de Fernando Pessoa.
212
Contemplo a terra e o céu,
Olho-os com inocência:
Nada que vejo é meu.
Mas vejo tão atento
Tão neles me disperso
Que cada pensamento
Me torna já diverso.
E como são estilhaços
Do ser, as coisas dispersas
Quebro a alma em pedaços
E em factos diversos.
[…]
(PESSOA, 2005b: 380-381)
Segundo Giddens, a «melhor maneira de analisar a auto-identidade na maior
parte das situações é por contraste com indivíduos cujo sentido de self esteja fracturado
ou desabilitado». Desta forma, seria possível interpretar a complexa e paradoxal
personalidade de Fernando Pessoa através da reconstituição da sua narrativa biográfica.
Este instrumento heurístico permitiria explicitar, pelo menos parcialmente, a sua notável
criação literária de mais de setenta heterónimos, semi-heterónimos e pseudónimos, bem
como a sua obra incompleta e fragmentária. Com efeito, a perda do pai e do irmão,
ainda criança, e mais tarde das irmãs, bem como as duas ressocializações de Pessoa,
entre Portugal e a África do Sul, remetem para reconfigurações da sua auto-identidade,
como adaptações do self a uma realidade social desconhecida ou ameaçadora. Neste
sentido, o convívio com a morte de outros significativos poderia ter afectado o seu
«casulo protector», originando uma série de operações adaptativas necessárias para
recuperar a segurança ontológica, com evidentes implicações na auto-identidade do
escritor.
O desenvolvimento de ambientes relativamente seguros de vida quotidiana é de
importância central para a manutenção de sentimentos de segurança ontológica, segurança
que, por outras palavras, é sustida primeiramente pela própria rotina. Embora a existência
diária seja em muitos sentidos mais controlada e previsível nas condições sociais modernas,
por comparação com a generalidade das culturas pré-modernas, o enquadramento da
segurança ontológica torna-se frágil. O casulo protector depende cada vez mais da
213
coerência das próprias rotinas ao serem ordenadas dentro do projecto reflexivo do self.
Vastas áreas da vida do dia-a-dia, ordenadas através dos sistemas abstractos, são seguras
no sentido de Max Weber de fornecerem um ambiente de acção «calculável». Porém, as
próprias rotinas que fornecem essa segurança não têm significado moral e [podem] vir a
ser experimentadas como práticas «vazias» ou, alternativamente, podem parecer
esmagadoras. Quando as rotinas, seja porque razão for, se disrompem radicalmente, ou
quando alguém se abalança para alcançar um maior controlo reflexivo sobre a sua autoidentidade, é provável que as crises existenciais ocorram. (GIDDENS, 2001: 154-155)
Giddens aborda a questão existencial do ser como negação do não-ser, um tema
com longa tradição filosófica. Nesta dialéctica, a «confiança básica é um mecanismo de
ocultação em relação a riscos e perigos nos cenários circundantes da acção e da
interacção. É o principal apoio emocional de uma carapaça defensiva ou casulo
protector que todos os indivíduos normais carregam consigo». Para o sociólogo, a
confiança básica é também «a condição para a elaboração da auto-identidade tanto
quanto o é para a identidade de outras pessoas e objectos», o «espaço potencial que
permite a emergência cedo (e inconsciente) de um não-eu através da separação»
(GIDDENS, 2001: 37-39). Compreende-se assim porque Fernando Pessoa, «consciente ou
inconscientemente», não pudesse separar-se dos seus heterónimos, definindo-se como
«uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço».
NÃO SEI QUEM SOU, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente
outro do que um eu que não sei se existe.
Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua
atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu
não tenha, nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo.
Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões
falsas uma única anterior realidade que não está em nenhum e está em todos.
Como o panteísta se sente onda e astro e flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me
viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os
homens, incompletamente de cada, individuado por uma suma de não-eus sintetizados num
eu postiço. (PESSOA, 2003: 151)
A fragmentação da sua identidade de em múltiplos selves permite entender por
que razão Fernando Pessoa considerava impossível escrever na sua própria
214
personalidade, dando por si, «consciente ou inconscientemente, a assumir o carácter de
alguém que não existe, e através de cuja mediação imaginária» escrevia (PESSOA, 1999a:
170).
Uma vez quebradas as rotinas que proporcionam segurança ontológica, as quais
são desprovidas de moral, mais difícil se torna enquadrá-las no projecto reflexivo do
self, podendo ser experimentadas como práticas vazias. Não seria de estranhar, portanto,
a afirmação de Pessoa, aparentemente paradoxal, segundo a qual ele seria «variamente
outro do que um eu que não sei se existe». O escritor sentia-se múltiplo, «uma suma de
não-eus sintetizados num eu postiço», interpretando metaforicamente a sua
reflexividade do self, em «inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões
falsas uma única central realidade que não está em nenhum e está em todos» (PESSOA,
2003: 151).
NÃO SEI QUANTAS ALMAS tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce, e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
[…]
(PESSOA, 2005b: 375)
V.2.2. A heteronímia como universo simbólico
A metáfora dos espelhos remete para o que Giddens designa como «narcisismo»
e que, na terminologia de Berger e Luckmann, constitui o «individualismo» resultante
da possibilidade de «escolha individual entre realidades e identidades discrepantes».
215
Berger e Luckmann abordam a problemática da diversidade e unidade do self, uma vez
que, quando «mundos muito discordantes são mediados na socialização primária o
indivíduo defronta-se com a escolha de identidades tipificadas apreendidas por ele como
autênticas possibilidades biográficas». Para estes autores, por «uma espécie de efeito de
espelho», o «“individualista” emerge como um tipo social especial, que tem pelo menos
a possibilidade de migrar entre diversos mundos exequíveis e que construiu com
intenção, deliberada e consciente, um eu com “material” fornecido por um grande
número de identidades que estavam ao seu alcance». Assim se poderá explicar
sociologicamente a emergência dos heterónimos em Fernando Pessoa, como universo
simbólico ao seu alcance num «grande número de identidades» (BERGER & LUCKMANN,
1999: 175-177).
Afirmámos que o insucesso na socialização levantava a questão de «Quem sou
eu?»
242
[.] No contexto sócio-estrutural, em que a socialização mal sucedida é reconhecida
como tal, a mesma questão põe-se ao indivíduo socializado com sucesso, em virtude da
reflexão que ele faz sobre os outros mal socializados. Mais cedo ou mais tarde encontrará
os que têm um «eu oculto», os «traidores», os que alternaram ou estão a alternar entre
mundos discordantes. Por uma espécie de efeito de espelho, a questão pode vir a aplicar-se
a ele próprio, ao princípio de acordo com a fórmula «Graças a Deus que não sou assim», e
no fim talvez pela fórmula «Porquê só eles, e não eu?». Isto abre uma caixa de Pandora de
escolhas «individualistas», que por fim se generalizam quer o percurso biográfico do
indivíduo tenha sido determinado pela escolha «certa» quer pela «errada». O
«individualista» emerge como um tipo social especial, que tem pelo menos a possibilidade
de migrar entre diversos mundos exequíveis e que construiu com intenção, deliberada e
consciente, um eu com «material» fornecido por um grande número de identidades que
estavam ao seu alcance. (BERGER & LUCKMANN, 1999: 177)
242
Noutro poema, intitulado «Lisbon Revisited (1926)», Pessoa interroga-se:
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi e aqui voltei?
[…]
Ou somos, todos os Eu que estive aqui e que estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?
[…]
Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim
(PESSOA, 2002: 301-302)
216
Segundo Berger e Luckmann, uma «situação importante que conduz à
socialização imperfeita surge quando existem discordâncias entre a socialização
primária e secundária. A unidade da socialização primária243 é mantida, mas na
socialização secundária244 aparecem realidades e identidades opostas, como opções
subjectivas». Neste sentido, a socialização secundária do jovem em Durban, na família
recomposta, teria sido contrastante com a socialização primária em Lisboa, na sua
família de origem. Desta forma, não apenas a perda do pai e do irmão, mas também a
partida do pequeno Fernando para África, com sete anos de idade, na companhia da
mãe, que enviuvara e recasara, parece ter influenciado fortemente a fragmentação da sua
identidade245. A nova realidade social e cultural encontrada pela criança em África e a
ressocialização na língua inglesa teria originado a emergência das «identidades
fantasiadas» dos seus heterónimos pela «objectivação, ao nível da imaginação, de uma
identidade diferente da atribuída» (BERGER & LUCKMANN, 1999: 177).
Uma terceira situação importante que conduz à socialização imperfeita surge
quando existem discordâncias entre a socialização primária e a secundária. A unidade da
socialização primária é mantida, mas na socialização secundária aparecem realidades e
identidades opostas, como opções subjectivas. Como é natural, as opções são limitadas pelo
contexto sócio-estrutural do indivíduo. Por exemplo, ele pode desejar vir a ser um
cavaleiro, mas a sua posição social torna esta ideia uma louca ambição. Quando a
socialização secundária se diferenciou até ao ponto em que se torna possível a
243
«A socialização primária termina quando o conceito do outro generalizado (e tudo o que o acompanha)
ficou estabelecido na consciência do indivíduo. Neste momento, é um membro efectivo da sociedade e na
posse subjectiva de uma personalidade e de um mundo. Mas essa interiorização da sociedade, da
realidade e da identidade não se faz de uma vez por todas. A socialização nunca é total nem nunca está
completa. Isto apresenta-nos dois outros problemas: primeiro, como é que é mantida na consciência a
realidade interiorizada na socialização primária? E, segundo, como ocorrem as novas interiorizações, ou
socializações secundárias, na biografia posterior do indivíduo?» (BERGER & LUCKMANN, 1999: 145).
244
«A socialização secundária é a interiorização de “submundos” institucionais ou baseados em
instituições. A extensão e carácter destes são portanto determinados pela complexidade da divisão do
trabalho e a concomitante distribuição social do conhecimento. […] A socialização secundária exige a
aquisição de vocabulários específicos das funções, o que significa, antes de mais, a interiorização de
campos semânticos que estruturam interpretações e condutas de rotina numa área institucional. Ao
mesmo tempo, são também adquiridas “compreensões tácitas”, avaliações e tonalidades afectivas desses
campos semânticos. Os “submundos” interiorizados na socialização secundária são, em geral, realidades
parciais em contraste com o “mundo-base” adquirido na socialização primária. Contudo, eles também são
realidades mais ou menos coerentes, caracterizados por componentes normativos e afectivos, assim como
cognitivos» (BERGER & LUCKMANN, 1999: 145-146).
245
«I NOTICED WITHIN myself the gradual and awful differentiation of the world and of myself; the
difference between men and me was greater than ever. Family affections – my family’s to me – took [on]
a cold look, a painful appearance, before my warmth of affection to all mankind. A disgust of living
invaded my soul; I grew inimical to men’s opinions, loving mankind deeply all the while» (PESSOA,
2003: 60).
217
desidentificação subjectiva do lugar do indivíduo na sociedade e quando, ao mesmo tempo,
a estrutura social não permite a realização da identidade subjectiva escolhida, dá-se um
interessante desenvolvimento. A identidade escolhida torna-se uma identidade fantasiada,
objectivada dentro da consciência do indivíduo como o seu «eu real». Pode-se admitir que
as pessoas sempre sonharam com desejos impossíveis de serem realizados, e coisas assim. A
peculiaridade desta fantasia reside na objectivação, ao nível da imaginação, de uma
identidade diferente da atribuída de maneira objectiva e já interiorizada, na socialização
primária. (BERGER & LUCKMANN, 1999: 177)
Na conhecida carta para Adolfo Casais Monteiro, escrita em 13 de Janeiro de
1935, a gramática argumentativa que Pessoa utilizou para justificar a emergência dos
seus heterónimos parece confirmar as observações de Berger e Luckmann. Quando «a
estrutura social não permite a realização da identidade subjectiva escolhida», ela «tornase uma identidade fantasiada, objectivada dentro da consciência do indivíduo como o
seu “eu real”» (BERGER & LUCKMANN, 1999: 177). Compreende-se assim que o pequeno
Fernando tivesse «a tendência para criar» em seu redor «um mundo fictício», universo
simbólico «de amigos e conhecidos que nunca existiram». E no entanto, as «várias
figuras irreais» desse mundo imaginário, «igual a este mas com outra gente», seriam
para a criança tão visíveis como a vida real (PESSOA, 1999a: 341). «Como é natural, as
opções são limitadas pelo contexto sócio-estrutural do indivíduo. Por exemplo, ele pode
desejar vir a ser um cavaleiro, mas a sua posição social torna esta ideia uma louca
ambição» (BERGER & LUCKMANN, 1999: 177). De facto, passados quarenta anos, a
primeira «identidade fantasiada» de que Pessoa se recordava era um tal Chevalier de
Pas246, que «escrevia cartas dele» a si próprio.
Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me
cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente
não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser
dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de
precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais
que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos,
porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de
ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que
me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o
meu primeiro conhecido inexistente – um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por
246
«Cavaleiro do Nada».
218
quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda
conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com
menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha
estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas… Coisas que
acontecem a todas as crianças? Sem dúvida – ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo
ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que
não foram realidades.
Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com
outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida
já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou
outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente,
espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história
acrescentava, e cuja figura – cara, estatura, traje e gesto – imediatamente eu via diante de
mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas
que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto,
vejo… E tenho saudades deles. (PESSOA, 1999a: 341-342)
V.2.3. Os heterónimos como papéis sociais
Na perspectiva de Berger e Luckmann, a «tipificação das formas de acção exige
que estas tenham um sentido objectivo, o que por sua vez requer uma objectivação
linguística». Para os sociólogos, as acções e o seu sentido podem ser apreendidos
separadamente dos seus desempenhos individuais e dos processos subjectivos
associados. Tal como um «guião não escrito», os «actores corporalizam papéis e
concretizam o drama ao representá-lo num determinado palco». Neste sentido, é
possível «falar de papéis logo que esta espécie de tipificação ocorre no contexto de um
património objectivado de conhecimentos, comum a uma colectividade de actores».
Contudo, quando «os indivíduos começam a reflectir sobre estes assuntos, enfrentam o
problema de reunir as várias representações num todo coerente que faça sentido»
(BERGER & LUCKMANN, 1999: 83-86). O universo simbólico será então concebido como
«matriz de todos os significados com objectivação social» que engloba «toda a biografia
do indivíduo».
O universo simbólico é concebido como a matriz de todos os significados com
objectivação social, e reais ao nível subjectivo. Toda a sociedade histórica e toda a biografia
do indivíduo são vistas como acontecimentos que se passam dentro deste universo. O que
tem particular importância é que as situações marginais da vida do indivíduo (marginais
219
no sentido de não estarem incluídas na realidade da existência quotidiana da sociedade) são
também abrangidas pelo universo simbólico. Tais situações são vividas nos sonhos e nas
fantasias como áreas de significação destacadas da vida diária e dotadas de uma realidade
própria. No interior do universo simbólico estes domínios separados da realidade
integram-se numa totalidade dotada de sentido, que os «explica» e talvez também os
justifique […]. O universo simbólico, como é evidente, vai sendo construído através de
objectivações sociais. No entanto, a sua capacidade de atribuição de significações excede em
muito o domínio da vida social, de modo que o indivíduo pode «situar-se» nele, mesmo nas
suas mais solitárias experiências. (BERGER & LUCKMANN, 1999: 105)
A metáfora teatral, com os seus conceitos de actor, drama e papel social, pode
ser mobilizada para interpretar os heterónimos como «papéis sociais» representados por
Fernando Pessoa. O «universo simbólico» coerente da heteronímia pessoana resultaria
assim do diálogo ou interacção literária entre os vários heterónimos e até do ortónimo,
como sistema estruturado de subpersonalidades numa «totalidade dotada de sentido»
que o legitima. «A sua formação na consciência significa que o indivíduo se identifica
agora não só com os outros concretos mas com uma generalidade de outros, isto é, com
uma sociedade» (BERGER & LUCKMANN, 1999: 110). A heteronímia, enquanto estrutura
do universo simbólico de Fernando Pessoa, permite compreender que ele se sentisse
«vários seres» e vivesse «vidas alheias», uma vez que os «papéis são tipos de actores
num tal contexto» (BERGER & LUCKMANN, 1999: 84). Nesta perspectiva, os heterónimos,
com as suas biografias e personalidades diferenciadas, constituem uma sociedade de
escritores, um «drama em gente» ou conjunto de personagens interactivas e dialogantes,
num todo coerente de papéis sociais dotados de sentido e interpretados por Pessoa247.
Isto tem consequências muito importantes para a auto-experiência. No decurso da
acção há uma identificação do próprio com o sentido objectivo das acções. […] Depois de
ocorrer a acção há ainda uma outra consequência importante, quando o actor reflecte
sobre a sua acção. Agora uma parte do eu é objectivada como o executante desta acção,
uma vez mais com o eu total um tanto ou quanto não identificado com a acção executada
[…]. Por outras palavras, um segmento da própria personalidade é objectivado em termos
de tipificações sociais válidas. Este segmento é o verdadeiro «eu social» que é vivenciado de
modo subjectivo como distinto do eu na sua totalidade, chegando mesmo a confrontar-se
com este. Este importante fenómeno, que permite um «diálogo» interno entre os diferentes
247
«Fernando Pessoa reparte-se em vários sêres, mais conscientes uns, menos conscientes outros, mas
todos lógicos e coerentes consigo próprios» (SIMÕES, 1929: 183).
220
segmentos do eu, será abordado de novo quando examinarmos o processo pelo qual o
mundo construído em sociedade se interioriza na consciência individual. (BERGER
LUCKMANN, 1999: 83-84)
V.3.
Um destino que pertence a outra lei
Depois do abandono escolar, em 1907, Fernando Pessoa trabalhou em diversas
empresas e escritórios como correspondente comercial, aproveitando os conhecimentos
e competências adquiridos em Durban. Ao longo dos anos foi acumulando experiência
profissional e recursos sociais que alimentaram a sua fórmula de investimento no
mundo comercial. Apesar do desaire da sua tipografia, em 1910, Pessoa não desistiu de
ser «homem de acção», investindo a sua qualificação profissional e capacidade de
trabalho em diversas empresas. Só ou acompanhado por sócios, o empresário procurou
o engrandecimento no mundo comercial, em negócios aparentemente lucrativos que
nada teriam a ver com literatura, como as concessões de exploração mineira ou as
comissões e representações de produtos industriais fabricados no estrangeiro. Contudo,
enquanto ser inspirado, Pessoa não teria o oportunismo indispensável a esta fórmula de
investimento, nem possuía a relação de grandeza do mundo comercial, pelo que todos
os seus negócios tiveram um destino algo semelhante à malograda Empresa Íbis. Neste
âmbito, são de referir iniciativas como a firma F. A. Pessoa, fundada em 1917, um
escritório de comissões e consignações que trespassou no ano seguinte, ou a empresa F.
N. Pessoa, que manteve actividade de 1922 a 1925 (SOUSA, 2010: 75-100).
Vivendo com maiores dificuldades desde a partida da sua tia para a Suíça, em
1919 o escritor tinha sido relegado para quartos alugados na periferia da cidade. Nas
actividades empresariais que desenvolveu, o escritor teria sido influenciado pelo seu
primo e amigo Mário Nogueira de Freitas (1891-1932), filho da tia «Anica», que fundou
e dirigiu diversas firmas em que Pessoa participou activamente. Nos finais de 1919, foi
numa destas empresas de vida efémera que Pessoa conheceu a empregada de escritório
Ofélia Queiroz, que contava então 19 anos de idade248. Ao longo de 1920, o escritor
248
Num depoimento recolhido muito mais tarde pela sua sobrinha-neta, Maria da Graça Queiroz, filha do
poeta presencista e amigo de Pessoa Carlos Queiroz, Ofélia recorda a sua relação com Fernando Pessoa:
«Era um negócio de brocas, na Rua da Assunção, 42, 2.º: “Félix, Valladas & Freitas, Lda.”». […] O
Fernando não era propriamente empregado da casa, não sei mesmo se ganhava alguma coisa. Ajudava o
primo na correspondência da firma. Traduzia directamente para francês e inglês o que o primo ditava em
português. Como se sabe, o Fernando falava muitíssimo bem, principalmente, o Inglês. Os amigos
diziam, por graça, que “ele até pensava em Inglês”» (PESSOA, 2001: 17-18).
221
manteve uma relação afectiva com esta mulher, doze anos mais nova, mas romperia o
namoro na sequência do regresso da sua família a Lisboa, em Março de 1920, após o
falecimento do padrasto. Segundo Ofélia Queiroz, a relação documentada pela
correspondência trocada entre os namorados, «durou assim até Novembro de 1920. A
sua última carta data de 29 desse mês. Aos poucos, ele foi-se afastando, até que
deixámos completamente de nos ver. E isto sem qualquer razão concreta. Ele esteve uns
dias sem aparecer nem escrever, porque dizia que estava mal da cabeça e queria ir para
o manicómio» (PESSOA, 2001: 40). Com efeito, em 15 de Outubro de 1920, Pessoa
escrevera a Ofélia que tencionava «ir para uma casa de saúde para o mês que vem, para
ver se encontro ali um certo tratamento que me permita resistir à onda negra que me está
caindo sobre o espírito. Não sei o resultado do tratamento – isto é, não antevejo qual
possa ser»249.
Os grandes do mundo inspirado são recorrentemente considerados loucos
quando vistos a partir de outros mundos, uma vez que, escapando às convenções,
quebram as rotinas e protocolos destes mundos que se regem por diferentes princípios
de equivalência. Porém, na sua carta de ruptura com Ofélia, escrita em 29 de Novembro
de 1920, Pessoa justifica a separação, afirmando que o seu «destino pertence a outra
Lei, de cuja existência a Ofelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à
obediência a Mestres que não permitem nem perdoam»250 (PESSOA, 2001: 127-131). A lei
referida por Pessoa seria o princípio superior comum do mundo inspirado, a efusividade
da inspiração, o qual difere radicalmente do mundo doméstico projectado pela
namorada, cujo princípio superior comum consiste na geração a partir da tradição. A
«razão concreta» para a separação, cuja existência Ofélia desconhecia, prender-se-ia
249
Esta intenção parece ter sido adiada durante vários anos. Numa carta para destinatário não
identificado, com data de 31 de Agosto de 1925, Pessoa escreveu: «Creio estar sofrendo um acesso –
ligeiro, suponho, e, se assim é, curável – de loucura psicasténica. Como, se é certo o que de mim presumo
– e se não é certo, é provável que o meu diagnóstico de leigo seja brando –, é recomendável o
internamento em manicómio, e o Decreto de 11 de Maio de 1911 permite, num número qualquer de um
dos seus artigos, que o próprio doente requeira esse internamento, vinha pedir-lhe o favor de me dizer
como e a quem esse requerimento se faz, e com que documentos, se alguns são desde logo precisos, deve
ser fundamentado» (PESSOA, 1999b: 87-88).
250
Como que autorizando a crítica de Nordau e Dantas aos escritores «degenerados», nesta carta de
despedida, Pessoa retoma o misticismo que o acompanhou ao longo da vida e que parece emergir em
momentos de depressão, angústia ou indecisão. Segundo o testemunho citado de Clifford Geerdts, já em
1907 o jovem Pessoa lhe enviara uma carta na qual se queixava de «fardos espirituais e materiais de uma
extrema adversidade» (PESSOA, 2003: 397). Noutro trecho também já citado, numa carta para Armando
Côrtes-Rodrigues de 19 de Janeiro de 1915, pouco antes da publicação da revista Orpheu, Pessoa revela
outra «crise psíquica», manifestando ao amigo a sua «sensibilidade cada vez mais profunda» e a sua
«consciência cada vez maior da terrível e religiosa missão que todo o homem de génio recebe de Deus
com o seu génio» (PESSOA, 1999a: 140).
222
com o compromisso matrimonial e as convenções domésticas que ameaçam o mundo
inspirado, o qual se rege por diferentes princípios de equivalência. Seria esta a principal
razão para Pessoa se afastar da namorada, sacrificando a estabilidade proporcionada
pelo mundo doméstico para manter a liberdade criativa da inspiração.
Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a
cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor.
Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infancia, que se amaram um
pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras affeições e outros caminhos,
conservam sempre, num escaninho da alma, a memoria profunda do seu amor antigo e
inutil.
Que isto de «outras affeições» e de «outros caminhos» é consigo, Ophelinha, e não
commigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existencia a Ophelinha nem sabe, e
está subordinado cada vez mais á obediência a Mestres que não permittem nem perdoam.
Não é necessário que comprehenda isto. Basta que me conserve com carinho na
sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha. (PESSOA, 2001: 130131).
V.3.1. A tensão entre os mundos inspirado e doméstico
Em 1929, Fernando e Ofélia reataram a sua relação através de Carlos Queiroz251
(1907-1949), sobrinho de Ofélia e amigo de Pessoa, mas desta vez o namoro,
interrompido durante nove anos, durou menos. Enquanto numa carta, de 28 de Maio de
1920, o escritor revelava a Ofélia que «nisto tudo, ligo só importância a ti e a mim, não
me importando o resto para nada», em 29 de Setembro de 1929, Pessoa afirma que a sua
vida girava em torno da obra literária, «boa ou má, que seja, ou possa ser», pelo que
tudo o mais teria para ele «um interesse secundário», apesar de apreciar «muitíssimo» a
índole e o carácter dela. «Se casar, não casarei senão consigo. Resta saber se o
casamento, o lar (ou o que quer que lhe queiram chamar) são coisas que se coadunem
com a minha vida de pensamento. Duvido. Por agora, e em breve, quero organizar essa
vida de pensamento e de trabalho meu» (PESSOA, 2001: 150). A incompatibilidade entre a
vida familiar e a criação literária remete para a estreita relação entre a vida e a obra de
Fernando Pessoa, designadamente no citado poema «Lisbon Revisited (1923)», no qual
251
José Carlos Queiroz Nunes Ribeiro foi um importante poeta do movimento presencista. Amigo de
Fernando Pessoa, a ele se deve a ligação entre a geração da revista Orpheu e a da revista coimbrã
Presença, dirigida José Régio e João Gaspar Simões, biógrafo de Pessoa e da qual foi, mais tarde,
também director.
223
Álvaro de Campos pergunta se o queriam «casado, fútil, quotidiano e tributável»252.
Uma vez que, segundo o escritor, «o casamento seria um estorvo» para a sua «vida de
pensamento», o alter ego afirma que se «fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a
vontade», mas sendo ele um «doido, com todo o direito a sê-lo», que tivessem paciência
e fossem para o diabo sem ele, ou então que o deixassem ir sozinho para o diabo. «Para
que havemos de ir juntos?» (CONTEMPORANEA 8: 92).
De resto, a minha vida gira em torno da minha obra litteraria – boa ou má, que seja, ou
possa ser. Tudo o mais na vida tem para mim um interesse secundario: ha coisas,
naturalmente, que estimaria ter, outras que tanto faz que venham ou não venham. É
preciso que todos, que lidam comigo, se convençam de que sou assim, e que exigir-me os
sentimentos, aliás muito dignos, de um homem vulgar e banal, é como exigir-me que tenha
olhos azuis e cabello louro. E estar a tratar-me como se eu fôsse outra pessoa não é a
melhor maneira de manter a minha affeição. É preferível tratar assim quem seja assim, e
nesse caso é «dirigir-se a outra pessoa» ou qualquer phrase parecida.
Gosto muito – mesmo muito – da Ophelinha. Aprecio muito – muitissimo – a sua
indole e o seu caracter. Se casar, não casarei senão consigo. Resta saber se o casamento, o
lar (ou o que quer que lhe queiram chamar) são coisas que se coadunem com a minha vida
de pensamento. Duvido. Por agora, e em breve, quero organizar essa vida de pensamento e
de trabalho meu. Se a não conseguir organizar, claro está que nunca sequer pensarei em
pensar em casar. Se a organizar em termos de ver que o casamento seria um estorvo, claro
que não casarei. Mas é provável que assim não seja. O futuro – e é um futuro próximo – o
dirá. (PESSOA, 2001: 150)
Para aceder à grandeza inspirada é necessário sacrificar-se à incerteza, rejeitando
o que possa impedir a inspiração, quando esta se manifesta inesperadamente, pois tudo
o que seja estável e de longa duração, como os compromissos a longo prazo, constitui
um empecilho no mundo inspirado. Neste contexto, os laços de dependência que unem
as pessoas e que as tornam grandes no mundo doméstico são incompatíveis com a
grandeza inspirada. «A exigência inspirada de “tudo abandonar” para seguir a sua
própria via, para se consagrar por inteiro, conduz também à crítica do peso dos laços
sociais e das grandezas domésticas» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 293). Assim se
percebe a renitência de Pessoa face aos avanços de Ofélia e por que razão ele duvidava
252
Já em 1906 o jovem Pessoa tencionava escrever um «panfleto contra o casamento – a instituição toda,
tanto civil como religiosa». Com efeito, no espólio pessoano da Biblioteca Nacional de Portugal, existem
dois textos que, possivelmente, foram escritos para este panfleto: «On the Institution of Marriage»
(BNP/23-13v) e Dissertation Against Marriage» (BNP/134B-28v) (PESSOA, 2003: 36-37).
224
que a vida conjugal fosse compatível com a sua «vida de pensamento». A tensão entre o
mundo inspirado e o doméstico advém, não apenas das relações hierárquicas neste
mundo restringirem a necessária independência dos criadores, mas também da
instabilidade do mundo inspirado, que perturba as relações estáveis do mundo
doméstico. Desta forma, para Fernando Pessoa, «o casamento seria um estorvo», pelo
que nunca pensaria «em pensar em casar», uma vez que a sua vida girava em torno da
sua obra. Acreditando no valor universal da singularidade como relação de grandeza, o
escritor retomou o seu projecto reflexivo, recusando a cerimónia familiar do casamento,
prova modelo que o engrandeceria no mundo doméstico, mas que o diminuiria como ser
inspirado. Entre a vida familiar, com as responsabilidades e obrigações decorrentes da
manutenção do lar, e a sua «vida de pensamento», Pessoa optou pela divagação do
espírito, indispensável à grandeza inspirada.
A falta de acordo entre os dois seres tornou-se mais evidente na
imprevisibilidade dos seus encontros. Em 25 de Setembro de 1929, Pessoa escreveu
uma carta a Ofélia, assinada por Álvaro de Campos, e no dia seguinte enviou nova
missiva para marcar um encontro, desta vez em seu próprio nome. Porém, dando-se «a
circunstância de o Sr. Eng. Álvaro de Campos ter que me acompanhar amanhã durante
grande parte do dia, não sei se será possível evitar a presença – aliás agradável – desse
senhor». Pessoa continua o jogo que Ofélia parece aceitar: «O velho amigo meu, em
quem acabo de falar, tem, aliás, qualquer coisa que lhe dizer. Recusa-se a fazer-me
qualquer explicação, mas espero e confio que, na sua presença, terá ocasião de me dizer,
ou lhe dizer, ou nos dizer, de que se trata». Após ter manifestado dúvidas sobre a
compatibilidade entre o casamento e a sua condição de escritor, Pessoa retoma a
justificação da primeira ruptura do namoro, afirmando reiteradamente a sua loucura a
Ofélia253, inspirado pelo «engenheiro doido». Em 2 de Outubro de 1929, numa carta
253
O receio da demência foi recorrente na vida de Fernando Pessoa, que esconjurou os seus medos
transferindo a loucura para Álvaro de Campos. Em 30 de Setembro de 1929, Pessoa escreveu a João
Gaspar Simões: «Peço que me desculpe a demora de uns dias a responder-lhe, e a incoerência da própria
resposta. Tenho estado sujeito, estes últimos dias, a tempestades mentais, que conto aproveitar
literariamente, mas que, enquanto se não aproveitam, duram» (PESSOA, 1999b: 169). Para quem temia
as trovoadas, estes «incidentes atmosféricos da alma» parece terem durado bastante, pois noutra carta
para o mesmo destinatário, esta com data de 6 de Dezembro, Pessoa escreveu: «Aquela leve alienação
mental, que é um dos meus privilégios mais Campos, tem estado permanentemente à minha cabeceira,
ainda nas horas em que não estou deitado. Não tenho feito nada, e não tenho escrito nada, nem (a prova
existe na ausência de prova) a ninguém» (PESSOA, 1999b: 169). Já numa carta para Ofélia, escrita em 19
de Março de 1920, «às 4 da madrugada», após três noites «das mais horríveis» da sua vida, Pessoa
descrevia os sintomas que o afligiam: «É que, sem ter febre, eu tinha delírio, sentia-me endoidecer, tinha
225
para a namorada em que assina Ibis, «nome de uma ave do Egipto, que é essa mesma»,
o escritor afirma: «Estou doido, e não posso escrever uma carta: sei apenas escrever
asneiras»254. Uma semana depois, noutra carta também para Ofélia, pede à namorada
que lhe escreva «sempre, mesmo que eu não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e
sou maluco, e ninguém gosta de mim». Pessoa conclui: «e vou acabar porque estou
doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu
gostava que a Bebé fosse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a»
(PESSOA, 2001: 147-153). Ainda no mesmo dia, Pessoa escrevia mais uma carta:
Peço desculpinha de a arreliar. Partiu-se a corda do automovel velho que trago na
cabeça, e o meu juizo, que já não existia, fez tr-tr-r-r-r-…
Logo a seguir a telephonar-lhe, estou a escrever-lhe, e naturalmente telephonarei
outra vez, se lhe não faz mal aos nervos, e naturalmente será, não a qualquer hora, mas à
hora em que lhe telephonarei.
Gosta de mim por mim ser mim ou por não? Ou não gosta mesmo sem mim nem
não? Ou então?
Todas estas phrases, e maneiras de não dizer nada, são signaes de que o ex-Ibis, o
extinto Ibis, o Ibis sem concerto nem gostosamente alheio, vai para o Telhal, ou para
Rilhafolles, e lhe é feita uma grande manifestação á magnifica ausencia.
Preciso cada vez mais de ir para Cascaes – Bocca do Inferno mas com dentes,
cabeça para baixo, e fim, e prompto, e não ha mais Ibis nenhum. E assim é que era para
esse animal ave esfregar a physionomia esquisita no chão.
Mas se o Bebé desse um beijinho, o Ibis aguentava a vida um pouco mais. Dá? – Lá
está a corda partida -r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r- (PESSOA, 2001: 155)
Logo na primeira carta conhecida para Ofélia, de 1 de Março de 1920, Pessoa a
critica a namorada porque quem «ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem
requerimentos de advogado […] e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo
divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça». Ele próprio «acharia graça, se não
a amasse tanto, e, se tivesse tempo para pensar em outra coisa que não fosse no
sofrimento» que Ofélia lhe causava (PESSOA, 2001: 49-50). Durante algum tempo, Pessoa
suspendeu a dúvida quanto à possibilidade de se casar com Ofélia, mas a tensão entre o
vontade de gritar, de gemer em voz alta, de mil coisas disparatadas. E tudo isto não só por influência
directa do mal-estar que vem da doença» (PESSOA, 1999a: 315).
254
A irrupção da loucura é particularmente evidente não apenas em Álvaro de Campos, mas também
neste pseudónimo de Fernando Pessoa. «A referência à loucura deve ser tomada aqui no sentido literal.
Em cada um dos mundos que analisamos, a crença na sua própria grandeza é tratada como loucura uma
vez que ela repousa num princípio diferente» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 110).
226
mundo doméstico de Ofélia e o mundo inspirado de Pessoa acabou por se impor porque,
segundo o escritor, o casamento seria incompatível com a sua «vida de pensamento».
Refugiando-se no núcleo familiar, reconstituído de novo em Lisboa, Pessoa abandonaria
de vez as ilusões que, segundo o poema de Álvaro de Campos, o tornariam «casado,
fútil, quotidiano e tributável». Desta forma, o retorno da família a Lisboa permitiu-lhe
reconstruir o projecto reflexivo do self, voltando ao seu propósito original de se
engrandecer como escritor.
V.4.
Dois poemas ingleses «muito indecentes»
Em 1917, Fernando Pessoa organizou um livro de poemas em inglês, com o
título The Mad Fiddler, no intuito de o publicar em Inglaterra, mas devido à economia
de guerra, essa época não seria a mais favorável para tal iniciativa. Contudo, talvez o
escritor tenha visto uma oportunidade na entrada das tropas portuguesas no teatro de
operações, em Fevereiro de 1917, lutando em França ao lado dos ingleses. Pessoa
enviou o seu original à editora inglesa Constable & Co. em 12 de Maio, mas esta
proposta nada tinha de poesia épica ou exaltação patriótica, recebendo uma resposta
negativa no mês seguinte255. Frustrada a possibilidade de publicar em Inglaterra, Pessoa
deu continuidade ao seu projecto procurando editar em Portugal os seus poemas
ingleses. Em Julho de 1918, quando se aproximava já o fim da mais devastadora guerra
que houve até antão, o escritor publicou à sua custa, mas com a chancela de Monteiro &
Co., não o referido The Mad Fiddler, mas dois pequenos livros de poemas ingleses: 35
Sonnets, sonetos no estilo shakespeariano em estrofes de 14 versos, e Antinous256.
Antínoo foi o favorito do imperador romano Públio Élio Trajano Adriano (76-138), o
qual morreu jovem, afogado no rio Nilo durante uma viagem ao Egipto. O poema de
Pessoa aborda o tema da homossexualidade, cantando a mágoa de Adriano perante o
cadáver do jovem amante257:
255
Apenas em 30 de Janeiro de 1920, a prestigiada revista literária inglesa The Athenaeum publicaria
«Meantime» (THE ATHENAEUM, 4683: 136) e, em Março de 1923, a revista Contemporanea publicou
«Spell» (CONTEMPORANEA, 9: 150), poemas que integram The Mad Fiddler.
256
35 Sonnets by Fernando Pessoa, Lisbon, Monteiro & Co., 1918.
Antinous: a poem by Fernando Pessoa, Lisbon, Monteiro & Co., 1918.
257
O trecho citado de «Antínoo» não corresponde à versão original, publicada em 1918, mas à tradução
de Luísa Freire, a partir da segunda edição do poema, publicado por Fernando Pessoa em English Poems
I-II, Lisbon, Olisipo, 1921.
227
ANTÍNOO
[…]
Ó mãos que as de Adriano, quentes, agarraram,
Cujo frio de agora frias as achava!
Ó cabelo que faixas de antes apertaram!
Ó olhos algo incertos do que usava!
Ó corpo viril de feminino ar
Como a forma de um deus humanizada!
Ó lábios rubros abertos p’ra tocar
Os sítios do prazer em arte variada!
Ó dedos hábeis no inconfessado!
Ó língua na língua tornando o sangue ousado!
Ó total prazer em trono e em regência
Na raiva da sustida consciência!
Não mais serão essas coisas de amor.
A chuva é silene e o Imperador
Cai junto ao leito. Raiva é seu tormento,
Pois os deuses levam a vida que trazem
E da vida doada a beleza desfazem.
[…]
(PESSOA, 2000a: 111-113, traduzido do Inglês)
Ao contrário da intenção anunciada a Ofélia Queiroz, na sua carta de 15 de
Outubro de 1920, Fernando Pessoa não se fez internar numa «casa de saúde», isto é,
numa clínica psiquiátrica. Uma vez que se dedicava, cada vez mais, à sua obra literária,
e que tudo o resto teria «um interesse secundário», o escritor decidiu então fundar uma
nova editora. Porém, para não repetir o «desastre» financeiro da editora Íbis, e à
semelhança de Orpheu, Pessoa limitou-se ao trabalho editorial, entregando a impressão
dos livros a tipografias estabelecidas. Foi neste âmbito que o escritor fundou, com a
ajuda de alguns amigos, a empresa Olisipo – Agentes, Organizadores e Editores. Entre
os vastos planos que Pessoa delineou para esta empresa, que no esboço inicial se
designaria Cosmópolis, um verdadeiro grupo empresarial, destacam-se a promoção de
Portugal e de produtos portugueses no estrangeiro, a intermediação em licenças e
concessões de exploração mineira, o negócio de comissões e consignações na
importação de maquinaria e produtos industriais, a venda de marcas e patentes, os
planos de organização e reestruturação de empresas, os serviços de tradução e,
obviamente, a publicação de literatura portuguesa e estrangeira. Aparentemente,
228
contudo, todos estes negócios perspectivados foram praticamente gorados e apenas a
actividade editorial parece ter sido parcialmente concretizada (SOUSA, 2010: 86-97).
Entre 1921 e 1923, a editora Olisipo publicou cinco títulos, iniciando esta
sequência com dois pequenos volumes de poemas ingleses de Fernando Pessoa. O
primeiro, intitulado English Poems I-II, inclui uma nova versão do poema homoerótico
«Antinous», agora «reconstruído e aperfeiçoado», bem como o inédito «Inscriptions»
(PESSOA, 1999b: 219). O segundo volume, English Poems III, consiste unicamente no
poema heteroerótico «Epithalamium»258. Inicialmente pensados para fechar o terceiro
número da revista Orpheu, ou mesmo o suplemento em Inglês da revista, os dois
poemas ingleses «muito indecentes, e, portanto, impublicáveis em Inglaterra», eram
certamente «Antinous» e «Epithalamium» (PESSOA, 1999a: 220)259. Mais tarde, numa
carta de 18 de Novembro de 1930, Pessoa escreveu a João Gaspar Simões que estes
eram os seus únicos poemas nitidamente obscenos260. Uma vez que estes dois longos
poemas, escritos em Inglês, seriam «“repreensíveis” de um ponto de vista estritamente
moral», Pessoa optou por publicá-los em Portugal, onde «quase toda a espécie de
literatura pode ser publicada, mesmo entrando no claramente obsceno». Esta seria a
principal razão pela qual o escritor decidiu publicar em Lisboa os seus English Poems,
tendo embora em mente a sua distribuição em Inglaterra. Contudo, apesar de terem o
preço em moeda inglesa impresso na contracapa261, é duvidoso que Pessoa os tenha
conseguido comercializar nesse país, onde existia uma «activa moralidade pública». Em
Portugal, «país analfabeto» em que apenas a elite lia em Francês, sendo raros os que
dominavam a língua inglesa, esses pequenos livros de poesia, num Inglês erudito e
258
English Poems I-II e English Poems III, Lisbon, Olisipo, 1921.
259
Na Grécia Clássica, epitalâmio era um cântico nupcial destinado a invocar a bênção dos deuses para os
nubentes, particularmente Himeneu, o deus casamenteiro. O epitalâmio tem longa tradição poética,
cultivada pelos gregos Safo, Estesícoro e Teócrito, bem como os latinos Catulo, Claudiano e Estácio,
estes mais licenciosos. Em Inglaterra, vários poetas escreveram também Epithalamion, como os
consagrados Edmund Spenser (1552-1599) e Ben Johnson (1572-1637) ou, mais recentemente, Gerard
Manley Hopkins (1844-1899), cuja obra póstuma foi publicada em 1918.
260
Pessoa enviou nessa ocasião os seus «folhetos de versos em Inglês» a João Gaspar Simões,
escrevendo: «Antinous e Epithalamium são os únicos poemas (ou, até, composições) que eu tenho escrito
que são nitidamente o que se pode chamar obscenos. Há em cada um de nós, por pouco que se especialize
instintivamente na obscenidade, um certo elemento desta ordem, cuja quantidade, evidentemente, varia de
homem para homem. Como esses elementos, por pequeno que seja o grau em que existem, são um certo
estorvo para alguns processos mentais superiores, decidi, por duas vezes, eliminá-los pelo processo
simples de os exprimir intensamente. É nisto que se baseia o que será para você a violência inteiramente
inesperada de obscenidade que naqueles dois poemas – e sobretudo no Epithalamium, que é directo e
bestial – se revela. Não sei porque escrevi qualquer dos poemas em inglês» (PESSOA, 1999b: 219-220).
261
«One and sixpence net».
229
complexo262, pouco ou nenhum impacto tiveram, passando praticamente despercebidos
(PESSOA, 1999a: 177-192):
EPITALÂMIO
[…]
O noivo anseia de tudo o final
No desejo dos seios em prazer chupado,
No pôr da mão no pêlo virginal
E no apalpar do antro labiado
Da fortaleza pronta para assaltar,
Que faz o aríete crescer e ansiar.
A trémula noiva sente, todo o dia,
Calor no lugar inda enclausurado
Onde só, nocturna, a sua mão fingia
Ganhar, do prazer, um lucro gorado.
E dos outros, a maior parte murmura
Disto sabendo o pouco que dura.
E as crianças, olhando atentas nos sentidos,
Antegozam já da carne o saber,
No fazer com homens e mulheres crescidos
O acto de excitante e líquido prazer,
Tentando p’los cantos o gosto futuro,
Gosto que mal sabem porque prematuro.
[…]
(PESSOA, 2000a: 97, traduzido do Inglês)
V.5.
Canções de António Botto
No final de 1921, a editora Olisipo publicou A Invenção do Dia Claro, de
Almada Negreiros, uma conferência apresentada nesse ano pelo autor na Liga Naval,
em Lisboa. No início do ano seguinte, a editora de Pessoa publicou a «segunda edição
muito aumentada com um retrato do autor e palavras de Teixeira de Pascoaes» do livro
262
Na mesma carta para João Gaspar Simões, de 18 de Novembro de 1930, na qual anuncia o envio dos
seus Poemas Ingleses, Pessoa escreveu: «Não sei, realmente, quais são os seus conhecimentos da língua
inglesa; mas devo advertir que é preciso conhecê-la realmente para compreender o texto complexo e
compacto desses poemas, e particularmente dos Sonetos. Pode ser, porém, que a sua intuição e cultura
artísticas, assim como o seu conhecimento de outros escritos meus, em português, supram o que me diz
ser – não sei se com modéstia sublinhada – a sua débil ciência da língua inglesa» (PESSOA, 1999b: 219).
230
de poesia homoerótica Canções263, de António Botto (1897-1959). Este poeta264, que seria
então empregado numa livraria de Lisboa, frequentava os meios literários e as tertúlias
dos cafés, pelo menos desde a época de Orpheu. Jorge de Sena (1919-1978), crítico de
António Botto tal como Fernando Pessoa, escreveria mais tarde sobre o poeta:
«Empregado muito jovem numa livraria-editora lisboeta, aí granjeou a simpatia de
escritores já eminentes nos anos 10 e 20, que admiraram e incentivaram o seu precoce
talento literário (ter-se-á estreado nas letras em 1912), muito antes de Fernando Pessoa
aclamar as suas Canções em 1922. A sua juventude foi aventurosa, e a sua
disponibilidade de efebo valeu-lhe então algumas opulentas digressões pelo
estrangeiro» (AA.VV., 1999: 29). Nas «palavras de Teixeira de Pascoaes», a prefaciar
Canções, o poeta diz-se «encantado naquelas páginas onde o amor aparece violento e ao
mesmo tempo complicado como a dor transcendente de histeria» (BOTTO, 1922: –):
[…]
Dá-me o infinito goso
De comtigo adormecer,
Devagarinho, sentindo
O arôma e o calôr
Da tua carne, – meu amor!
E ouve, mancebo aládo,
Não entristeças, não penses.
– Sê contente,
Porque nem todo o prazer
Tem peccado…
Anda, vem… Dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos…
[…]
(BOTTO, 1922: –)
263
A primeira edição, com «palavras sobre o artista e sobre o livro Canções por Jayme de Balsemão»,
tinha sido publicada no ano anterior, sem grande visibilidade pública. Contudo, Canções do Sul, obra
publicada em 1920, é também apontada como a primeira edição desta obra.
264
De acordo com Jorge de Sena, «António Tomás Botto nasceu no Casal de Concavada, freguesia de
Alvega, concelho de Abrantes, a 17 de Agosto de 1897, segundo os registos paroquiais (em que também
figura o duplo t que o poeta foi acusado de usar por pedantaria esteticista e que um dia, já no Brasil,
decidiu cortar). A família, acompanhando o pai que trabalhava nas fragatas do Tejo, estabeleceu-se em
Lisboa, no bairro de Alfama, uma atmosfera popular ainda então não falsificada pelo turismo se reflecte
em muito populismo da sua poesia e numa das suas peças de teatro» (AA.VV., 1999: 29).
231
Segundo Jaime de Balsemão, no seu prefácio à primeira edição de Canções,
«António Botto louva e não maldiz, porque atravessa a existência para compreender. E,
louvando, segue a eminência do pensar heleno», de uma «forma onde, por vezes, palpita
um desejo decadente de perfeições aladas e que são a decadência destas canções
sentidas». Na opinião encomiástica do prefaciador, para quem «a Grécia douta e
augusta», renascia nos versos de António Botto, a «decadência é como um tédio cheio
de revolta motivado pela tortura da beleza para renascer no requinte da estética». Apesar
desta anunciada renascença, a poesia de António Botto remete para a decadência dos
«poetas degenerados», denunciada por Max Nordau nos finais do século anterior. Com
efeito, nas suas «canções, o amor, o vinho, os festins das carnes amorosas, as
penumbras lânguidas são narcóticos preciosos onde o poeta afoga as dores do
pensamento. É Vénus, Eros ou Afrodite; é o Amor Universal que despreza a fome, a
sede, a fadiga, para lançar no mesmo tropel os sexos, as castas e as inteligências, o amor
que tenta adormecer, com o seu macabro e com o seu grotesco». Neste sentido, Jaime de
Balsemão conclui que «António Botto entoa primorosamente, entre sedas e vinhos, a
negra história dos mortais» (BOTTO, 1921: –). Ao dar a público o livro Canções,
Fernando Pessoa distribuiu um comunicado da Olisipo, no qual chama a atenção para o
livro de Botto, que considera «uma contribuição valiosa para a reconstrução espiritual»,
cujos ensinamentos deverão ser seguidos «pelas gerações que despontam»:
A empreza editora OLISIPO, de Lisboa, faz publico, para que a todos conste e
aproveite, o seguinte:
1.º – Que acaba de pôr á venda, em todas as livrarias do paiz, a segunda edição do
livro CANÇÕES de ANTONIO BOTTO;
2.º – Que essa segunda edição é muito augmentada, contando, tambem, uma carta
de Teixeira de Pascoaes, e novas referencias de JAYME DE BALSEMÃO;
3.º – Que, para complemento da sua inteira e perfeita apresentação artística, essa
edição é superiormente valorizada por um retrato photographico do AUTHOR, que, de per
si, constitui um elemento notável de educação esthetica;
4.º – Que este livro representa uma contribuição valiosa para a reconstrução
espiritual que é a necessidade mais urgente do nosso tempo; e
5.º – Que elle portanto, deve ser lido, e os seus ensinamentos seguidos, pelas
gerações que despontam para o conhecimento da vida e da arte. (BOTTO, 2010: 88)
232
V.5.1. A revista Contemporanea
O arquitecto José Pacheco (1885-1934)265, artista gráfico de Orpheu, tinha
publicado, também em 1915, um «número specimen» da revista Contemporanea,
«aspiração de Arte e Elegância […] realizada por um punhado de artistas moços» que,
não sendo «um capricho de imaginação» mas «a satisfação irrecusável das exigências
mentais de um meio e de uma época», se destinava «a todas as curiosidades cultas»
(CONTEMPORANEA, –: 1). Não deveria ser grande a curiosidade dos portugueses cultos
nessa época, pelo que o projecto apenas avançou em Maio de 1922, com a publicação
de Contemporanea: grande revista mensal, precisamente no mesmo mês em que Pessoa
publicou Canções, de António Botto. Esta revista mensal, «feita expressamente para
gente civilizada» e «para civilizar gente», publicaria nove números em 1922, um em
1924 e três em 1926. Nela colaboraram muitos escritores e artistas plásticos,
designadamente Fernando Pessoa e Almada Negreiros.
O primeiro número de Contemporanea abria com a «Carta a um Esteta» de
Afonso de Bragança e incluía «O Banqueiro Anarquista» de Fernando Pessoa, «Histoire
du Portugal par Coeur» de Almada Negreiros, versos de António Botto e ainda um
poema «do livro de versos deixado inédito por Mário de Sá-Carneiro», Poemas de
Paris. Em 15 de Junho de 1922, o Diário de Lisboa publicou uma entrevista intitulada
«A Contemporanea – a Revista dos Novos», na qual o jornalista considerava que «José
Pacheco é a sinceridade em pessoa», escrevendo que a publicação «há 15 dias que saiu.
Mas a sua aparição, que era, é claro, aguardada com ansiedade, interessa-nos a nós
menos do que o movimento que ela provocou, os resultados que obteve, o destino que
lhe está reservado». Nesta entrevista, o arquitecto refere que não tem «grande confiança
nem grande consideração pelo público de arte português», sentimento que se prenderia
com o malogro do «número specimen» da Contemporanea em 1915. Corroborando a
justificação de Almada Negreiros, a propósito de Orpheu, na sua entrevista para O
Jornal em Abril de 1915, José Pacheco afirma: «Vou publicar o segundo número.
Espero que nessa altura os jornais tenham lido o primeiro…» (DIÁRIO DE LISBOA, 367: 5):
265
José Pacheco (1885-1934) nasceu e morreu em Lisboa, vitimado pela tuberculose. Em 1910 partiu
para Paris, onde viveu no atelier do pintor Amadeo de Souza-Cardoso. Aí conviveu com outros artistas e
terá conhecido Santa-Rita e Mário de Sá-Carneiro. A sua produção como desenhador foi mais relevante
do que como arquitecto, tendo colaborado nas revistas Orpheu, Portugal Futurista e O Occidente. José
Pacheco desenhou as capas dos livros de Sá-Carneiro Dispersão e Céu em Fogo. Contudo, a sua maior
realização teria sido Contemporanea: Grande Revista Mensal que fundou e dirigiu (MARTINS, 2008:
586-588).
233
«Olhe: houve jornais que nos chamaram futuristas. Não há hoje na Contemporanea
nehum colaborador que seja futurista! Uns por que já o não são, outros nunca o foram,
outros são precisamente o contrario.
«Emfim Arte, recherche…
«Houve um jornal que até nos chamou anarquistas! Anarquistas, nós! Valha-os
Deus! Foi o titulo do estudo do Fernando Pessoa, que é, como você sabe, o Banqueiro
Anarquista. Você leu? É a ultima palavra do reacionarismo scientifico! Valha-os Deus!
– E… vende-se?
– Vende, sim. Já lhe disse mais do que eu supunha e menos do que os tecnicos de
livraria me garantiam. É que eles levavam em linha de conta a parte grafica. Mas cá
percebem ou admiram lá isso!
«Quere saber ainda um pormenor interessante? Onde A Contemporanea se tem
vendido mais é em Coimbra. E a geração de Coimbra não é nada das nossas ideias. É
interessante. É uma prova de curiosidade, de inteligencia, que me lisongeou e que os honra.
– Em resumo: descontente?
– Não. Contente. Vou publicar o segundo numero. Espero que nessa altura os
jornais tenham lido o primeiro… (DIÁRIO DE LISBOA, 367: 5)
Mais tarde, José Pacheco teria pedido a Fernando Pessoa que redigisse um
manifesto da Contemporanea, o que o escritor interpretou como «acção de graças pela
geração nova», declinando o pedido. Pessoa justificou a sua recusa afirmando que a
geração nova não lhe pertence, «nem eu a ela», mas argumenta também que «por
geração nova várias coisas se entendem, e são todas diversas», razão pela qual temeria
que, defendendo alguns novos artistas, incriminasse outros. Com esta recusa, o escritor
assumiu, em 1922, uma postura radicalmente diversa da que revelara dez anos antes, a
propósito da geração de Pascoaes, com os seus artigos encomiásticos sobre a «nova
poesia portuguesa», publicados na revista A Águia. «Como director da Contemporanea,
acaba v. de sentir o que Mário de Sá-Carneiro, Luís de Montalvor e eu tantas vezes
sentimos, como directores de Orpheu – a apreciação intensa de grande parte do público,
figurada inequivocamente na venda, o interesse cómico do público, aumentando essa
venda, a inimizade dos jornais» (PESSOA, 1999a: 408).
Desde a ruína das antigas instituições monárquicas em toda a Europa que se
tornou impossível um meio culto, porque desapareceu todo o fenómeno de coesão superior.
Um meio culto não se forma espontaneamente, porque uma «classe culta» não é uma classe
industrial ou um partido político. Para existir, tem portanto, que ter um apoio social
234
externo a ela. Esse apoio só pode ser a existência de uma classe que, sem ser industrial ou
política, tenha predominância na sociedade. Ora essa classe existe na aristocracia de
sangue, e esta subsiste enquanto subsiste a monarquia a cuja sombra vive.
A democracia moderna, porém, não só tornou impossível a formação de uma
classe culta, distintivamente tal, como de duas outras maneiras fez baixar o nível cultural
geral: pela educação indiscriminada espalhada tornou mais baixa a média cultural dos que
sabem ler, criou por isso condições económicas avessas ao aparecimento do génio ou do
talento. Não é só que os romancistas da plebe ganham mais do que os de melhor qualidade;
é que há romancistas de uma plebe da cultura, que é diversa da plebe propriamente dita. É
claro que um homem de grande génio não sacrifica o seu génio a considerações monetárias;
porém com mais facilidade morre de fome que quando viveria na dependência dos fidalgos
e dos reis.
Não há portanto foco de onde irradie para o público em geral a propaganda da
obra de um autor; não há classe social que o apadrinhe, salvo circunstâncias individuais,
que, por tais serem, não prejudicam a tese geral. (PESSOA, 1999a: 409)
Comparativamente com os directores da revista Orpheu, incluindo ele próprio,
Pessoa afirma que José Pacheco era mais feliz num aspecto e menos noutro, pois a
«venda da Contemporanea é inteiramente provocada pelo interesse», enquanto «parte
da venda do Orpheu foi derivada do desejo de rir. Mas a inimizade na imprensa, que se
manifestou para connosco em extensos e indignados reclames, sofreu-a v. pelo silêncio,
pela notícia realmente nula, pela estudada ausência de reclame e de notícia». Neste
sentido, o escritor considera que o convite de José Pacheco teria sido motivado pela
«falta de aceitação que têm tido todos os novos escritores, sobretudo os de valor
notável, no público e na imprensa portuguesa». Desta forma, em vez de um manifesto,
Pessoa propôs ao amigo explicitar as causas da rejeição dos novos escritores através de
uma nova análise sociológica, na qual corrobora a falta de confiança e de consideração
de José Pacheco pelo público português. O escritor recorta assim mais um paradoxo,
afirmando «que não há aceitação espontânea, nem a pode haver, de um autor ou artista,
que seja espontaneamente aceite pelo público» (PESSOA, 1999a: 408). Na sua análise
desencantada, Pessoa sublinha as implicações do que considera ser a decadência das
elites culturais, remetendo, de novo, para o antagonismo entre os mundos inspirado e do
renome.
Temos, pois, que para o público apreciar um pintor, um poeta, um músico, que não
seja banal, tem que haver quem chame a atenção do público para ele. O espírito humano
235
espontaneamente aceita só o que já conhece; e como o valor, em qualquer secção da
actividade humana superior, reside essencialmente na originalidade, resulta que não há
aceitação espontânea, nem a pode haver, de um autor ou artista, que seja espontaneamente
aceite pelo público. O que há é nações e épocas em que o meio culto é influente e perspicaz,
e rapidamente impõe um autor novo ao público em geral.
Ora, para impor um artista original, o processo mais simples é o de ele ser imposto
por um meio culto, sempre pequeno, mas influente. O característico cultural principal da
nossa época, depois da ruína das antigas instituições monárquicas, é o desaparecimento
desse meio culto, a ruína, portanto, das condições favorecedoras do génio, em proveito das
que favorecem a simples inteligência, o chamado cabotinismo, o empenho, o reclame pago,
toda a baixa comédia da celebridade moderna. (PESSOA, 1999a: 409-410)
V.5.2. «O Ideal Estético em Portugal»
A primeira edição da revista Contemporanea anunciava que no número seguinte
seria publicado o «estudo crítico» de Fernando Pessoa, «António Botto e o Ideal
Estético em Portugal». O segundo número da revista foi publicado em Junho de 1922,
contando com colaborações, entre outros, de Judite Teixeira, Raul Leal, António Ferro,
Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro. Uma nota informava que a revista passaria a
inserir uma «secção de bibliografia nacional e estrangeira dirigida pelo ilustre crítico Sr.
Álvaro Maia» mas, «por ter chegado demasiado tarde o original» de Fernando Pessoa, a
sua publicação ficaria adiada para o número seguite, aumentando assim as expectativas
dos leitores. Com efeito, a crítica «António Botto e o Ideal Estético em Portugal» foi
publicada em Julho de 1922, no terceiro número de Contemporanea, seguido de «Uma
Canção» deste poeta, chamando a atenção do público para o livro de António Botto
editado pela Olisipo. No seu «estudo crítico», Pessoa afirma que «António Botto é o
único português, dos que conhecidamente escrevem, a quem a designação de esteta se
pode aplicar sem dissonância», embora a sua obra, «no que realmente típica, resume-se,
por ora, no seu último livro, Canções» (CONTEMPORANEA, 3: 121).
No prefácio à primeira edição do livro de Botto, embora comparando o autor aos
poetas decadentes, Jaime de Balsemão viu em Canções um renascimento da Grécia
Clássica. Pessoa concorda com Balsemão, uma vez que, pela «própria natureza do seu
ideal, é a civilização helénica essencialmente a civilização artística. Fazer arte é querer
tornar o mundo mais belo, porque a obra de arte, uma vez feita, constitui beleza
objectiva, beleza acrescentada à que há no mundo». Segundo Fernando Pessoa, o ideal
236
nasce «da nossa consciência da imperfeição da vida». A cada tipo de imperfeição
corresponderá, por contraste, um conceito de perfeição, o qual toma o nome de ideal. O
«heleno, vendo que a vida é imperfeita, busca criar, ele, a perfeição, substituindo a arte
à vida; e busca incluir em cada obra, para que a substituição seja perfeita, ou toda a vida
ou um aspecto supremo da vida. É esta a forma intelectual e construtiva do ideal estético
absoluto». Para Pessoa, o livro de Botto apoia-se em duas ideias centrais: a beleza física
e o prazer, que traduzem uma das formas do ideal helénico. A «análise do conteúdo
dessas ideias», tal como se apresentam em Canções, revelaria inequivocamente o esteta:
«No modo como apresenta a primeira delas, o poeta afasta-se de toda a espécie de
moralidade; no modo como apresenta a segunda, de toda a espécie de imoralidade».
Segundo Pessoa, na poesia de Botto tudo «é pensado, tudo é crítico e consciente», pelo
que «o estudo cuidado da forma e do ritmo, a escolha severa dos momentos
representativos» e «a falta de espontaneidade emotiva que em cada verso se manifesta»,
provam que «a substância do livro é altamente intelectual». Sendo Canções «um hino
ao prazer», das considerações precedentes resulta, para Pessoa, que esta obra
«representa uma das revelações mais raras e perfeitas do ideal estético»
(CONTEMPORANEA, 3: 121-124).
Das trez formas, que podemos conceber, da belleza physica – a graça, a força e a
perfeição –, o corpo feminino tem só a primeira, porque não pode ter a belleza da força sem
quebra da sua feminilidade, isto é, sem perda do seu character proprio; o corpo masculino
pode, sem quebra da sua masculinidade, reunir a graça e a força; a perfeição só aos corpos
dos deuses, se existem, é dado tel-a. Um homem, se se guiar pelo instinto sexual, e não pelo
instinto esthetico, cantará, como poeta, só o corpo feminino. Essa attitude representa uma
preoccupação exclusivamente moral. O instinto sexual, normalmente tendente para o sexo
opposto, é o mais rudimentar dos instinctos moraes. A sexualidade é uma ethica animal, a
primeira e a mais instinctiva das ethicas. Como, porém, o estheta canta a belleza sem
preoccupação ethica, segue que a cantará onde mais a encontre, e não onde suggestões
externas á esthetica, como a suggestão sexual, o façam procural-a. Como se guia, pois, só
pela belleza, o estheta canta de preferência o corpo masculino, por ser o corpo humano que
mais elementos de belleza, dos poucos que ha, pode accumular.
Foi assim que pensaram os gregos; foi esse pensamento que Winckelmann,
fundador do esthetismo na Europa, descobrindo-o nelles, reproduziu, como no passo
celebre que Pater transcreveu, e que parece feito para servir de prefácio a um livro como
Canções:
«Como é confessadamente a belleza do homem que tem que ser concebida sob uma
idéa geral, assim tenho notado que aquelles que observam a belleza só nas mulheres, e
237
pouco ou nada se commovem com a belleza dos homens, raras vezes teem instinto
imparcial, vital, innato da belleza na arte. A pessoas como essas a belleza da arte grega
parecerá sempre falha, porque a sua belleza suprema é antes masculina que feminina».
Ora é este conceito puramente esthetico, da belleza physica que é, como todos
sabem, porque escandalizadamente se notou, uma das duas idéas inspiradoras das Canções.
(CONTEMPORANEA, 3: 124)
À semelhança dos seus artigos sobre a «nova poesia portuguesa», publicados em
1912, Fernando Pessoa procurou então demonstrar, através de uma análise
«severamente conduzida», que não sendo genial, Canções era, pelo menos, uma obra de
talento. Para o crítico, Botto era «um dos tipos mais perfeitos e mais íntegros de esteta,
que se podem imaginar», o que conferiria um estatuto relevante à sua poesia, uma vez
que esse «tipo perfeito de esteta é raríssimo na civilização cristã, ou de origem cristã, e
mais que raro, porque, até às Canções, desconhecido em Portugal». Na perspectiva de
Pessoa, para que «apareça um tipo de esteta é necessário um meio social análogo ao
meio social helénico». Apesar de, na sua opinião, o meio social europeu, em algumas
das suas manifestações e tanto quanto possível, se aproximar do «meio social da Grécia
Antiga», ele seria, contudo, «radicalmente diferente». Daqui resulta que «o
aparecimento na Europa moderna de um tipo íntegro de esteta só pode dar-se por um
desvio patológico, isto é, por uma inadaptação estrutural aos princípios constitutivos da
civilização europeia, em que vivemos». Neste sentido, o «recortador de paradoxos»266
concorda com Lombroso e Nordau, para quem a genialidade estaria associada a doença
do foro psiquiátrico ou degeneração. Segundo Pessoa, contudo, «no caso dos grandes
estetas europeus», esse «desvio patológico» seria apenas o catalisador, «o elemento
predisponente, se bem que, por isso mesmo, radical, do seu estetismo». Na sua opinião,
o «desvio patológico» seria uma condição necessária mas não suficiente para a eclosão
de um grande esteta, pois a esse elemento deveria juntar-se «uma mergência prolongada
do espírito na atmosfera helénica, que lhe cria um perpétuo contacto, ainda que só
intelectual, com a Grécia Antiga e os seus ideais. Da acção deste segundo elemento
sobre o primeiro o esteta desabrocha» (CONTEMPORANEA, 3: 125).
266
No rascunho de uma carta de apresentação não datada e sem destinatário, Pessoa escreveu: «Sou um
pobre recortador de paradoxos, mas possuo a qualidade de arranjar argumentos para defender todas as
teorias, mesmo as mais absurdas, e é esta última a habilitação com que me recomendo» (PESSOA, 2003:
175).
238
Como os elementos culturaes são inteiramente negativos na obra de Antonio Botto,
vemo-nos forçados a assentar em que o seu esthetismo nasce de um simples desvio
pathologico, sem sollicitação cultural efficiente. Este processo de ser estheta apresenta
uma singularidade notavel: é um desvio pathologico sem desequilibrio, porque todos os
ideaes gregos (e portanto o esthetico, que é um d’elles) são essencialmente equilibrados e
harmonicos. Ora um desvio pathologico equilibrado é uma de duas cousas – ou o genio ou
o talento. Ambos estes phenomenos são desvios pathologicos, porque, biologicamente
considerados, são anormaes; porém não são só anormaes, porque teem uma aceitação
exterior, tendo, portanto, um equilíbrio. A esse desvio equilibrado chamar-se ha genio
quando é synthetico, talento quando é analytico; genio quando resulta da fusão original
de varios elementos, talento quando procede do isolamento original de um só elemento.
A dentro do ideal esthetico, os casos de Winckelmann e de Pater representam o
genio, porque a tendencia para a realização cultural immanente no seu esthetismo
ingenito é, por sua natureza, synthetica; o caso de Antonio Botto representa o talento,
porque o ideal esthetico, dada a sua estreiteza e vacuidade, representa já o senso esthetico
isolado de todos os outros elementos psychicos, e, no caso de Antonio Botto, estheta
simples, esse isolamento não se modifica, como no esthetismo culto, pelo reflexo nelle da
multiplicidade dos objectos de cultura. (CONTEMPORANEA, 3: 126)
V.6.
«Literatura de Sodoma»
A revista Contemporanea fez férias em Agosto e Setembro de 1922, razão para
o seu quarto número ter sido publicado apenas em Outubro. É esta edição que inclui o
poema «Mar Portuguez», de Fernando Pessoa, e uma carta de Álvaro de Campos para
José Pacheco, com data de 17 de Outubro, supostamente remetida de Newcastle-onTyne. «Quereria mandar-lhe também colaboração. Mas, como lhe disse, não escrevo.
Fui em tempos poeta decadente; hoje creio que estou decadente, e já o não sou». Com o
pretexto de felicitar o director de Contemporanea pela sua revista, e de contrariar a
crítica de Pessoa ao livro de António Botto, o engenheiro naval chamava de novo a
atenção sobre Canções. «Continua o Fernando Pessoa com aquela mania, que tantas
vezes lhe censurei, de julgar que as coisas se provam». Nas palavras de Álvaro de
Campos, o «ideal estético» invocado por Pessoa seria destituído de sentido, uma vez
que não haveria ideias «estéticas senão nas ilusões que nós fazemos delas. O ideal é um
mito da acção, um estimulante como o ópio ou a cocaína: serve para sermos outros, mas
paga-se caro». Neste sentido, o engenheiro defende que a beleza «começou por ser uma
explicação que a sexualidade deu a si-própria», onde tudo é um «jogo de forças». Neste
sentido, Álvaro de Campos não procura na arte a «beleza» ou «coisa que possa andar no
239
gozo desse nome. Em toda a obra humana, ou não humana, procuramos só duas coisas,
força e equilíbrio de força – energia e harmonia». Numa evidente incitação à crítica,
Álvaro de Campos louva a força das Canções de Botto, que não teriam nada a ver «com
ideais nem com estéticas», sendo antes «a imoralidade absoluta, despida de dúvidas»
(CONTEMPORANEA – JORNAL, 4: 4).
Louvo nas Canções a força que lhes encontro. Essa força não vejo que tenha que
ver com ideaes nem com estheticas. Tem que ver com immoralidade. É a immoralidade
absoluta, despida de duvidas. Assim há direcção absoluta – força portanto; e ha harmonia
em não admittir condições a essa immoralidade. O Botto tende com uma energia tenaz
para todo o immoral; e tem a harmonia de não tender para mais coisa alguma. Acho inutil
metter os gregos no caso; grego se veria o Fernando com elles se elles lhes apparecessem a
pedir-lhe contas do sarilho de estheticas em que os metteu. Os gregos eram lá esthetas! Os
gregos existiram.
A arte do Botto é integralmente immoral. Não ha cellula nella que esteja decente. E
isso é uma força porque é uma não-hypocrisia, uma não-complicação. Wilde tergiversava
constantemente. Baudelaire formulou uma these moral da immoralidade; disse que o mau
era bom por ser mau, e assim lhe chamou bom. O Botto é mais forte: dá à sua
immoralidade razões puramente immoraes, porque não lhe dá nenhumas.
O Botto tem isto de forte e de firme: é que não dá desculpas. E eu acho, e deverei
talvez sempre achar, que não dar desculpas é melhor que ter razão. (CONTEMPORANEA –
JORNAL, 4: 4)
No mesmo número da revista Contemporânea, publicado em Outubro de 1922, o
«ilustre crítico Sr. Álvaro Maia» respondeu com uma incisiva réplica, dirigida não
apenas ao livro Cancões, mas sobretudo ao artigo laudatório de Fernando Pessoa,
«António Botto e o Ideal Estético em Portugal». O título da contundente crítica de
Álvaro Maia, «Literatura de Sodoma: O Sr. Fernando Pessoa e o Ideal Estético em
Portugal», evoca uma célebre passagem bíblica do Velho Testamento, na qual Deus
destruiu duas cidades pecaminosas267. Mas a referência a Sodoma remete também para
267
«Ora, eram maus os varões de Sodoma, e grandes pecadores contra o Senhor». Mais adiante, o
«Génesis» descreve o pecado: «cercaram a casa os varões daquela cidade, os varões de Sodoma, desde o
moço até ao velho; todo o povo de todos os bairros». E chamando Loth, disseram-lhe: «onde estão os
varões que a ti vieram, nesta noite? Traze-os fora a nós, para que os conheçamos». Então Loth saiu de
casa e pediu aos homens que não maltratassem os seus convidados: «Eis aqui, duas filhas tenho, que
ainda não conheceram varão; fora vo-las trarei, e fareis delas como bom for nos vossos olhos; sòmente
nada façais a estes varões, porque por isso vieram à sombra do meu telhado». Perante a insistência dos
homens, Deus «fez chover enxofre e fogo do Senhor, desde os céus, sobre Sodoma e Gomorra»,
destruindo as duas «cidades, e toda aquela campina, e todos os moradores daquelas cidades, e o que
nascia da terra». Nessa madrugada, Abraão levantou-se e olhou «para toda a terra da campina; e viu, e eis
240
um livro de Henry d’Argis, muito mais recente e com este título268, ou ainda Sodoma e
Gomorra, de Marcel Proust (1871-1922)269, publicado em dois volumes, em 1921 e 1922,
ano em que Álvaro Maia escreveu a sua réplica. «Literatura de Sodoma» tornava-se
assim na designação pela qual ficou conhecida a controvérsia sobre o livro de poesia de
António Botto, publicado por Fernando Pessoa. Álvaro Maia reconhece a urgência da
resposta ao artigo de Fernando Pessoa, mas manifesta a sua hesitação em abordar
«assuntos repugnantes que se podem facilmente tornar pedra de escândalo», dadas «as
regras invioláveis da natureza e os ensinamentos inflexíveis da razão humana». Segundo
o jornalista, seria preferível que o assunto fosse tratado num «canto absolutamente
isolado, como as salas escondidas de certos museus», para evitar que pudesse «redundar
em reclame a obras de maldição, atenta a morbidez da humana curiosidade nestes
tempos de transição, em que a imunda teoria dos vícios pretende encovar a alfurja por
entre as ruas floridas da mocidade». Apesar disto, o crítico decidiu publicar o seu artigo
«para colocar as coisas no lugar devido» e para contestar «aquelas imputações nefandas
que o seu silêncio poderia suscitar» (CONTEMPORANEA, 4: 31).
Entre os novos tornou-se já um estafado logar commum o indicar o nome do sr.
Fernando Pessoa como um dos mais representativos entre os valores da minha geração.
Não serei eu quem conteste a verdade de tal afirmativa, antes a confirmo com a minha
nenhuma auctoridade, e é exactamente por isso que me espanto com as turbas vendo-o
enfileirar entre os symphonistas dos fedores, remexer, ás mãos ambas e plenas, os
escorralhos nauseantes da esterqueira romantica, olhar com amorosa complacencia o pús
literario dos ultimos gafados. Sequioso de ineditismo, pescou do justo esquecimento um
que o fumo da terra subia, como o fumo de uma fornalha», porque «o clamor de Sodoma e Gomorra se
tem multiplicado, e porquanto o seu pecado se tem agravado muito» (AA.VV., 1993: 16-22).
268
Sodome, de Henry d’Argis, pseudónimo do escritor Alphonse Berty, publicado em 1888 e prefaciado
por Paul Verlaine, o poeta vilipendiado por Max Nordau, autor de Poèmes Saturniens (1866) e Les Poètes
Maudits (1884). Sodome foi considerado o primeiro romance homossexual e, sob o mesmo pseudónimo,
Alphonse Berty publicaria no ano seguinte Gomorrhe.
269
Parece incontestável que Proust teve uma influência decisiva na renovação do romance no século XX.
Oriundo de uma família burguesa e de saúde frágil (o seu pai era professor na Faculdade de Medicina de
Paris e a mãe descendente de uma rica família judia), Proust estudou no Liceu Condorcet, um dos mais
prestigiados de Paris, frequentado por alunos de condição social elevada. O envolvimento com alguns
desses colegas deu-lhe acesso às tertúlias dos salões burgueses e aristocráticos parisienses, que mais tarde
analisaria nas suas produções literárias. Tal como Pessoa, Proust nunca casou e, contrariando a vida
mundana e o dandismo que cultivou nos primeiros anos de escritor, converteu-se ao ascetismo,
consumindo os últimos 15 anos de vida e as últimas energias a escrever a monumental obra À la
Recherche du Temps Perdu. Esta obra é constituída por sete partes, publicadas de 1913 a 1927, sendo
Sodome et Gomorrhe a quarta e última publicada em vida do seu autor. A homossexualidade é um tema
recorrente na obra de Marcel Proust, particularmente em Sodome et Gomorrhe, na qual o narrador
descreve detalhadamente a sociabilidade dos salões parisienses em que se destaca a personagem
homossexual de Palamède de Guermantes, barão de Charlus, amante e protector de Jupien.
241
livro sem arte nem belleza e como, nessa miseria impressa, fosse claramente feita a
apologia daquellas aberrações sexuaes que levaram Deus a sepultar Sedoma e Gomorrha
sob um diluvio de fogo e enxofre, o sr. Fernando Pessoa, sacudiu de sobre o livro a poeira
espessa que o encobria, pendurou-o nas primeiras protuberancias lunares que se lhe
antolharam, falou-nos do culto da Beleza entre os Gregos e, com toda a imponencia –
aquella imponencia que lhe dá a admiração que todos os novos lhe dedicam – proclamou
ore rotundo, que o auctor daquella escorrencia literaria é o unico entre os portuguezes a
quem o titulo d’esteta póde caber. (CONTEMPORANEA, 4: 31-32)
Na operação crítica de Álvaro Maia, um «corpo de atleta, aonde se verifiquem
perfeições de estátua grega, é uma coisa bela, incontestavelmente bela, como obra da
sabedoria divina» e «se muito são de espírito não ousa expressar em público a sua
admiração pela beleza masculina é porque tem receio de que o confundam
desastradamente com os amadores de actos contra-natura, entre os quais enfileira o
próprio Winckelmann». O crítico reproduz o texto de Winckelmann270 citado por
Pater271, e que Pessoa traduziu, porque lhe pareceu «feito para servir de prefácio a um
livro como Canções». Contudo, para Álvaro Maia, esses «estetas não vão além de
simples devotos do orgasmo invertido: para disso nos capacitarmos bastará ler o livro
do seu panegirizado. Uma coisa é ter veneração pela beleza plástica, como na maioria
dos gregos; e outra, inteiramente diversa, é a impulsão genésica, seja ela hetero ou
homossexual». Neste contexto, o crítico interpela Pessoa, questionando se «os
indivíduos que, patologicamente, se desviam da contemplação da beleza masculina e se
deixam levar pela onda ascorosa do desejo invertido, porventura esses serão estetas, no
sentido puro e insofismável da palavra? Acaso esses réus do nefando, – como o Santo
Ofício justiceiramente os apelidava – acaso eles têm o culto da beleza plástica à
semelhança dos helenos e no que ele possuía de mais elevadamente artístico?»
(CONTEMPORANEA, 4: 32).
270
Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) nasceu numa família pobre na antiga Prússia, tornando-se
helenista e arqueólogo, é considerado o fundador da história da arte e um dos pioneiros da arqueologia
científica. Aplicou sistematicamente as categorias de estilo, estabelecendo a distinção entre a Arte Grega,
Greco-Romana e Romana. A sua História da Arte Antiga, publicada em 1764, contribuiu decisivamente
para a emergência do neoclassissismo no século XVIII.
271
Segundo Richard Zenith, «Walter Pater (1839-1894), um crítico inglês que defendeu a beleza como
valor auto-suficiente, foi muito apreciado por Pessoa, que traduziu, para a revista Athena (Novembro
1924), algumas páginas suas sobre La Gioconda de Leonardo da Vinci» (PESSOA, 2000d: 245). Tendo
publicado em 1867 um ensaio sobre Winckelmann e, em 1873, Studies in the History of Renaissance, que
incluía esse ensaio, Pater influenciou várias gerações de artistas. Na biblioteca pessoal de Fernando
Pessoa existe uma reedição desta obra, publicada em 1915, com o título The Renaissance: studies in art
and poetry, da qual Pessoa traduziu o citado excerto de Winckelmann e o referido texto de Walter Pater.
242
A noção de beleza física implicava, para Álvaro Maia, o sentido das proporções
e «o respeito pelas inflexíveis leis da natureza». Contudo, segundo o crítico, estudos
sobre «as profundas misérias sexuais de todos os tempos» revelavam «que os tais
estetas, na sua totalidade esfuriados pela pedicação, não possuem de modo algum o
sentido da Beleza plástica mas única e exclusivamente a tentação pela anormalidade
sexual». Segundo Álvaro Maia, a experiência demonstraria igualmente «ser raríssimo os
réus do nefando escolherem cúmplice que participe das harmonias duma estátua grega:
em geral, o pático escolhe um brutamontes, e é levado por um exame que a decência me
impede de apontar. Quanto ao cinedo, a sua escolha recai em indivíduos de compleição
franzina e delicada que, pelo aspecto exterior, pelos modos, falas e acções, macaqueiam
o sexo belo». Em ambos os casos a evidência negaria qualquer influência helénica em
tais escolhas antinaturais, antes exprimindo o ridículo e a ignomínia. Neste contexto,
Álvaro Maia conclui que «os estetas de que nos fala o Sr. Pessoa não passam, afinal de
contas, do rebotalho duma geração; se neles o culto da beleza máscula em nada mais
consiste do que na ânsia de satisfação duma carnalidade monstruosa, fora de todas as
leis da natureza e exemplificada nas mais ridículas mascaradas do desejo sexual, na
mais bestializante coprolália» (CONTEMPORANEA, 4: 32-33).
Do arrazoado do sr. Pessoa se conclue que apenas serão estetas em Portugal os
paticos e cinedos. Portanto quem quizer ser esteta, forçoso será que se entregue a actos
contra-natura. Semelhante teoria, bruta até ao exagero, visa á complacencia dos basbaques
elegantes, e ao réclame pelo escândalo. Verdadeira miseria psychica em ambas as
intenções, não me causaria espanto se proviesse dum celebre titular que o lapis de Bordallo
Pinheiro justiceira e implacavelmente fustigou; que provenha porem dum individuo que se
nos apresenta como intellectual, isso é que me causa um espanto doloroso como
manifestação do que seja a critica em terras lusiadas. Se o sr. Pessoa, com toda a sua
cultura, se nos revela como acabamos de vêr, que demonio se hade exigir dos chumecos que
fazem critica nos periodicos?
O assumpto que, com tamanha repugnancia, aqui tenho tratado – a prosa do sr.
Pessoa – revela-se-nos como mais uma exhibição patologica do desejo de fazer escandalo.
[…] Não haverá no que acabo de citar materia que baste para definir o estado intelectual
do sr. Pessoa? Pobre d’elle que ainda não comprehendeu ser a vida uma coisa tão seria
que, nella, mais deveriamos pensar do que rir! A vida é uma simples e longa preparação e
ha coisas de que não é licito zombar. E peior, muito peior se a nossa imaginação se agita
continuamente entre os espelhos de Hostius Quadra… Será a ruina completa dum espirito,
o emparceiramento com as coisas inuteis que são lançadas ao fogo… (CONTEMPORANEA,
4: 34-35)
243
V.6.1. «O Sentido Íntimo do Ritmo»
Em 16 de Novembro de 1922, o jornal O Dia publicou, na sua última página, um
artigo intitulado «António Botto e o Sentido Íntimo do Ritmo», subscrito por Raul Leal,
um dos colaboradores de Orpheu272. Nesta sua crítica encomiástica do livro Canções,
Raul Leal elogia o «admirável poeta que é António Botto», o qual, na sua opinião, teria
realizado com o livro Canções uma «Grande Reforma […] na arte suprema do Ritmo».
Esse ritmo poético que, para o exegeta, apenas um português poderia ter descoberto,
seria um «movimento anímico de ansiedade luxuriosa feita de prazer e dor em CarneEspírito a vibrar indefinidamente…». Neste sentido, António Botto realizou, segundo
Raul Leal, o que nenhum outro poeta teria conseguido até então, pois se muitos
«trataram ritmicamente a ansiedade luxuriosa, o ritmo com que ela era cantada, não a
continha, surgindo à parte». Pelo contrário, em Canções, a «ansiedade luxuriosa»
surgiria como «o próprio movimento íntimo de todo o ritmo, encontrado assim pelo
poeta na sua natureza essencial e não apenas nas suas manifestações exteriores». Para
Raul Leal, esta «Alta Descoberta» de António Botto, um poeta universal e
universalmente português, teria um «alcance enorme», na medida em que, encontrado
«o sentido íntimo do ritmo», este deixaria de ser «uma simples forma de Arte […]
porque se torna ele próprio Vida» (O DIA, 1915: 2).
Acabo de ler a segunda edição, muito augmentada, do livro Canções, de Antonio
Botto. Propriamente d’elle pouco falarei pois desejo tratar antes, d’uma maneira geral, da
Grande Reforma provocada pelo admiravel poeta que é Antonio Botto, na arte suprema do
Rythmo.
Antes de mais nada devo dizer que qualquer que seja o parti pris contra o poeta
pelas suas tendencias ethicas, todos devem admirar n’elle o grande Artista. A moralidade
ou imoralidade dos seus livros não conta nada para o juízo que se faça da sua Arte. Não é
verdade que se trata de um Artista e de um grande Poeta como reconhece o sublime
Espirito de Teixeira de Pascoaes nas admiraveis palavras que prefaciam o livro Canções?
Pois isto basta. Quantas obras d’Arte não se teriam de banir se n’ella sempre se exigisse a
mais burguesa moralidade! Esta nada tem que vêr com a arte, nem mesmo com a arte
272
No espólio pessoano da Biblioteca Nacional existe um dactiloscrito com o mesmo título (BPN/E3,
14A-37) que é uma versão ligeiramenete diferente da primeira parte deste artigo, o qual Jerónimo Pizarro
e Nuno Ribeiro aparentemente atribuem a Fernando Pessoa (BOTTO, 2010: 113-117). Teria o escritor
dactilografado o artigo do amigo, ou teria «António Botto e o Sentido Íntimo do Rythmo» sido escrito a
duas mãos, por ele e por Raul Leal? Pessoa não conseguia evitar a sua aversão «pelo acto de acabar seja o
que for» (ZENITH, 2003: 101) e as diferenças entre a primeira e a segunda parte do artigo apontam para
esta hipótese.
244
religiosa que póde ser bem livre. A moralidade burguesa é para os lutheranos. E isto
provarei eu nas minhas obras.
Mesmo que se discorde dos assumptos escolhidos por Antonio Botto, o que ninguem
póde affirmar é que elle não seja o Artista e o Poeta que o quasi divino Teixeira de Pascoaes
é o primeiro a admirar. Ora é bem melhor attender-se á Arte de Antonio Botto do que ás
suas immoralidades. (O DIA, 1915: 2)
V.6.2. Sodoma Divinizada
Segundo Álvaro Maia, a operação crítica de Pessoa sobre o livro de António
Botto mais não seria do que uma «exibição patológica do desejo de fazer escândalo».
Talvez para contrariar esta crítica, em vez da esperada réplica do editor de Canções, o
quinto número da Contemporanea, publicado em Novembro de 1922, apenas inseria
uma irónica e desconcertante rectificação ao artigo de Álvaro Maia: «Pede-nos o Sr.
Fernando Pessoa que indiquemos que houve um lapso ou erro de citação no trecho de
Winckelmnann, na forma que lhe deu o Sr. Álvaro Maia ao transcrevê-lo do estudo
António Botto e o Ideal Estético em Portugal, em que aparece traduzido. Onde o Sr.
Álvaro Maia transcreve “tem de ser concebida”, está na tradução transcrita “tem que ser
concebida” – exactamente como em Português» (CONTEMPORANEA – JORNAL, 5: 1) 273.
Contudo, o distanciamento de Fernando Pessoa da controvérsia sobre a «Literatura de
Sodoma» foi acompanhado pelo envolvimento de Raul Leal, a partir da publicação do
seu artigo pelo jornal O Dia, em 16 de Novembro de 1922. Com efeito, a réplica à
crítica de Álvaro Maia, «Literatura de Sodoma: O Sr. Fernando Pessoa e o Ideal
Estético em Portugal», foi publicada pela editora Olisipo no início de 1923, num folheto
intitulado Sodoma Divinizada, «por Raul Leal (Henoch)», no qual foi também
reimpresso o artigo «António Botto e o Sentido Íntimo do Ritmo». Desta forma, Leal
assumia o papel de interlocutor de Álvaro Maia, substituindo assim Pessoa, «uma das
mais altas individulidades de toda a nossa literatura, tão rica de Espíritos», na
controvérsia sobre a «Literatura de Sodoma». Neste sentido, Raul Leal invoca as
palavras encomiásticas de Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes sobre o livro de
António Botto, aconselhando o «Sr. Maia» a não contrariar «a opinião dos Grandes»,
para não «cair no ridículo» (LEAL, 1923: 9-10):
273
Numa carta para António Botto, de 21 de Novembro de 1922, Fernando Pessoa escreveu: «Até agora
nada há a dizer. As Canções estão à venda aqui e as remessas para a Província já foram feitas. O editorial
tem irritado bastante, mas não tenho informações mais detalhadas» (PESSOA, 1999a: 407).
245
Publicou o sr. Alvaro Maia na Contemporanea um artigo bastante infeliz,
criticando um outro do meu querido Fernando Pessoa sobre a bela individualidade de
Antonio Botto. Nesse artigo o sr. Maia, sem argumentar, cobre o autor das Canções de
insultos os mais grosseiros. E atravez duma pretenciosa e falsa erudição em que só se sente
vazio, não havendo na sua obrinha a mínima substancia, não havendo enfim, nada, o sr.
Maia chega ao ponto, na sua bilis ínvejosa e despeitada perante a alheia formosura do
corpo e do espirito que ele, coitado, não pode possuir, chega ao ponto, digo, de negar
talento e arte ao grande poeta que é Antonio Botto. Ora mais respeito pelos artistas, sr.
Maia. O sr. não tem o direito de cuspir na Arte lá porque é torto e feio. Se Deus lhe deu
essa figura por alguma coisa foi e nessas condições o sr. que se diz tão religioso, submeta-se
sem revolta, sem gestos abominaveis de bilis plebeia, á vontade divina. (LEAL, 1923: 9-10)
Tal como Pessoa criou a sua própria corrente literária, o sensacionismo, Raul
Leal foi também o criador do vertiginismo274, depois convertido em religião vertígica,
da qual ele seria o profeta, adoptando o nome de Henoch275. Enquanto Pessoa fez a
apologia de Canções a partir do ideal grego pagão, Raul Leal procurou defender a
poesia de Botto através da sua interpretação singular da doutrina cristã. Para Henoch, a
operação crítica de Álvaro Maia não passava de «insultos baixos e soezes», de quem era
«torto e feio», pois nas suas «leves reflexões teometafísicas», «a luxúria e a pederastia»
são «Obras Divinas», o que faria de Botto «um dos Eleitos». Leal incensa assim a
luxúria assumida de Canções: «O culto erótico, ao contrário do que julga o Sr. Maia, o
culto do excessivo divino que é a Vertigem pura, bestial encarnada mundanamente na
luxúria, é a vertiginização do culto estético». Neste contexto Henoch considera que a
«Luxúria é a mais alta manifestação de Mundo, é o mundo em toda a sua bestialidade
convulsivamente divina quando elevado ao puro paroxismo. E se o mundo é sagrado,
sagrada, divina é a Luxúria!». Para justificar a sua postura, Henoch convoca então «os
Grandes Devassos da Idade Média, S. Jerónimo e Santo Agostinho seguidos por Santa
Teresa de Jesus e Maria Alacoque». Segundo Raul Leal, estes santos teriam chegado a
«Deus através da Besta», porque só «através de bestialidades puras se atinge o Sublime
dos Céus». Neste sentido, os «êxtases misticamente luxuriosos dos ascetas exprimiam
274
Lembremos a sua «novela vertígica», «Atelier», publicada em Orpheu 2, e na relação do vertiginismo
de Leal com o vorticismo difundido pela revista inglesa Blast que, à semelhaça de Orpheu, apenas
publicou dois números em 1914. Estas estéticas coevas foram ambas manifestações do modernismo,
apesar das diferenças evidentes.
275
Nome bíblico citado várias vezes no Génesis. Caim fundou uma cidade à qual deu o mesmo nome do
seu filho, Henoch. Também se chamava Henoch o filho de Jared e pai de Matusalém, o qual, segundo A
Bíblia, teria vivido 365 anos (AA.VV., 1993: 8-9).
246
bem a Carne em convulsões pela grandeza vertígica de Deus. Há neles os espasmos
delirantes do cio através de que a Matéria e o Espírito se confundem em Vertigem»
(LEAL, 1923: 9-13).
A proposito da bela individualidade de Antonio Botto, o sr. Maia ataca a luxuria e
a pederastia, Obras Divinas. Incapaz de sentir os prazeres altíssimos da Carne-Espirito que
o Verbo consagrou, ataca-os duma forma vil e tola. Como a Razão heretica, filha da
Serpente e de Antichristo, contraría o delirio da carne divinisada que é uma expressão de
loucura bestialmente espiritual a negar a Razão, sacrilega anti-Loucura, anti-Vertigem, o
sr. Maia, esquecendo-se de que o racionalismo é filho dos ultimos seculos de heresia e livre
exame, enaltece-o encomiasticamente só para satisfazer a sua bilis contra a vertigem
luxuriosa na Vida, antitese da Razão. (LEAL, 1923: 10-11)
Para justificar a grandeza de António Botto, Raul Leal utiliza uma singular
gramática argumentativa, impregnada de misticismo, ascetismo e loucura, elementos
estruturantes do mundo inspirado, segundo a teoria de Boltanski e Thévenot. «Nos
êxtases eróticos dos ascetas que sentem espiritualmente vibrar em si próprios a carne do
Verbo, há toda a bestialidade-delírio da Vertigem divina a convulsionar a alma, assim
misticamente carnalizada. É que os espasmos da Luxúria em que há Carne-Espírito a
vibrar indefinidamente, são obra suprema de Deus. Eles são a própria Vertigem divina,
a loucura celestial de Deus a manifestar-se bestialmente, sublimemente». Desta forma
«se deve consagrar a luxúria, manifestação mundana de Deus em Vertigem, que é o
próprio Deus, o próprio infinito essencializado». Henoch afirma então que a «Luxúria
só por si não é condenável», pois sendo «a mais alta manifestação do Mundo», ela
revela «a exaltação bestialmente vertígica dos Céus». No seu vertiginismo, seria
repreensível «tudo aquilo em que não se sente espírito divino», pelo que a luxúria
apenas seria condenável «quando for só feita de Natureza, não exalando puro
Sobrenatural em Deus» (LEAL, 1923: 13-17).
Portanto Sodoma não foi condenada ás chamas por ser viciosa mas por não ser
misticamente viciosa. A sua exaltação de vicio era uma exaltação terrena em que Deus
jámais era sentido, sendo só sentida a Terra e o Homem-Natureza, alheiado da sua essencia
sobrenatural, divina. Foi só por isso, foi só pelo facto dos viciosos não serem exaltadamente
misticos, não vivendo Deus na Luxuria, que Sodoma foi castigada como castigados por
Christo foram os vendilhões no Templo. Eles exerciam apenas ocupações terrenas, mal se
compenetrando da Existencia Divina e portanto era uma profanação naturezas só da Terra
247
exercerem uma profissão só terrena no Templo sagrado de Deus. Luxuria, luxo, comercio,
industria, ciencia, filosofia devem ser abominadas quando se exercem apenas duma forma
terrena, alheiada dos Céus. Mas quando o sopro divino destes animar quaesquer ocupações
da Vida, quando essas ocupações forem formas particulares de ascése, então elas se
divinisarão, saindo da sua atitude profana e heretica. Emquanto só da Terra é que tudo é
condenavel, desde a vida do lar ou a atividade bruta e inteligente das oficinas até á
prostituição ou aos movimentos sociais revolucionarios. (LEAL, 1923: 19-20)
Segundo o «profeta» Henoch, na Terra «tudo é condenável», pelo que abomina
«a luxúria que não é de místicos e não se exerce misticamente. Mas quando assim se
exerce o caso é diferente, então Sodoma diviniza-se». Na sua gramática argumentativa,
o antagonismo entre a virilidade e a feminilidade «foi obra da Serpente que quis assim
destruir a unidade essencial da Vida que tem Deus por essência, Deus que é a unidade
pura»276. Desta forma, a «divisão da Vida em duas partes, em dois sexos é herética»,
razão pela qual, para «atingir a nossa essência divina», seria necessário «restabelecer
antes de mais nada a unidade da Vida em nós, fundindo os sexos num só». Neste
sentido, «a Vida não deve surgir mais dividida em duas partes, em dois sexos
diferentes» e, sendo a pederastia «a mais alta afirmação de virilidade», é ela, «ainda
276
Nesta frase, Raul Leal alude a conhecida passagem do «Génesis», sobre a tentação de Eva pela
serpente no jardim do Éden:
«Ora a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o Senhor Deus tinha feito. E esta
disse à mulher: É assim, que Deus disse: Não comereis de toda a árvore do jardim?»
E disse a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim comeremos,
Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis,
para que não morreis.
Então a serpente disse à mulher: Certamente, não morrereis.
Porque Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus,
sabendo o bem e o mal.
E vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável
para dar entendimento, tomou o seu fruto, e comeu, e deu, também, a seu marido, e ele comeu com ela.
Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e
fizeram para si aventais.
E ouviram a voz do Senhor Deus, que passava no jardim pela viração do dia: e escondeu-se Adão e sua
mulher da presença do Senhor Deus, entre as árvores do jardim.
E chamou o Senhor Deus a Adão, e disse-lhe: Onde estás?
E ele disse: Ouvi a tua voz soar no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-me.
E Deus disse: Quem te mostrou que estavas nu? Comeste tu da árvore de que te ordenei que não
comesses?
Então disse Adão: A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi.
E disse o Senhor Deus à mulher: Porque fizeste isto? E disse a mulher: A serpente me enganou, e eu
comi.
Então o Senhor Deus disse à serpente: Porquanto fizeste isto, maldita serás mais que toda a besta, e
mais que todos os animais do campo: sobre o teu ventre andarás, e pó comerás, todos os dias da tua vida.
E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente: esta te ferirá a cabeça, e tu
lhe ferirás o calcanhar.
E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua Conceição; com dor terás filhos; e o teu
desejo será para o teu marido, e ele te dominará (AA.VV., 1993: 7).
248
melhor do que o safismo, que nos conduz a essa unificação teometafísica da Vida». Por
isso, para Raul Leal, «consagrada não deve ser apenas a luxúria em geral, consagrada
deve ser também a pederastia, quando divinamente sentida» (LEAL, 1923: 17-21).
É necessario restabelecer atravez de nós a unidade de Deus que se no fundo é iterna, para
nós não o é, estando nós alheiados dela visto pela Serpente nos termos dividido em duas
partes. Estas devem confundir-se no mesmo ser se queremos essencialisar-nos, se queremos
atingir a nossa essencia e portanto a nossa unidade essencial que é o Infinito, uno por
natureza, que é enfim Deus. O Infinito não se divide em duas partes, é o supremo Um, e
portanto o ponto de vista que vivemos da divisão da Vida em duas partes, em dois sexos é
heretico porque pretende destruir o Infinito, dividindo-o, porque pretende destruir o
espirito uno de Deus. Se queremos atingir a nossa essencia divina, puramente una, temos de
restabelecer antes de mais nada a unidade da Vida em nós, fundindo os sexos num só. E é a
pederastia, ainda milhor do que o safismo, que nos conduz a essa unificação theometafísica
da Vida. Aliás a pederastia é a atração da Força, é a mais alta manifestação de virilidade.
Por isso tantos guerreiros – Cesar ou Frederico o Grande, por exemplo – são pederastas. E
não ha sacerdotes da Igreja, dos mais piedosos, que o são igualmente? (LEAL, 1923: 18)
Na sua gramática argumentativa, Raul Leal afirma que o «culto luxurioso das
formas bestiais não é pois antiestético, como pensa o Sr. Maia, podendo até ser divino»,
pois o «facto de haver artistas que não são talvez luxuriosos, não prova que a Luxúria
não seja em muitos casos o paroxismo da arte» (LEAL, 1923: 13). Para Henoch, «o culto
do excessivo divino que é a Vertigem pura, bestial encarnada mundanamente na luxúria,
é a vertigificação do culto estético que, elevado assim a um atordoamento delirante,
atinge o supremo paroxismo». Neste sentido, Raul Leal distingue o esteticismo vertígico
o «Belo, limitado por natureza», do «Sublime que não conhece limites, que só conhece
a loucura delirante do Infinito que é Deus» (LEAL, 1923: 12). Em concordância com a
operação crítica de Fernando Pessoa, Raul Leal afirma então que «António Botto não
satisfaz o ideal do luxurioso e pederasta místico», isto é, não atingiria o sublime, mas
apenas o belo. Mas isso dever-se-ia «principalmente ao meio em que vivemos, meio
perverso em que se não sente Deus que assim se mantém alheado de nós». Henoch
termina o seu texto com uma proposta para resolver, através da religião vertígica, o que,
na sua opinião, era um problema social: «Criem-se templos de Luxúria em que esta
tome uma feição litúrgica e só então surgirá o verdadeiro sensualismo místico que há-de
exprimir a divinização do Mundo, a divinização de Sodoma» (LEAL, 1923: 21).
249
O culto erotico, ao contrario do que julga o Sr. Maia, o culto do excessivo divino
que é a Vertigem pura, bestial encarnada mundanamente na luxuria, é a vertigificação do
culto estetico que, elevado assim a um atordoamento delirante, atinge o supremo
paroxismo. A emoção luxuriosa é a emoção estetica convulsivamente infinitizada. O
estetismo simples atinge só a beleza determinada e pois com limites a delimital-a, ao passo
que o erotismo puro vae além de todos os limites, atingindo a vertigem do Infinito. A
diferença, se é qualitativa, é por excesso absoluto de quantidade: o Infinito
qualitativamente se distingue do Limitado mas porque se distingue dele quantitativamente
em excesso. O erotismo e a luxuria são pois bem o paroxismo infinitamente convulsivo,
vertigico do estetismo puro, não contrariando este como julga o sr. Maia. Num caso temos
apenas o Belo, limitado por natureza, no outro caso temos o Sublime que não conhece
limites, que só conhece a loucura delirante do Infinito que é Deus. (LEAL, 1923: 12)
V.6.3. «Higiene Moral e Social»
Parece evidente que o folheto de Raul Leal, Sodoma Divinizada, publicado por
Fernando Pessoa no início de 1923, não deixaria de despertar reacções de perplexidade
e repúdio. Com efeito, na primeira página da edição de 20 de Fevereiro, o jornal A
Época publicou uma notícia intitulada «HIGIENE MORAL», informando que os
estudantes das escolas superiores de Lisboa iriam «iniciar um grande e imediato
movimento de acção moralizadora»277. Segundo o jornalista, nos «últimos tempos, a par
de outros sintomas alarmantes, como o torpíssimo baile da Graça278, apareceram por aí,
à venda nas montras de conhecidos livreiros, […] uns livros, onde não sabemos o que
seja mais repugnante e baixo, se a infâmia da linguagem, se a falta de vergonha de quem
assina; se a ganância miserável de quem vende ou a falta de escrúpulos do comprador».
Para o articulista, as autoridades faziam «vista grossa» a essas «desavergonhadas
manifestações de decadência moral», razão pela qual «a pornografia mais hedionda,
segura da impunidade, alastra por todos os cantos da cidade, desde o postal obsceno ao
livro ignominioso» (A EPOCA, 1293: 1).
277
Segundo Manuela Parreira da Silva, «A Época, dirigida por Fernando de Sousa (futuro director de A
Voz), era um jornal católico e reaccionário, na esteira do extinto Portugal, cujo director, Padre Matos, foi
alvo das sátiras de Pessoa, já em 1909» (PESSOA, 1999a: 453).
278
Segundo Aníbal Fernandes, o «baile da Graça» foi um evento com entrada exclusiva para homens, que
decorreu neste bairro lisboeta, no carnaval de 1922, o qual foi interrompido pela polícia, que deteve os
dançarinos (LEAL, 1989: 34). Este escândalo remete para o recrudescimento da cultura homossexual
durante os «anos loucos» da década de vinte, designadamente através da literatura importada de França.
250
Perante a «pavorosa indiferença» das autoridades, «alguém, movido pela mais
íntima revolta», propunha-se «queimar a ferro em brasa esses cancros de depravação de
costumes e de espíritos». O jornalista relatava então a «grande reunião de alunos das
escolas superiores de Lisboa» realizada no dia anterior, «onde foram analisados os
aterradores sintomas» referidos, e na qual «foi resolvido iniciar-se um grande e imediato
movimento de acção moralizadora, tendente a reprimir, com a máxima energia e por
todos os meios, a continuação e o aumento do miserável estado social» (A EPOCA, 1291:
1).
Dois dias depois, em 22 de Fevereiro, o mesmo jornal informava que o grupo de
estudantes moralizadores tinha formado uma Liga de Acção, chefiada por Pedro
Teotónio Pereira, «antigo director da Federação Académica de Lisboa e distintíssimo
aluno do 4.º ano de matemática da Escola Politécnica»279. Em entrevista, este jovem,
que contava então 21 anos de idade, revela os objectivos da Liga de Acção dos
Estudantes de Lisboa, a qual era formada sobretudo por jovens católicos e monárquicos
(A EPOCA, 1293: 1):
– Por onde vão começar – interrogou o jornalista – essa obra de higiene moral e
social?
– Ha tantas coisas para fazer, meu caro amigo, que não sei por onde
começaremos… No entanto, dir-lhe-hei que principiaremos, em boa ocasião, por meter na
ordem esses equivocos senhores, que andam por ahi, nas ruas e nos cafés irritando o
indigena – como eles dizem – com maneiras femininas e elegancias ridiculamente
exageradas.
– Refere-se…
– Aos meninos desavergonhados, que frequentam clubs e baile duvidoso e que,
n’um dia de carnaval, foram presos na Graça e logo soltos por andarem vestidos de
mulher… Lembra-se?
– Sim, vagamente…
– Pois esses meninos escandalosos vão ser metidos na ordem mais depressa do que
V. julga…
– Como?
– Verá depois. Na ocasião actual, em que toda a gente ou quasi toda se furta a
responsabilidades, nós – os estudantes – vamos tomar aos nossos hombros a tarefa de
queimar a ferro em brasa, expondo-os á luz do sol, esses cancros nauseabundos, que teem
279
Pedro Teotónio Pereira (1902-1972) seria uma das principais figuras do Estado Novo, exercendo os
cargos de Subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social e de Ministro do Comércio e
Indústria. Foi nomeado embaixador em Madrid durante a Segunda Guerra Mundial e posteriormente
embaixador no Rio de Janeiro.
251
medrado á custa da fraqueza de uns e da tolerancia incompreensivel de outros […]. (A
EPOCA, 1293: 1)
Seguindo a sugestão de Álvaro Maia, que na sua operação crítica referira «as
coisas inúteis que são lançadas ao fogo…», em 25 de Fevereiro de 1923, A Época
publicou, na primeira página, uma nota intitulada «Livros para o Fogo», condenando
«certas publicações escandalosas que se não podem ter em casa e cujo título nem deve
ser referido para se lhe não fazer reclamo. E há livrarias que descem à miséria de as
estadiar nos seus mostradores! E há jornais que as mencionam e as elogiam!». Ainda
que o jornalista anónimo não referisse o título dos livros nem os seus autores, é possível
que Fernando Pessoa tivesse enviado para A Época os exemplares publicados pela
Olisipo, usando a sua proverbial ironia para agradecer o «reclamo», pois o mesmo
jornalista lamenta «ter que corresponder nestes termos à atenção da oferta dessas obras,
em prosa umas, outras em verso». A nota continua, referindo obviamente o opúsculo de
Raul Leal, Sodoma Divinizada: «Produções de manicómio com título pornográfico;
baixo soalheiro, corrupto e corruptor, da derrancada sociedade frequentadora das casas
de tavolagem». Mas o articulista aborda também Canções, ainda que sem o nomear, nas
suas «composições ignóbeis, em que um talento poético prostituído faz gala da miséria
repugnante; tudo isso, impresso luxuosamente em óptimo papel: são livros que
pertencem mais ao domínio da polícia, que da crítica». Tal como no início, o lume é
também referido no final da nota, evocando assim a longa tradição dos autos-de-fé em
que se queimavam os livros inscritos no Index, quando não os próprios autores280. Uma
280
O Index Librorum Prohibitorum (traduzido do Latim: Índice dos Livros Proibidos), era a lista
exaustiva das publicações interditas pela Igreja Católica, bem como das normas a aplicar pelos censores.
A primeira versão do Index foi promulgada pelo Papa Paulo IV em 1559 e aprovada no Concílio de
Trento; a última edição foi publicada em 1948, tendo sido abolida em 1966 pelo papa Paulo VI. Esta
trigésima-segunda edição do Índex continha mais de 5000 títulos proscritos, livros considerados imorais
ou que colidiam com a doutrina da Igreja Católica. Muitos cientistas, filósofos e escritores constaram no
Index, designadamente John Milton, Daniel Defoe, Jonathan Swift, Madame de Staël, Victor Hugo,
Alexandre Dumas, Sade, Balzac, Stendhal, Flaubert, Zola, Maeterlink e Anatole France (Prémio Nobel
1921). Em Roma, o Santo Ofício da Inquisição, antecessor da Congregação para a Doutrina da Fé, era a
instituição católica que julgava a conformidade dos livros às suas normas, concedendo autorização para a
edição, o imprimatur, ou incluindo a obra no Index. Apesar da censura, os livros já publicados e depois
proscritos eram geralmente confiscados e queimados pelo poder temporal. Em Portugal, a Inquisição foi
fundada em 1536 pelo rei João III e oficialmente extinta em 1822, após a revolução liberal de 1820,
embora, de facto, ela tenha sido lentamente esvaziada ao longo do século XVIII, particularmente durante
o consulado do primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782). O Santo Ofício tinha
funções repressivas, explícita ou implicitamente, ao nível ideológico, económico e social, sendo
mandatado pelo poder régio para exercer a censura, emitir pareceres e julgar os acusados de heresia.
Grandes nomes da literatura portuguesa pagaram a sua liberdade criativa com o cárcere, a tortura ou a
morte, nomeadamente Damião de Góis, Francisco Manuel de Melo, António Vieira, Correia Garção,
252
vez que, segundo o jornalista, tais «publicações escandalosas» não poderiam «ser
guardados em estante que se preze», que alimentassem pois, «sem reclamo prévio, o
fogo purificador, havendo para com os autores a deferência de lhes não citar os nomes»
(A EPOCA, 1296: 1).
Ao fogão vão parar certas publicações escandalosas que se não podem ter em casa
e cujo titulo nem deve ser referido para se lhe não fazer reclamo. E ha livrarias que descem
á miseria de as estadear nos seus mostradores! E ha jornaes que as mencionam e elogiam!
Pesa nos ter que corresponder nestes termos á atenção da oferta d’essas obras em
prosa umas, outras em verso.
Produções de manicomio com titulo pornografico; baixo soalheiro, corrupto e
corruptor, da derrancada sociedade frequentadora das casas de tavolagem; composições
ignobeis, em que um talento poetico prostituido faz gala da miseria repugnante; tudo isso,
impresso luxuosamente em optimo papel; são livros que pertencem mais ao dominio da
policia que da critica, nem podem ser guardados em estante que se preze.
Alimentem pois esses livros, sem reclamo previo, o fogo purificador, havendo para
com os autores a deferencia de lhes não citar os nomes. (A EPOCA, 1296: 1)
Em 3 de Março de 1923, depois das movimentações estudantis e da campanha
moralizadora do jornal A Época, o governador civil de Lisboa proibiu a exposição e
venda dos livros controversos, mandando apreender os que se encontravam à venda. Os
livros confiscados pela polícia eram, obviamente, Canções, de António Botto, e o
folheto de Raul Leal Sodoma Divinizada, editados pela Olisipo, mas também
Decadência, de Judite Teixeira (1880-1959), poetisa sáfica colaboradora da revista
Contemporanea281. António Botto veio então a público com um pequeno panfleto, «O
Meu Manifesto a Toda a Gente», para contestar os críticos e repudiar a acção das
autoridades. Segundo o escritor censurado, alguns dos «mais altos espíritos» do seu
Filinto Elísio e Bocage. O caso mais célebre foi, provavelmente, o do escritor António José da Silva,
designado «O Judeu», nascido no Rio de Janeiro em 1705, preso em 1726 e torturado; preso de novo em
1737 e executado em 1739, num auto-de-fé realizado em Lisboa.
281
A «poesia sáfica» tem origem etimológica na poetisa grega Safo (séculos VII-VI a.C.), que teria
inaugurado a tradição literária homoerótica feminina, enquanto a poesia homoerótica masculina foi
designada «uraniana» pela crítica literária. Segundo René Garay, «Judith Teixeira, nascida em Viseu, a 25
de Janeiro de 1880 e falecida em 1959», deixou «para a posteridade três belíssimos livros de poemas, a
saber: Decadência (1922), Castelo de Sombras (1923) e Nua: Poemas de Bizâncio (1926). Melhor que
ninguém, sabem os críticos literários como difícil é catalogar os escritores em escolas literárias. Não
podemos, contudo, deixar de considerar Judith Teixeira uma poetisa peculiar no panorama literário
português, pela originalidade da sua arte poética e pelo seu franco desprezo pelas convenções
tradicionais. Para além disso foi uma das poucas mulheres, se não a única, a evidenciar-se no campo
decadentista, que sofreu as marcas da perseguição sócio-política.» (GARAY, 2002: 16-17).
253
tempo diziam-lhe que as suas «Canções de Renascença» eram constantemente
insultadas, e que o seu «nome de Artista» era diariamente agredido. Contudo, para
Botto, o seu livro era «um raro ensinamento de beleza e uma grande lição de estética a
todas as mocidades» porque cantava, de «forma elegantemente notável, os encantos» do
corpo e as sensações da alma (BOTTO, 2010: 133). Fernando Pessoa também decidiu
escrever um protesto contra a apreensão dos livros que editou, no qual abordaria a
«relação entre autor e editor», bem como a «responsabilidade moral» deste perante o
público. Contudo, tal como o folheto sobre a «nova poesia portuguesa» e tantos outros
projectos, o protesto parece ter ficado em rascunho282.
No dia 3 de Março foram apreendidos, por agentes do Governo Civil de Lisboa, os
exemplares em venda dos livros «Canções», de António Botto, e «Sodoma Divinizada», de
Raul Leal, de ambos os quais sou editor. Venho protestar publicamente, e com os
fundamentos que constituem a substância deste manifesto, contra essa apreensão.
Como sou editor desses livros, pode julgar-se que o motivo do meu protesto é o
prejuízo material, que porventura a apreensão me causasse. Devo declarar que não é. Em
primeiro lugar, um prejuízo material não pode servir de razão à publicação de um
protesto: torna-o explicável, porém não o torna legítimo, por isso que a legitimidade não
tem fundamentos senão morais. Em segundo lugar, não houve prejuízo material. Os
agentes do Governo Civil apreenderam o pouco, que estava para vender nas livrarias; o
vendido estava vendido, e o que não estava nas livrarias também não estava onde eles o
encontrassem. (BOTTO, 2010: 119-120)
V.6.4. Literatura e homofobia
Em 6 de Março de 1923, o jornal A Época continuou, na primeira página, a sua
campanha pela «HIGIENE MORAL E SOCIAL», reproduzindo um manifesto «Dos
Estudantes das Escolas Superiores de Lisboa aos poderes constituídos e a todos os
homens honrados de Portugal». A notícia informava também que os estudantes tinham
sido recebidos, no dia anterior, pelo governador civil, capitão Viriato Lobo. Os «rapazes
reuniram em grande número – deviam ser umas 5 horas da tarde – ao princípio da rua
António Maria Cardoso, saindo dali em grupo para o governo civil, onde tiveram uma
conferência com o chefe do distrito». Segundo o jornalista, os estudantes ficaram
satisfeitos com o empenho do governador civil na «luta contra os vários aspectos da
282
Dactiloescrito (BNP/E3, 55E-25 a 27).
254
imoralidade»283. Por sua vez, o capitão Viriato Lobo não escondeu a sua simpatia pela
atitude dos estudantes, informando-os «que já tinha mandado apreender algumas
edições de livros onde não sabemos qual seja o maior defeito: se a falta de talento, se a
falta de vergonha…» (A EPOCA, 1305: 1). Depois da audiência, os estudantes dirigiram-se
«a diversos pontos da baixa, distribuindo milhares de manifestos, que eram lidos com
aprovação entre o público em geral». O articulista refere ainda que os «próprios
livreiros foram gentilíssimos para com os rapazes, prometendo-lhes não aceitar à
comissão nem vender a tal literatura de Sodoma», concluindo que as «escolas superiores
de Lisboa podem orgulhar-se de ter iniciado ontem um dos mais belos movimentos dos
últimos anos». No seu manifesto, os estudantes afirmam que «Sodoma ressurge nos
livros e nos escritores, nos espíritos e nos corpos. Atingiu-se a última abominação,
aquela que nas tradições bíblicas fazia chover o fogo do céu». Os estudantes apelavam
«a todos os homens honrados de Portugal» para um «movimento enérgico» contra os
que, na sua opinião, teriam derrubado «todas as fronteiras do espírito entre a
inteligência e a loucura, entre a beleza e a perversão». Neste sentido, pediam aos
«poderes instituídos» justiça «pronta e implacável», que «castigue em nome do bem
público», os «adeptos da infâmia» (A EPOCA, 1305: 1):
Mascarados em mil hipocrisias literarias, em pseudo filosofias extravagantes,
encobrindo a sua animalidade em frageis farrapos de escolas inverosimeis, todos os baixos
instintos humanos, numa liberdade desvairada, se erguem, alastram, dominam como flôres
de pantano no crepusculo triste duma terra abandonada.
É contra essa dispersão, contra essa inversão da inteligência, da moral e da
sensibilidade, que nós gritamos numa revolta sagrada da nossa dignidade de homens, o
protesto vibrante dos que não deixam cerrar os seus olhos à luz da Verdade.
Já não se paira, por desgraça, no campo das atitudes snobs e literarias. Já se não
pode sorrir impunemente. Fazer blague é ser-se cumplice.
Sodoma ressurge nos livros e nos escritôres, nos espiritos e nos corpos. Atingiu-se a
última abominação, aquela que nas tradições biblicas fazia chover o fogo do ceu.
Urge a reacção pronta e implacavel. Á frente dela se levanta a nossa mocidade
forte e resoluta. Nas nossas mãos brandimos o ferro em brasa que cicatriza as chagas.
283
Importa referir o que o próprio Pedro Teotónio Pereira, citado por René Garay, escreveu nas suas
Memórias, publicadas em 1972: «Declarámos guerra à corrupção literária e propúnhamo-nos agir em
todos os casos em que a autoridade se confessasse pouco segura de intervenção… O governador civil era
um oficial do exército, major Viriato Lobo, aluno da minha Faculdade, excelente camarada e sempre
pronto a interessar-se por causas académicas. Estávamos inteiramente de acordo nas medidas a tomar, que
incluíam um susto a umas tantas livrarias e a inclusão, numa lista, dos autores que se mostrassem mais
recalcitrantes» (GARAY, 2002: 17).
255
A quem manda nós apontamos hoje a necessidade imperiosa de fazer justiça. É
preciso que os livreiros honrados expulsem das suas casas os livros tôrpes. É necessário que
os adeptos da infamia caiam sob a alçada da lei, que um movimento energico de repressão
castigue em nome do bem público.
Que a justiça venha e implacavel!
A Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa
(A EPOCA, 1305: 1)
Quando os estudantes distribuíram o seu manifesto, os livreiros «gentilíssimos»
teriam retirado os «livros torpes» das montras e escaparates, garantindo que não
venderiam «a tal literatura de Sodoma», mas a verdade é que os livros da polémica
continuaram a ser vendidos «por baixo do balcão». Na edição de 28 de Março de 1923,
A Época dava conta dessa actividade comercial, primeiro «às ocultas», depois «à
vontade», em mais um artigo de primeira página da sua campanha pela «HIGIENE
MORAL E SOCIAL». Entrevistado pelo jornalista, Pedro Teotónio Pereira confirmou
«que nas montras da Livraria Portugal e Brazil se encontrava uma obra pornográfica»
(A EPOCA, 1327: 1). Depois de ter falado de novo com o governador civil, o estudante
dirigiu-se à livraria, pedindo explicações ao gerente, mas este teria afirmado «que
ignorava a proibição e não retiraria a obra da sua montra». Em face desta recusa, os
estudantes dirigiram-se mais uma vez à livraria, agora acompanhados por agentes da
autoridade, os quais teriam informado oficialmente o livreiro da proibição, mas este,
entretanto, retirara da montra o livro polémico. Foi nesta ocasião que se verificou a
intervenção inusitada de «um cavalheiro elegante, de monóculo, farto bigode de
azeviche», que se identificou como Presidente da Academia das Ciências, ao qual
Teotónio Pereira teria respondido ser o Presidente da Associação de Estudantes da
Faculdade de Ciências. O cavalheiro era o próprio Júlio Dantas284, que se mostrou
indignado com a proibição, envolvendo-se também na controvérsia sobre a «Literatura
de Sodoma» (A EPOCA, 1327: 1).
284
Segundo José Camões, Júlio Dantas foi nomeado membro da Academia das Ciências de Lisboa em
1908 e eleito seu presidente em 1922. Júlio Dantas granjeara até esta época grande prestígio, colaborando
em diversos jornais e revistas. Escreveu uma vasta obra literária, cultivando principalmente o género
dramático. Foi Comissário do Governo no Teatro Nacional, Director da Escola de Arte de Representar
(actual Escola Superior de Teatro e Cinema) e Inspector das Bibliotecas Eruditas e Arquivos. Foi ainda
Presidente do Partido Nacionalista, Ministro da Instrução Pública e Ministro dos Negócios Estrangeiros.
(MARTINS, 2008: 206-107).
256
O sr. gerente foi então informado oficialmente, como desejava, da lei. Segundo declarou, o
unico exemplar que possuía, mandara-o para sua casa…
– Só isso?
– Pouco mais… O caso estava terminado, quando n’isto, um cavalheiro elegante,
de rnonoculo, farto bigode de azeviche, interveiu exaltado e mostrando-se contrario àquela
atitude.
– A sua resposta?
– Nós retorquimos-lhe, afirmando que cumpriamos uma bela missão e aquela que
mais propria era da nossa qualidade de estudantes.
– E o tal cavalheiro?
– Continuou a protestar em grandes frazes. – A certa altura, declarou que era o
Presidente da Academia de Sciencias.
– O sr. dr. Julio Dantas!? – exclamei assombrado…
– Exactamente.
– Você… calou-se.
– Qual! ripostei-lhe dizendo que tambem era Presidente da Associação de
Estudantes da Faculdade de Sciencias.
– Chegaram a acordo?
– Não. O sr. Julio Dantas não concordou. Sua ex.ª lá sabe as linhas com que se cose
e ninguem mais do que nós lhe respeita a liberdade de o fazer. (A EPOCA, 1327: 1)
Tendo reunido «em grande número» para uma acção colectiva, os estudantes
assumiram a relação natural entre os seres do mundo cívico, no qual Pedro Teotónio
Pereira e a Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa constituem o «repertório dos
sujeitos». Se a delegação de poderes no seu dirigente representa a relação de grandeza
entre os indivíduos, a manifestação dos estudantes, pelo que consideravam uma causa
justa, foi a prova modelo, na qual distribuíram o manifesto em que pediam «justiça».
Acedendo ao apelo dos estudantes, o governador civil de Lisboa proibiu os livros
controversos, proporcionando uma forma legal ou instrumento do mundo cívico,
contudo, ao perscrutarem as livrarias, os rapazes constataram «que se iludia a lei» (A
EPOCA, 1327: 1).
Esta desconformidade legal indignou os estudantes, verificando-se
então o episódio entre Teotónio Pereira e Júlio Dantas, no quadro de interacção da
livraria Portugal e Brasil. Nem António Botto, nem Raul Leal, faziam segredo da sua
homossexualidade e, se Almada Negreiros tinha razão quando revelou no seu manifesto
que «Dantas especula e inocula os concubinos», então Júlio Dantas também seria
homossexual (NEGREIROS, 2000: 6). Neste caso, a «estranha atitude do Sr. Presidente da
Academia de Ciências», conforme noticiou o jornalista, ficaria a dever-se à sua
257
solidariedade e não ao reconhecimento do valor da «Literatura de Sodoma».
Justificando os escritores proscritos com o peso da sua autoridade, o académico
defendia a singularidade dos indivíduos inspirados e a sua liberdade criativa, um «bem
comum» que, na perspectiva do escritor Júlio Dantas, se sobrepunha ao «bem público»
defendido pelos estudantes, assente em princípios de «higiene moral e social» (A EPOCA,
1305: 1).
Verifica-se assim que, na controvérsia sobre a «Literatura de Sodoma», o autor
de Pintores e Poetas de Rilhafoles defendeu o «nefando», ou «indizível» do mundo
inspirado, opondo-se deste modo à acção colectiva dos estudantes em defesa de «leis»
morais e sociais oriundas do mundo cívico. O princípio superior comum deste mundo
confere predomínio dos colectivos sobre os indivíduos, razão pela qual Júlio Dantas
invocou o seu estatuto de presidente da Academia das Ciências. Por sua vez, utilizando
a gramática cívica, Pedro Teotónio Pereira contrapôs o seu mandato de presidente da
Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências. Nesta situação face-a-face, os dois
interlocutores não subiram em generalidade para estabelecer um acordo, pelo contrário,
conforme explicita o estudante na sua entrevista: «Não. O Sr. Júlio Dantas não
concordou. Sua Ex.ª lá sabe as linhas com que se cose e ninguém mais do que nós lhe
respeita a liberdade de o fazer» (A EPOCA, 1327: 1). Contudo, a controvérsia sobre a
«Literatura de Sodoma» não se esgotou no episódio picaresco entre Júlio Dantas e
Teotónio Pereira. Se a crítica de Fernando Pessoa, «António Botto e o Ideal Estético em
Portugal», chamara sobre si as atenções e o folheto Sodoma Divinizada, as centrou em
Raul Leal, o manifesto da Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa mereceu também
uma resposta de Álvaro de Campos. O engenheiro sensacionista subscreveu então um
«Aviso por Causa da Moral», no qual defende, sobre a moral sexual, que tudo «está
certo porque tudo não passa do corpo de quem se diverte» (BOTTO, 2010: 131).
Quando o publico soube que os estudantes de Lisboa, nos intervallos de dizer
obscenidades ás senhoras que passam, estavam empenhados em moralizar toda a gente,
teve uma exclamação de impaciencia. Sim – exactamente a exclamação que acaba de
escapar ao leitor…
Ser novo é não ser velho. Ser velho é ter opiniões. Ser novo é não querer saber de
opiniões para nada. Ser novo é deixar os outros ir em paz para o Diabo com as opiniões que
teem, boas ou más – boas ou más, que a gente nunca sabe com quaes é que vae para o
Diabo.
258
Os moços da vida das escolas intromettem-se com os escriptores que não passam
pela mesma razão porque se intromettem com as senhoras que passam. Se não sabem a
razão antes de lh’a dizer, tambem a não saberiam depois. Se a pudessem saber, não se
intrometteriam nem com as senhoras nem com os escriptores.
Bolas para a gente ter que aturar isto! Ó meninos: estudem, divirtam-se e calemse. Estudem sciencias, se estudam sciencias; estudem artes, se estudam artes; estudem
lettras, se estudam lettras. Divirtam-se com mulheres, se gostam de mulheres; divirtam-se
de outra maneira, se preferem outra. Tudo está certo, porque não passa do corpo de quem
se diverte. […]
ALVARO DE CAMPOS
(BOTTO, 2010: 131)
V.6.5. A tensão entre os mundos inspirado e cívico
Também Raul Leal se voltou a envolver na controvérsia sobre a «Literatura de
Sodoma», publicando o panfleto «Uma Lição de Moral aos Estudantes de Lisboa e o
Descaramento da Igreja Católica», pelo «profeta Henoch». No seu panfleto, Raul Leal
manifesta «a maior simpatia» pelos estudantes, mas afirma não ter «o gosto de
conhecer» o Sr. Teotónio Pereira, «que as colunas da Época procuram imortalizar». O
«profeta Henoch» considera ser, «sem dúvida, um desses devassos heréticos»
denunciados pela campanha jornalística que, na sua opinião, apenas serviria «para
satisfazer vaidades e ambiçõezinhas terrenas, insignificantes». Para Raul Leal, a
campanha de «Higiene Moral e Social» tinha por detrás «uma força tremenda», a Igreja
Católica, que «na sombra» teria manobrado os estudantes contra si depois da publicação
do folheto Sodoma Divinizada. «É que no meu folheto eu defendo uma tese com uma
argumentação metafísica e teológica que para a ortodoxia católica é considerada uma
blasfémia e uma heresia». Mas a indignação de Raul Leal não se dirigia apenas aos
católicos ou aos «vaidosos moralistas», pois tendo estado sempre «ao lado dos “novos”,
do mesmo modo que Fernando Pessoa e António Botto», considerava extraordinário
que desses «novos» só tivesse recebido «indiferença ou insultos». Segundo Raul Leal,
apesar de um «protesto tardio contra a apreensão», nenhuma voz entre «os
burguesíssimos artistas “contemporâneos”, se ergueu sinceramente» em seu favor285.
285
Conforme sugere Aníbal Fernandes, é possível que o artigo «António Botto e o Sentido Íntimo do
Rythmo» tenha sido publicado pelo jornal O Dia, em 16 de Novembro de 1922, por José Pacheco se ter
recusado a inserir esta réplica à crítica de Álvaro Maia na sua revista Contemporanea (LEAL, 1989: 71).
259
«Eles sabem muito bem o quanto nós valemos e é por isso que se enchem de inveja e de
despeito perante a nossa superioridade incontestável» (LEAL, 1989: 105-116).
Mas outras causas extraordinárias surgiram. Tendo estado eu sempre ao lado dos
«novos», do mesmo modo do que Fernando Pessoa e António Botto, dos «novos» só têm
vindo indiferença ou insultos. Nenhuma voz, dentre os burguesíssimos artistas
«contemporâneos», se ergueu sinceramente a nosso favor! É espantoso! Falam-me dum
protesto tardio contra a apreensão dos nossos livros, mas esse protesto refere-se só à
apreensão em geral e não ao facto de terem sido apreendidas obras superiores. Espera lá
que eles já se iam referir à superioridade das nossas obras! Que a não reconhecem, dirão;
mas é mentira! Eles sabem muito bem o quanto nós valemos e é por isso que se enchem de
inveja e de despeito perante a nossa superioridade incontestável. Que nós somos superiores,
que Eu sou superior, sabem eles muito bem, os imbecis! Mas é exactamente por isso que
pretendem isolar-me. (LEAL, 1989: 115-116)
Segundo Raul Leal, acontecimentos «como o célebre baile da Graça merecem a
mais profunda repulsa» e se lá tivesse ido, «seria apenas para estudar a psicologia
daquelas alminhas abjectas». Contudo, na organização social «há sempre elementos de
dissolução que são os germes duma nova organização futura, muitas vezes superior à
precedente. Esses germens acentuam-se nas épocas de decadência, que apenas são
épocas de transição». Concordando com a análise sociológica de Fernando Pessoa, Raul
Leal afirma que a decadência surge «porque as novas criações são ainda débeis e os
elementos antigos encontram-se esfacelados». Neste sentido, o «profeta Henoch»
pretende que se deixe «o que está a esfacelar-se e cuja perda é irremediável»,
procurando antes «fortalecer os germens de criações futuras», para «uma nova
organização social bem mais alta do que aquela que vai passando» (LEAL, 1989: 107-114).
Apesar do discurso de Raul Leal, até certo ponto conciliador com os estudantes, estes
teriam emitido um novo comunicado, no qual classificavam Raul Leal como louco.
Fernando Pessoa, que iniciara a controvérsia, resolveu então terminá-la com um folheto
em seu próprio nome, resgatando assim o amigo do isolamento: «Só a última canalha
das ruas insulta um louco, e em público. Só qualquer canalha abaixo dessa imita esse
insulto, sabendo que mente». Neste folheto demolidor, intitulado «Sobre um Manifesto
de Estudantes», Pessoa afirma que «podem aprender, reflectindo, que é a loucura que
dirige o mundo. Loucos são os heróis, loucos os santos, loucos os génios, sem os quais a
260
humanidade é uma mera espécie animal, cadáveres adiados que procriam» (LEAL, 1989:
121-125).
Aos estudantes de Lisboa não desejo mais – porque não posso desejar melhor – de
que um dia possam ter uma vida tão digna, uma alma tão alta e nobre como as do homem
que tão nesciamente insultaram. A Raul Leal, não podendo prestar-lhe, nesta hora da
plebe, melhor homenagem, presto-lhe esta, simples e clara, não só da minha amizade, que
não tem limites, mas também da minha admiração pelo seu alto génio especulativo e
metafísico, lustre, que será, da nossa grande raça. Nem creio que em minha vida, como
quer que decorra, maior honra me possa caber que a presente que é a de tê-lo por
companheiro nesta aventura cultural em que coincidimos, diferentes e sozinhos, sob o
chasco e o insulto da canalha. (LEAL, 1989: 125)
«O mundo cívico tem a particularidade de atribuir uma importância primordial a
seres que não são pessoas». Neste mundo, não são os indivíduos singulares que acedem
às ordens de grandeza superiores, mas as pessoas colectivas que resultam da sua união.
Compreende-se assim a formação da Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa, como
entidade colectiva do mundo cívico, na qual se destacou Pedro Teotónio Pereira, não
pela sua grandeza individual, mas por representar esse colectivo. No mundo cívico, o
colectivo transcende o individual, e «os seres colectivos estão eles próprios incluídos
noutros colectivos de dimensão superior». Este seria o caso da Liga de Acção dos
Estudantes de Lisboa, que pretendia não apenas representar os estudantes, mas também
defender o que consideravam um «bem público», a «higiene moral e social» dos
lisboetas. Neste contexto, um ser é reconhecido como grande se for representativo do
colectivo a que pertence, conferindo-lhe autoridade e poder. Seria este poder, resultante
do mandato dos estudantes, que Pedro Teotónio Pereira pretendia exercer quando se
encontrou com Júlio Dantas na livraria. Se o ser colectivo engrandece os seus
representantes, no mundo cívico as pessoas são reduzidas a uma pequena ordem de
grandeza quando se encontram isoladas, sujeitas a interesses particulares, estando por
isso privadas da força que o colectivo confere. Neste sentido, o princípio de
coordenação do mundo cívico, assente na consciência colectiva, antagoniza a grandeza
singular que rege o mundo inspirado (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 231-241). Assim se
compreende a tensão entre os valores morais, sustentados pelos estudantes, e a liberdade
criativa, defendida pelos escritores da editora Olisipo.
261
CAPÍTULO VI
Mensagem controversa
ACASO
No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.
A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.
Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.
Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.
Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!
[…]
Álvaro de Campos
(PESSOA, 2002: 367)
262
VI.1. A revista Athena
A revista Contemporanea publicou nove números, de Maio de 1922 a Março do
ano seguinte, nos quais surgem textos de crítica literária, poesia e prosa de Fernando
Pessoa e Álvaro de Campos. Após o escândalo da «Literatura de Sodoma», não apenas a
editora Olisipo, de Fernando Pessoa, fechou as portas, mas também a revista
Contemporanea, dirigida por José Pacheco, interrompeu a publicação286. Um ano mais
tarde, em Março de 1924, a Contemporanea, foi ressuscitada por António Ferro e Rui
Vaz (1891-1955)287, mas aparentemente o título esgotara-se288. Em Outubro desse ano,
Fernando Pessoa e Rui Vaz lançaram Athena: revista de arte289, na qual ambos figuram
como directores, o que remete para a parceria entre Fernando Pessoa e Mário de SáCarneiro como directores do segundo número da revista Orpheu. Athena publicou cinco
números, de Outubro de 1924 a Junho do ano seguinte290, encontrando-se nas suas
páginas, entre outros, trabalhos de Mário de Sá-Carneiro, Luís de Montalvor, Raul Leal
e António Botto. A revista reproduz também obras de artistas plásticos como Almada
Negreiros, Lino António (1898-1974), Mily Posoz (1888-1967) ou Mamia Roque Gameiro
(1901-1996). Contudo, a relevância de Athena deve-se sobretudo aos contributos do
próprio Fernando Pessoa, particularmente dos heterónimos, publicando «Odes», de
286
Numa carta para o poeta espanhol Adriano del Valle, de 24 de Setembro de 1924, Pessoa informa que
colaborou nos n.os 4 e 10 da revista Contemporanea, e que este número «não foi feito por José Pacheco,
que na ocasião estava muito doente. Dirigiu-a Ruy Vaz, grande amigo do Pacheco, e co-director comigo
da revista Athena, de que lhe falei, e que sairá agora em Outubro» (PESSOA, 1999b: 47).
287
Segundo Rui Mário Gonçalves, Ruy João Carlos de Morais Vaz era filho do pintor João Vaz (18591931) e, como José Pacheco, era também arquitecto, e ainda pintor e caricaturista, tendo pertencido à
direcção da Sociedade Nacional de Belas-Artes (MARTINS, 2008: 879).
288
José Pacheco publicaria ainda uma terceira série de Contemporanea em Maio, Junho e Julho de 1926.
289
Na mitologia grega, Atena, também designada Palas Atena, era filha de Métis e de Zeus, o pai dos
deuses. Sendo uma das doze divindades do Olimpo, Atena era, por isso, uma das mais importantes deusas
gregas, particularmente na sua cidade de origem, Atenas, influenciando fortemente a cultura helénica.
Desta forma, o culto de Atena foi praticado em toda a Grécia Clássica, incluindo as suas colónias, que se
estendiam do Médio Oriente à Ibéria, mas, enquanto protectora da cidade, em Atenas esse culto assumiu
um carácter extraordinário. No século V a.C., os atenienses erigiram o Partenon, templo da deusa Atena,
que perdurou até à actualidade, simbolizando a cultura helénica. No panteão romano, Atena foi
substituída por Minerva, a qual desempenhava funções similares às da sua antecessora. «É por essa razão
que Atena é geralmente considerada no mundo grego, especialmente na sua cidade, Atenas, como a deusa
da Razão. É ela quem preside às artes e à literatura, função em que tende a suplantar as Musas. Mas ela
tem mais afinidade com a filosofia do que com a poesia e a música propriamente dita» (GRIMAL, 1992:
53).
290
Numa carta para Francisco Costa, colaborador da Athena, com data de 5 de Junho de 1925, Pessoa
escreveu: «Esperava eu que, poucos dias depois de receber a sua carta, estivesse pronto o 5.º número de
Athena; a minha resposta à sua carta acompanharia o envio do número. Com a demora da saída dela, ou
antes, em função dessa demora, se tem dado a da minha carta. De aqui a dois dias o número está pronto,
porém não quero adiar mais tempo escrever-lhe» (PESSOA, 1999b: 79).
263
Ricardo Reis, bem como «O Guardador de Rebanhos» e «Poemas Inconjuntos», de
Alberto Caeiro. Na apresentação da revista, Pessoa afirma que «o que chamamos
cultura» não é senão «o aperfeiçoamento subjectivo da vida» que, sendo directo se
chama arte e sendo indirecto constitui a ciência. Pessoa prossegue em Athena o culto da
Grécia Clássica uma vez que, para o escritor, a deusa grega representava «a união da
arte e da ciência», procurando desta forma contribuir para a formação artística dos seus
leitores (ATHENA, 1: 5).
Estes gregos, que ainda nos governam de além dos proprios tumulos desfeitos,
figuraram em dois deuses a producção da arte, cujas fórmas todas lhes devemos, e de que
só não criaram a necessidade e a imperfeição. Figuraram em o deus Apollo a liga
instinctiva da sensibillidade com o entendimento, em cuja acção a arte tem origem como
belleza. Figuraram em a deusa Athena a união da arte da sciencia, em cujo effeito a arte
(como tambem a sciencia) tem origem como perfeição. Sob o influxo do deus nasce o poeta,
entendendo nós por poesia, como outros, o principio animador de todas as artes; com o
auxilio da deusa se fórma o artista.
Com esta ordem de symbolos – e assim nesta materia como em outras – ensinaram
os gregos que tudo é de origem divina, isto é, extranho ao nosso entendimento, e alheio á
nossa vontade. Somos só o que nos fizeram ser, e dormimos com sonhos, servos orgulhosos
nelles da liberdade que nem nelles temos. Por isso o nascitur, que se diz do poeta, se applica
tambem a metade do artista. Não se apprende a ser artista; apprende-se porém a saber selo. Em certo modo, comtudo, quanto maior o artista nato, maior a sua capacidade para ser
mais que o artista nato. Cada um tem o Apollo que busca, e terá a Athena que buscar.
(ATHENA, 1: 5-6)
Numa entrevista ao Diário de Lisboa com o título «A revista “ATHENA” e o
que nos afirmou Fernando Pessoa», publicada em 3 de Novembro de 1924, o jornalista
anónimo vê no escritor um «artista original e interessante que rapidamente se distinguiu
dentre a multidão de escritores da sua geração». O articulista enaltece a iniciativa de
Fernando Pessoa e Rui Vaz porque, na sua opinião, «uma revista de arte num meio
acanhado como o nosso, onde quase todas as tentativas literárias e artísticas falham por
falta de auxílio do público, é, já por si, digno de admiração, pelo que tem de arrojado».
Nesta entrevista, Pessoa explicita a filiação genética de Athena, que considera «uma
revista puramente de arte», classificando Orpheu como publicação «de ocasião e início»
e a «admirável» Contemporanea, «quase de pura decoração». Na opinião do escritor
existiriam três públicos: «um que vê, outro que lê, outro que não há», sendo o primeiro
264
«composto da maioria, o segundo da minoria» e «o terceiro de indivíduos» (DIÁRIO DE
LISBOA, 1098: 5).
A problemática dos públicos, bem como a sua classificação em três
categorias, remete novamente para os artigos de Pessoa, publicados em 1912 na revista
A Águia, mas também para a crítica de Augusto de Castro no «Inquérito à Vida
Literária», que considerava não haver a necessária «coesão mental» para se formar um
público.
– Há três publicos – um que vê, outro que lê, outro que não ha. O primeiro é
composto da maioria, o segundo da minoria, o terceiro de individuos. O primeiro quere
ver, o segundo quere conhecer, o terceiro quere compreender. Uma revista «puramente de
arte» é feita para o publico que «compreende» a arte, e, ao mesmo tempo, para que os
publicos, que a não compreendem, compreendam, um que ela tem que compreender, o
outro que ela pode ser compreendida, visto que ha quem a compreenda.
– E isso como se faz?
– Fazendo-se. Exclue-se, primeiro, o criterio de homogeneidade (escola ou
corrente): assim se acentua e se ensina que a arte é essencialmente multiforme, o que é uma
das primeiras cousas que tem que aprender muita gente que ja o sabe. Nas estanpas da
primeira «Athena» verá reproduções de obras de um classico, de um romantico, de um
contemporaneo. Na parte literaria, igual diversidade se busca, como se vê e verá. Depois…
(DIÁRIO DE LISBOA, 1098: 5)
A cultura clássica encontra-se representada em Athena, não apenas no nome da
divindade grega, mas sobretudo no conteúdo da revista, designadamente nas «Odes» de
Ricardo Reis, inspiradas por Horácio. Sendo Orpheu a revista fundadora do
modernismo literário português, Athena representa a sua continuidade, divergindo no
entanto da sua antecessora pela relevância atribuída à teoria, na qual se destacam os
ensaios de Álvaro de Campos «O que é a Metafísica?» e «Apontamentos para uma
Estética Não-Aristotélica». Athena, «deusa que tinha mais afinidade com a filosofia do
que com a poesia», herdou a vertente teórica e crítica da revista Contemporanea,
sobretudo nos textos do engenheiro. Após os escândalos literários em que Fernando
Pessoa se envolveu, o escritor era já conhecido na república das letras, procurando então
o reconhecimento de que se julgava merecedor. Neste sentido, Athena representa uma
inflexão no percurso pessoano que se distancia tanto da «Literatura de Manicómio»
como da «Literatura de Sodoma», evidenciando a seriedade da literatura. Poderemos
assim compreender a vertente teórica da revista Athena, bem como a reabilitação do
«engenheiro doido», operada através da reflexão filosófica e da crítica literária. Esta
265
fórmula de investimento parece ter resultado, desde logo, na recepção muito menos
polémica de Athena, quando comparada com a enorme controvérsia suscitada pela
publicação de Orpheu, traduzindo-se na maior longevidade da revista de arte. Desta
forma, Athena permitiu divulgar os heterónimos inéditos, Ricardo Reis e Alberto
Caeiro, contribuindo assim para potenciar o engrandecimento de Fernando Pessoa.
QUADRO 8
Tipos de público segundo Fernando Pessoa
Ano
Tipos de Público
1912
A Águia
incompreendedores
natos
incompreendedores
de ocasião
não tomou ainda
consciência de si
1916 ?
(resposta a
um inquérito
291
literário)
público maior
público acima desse
público especial
só não é analfabeto
porque sabe ler
tem um interesse que
ninguém orienta e
uma curiosidade que
ninguém satisfaz
vê
lê
não há
maioria
minoria
indivíduos
quer ver
quer conhecer
quer compreender
1924
Diário de
Lisboa
O segundo número de Athena constitui excepção a esta tendência, publicando o
texto de Raul Leal «A Loucura Universal», o qual, aliás, não parece ter despertado
controvérsia. Este número da revista, publicado em Novembro de 1924, evocativo de
Mário de Sá-Carneiro, substituiu possivelmente a «plaquette» que Pessoa tencionava
publicar «à memória dele», após o suicídio do amigo. Pessoa contava com a
colaboração dos escritores de Orpheu, mas não concretizou esse projecto,
eventualmente devido à «enorme crise intelectual» de que se queixava na carta para
Armando Côrtes-Rodrigues, de 4 de Maio de 1916, em que anunciou o falecimento de
Sá-Carneiro (PESSOA, 1999a: 212-213). Em «Mário de Sá-Carneiro», elogio póstumo que
abre o segundo número de Athena, Pessoa, depositário da obra do amigo, afirma que ele
291
«O nosso público literário é três públicos: o público maior que só não é analfabeto porque sabe ler; o
público acima desse, que tem um interesse que ninguém orienta e uma curiosidade que ninguem satisfaz;
e o público especial[.] Do público snob não falo, porque é snob só por fora, nem tendo a sinceridade do
snobismo. É, intelectualmente, a plebe bem vestida – bem educada já se não pode dizer» (PESSOA,
1999a: 230).
266
era um «génio não só da arte mas da inovação nela», justificando o seu desaparecimento
precoce com a máxima latina «Morre jovem o que os Deuses amam»292 (ATHENA, 2: 4142).
Logo após o seu texto de apresentação da revista, Pessoa iniciou o primeiro número
de Athena com «Oito Sonetos», de Henrique Rosa, seu tio adoptivo e mentor literário na
época da Monarquia. Publicou ainda «Rajadas», três poemas do mesmo autor, no
terceiro número da revista de arte. Henrique Rosa faleceu pouco tempo depois, em 8 de
Fevereiro de 1925. Este foi um annus horribilis para Fernando Pessoa, que perdeu a sua
mãe no dia 17 do mês seguinte.
Genio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a
arte, que fez ou que sentiu, por instantes o turbou de consolação. São assim os que os
Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a gloria os
acolhe. Ou morrem jovens, ou a si mesmos sobrevivem, incolas da incomprehensão ou da
indifferença. Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor.
Mas para Sá-Carneiro, genio não só da arte mas da inovação nella, junctou-se, á
indifferença que circunda os genios, o escarnio que persegue os innovadores, prophetas,
como Cassandra, de verdades que todos teem por mentira. In quá scribebat, barbara terra
fuit [293]. Mas, se a terra fôra outra, não variára o destino. Hoje, mais que em outro tempo,
qualquer privilegio é um castigo. Hoje, mais que nunca, se soffre a propria grandeza. As
plebes de todas as classes cobrem, como uma maré morta, as ruinas do que foi grande e os
alicerces desertos do que poderia sel-o. O circo, mais que em Roma que morria, é hoje a
vida de todos; porém alargou seus muros até os confins da terra. A gloria é dos gladiadores
e dos mimos. Decide supremo qualquer soldado barbaro, que a guarda impoz imperador.
Nada nasce de grande que não nasça maldicto, nem cresce de nobre que se não definhe,
crescendo. Se assim é, assim seja! Os Deuses o quiseram assim. (ATHENA, 2: 42)
VI.2. A revista Presença e o reconhecimento da nova geração
Tal como a revista Orpheu, publicada em 1915, marcou uma época literária,
introduzindo o modernismo em Portugal, doze anos depois surgiu uma revista em
Coimbra que exerceu também uma influência duradoura nas letras portuguesas. Em 10
292
Tradução do latim «Quem di diligunt adulescens moritur», frase da personagem Chrysalus Servus da
peça Bacchides (IV, vii, 14), do dramaturgo romano Titus Maccius Plautus (254?-184? a. C.). Plauto
inspirou grandes dramaturgos como Molière e Shakespeare.
293
«Era bárbara a terra onde escrevia».
267
de Março de 1927, já sob a ditadura militar294, foi publicado o primeiro número da
revista Presença: folha de arte e crítica, dirigida por Branquinho da Fonseca (19051974),
João Gaspar Simões (1903-1987) e José Régio (1901-1969)295. Esta iniciativa de
jovens universitários de Coimbra parecia confirmar as palavras de José Pacheco na sua
entrevista ao Diário de Lisboa, em 15 de Junho de 1922, na qual afirmara que onde a
«Contemporanea se tem vendido mais é em Coimbra. E a geração de Coimbra não é
nada das nossas ideias. É interessante. É uma prova de curiosidade, de inteligência, que
me lisonjeou e que os honra» (DIÁRIO DE LISBOA, 367: 5). Para além dos nomes já citados,
fizeram parte do grupo de jovens escritores presencistas, entre outros, Adolfo Rocha
(1907-1995)296, Casais Monteiro (1908-1972) e Carlos Queiroz (1907-1949). Apesar das
cisões verificadas neste grupo, Presença afirmou-se como a mais influente revista
literária portuguesa do seu tempo, publicando 54 números de 1927 a 1938297. Inspirada
na forte tradição das revistas literárias coimbrãs, mas procurando renovar a república
das letras de forma ecléctica, Presença publicou trabalhos de dezenas de artistas de
várias gerações e diferentes tendências estéticas. Tal como anteriormente a Renascença
Portuguesa, também o grupo de escritores e artistas presencistas criaram a sua própria
editora e organizaram conferências:
Quem não sabe as hostilidades de tôda a casta que, num pobre pais como o nosso, rodeiam
uma tentativa como a nossa? Não falo só de hostilidades materiais; mas das de tôda a casta:
Dirão, por exemplo, que os da presença querem apenas dar nas vistas – os que na acção de
294
Em 28 de Maio de 1926, o general Gomes da Costa (1863-1926), prestigiado oficial de cavalaria que
comandou a I Divisão do Corpo Expedicionário Português na I Grande Guerra, dirigiu um movimento
militar em direcção a Lisboa, a partir de Braga. Diversas unidades militares, um pouco por todo o país,
aderiram ao movimento, que as tropas fiéis ao regime não puderam conter. Numa demonstração de força
e unidade do exército, que procurava sobretudo legitimar o golpe militar, em 6 de Junho de 1926, mais de
dez mil militares, comandados por Gomes da Costa, desfilaram em Lisboa, sendo aclamados pela
multidão que reconhecia assim a sublevação militar.
295
Pseudónimo do escritor José Maria dos Reis Pereira, natural de Vila do Conde, que leccionou entre
1928 e 1966 no Liceu de Portalegre. Em 1925 licenciou-se em filologia românica na Universidade de
Coimbra com a tese As Correntes e As Individualidades na Moderna Poesia Portuguesa. Publicada em
1925, em edição de autor, esta tese inclui uma referência pioneira à poesia de Fernando Pessoa, sendo
reeditada uma nova versão, intitulada Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa, em 1941,
296
Adolfo Correia da Rocha adoptou o pseudónimo de Miguel Torga em 1934.
297
Segundo Manuela Parreira da Silva, em 16 de Junho de 1930, Edmundo de Bettencourt, Branquinho
da Fonseca e Adolfo Rocha publicaram uma carta aberta, dirigida a José Régio e João Gaspar Simões,
que assinalou a primeira dissidência no grupo presencista. Adolfo Casais Monteiro substituiu então
Edmundo de Bettencourt na direcção da revista. Em 1939 uma segunda cisão afastou Casais Monteiro e
João Gaspar Simões, interrompendo a publicação durante alguns meses. Nos difíceis tempos da II Grande
Guerra, Presença publicou uma segunda série, dois extensos números correspondentes a 1939 e 1940. Em
1977 foi ainda publicado um número comemorativo do cinquentenário da revista (MARTINS, 2008: 681682).
268
outrem não vêem senão os móveis que lhes são mais compreensíveis. Dirão que os da
presença são mais ou menos todos malucos – os que a não lêem ou não sabem imputar a si
próprios sequer metade da culpa de a não compreenderem. Dirão que os da presença são
um grupo fechado – os que a quereriam transformar numa coterie logo que nela tivessem
cátedra; ou os a quem a presença não lisongeou como quereriam. (PRESENÇA, 35: 19)
Em 1932, no número 35 de Presença, José Régio publicou um «Comentário»
sobre uma crítica à revista, no qual afirma que ela nasceu «com o fim de criar, em
Portugal, uma publicação onde colaborassem aqueles artistas que, principiantes ainda ou
já consagrados perante uma élite, eram hostilizados pelo público pelos editores, pelas
outras folhas, sob a incompreensível acusação de… futuristas». Segundo o autor, para
além de procurarem «reunir os novos de valor que aparecem», os directores da Presença
tentavam também «chamar a atenção do público sobre aqueles nossos artistas que ao
menos as gentes letradas deveriam bem conhecer… e nem sempre conhecem; para o
que temos solicitado a sua colaboração nesta folha, tentado quadros bibliográficos da
sua obra, e sobre eles ensaiado estudos críticos». Neste sentido, Régio declara que
«galas e galões, penduricalhos e sessões solenes, a venda das edições e as cadeiras da
Academia, os banquetes de homenagem ou as consagrações de café» não os impediriam
«de julgar uma obra de sensibilidade e pensamento», pugnando «para que a uma arte
gasta, a um pensamento morto e a uma época exausta suceda (como sucederá) qualquer
coisa de novo». Descrente «na pronta justiça da crítica», o director da Presença afirma
que pela revista «passaram, passam, ou (assim o esperamos) passarão, muitos dos que
até mesmo um futuro Sr. Dr. Mendes dos Remédios não terá remédio senão incluir num
catálogo futuro de nomes próprios ilustres»298 (PRESENÇA, 35: 19-20).
A critica é livre, libérrima, – até a de má fé. E o que cada um diz serve sobretudo para
julgar quem o diz. Mas, acusados, nós defendemo-nos; tanto mais que defendemos
juntamente uma mais ampla liberdade nas coisas de arte e pensamento. Eis razões
suficientes para que na presença se vá da crítica à apologética e à polémica. Não é puro
derrotismo o que nos entretem. E se temos atacado, ou viermos a atacar, vários artistas
(portugueses ou não, contemporâneos ou não) – é que o seu valor nos parece àquém da
consagração que em razão da própria mediocridade dêles lhes oferece um pobre público. A
298
Joaquim Mendes dos Remédios (1867-1932), professor de Literatura Portuguesa na Universidade de
Coimbra e autor de vasta obra, na qual se destaca, com várias reedições, a sua História da Literatura
Portuguesa. Mendes dos Remédios foi reitor da Universidade de Coimbra, de 1911 a 1919, e ministro da
Instrução Pública no breve Governo de Mendes Cabeçadas, em Junho de 1926, no qual foi colega de
Salazar. Faleceu em Setembro de 1932, poucos meses depois de José Régio ter publicado este artigo.
269
êsses artistas opomos outros – cuja semi-obscuridade resulta exactamente de que a sua
superioridade os torna menos fáceis. Se perante certas personalidades, certos gostos, certas
regras, certas confrarias, certos costumes da sensibilidade e da inteligência temos tomado
atitudes irreverentes, santo Deus!, é que essa nulidade ameaça tapar a fisga de ideal e
mocidade que nos resta… (PRESENÇA, 35: 19)
A revista coimbrã Presença prestou culto aos escritores de Orpheu publicando
contributos de Ângelo de Lima e Mário de Sá-Carneiro, entretanto desaparecidos, bem
como de Raul Leal, Luís de Montalvor, Almada-Negreiros e Fernando Pessoa, ortónimo
e heterónimos. Este trabalho notável de divulgação da geração de escritores que
precedeu os presencistas foi potenciado com a publicação de «Tábuas Biográficas» de
Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Raul Leal e Almada Negreiros. Além disso, o
reconhecimento dos presencistas ficou expresso num número considerável de artigos
sobre os maiores escritores de Orpheu, assinados por José Régio, João Gaspar Simões e
Adolfo Casais Monteiro, publicados na revista Presença. Estes jovens críticos foram
nessa época
interlocutores
privilegiados
de
Fernando
Pessoa,
convidando-o
frequentemente a enviar colaboração para a revista, que o publicou regularmente.
Logo no terceiro número da Presença, publicado em 8 de Abril de 1927, José
Régio assinou um artigo que ocupava a primeira página, intitulado «Da Geração
Modernista», no qual analisa as obras de Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa e
Almada Negreiros. O crítico justifica a sua escolha, não apenas «porque estes três
nomes são dos mais completos, dos mais complexos e dos mais interessantes» de «todos
os novos valores da Literatura portuguesa», mas também por serem «os mais imitados
pelas fileiras modernistas». Régio desvaloriza o facto dos «seus livros ou as revistas em
que aparecem» não terem «ainda um grande público...», pois «seja qual for o valor
eterno, o quanto de imortal das suas obras, é através destes que a Literatura portuguesa
acompanha o movimento europeu da Arte moderna». Na sua opinião, era perfeitamente
compreensível «que o grande público português» desconhecesse «o nome dos mestres
contemporâneos», porque a «mocidade duma obra só vem a ser aceite quando o tempo
correu sobre ela», esclarecendo que «mestres contemporâneos são os homens que, pior
ou melhor, exprimem as tendências mais avançadas do seu tempo, isto é: a parte do
futuro que já existe no presente». Régio justifica a reabilitação dos «futuristas» com
uma alusão à controvérsia sobre a revista Orpheu, reproduzindo o ditado popular,
segundo o qual «quem ri melhor é quem ri no fim» (PRESENÇA, 3: 1).
270
Fernando Pessoa, Alvaro de Campos, Alberto Caeiro – três nomes distintos dum só Artista
cuja Arte é, realmente, uma synthese-soma, e não uma synthese-subtracção dos outros de
si… Além de que diz Mário Saa lá n’«A Invasão dos Judeus» que Fernando Pessoa tem
ainda mais nomes… Alguns poetas recem-aparecidos na «Contemporanea» e na «Athena»
são ainda Fernando Pessoa. Isto revela no Poeta uma complexidade, uma multiplicidade e
uma variabilidade muito características do nosso tempo e muito reveladoras de faculdades
excepcionais. Rico de intuições e de concepções, poeta, esteta, pensador e crítico, Fernando
Pessoa ora se tortura em pequenos poemas trabalhados e densos, ora se abandona em
expansões raivosas, amargas, nihilistas, complicadas de jogos vocabulares e rítmicos; ora
fixa em pequenas críticas subtis, engenhosas e agudas o essencial duma personalidade,
duma obra, ora se diverte, a sério, com teorias e construções que revelam a sua erudição
tentando arredá-la… A dispersão da personalidade e o senso inquietante do Mistério são
características que aproximam Fernando Pessoa de Mário de Sá Carneiro. Mas o que em
Mário de Sá Carneiro aparece como manifestação de génio, aparece em Fernando Pessoa
raciocinado, consciente, voluntário. Tão raciocinado, tão consciente, tão voluntário como
parece? É difícil julgá-lo… Fernando Pessoa leu muito e bem. – toda a sua obra aproveitou
das suas leituras… Mas o que nos seus poemas se sente apontado ao Artista pelo crítico está
geralmente de íntimo acôrdo com o temperamento do Artista. Por todas estas vantagens
Fernando Pessoa tem estofo de Mestre, e é o mais rico em direcções dos nossos chamados
modernistas. (PRESENÇA, 3: 2)
João Gaspar Simões, um dos jovens escritores presencistas e admirador de
Fernando Pessoa, do qual se tornou amigo, crítico e biógrafo, publicou em 23 de Julho
de 1928, no número duplo 14 e 15 da revista Presença, um artigo com o título
«Modernismo». Neste ensaio, Gaspar Simões surpreende ao atribuir o estatuto de génios
ao falecido Mário de Sá-Carneiro e a Fernando Pessoa, sobretudo por esta ser uma
grandeza raramente conferida pela crítica literária durante a vida do escritor. O jovem
crítico aproxima-se assim, surpreendentemente, da postura assumida por Fernando
Pessoa em 1912, quando elogiou a «nova poesia portuguesa» na revista A Águia,
prevendo o próximo aparecimento de um Super-Camões em Portugal. Para Gaspar
Simões, Sá-Carneiro foi «o genial adivinhador das tendências estéticas actuais, entre
nós, e aos que se lhe seguiram» designando modernistas os «que se lhe seguiram», ou
seja, «pertencentes ao seu tempo como todos os grandes artistas de qualquer tempo».
Neste sentido, o crítico reconhece que todos os que forem «desconcertados pela leitura
dos modernistas acharão um sem-número de argumentos para destruírem» as suas
palavras. Contudo, Gaspar Simões considera também que a «repetição de certas
271
verdades tão inabaláveis como insuportáveis», se torna «improfícua sempre que os
contendores não estejam dispostos a deixarem-se vencer pela verdade» (PRESENÇA, 14 e
15: 2).
A leitura dum poema de Mário de Sá Carneiro ou Fernando Pessoa desconcerta.
Desconcerta-se uma grande parte dos leitores na leitura de qualquer obra modernista.
Nada mais natural. Só o contrário seria lamentável, exactamente porque a Sá Carneiro e
Fernando Pessoa consideramos génios, no sentido de conterem aquela substância original e
instintiva que dá motivo a novas criações estéticas. Um génio é sempre desconcertante,
porque nos surpreende por aquele lado pelo qual nós supúnhamos não poder vir a ser
desconcertados – pelo lado da sensibilidade e da inteligência. A leitura de um escritor
medíocre ou pouco original, isto é, o contacto com sensibilidades e inteligências
lisongeiramente parecidas com as nossas, deixa-nos à vontade e um pouco orgulhosos até
de as não sentirmos superiores nem diferentes; mas a proximidade do génio, da
originalidade de sensibilidade e inteligência, amesquinha-nos ao ponto de reagirmos pelo
despreso ou pela imediata renúncia a uma simpática aproximação compreensiva.
(PRESENÇA, 14 e 15: 2)
Segundo João Gaspar Simões, a arte, «particularmente a literatura, é uma
transposição da vida», porque entre «as ideias vividas e a sua expressão formal» existe
«uma fatal, invencível, involuntária transição». Esta «transposição da vida» seria
indispensável na criação literária, através «dos sentimentos, das sensações, da
inteligência que o homem tem dela quando é artista». Para Gaspar Simões, as obras
modernistas eram «tão chocantes, como as obras de quaisquer inovadores passados para
os seus contemporâneos». Contudo, «se, até certo ponto, chocam mais as singularidades
dos modernistas», o facto ficaria a dever-se à «avidez de originalidade» característica da
época. «E, esta, é já uma das razões da extraordinária variedade e da grande
singularidade da arte chamada modernista». Na opinião do crítico, «nunca um artista foi
tão livre em usar a sua personalidade viva, e tão integralmente, como no modernismo»,
e «nunca a transposição estética se desvaneceu tanto, isto é, nunca a arte foi tão
profundamente realista», embora no sentido «duma realidade íntima, individual,
subjectiva, psicológica». Neste sentido, a falta de adesão do público seria consequência
da «radical originalidade» dos modernistas, «contribuindo para o aparecimento das mais
estranhas, bizarras e imprevistas formas de arte» (PRESENÇA, 14 e 15: 2-3).
272
Cada artista – artista criador – cria uma escola, pois, desde que o livre exercício da
individualidade domina a nossa epoca como tendência predominante, todo o verdadeiro
criador é agente duma nova fórma de arte que os menos originais assimilam e
uniformisam. O romantismo, o realismo, o simbolismo, tendências ou escolas passadas,
raramente se sobrepunham. A cada pertencia um instante, mais ou menos longo, na
história artística. Isoladamente se desenvolviam, só de todo se desvanecendo com o advento
de novas escolas. Hoje não. O futurismo, o dadaísmo, o ultra-romantismo, o
expressionismo, o cubismo, o neo-classicismo são fórmulas estéticas que se intercepcionam
e, simultaneamente, desenvolvem as suas teorias a par umas das outras. (PRESENÇA, 14 e
15: 2)
Em 1929, João Gaspar Simões publicou o seu primeiro livro sobre arte e
literatura, intitulado Temas299, uma colectânea de ensaios que inclui o capítulo
«Fernando Pessoa». Desta forma, o jovem crítico atribui ao escritor uma ordem de
grandeza comparável a Fiódor Dostóievski (1821-1881), Marcel Proust (1871-1922) ou
Paul Valéry (1871-1945), a quem dedica outros capítulos da obra. Para Gaspar Simões,
Fernando Pessoa seria «um dos mais valiosos escritores portugueses comtemporâneos»,
considerando-o superior a Valéry, numa comparação com o «clarividente poeta
francês»300. Corroborando a opinião já expressa por José Régio na revista Presença, o
jovem crítico atribui a Pessoa «uma personalidade profundamente original dentro da
literatura portuguesa», tendo em conta a «sua obra cerrada, obscura, rica e densa»,
apesar de «disseminada em revistas e folhetos». Na opinião de Gaspar Simões, não
existiria em Portugal mais ninguém «com um sentido tão definido, uma posição tão
determinada, uma consciência tão profunda e tão única de si, das suas possibilidades e
dos seus meios». O jovem crítico reconhece no escritor «qualidades pessoais
excepcionais», sublinhando o intelectualismo deste «grande artista», que «constitui o
fundo mais pessoal e mais actual da sua obra». Neste sentido, Gaspar Simões chama «a
atenção muito particular» para a heteronímia como «despersonalização ou dissociação
299
João Gaspar Simões, Temas, Coimbra, Presença, 1929. Segundo Manuela Parreira da Silva, o «livro
Temas, editado em Junho do ano de 1929, incluía o estudo «Fernando Pessoa», primeiro trabalho de
fôlego dedicado ao poeta» (PESSOA, 1999b: 399).
300
«Por tudo isto, ainda, Fernando Pessoa se aproxima dêsse outro clarividente poeta francês – Paul
Valéry. Valéy, porém, menos senhor de atributos originais pessoais, limitou-se a querer implantar uma
poesia, a que chama – pura: espécie de entoação musical de rimas em que a inteligência deposita o mel
das suas abelhas. Fernando Pessoa mais maleável, mais artista, mais complicado, mais solicitado pelas
fôrças da alma, não precisa de recorrer, como o autor de Charmes, a certas mistificações estéticas: não
precisa de, vaidosamente, supôr-se capaz de realizar qualquer obra só porque a pode penetrar nos seus
meandros técnicos» (SIMÕES, 1929: 187-188).
273
da personalidade», remetendo de novo para a fragmentação do self do escritor: «O
drama de Fernando Pessoa é o do homem que se vê repartido em outros homens nos
quais se não pode ver continuado – mas contrariado» (SIMÕES, 1929: 173-182). Desta
forma, o jovem crítico atribui a Pessoa «um lugar solitário e supremo» na literatura
portuguesa, o qual, pela «sua inteligência e pela sua cultura» seria «dos poucos
escritores portugueses capazes de interessarem um público europeu». Por tudo isto,
Gaspar Simões conclui que a obra de Fernando Pessoa, «cheia de grandeza e de
inquietação, de resto, dificilmente apercebidas», apenas «dentro de vinte ou trinta anos
será, devidamente, admirada e compreendida!» (SIMÕES, 1929: 187-191).
Efectivamente, a sua complexidade desconcerta. Fernando Pessoa também é
Alvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, e não sei se mais alguma entidade. Mas o
que F. Pessoa, a-pesar de tôda esta parada de indivíduos diferentemente personalizados,
não deixa de ser, completamente, é F. Pessoa.
Há quem suponha o autor de Mar Português menos intelectual do que parece. Mas
então, como explicar um tal desmembramento, e a consciência de fragmentação pessoal
que as suas várias personalidades acusam, mantendo características peculiares,
inconfundíveis, de ser? Como é possível ser tão clara e lucidamente distinto de si próprio?
Parece-me só uma qualidade excepcional de domínio e auto-crítica permitir
arrojos, tão conseguidos, de dissociação individual. Caso contrário é-se facilmente levado a
deixar transparecer quando se é, por exemplo, Alvaro de Campos, o que se é, quando se é
Fernando Pessoa ou Ricardo Reis. Quási nunca um criador percebe que deixa ficar numa
obra o que não deixou noutras. Ou, se percebe, é confusamente. Só o artista profundamente
crítico e, portanto, intelectual, toma consciência completa da sua obra e das suas
características pessoais. (SIMÕES, 1929: 177-178)
Fernando Pessoa escreveu a João Gaspar Simões, em 29 de Junho de 1929, para
agradecer a oferta do seu livro Temas, afirmando sentir-se honrado e comovido com o
ensaio
do
jovem
crítico.
Contudo,
Pessoa
declara-se
«incompetente,
pelo
desconhecimento íntimo que cada um, por lúcido que seja, tem de si mesmo, para
medir, com metro objectivo», a opinião de Gaspar Simões sobre si próprio. Neste
sentido, e apesar de reconhecer que o crítico analisou a sua literatura «com uma atenção
vigilante, e que muitos pormenores do seu estudo» eram «fotográficos», o escritor
recusa pronunciar-se «sobre o honroso conceito de valia». Para Fernando Pessoa, o
ensaio de Gaspar Simões revela o escritor «como realidade espiritual», reconhecendo,
«por assim dizer», a sua «existência como nação independente». Agradecido, o escritor
274
termina, prometendo ao jovem crítico «escrever com cérebro» na próxima carta, onde
comentaria «mais extensamente o seu livro, no conjunto crítico que representa»
(PESSOA, 1999b: 155-156):
O seu estudo comove-me e anima-me. Ele representa a primeira tentativa – para
mim inesperadíssima – de me considerar, não como um escritor, mas como uma alma que
escreve, de me encontrar na realidade e não na literatura.
O seu estudo dá-me, com o augúrio de celebridade, um momento, pelo menos
sonhador, de libertação. Porque para mim – confesso-o a si sem ecrúpulo – só a celebridade
(a larga celebridade) seria o sinónimo psíquico de liberdade. Tiraria meu repouso daquilo
que outros concebem como excitação.
A tal ponto me enredei nas fascinações de não ser eu, que me chega a ser difícil
falar com o que os outros compreendem que é a sinceridade. Se me conhecesse, saberia que
sou sincero na conversa normal e humana; porém a conversa normal e humana não existe
por escrito excepto nos que não sabem escrever. (PESSOA, 2003: 197-198)
Noutra carta para Gaspar Simões, de 30 de Setembro de 1929, Fernando Pessoa
afirma que não se tinha esquecido «da carta, que em tempos lhe prometera, com as
observações mais minuciosas sobre aquele artigo dos Temas com que honrou» a sua
existência. Pessoa confessa estar «reduzido a uma miserável contemplação dos
desvairos do Sr. engenheiro Álvaro de Campos», mas «passado este incidente
metafísico», teria então tempo para escrever a prometida carta: «Não marco data,
porque as datas são ficções do tempo; marco porém promessa. Não posso fazer mais por
enquanto»301 (PESSOA, 1999b: 167-168). Contudo, Pessoa não chegou a enviar a prometida
carta, apesar de ter escrito um rascunho em que concorda com Gaspar Simões302. Neste
rascunho, Pessoa escreveu que, devido aos «acasos da vida», tinha sido até então «uma
301
Em 1931, João Gaspar Simões publicou O Mistério da Poesia: ensaios de interpretação da génese
poética, que inclui um novo ensaio, no qual o jovem crítico analisa a personalidade de Fernando Pessoa
na perspectiva da psicanálise. Este ensaio mereceu uma resposta crítica de Pessoa, numa extensa carta
para Gaspar Simões, de 11 de Dezembro de 1931. Nesta carta, o escritor considera O Mistério da Poesia
«mais profundo e mais confuso que Temas», pelo que «de febril, de precipitado, de ofegante estorva a
lucidez substancial de certas observações, e priva outras, centralmente, de lucidez». Na opinião de Pessoa,
em O Mistério da Poesia, Gaspar Simões cedeu «um pouco mais do que deveria às influências e
sugestões do meio intelectual europeu», tendo por isso «necessidade de explicar mais, e mais
profundamente», aspectos «da alma humana que não haverá nunca meios para aprofundar» (PESSOA,
1999b: 249).
302
«O motivo dramático que acciona os vários personagens de F. Pessoa (as várias máscaras de F.
Pessoa) é, pois, a luta entre a sua lucidez intelectual (a sua lucidez ou a sua limitação) e a sua obscuridade
pessoal (a sua obscuridade ou os seus pressentimentos obscuros) (SIMÕES, 1929: 180-181).
275
personalidade objectivamente obscura», mas o ensaio do jovem crítico, como «primeira
tentativa» de estudar a sua obra, abria-lhe as portas da celebridade (PESSOA, 2003: 197).
Pode ser que um dia eu venha a ser realmente célebre, nos termos e nas condições
em que desejo que isso seja tratado […] com o destino. Se isso se der, não esquecerei, nem
poderei esquecer, que o seu estudo foi o primeiro aviso, que me a Sorte concedeu, da
vigilância dos Deuses por aqueles que os reconhecem com a substância da alma.
Comoveu-me sobretudo o seu estudo porque o dirige o discernimento, e é feito com
uma tensão da atenção e da vontade de compreender que me são mais caras (nos dois
sentidos da palavra) que todos os elogios de palavras amáveis que me pudessem fazer por
afeição intelectual ou por admiração distraída. Nada há que mais pese na gratidão da alma
que o reconhecerem-na como alma. (PESSOA, 2003: 198)
VI.3. A «Política do Espírito» de António Ferro
António Ferro303, o jovem editor de Orpheu que se distanciou da revista na
sequência da carta de Álvaro de Campos ao director de A Capital, em Julho de 1915, foi
um dos principais herdeiros do futurismo importado por Santa-Rita Pintor.
Paradoxalmente, Ferro manifestou o seu futurismo mais no jornalismo e na propaganda
política do que na literatura, chegando a redactor principal do Diário de Notícias304. Na
edição de 21 de Novembro de 1932, este jornal publicou na primeira página um artigo
de António Ferro intitulado «Política do Espírito», no qual o autor atribui à arte e à
303
António Joaquim Tavares Ferro (1895-1956) nasceu em Lisboa e foi colega de Luís de Montalvor e
Mário de Sá-Carneiro no Liceu de S. Domingos (actual Escola Secundária de Camões), com quem travou
amizade, apesar de ser cinco anos mais novo do que este. Em 30 de Março de 1913, Fernando Pessoa
anotou no seu diário: «Em casa até às 2 horas. Das 2¼ até às 4½ em casa do António Ferro a ouvir-lhe ler
peças. – Leu duas. – Depois para a Baixa com ele» (PESSOA, 2003: 129). Em 1914, António Ferro
entrou na república das letras em parceria com Augusto Cunha, seu futuro cunhado, com quem publicou
Missal de Trovas, «um livrinho ingénuo e carinhoso» de quadras juvenis, que incluia breves comentários
de João de Barros, Mário de Sá-Carneiro, Afonso Lopes Vieira, João Lúcio, Júlio Dantas, Alberto Osório
de Castro, Augusto Gil e do próprio Fernando Pessoa. Esta verdadeira panóplia de escritores, com
posturas muito diversificadas, evidencia bem a capacidade conciliadora do autor. Foi convidado por
Mário de Sá-Carneiro para director de Orpheu, mas não publicou nesta revista por ser considerado
literariamente imaturo, publicando contudo nas revistas Exílio e Contemporanea. António Ferro foi
conferencista e um autor prolífero, publicando Árvore de Natal e Teoria da Indiferença (1920), Colette,
Colette Willy, Colette e Leviana: novela em fragmentos (1921). Em 1922 e 1923 realizou uma digressão
no Brasil, onde casou com a também escritora Fernanda de Castro (1900-1994). Foi ainda no Brasil que
António Ferro publicou as conferências que proferiu nesse país: Batalha de Flores, A Arte de Bem Morrer
e A Idade do Jazz-Band. A sua peça de teatro Mar Alto, já apresentada no Brasil em 1922, estreou em
Lisboa, no teatro de São Carlos, em 10 de Julho de 1923, sendo imediatamente proibida.
304
O jornal onde trabalhara o pai de Fernando Pessoa contava já 68 anos de idade. Nesta época era
dirigido por Eduardo Schwalbach e politicamente próximo da ditadura, anunciando no seu cabeçalho «A
MAIOR TIRAGEM E EXPANSÃO DE TODOS OS JORNAIS PORTUGUESES».
276
literatura uma função tão importante, no bom funcionamento da sociedade, como a da
indústria ou do comércio. «A política do espírito (Paul Valéry acaba de fazer uma
conferência com o mesmo título) não é apenas necessária, se bem que indispensável em
tal aspecto, ao prestígio exterior da nação. Ela é também necessária ao seu prestígio
interior, à sua razão de existir». Segundo António Ferro, um «povo que não vê, que não
lê, que não ouve, que não vibra, que não sai da sua vida material, do Deve e Haver,
torna-se um povo inútil e mal-humorado», pois a «Beleza – desde a Beleza moral à
Beleza plástica – deve constituir a aspiração suprema dos homens e das raças». Na sua
opinião, a «literatura e a arte são os dois grandes órgãos dessa aspiração, dois órgãos
que precisam duma afinação constante, que contêm, nos seus tubos, a essência e a
finalidade da criação». Defendendo que a política educativa não está vocacionada para
esta finalidade, António Ferro apela no seu artigo para que em Portugal «se faça uma
política do Espírito, inteligente e constante, consolidando a descoberta, dando-lhe altura,
significação e eternidade». Neste sentido, ele defende que «não se olhe o espírito como
uma fantasia, como uma ideia vaga, imponderável, mas como uma ideia definida,
concreta, como uma presença necessária, como uma arma indispensável para o nosso
ressurgimento» (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 23998: 1).
Enganam-se os homens de acção, os orientadores, os governantes, que desprezam ou
esquecem as belas artes e a literatura, atribuindo-lhes uma função meramente decorativa,
um papel superfluo, reduzindo-as a uma especie de sobremesa da vida social. Errada
orientação. O desenvolvimento premeditado, consciente, da Arte e da Literatura é tão
necessario, afinal, ao progresso duma nação como o desenvolvimento das suas ciências, das
suas obras publicas, da sua industria, do seu comercio e da sua agricultura. As nações
podem viver, interiormente, sem duvida, dessas necessarias actividades, mas vivem
exteriormente, acima de tudo, da projecção da sua alma, da personalidade dos seus
escritores e dos seus artistas. […] Mussolini, em Italia, teve a preocupação dessa utilissima
politica do espírito, desde a primeira hora do seu Governo. A criação da sua Academia
Italiana, “por onde passam todas as correntes do pensamento humano, da arqueologia ao
futurismo”, é uma prova da sua obsessão, que pareceu futil mas que contribuiu bastante
para a criação intelectual da Italia nova. Pirandello, Ojetti, Bomtempelli, Malaparte,
Marinetti, obedecendo a essa política inteligente de Benito Mussolini, enquadram-se dentro
do fascismo e têm-lhe dado uma armadura intelectual e espiritual. (DIÁRIO DE NOTÍCIAS,
23998: 1)
277
Em 31 de Outubro de 1932, o Diário de Notícias publicou o artigo de António
Ferro «O Ditador e a Multidão», no qual o autor escreveu que o «homem que se isola,
heroicamente, no seu gabinete, diante da sua Pátria, para lhe refazer o Tesouro, para a
cortar de estradas, para a munir de portos, para povoar os mares, para acudir ao
chômage, para renovar a máquina do Estado, para limpar e arejar as suas engrenagens e
roldanas, bem merece a gratidão, o respeito, a admiração fervorosa, a devoção dos seus
compatriotas» (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 23977: 1). No seu percurso de aproximação ao
poder, António Ferro conseguiu uma série de grandes entrevistas com Salazar305,
recentemente nomeado primeiro-ministro306. Estas entrevistas, compiladas num livro
publicado em 1933, ano da Constituição do Estado Novo307, contribuíram fortemente
para colorir a imagem pública de Salazar, transformando o académico cinzento em
ditador carismático308. António Ferro tornava-se assim num importante actor de
promoção e consolidação do poder de Salazar, na metamorfose da Ditadura Nacional
para o Estado Novo. O trabalho do jornalista parece ter impressionado o ditador que, em
Setembro de 1933, criou o Secretariado da Propaganda Nacional na sua dependência
directa, nomeando António Ferro para dirigir o novo organismo309.
305
Numa das entrevistas a Salazar, António Ferro escreveu: «Sinto-me olhado com respeito, com certa
admiração, pelos frequentadores habituais dos corredores dos ministerios. Como teria chegado eu à
fortaleza? Como teria conseguido fazer baixar a ponte levadiça? Aqui e além, á medida que vou
atravessando o corredor, que vou descendo familiarmente as escadas do Ministerio com o dr. Salazar, sou
cumprimentado, com olhares de entendimento, por algumas caras desconhecidas, nas quais posso colher,
á passagem, a esperança gulosa mas vã duma carta de apresentação, dum empenhozinho para o sr.
ministro…» (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24029: 1).
306
«A aparição das conversas de Ludwig com Mussolini deu-me a sugestão de que eu precisava. Porque
não publicar essa entrevista, esse grande inquérito à vida interior dum homem e duma situação, em
números sucessivos do “Diário de Notícias?”» (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24024: 1). As entrevistas de
António Ferro foram publicadas na primeira página do Diário de Notícias, entre 18 e 24 de Dezembro de
1932, sob o título «SALAZAR: O Homem e a sua Obra»: «ANTES DE COMEÇAR» (DIÁRIO DE
NOTÍCIAS, 24024: 1), «NOTAS Á MARGEM DO DISCURSO DE 23 DE NOVEMBRO» (DIÁRIO DE
NOTÍCIAS, 24025: 1-4), «NA FRONTEIRA DAS IDEIAS» (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24026: 1-5), «A
DITADURA E O SEU CONTACTO COM A NAÇÃO» (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24027: 1-2), «A
POESIA DOS NUMEROS» (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24028: 1-4), «PEQUENAS E GRANDES
INTERROGAÇÕES» (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24029: 1-5), «A ULTIMA PAGINA» (DIÁRIO DE
NOTÍCIAS, 24030: 1).
307
António Ferro, Salazar: o homem e a sua obra, prefácio de Oliveira Salazar, Lisboa, Empresa
Nacional de Publicidade, 1933.
308
Na entrevista de António Ferro, publicada em 21 de Dezembro de 1932, Salazar afirma: «Li o seu
artigo “O Ditador e a Multidão”, cujo sentido compreendi. Julgou, talvez, que eu tivesse ficado magoado
com a intenção clara das suas palavras, mas quero afirmar-lhe, com muito prazer, que se enganou. Gostei
do artigo e concordei inteiramente com ele» (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24027: 1).
309
«Presidência do Conselho: Decreto-lei n.º 23.054 – Cria junto da Presidência do Conselho o
Secretariado da Propaganda Nacional» (DIÁRIO DO GOVÊRNO, 218: 1).
278
Não lhe parece que essa frieza do momento, que essa falta de elevação e de animação se
deve atribuir, em grande parte, á ausencia duma inteligente e premeditada Politica do
Espirito dirigida ás gerações novas, que as traga á superfície, que lhes dê um papel nesta
hora de insofismaveI renovação? Todos os grandes chefes, todos os grandes condutores de
povos assim o fizeram. Desde os Médici a Mussolini, desde Luiz XIV a Napoleão, as artes e
as letras foram sempre consideradas como instrumentos indispensáveis á elevação dum
povo e ao esplendor duma época. É que a arte, a literatura e a ciência constituem a grande
fachada duma nacionalidade, o que se vê lá de fora… Em Portugal – triste é dizê-lo – essa
Política do Espirito, que já foi seguida por alguns reis e por alguns estadistas portugueses,
tem sido abandonada lamentavelmente pelos poderes publicos nestes últimos cinquenta
anos. (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24027: 2)
VI.3.1. Prémios literários
No âmbito da sua actividade de estímulo à «vida do espírito», o Secretariado da
Propaganda Nacional deveria colaborar com os artistas e escritores portugueses, «podendo
estabelecer prémios» que se destinem ao desenvolvimento de uma arte e de uma literatura
acentuadamente nacionais» (DIÁRIO DO GOVÊRNO, 218: 1). Segundo António Ferro, «a arte,
a literatura e a ciência constituem a grande fachada duma nacionalidade» e, sendo a produção
literária portuguesa «fraquíssima e tímida», uma das primeiras concretizações da sua «Política
do Espírito» consistiu na criação de prémios literários. O objectivo deste concurso, instituído
por António Ferro como director do Secretariado da Propaganda Nacional, seria o de revitalizar
e impulsionar a literatura portuguesa, proporcionando estimulando os jovens escritores «cheios
de talento e mocidade, que esperam, ansiosamente, para serem úteis ao seu País» (DIÁRIO DE
NOTÍCIAS, 24027: 2). Por outro lado, os prémios literários constituíam um instrumento político
de propaganda e legitimação do Estado Novo, criando a imagem de um regime dinâmico,
empenhado na modernização e desenvolvimento do país310.
No artigo 4.º da alinea g) do decreto n.º 28.054, estabelece-se que compete á secção
interna deste Secretariado: estimular, na zona da sua influencia, a solução de todos os
problemas referentes á vida do espirito, colaborando com os artistas e escritores portugueses e
podendo estabelecer prémios que se destinem ao desenvolvimento duma arte e duma literatura
acentuadamente nacional. Dentro da orientação marcada por este texto e certo de que,
entre os primeiros elementos do renascimento português – já fortemente iniciado, no
310
Na entrevista de António Ferro, publicada em 21 de Dezembro de 1932, Salazar afirmou: «Confio,
como sempre, na gente nova, na mocidade. Esses rapazes de sangue na guelra, que sabem bater-se quando
é preciso, que sabem vibrar, que conhecem a gimnastica do entusiasmo, e cuja acção não esqueço, são os
meus colaboradores naturais para dar vida, luz e nervos ao nosso Estado Novo, ao Portugal novo que
preparamos…» (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24027: 2).
279
campo social e politico, pelo Govêrno do Estado Novo – um dos mais essenciais é a
existencia duma galeria da renovadores da Arte e das Letras, que devem ser revelados,
aproveitados e auxiliados – o Secretariado da Propaganda Nacional vem anunciar a
instituição de cinco prémios literarios para o ano de 1933-1934: o Prémio Eça de Queiroz
(prémio de Romance); o Prémio Alexandre Herculano (prémio da Historia); o Prémio
Antero do Quental (prémio da Poesia); o Prémio Ramalho Ortigão (prémio do Ensaio), e o
Prémio Antonio Enes (prémio do Jornalismo). (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24364: 1)
À semelhança do célebre artigo de António Ferro, «Política do Espírito»,
publicado pelo Diário de Notícias, o mesmo jornal anunciou em 29 de Novembro de
1933, igualmente na primeira página e com o mesmo título, a criação de «cinco prémios
literários para o ano de 1933-1934». O Secretariado da Propaganda Nacional instituiu os
prémios «Eça de Queiroz» (romance), «Alexandre Herculano» (história), «Antero do
Quental» (poesia), «Ramalho Ortigão» (ensaio) e «António Enes» (jornalismo). O
prémio de poesia «Antero do Quental» era o único que se desdobrava em duas
categorias. Uma delas premiava com 5000 escudos o «melhor livro de versos, não
inferior a 100 páginas», que revelasse «uma inspiração bem portuguesa e mesmo, de
preferência, um alto sentido de exaltação nacionalista». A outra categoria destinava-se a
«um poema, ou poesia solta, onde as mesmas qualidades e intenções se manifestem»,
sendo contemplada com um prémio pecuniário de 1000 escudos. O júri era o mesmo
para ambas as categorias do prémio de poesia, sendo presidido por António Ferro na
qualidade de director do Secretariado da Propaganda Nacional (DIÁRIO DE NOTÍCIAS,
24364: 1):
[…] Prémio Antero do Quental – 1) O Prémio Antero do Quental será atribuído a
obras de duas categorias: a) Ao melhor livro de versos, não inferior a 100 paginas, que seja
publicado de 1 de Julho de 1933 a 1 de Julho de 1934, e em que se revele uma inspiração
bem portuguesa e mesmo, de preferência, um alto sentido de exaltação nacionalista; b) A
um poema, ou poesia solta, onde as mesmas qualidades e intenções se manifestem; 2) Á
primeira categoria será concedida uma recompensa de 5.000 escudos; á segunda, uma
recompensa de 1.000 escudos; 3) As obras escolhidas serão designadas durante o mês de
Outubro de 1934; 4) O juri será constituido por: a) Um poeta de grande nome nacional; b)
Um poeta da nova geração literária; c) e d) Dois criticos literarios em exercicio na
Imprensa de Lishoa.
[…] Disposições gerais – 1) De todos os juris fará parte o director do Secretariado
da Propaganda Nacional, ou, em caso de seu impedimento, um representante do mesmo
Secretariado; 2) Os concorrentes a cada um dos prémios devem enviar, até 1 de Julho de
280
1934, seis exemplares das suas obras ao Secretariado da Propaganda Nacional que fará a
competente distribuição pelos membros dos varios juris. (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24364: 1)
O anúncio dos prémios literários do Secretariado da Propaganda Nacional gerou
controvérsia imediata, designadamente nos jovens presencistas que, aparentemente, não
tinham perdoado o esquecimento de António Ferro. Com efeito, num artigo intitulado
«A Lição de Marinetti», publicado um ano antes no Diário de Notícias, o jornalista
lamentara «não ter ainda encontrado uma ocasião para saudar e exaltar a admirável
continuidade da revista “Presença", de Coimbra, onde se têm revelado alguns dos
valores mais representativos e mais sérios da nova geração» (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24006:
1).
Albano Nogueira, um dos colaboradores da revista coimbrã, desencadeou uma
operação crítica no seu artigo «UMA INICIATIVA CULTURAL», publicado na
Presença em Dezembro de 1933. Segundo o autor, a iniciativa de António Ferro seria a
todos os títulos louvável «se, logo de princípio, os seus possíveis bons resultados não
estivessem seriamente comprometidos pelo critério adoptado». Independentemente de
considerações de carácter político, Albano Nogueira discorda dos princípios enunciados
no regulamento do concurso que, na sua opinião, limitava «os direitos do Espírito e a
inalienável liberdade do Artista». Na sua crítica, Albano Nogueira afirma-se
«acompanhado pelo director do organismo instituinte dos prémios», citando o próprio
António Ferro para controverter o regulamento do concurso. «No intuito honesto de ser
útil ao júri» e «ajudado pelo senhor director do “Secretariado da Propaganda
Nacional”», Albano Nogueira termina sarcasticamente a sua operação crítica, antevendo
os nomes dos contemplados: «Prémio Eça de Queiroz: o Sr. Antero de Figueiredo;
Prémio Alexandre Herculano: o Sr. Alfredo Pimenta311; Prémio Antero do Quental: o
Sr. António Correia de Oliveira; Prémio António Enes: o Sr. António Ferro»
(PRESENÇA, 40: 15)312.
311
Alfredo Augusto Lopes Pimenta (1882-1950), historiador, jornalista, político, ensaísta, polemista e
poeta. Matriculou-se na Universidade de Coimbra em 1899 e, como quintanista, participou na greve
académica de 1907, licenciando-se em Direito em 1908. Foi depois professor no Liceu Passos Manuel em
Lisboa, sendo admitido como funcionário do Arquivo Nacional da Torre do Tombo em 1913. Anarquista
enquanto estudante, Alfredo Pimenta aderiu ao Partido Republicano Evolucionista em 1912 e, após a
ditadura de Pimenta de Castro, converteu-se ao catolicismo e à causa monárquica, de que foi um influente
doutrinador. Em 1924 fundou a Acção Realista Portuguesa, que defendia o regresso ao trono do rei
exilado, Manuel II. Colaborou em vários jornais ao longo da vida, designadamente o Jornal da Noite,
Republica, O Dia, A Ideia Nacional, Correio da Manhã, Diário de Notícias, Voz Nacional, A Nação.
312
«Nota: As palavras do sr. António Ferro são transcritas da sua resposta a um inquérito aberto pelo sr.
João Ameal no Diário de Notícias e aí publicadas em 5-5-1929».
281
Num país de insignificante mercado do livro, num país ainda em que todos os
artistas se vêem atormentados pela acção de muitas e opostas fôrças, o aparecimento de
prémios tendentes à melhoria de produção é coisa digna de todo o louvor. Há, porém, um
mínimo de princípios que é preciso ter em conta, desde que se não queira reduzir o artista
a servidor de qualquer doutrina ou seita. A política do espírito (parece-nos), faz-se não
reduzindo os artistas a panfletários mas antes libertando-os das contingências
escravizadoras da sua vida e da sua personalidade. Isso mesmo o viu e o definiu um dia o
sr. António Ferro: «Impossível escrever com estatuto e regulamento disciplinares. É
sempre uma literatura liceal, de ponto escrito, aquela que se faz com a preocupação da
palmatória (no nosso caso, – o prémio). Arte e liberdade são quási palavras sinónimas. Há
certamente limitações á liberdade, mas essas limitações não são impostas pela vontade do
indivíduo, mas inconscientemente, pelo seu temperamento, pelo seu natural bom gosto, pela
sua formação moral e até pela obra de Arte». (PRESENÇA, 40: 15)
VI.4. A Mensagem de Fernando Pessoa
Na já citada carta que escreveu para a sua mãe, em 5 de Junho de 1914,
Fernando Pessoa questionava-se: «Que serei eu daqui a dez anos – de aqui a cinco anos,
mesmo? Os meus amigos dizem-me que eu serei um dos maiores poetas
contemporâneos». Contudo, Pessoa não parecia muito confiante quanto ao seu futuro:
«Mesmo a circunstância de eu ir publicar um livro vem alterar a minha vida. Perco uma
coisa – o ser inédito. E assim mudar para melhor, porque mudar é mau, é sempre mudar
para pior. E perder um defeito, ou uma deficiência, ou uma negação, sempre é perder»
(PESSOA, 1999a: 116). Apesar de, em 1914, ter em perspectiva publicar um livro, dois
anos depois, em 13 de Junho de 1916, ao completar 28 anos de idade, Pessoa escreveu,
numa espécie de exame de consciência, que apenas tinha conhecido o «insucesso
absoluto», não tendo feito «nada na vida, nas letras» nem na sua «própria
individualidade»313. Noutro texto, o escritor afirma que nenhum dos seus «escritos foi
concluído», queixando-se da dispersão do seu temperamento (PESSOA, 2003: 101):
Pelas minhas tendências naturais, pelo ambiente que rodeou a minha infância, pela
influência dos estudos realizados sob o impulso destas mesmas tendências, por tudo isto o
meu carácter é do género interior, egocêntrico, calado, não auto-suficiente mas perdido em
313
«I HAVE, THUS, ARRIVED at my 28th year with nothing done in life – nothing in life, in letters or
in my own individuality. I have tasted failure to the full up to know. How longer must I taste it, alas?
The more I examine my conscience, the less I acquit myself of the nothingless of my life.
What horrific thing is this that has so delayed me?» (PESSOA, 2003: 172-174).
282
si próprio. Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho. Todo o meu carácter
consiste na aversão, no horror, na incapacidade, que impregnam tudo aquilo que sou, física
e mentalmente, de actos decisivos, de pensamentos definidos. Nunca tomei uma decisão
nascida do autodomínio, nunca dei sinais exteriores de uma vontade consciente. Nenhum
dos meus escritos foi concluído; sempre se interpuseram novos pensamentos, associações de
ideias extraordinárias, impossíveis de excluir, com o infinito como limite. Não consigo
evitar a aversão que tem o meu pensamento pelo acto de acabar seja o que for. Uma única
coisa suscita dez mil pensamentos, e desses dez mil pensamentos surgem dez mil interassociações, e não tenho força de vontade para os eliminar ou deter, nem para os reunir
num só pensamento central, onde os seus detalhes sem importância, mas a eles associados,
possam perder-se. Passam dentro de mim; não são pensamentos meus, mas pensamentos
que passam através de mim. Não reflicto, sonho; não estou inspirado, deliro. (PESSOA,
2003: 101, traduzido do Inglês)
Três anos depois, em 10 de Junho de 1919, pouco antes de completar 31 anos,
Pessoa escreveu a dois «magnetizadores» franceses314, procurando esclarecer que «coisa
horrível» era essa que tanto tinha atrasado a sua obra (PESSOA, 2003: 173). «Do ponto de
vista psiquiátrico, sou um histero-neurasténico, mas, felizmente, a minha neuropsicose é
bastante fraca […]. É preciso que eu esteja ou muito fatigado, ou muito emocionado,
para que a minha emotividade se manifeste exteriormente. […] Cultivo mesmo, com um
cuidado um tanto decadente, estas emoções tão vivas quanto subtis de que é feita a
minha vida interior. Não quero mudar nada. O mal não está aí». O escritor pretendia
apenas desenvolver, tanto quanto possível, o que pudesse ter de «magnetismo pessoal»
para dar uma «coordenação direccional exterior» à sua vida (PESSOA, 1999a: 289-290).
Já viram certamente onde está o ponto fraco; um temperamento tal como o que
vos descrevi é atingido profundamente, não na emoção, não na inteligência, mas na
vontade. Esta vontade sofre pela emoção e pela inteligência; refiro-me à emoção tal como a
tenho e à inteligência tal como a possuo. A emotividade excessiva perturba a vontade; a
cerebralidade excessiva – a inteligência demasiado voltada para a análise e para o
raciocínio – esmaga e diminui esta vontade que a emoção acaba de perturbar. Donde a
para- e a a-bulia. Quero sempre fazer, ao mesmo tempo, três ou quatro coisas diferentes;
mas, no fundo, não somente não as faço, como não quero mesmo fazer nenhuma delas. A
acção pesa sobre mim como uma danação; agir, para mim, é violentar-me.
Tudo o que em mim é exclusivamente intelectual é muito forte, e até muito são. A
vontade inibidora, que é a vontade intelectual, é muito firme em mim; tenho mesmo, sob
314
«Hector & Henri Durville, 23, rue Saint-Merri, Paris» (PESSOA, 1999: 285).
283
solicitações muito fortes da emoção, a força de não fazer. É a vontade de acção, a vontade
sobre o esterior, que me falta; é fazer que me é difícil. (PESSOA, 1999a: 290, traduzido do
Francês)
Apesar de já ter publicada uma obra considerável, embora dispersa em jornais e
revistas, bem como quatro livros de poesia inglesa, a sensação de perda e a referida
paralisação da vontade, ajudam a compreender, pelo menos parcialmente, porque razão,
com 45 anos de idade, Fernando Pessoa não tinha ainda publicado nenhum livro em
Português. Contudo, há muito que o escritor planeava publicar, não apenas um, mas sim
vários livros na língua materna, conforme revela na sua carta, de 28 de Julho de 1932,
para João Gaspar Simões. Respondendo a uma questão deste sobre quando publicaria,
Pessoa escreveu que estava começando a classificar e rever os seus papéis, «com o fim
de publicar, para fins do ano em que estamos, um ou dois livros. Serão provavelmente
ambos em verso, pois não conto poder preparar qualquer outro tão depressa» (PESSOA,
1999b: 269).
Primitivamente, era minha intenção começar as minhas publicações por três
livros, na ordem seguinte:
(1) Portugal, que é um livro pequeno de poemas (tem 41 ao todo), de que o Mar
Português (Contemporâneo 4) é a segunda parte; (2) Livro do Desassossego (Bernardo
Soares, mas subsidiariamente, pois que o B. S. não é um heterónimo, mas uma
personalidade literária); (3) Poemas Completos de Alberto Caeiro (com o prefácio de
Ricardo Reis, e, em posfácio, as Notas para a Recordação do Álvaro de Campos). Mais
tarde, no outro ano, seguiria, só ou com qualquer livro, Cancioneiro (ou outro título
igualmente inexpressivo), onde reuniria (em Livros I a III ou I a V) vários dos muitos
poemas soltos que tenho, e que são por natureza inclassificáveis salvo de essa maneira
inexpressiva.
Sucede, porém, que o Livro do Desassossego tem muita coisa que equilibrar e
rever, não podendo eu calcular, decentemente, que me leve menos de um ano a fazê-lo. E,
quanto ao Caeiro, estou indeciso. Também tem alguma coisa que rever, mas é pouco. À
parte isso, está, pode dizer-se, completo, se bem que alguns dos poemas inconjuntos e uma
ou outra nota de alterações a fazer nos primeiros (Guardador de Rebanhos) estejam
dispersas por entre os meus papéis. Achados porém estes elementos dispersos, o livro pode
ser completado rapidamente. Tem uma desvantagem – a quase impossibilidade de êxito,
devendo pois ser um livro a publicar com sacrifício material. O sacrifício material depende,
é claro, das minhas condições materiais de momento. Em todo o caso, nesta revisão e
classificação dos meus papéis, vou achando e arrumando o que pertence ao Caeiro.
(PESSOA, 1999b: 269-270)
284
Segundo Boltanski e Thévenot, o acesso a uma ordem superior de grandeza
implica um sacrifício, através de uma fórmula de investimento, o qual traduz a relação
entre os custos e os benefícios inerentes a essa ordem de grandeza. Esta fórmula de
investimento desempenha um papel fulcral no ordenamento hierárquico do respectivo
mundo, mantendo o equilíbrio com o princípio da «comum humanidade» (BOLTANSKI
& THÉVENOT, 1991: 99).
Neste sentido, Fernando Pessoa refere «um livro a publicar com
sacrifício material», pelo menos no que respeitava à poesia de Alberto Caeiro, dada «a
quase impossibilidade de êxito» de um livro deste heterónimo, do qual o escritor já
tinha revelado, em 1925, uma «Escolha de Poemas» de «O Guardador de Rebanhos»
(ATHENA, 4: 145-156) bem como alguns «Poemas Inconjuntos» (ATHENA, 5: 197-204).
Contudo, esta fórmula de investimento estava, como sempre, dependente das
«condições materiais de momento» que, em 1932, limitavam fortemente as
possibilidades de publicação de Fernando Pessoa. Desta forma, o escritor manifestava a
intenção, «possivelmente provisória», de publicar ainda nesse ano, «ou na passagem
dele para o outro, o Portugal e o Cancioneiro. O primeiro está quase pronto e é livro
que tem possibilidades de êxito que nenhum dos outros tem. O segundo está pronto:
basta escolher e colocar. […] Tudo isto porém é incerto» (PESSOA, 1999b: 271).
A oportunidade para Fernando Pessoa publicar a sua primeira obra em Português
surgiu com a criação dos prémios literários do Secretariado da Propaganda Nacional,
instituídos pelo seu amigo António Ferro, que teria adiantado a verba necessária para a
impressão do livro (BLANCO, 2007: 149). Dos quarenta e um poemas previstos, doze
tinham já sido publicados no quarto número da revista Contemporanea, em Outubro de
1922, sob o título «Mar Portuguez», que constituiria a «segunda parte» do livro de
Pessoa (CONTEMPORANEA, 4: 9-14)315. Embora tivesse escrito a Gaspar Simões, em 28 de
Julho de 1932, que «Portugal» estava «quase pronto», a verdade é que, dada a incerteza
do mundo inspirado, decorridos dois anos o seu livro ainda não estava impresso. Parece
ter sido esta a razão pela qual António Ferro prorrogou a data limite para entrega das
obras concorrentes ao prémio «Antero do Quental», inicialmente fixada em 1 de Julho
de 1934. Aos poemas inicialmente previstos, Pessoa juntou mais três, elevando para
quarenta e quatro o número total de poemas que compõem a obra publicada e,
315
«O Infante D. Henrique» e «D. João o Segundo», dois poemas que integraram o livro de Fernando
Pessoa, foram ainda publicados em O Mundo Português: revista de cultura e propaganda da Agência
Geral das Colónias e do Secretariado da Propaganda Nacional, a qual era dirigida por Augusto Cunha,
amigo de Fernando Pessoa e cunhado de António Ferro (BLANCO, 2007: 150).
285
finalmente, o autor alterou também o título Portugal para Mensagem. Num
apontamento não datado, Pessoa atribui a mudança do título a uma sugestão do seu
«velho amigo Da Cunha Dias», o tal rapaz «muito falador e vivo» que, na carta para
Armando Côrtes-Rodrigues de 4 de Setembro de 1916, o escritor afirma que tinha
enlouquecido316: «Concordei e cedi, como concordo e cedo sempre que me falam com
argumentos. Tenho prazer em ser vencido quando quem me vence é a Razão, seja quem
for o seu procurador» (PESSOA, 1978: 179). Desta forma, o escritor confirmava a opinião
de Ernest Belcher, seu antigo colega no Liceu de Durban, na carta para o Dr. Faustino
Antunes de 4 de Outubro de 1907, segundo o qual, Pessoa era um jovem «tolerante e
liberal» que não seria difícil persuadir «a fazer fosse o que fosse» (PESSOA, 2003: 397399).
O meu livro «Mensagem» chamava-se primitivamente «Portugal». Alterei o título
porque o meu velho amigo Da Cunha Dias me fez notar – a observação era por igual
patriótica e publicitária – que o nome da nossa Pátria estava hoje prostituído a sapatos,
como a hotéis a sua maior Dinastia. «Quer v. pôr o título do seu livro em analogia com
316
Armando da Cunha Dias (1886-1947), advogado, jornalista, polemista, escritor e editor, foi uma da
«amizades mais duradouras de Fernando Pessoa». O pai de Cunha Dias, «homem autoritário e violento»,
era natural de Tavira, tal como o avô paterno do escritor, e ambos tinham na ascendência o apelido
Cunha. O irmão, José da Cunha Dias, dois anos mais novo, suicidou-se aos 18 anos, depois de ter levado
uma tareia do pai, em 1906. Estudante em Coimbra, Cunha Dias participou activamente na greve
académica de 1907, mas ao contrário de Pessoa não abandonou os estudos, embora tivesse concluído o
Curso de Direito apenas em Julho de 1915, precisamente na época da revista Orpheu. A primeira
referência de Pessoa ao amigo data de 20 de Fevereiro de 1913, quando anotou no seu diário que se
encontrou no café A «Brasileira do Rossio com o Cunha Dias», que lhe falou de uma «futura
conferência» (PESSOA, 2003: 112). Depois de um namoro atribulado com uma prima, com uma tentativa
de suicídio, Cunha Dias casou-se em 1914, mas dois anos depois abandonou o domicílio conjugal, em
Sintra, e instalou-se em Lisboa, acusando a esposa de adultério. Ele teria planeado assassinar o suposto
amante com a cumplicidade da mulher, mas esta denunciou-o, levando o pai a requerer o seu
internamento compulsivo, ao abrigo de um decreto de 11 de Maio de 1911, que regulamentava os
manicómios. «Cunha Dias foi detido pela polícia em 8 de Agosto de 1916 à porta da Brasileira do Rossio
e internado no Manicómio do Telhal», perto de Sintra, onde foi examinado pelos psiquiatras Luís Cebola
e «Júlio de Matos, director do Manicómio Miguel Bombarda e professor da Faculdade de Medicina, que
tinha sido o autor ou principal inspirador do referido decreto». Considerado louco «perigoso» e
«incurável» por Júlio de Matos, Cunha Dias foi transferido, em 23 de Agosto, para o Hospital Conde de
Ferreira, no Porto, no qual Ângelo de Lima tinha sido internado em 1894, igualmente devido a problemas
passionais. Durante o «sequestro», do amigo, Pessoa escreveu-lhe pelo menos uma carta, enviando o
poema «Gladio», destinado ao malogrado terceiro número de Orpheu, mas que apenas saiu em Dezembro
de1924, no terceiro número da revista Athena, dedicado «Ao Alberto Da Cunha Dias». Pessoa publicou
uma nova versão deste poema em Mensagem, alterando o título para «D. Fernando, Infante de Portugal».
Cunha Dias evadiu-se do Hospital Conde de Ferreira, em 1 de Outubro de 1916, supostamente com o
auxílio do próprio Fernando Pessoa. O caso teve forte repercussão na imprensa da época, sobretudo pela
pena de Hermano Neves, jornalista de A Capital e cunhado do amigo de Pessoa. Já «curado», em 1921
Cunha Dias regressou a Sintra, voltando a exercer advocacia, fundando então as Edições Delta, na mesma
época em que Fernando Pessoa criou a Editora Olisipo. Segundo José Barreto, Da Cunha Dias (conforme
assinava) voltou a ser internado, embora se desconheça exactamente quando. De facto, o texto de Pessoa
parece indicar que o seu velho amigo se encontrava internado em 1934 (BARRETO, 2012: 71-94).
286
«portugalize os seus pés?» Concordei e cedi, como concordo e cedo sempre que me falam
com argumentos [317]. Tenho prazer em ser vencido quando quem me vence é a Razão, seja
quem for o seu procurador.
Pus-lhe instintivamente esse título abstracto. Substituí-o por um título concreto
por uma razão…
E o curioso é que o título Mensagem está mais certo – àparte a razão que me levou
a pô-lo – de que o título primitivo.
Deus fala todas as línguas, e sabe bem que o melhor modo de fazer-se entender de
um selvagem é um manipanso e não a metafísica de Platão, base intelectual do cristianismo.
Reservo-me porém o direito de pensar que tal forma da religião é uma forma inferior. É
sem dúvida necessário que haja quem descasque batatas, mas, reconhecendo a necessidade
e a utilidade do acto descascador, dispenso-me de o considerar comparável ao de escrever a
Ilíada. Não me dispenso porém de me abster de dizer ao descascador que abandone a sua
tarefa em proveito da de escrever hexâmetros gregos.
O lugar onde exercia a sua profissão de lembrador era uma enfermaria do
manicómio distrital [.] (PESSOA, 1978: 179-180)
VI.4.1. Prova modelo
Mensagem foi editada pela Parceria António Maria Pereira, podendo ler-se no
seu colofão que o livro foi «composto e impresso em Lisboa, nas oficinas da Editorial
Império […], durante o mês de Outubro do ano de 1934»318. Pessoa teve assim
oportunidade para concorrer com Mensagem ao prémio de poesia do Secretariado da
Propaganda Nacional. Revelando forte nacionalismo místico, o livro correspondia ao
requisito de «inspiração bem portuguesa e mesmo, de preferência, um alto sentido de
exaltação nacionalista». Mensagem é composta de três partes. «BRASÃO»: I – «Os
317
Neste diálogo, reproduzido por Fernando Pessoa, o seu amigo Da Cunha Dias referia-se certamente à
fábrica de calçado A Portugal e ao Hotel Avis (BARRETO, 2012: 91-94). Da Cunha Dias fundou uma
das primeiras agência publicitárias em Portugal, designada Companhia Portuguesa de Publicidade, que já
funcionava no ano em que ele foi internado compulsivamente (BARRETO, 2012: 73). Em 1925, Pessoa
ajudou Manuel Martins da Hora a fundar a Empresa Nacional de Publicidade, trabalhando, a partir do ano
seguinte, para a americana J. Walter Thompson Company, de que este seu amigo foi representante em
Portugal (FERREIRA, 2005: 135).
318
Este foi efectivamente o único livro de Fernando Pessoa, em Português, publicado durante a sua vida.
Em carta de 17 de Fevereiro de 1933, João Gaspar Simões chegou a propor a Pessoa a publicação de um
livro do escritor, integrado numa projectada «colecção de autores portugueses modernos» da Presença.
(PESSOA 1999b: 425-426). Pessoa respondeu afirmativamente, indicando O Guardador de Rebanhos, de
Alberto Caeiro, mas deu prioridade ao livro inédito de Mário de Sá-Carneiro, Indícios de Oiro (PESSOA
1999b: 286-288). O livro de Alberto Caeiro não chegou a ser publicado pela Presença e mesmo o de SáCarneiro apenas seria publicado em 1937, já depois de Pessoa ter falecido. Só após a 2.ª edição de
Mensagem, em 1941, foram publicados mais livros de Fernando Pessoa: Poesias, Lisboa, Ática, 1942,
com edição de Luís de Montalvor, e Poesia, Lisboa, Confluência, 1942 (2 volumes da «Antologia de
Autores Portugueses e Estrangeiros»), com introdução e selecção de Adolfo Casais Monteiro.
287
Campos», II – «Os Castellos», III – «As Quinas», IV – «A Coroa», V – «O Timbre»;
«MAR PORTUGUEZ», composta de doze poemas sobre a temática das descobertas; e
«O ENCOBERTO»: I – «Os Symbolos», II – «Os Avisos», III – «Os Tempos».
Segundo Boltanski e Thévenot, na criação da obra-prima, «é necessário adoptar uma
“linguagem diferente”, a das “imagens, dos fantasmas, dos símbolos, dos mitos, das
lendas”, através de associações, aberto ao fantástico, ao sonho, e “alimentado por esse
formidável amontoado de imagens, de lembranças, de mitos acumulados sem mesmo
que tenhamos tido consciência»» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 204-205). Construída
sobre símbolos, mitos e lendas, e apelando ao fantástico e ao sonho, Mensagem revelase assim a obra-prima de Pessoa. Neste sentido, o terceiro «Aviso», único poema sem
título dos quarenta e quatro poemas da obra, é inspirado no mito do «Encoberto»319, ou
fantasma do rei Sebastião, desaparecido em 1578 na batalha de Alcácer Quibir.
Screvo meu livro à beira-magoa.
Meu coração não tem que ter.
Tenho meus olhos quentes de agua.
Só tu, Senhor, me dás viver.
[…]
Quando virás, ó Encoberto,
Sonho das eras portuguez,
Tornar-me mais que o sopro incerto
De um grande anceio que Deus fez?
Ah, quando quererás, voltando,
Fazer minha esperança amor?
Da nevoa e da saudade quando?
Quando, meu Sonho e meu Senhor?
(PESSOA, 1934: 85-86)
319
O «Encoberto» é um dos grandes mitos da cultura portuguesa, tendo origem nas trovas de Gonçalo
Anes Bandarra (1500?-1556), sapateiro de Trancoso condenado pelo Tribunal do Santo Ofício, em 1541,
devido às suas profecias, as quais influenciaram o movimento messiânico do sebastianismo. Fernando
Pessoa interessou-se pelas professias de Bandarra, como por outras manifestações de misticismo, nas
quais procurou inspiração. Numa entrevista publicada na Revista Portuguesa, em 13 de Outubro de 1923,
Pessoa afirmara: «O futuro de Portugal – que não calculo mas sei – está escrito já, para quem saiba lê-lo,
nas trovas do Bandarra, e também nas quadras de Nostradamo. Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja
português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé?» (PESSOA,
2000c: 199).
288
O livro de Fernando Pessoa foi posto à venda no dia 1 de Dezembro de 1934,
assinalando a comemoração da restauração da independência nacional, em 1640320.
Prevendo a atribuição do prémio «Antero do Quental» para o «melhor livro de versos» a
Fernando Pessoa, o Suplemento Literário do Diário de Lisboa dedicou uma página
inteira a Mensagem e ao seu autor em 14 de Dezembro. Na mesma página, a rubrica
«Dez minutos com», que ocupa como habitualmente uma coluna, publica uma
irreverente e enigmática entrevista com Fernando Pessoa, supostamente realizada no
café Martinho da Arcada, na Praça do Comércio em Lisboa, que o escritor frequentava
nessa época: «A calva socrática, os olhos de corvo de Edgar Poe, e um bigode risível,
chaplinesco – eis a traços tão fortes como precisos a máscara de Fernando Pessoa.
Encontramo-lo friorento e encharcado desta chuva cruel de Dezembro a uma mesa do
Martinho da Arcada, última estampa romântica dos cafés do século XX». O repórter
descreve então, com liberdade criativa, o quadro de interacção em que se moviam «os
derradeiros abencerragens do “Orfeu”. A lira não se partiu. Ecoa ainda, mas menos
bárbara, trazida da velha Grécia, no peito duma sereia, até á foz romana do Tejo». Na
sua introdução, o jornalista identifica então, sumariamente, os heterónimos: «Fernando
Pessoa tem três almas, baptizadas na pia lustral da estética nova: Álvaro de Campos, o
das odes, convulsivo de dinamismo, Ricardo Reis, o clássico, que trabalha
maravilhosamente a prosa, descobrindo na cinza dos túmulos, tesouros de imagens, e
Alberto Caeiro, o super-clássico, magestoso como um príncipe. Mas desta vez fala
Fernando Pessoa – em «pessoa» (Suplemento Literário, 4339: 5):
– «Mensagem» é um livro nacionalista, e, portanto, na tradição cristã representada
primeiro pela busca do Santo Graal, e depois pela esperança do Encoberto.
É dificil de entender, mas os poetas falam como as cavernas com boca de misterio.
De resto os versos são oiro de lingua, fortes como tempestades.
É um livro novo?
– Escrito em mim ha muito tempo. Ha poemas que são de 1914, quasi do tempo do
«Orfeu».
320
«Publiquei em Outubro passado, pus à venda, propositadamente, em 1 de Dezembro, um livro de
poemas, formando realmente um só poema, intitulado Mensagem. Foi esse livro premiado, em condições
especiais e para mim muito honrosas, pelo Secretariado da Propaganda Nacional.
A muitos que leram com apreço o Mensagem, assim como a muitos que o leram ou com pouco apreço
ou com nenhum, certas coisas causaram perplexidade e confusão: a estrutura do livro, a disposição nele
das matérias, e mormente a mistura, que ali se encontra, de um misticismo nacionalista – ordinariamente
colado, onde entre nós apareça, ao espírito e às doutrinas da Igreja de Roma – com uma religiosidade,
deste ponto de vista, nitidamente herética» (PESSOA, 2003: 202).
289
– Mas estes são agora mais classicos, digamos. Versos de almas tranquilas…
– Talvez? É que eu tenho varias maneiras de escrever – nunca uma.
– E como estabelece o contacto com o deserto branco do papel?
Pessoa, numa nuvem do opio:
– Por impulso, por intuição, que depois altero. O autor dá lugar ao critico, mas este
sabe o que aquele quiz fazer…
– A sua «Mensagem»…
– Projectar no momento presente uma coisa que vem atravez de Portugal, desde os
romances de cavalaria. Quiz marcar o destino imperial de Portugal, esse imperio que
perpassou através de D. Sebastião, e que continua, «ha-de ser». (DIÁRIO DE LISBOA, 4339:
5)
Em 20 de Dezembro de 1934, a poucos dias do anúncio da decisão dos júris dos
prémios literários, o Diário de Lisboa publicou o artigo de fundo «PRÉMIOS», no qual
o articulista põe em confronto o mundo inspirado e o mundo comercial, colocando a
questão: «Que valor têm as recompensas pecuniárias como estímulo das letras?». Em
resposta, o jornalista escreve que «Schopenhauer, que nunca conheceu a penúria nem o
suplício do frio e da fome nas mansardas», teria afirmado que o «dinheiro escraviza o
talento e afugenta a inspiração». Para Schopenhauer, a «superioridade das obras
clássicas» seria devida ao facto dos escritores gregos e romanos não pensarem no
dinheiro que obteriam com elas. O articulista discorda contudo de Schopenhauer,
afirmando que, pelo contrário, «os mestres antigos empregavam a adulação para
conquistar as graças cesareias. O dinheiro, o chamado vil metal, não era desdenhado
nem esquecido: apeteciam-no os génios como Ésquilo e Aristóteles, Vergílio e
Horácio» (DIÁRIO DE LISBOA, 4345: 1).
No mesmo dia em que o Diário de Lisboa publicou o seu artigo, também o
semanário Fradique inseriu um artigo, na primeira página, intitulado «Prémios
Literários: Notas e sugestões»321. Segundo o jornalista anónimo, a Academia tinha
321
Fradique: Semanário Literário, fundado e dirigido por Tomás Ribeiro Colaço (1899-1965), cujo
primeiro dos seus 99 números saiu em 8 de Fevereiro de 1934. Fernando Pessoa escreveu para o primeiro
número de Fradique o artigo «O Homem de Porlock», apenas publicado no segundo, em 15 de Fevereiro
de 1934 (MARTINS, 2008: 290-291). Os prémios do Secretariado da Propaganda Nacional, anunciados
no final de 1933, parece terem estimulado a actividade literária, pelo menos a avaliar pela imprensa da
especialidade. Numa carta para Tomás Ribeiro Colaço, de 10 de Outubro de 1935, em que agradece «a
amabilidade do contínuo envio do Fradique», Pessoa escreveu que este jornal «é, verdadeiramente, o
único semanário literário – ou, até, a única publicação jornalística literária que temos, fazendo porém uma
excepção vaga mas, a meu ver, justa, em favor do Suplemento Literário de Diário de Lisboa. Não que
esse iguale, ou sequer se aproxime, do Fradique, mas sempre é literário. O resto…». O «resto» era O
290
atribuído uma única vez o Prémio Tomaz Ribeiro, por ocasião do centenário do autor de
D. Jaime. Depois «surgiram os prémios da Imprensa, o prémio de Ricardo Malheiros»,
os «prémios de literatura colonial» e, na sequência desta «justa corrente já formada, o
Secretariado da Propaganda Nacional criou também vários prémios literários».
Contudo, o articulista acusa o organismo dirigido por António Ferro de organizar
«conferências literárias sem convidar como devia os jornais», e de constituir os júris dos
prémios «sem sequer enviar a nota respectiva aos jornais literários», o que, na sua
opinião, revelava «a natural diferença que há entre funções de propaganda e funções
literárias». Além disso, o jornalista manifesta o seu desagrado pelo facto de António
Ferro fazer parte de todos os júris, numa atitude inaceitável de auto-nomeação de quem
elaborou o regulamento. Neste sentido, não «deveria fazer parte de um júri, mesmo
apenas com um carácter de mera assistência burocrática, quem por si não tivesse
categoria literária comprovada e indiscutível». Segundo o jornalista anónimo, os
prémios literários deveriam ser «funções normais do Ministérios da Instrução» ou da
Academia das Ciências e não estarem dependentes de um organismo com funções de
propaganda. Na sua opinião, o Secretariado da Propaganda Nacional teria diminuído o
«valor moral desses prémios», privando-os de um «significado nitidamente literário»,
«cultural e artístico» (FRADIQUE, 46:1).
Está claro que, – e somou insuspeitos a dizê-lo, pois aplaudimos a criação de
prémios literários – a mecânica de prémios por assim dizer oficiais, a obras de literatura,
crítica, história, etc, devia ser integrada nas funções normais do Ministério da Instrução,
por qualquer dos organismos dêle dependentes; a Junta de Educação Nacional, a Academia
das Ciências, o Conselho da Faculdade de Letras, estariam nitidamente indicados. A
função do Secretariado seria, lògicamente, a de fazer a propaganda das obras assim
consagradas oficialmente. Criando os prémios e arrogando o si funções na respectiva
adjudicação, o Secretariado de certo modo se desviou da sua acção natural. Tomou funções
de fomentador de revelações, quando lhe cabiam princípios de divulgador das afirmações
reveladas. Isto se não houvermos de considerar que, marcando a sua presença, de certo
modo restringiu o valor moral dêsses prémios, – por privá-los de um significado
nitidamente literário, nitidamente cultural e artístico, e lhes dar uma tonalidade especial,
só aceitável quando expressamente declarada (é o caso dos prémios coloniais). (FRADIQUE,
46:1)
Diabo: Semanário de Crítica Literária e Artística, e Bandarra: Semanário da Vida Portuguesa, que
Pessoa afirma na mesma carta comprar «avulso, e sempre» (PESSOA, 1999b: 354).
291
Finalmente, mais de um ano depois do anúncio dos prémios, o Diário de Lisboa
publicou, na primeira página da sua última edição de 1934, uma fotografia dos
«membros dos júris dos concursos literários do Secretariado da Propaganda Nacional»,
na qual pontifica António Ferro. Uma nota remete para a notícia que ocupa quase toda a
última página, sob o título «O FIM DO ANO LITERÁRIO», dando conta da reunião de
31 de Dezembro. «A exemplo do que se faz lá fora, os resultados dos concursos
literários do Secretariado de Propaganda Nacional foram comunicados durante um
almoço que se realizou esta tarde, no primeiro andar do Café-Restaurante Tavares».
Participaram neste almoço António Ferro, director daquele organismo, António de
Meneses, que secretariou as reuniões dos júris e os membros destes que se encontravam
em Lisboa. As deliberações dos júris dos prémios literários foram lidas durante os
intervalos de cada prato pelo secretário: «Os prémios dos concursos do Secretariado da
Propaganda Nacional foram conferidos ao historiador Caetano Beirão, ao ensaísta João
Ameal, aos Poetas Fernando Pessoa e Vasco Reis e ao jornalista Augusto Costa». Foi
primeiro anunciado o prémio de história, no valor de seis mil escudos, atribuído a
Caetano Beirão pelo seu livro D. Maria I322, depois foram anunciados os vencedores das
duas categorias do prémio «Antero do Quental».
Segundo Boltanski e Thévenot, «a prova de grandeza de uma pessoa não pode
repousar simplesmente numa qualidade intrínseca», mas «deve ser apoiada por objectos
exteriores às pessoas, que servirão de alguma forma de instrumentos ou aparelhos da
grandeza» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 165). Na sua perspectiva, a «prova modelo,
ou grande momento, é uma situação» preparada com recurso a «um dispositivo puro,
particularmente consistente», em que «o resultado é portanto incerto» (BOLTANSKI &
THÉVENOT, 1991: 181).
Neste sentido, o concurso literário do Secretariado da Propaganda
Nacional pode ser interpretado como prova modelo, na qual o prémio «Antero do
Quental» constituiu um «dispositivo puro». Seria então de esperar um resultado incerto
neste concurso, o que realmente aconteceu, pois o júri não atribuiu a Mensagem, de
Fernando Pessoa, o prémio de cinco mil escudos para a categoria de «melhor livro de
versos, não inferior a 100 páginas». Esta categoria foi atribuída ao livro A Romaria 323,
322
Caetano Beirão, D. Maria I, 1777-1792: subsidios para a revisão da historia do seu reinado, Lisboa,
Empresa Nacional de Publicidade, 1934.
323
Vasco Reis, A Romaria, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934.
292
de Vasco Reis324, um jovem padre, missionário franciscano ausente em Moçambique e
«completamente desconhecido do público». Contudo, a inesperada deliberação do júri
atribuiu a Fernando Pessoa o prémio «Antero do Quental» na categoria de «poema, ou
poesia solta», cujo valor pecuniário era de mil escudos (DIÁRIO DE LISBOA, 4355: 16).
Seguiu-se a documentação referente ao premio «Antero de Quental», (Poesia) –
cujo juri era composto pelos srs. dr. Alberto Osorio de Castro, dr. Mario Beirão, Acacio de
Paiva e D. Tereza Leitão de Barros – tendo o premio da primeira categoria sido atribuido,
por maioria, ao livro «Romaria», de Vasco Reis, «uma obra de genuino lirismo português,
que revela uma alta sensibilidade de artista e que tem um sabôr marcadamente cristão e
popular». O autor tem 23 anos e é completamente desconhecido do publico, exercendo
actualmente a sua nobre actividade espiritual, como missionario franciscano, no interior da
provincia da Beira, em Moçambique. E, no seu voto escrito, o sr. dr. Osorio de Castro diz
que, ao lêr o seu livro, teve a sensação que lhe produziria a aparição dum Cesario Verde ou
dum Antonio Nobre. Quanto á segunda categoria, o premio foi atribuido á «Mensagem»,
de Fernando Pessoa, «um alto poema da evocação e interpretação historica, que tem sido
merecidamente elogiado pela critica». O seu autor, «isolado voluntariamente do grande
publico, é uma figura de marcado prestigio e relêvo nos meios intelectuais de Lisboa e uma
das personalidades mais originais das letras portuguesas». (DIÁRIO DE LISBOA, 4355: 16)
VI.4.2. A Romaria de Vasco Reis
Conforme o regulamento do concurso, o júri do prémio de poesia «Antero do
Quental» era constituído por Alberto Osório de Castro325, «poeta de grande nome
324
É ainda difícil recolher dados biográficos do autor de A Romaria, cujo pseudónimo era Vasco Reis,
incluindo o próprio nome, dada a disparidade das fontes. Contudo, parece certo que o seu verdadeiro
nome era Manuel Joaquim dos Reis Barroso (1910-1988), natural de Seara Velha, freguesia de Calvão,
concelho de Chaves. Nasceu em 23 de Março de 1910 e teria entrado para a Ordem de São Francisco com
o nome Vasco Reis, estudando teologia no convento de Santo António de Tuy (Galiza). Foi ordenado
padre em 1932, seguindo para o mosteiro de Santo António do Varatojo (Torres Vedras). Neste mosteiro,
devolvido em 1928 à mesma ordem religiosa, funcionava o Colégio dos Missionários Apostólicos, no
qual Vasco Reis recebeu formação, seguindo para Moçambique em 1934. No ano seguinte voltou para
Lisboa e estudou na Escola Superior Colonial (actual Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas).
Já casado, em 1938 partiu para Angola, donde só voltaria em 1975, trabalhando primeiro na
administração colonial e depois numa companhia petrolífera. Manteve a rubrica «Conversa Fiada» no
Jornal de Angola e colaborou no suplemento literário do jornal A Província de Angola, deixando extensa
obra publicada sob o pseudónimo Reis Ventura. Além do prémio «Antero do Quental», pelo seu livro A
Romaria, Reis Ventura venceu dois concursos literários: o prémio «Fernão Mendes Pinto», atribuído a
Engrenagens Malditas, Braga, Editora Pax, 1965, e o prémio «Óscar Ribas», pelo livro A 100.ª CCMDS:
uma companhia de comandos em Angola, Braga, Editora Pax, 1970.
325
Alberto Osório de Castro (1868-1946) era escritor e político, natural de Coimbra, onde se licenciou em
Direito. Colaborou na revista Boémia Nova, fundada por António Nobre (1867-1900), integrando-se nas
correntes literárias simbolista e decadentista. Fundou o jornal Novo Tempo, onde publicou os primeiros
293
nacional»; Mário Beirão326, «poeta da nova geração literária»; Acácio de Paiva327 e
Teresa Leitão de Barros328, os dois «críticos literários em exercício na imprensa de
Lisboa»; e ainda presidido pelo próprio António Ferro. Osório de Castro contava então
66 anos e representava as correntes simbolista e decadentista. Mário Beirão, poeta
saudosista e amigo de longa data de Fernando Pessoa, ligado à Renascença Portuguesa e
à sua revista A Águia, contava então 44 anos, sendo considerado o representante da
«nova geração literária»329. O prémio «Antero do Quental» não foi consensual entre o
júri, tendo sido atribuído por maioria ao livro de Vasco Reis330. Na sua declaração de
voto, Alberto Osório de Castro afirmou que, ao ler A Romaria, «teve a sensação que lhe
produziria a aparição dum Cesário Verde ou dum António Nobre». O primeiro poema
do livro intitula-se «Miguel»:
poemas de Camilo Pessanha, de quem foi amigo e recebeu forte influência. Como magistrado viajou pelo
Oriente, ocupando diversos cargos em Angola, Timor e Índia, e chegando a ministro da justiça no
Governo de Sidónio Pais.
326
Mário Gomes Pires Beirão (1890-1965), natural de Beja, licenciou-se em Direito pela Universidade de
Lisboa, vindo a exercer o cargo de conservador do Registo Civil de Mafra. Poeta saudosista, nascido em
1890, tal como Mário de Sá-Carneiro, Mário Beirão era dois anos mais novo do que Fernando Pessoa, e
colaborador assíduo da revista A Águia. Ao contrário do amigo Pessoa, Beirão não rompeu com a
Renascença Portuguesa, que publicou os seus quatro primeiros livros: O Ultimo Lusíada (1913), Ausente
(1915), Lusitânia (1917) e Pastorais (1923). A admiração mútua entre Fernando Pessoa e Mário Beirão é
testemunhada pela correspondência trocada entre 1912 e 1914, datando a primeira carta conhecida de 6 de
Dezembro de 1912, na qual Pessoa agradece a oferta da «plaquette Cintra» e afirma a «alta opinião» que
tem do «génio» do amigo. Nesta carta, Pessoa compara Beirão ao poeta inglês John Keats (1795-1821),
salientando que este «tinha – além de menos perfeição no detalhe, quanto à forma e quanto à ideia – ainda
menos cuidado no conjunto» (PESSOA, 1999a: 56-57). Na biblioteca pessoal de Fernando Pessoa existe
o primeiro livro de Mário Beirão, O Ultimo Lusíada, que este ofereceu ao amigo em 10 de Abril de 1913
com a dedicatória: «A Fernando Pessoa, lembrança de amizade e homenagem da maior admiração pelo
seu talento».
327
Acácio de Paiva (1863-1944) era natural de Leiria. Licenciado em farmácia na Escola MédicoCirúrgica do Porto em 1997, foi jornalista e escritor, tendo colaborado em vários periódicos,
designadamente O Século, Diário de Notícias e Ilustração Portuguesa.
328
Teresa Leitão de Barros (1898-1983), licenciada em filologia românica na Universidade de Lisboa, era
professora do ensino secundário, tendo colaborado em vários periódicos, designadamente o Diário de
Notícias e o Notícias Ilustrado.
329
Em 1934, o movimento presencista tinha já atingido uma relativa maturidade, iniciado que foi sete
anos antes com o lançamento da sua revista, uma das mais influentes e duradouras publicações literárias
do século XX. A nomeação do poeta saudosista Mário Beirão, como representante da «nova geração
literária», mostra bem que António Ferro não tinha «ainda encontrado uma ocasião para saudar e exaltar»
a revista coimbrã, «onde se tinham «revelado alguns dos valores mais representativos e mais sérios da
nova geração» (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24006: 1). Esta postura torna-se particularmente evidente
sobretudo após a severa operação crítica de Albano Nogueira, na revista Presença, aos prémios literários
do Secretariado da Propaganda Nacional e ao seu director. Desta forma, o próprio António Ferro foi o
único representante da corrente modernista, particularmente do futurismo, no júri do prémio «Antero do
Quental».
330
Uma vez que o júri era composto por quatro jurados, e que António Ferro «não teve de intervir em
nenhuma das resoluções tomadas», esta maioria só poderia ser de três contra um. É portanto possível que
Mário Beirão, amigo de Pessoa, tenha sido o único a opor-se à desclassificação de Mensagem para a
categoria de «poema, ou poesia solta» (DIÁRIO DE LISBOA, 4355: 16).
294
Miguel
Ena! Pai.
Que alegria por aí vai!
Santo António teve um dia,
De alto lá, p’rá Romaria!
Eh! Miguel!
Isto sim!
Esta luz, esta luz, esta alvorada,
Para mim, Vale mais que limonada
Para quem anda sedento
Por um deserto sem fim…
[…]
(REIS, 1934: 15)
O livro de Vasco Reis abre com uma «Carta-Prefácio do Sr. Dr. Alfredo
Pimenta», o mesmo que Albano Nogueira, um ano antes, tinha sugerido sarcasticamente
como vencedor do prémio «Alexandre Herculano». Alfredo Pimenta não venceu esse
prémio, que foi atribuído a Caetano Beirão, mas era membro do júri, não apenas do
prémio de história, mas também do prémio «Ramalho Ortigão» para ensaio. Na sua
carta, que Vasco Reis aproveitou para prefácio de A Romaria, Alfredo Pimenta agradece
ao autor, «profundamente sensibilizado, as duas horas de repouso espiritual e de
serenidade moral» que a leitura do manuscrito lhe teria proporcionado. Além disso,
confessa-se «encantado e comovido» com o «poema, bem franciscano, pela singeleza e
ternura que dos seus versos emana, e bem português, pelo ambiente em que decorre».
Alfredo Pimenta encontrou em A Romaria «vibrações perfeitamente modernas – prova
incontestável de que as altas paredes das cercas conventuais não impedem que as novas
modalidades de Beleza poética cheguem até às celas dos monges»331. O prefaciador não
se limitou a «aprovar» o desejo de Vasco Reis publicar o seu «puro e belo» poema,
pedindo-lhe «fervorosamente» que o fizesse, «porque a nossa terra está necessitada de
livros sãos que sejam belos». A referência de Pimenta a «livros sãos» e à «beleza
331
Num artigo não publicado na época, intitulado «Barril de Lixo», Pessoa escreveria, entre outras
considerações irónicas: «o sr. doutor Alfredo Pimenta é indivíduo de espécie thaumaturgica. Faz
milagres. Lê livros escriptos em linguas que não conhece; comprehende perfeitamente assuntos de que
não sabe nada. Não sei se já começou a consertar bilhas partidas, symbolo eterno do milagre nacionalista.
Se ainda não começou, comece, quando começar, por consertar a propria cabeça que é uma bilha partida,
e portanto vazia» (BARRETO, 2009: 278).
295
mórbida» remete para a arte patológica, denunciada por Max Nordau e Júlio Dantas,
bem como para as controvérsias sobre a «Literatura de Manicómio» da revista Orpheu,
mas também para a «Literatura de Sodoma», na época da revista Contemporanea332. Por
outro lado, a coincidência entre o regulamento do prémio «Antero do Quental», «em
que se revele uma inspiração bem portuguesa», e a carta de Alfredo Pimenta, segundo a
qual «o poema» de Vasco Reis era «bem português, pelo ambiente em que decorre»,
representa uma recomendação subtil para que o jovem autor fosse premiado. Além
disso, no que respeita à categoria do prémio, se no início da carta Alfredo Pimenta
designa A Romaria como «poema, bem franciscano», no final já afirma que o «livro
concilia as duas qualidades essenciais: é puro e belo» (REIS, 1934: 9-10):
Acabo de ler, encantado e comovido, o seu poema, bem franciscano, pela singeleza
e ternura que dos seus versos emana, e bem português, pelo ambiente em que decorre.
Agradeço-lhe, profundamente sensibilizado, as duas horas de repouso espiritual e de
serenidade moral que me deu com a leitura das suas rimas – onde há vibrações
perfeitamente modernas – prova incontestável de que as altas paredes das cêrcas
conventuais não impedem que as novas modalidades de Beleza pática cheguem até às celas
dos monges.
Os seus versos são de talhe moderno – o que denuncia a sua convivência com os
poetas profanos da nossa época, e a compreensão inteligente por parte de V. Ex.ª dos
actuais processos técnicos. Não posso limitar-me a aprovar o seu desejo de publicar êste
livro. Peço-lhe fervorosamente que o faça – porque a nossa terra está necessitada de livros
sãos que sejam belos – coisa rara entre nós e fora de nós, pois nos consumimos
pendularmente entre estes dois pólos: ou beleza mórbida ou inocência enfadonha.
O seu livro concilia as duas qualidades essenciais: é puro e belo.
[…]
ALFREDO PIMENTA
(REIS, 1934: 9-10)
332
Depois de Canções, que esteve na origem da controvérsia sobre a «Literatura de Sodoma», António
Botto tinha já publicado vários livros, três dos quais com comentários de Fernando Pessoa, que reincidia
assim no mesmo «ideal estético». Além disso, em 8 de Agosto de 1934 estreou o filme Gado Bravo,
(terceiro filme sonoro português) grande sucesso de bilheteira, com realização de António Lopes Ribeiro,
cujas letras das canções são de António Botto. Esta estreia motivou aliás uma polémica sobre a poesia de
Botto, entre José Régio e Tomás Ribeiro Colaço, que se prolongou até Fevereiro do ano seguinte no
jornal Fradique.
296
As obras vencedoras do prémio «Antero do Quental» reflectem aspectos da
identidade nacional, se bem que A Romaria apresente uma religiosidade popular,
enquanto Mensagem tem uma inspiração mística erudita. Á luz da teoria de Boltanski e
Thévenot, as duas obras inscrevem-se no mundo inspirado, marcado pelo misticismo e
pela ascese, no qual o principal sacrifício consiste em «tudo abandonar para se
consagrar à sua vocação» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 203). A ascese do franciscano
Vasco Reis era evidente na sua condição de missionário, ausente em Moçambique, mas
também no caso de Fernando Pessoa que, por se encontrar «isolado voluntariamente do
grande público». Importa pois analisar e confrontar estas obras premiadas com as
categorias de «livro de versos, não inferior a 100 páginas» e «poema, ou poesia solta».
Apesar de Fernando Pessoa ter conseguido apenas a «segunda categoria» do prémio
«Antero do Quental», a deliberação do júri nada tem a ver com as críticas jocosas da
imprensa na época da revista Orpheu. Neste sentido, Mensagem foi considerado «um
alto poema da evocação e interpretação histórica, que tem sido merecidamente elogiado
pela crítica». Quanto ao autor, o júri referia que Fernando Pessoa «é uma figura de
marcado prestigio e relevo nos meios intelectuais de Lisboa e uma das personalidades
mais originais das letras portuguesas» (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24364: 1).
O livro de Fernando Pessoa teria sido relegado para a categoria de «poema, ou
poesia solta», por o júri do prémio «Antero do Quental» considerar que Mensagem não
cumpria a primeira condição do regulamento, o qual impunha que fosse um «livro de
versos, não inferior a 100 páginas». O arranjo gráfico e paginação teriam sido da
responsabilidade de Augusto Ferreira Gomes, amigo de Pessoa que trabalhava no
Secretariado da Propaganda Nacional como artista gráfico (BLANCO, 2007: 154-155).
Apesar de Mensagem ter 100 páginas numeradas, o primeiro poema, «O dos Castellos»,
surge na página 15 e o último, «Nevoeiro», encontra-se na página 96, o que perfaz
apenas 81 páginas. Seguindo o mesmo critério, o primeiro poema de A Romaria,
intitulado «Miguel», encontra-se igualmente na página 15, enquanto o último está na
página 118, completando assim 103 páginas. Desta forma se compreende que, por um
critério formal e não qualitativo ou «apenas por uma simples questão de número de
páginas», o livro de Fernando Pessoa tenha «passado para a segunda categoria» (DIÁRIO
DE LISBOA, 4355: 16).
O júri do prémio «Eça de Queiroz», constituído por Antero de Figueiredo, Nuno
de Montemor, Vasco de Mendonça Alves, Manuel Pestana Reis e presidido por António
297
Ferro, deliberou, por maioria, não o atribuir. Este prémio literário, destinado ao «melhor
romance» com «uma intenção amplamente construtiva», era de dez mil escudos, sendo
o de maior valor pecuniário. Embora «reconhecendo notáveis qualidades em algumas
obras que lhe foram submetidas», o júri não encontrou em nenhuma delas «todos os
requisitos exigidos pelas bases do concurso e pelas altas exigências e finalidades a que
deveria corresponder a sua escolha». A não atribuição do prémio «Eça de Queiroz»
libertou uma verba que António Ferro usou para criar «um prémio extraordinário» de
jornalismo, no valor de dois mil escudos, atribuído a Fernando de Pamplona pelo seu
livro Voronoffs da Democracia. Permitiu ainda, «atendendo ao alto sentido
nacionalista» de Mensagem, elevar, de mil para cinco mil escudos, o valor do prémio
atribuído a Fernando Pessoa, igualando assim o valor pecuniário atribuído a Vasco Reis
(DIÁRIO DE LISBOA, 4355: 16).
O director do Secretariado da Propaganda Nacional não teve de intervir em
nenhuma das resoluções tomadas. Mas decidiu, em vista de não ter sido concedido, o
premio do Romance, e de existir assim um saldo no orçamento dos premios literarios deste
ano, corresponder aos desejos do juri do Jornalismo – estabelecendo um premio
extraordinario de 2.000 escudos para os «Voronoffs da Democracia», de Fernando de
Pamplona. Decidiu tambem, atendendo ao alto sentido nacionalista da obra e ao facto do
livro ter passado para a segunda categoria apenas por uma simples questão de numero de
paginas – elevar para 5.000 escudos o premio atríbuido á «Mensagem», de Fernando
Pessoa.
Por um dos membros do juri do premio «Eça de Queiroz», foi indicado como
merecedor do referido premio o romance «Heroi derradeiro», de Joaquim Paço d’Arcos.
No final do banquete, Antonio Ferro pronunciou um interessante discurso, dizendo
que os premios literarios criados Pelo S. P. N. limitaram-se este ano a uma simples
tentativa para despertar em Portugal as lutas do espirito e acrescentando que no segundo
ano já alguns defeitos verificados desaparecerão. Enalteceu as vantagens de tais concursos,
revelando autores, como no caso de Vasco Reis, ou roubando-os ao seu isolamento, como no
caso de Fernando Pessoa. (DIÁRIO DE LISBOA, 4355: 16)
VI.4.3. Cristianismo e paganismo literário
Diversos amigos felicitaram Fernando Pessoa por, finalmente, ter publicado um
livro e, sobretudo, por Mensagem ter obtido um prémio literário. Logo no dia seguinte
ao anúncio dos prémios, em 1 de Janeiro de 1935, o poeta Alberto de Serpa (1906-1992)
escreveu a Pessoa, agradecendo a oferta de um exemplar de Mensagem: «Que grande e
298
singular livro! É obra dum Poeta universal que sente intelectualmente os destinos dum
povo que só se conhece pelo coração». Na opinião do seu amigo, Fernando Pessoa era
um «Poeta extraordinário», sempre «com um crítico dentro». Alberto de Serpa termina
com «a maior simpatia» de «admirador muito grato», fazendo votos para que, no ano
que então começava «todos os admiradores incansáveis de Fernando Pessoa possam ver
principiada a publicação completa de tão avara e injustamente escondida obra»
(PESSOA, 1999b: 439).
Poucos dias depois, em 10 de Janeiro, foi a vez de Adolfo Casais Monteiro
escrever a Fernando Pessoa, felicitando-o pelo prémio literário conseguido, «ainda que
pareça absurdo que A Romaria seja posta – absurdo? Inimaginável! – acima da
Mensagem». Na opinião deste presencista, seria normal «que um júri ache A Romaria
bom, e a Mensagem mau. Mas que o mesmo que acha bom, digno dum 1.º prémio, o
livro de Vasco Reis, ache também bom o seu – isso é que me deixa siderado!». Desta
forma, felicitava Pessoa «pelos tantos mil escudos, pois que o resto não lhe dá uma
consagração que já tem há muito tempo, ainda que para um demasiadamente restrito
público». O director da Presença acrescenta ainda: «Gostei muito do seu livro, alguns
poemas são dos seus melhores – mas lamento embora que seja esse o seu livro
publicado. Creio que não dá toda a sua medida, que restringe o significado da sua obra»
(PESSOA, 1999b: 437). Em 13 de Janeiro de 1935, Pessoa respondeu a Adolfo Casais
Monteiro numa extensa carta, já diversas vezes citada, na qual descreve os heterónimos:
«Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo
fiz, com um livro da natureza de Mensagem» (PESSOA, 1999b: 338). Apesar de ter escrito
a João Gaspar Simões, em 28 de Julho de 1932, que primitivamente era sua intenção
começar por publicar «Portugal, que é um livro pequeno de poemas» (PESSOA, 1999b:
269),
Pessoa afirma a Adolfo Casais Monteiro três anos depois: «Quando às vezes
pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género
de Mensagem figurava em número um» (PESSOA, 1999b: 338).
Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo
fiz, com um livro da natureza de Mensagem. Sou, de facto, um nacionalista místico, um
sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras
coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a Mensagem não as inclui.
Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o
primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto,
299
incitaram-me a que o publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos postos no
prémio possível do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior. O
meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao
prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros, que primitivamente fora até fim
de Julho, fora alargado até ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia
exemplares prontos da «Mensagem», fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro
estava exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.
Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas,
nunca um livro do género de Mensagem figurava em número um. Hesitava entre se deveria
começar por um livro de versos grande – um livro de umas 350 páginas –, englobando as
várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele-mesmo, ou se deveria abrir com uma
novela policiária, que ainda não consegui completar. (PESSOA, 1999b: 338-339)
No discurso que encerrou o banquete do júri dos prémios literários, António
Ferro antecipou: «Vão ser, com certeza, largamente criticadas as nossas deliberações.
Comentários apaixonados, sinceros, publicamente expostos, ou campanhas surdas e
tortuosas se devem preparar neste momento, contra os prémios literários do S. P. N.».
Com efeito, a controvérsia em torno da justeza do prémio «Antero do Quental» não se
fez esperar, iniciando-se logo em 4 de Janeiro de 1935, curiosamente, com uma crítica
benevolente do próprio Fernando Pessoa ao livro de Vasco Reis, publicada no
Suplemento Literário do Diário de Lisboa, sob o título «A ROMARIA». Desfazendo
eventuais equívocos, Pessoa começa por esclarecer que acedera a um pedido de António
Lopes Ribeiro (1908-1995)333, revelando assim implicitamente que o seu comentário
resultava de uma «encomenda». Além disso, o escritor faz uma crítica velada ao júri do
prémio «Antero do Quental» na medida em que refere A Romaria como poema e não
como livro. De resto, a sua crítica é, tanto quanto possível, benévola, respeitando o
princípio da comum humanidade, procurando assim engrandecer, segundo a teoria de
Boltanski e Thévenot, ao dignificar o jovem poeta.
Aludindo o discurso de António Ferro, Pessoa considera na sua crítica que o
prémio atribuído «justissimamente» ao «poema adorável», A Romaria, «teve a
vantagem de revelar um admirável artista», o padre Vasco Reis. O escritor revela então
333
Crítico de cinema no Diário de Lisboa, onde se iniciou com 17 anos de idade, produtor, argumentista e
cineasta que realizou diversos documentários de propaganda do Estdo Novo. Na sua extensa filmografia
encontram-se películas como Bailando ao Sol (1928), Gado Bravo (1934), O Pai Tirano (1941), Amor de
Perdição (1943) e A Vizinha do Lado (1945). Era irmão do conhecido actor Ribeirinho (1911-1984), com
quem trabalhou.
300
mais um dos seus paradoxos, pois na sua opinião, sendo o nosso catolicismo «sem
contornos – uma meiguice religiosa, preguiçosamente incerta», o «poema é cristão no
sentido particular de católico e por isso mesmo é pagão». Roçando o caricato, a
operação crítica de Pessoa refere «Santo António, concebido irremediavelmente como
um adolescente infantil, cuja função distintiva – a de concertar bilhas – é um milagrebrinquedo». Para o crítico, Vasco Rei «pertence portuguesmente a este catolicismo
amoroso. O seu livro, fortemente concebido e suavemente realizado, vive numa
atmosfera de ternura e de luz, como numa Hélade de bruma molhada de sol».
Recordando o discurso inspirado do saudosista Teixeira de Pascoaes, Pessoa afirma
mesmo desconhecer um «livro, em prosa ou em verso, que interprete tão pagãmente, tão
cristãmente, a alma religiosa de Portugal» (Suplemento Literário, 4358: 5).
Do paganismo latente no catolicismo não se manifesta em nós o aspecto estetico,
como diversamente nos italianos e nos espanhois, nem o aspecto imperial, como
diversamente nestes e nos franceses, mas o aspecto dispersivo e fluido, proprio de tudo
quanto a emoção conduz. O nosso catolicismo é sem contornos – uma meiguice religiosa,
preguiçosamente incerta do que realmente crê. Por isso o nosso vero Deus Manifesto é, não
o Deus uno e trino, ou qualquer das Pessoas da Trindade, mas um Cupido catolico
chamado o Menino Jesus. Por isso não curamos de Maria Virgem, mas só de Maria Mãi.
Por isso os nossos santos autenticos são um S. João Baptista menino – isto é, de muito antes
de ele ser Baptista – ou um Santo Antonio concebido irremediavelmente como um
adolescente infantil, cuja função distintiva – a de concertar bilhas – é um milagrebrinquedo. Quanto ao Diabo, nunca um português acreditou nele. A emoção não
permitiria.
O padre Vasco Reis – a quem Deus fez ser franciscano para fins simbolicos –
pertence portuguêsmente a este catolicismo amoroso. O seu livro, fortemente concebido e
suavemente realizado, vive numa atmosfera de ternura e de luz, como numa Hélade de
bruma molhada de sol. Não conheço livro, em prosa ou verso, que interprete tão
pagãmente, tão cristãmente, a alma religiosa de Portugal. E por trás disto tudo paira –
fundo contra que o visivel se destaca – qualquer coisa de imprecisamente emblemático, de
coordenadamente incerto, com que se comove, não propriamente a emoção, mas a
inteligência. Isso, porém já não é Portugal: é talento. (Suplemento Literário, 4358: 5)
Na mesma página do Suplemento Literário, ao lado do artigo de Pessoa,
encontra-se um excerto de A Romaria com o cabeçalho: «Transcreve-se um trecho e os
dois sonetos finais do auto lírico de VASCO REIS, que teve o PRÉMIO ANTERO DE
QUENTAL 1934 e que FERNANDO PESSOA, autor do livro “Mensagem”, também
301
premiado, aprecia e comenta». A página completa-se com uma ilustração da autoria de
Almada Negreiros. O título revela contudo outra operação crítica velada, na medida em
que inverte subtilmente a ordem de grandeza atribuída às duas obras premiadas,
designando Mensagem por «livro» e A Romaria por «auto lírico». Neste sentido, a
deliberação do júri foi contrariada na prática, primeiro pelo próprio António Ferro,
igualando o valor pecuniário dos dois prémios, e depois no Suplemento Literário do
Diário de Lisboa, através desta subtil operação crítica. O referido excerto de A Romaria
inicia-se como se segue, evidenciando o carácter político dos prémios literários do
Secretariado da Propaganda Nacional (Suplemento Literário, 4358: 5):
BOLCHEVISTA
Não creio em Deus… Se existe, é um Deus tirano, atroz.
CEGO
(melancolicamente)
Um Deus que sôbre a Cruz morreu por todos nós…
(com tristeza)
Eu sei… sei como é
Que um crente perde a fé…
BOLCHEVISTA
E ao ver capitalistas arrogantes,
Impando de prazer,
A jogar, a comer,
Em bailes, chás dançantes,
E os pobres desprezados, sem sustento,
Gemendo em sofrimento,
Não sente a indignação
Ferver no coração?
CEGO
Amigo, neste mundo a Dôr é companheira
Da Humanidade inteira…
Ouviste certamente, em tempos de crianças,
Narrar a morte em cruz
Uma ovelhinha mansa
– Jesus…
302
(DIÁRIO DE LISBOA, 4358: 5)
Segundo Boltanski e Thévenot, o fundamento da comum dignidade das pessoas
remete para uma «verdadeira natureza», uma «inocência» que transparece na forma
como as pessoas se abandonam a «uma situação natural, fechando os olhos às
insinuações de seres duvidosos» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 178). Na sua recensão
do «auto lírico» de Vasco Reis, Fernando Pessoa alude de diversas formas esta
inocência, designadamente quando, citando o franciscano, descreve Santo António
como «adolescente infantil», ou nas expressões «milagre-brinquedo», «catolicismo
amoroso» e «atmosfera de ternura» (Suplemento Literário, 4358: 5). Para Boltanski e
Thévenot, os «grandes inspirados compreendem os outros seres» pela sua singularidade,
conferindo-lhes dignidade de forma altruísta. Neste sentido, a crítica benévola de
Pessoa, reconhecendo o «talento» revelado em A Romaria, engrandece de facto o autor
de Mensagem (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 203).
Segundo a resolução do júri, Fernando Pessoa encontrava-se «isolado
voluntariamente do grande público», o que remete de novo para o ascetismo do mundo
inspirado, revelando a grandeza criativa do escritor. No mundo cívico, as «pessoas são
pequenas ou grandes conforme elas se encontram no estado particular, que as reduz não
serem senão elas próprias, “indivíduos isolados” escravos dos seus interesses
particulares e condenados à impotência» (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1991: 233). Com
efeito, o individualismo é a principal crítica do mundo cívico em relação aos seres
inspirados, o isolamento de Pessoa o diminui no mundo cívico mas engrandece-o no
mundo inspirado. Como ser inspirado, o escritor sentia-se investido na «terrível e
religiosa missão que todo o homem de génio recebe de Deus», fechando-se em casa
para «trabalhar, quanto possa e em tudo quanto possa, para o progresso da civilização e
o alargamento da consciência da humanidade». Para Pessoa, este «mandado
subjectivo»334 era um «dever a cumprir arduamente, monasticamente, sem desviar os
olhos do fim criador-de-civilização de toda a obra artística». Por outro lado, os «graves
e pesados fins» de exercer «uma acção sobre a humanidade», contribuindo com todo o
seu «esforço para a civilização», não eram incompatíveis com o patriotismo de
334
«TOMARA PODER DESEMPENHAR-ME, sem hesitações nem ansiedades, deste mandato
subjectivo cuja execução ou demorada ou imperfeita me tortura e dormir descansadamente, fosse onde
fosse, plátano ou cedro que me cobrisse, levando na alma como uma parcela do mundo, entre uma
saudade e uma aspiração, a consciência do dever cumprido» (PESSOA, 2003: 103).
303
Fernando Pessoa. Com efeito, «a ideia patriótica, sempre mais ou menos presente» em
Pessoa, parece ter levado o escritor a publicar Mensagem, cujo título original era
«Portugal», «para erguer alto o nome português». Antítese das «coisas feitas para
pasmar», num «mórbido período transitório, de grosseria», esta obra de Pessoa seria a
«consequência de encarar a sério a arte e a vida». Mensagem resultaria assim da
«seriedade integral no escrito», a «perfeição absoluta» anunciada por Pessoa na extensa
carta enviada a Armando Côrtes-Rodrigues em 1915, pois outra «atitude não pode ter
para com a sua própria noção-do-dever quem olha religiosamente para o espectáculo
triste e misterioso do Mundo» (PESSOA: 1999a: 140-143).
VI.4.4. Uma «obrinha para costureiras e marçanos»
Em 27 de Janeiro de 1935, o jornal O Diabo: Semanário de Crítica Literária e
Artística publicou a sua habitual «Crítica Literária», nesta edição partilhada por Ferreira
Mira e Alice Ogando335, cabendo a cada crítico a recensão de três livros. Alice Ogando
começa pela análise de «”Mensagem” – Poemas de Fernando Pessoa», considerando
que a poesia portuguesa vestiu de gala para receber o livro. «Esta obra obteve um
segundo prémio no concurso da Propaganda. Apre! Muito bom deve ser o primeiro
premiado para uma obra como esta poder ficar em segundo lugar!». Na sua operação
crítica, extremamente encomiástica para Fernando Pessoa, Alice Ogando assinala «o
aparecimento do livro de um alto espírito de uma inteligência brilhante, de um grande
poeta que o será sempre, mesmo quando escrever em prosa». Na opinião da crítica,
Mensagem «não se limita a ser um bom livro de um bom poeta, é mais – e, muitas
vezes», pois o seu autor era «alguém profundamente inteligente e requintadamente
artista». Segundo Alice Ogando, para escrever um livro assim «não basta inspiração,
não basta facilidade poética, musicalidade, ritmo – é preciso tudo isso e muito mais,
aliar a riqueza do conceito à perfeição da forma, e estes versos, mesmo quando não são
lindos, são belos» (O DIABO, 31: 4).
O livro do sr. Fernando Pessoa não se limita a ser um bom livro de um bom poeta,
é mais – e, muitas vezes, não é tanto – mas é sempre o livro de alguém profundamente
mente inteligente e requintadamente artista.
335
Alice Ogando Costa de Oliveira Brun (1900-1981), escritora e poetisa, era então uma influente crítica
literária. Casou em 1912 com o também escritor e jornalista André Brun, falecido 1m 1926, autor da
citada crónica satírica «Migalhas», publicada em 1915 em A Capital, na qual criticou a revista Orpheu.
304
Há ideias, pensamentos de tão bom quilate, tão profundos e tão brilhantes que, só
por si, afirmavam um grande prosador, mas o autor, rico de talento, quis fundir numa só
forma o vôo da poesia e a profundeza da prosa.
Não seria bastante para afirmar um grande poeta estes três versos do poema «D.
Sebastião»?
– Sem a loucura o que é o homem
mais que a besta sádia,
cadaver addiado que procria?
A riqueza poetica dêste livro é tanta que, ainda que o seu autor nunca mais
escrevesse um verso, o seu nome ficaria para sempre ligado á mais rica poesia portuguesa.
(O DIABO, 31: 4)
João Gaspar Simões tinha concorrido com Amores Infelizes ao prémio «Eça de
Queiroz»336, destinado ao «melhor romance» com «uma intenção amplamente
construtiva», que o júri deliberou não atribuir. Na edição de 31 de Janeiro de 1935, o
semanário Fradique publicou, na primeira página, uma carta dirigida ao seu director,
Tomás Ribeiro Colaço, em que «João Gaspar Simões depõe acerca dos Prémios
Literários». Nesta carta, o director da revista Presença, considera o regulamento do
prémio «Eça de Queiroz» um «quebra-cabeças», inclinando-se a pensar que não foi
premiado porque, para o júri, o seu romance não teria uma «intenção amplamente
construtiva». Neste sentido, João Gaspar Simões questiona se seria «amplamente
construtivo isso a que o júri de poesia deu o prémio Antero de Quental». Na sua
opinião, A Romaria, não passava de uma «obrinha para costureiras e marçanos», escrita
por «um cândido franciscano tão pobre de talento quanto o fundador da sua ordem era
pobre de bens deste mundo».
O crítico lamentava ver envolvido nos prémios literários do Secretariado da
Propaganda Nacional «um nome até há pouco inacessível, tão exemplar, tão excelso,
como o do poeta Fernando Pessoa». Para Gaspar Simões, «António Ferro bem sabia que
o júri que ele próprio escolhera para apreciar as obras de poesia, não estava à altura de
um livro como Mensagem». Um dos membros desse júri teve mesmo a «audácia de
comparar a obra do franciscano com a de um Cesário ou de um Nobre!». Se «no
concurso tivesse aparecido um novo Cesário ou um novo Nobre – o tal membro
336
João Gaspar Simões, Amores infelizes: uma história de província, Coimbra, Edições Presença, 1934.
305
respeitabilíssimo não teria dado por ele!». Segundo Gaspar Simões, o director do
Secretariado da Propaganda Nacional teria mesmo conseguiu «descobrir dois críticos
literários que nunca escreveram uma crítica!». A nomeação de «indivíduos tão
francamente nulos» mostraria bem que António Ferro tinha perdido «completamente o
sentido das realidades literárias», uma vez que tinha sido «o autor de Leviana quem
cometeu essa leviandade»337. Neste contexto, Gaspar Simões considera uma «grande e
inolvidável honra não ter sido premiado pelos selectos indivíduos que constituíam o júri
do prémio Eça de Queiroz» (FRADIQUE, 52: 5-7).
É que nunca julguei que o sr. António Ferro estivesse tão bota de elástico. Eu, que o
conhecia da Teoria da Indiferença e da Leviana, um escritor superficial, sim, mas de bom
gôsto, com um estilo original, mecanizado, gongórico, de efeito – não o podia crer capaz de
chamar para a composição de júris por êle organizados individuos tão francamente nulos
como os que acabo de lhe citar, meu caro Ribeiro Colaço. Que não é tudo. Já reparou o
meu amigo que até um Acácio de Paiva, êsse que faz fitas no Século ou no Notícias,
apareceu entre os membros de um dos júris – Acácio de Paiva, quem te viu e quem te vê! E
também lá apareceu um meretíssimo juiz, e um poeta que não faz maus versos – mas dizem
nem por isso ser capaz de descobrir a pólvora! Não, meu caro Ribeiro Colaço, eu podia ter
previsto muito do que aconteceu, porém, nunca supuz que o sr. António Ferro tivesse
perdido tão completamente o sentido das realidades literárias. (FRADIQUE, 52: 5)
Em 22 de Fevereiro de 1935, o Suplemento Literário do Diário de Lisboa338
publicou uma crítica intitulada «LIRISMO E CRISTIANISMO: Um missionário poeta.
Dos “Laudi” de S. Francisco de Assis à “Romaria” de Vasco Reis». Este artigo de João
de Castro Osório inclui uma fotografia com a legenda: «O missionário Vasco Reis em
Lourenço Marques», constituindo uma réplica à crítica de Fernando Pessoa sobre «A
Romaria», publicada no mesmo jornal em 4 de Janeiro. Neste sentido, Castro Osório
afirma que A Romaria revela o «poder de crença no milagre das almas, na profunda
salvação das desgraças ou na realização dos desejos ingénuos – na crença de Santo
António». Segundo Fernando Pessoa, o «poema» de Vasco Reis era «cristão no sentido
337
António Ferro, Leviana: novela em fragmentos, desenhos do pintor António Soares, Lisboa, H.
Antunes, 1921.
338
A primeira página deste Suplemento Literário do Diário de Lisboa foi dedicada ao já referido elogio
fúnebre do poeta e diplomata brasileiro Ronald de Carvalho, director do primeiro número da revista
Orpheu juntamente com Luís de Montalvor, que assinou o artigo. Ronald de Carvalho faleceu no Rio de
Janeiro, em 15 de Fevereiro de 1935, na sequência de atropelamento de que foi vítima no mês anterior. O
Diário de Lisboa noticiou o óbito na edição do próprio dia.
306
particular de católico e por isso mesmo é pagão», pelo contrário, Castro Osório afirma
que «não há nada neste livro nem neste autor, nem no franciscanismo português, de
culto por Santo António, que ele representa, nada de paganismo. Nem certas fórmulas
populares de religião representam paganismo nem elas são particulares do povo
português». Contudo, o crítico inspirou-se no texto de Pessoa «A Nova Poesia
Portuguesa Sociologicamente Considerada», publicado por A Águia em 1912, não para
prever «o próximo aparecer de um Super-Camões na nossa terra», mas para justificar o
«aparecimento em Portugal de um grande poeta cristão». Desta forma, João de Castro
Osório via «na ”Romaria” um encanto muito próprio – a sua capacidade de crença no
milagre actual. A Poesia é uma crença no milagre mais alto – a criação pela magia
poética de um ritmo novo para a vida e para o mundo» (Suplememto Literário, 4405: 6).
Poderei talvez fazer-me compreender dizendo que a «Romaria» não é um grande
livro – mas é um grande primeiro livro.
É o anuncio de uma obra que se ele quizer impor a si proprio a grandeza de que é
capaz e se nós a soubermos compreender e amparar – ha de surgir em toda a sua plenitude.
Mas a «Romaria» é, de facto, um grande primeiro livro – com todas as
caracteristicas daqueles que revelam a passibilidade de uma continua ascensão no obra do
seu autor.
Raros – e não se pode dizer que os melhores – são os poetas que na juventude
revelam toda a sua grandeza. A poesia é uma obra de profunda maturação não de juvenil
espontaneidade.
As qualidades mais desejaveis num primeiro livro são as que revelam e anunciam
uma grandeza futura e uma directriz firme na sinceridade com que foi vivido.
Não é a perfeição tecnica, exterior da «Romaria», a qualidade que neste livro mais
me interessa.
Esse dominio da linguagem poetica – que tantos simplistamente desprezam, sem
perceberem que os ritmos das palavras e as harmonias da sua relação com o pensamento e
o sentimento do poeta que os emprega tem leis proprias que nem por terem de ser
recriadas por cada poeta que os emprega – ou talvez mesmo por isso – deixam de ser mais
defenidas que as da musica – é já seguro em Vasco Reis. (Suplememto Literário, 4405: 6)
Apesar de ausente em Moçambique, o franciscano não deixou de responder à
crítica demolidora de João Gaspar Simões, em carta também datada de 22 de Fevereiro
de 1935. Esta carta foi publicada na primeira página do semanário Fradique, em 14 de
Março, sob o título «PALAVRAS DE UM PREMIADO: Vasco Reis o monge-poeta da
“Romaria”, responde a João Gaspar Simões». Na sua justificação, o franciscano mostra307
se ofendido com a «irreverente» operação crítica de Gaspar Simões, em que o autor de
Amores Infelizes considerava A Romaria uma «obrinha para costureiras e marçanos».
No seu discurso truculento e jocoso, Vasco Reis afirma que Gaspar Simões tinha saído
«à liça mais bravio e assomadiço que touro fugido de curro, e fere a torto e a direito,
num destemperado berreiro». Para pegar «o bicho», que ameaçava «escornar velhinhos
e inocentes», Vasco Reis socorre-se da plêiade de críticos e escritores que tinham
comentado A Romaria. Estes improvisados moços de forcados, chamados à arena da
controvérsia, eram Teixeira de Pascoaes, Afonso Lopes Vieira, António Correia de
Oliveira, Alfredo Pimenta, Alberto de Oliveira, Júlio Brandão, Jaime de Magalhães
Lima, José Agostinho e o próprio Fernando Pessoa. O franciscano termina questionando
Gaspar Simões, «porque desceu ele, então, a terreiro, iracundo e temeroso, de faces
vermelhas e mangas arregaçadas, espancando céus e terra com o tremendo arreganho e a
desmedida rópia dum varredor de feira?» (FRADIQUE, 58: 1-7).
Em 4 de Abril de 1935, o jornal Fradique publicou, em destaque na primeira
página, outra carta em que «João Gaspar Simões refuta Vasco Reis». O crítico começa
por escrever que quando «os nossos adversários não sabem respeitar-se a si mesmos», a
«melhor maneira de os chamar à razão» seria «responder-lhes não com a pena, mas com
aquilo de que nos servimos para pegar nela…». Gaspar Simões reforça as suas críticas a
Vasco Reis, sobretudo depois de ter lido a réplica do franciscano à sua carta publicada
em 31 de Janeiro. «Quem escreveu aquele estendal de vaidades, de mal reprimido ódio,
de soberba descarada, de quase impudico narcisismo, pode ser o que quiserem menos
franciscano». Para o director da Presença, não apenas o padre que «se exibia em
público, de quando em vez, mascarado de toureiro», estava «completamente perdido»,
mas também os que lhe atribuíram o prémio literário eram merecedores do maior
castigo de Deus. «Foi o prémio que o impeliu a despir os hábitos de monge para se
vestir de toureiro. O prémio, e só o prémio, é que tem a culpa de o Sr. Vasco Reis
esquecer uma das mais belas lições do fundador da sua ordem. O Sr. Vasco Reis
esqueceu-se de que S. Francisco de Assis envolvia num amor de irmão as águas, a terra,
as aves, e os próprios animais bravios». Contrariando João de Castro Osório, para quem
A Romaria era «o anúncio do aparecimento em Portugal de um grande poeta cristão»,
Gaspar Simões afirma que, «a não se operar entretanto algum milagre», Vasco Reis era
«um poeta de quem nada há a esperar». «No poema do Sr. Vasco Reis não há poesia
nenhuma». Na opinião do crítico, A Romaria não passava de «uma anedotazinha fácil,
308
trivial, ridícula», «de uma chateza única», «de uma banalidade arrepiante», e sem
qualquer «momento poético» de «elevação superior» (FRADIQUE, 61: 1-5).
Mas porque me insultou a sr. vate Vasco Reis? Apenas porque eu disse que a sua
obra era para «marçanos e costureiras»? Não! O sr. Vasco Reis insultou-me e espanejou as
suas azas de pavão, porque eu dei a entender que ele não tinha talento! Grande pecado o
meu! Se pequei, volto a pecar: o sr. Vasco Reis escreveu uma obrinha para marçanos e
costureiras. O sr. Vasco Reis não tem talento que preste. A sua obra é, quanto a mim, uma
«obrinha para marçanos e costureiras», pela mesma razão por que – para marçanos e
costureiras é grande parte da obra de um Junqueiro. Como vê, está em boa companhia.
Porém: com duas restrições, as costureiras e os marçanos que admiram o melro de
Junqueiro, não são os mesmos, que admiram a obrinha do sr. vate. Os admiradores de
Junqueiro estão do lado oposto. Mas são todos a mesma coisa: pessoas simples para quem a
poesia é uma anedota rimada. A outra restrição é a seguinte: os admiradores do Junqueiro
admiram realmente um portentoso talento. Junqueiro era uma trovoada, o sr. vate Vasco
Reis não passa de um foguete de lágrimas. (FRADIQUE, 61: 5)
No seu artigo «Ce que l’Art Fait à la Problématique de la Reconnaissance: du
respect à l’estime», Nathalie Heinich sustenta que a marca distintiva da actividade
artística não reside no respeito global, que é devido a todos os seres, mas na distribuição
da grandeza atribuída ao mérito individual. «Esta questão é notavelmente exemplificada
nas recompensas próprias das actividades intelectuais e artísticas que são os prémios
atribuídos aos escritores, aos artistas, aos cientistas; ou, inversamente, na denegação de
reconhecimento constituída na recusa de admitir e de celebrar a importância da sua
obra». Para Heinich, a «sensibilidade das actividades vocacionais ao reconhecimento,
na sua forma individualizada e meritocrática» tem múltiplas causas, como geralmente
sucede com as práticas sociais. Na sua perspectiva, as actividades artísticas baseiam-se
numa forte implicação da pessoa no seu trabalho, o que corresponde a uma
continuidade, ou seja, indissociabilidade, entre a obra e o artista. Desta forma,
classificar uma obra equivale a atribuir um valor ao seu autor, compreendendo-se assim
a sensibilidade dos artistas à crítica, muitas vezes interpretada como «susceptibilidade»
ou «vaidade», mas que revela sobretudo a identidade criativa do artista, bem como o
investimento afectivo na sua obra (HEINICH, 2009: 375-376). Desta forma se compreende a
polémica verrinosa e a troca de epítetos entre João Gaspar Simões, autor do romance
Amores Infelizes, e Vasco Reis, autor de A Romaria e vencedor do prémio «Antero do
Quental».
309
VI.4.5. Mensagem inteligente mas hermética
Vasco Reis ensaiou ainda uma segunda réplica a João Gaspar Simões, a qual foi
também publicada no Fradique, em 30 de Maio 1935, sob o título «VASCO REIS: Uma
carta do missionário-poeta». Nesta carta apaziguadora, o franciscano admite que Gaspar
Simões «tem de facto alguma razão», desculpando-se por ter derramado «um pouco de
bílis a mais». Neste sentido, o franciscano propõe-se fazer as pazes e acabar com a
polémica não falando mais de A Romaria, «que é fazer-lhe imerecido reclame»
(FRADIQUE, 69: 5). Com esta postura de humildade franciscana, Vasco Reis distanciou-se
da polémica em torno do seu livro. Contudo, a controvérsia sobre o prémio «Antero do
Quental» continuou no número seguinte do Fradique, publicado em 6 de Junho de
1935, com uma recensão tardia ao livro de Fernando Pessoa. A habitual rubrica
«ANOTAÇÕES LITERÁRIAS» foi neste número inteiramente dedicada a «Mensagem
– de Fernando Pessoa», diferindo seis meses relativamente à publicação do livro, posto
à venda em 1 de Dezembro de 1934.
O crítico, supostamente o próprio Tomás Ribeiro Colaço, detém-se no autor
antes de avançar para o livro, afirmando que Fernando Pessoa tinha, «no mais alto grau,
uma qualidade perigosíssima, sobretudo para um poeta». Na sua opinião, o perigo
residia na inteligência de Fernando Pessoa, pois essa não seria «uma qualidade
criadora», ao contrário da sensibilidade, da emoção, da intuição e de «certa volúpia
criadora em que andam sublimações do erotismo do artista». A inteligência teria lugar
na arte apenas «como serva» e não «como senhora» do erotismo, pois quando o artista é
dominado por ela, seca a criatividade, caindo em «excessos de perfeição formal». O
jornalista reforça a sua crítica ao afirmar que Fernando Pessoa seria «um caso típico de
hiper-inteligência», manifestando a sua admiração, «sem reserva, por uma inteligência
que diz, que formula, que apreende e transmite, com uma potência cerebral raramente
igualada, se igualada for, na sua geração». Contudo, para o crítico, Pessoa seria
«inteligentíssimo, e… pouco mais», uma vez que «desenvolveu largamente essa
faculdade, com esquecimento senão à custa de outros aspectos essenciais no artista».
Desta forma, o jornalista critica Fernando Pessoa porque, na sua opinião, Mensagem era
demasiado intelectualizado e hermético para a maioria dos leitores, afirmando por isso
que os seus poemas «são muitas vezes, e apenas, “telegramas” de um notável poeta», os
quais «raros decifrarão, e que fatigam sem vantagem» (FRADIQUE, 70: 5):
310
No livro em tôrno do qual desenho estes rápidos comentários, nitidamente se
vislumbra êsse domínio de uma inteligência absorvente.
Muitas das suas poesias são inícios de obra mais vasta, apontamentos de vôo que ia
ser muito belo – e mais não foi do que um tremor de asas logo fatigadas. Sei bem que
Fernanda Pessoa procurou que fossem, como vincados em dimensão de dístico, resumos
dessas poesias «inteiras» que não nos dava; e sei mais que o conseguiu algumas vezes;
talvez uma vez apenas, neste admirável D. Diniz.
Na noite escreve um seu cantar de amigo
o plantador de naus a haver,
e ouve um silêncio múrmuro consigo:
é o rumor dos pinhais que, como um trigo
de Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, êsse cantar, jovem e puro,
busca o oceano por achar;
e a fala dos pinhais, marulho obscuro,
é o som presente dêsse mar futuro,
é a voz da terra ansiando pelo mar.
(FRADIQUE, 70: 5)
O jornalista termina a sua crítica com um conselho: «Deixe Fernando Pessoa
falar mais a sua alma; liberte-a e liberte-se de preocupações intelectuais que roçam pela
mania e deambulam pela esquisitice; obrigue-se a produzir mais, não para procurar
quantidade, mas porque a sua qualidade carece justamente de ser diluída, humanizada;
– e o seu nome ficará por direito de conquista entre os melhores de uma geração, que
bem precisa de que lhe acudam…» (FRADIQUE, 70: 5). Esta operação crítica, mais
dirigida ao autor do que propriamente a Mensagem, mereceu uma resposta de Fernando
Pessoa, também muito diferida, numa carta para o director de Fradique, escrita em 10
de Outubro de 1935. Nesta, Pessoa agradece a Tomás Ribeiro Colaço a sua crítica,
acrescentando que o autor foi «bom crítico. Porque de facto criticou, justificando o que
dizia; foi amável, porque não carregou a nota, fácil de carregar adentro do seu critério».
Para o escritor, o crítico «foi, até, bom jornalista, porque exprimiu o que muita gente
sente», senão a respeito do autor, «pelo menos a respeito da Mensagem» (PESSOA, 1999b:
355).
311
Verifica-se assim que Fernando Pessoa dificilmente conseguiu superar a prova
modelo constituída pelo prémio «Antero do Quental», apesar de, segundo o próprio
escritor, ter sido premiado em «condições especiais» e «muito honrosas» pelo
Secretariado da Propaganda Nacional (PESSOA, 2003: 202). Contudo, não fora o apoio dos
seus amigos, particularmente de António Ferro, e a fórmula de investimento adoptada
por Pessoa, materializada em Mensagem, ter-se-ia revelado um fracasso. Segundo
Adolfo Casais Monteiro, o prémio literário atribuído a Fernando Pessoa não lhe deu a
consagração que já tinha há muito tempo, «ainda que para um demasiadamente restrito
público» (PESSOA, 1999b: 437). Esta asserção foi confirmada por Pessoa ao concordar que
não foi feliz a sua estreia literária «com um livro da natureza de Mensagem» (PESSOA,
1999b: 358).
Neste sentido, nem o seu livro de poesia nem o único prémio literário
atribuído a Fernando Pessoa geraram acordo sobre a grandeza do escritor, para além do
círculo restrito dos escritores e críticos seus admiradores. Pelo contrário, o concurso
literário do Secretariado da Propaganda Nacional esteve na origem de uma controvérsia
que se prolongou por vários meses, protelando assim o reconhecimento de Fernando
Pessoa, com a consequente passagem a uma ordem de grandeza superior.
VI.5. Em busca da imortalidade
Num texto em Inglês, no qual defende «A Inutilidade da Crítica» literária,
Fernando Pessoa afirma que as qualidades que fazem um crítico competente são o
«conhecimento da arte ou da literatura pretéritas, um gosto refinado por esse
conhecimento e um espírito imparcial e judicioso». Para o escritor, quando confrontado
com uma obra «profundamente original», o «crítico competente» avalia-a por
comparação «com as obras de arte do passado». O «recortador de paradoxos» coloca
então a questão de saber até onde vai «a competência do crítico competente», pois
«quanto mais original» for a obra, mais se afastará do «cânone estético que o crítico tem
estabelecido na sua mente». «GRANDE HOMEM é o que impõe aos outros o seu
próprio sonho, os seus próprios sonhos. Para lhes impor os seus próprios sonhos tem,
por isso, que sonhar sonhos que eles tenham, de certo modo, entressonhado, para que
deveras possam recebê-los» (PESSOA, 2003: 381). Neste sentido, Pessoa afirma que se
«uma obra meritória de segunda categoria» se evidencia «na sua própria época», «as
obras superiores acabam sempre por se evidenciar no decurso da sua futuridade». Por
isso, o «grande poeta» podia já ter aparecido sem que a crítica reparasse nele ou,
312
retomando a questão formulada por Pessoa no seu artigo «A Nova Poesia Portuguesa
Sociologicamente Considerada», quem poderia afirmar que não tinha surgido já o
Super-Camões? (PESSOA, 2000d: 249-250).
Ouvimos clamar, de todos os lados, que a nossa época necessita de um grande
poeta. A vacuidade central de todas as realizações modernas é uma coisa mais sentida do
que falada… Se o grande poeta aparecesse, quem aqui estaria para reparar nele? Quem
poderá dizer se não apareceu já? O público leitor vê nos jornais recensões da obra de
homens cuja influência e amizades os tornaram conhecidos, ou cuja subalternidade os
tornou aceites pela multidão. O grande poeta pode já ter aparecido; a sua obra terá sido
referida em algumas palavras «vient-de-paraître» num qualquer resumo bibliográfico de
um jornal de crítica. (PESSOA, 2000d: 250-251)
Segundo Nathalie Heinich, o universo artístico difere substancialmente da
economia de consumo corrente na medida em que as melhores obras possuem a
capacidade de encontrar o seu público para além do mercado imediato, quer dizer, de
perdurarem no tempo. «O alongamento da temporalidade das obras e dos julgamentos
feitos a seu respeito, bem para lá da vida do seu autor, faz do reconhecimento um
processo tanto mais aberto e indefinido quanto a obra é supostamente grande». A
socióloga concorda assim com Fernando Pessoa, não apenas neste sentido, mas também
porque, inversamente, o reconhecimento será «tão mais rápido e fechado quanto a obra
é de pouco interesse, descartável, ou seja, para o lixo». Na perspectiva de Heinich, esta
particularidade do universo artístico, da qual os museus e bibliotecas são testemunhas,
faz do reconhecimento um processo sempre em aberto, «sempre investido pelos seus
actores, porque sempre relançado pela comparação com outras obras, passadas ou
futuras» (HEINICH 2009: 376-377). Neste sentido, Pesssoa afirma que a «concorrência
entre os mortos é mais terrível do que a concorrência entre os vivos», na medida em que
a fama dos «poetas e prosadores menores» será mais estreita de antologia em antologia.
«Mesmo as modernas selectas destes autores serão cada vez mais restringidas pela
pressão e o tumulto do tempo» (PESSOA, 2000d: 103-104).
A fama duradoura forma-se de modo análogo. Um escritor de verdadeiro génio
tornou-se famoso na sua época; e tornou-se famoso porque entre ele e a sua época há uma
certa adaptação. Essa adaptação pode ser de três tipos: completa (isto é, em virtude da
substância e do conteúdo integral da sua obra), parcial (isto é, graças a uma parte da sua
313
obra, sendo a outra parte destituída de valor), e imperfeita (isto é, graças a parte da sua
obra, sendo a outra parte, embora grandiosa, incompreensível para a sua época).
Na reacção da época seguinte contra a época precedente, cada um destes tipos de
autor está sujeito a um tratamento definido. O que estava completamente adaptado à sua
época, sendo ainda assim um génio (por outras palavras, o escritor em quem o génio e a
inteligência se combinaram) permanecerá famoso, mas numa posição inferior à que
ocupava. É o caso de Victor Hugo, um grande poeta, e como tal considerado no seu tempo,
ainda hoje é tido como um grande poeta, mas menor do que então se pensava. (PESSOA,
2000d: 110, traduzido do Inglês)
A questão da loucura e genialidade, bem como a imortalidade do escritor e
perenidade da sua obra, foram centrais no pensamento pessoano ao longo da sua vida. A
relevância do tempo na construção social da grandeza literária foi abordada por Pessoa
em dois textos fragmentários, igualmente escritos em Inglês, intitulados Erostratus e
Impermanence. Em «Heróstrato» o escritor analisa «o problema da celebridade»339 e em
«Impermanência» aborda «o problema da sobrevivência das obras literárias», ou seja, a
vida e obra do génio literário340 (PESSOA, 2000d: 24). Para Fernando Pessoa, o homem de
génio tem «a certeza de algum público, mas não tem a certeza de conseguir encontrá-lo.
Pode contar com a aceitação, mas não com recebê-la». Este seria, na perspectiva do
escritor o paradoxo em que assenta o reconhecimento artístico: «Tal como as duas
metades naturais da amorosa alma platónica, o génio e o seu público procuram-se
mutuamente, mas, como sucede habitualmente no outro assunto, raramente conseguem
encontrar-se» (PESSOA, 2000d: 86). Num fragmento de «Heróstrato», Pessoa coloca a
questão de saber «como é que o génio chega a ser, afinal, apreciado», encontrando, uma
explicação sociológica para este problema (PESSOA, 2000d: 113):
Toda a vida e, logo, toda a vida social, é um sistema de acções e reacções. O
carácter de cada período é determinado pelo facto de reagir contra o imediatamente
anterior. Toda a vida social é convenção e fórmula, e sempre o será. As convenções
339
Segundo Richard Zenith, em «Sartor Resartus, um livro que Pessoa leu na adolescência e que ficou
para sempre gravado no seu espírito, Thomas Carlyle (1795-1881) pergunta: “Por que estranhos acasos
conseguimos ficar na História?”». Em resposta, Carlyle, cita o exemplo de Heróstrato, um grego que, em
356 antes de Cristo, incendiou o templo de Artemisa em Éfeso, considerado uma das sete maravilhas da
Antiguidade, com o objectivo declarado de atingir a imortalidade. Sabendo disto, as autoridades da cidade
teriam proibido, sob pena de morte, que o nome de Heróstrato fosse pronunciado, o que não parece ter
resultado, pois o nome do incendiário sobreviveu até à actualidade (PESSOA, 2000d: 13).
340
Pessoa teria começado a escrever Impermanence talvez em 1916 e Erostratus em 1930 (PESSOA,
2000d: 25-27).
314
envelhecem e as fórmulas tornam-se evidentes. Quando isto acontece, surge uma nova
época que, com razão, proclama como falsas as convenções e fórmulas da época anterior, e
logo clama como Natureza as convenções igualmente convencionais e as fórmulas
igualmente formalistas que erige para si mesma […].
Ora, o génio está precisamente na mesma situação que a geração seguinte.
Também está em oposição à época em que vive. Existe, assim, uma coincidência entre a
função de um génio e a função da época que lhe sucede. E a coincidência torna-se
confluência porque esta época, ao opor-se à época anterior, procura encontrar nela uma
base, e essa base é o homem de génio. Este homem torna-se assim, simultaneamente criador
e filho da época seguinte. (PESSOA, 2000d: 113-114, traduzido do Inglês)
Em «Heróstrato», Fernando Pessoa continua a classificar em três as «formas
superiores de inteligência»: génio, talento e argúcia, as quais, para o escritor, não são
apenas gradações, mas tipos qualitativamente diferenciados de inteligência. Na sua
perspectiva, o génio é a «inteligência abstracta individualizada», o talento, a
«inteligência concreta tornada abstracta», e a argúcia, a «inteligência concreta
individualizada». A argúcia teria «a aparência e os gestos do génio», por isso seria tão
fácil «confundir uma grande argúcia com o verdadeiro génio», enquanto o talento
ocuparia a posição intermédia, mas opondo-se ao génio e à argúcia. Segundo Pessoa, a
recompensa característica do talento seria a fama, enquanto o génio poderia aspirar à
imortalidade. Neste sentido, a argúcia, teria «a celebridade que a época lhe pode dar»,
«a fortuna decorrente dessa celebridade» e «as honras e a posição consequentes». Se,
como diziam os gregos os «deuses vendem o que dão», a argúcia não pode «pretender a
imortalidade». Contudo, dado o paradoxo que envolve o reconhecimento, se um «génio
pequeno alcança a fama, um grande génio recebe a infâmia» e «um génio maior sofre o
desespero». Pessoa explica o diacronismo no reconhecimento dos génios através de um
modelo dialéctico de épocas em confronto (PESSOA, 2000d: 49-73):
É admissível que o génio não seja apreciado na sua época porque a ela se opõe;
mas pode-se perguntar por que razão é apreciado nas épocas vindouras. O universal opõese a qualquer época, pois as características desta são necessariamente particulares; porque
será então que o génio, que se ocupa de valores universais e permanentes, é mais
favoravelmente recebido por uma época do que por outra?
A razão é simples. Cada época resulta da crítica da época precedente e dos
princípios subjacentes à vida civilizacional da mesma. Enquanto que um só princípio está
subjacente, ou parece estar subjacente, a cada época, as críticas desse princípio único são
variadas, tendo apenas em comum o facto de se ocuparem da mesma coisa. Ao opor-se à
315
sua época, o homem de génio critica-a implicitamente, integrando-se implicitamente numa
ou noutra das correntes críticas da época seguinte. (PESSOA, 2000d: 112, traduzido do
Inglês)
Na sua análise, Fernando Pessoa refere a «circunstância curiosa que os tipos
frustrados caiam facilmente na celebridade», pois na sua opinião, um «tipo frustrado é
um homem demasiado inteligente para ser apenas inteligente, mas não suficientemente
inteligente para ser um homem de talento». Neste sentido, o «tipo frustrado oferece aos
homens de génio o único ensejo de celebridade na sua própria época», os quais seriam
encarados como tal por «imprimirem génio à argúcia ou ao talento». Pelo contrário,
quando o génio não for acompanhado pelo talento nem pela inteligência, «torna-se
consubstancial com a loucura». Para Pessoa, o que separa os génios da loucura é a sua
«universalidade», caso contrários seriam «simplesmente doidos» (PESSOA, 2000d: 106108).
«Só quando o casual se torna universal pela intensa concentração nele, pela sua
extensiva elaboração em consequências e conclusões, se conquista o direito de entrada
nas mansões do futuro» (PESSOA, 2000d: 52). Contudo, na opinião do escritor, todos os
homens «que equilibram o génio com uma só das qualidades da inteligência estão à
beira da loucura», pois tais génios constituem «prefigurações de algo maior do que o
homem e quedam-se, frustrados, na fronteira. São falhados, não por terem podido fazer
melhor, mas porque o fizeram de facto» (PESSOA, 2000d: 109-114).
O escritor parcialmente adaptado à sua época será colocado numa posição muito
inferior; sobreviverá como nota. Será lido pelos eruditos e algumas citações poderão fazer
reviver os acidentes do seu nome. É o caso de poetas menores de todos os tempos, dos
melhores ensaístas efémeros, dos romancistas que escreveram boas páginas e um conto
perdido. Os homens de um só poema, como Blanco White ou Felix d’Arvers, são típicos
desta semiclasse.
Aquele cuja adaptação era imperfeita sobreviverá, evidentemente, por motivos
contrários, mas a sua fama aumentará. O que era do seu tempo será entendido e
classificado em segundo lugar, embora permaneça; o que transcendia o seu tempo tomará
o primeiro lugar. O grande exemplo disto é Shakespeare, famoso na sua época como
escritor espirituoso e que, desde então, se celebrizou como grande autor de tragédias, em
quem a comédia era um aspecto secundário, embora importante, do seu génio. (PESSOA,
2000d: 110-111, traduzido do Inglês)
316
Segundo Fernando Pessoa, a «literatura, como toda a arte, é uma confissão de
que a vida não basta (PESSOA, 2000d: 223), seria esta a razão pela qual Álvaro de Campos
escreveu que a «única compensação moral que devo à literatura é a glória futura de ter
escrito as minhas obras presentes» (PESSOA, 2000c: 362-363). A construção social da
grandeza, diferida no tempo, fora já identificada por Fernando Pessoa, quando escreveu:
«Os homens de génio ou se tornam célebres na sua própria época – por também
possuírem talento ou argúcia – ou, não os possuindo e sendo, por isso, desprezados pela
sua época, tornam-se célebres na época seguinte. Nunca se tornam famosos duas ou três
épocas mais tarde» (PESSOA, 2000d: 103-104). No Livro do Desassossego, o escritor
afirma: «Quanto mais alto o homem, de mais coisas tem que se privar». A tensão entre
os mundos inspirado e do renome ou, se quisermos, o paradoxo do reconhecimento
literário descrito por Nathalie Heinich foi abordado por Bernardo Soares, quando
pretendeu «ser mais vivo depois de morto que quando se está vivo» (PESSOA, 1998: 162).
Achei sempre que a virtude estava em obter o que não se alcançava, em viver onde se não
está, em ser mais vivo depois de morto que quando se está vivo, em conseguir, enfim,
qualquer coisa de difícil, de absurdo, em vencer, como obstáculos, a própria realidade do
mundo.
Se me disserem que é nulo o prazer de durar depois de não existir, responderei,
primeiro, que não sei se o é ou não, pois não sei a verdade sobre a sobrevivência humana;
responderei, depois, que o prazer da fama futura é um prazer presente – a fama é que é
futura. E é um prazer de orgulho igual a nenhum que qualquer posse material consiga dar.
Pode ser, de facto, ilusório, mas seja o que for, é mais largo do que o prazer de gozar só o
que está aqui. (PESSOA, 1998: 162)
Neste contexto, Fernando Pessoa conclui que o «génio é a loucura que a diluição
no abstracto converte em sanidade, tal como um veneno é convertido em medicamento
através da mistura», por isso deve ser analisado segundo «as leis gerais da inteligência
humana e não com as leis específicas da doença mental» (PESSOA, 2000d: 362-363).
Noutro texto, sobre a crítica literária, Pessoa afirma que a literatura «é o veículo de
todas as emoções, sobretudo das mais profundas, das que não podem caber na acção,
das que excedem a capacidade da vontade». Por isso, «quanto maior o poeta, menos
será compreendido no seu tempo, ou, pelo menos, na sua geração», opinião sustentada
«nos elementos fundamentais que o fazem imortal, não nos superficiais que o fazem
célebre». Por isso, a crítica deveria, tanto quanto possível, abstrair-se «das influências
317
do ambiente, imediato ou mediato», e «não tomar como bitolas as figuras do passado,
por grandes que sejam e seguras em sua justa grandeza». Na sua opinião, apenas assim,
a crítica poderia «distinguir a originalidade da excentricidade» e «a extrema
originalidade da loucura» (LOPES, 1990b: 107). Segundo Nathalie Heinich, o paradoxo
que envolve a grandeza artística, patente no reconhecimento diferido no tempo, confere
importância aos prémios literários, os quais permitem o reconhecimento do artista,
compensando ao nível moral as retribuições pecuniárias. Contudo, esse reconhecimento
moral está dependente da competência estética dos júris dos concursos literários,
privilegiando a originalidade em detrimento das convenções, ou vice-versa, num difícil
equilíbrio entre valor e grandeza. «Um grande artista pode ser reconhecido a curto prazo
na condição de que o seja por alguns dos seus pares ou por especialistas muito
qualificados», se for reconhecido «pelo grande público, terá todas as possibilidades de
ser um artista medíocre, ou mais exactamente sem futuro». Pelo contrário, «um artista
reconhecido apenas por alguns sucessores muito depois da sua morte terá falhado o
essencial da passagem à posteridade» (HEINICH 2009: 378-380).
SE AS PRÓPRIAS ORLAS e fronteiras da minha obra não confinarem com o fim
das eras e os limites das nações, considerarei que a minha missão neste mundo não foi mais
do que um recipiente entornado e um grito sem eco no meio dos desertos. O meu coração é
partidário de um género de fama que irá além da sucessão multicolor das modas, as
distinções incompreendidas das línguas, as ondas unificadas dos tempos e a vasta variedade
das nações. Tudo o resto é, para o meu espírito, a degenerescência da minha aspiração e
nela o meu coração será, se assim acontecer, como uma escada sem degraus, a negação e o
absurdo de si próprio.
Se eu não for a minha própria epopeia, terei vivido em vão. Se em todos os meus
versos não houver timbres de eternidade, terei desperdiçado o tempo dos Deuses em mim.
(PESSOA, 2003: 193, traduzido do Inglês)
318
CONCLUSÃO
Chegámos ao fim deste estudo de caso em que analisámos sociologicamente a
vida e obra de Fernando Pessoa, partindo da questão de saber de que forma o escritor
construiu socialmente a sua grandeza literária. A extensa, fragmentária e inacabada obra
de Fernando Pessoa, bem como a sua complexa personalidade, oferecem forte
resistência à análise sociológica. Após algum tempo perdidos no «labirinto pessoano»,
fomos lentamente vencendo as resistências deste objecto de estudo, iniciando a
construção de um modelo analítico capaz de dar conta da realidade social do escritor.
Neste trabalho de construção sociológica e reconstrução da realidade social vivida por
Fernando Pessoa empregámos o método indutivo e as técnicas de pesquisa documental
usadas pela sociologia histórica. Tendo a literatura como terreno de investigação, a
pesquisa incluiu nas fontes documentais a extensa obra literária, diarística e epistolar de
Fernando Pessoa. Afastando explicações essencialistas ou psicologistas, estudámos o
autor de Mensagem e a república das letras, procurando explicitar sociologicamente a
sua interacção com os outros significativos, os seus pares, a crítica e o público.
Na sua busca de reconhecimento, Fernando Pessoa envolveu-se recorrentemente
em controvérsias éticas, estéticas e morais sobre a literatura e a sociedade que a produz.
Segundo Nathalie Heinich, as controvérsias são situações privilegiadas para a análise
sociológica, permitindo observar e avaliar as práticas e representações dos seus
protagonistas. Por outro lado, a sociologia pragmática de Boltanski e Thévenot, com o
seu modelo teórico constituído por diversos mundos, revelou-se particularmente
apropriada para o estudo das controvérsias. Neste sentido, construímos um modelo de
análise baseado sobretudo na sociologia pragmática, bem como na sociologia da
singularidade. Este modelo analítico permitiu estudar as interacções de Fernando Pessoa
na república das letras, tanto do ponto de vista da comunidade de escritores, críticos,
artistas e intelectuais, como do ponto de vista do próprio escritor e da sua complexa
personalidade. A operacionalização do modelo de análise centrou-se nas controvérsias
em que Fernando Pessoa se envolveu, procurando explicitar as condições, dinâmicas e
processos sociais de produção da grandeza literária. Desta forma, desenvolvemos a
investigação na relação entre teoria e empiria, fazendo uma revisão teórica e refazendo
o percurso efectuado sempre que se revelou necessário.
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Na esteira de Norbert Elias, que designa o que considera «teorias sociológicas
convencionais», para Nathalie Heinich a arte questiona fortemente o paradigma
dominante na sociologia, o qual privilegia o estudo do que é comum, geral, colectivo e
regular. Segundo Nathalie Heinich, a «tradição sociológica» desenvolveu métodos e
instrumentos analíticos para estudar este «regime de comunidade», os quais não são
adequados para analisar o «regime de singularidade» que se instalou no universo
artístico. Neste contexto, a sociologia teria entrado num impasse ao tentar «explicar» as
obras de arte, mas a arte oferece também uma oportunidade para a sociologia alargar o
seu objecto e estender o seu terreno de investigação. Nathalie Heinich propôs-se então
mudar os objectivos da sua sociologia da arte da «explicação» para a «explicitação», na
perspectiva do que «a arte faz à sociologia». Desta forma, a socióloga efectuou uma
ruptura epistemológica com o paradigma dominante da tradição sociológica,
desenvolvendo uma sociologia da singularidade com instrumentos que permitem
analisar o universo inspirado no que ele tem de particular, individual e singular. Neste
sentido, adoptámos as cinco posturas epistemológicas que Heinich considera
indispensáveis na análise sociológica dos universos artísticos, procurando «explicitar»
compreensivamente a vida e obra de Fernando Pessoa.
Segundo Boltanski e Thévenot, a grandeza legítima é conseguida por acordo
entre as pessoas, através de uma «subida em generalidade» que dignificaria os pequenos
seres mas, para Nathalie Heinich, a generalização é desqualificante no universo
artístico. Neste sentido, a socióloga afirma que, no paradoxal regime de singularidade
que caracteriza o universo artístico, a grandeza não é produzida por uma «subida em
generalidade», mas pela dupla subida em singularidade e em objectividade, que valoriza
os artistas e as suas obras. Contudo, segundo Norbert Elias, a «sociedade não é só o
igualador e tipificador mas também o individualizador», razão pela qual as perspectivas
teóricas de Boltanski e Thévenot e de Nathalie Heinich se afiguram complementares
neste modelo de análise que permitiu estudar tanto o «regime de comunidade» como o
«regime de singularidade» na república das letras. As duas perspectivas revelaram-se
importantes para a análise sociológica da vida e obra de Fernando Pessoa, procurando
responder à questão de saber de que forma o escritor construiu a sua própria grandeza.
A sociologia do génio, de Norbert Elias, bem como a sociologia da singularidade
que, segundo Nathalie Heinich, não visa «explicar» mas a «explicitar», podem ser
inscritas na perspectiva da sociologia do indivíduo. Não nos preocupando em encontrar
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explicações causais, à maneira das ciências naturais, ou da sociologia positivista, mas
em explicitar compreensivamente as situações, aplicámos implicitamente uma
metodologia que, segundo Martuccelli e Singly, se caracteriza por uma descrição muito
fina da realidade social. Desta forma, realizámos uma minuciosa pesquisa bibliográfica
e documental para identificar as controvérsias em que Fernando Pessoa se envolveu e
localizar os documentos em que ficaram registadas as respectivas operações críticas. A
dificuldade desta prática de investigação reside no facto de não se tratar simplesmente
de uma pesquisa sequencial, mas de uma investigação interactiva na qual, quanto mais
documentos se recolhem e analisam, mais referências cruzadas e pistas de investigação
se conseguem, obrigando o sociólogo a rever o seu plano de trabalhos e a voltar
sucessivamente ao terreno de investigação. Esta metodologia foi complementada pela
revisão teórica e reajustamento do plano de trabalhos em função das novas aquisições
empíricas.
O percurso biográfico de Fernando Pessoa, nascido em 1888, oriundo de uma
família da burguesia lisboeta, foi marcado por uma socialização primária em Lisboa,
fortemente afectada pelo falecimento do pai, em 1893, bem como do irmão mais novo,
no ano seguinte, quando o pequeno Fernando contava apenas cinco anos de idade. O
recasamento da sua mãe com um diplomata colocado em Durban determinou a partida
para África em 1895 e uma marcante socialização secundária na língua e cultura
inglesas. De regresso a Lisboa, dez anos mais tarde, para estudar diplomacia, o
estrangeirado Pessoa enfrentou dificuldades na sua ressocialização portuguesa. Uma
consequência das dificuldades sentidas pelo jovem Pessoa, a qual marcaria o percurso
biográfico do escritor, foi o abandono do Curso Superior de Letras, em contraste com o
brilhantismo demonstrado no Liceu de Durban. As três socializações, com a
correspondente alternância linguística e cultural, bem como a proximidade da morte,
aliada à recomposição do seu núcleo familiar de origem, teriam implicações na
segurança ontológica do jovem Pessoa, afectando o seu «casulo protector». Desta
forma, é possível compreender, sociologicamente, não apenas os recorrentes estados
depressivos do escritor, mas sobretudo a fragmentação do self, dividido em múltiplos
heterónimos.
Desde muito jovem, Fernando Pessoa acalentou a ideia de vir a ser um grande
escritor, pelo que, após dois anos consecutivos de insucesso escolar, abandonou os
estudos superiores, procurando engrandecimento na república das letras. Contudo, a
321
família não via futuro na literatura, nem compreendia o seu «desejo de ser
extraordinário». Neste contexto, as críticas familiares devidas ao abandono escolar, bem
como as justificações do jovem Pessoa pelo seu desejo de grandeza, revelam a tensão
entre os mundos doméstico e inspirado. O ano de 1907 foi decisivo no percurso do
jovem que, pressionado pela família para prosseguir os estudos, nesse Verão estaria
confrontado com o dilema de decidir o seu futuro. Pessoa decidiu então abandonar os
estudos diplomáticos, optando por um percurso profissional independente de tradutor e
correspondente comercial, que o sustentaria ao longo da vida. Aproveitando as
competências adquiridas na Escola Comercial de Durban, que o jovem também
frequentou, esta actividade paga à tarefa e sem horários a cumprir era a que mais
convinha ao futuro escritor, deixando-lhe algum tempo livre para as suas actividades
literárias.
Em Setembro de 1907 e após prolongada demência, faleceu a avó paterna de
Fernando Pessoa, de quem era o único herdeiro, inspirando no jovem o receio de
enlouquecer, sentimento que o acompanhou ao longo da sua vida. Segundo escreveu,
uma das suas «complicações mentais» era «o medo da loucura, o qual é, em si mesmo,
loucura». Nessa época, Pessoa procurou na literatura psiquiátrica respostas para as
dúvidas e receios que o assaltavam, sendo fortemente influenciado, segundo o próprio
escritor, pela teoria da degenerescência, de Max Nordau. No entanto, se por um lado a
loucura constituía uma ameaça à sua segurança ontológica, ao ponto de sentir «vertigem
moral», por outro representava também a chave que lhe daria acesso ao estatuto singular
da grandeza genial. Um sentimento ambíguo e paradoxal teria então invadido o jovem
Pessoa, inspirado pela longa controvérsia da psiquiatria positivista sobre a íntima
relação entre loucura e genialidade, causando-lhe alguma perplexidade.
Foi nessa época que Fernando Pessoa encontrou uma forma engenhosa e
expedita de empreender um inquérito sobre a sua própria personalidade, criando o
heterónimo do Dr. Faustino Antunes, seu suposto médico psiquiatra. Assumindo a falsa
identidade do médico, o jovem escreveu a um ex-professor e a um ex-colega de Durban,
encenando a sua própria loucura, numa aparente tentativa de encontrar resposta para as
dúvidas que o atormentavam. Com este artifício, Pessoa pretenderia esclarecer, por um
lado, se o seu comportamento indiciava alguma predisposição para a loucura e, por
outro, se teria as qualidades necessárias para alcançar a grandeza literária. No fundo, as
duas problemáticas não estavam separadas, uma vez que, segundo o próprio Fernando
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Pessoa, o «génio é a loucura que a diluição no abstracto converte em sanidade». De
alguma forma, as respostas recebidas teriam ajudado o jovem a decidir o seu futuro
como escritor, pois o ex-colega recordava-o como «um rapaz de inteligência brilhante»
que não revelava, «ainda que vagamente, qualquer desequilíbrio mental» e, «apesar de
não ter falado Inglês na sua infância», para o seu ex-professor de língua inglesa, Pessoa
era «um rapaz de excepcional originalidade», cuja escrita «por vezes raiava o génio»,
augurando para o jovem «um futuro promissor», se não mesmo «brilhante».
Os escritores franceses mais admirados por Pessoa foram diagnosticados por
Nordau e alguns psiquiatras positivistas como alienados, paradoxo mentalmente
transposto pelo escritor português, quer manifestando reiteradamente a sua sanidade
mental, quer afirmando sentir-se enlouquecer e até desejar ser internado numa casa de
saúde, leia-se manicómio. Esta temática foi central e recorrente no percurso pessoano,
razão pela qual uma primeira conclusão aponta para a relação ambivalente que o
escritor manteve com a loucura. Como as duas faces da mesma moeda, Pessoa
manifestou, alternadamente, tanto o medo de enlouquecer como o receio de ser
demasiado são, isto é, normal, o que supostamente inviabilizaria o seu acesso ao
estatuto singular da grandeza genial. A controvérsia sobre loucura e genialidade, na
segunda metade do século XIX, parece assim incontornável para compreender a
produção social da grandeza literária de Fernando Pessoa. Em Portugal, o principal
protagonista desta controvérsia foi o conhecido médico, escritor e polemista Júlio
Dantas, que ganhou notoriedade com a sua tese sobre os Pintores e Poetas de
Rilhafoles, publicada em 1900. Assim se compreende que, mais tarde, Dantas se tenha
tornado o inimigo de estimação dos jovens escritores «paúlicos», apesar da sua crítica
relativamente benévola à revista Orpheu. A sanha deste grupo de jovens contra o Dr.
Júlio Dantas, então modelo dândi de escritor bem sucedido na vida, levou mesmo
Almada Negreiros a publicar, em 1916, um virulento Manifesto Anti-Dantas.
Depois de desistir dos estudos, o estrangeirado Pessoa aproveitou a onda
revolucionária e patriótica, gerada pela greve estudantil de 1907, para se reconverter à
língua e cultura portuguesas, a sua verdadeira pátria, conforme escreveria pela mão de
Bernardo Soares. Neste difícil trabalho de ressocialização parece ter sido importante o
seu tio adoptivo, o general e poeta Henrique Rosa, que o teria introduzido nos círculos
intelectuais e literários. Ao atingir a maioridade, em 1909, Fernando Pessoa tomou a sua
primeira iniciativa empresarial, fundando a editora Íbis, na qual investiu a pequena
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herança deixada pela avó paterna, falecida dois anos antes. Esta foi a fórmula de
investimento encontrada por Pessoa para entrar na república das letras como editor, mas
o jovem inexperiente não foi bem sucedido, vendendo o negócio no ano seguinte, o da
implantação da República. Desta forma, Pessoa não conseguiu aceder a uma ordem de
grandeza superior, apesar de ter sacrificado a herança, abandonado o projecto da editora
Íbis, no qual procurava o engrandecimento como «homem de acção». Nesta época, o
jovem foi arrebatado pelo sentimento patriótico vivido em Portugal nos primeiros anos
da República, procurando ter uma «acção sobre a humanidade». Pessoa encontrou então
nova fórmula de investimento na república das letras, tornando-se sócio da Renascença
Portuguesa. Esta associação cultural, sediada no Porto, reunia um grupo de escritores,
artistas e intelectuais republicanos sob a direcção de Teixeira de Pascoaes.
Em 1912, Fernando Pessoa conseguiu efectivamente entrar na república das
letras como crítico literário, publicando uma série de três artigos sobre a «nova poesia
portuguesa» na revista A Águia, «órgão da Renascença Portuguesa». Aplicando o
método comparativo, o autor analisou as histórias literárias inglesa e francesa, nas quais
verificou uma homologia entre mudança social e criação literária, que aplicou à poesia
portuguesa, deduzindo assim que se preparava em «Portugal uma renascença
extraordinária». Logo no seu primeiro artigo, «A Nova Poesia Portuguesa
Sociologicamente Considerada», Pessoa previa que este «ressurgimento assombroso»
da pátria portuguesa produziria em breve um «Grande Poeta» que suplantaria o génio de
Luís de Camões. Esta previsão, feita pelo desconhecido jovem de 23 anos, causou
perplexidade e indignação na república das letras, nomeadamente porque o anunciado
Super-Camões foi então identificado com o poeta Teixeira de Pascoaes, criador da
corrente saudosista e director da Renascença Portuguesa, o qual não gozava de grande
prestígio na época. Contudo, se as respostas obtidas pelo Dr. Faustino Antunes não
tranquilizaram Pessoa, talvez a megalomania de que foi acusado pelo seu ex-professor
Francisco Adolfo Coelho, na controvérsia que se seguiu, tenha deixado o jovem mais
convencido quanto à possibilidade de se tornar um escritor genial, quer dizer, um SuperCamões.
Aproveitando a controvérsia gerada pelos seus artigos sobre a «nova poesia
portuguesa», Fernando Pessoa teria sugerido a um amigo, o jornalista Boavida Portugal,
a realização de um «Inquérito à Vida Literária». Com efeito, o jornalista publicou no
diário República o depoimento de doze personalidades que responderam ao seu
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inquérito, bem como diversas réplicas, que se prolongaram de Setembro a Dezembro de
1912. Estes artigos constituem interessantes documentos que permitem reconstituir,
pelo menos parcialmente, a imagem da república das letras nessa época em Portugal.
Simultaneamente, possibilitaram também testar o modelo teórico de Boltanski e
Thévenot, exemplificando os seus seis mundos através da análise das gramáticas
argumentativas dos intervenientes desta controvérsia. Começam então a desenhar-se as
fracturas entre os diferentes mundos e as tensões entre o mundo inspirado e os restantes,
nas críticas e justificações dos protagonistas, as quais foram verificadas em várias
situações analisadas ao longo desta investigação. Dentre estas sobressai a tensão entre o
mundo inspirado e o mundo do renome, na medida em que o mundanismo deste
contraria o ascetismo do primeiro, mas sobretudo porque a fama efémera do renome,
dependendo da opinião dos outros, antagoniza a grandeza perene do mundo inspirado,
que emerge da convicção interior ou autenticidade do escritor, sendo impermeável à
opinião dos outros. Assim se compreende que os escritores, enquanto seres inspirados,
sejam considerados loucos nas gramáticas argumentativas com base em outros mundos,
cujos pressupostos e princípios de equivalência são adversos à grandeza inspirada.
Na metamorfose do crítico em escritor, Fernando Pessoa distanciou-se da
Renascença Portuguesa e da revista A Águia, na qual era visto sobretudo como crítico
literário, transformando a sua «comichão intelectual», ou inspiração, em criatividade.
Longe dos primeiros tempos da ressocialização portuguesa e da incerteza sobre o seu
futuro, em 1913 Pessoa manifestava grande confiança num promissor futuro de escritor,
revelando a efusividade criativa dos seres inspirados. Percebe-se então o repúdio do
jovem pela «mera arte» e pela «futilidade literária», desconforme com a sua «íntima
sensibilidade» de escritor. Pouco antes da publicação da revista Orpheu, numa carta
para o seu amigo, o poeta açoriano Armando Côrtes-Rodrigues, Pessoa revela a sua
inspiração como «criador-de-civilização», afirmando a seriedade do trabalho literário no
dever ascético de perfeição. O escritor manifesta então o misticismo do mundo
inspirado no seu desejo de «trabalhar, quanto possa e em tudo quanto possa, para o
progresso da civilização e o alargamento da consciência da humanidade», o qual
decorre do «mandato subjectivo» que «todo o homem de génio recebe de Deus».
Contudo, uma vez que a fama diminui os seres inspirados, Pessoa fez a autocrítica da
sua «ambição grosseira de brilhar por brilhar», reprovando também os que, na sua
opinião, tinham uma atitude menos séria na literatura, cedendo à tentação do renome.
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Publicada em Lisboa pelo grupo de escritores «paúlicos», jovens do círculo de
amizades de Fernando Pessoa, a revista Orpheu introduziu o modernismo na literatura
portuguesa. O primeiro número da revista, publicado em Março de 1915, incluiu o seu
«drama estático», que não tivera acolhimento na revista A Águia, bem como dois
poemas do «engenheiro doido» Álvaro de Campos. Orpheu foi um «êxito de
gargalhada», recebida pela crítica e pelo público como uma brincadeira de mau gosto,
uma anedota mal contada por «meninos» ociosos e sem talento que apenas procuravam
a fama, divertindo-se à custa dos leitores. Por isso, os jovens escritores da revista
Orpheu foram alvo de chacota, numa controvérsia sobre a sua sanidade mental que
durou meses, alimentada pela comunicação social. Aproveitando a polémica, Fernando
Pessoa e Mário de Sá-Carneiro assumiram a direcção do segundo número da revista
trimestral de literatura, publicando «Poemas Inéditos», de Ângelo de Lima, numa
evidente provocação à crítica. Com efeito, este pintor e poeta estava realmente internado
no manicómio de Lisboa havia longos anos, renovando assim a controvérsia sobre a
loucura dos jovens escritores «paúlicos». Para além da tensão entre os mundos inspirado
e do renome, as operações críticas sobre a revista Orpheu, baseadas na gramática
industrial da psiquiatria positivista, retomaram sobretudo a controvérsia acerca dos
escritores degenerados. Seguindo Nathalie Heinich, poderemos então afirmar que a
crítica procurou diminuir os escritores «paúlicos», dessingularizando-os através da
psiquiatrização da literatura. Remetendo estes jovens escritores para a esfera científica
da psiquiatria, os jornalistas procuraram isolá-los da comum humanidade do universo
artístico. Neste sentido, a introdução da literatura de manicómio no segundo número da
revista, por oposição à literatura produzida fora dos muros das instituições psiquiátricas,
poderá ser interpretada como ressingularização dos jovens escritores de Orpheu. Esta
teria sido a fórmula de investimento possível, encontrada por Fernando Pessoa e SáCarneiro, procurando o engrandecimento dos poetas de Orpheu.
O suicídio do escritor Mário de Sá-Carneiro, em 1916, seu amigo e co-director
da revista Orpheu, constituiu um duro golpe para Fernando Pessoa, que manifestou
então profundo desalento e depressão. Feito o luto do amigo com quem tinha maiores
afinidades literárias, Pessoa reconstruiu a sua auto-identidade no universo simbólico dos
seus heterónimos, vividos pelo escritor como papéis sociais seriamente implicados
numa literatura sincera. Resolveu então fazer «uma grande alteração» na sua vida,
simbolicamente assinalada pelo retirar do acento circunflexo do seu apelido, que até
326
então se escrevia «Pessôa». Esta alteração cosmopolita prendia-se com o seu desejo de
publicar em Inglaterra, livrando-se para tal do «inútil» acento, o que revela uma
mudança de atitude relativamente à crítica implícita à reforma ortográfica da República
que os escritores de Orpheu protagonizaram. A incompreensão e ausência de
reconhecimento em Portugal, bem como o desejo de se tornar um grande escritor
universal, levaram então Pessoa a procurar publicar em Inglaterra. Mas também esta
fórmula de investimento fracassou, pelo que o escritor teve de se contentar em publicar,
discretamente em Lisboa, dois poemas ingleses «muito indecentes», e apenas em 1918,
depois de terminada a Grande Guerra. Desta forma, Fernando Pessoa era, aos trinta
anos, um pequeno escritor com talento sobretudo para a crítica, a controvérsia e o
escândalo literário, carecendo de reconhecimento público, por comparação com os
grandes escritores da época, como Júlio Dantas.
Relegado para quartos alugados nos arredores de Lisboa, em 1920, Fernando
Pessoa vivia o ascetismo dos seres inspirados, mas manteve nessa época uma relação
afectiva com uma mulher mais nova. Esta relação com Ofélia Queiroz foi suspensa com
a chegada da sua família a Lisboa, proveniente da África do Sul, após o falecimento do
padrasto de Pessoa, no ano anterior. A ruptura teria sido provocada pelas dúvidas do
escritor quanto à compatibilidade entre a vida conjugal e a sua actividade literária ou,
pragmaticamente, devido à tensão entre os mundos doméstico e inspirado. Uma vez que
a sua vida girava em torno da sua obra, o casamento teria «um interesse secundário»,
pois o seu destino pertencia «a outra Lei», que não era a do mundo doméstico, mas a
que rege a grandeza inspirada. Contudo, Pessoa rompeu o namoro com a desculpa de
que estaria doido, alegando mesmo a intenção de ser internado num manicómio, versão
certamente mais convincente para a namorada, que via o mundo inspirado do escritor a
partir do seu mundo doméstico. De facto, o ascetismo do mundo inspirado, a exigência
de «tudo abandonar» para seguir a inspiração, é interpretado como loucura a partir dos
outros mundos. Esta seria a razão pela qual Pessoa estabeleceu uma analogia entre a
loucura e a república das letras, certamente inspirado pela controvérsia sobre a
«Literatura de Manicómio», atribuída pela crítica à revista Orpheu.
Fernando Pessoa renunciou à vida doméstica para se dedicar à sua «vida de
pensamento», retomando assim o projecto reflexivo do self, de se engrandecer na
república das letras. Com efeito, o escritor não foi internado num manicómio no mês
seguinte, conforme teria afirmado à namorada, mas fundou a editora Olisipo, na qual
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publicou os seus English Poems no ano seguinte. Nesta fórmula de investimento, Pessoa
não repetiu o erro de criar outra tipografia como a extinta Íbis, que fundara em 1909,
limitando-se ao trabalho de edição. Contudo, a editora Olisipo representa um recomeço,
em que Pessoa retomou o papel abandonado de editor, no qual pretendera entrar na
república das letras nos últimos tempos da Monarquia. Além dos poemas ingleses de
Fernando Pessoa, a editora Olisipo publicou, ainda em 1921, A Invenção do Dia Claro,
de Almada Negreiros, e, no ano seguinte, Canções, do também amigo António Botto.
Esta obra de poesia homoerótica esteve na origem de outra controvérsia, iniciada por
Fernando Pessoa em 1922, com a publicação, na revista Contemporanea, do seu artigo
«António Botto e o Ideal Estético em Portugal».
Procurando publicitar a obra que editara, a crítica encomiástica mas algo
provocatória ao livro de Botto, bem no estilo de Fernando Pessoa, motivou uma
veemente réplica de Álvaro Maia, intitulada «Literatura de Sodoma», igualmente
publicada nas páginas da Contemporanea. Estava assim encontrado o mote de uma nova
controvérsia, de que se distanciou o editor de Canções, ficando representado pelo
heterónimo Álvaro de Campos, e na qual também se envolveu o seu amigo Raul Leal.
Contra a «Literatura de Sodoma», de Álvaro Maia, a editora Olisipo publicou, em 1923,
o folheto de Raul Leal, «Sodoma Divinizada», que desencadeou uma campanha
homofóbica do jornal A Época, o qual noticiou a formação de uma Liga de Acção dos
Estudantes de Lisboa, que pugnava pela «Higiene Moral e Social». Na polémica que se
seguiu não faltou sequer o Dr. Júlio Dantas, então presidente da Academia das Ciências,
o qual tomou o partido dos escritores da Olisipo contra a pretensão dos estudantes de
varrer das livrarias os livros que consideravam pornográficos. Contudo, esta figura de
peso não foi suficiente para contrariar a Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa, que
conseguiu mobilizar a opinião pública contra a «Literatura de Sodoma». Sobretudo
porque os estudantes tinham como aliado o governador civil de Lisboa, que mandou
apreender os livros controversos, a fim de preservar um «bem público». Entre a
liberdade de expressão e a «Higiene Moral e Social», as críticas e justificações dos
protagonistas da controvérsia revelam, pragmaticamente, a tensão entre o mundo
inspirado dos escritores e o mundo cívico dos estudantes. Esta polémica teve como
consequência o encerramento da editora Olisipo, após os cinco títulos publicados,
promovendo assim o conhecimento de Fernando Pessoa como crítico e editor, mas sem
contribuir decisivamente para o seu reconhecimento na república das letras.
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Finda a controvérsia sobre a «Literatura de Sodoma», em 1924 Fernando Pessoa
associou-se ao pintor Rui Vaz para fundar a revista de arte Athena que, de certa forma,
substituiu a revista Contemporanea, publicando poesia de Fernando Pessoa e dos
heterónimos Alberto Caeiro e Ricardo Reis. Esta revista marcou uma viragem no
percurso literário pessoano, até então marcado pela preocupação em ser conhecido,
através da provocação e do escândalo literário, para procurar agora o reconhecimento na
república das letras. Aos 36 anos de idade, Pessoa era já suficientemente conhecido para
adoptar uma nova forma de engrandecimento, evidenciando a seriedade da literatura.
Esta fórmula de investimento visava o reconhecimento do escritor, suspendendo a sua
vida «indisciplinadora de almas» e convertendo o «criador de anarquias» em «criadorde-civilização», através do ascetismo e distanciamento do escândalo literário,
particularmente da «Literatura de Manicómio» e da «Literatura de Sodoma». Na
metamorfose do conhecimento em reconhecimento literário até o alter ego Álvaro de
Campos foi chamado a contribuir para o engrandecimento de Fernando Pessoa, que
transformou o «engenheiro doido» em teórico da arte e da literatura.
Depois do golpe de Estado de 1926, que instituiu uma ditadura em Portugal, a
nova fórmula de investimento de Pessoa na república das letras parece ter resultado, de
facto, no seu reconhecimento, designadamente pela nova geração de escritores e críticos
literários que fundaram a revista Presença, publicada em Coimbra a partir de 1927. João
Gaspar Simões, um dos jovens presencistas, publicou em 1929 o primeiro estudo sobre
Fernando Pessoa, reconhecendo nele o «grande artista», ao qual atribuiu «um lugar
solitário e supremo» na literatura portuguesa. Pessoa era assim reconhecido como
grande escritor, «ainda que para um demasiadamente restrito público» constituído
sobretudo por escritores, amigos e admiradores. O reconhecimento esteve na origem da
publicação do seu único livro em língua portuguesa, publicado em vida do escritor,
tendo em vista o concurso literário promovido pelo Secretariado da Propaganda
Nacional, dirigido por António Ferro, antigo editor da revista Orpheu e amigo de
Pessoa. Inicialmente intitulado Portugal, este livro foi realmente publicado com o título
Mensagem, em 1934, já perto do final da vida do escritor, que morreu com 47 anos de
idade. Este livro de poesia retoma o projecto saudosista de exaltação da alma lusa,
elevando-o ao nível mítico e patriótico conforme ao ressurgimento nacional previsto por
Fernando Pessoa nos seus artigos sobre a «nova poesia portuguesa», publicados em
1912 na revista A Águia.
329
De acordo com o regulamento do prémio «Antero do Quental», o júri não
considerou Mensagem um «livro de versos», relegando-o para a categoria de «poema,
ou poesia solta», contemplada com um valor pecuniário muito inferior. Nesta «prova
modelo», o principal prémio foi atribuído ao livro de poesia A Romaria, de Vasco Reis,
um jovem frade franciscano praticamente desconhecido na república das letras. António
Ferro procurou então minorar a desclassificação do livro do amigo, «apenas por uma
simples questão de número de páginas», elevando o valor do prémio atribuído a
Fernando Pessoa para uma quantia idêntica à da categoria atribuída a Vasco Reis.
Apesar de o regulamento do concurso não apontar para tal, a verdade é que a distinção
atribuída a Fernando Pessoa foi socialmente percebida como um prémio de «segunda
categoria». Neste sentido, a decisão do júri causou nova controvérsia sobre o concurso
literário e o valor atribuído à obra de Pessoa, da qual se distanciou o escritor,
envolvendo-se então João Gaspar Simões e Vasco Reis. Contudo, dado que a criação
literária implica um grande investimento intelectual e emocional, verifica-se uma forte
continuidade entre o escritor e a sua obra, pelo que classificar a obra equivale a atribuir
uma ordem de grandeza ao escritor. Desta forma, verificamos que dificilmente Pessoa
superou a prova modelo que o concurso literário do Secretariado da Propaganda
Nacional representou, adiando novamente o seu reconhecimento.
Em conclusão, poderemos afirmar que é difícil separar a personalidade da vida e
obra de Fernando Pessoa, cuja singularidade se manifestou, paradoxalmente, na
multiplicidade de pseudónimos e heterónimos, formando virtualmente uma sociedade
interactiva de escritores, a qual designou por «drama em gente». Este dispositivo de
engrandecimento engendrado por Pessoa foi a fórmula de investimento encontrada pelo
escritor, emergindo da fragmentação do self, a qual teria resultado das sucessivas
socializações na língua e cultura portuguesa e inglesa. No seu percurso da vida,
Fernando Pessoa adoptou também várias lógicas de interacção ou modos de produção
social da grandeza literária, interagindo de forma diversificada consoante o seu grau de
reconhecimento na república das letras. Estes modos de engrandecimentos assumiram
diversas formas, de acordo como o trinómio desconhecimento, conhecimento,
reconhecimento. O primeiro modo de engrandecimento posto em prática por Pessoa,
com a sua lógica de desconhecimento, visava a sua entrada na república das letras,
levando-o a assumir o papel de crítico literário na revista A Águia. Em 1912, Pessoa
conseguiu assim a cidadania, ainda que contestada, da república das letras. Aliás, a
330
controvérsia sobre o «Super-Camões», que os seus artigos desencadearam, reforçou a
posição de Pessoa, chamando a atenção sobre o crítico e a admiração entre os jovens
escritores lisboetas. Contudo, este modo de engrandecimento, fundado no mundo
inspirado, chamou sobre si as críticas provenientes de outros mundos.
Conseguida a entrada na república das letras, Fernando Pessoa procurou tornarse cidadão de pleno direito dando-se a conhecer como escritor, ao publicar vários textos
poéticos em 1913 e 1914. Contra o saudosismo de Teixeira de Pascoaes e da revista A
Águia, Pessoa publicou em 1914, na revista A Renascença, os seus poemas intitulados
«Paúis», originando o «paúlismo», a partir do qual os jovens escritores que o rodeavam
passaram a ser conhecidos como «paúlicos». Pessoa adoptava assim um segundo modo
de engrandecimento, assente numa lógica de conhecimento, o qual teve o seu ponto alto
em 1915, com a publicação da revista Orpheu, que originou a controvérsia sobre a
«Literatura de Manicómio». Amplificada pela imprensa, esta fórmula de investimento
permitiu que Fernando Pessoa se tornasse conhecido, sobretudo através do heterónimo
Álvaro de Campos, e não apenas na república das letras, mas perante um público mais
vasto, a nível nacional e até internacional. Contudo, uma vez que esta lógica de
interacção se centrava no mundo do renome, o preço a pagar pela fama foi a diminuição
dos jovens escritores, considerados loucos pela crítica e pelo público. Podemos também
considerar neste modo de engrandecimento as tentativas frustradas de Fernando Pessoa
para publicar em Inglaterra, bem como os dois pequenos livros de poesia inglesa,
«muito indecentes», que publicou em Lisboa, em 1918. A lógica do conhecimento, ou
da fama proporcionada pelo escândalo literário, teve ainda continuidade na editora
Olisipo, na qual Fernando Pessoa retomou o projecto de entrar na república das letras
como editor, republicando os seus dois livros de poesia inglesa que passaram
praticamente despercebidos da crítica e do público. Com a publicação das Canções, de
António Botto, e da sua crítica encomiástica deste livro de poesia homoerótica,
publicada na revista Contemporanea em 1922, Fernando Pessoa desencadeou o
escândalo sobre a «Literatura de Sodoma». Na controvérsia que se seguiu, entre Raul
Leal e a Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa, verificou-se a dupla tensão entre o
mundo inspirado dos escritores e os mundos cívico e comercial.
O ano de 1924, em que Fernando Pessoa lançou a revista Athena juntamente
com Rui Vaz, foi também marcante na sua vida e obra. Nesta época, o escritor era já
bastante conhecido na república das letras, não apenas como poeta, mas também como
331
editor e crítico literário. Pessoa adoptou então um terceiro modo de engrandecimento,
abandonando a «Literatura de Manicómio» e a «Literatura de Sodoma» para procurar o
reconhecimento. Nesta lógica de interacção, Pessoa suspendeu a sua vocação de
«criador de anarquias», procurando ser reconhecido como «criador-de-civilização». Esta
fórmula de investimento, regida pelo mundo inspirado, manifestou-se no ascetismo do
escritor e no seu distanciamento dos escândalos literários, procurando evidenciar a
seriedade da literatura. Tendo «visto tudo e sentido tudo», Pessoa tinha agora o dever de
se «fechar em casa» e trabalhar no seu espírito «para erguer alto o nome português»,
como «consequência de encarar a sério a arte e a vida». O escritor retomava assim o
primitivo projecto de renascimento da nação portuguesa através da cultura, expressa na
arte em língua portuguesa, de que a poesia era, na sua opinião, o máximo expoente. Foi
nesta lógica de interacção que Pessoa procurou uma nova ordem de grandeza, ao
publicar o seu livro Mensagem, concorrendo ao prémio «Antero do Quental». Contudo,
Pessoa dificilmente superou esta «prova modelo», ou provação, que o prémio do
Secretariado da Propaganda Nacional representou. De facto, o escritor apenas conseguiu
a «segunda categoria» do prémio «Antero do Quental», sendo a «primeira categoria»
atribuída a um jovem padre, praticamente desconhecido na república das letras. Neste
sentido, o reconhecimento de Fernando Pessoa foi parcialmente gorado, sobretudo por
comparação com o prémio atribuído a Vasco Reis.
Fernando Pessoa revelou-se um ser inspirado através do sonho e devaneio da sua
criação literária, mas também no seu misticismo, inquietação e efusividade criativa,
assim como no ascetismo da sua vida, dedicada à literatura, e no sofrimento causado
pela inspiração. O escritor sabia bem que a partir de outros mundos, funcionando
segundo diferentes princípios de equivalência e diversas ordens de grandeza, era
depreciado e visto como louco. Por isso, desde muito jovem se interessou pela
controvérsia sobre génio e loucura, quer dizer, pelo mínimo de «maluqueira» necessário
para aceder à grandeza genial. Esta seria a razão pela qual, mais tarde, o «histeroneurasténico», segundo a sua própria classificação, teria referido a Gaspar Simões que a
«leve alienação mental» era um dos seus «privilégios mais Campos». Contudo, a
atenção que Pessoa dedicou à história e sociologia da literatura, bem como a erudição
que alcançou no domínio da «imortalidade», permitiram-lhe concluir que a ordem de
grandeza da genialidade não seria possível atingir em vida. Na república das letras, a
tensão entre os mundos inspirado e do renome torna paradoxal a grandeza efémera da
332
fama, protelando o engrandecimento perene dos escritores inspirados, que são vistos
como loucos. Assim se verifica, no mundo inspirado da literatura, a regra do
engrandecimento diferido que, segundo Nathalie Heinich, é imposta pelo paradoxal
regime de singularidade do universo artístico. Em 1929, Gaspar Simões escreveu que a
obra de Fernando Pessoa, «cheia de grandeza e de inquietação», apenas «dentro de vinte
ou trinta anos» seria, «devidamente, admirada e compreendida». O próprio Fernando
Pessoa estudou o engrandecimento póstumo, afirmando que os homens de génio,
«desprezados pela sua época, tornam-se célebres na época seguinte». Desta forma se
compreende o aparente paradoxo que escreveu, pela mão de Bernardo Soares, que
pretendia «ser mais vivo depois de morto».
Concluímos assim que, ao contrário do Dr. Júlio Dantas que viveu a grandeza
efémera do renome, Fernando Pessoa orientou a sua acção para a «imortalidade» ou
grandeza perene do mundo inspirado. Ser inspirado, o escritor viveu a sua vida com o
sentido de missão, revelado ainda em Durban, de carregar pesados «fardos espirituais e
materiais», para o «progresso da civilização» e o «alargamento da consciência da
humanidade». Na medida em que todo o engrandecimento legítimo implica um
sacrifício, esta foi a fórmula possível que Pessoa encontrou, sacrificando a fama e o
sucesso em vida, para atingir a grandeza genial «depois de morto». Neste sentido,
Pessoa surge como Anti-Dantas, procurando, na sua interacção social e intervenção na
república das letras, estabelecer um sólido dispositivo de engrandecimento futuro.
Assim se compreende a vida e obra de Fernando Pessoa, como fórmula de investimento
ou engrandecimento literário, publicando apenas o essencial e legando à posteridade a
sua extensa obra inédita, fragmentária e inacabada. Na medida em que escreveu muito e
publicou pouco, a sua obra continua a ser compilada e editada pelos investigadores
pessoanos, contribuindo assim para o engrandecimento póstumo do escritor. Na
república das letras, apenas um «recortador de paradoxos» poderia realizar o trabalho
sobre si próprio, no «drama em gente» dos seus heterónimos.
No caso de Fernando Pessoa não verificamos um engrandecimento através de
uma «subida em generalidade», como pretendem Boltanski e Thévenot, nem sequer pela
dupla subida em singularidade e objectividade proposta por Nathalie Heinich. Com
efeito, a singularidade de Fernando Pessoa é paradoxal porque assenta na multiplicidade
heteronímica. Por outro lado, ele não objectivou plenamente a sua obra em livros
publicados, deixando a maior parte inédita ou apenas em projecto, como dispositivo
333
para «colonizar o futuro». Desta forma, o escritor procurou o engrandecimento através
da originalidade, multiplicidade e autenticidade da sua obra, «toda uma literatura»
sincera, porque sentida, «criada e vivida». Pertencendo a uma geração «que ainda está
por vir», Fernando Pessoa sentia-se em dívida para com a «humanidade futura»,
procurando assim o engrandecimento póstumo. Desta forma atingiria o estatuto genial
que não teve em vida, tornando-se finalmente num escritor «extraordinário», o SuperCamões que, já em 1912, ambicionava ser.
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Lisboa: Editorial Presença.
ZENITH, Richard (2008). Fotobiografias Século XX: Fernando Pessoa. Lisboa:
Círculo de Leitores.
ZOLBERG, Vera (1990). Constructing a Sociology of the Arts. Cambridge: Cambridge
University Press.
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PUBLICAÇÕES PERIÓDICAS
A ÁGUIA (2.ª série). Porto: Renascença Portuguesa.
N.º 1 – Janeiro de 1912.
N.º 4 – Abril de 1912.
N.º 5 – Maio de 1912.
N.º 9 – Setembro de 1912.
N.º 10 – Outubro de 1912.
N.º 11 – Novembro de 1912.
N.º 12 – Dezembro de 1912.
N.º 16 – Abril de 1913.
N.º 20 – Agosto de 1913.
ACTES DE LA RECHERCHE EN SCIENCES SOCIALES : «L’illusion biografique»,
numéro 62-63, juin 1986,
THE ATHENAEUM: A Journal of Literature, Science and the Arts, no. 4683, January
30, 1920.
ATHENA: Revista de Arte, volume I. Directores: Fernando Pessoa e Ruy Vaz.
N.º 1 – Outubro de 1924.
N.º 2 – Novembro de 1924.
N.º 3 – Dezembro de 1924.
N.º 4 – Janeiro de 1925.
N.º 5 – Fevereiro de 1925.
A CAPITAL: Diário Republicano da Noite. Direcção e propriedade de Manuel
Guimarães.
N.º 1670 – Terça-feira, 30 de Março de 1915.
N.º 1671 – Quarta-feira, 31 de Março de 1915.
N.º 1758 – Segunda-feira, 28 de Junho de 1915.
N.º 1764 – Domingo, 4 de Julho de 1915.
N.º 1765 – Segunda-feira, 5 de Julho de 1915.
N.º 1766 – Terça-feira, 6 de Julho de 1915.
N.º 1767 – Quarta-feira, 7 de Julho de 1915.
346
CONTEMPORANEA: Grande Revista Mensal. Director: José Pacheco.
N.º 1 – Maio de 1922.
N.º 2 – Junho de 1922.
N.º 3 – Julho de 1922.
N.º 4 – Outubro de 1922.
N.º 5 – Novembro de 1922.
N.º 8 – Fevereiro de 1923.
N.º 9 – Março de 1923.
CONTRAST 47: South African Quarterly, June 1979, volume 12, no. 3.
O DIA. Director: J. A. Moreira d’Almeida.
N.º 239 – Terça-feira, 23 de Abril de 1912.
N.º 1914 – Quarta-feira, 15 de Novembro de 1922.
N.º 1915 – Quinta-feira, 16 de Novembro de 1922.
N.º 239 – Terça-feira, 23 de Abril de 1912.
O DIABO: Semanário de Crítica Literária e Artística. Director: Artur Inez.
N.º 31, 1.º ano – Lisboa, 27 de Janeiro de 1935.
DIÁRIO DO GOVÊRNO.
N.º 39 – Sexta-feira, 17 de Fevereiro de 1911.
N.º 206 – Segunda-feira, 4 de Setembro de 1911.
N.º 213 – Terça-feira, 12 de Setembro de 1911.
N.º 143 – Segunda-feira, 5 de Julho de 1926.
N.º 42 – Terça-feira, 21 de Fevereiro de 1933.
N.º 83 – Terça-feira, 11 de Abril de 1933.
N.º 218 – Segunda-feira, 25 de Setembro de 1933.
DIARIO DE LISBOA. Director: Joaquim Manso.
N.º 367 – Quinta-feira, 15 de Junho de 1922.
N.º 1098 – Segunda-feira, 3 de Novembro de 1924.
N.º 1791 – Sexta-feira, 11 de Fevereiro de 1927.
N.º 1946 – Sábado, 13 de Agosto de 1927.
N.º 1982 – Sábado, 24 de Setembro de 1927.
N.º 3606 – Quinta-feira, 24 de Novembro de 1932.
N.º 3607 – Sexta-feira, 25 de Novembro de 1932.
347
N.º 3608 – Sábado, 26 de Novembro de 1932.
N.º 4345 – Quinta-feira, 20 de Dezembro de 1934.
N.º 4345 – Quinta-feira, 20 de Dezembro de 1934.
N.º 4345 – Quinta-feira, 20 de Dezembro de 1934.
N.º 4345 – Quinta-feira, 20 de Dezembro de 1934.
N.º 4345 – Quinta-feira, 20 de Dezembro de 1934.
N.º 4355 – Segunda-feira, 31 de Dezembro de 1934.
DIARIO DE LISBOA: Suplemento Literário. Director: Joaquim Manso.
N.º 4339 – Sexta-feira, 14 de Dezembro de 1934.
N.º 4358 – Sexta-feira, 4 de Janeiro de 1934.
N.º 4405 – Sexta-feira, 22 de Fevereiro de 1935.
N.º 4418 – Sexta-feira, 8 de Março de 1935.
N.º 4859 – Segunda-feira, 31 de Dezembro de 1934.
N.º 4355 – Sexta-feira, 29 de Maio de 1936.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Director: Eduardo Schwalbach.
N.º 23977 – Segunda-feira, 31 de Outubro de 1932.
N.º 24006 – Terça-feira, 29 de Novembro de 1932.
N.º 24024 – Domingo, 18 de Dezembro de 1932
N.º 24025 – Segunda-feira, 19 de Dezembro de 1932.
N.º 24026 – Terça-feira, 20 de Dezembro de 1932.
N.º 24027 – Quarta-feira, 21 de Dezembro de 1932.
N.º 24028 – Quinta-feira, 22 de Dezembro de 1932.
N.º 24029 – Sexta-feira, 23 de Dezembro de 1932.
N.º 24030 – Sábado, 24 de Dezembro de 1932.
N.º 24364 – Quarta-feira, 29 de Novembro de 1933.
A EPOCA. Director: J. Fernando de Souza (Nemo).
N.º 1291 – Terça-feira, 20 de Fevereiro de 1923.
N.º 1293 – Quinta-feira, 22 de Fevereiro de 1923.
N.º 1296 – Domingo, 25 de Fevereiro de 1923.
N.º 1303 – Domingo, 4 de Março de 1923.
N.º 1305 – Terça-feira, 6 de Março de 1923.
N.º 1327 – Quarta-feira, 28 de Março de 1923.
348
EXILIO: Revista Mensal de Arte, Lettras e Sciencias, n.º 1, Abril – 1916. Director:
Augusto de Santa-Rita.
FRADIQUE: Semanário Literário. Director: Thomaz Ribeiro Colaço.
N.º 46 – 20 de Dezembro de 1934.
N.º 48 – 3 de Janeiro de 1935.
N.º 52 – 31 de Janeiro de 1935.
N.º 58 – 14 de Março de 1935.
N.º 61 – 4 de Abril de 1935.
N.º 69 – 30 de Maio de 1935.
N.º 70 – 6 de Junho de 1935.
ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA: edição semanal do jornal O Século.
N.º 286 – Lisboa, 14 de Agosto de 1911.
N.º 478 – Lisboa, 19 de Abril de 1915.
O JORNAL. Director: Boavida Portugal.
N.º 3 – Lisboa, 6 de Abril de 1915.
N.º 5 – Lisboa, 8 de Abril de 1915.
N.º 10 – Lisboa, 13 de Abril de 1915.
N.º 12 – Lisboa, 15 de Abril de 1915.
N.º 18 – Lisboa, 21 de Abril de 1915.
A LUCTA. Director: Brito Camacho.
N.º 3340 – Quinta-feira, 8 de Abril de 1915.
N.º 3343 – Domingo, 11 de Abril de 1915.
ORPHEU: Revista Trimestral de Literatura, n.º 1, ano I – 1915, Janeiro-FevereiroMarço. Direcção, Portugal: Luís de Montalvor, Brasil: Ronald de Carvalho.
ORPHEU: revista trimestral de literatura, n.º 2, ano I – 1915, Abril-Maio-Junho.
Directores: Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.
PESSOA PLURAL: Revista de Estudos Pessoanos. Brown University, Universiteit
Utrecht, Universidad de los Andes. Editores: Onésimo Almeida, Paulo de
Medeiros, Jerónimo Pizarro.
N.º 1 – Primavera de 2012.
N.º 2 – Outono de 2012.
N.º 3 – Primavera de 2013.
349
PORTUGAL FUTURISTA: publicação eventual. Director e fundador: Carlos Filipe
Porfírio.
PRESENÇA: Fôlha de Arte e Crítica. Coimbra.
N.º 3 – Abril, 1927.
N.º 14 e 15 – Julho, 1928.
N.º 17 – Dezembro, 1928.
N.º 18 – Janeiro, 1929.
N.º 35 – Março-Maio, 1932.
N.º 36 – Novembro, 1932.
N.º 40 – Dezembro, 1933.
A RENASCENÇA: revista mensal de crítica, literatura, arte, sciencia, n.º 1, volume 1,
ano 1. Lisboa, Fevereiro de 1914. Director: Carvalho Mourão.
REPUBLICA. Director: António José D’Almeida.
N.º 590 – Terça-feira, 3 de Setembro de 1912.
N.º 591 – Quarta-feira, 4 de Setembro de 1912.
N.º 593 – Sexta-feira, 6 de Setembro de 1912.
N.º 594 – Sábado, 7 de Setembro de 1912.
N.º 596 – Segunda-feira, 9 de Setembro de 1912.
N.º 603 – Segunda-feira, 16 de Setembro de 1912.
N.º 605 – Quarta-feira, 18 de Setembro de 1912.
N.º 608 – Sábado, 21 de Setembro de 1912.
N.º 611 – Terça-feira, 24 de Setembro de 1912.
N.º 613 – Quinta-feira, 26 de Setembro de 1912.
N.º 619 – Quarta-feira, 2 de Outubro de 1912.
N.º 697 – Sábado, 21 de Dezembro de 1912.
TEATRO: revista de crítica, n.º 1, ano 1. Lisboa, 1 de Março de 1913. Director:
Boavida Portugal.
350
BIBLIOTECAS E ARQUIVOS
Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian
Biblioteca da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa
Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
Biblioteca Geral Digital
http://bdigital.bg.uc.pt/
Biblioteca do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
Biblioteca do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa
Biblioteca Municipal Central de Lisboa
Biblioteca Nacional de Portugal
Biblioteca Nacional Digital
http://purl.pt/index/geral/PT/index.html
Espólio Fernando Pessoa
http://purl.pt/1000/1/
Bibliotèque National de France
Gallica – Bibliotèque numérique
http://gallica.bnf.fr/
Brown University – Department of Portuguese and Brasilian Studies
Pessoa Plural: Revista de Estudos Pessoanos / A Journal of Fernando Pessoa
Studies, Brown University – Universiteit Utrecht – Universidad de los Andes.
http://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/pessoap
lural/index.html
351
Casa Fernando Pessoa
Biblioteca Digital de Fernando Pessoa
http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/bdigital/index/index.htm
Fundação Mário Soares
Diário de Lisboa Online
http://www.fmsoares.pt/diario_de_lisboa/ano.php
Hemeroteca Municipal de Lisboa
Hemeroteca Digital
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Imprensa Nacional Casa da Moeda
Diário da República Electrónico
http://dre.pt/
Instituto de Estudos Sobre o Modernismo
Arquivo Pessoa
http://arquivopessoa.net/
Modernista, Revista do Instituto de Estudos sobre o Modernismo
http://www.wikipedia.org/
Internet Archive
http://archive.org/
Um Fernando Pessoa
http://www.umfernandopessoa.com/
Wikipédia – A enciclopédia livre
http://www.wikipedia.org/
352
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