A gestão académica na universidade estatal angolana: entre a regulação
burocrática e a emancipação política
Eugénio Alves da Silva1
Centro de Investigação em Educação - Universidade do Minho
[email protected]
Resumo
A administração do subsistema do ensino superior em Angola é da
responsabilidade do Ministério do Ensino Superior e da Ciência e Tecnologia (MESCT)
a quem cabe a definição das políticas sectoriais e a avaliação e controlo da sua
execução. Este órgão vem assumindo um poder regulador de natureza centralizadora
que colide com a autonomia das universidades, retirando-lhes margem de manobra na
definição das suas próprias políticas. Como consequência, estabelece-se uma relação de
dependência hierárquica que coloca os reitores das universidades no “fio da navalha”.
No quadro desta regulação burocrática, a gestão das universidades públicas pelos
reitores resume-se ao exercício de funções executivas e implementativas, isto é, de
materialização das políticas superiormente determinadas. Assim, os reitores são
forçados a atuar como delegados da tutela pelo que a sua ação, num quadro de
autonomia limitada, não alcança a dimensão emancipatória, imprescindível para
impulsionar o desenvolvimento institucional tendo em conta os imperativos locais.
Deste modo, eles são relegados ao papel de representantes da tutela embora, na
qualidade de primus interpares, não deixem de ser, também, representantes da
academia, o que impõe um compromisso com esta. Por isso, questiona-se qual o grau de
influência dos reitores, nesta ambivalência de papéis, no funcionamento e
desenvolvimento das universidades estatais em Angola.
A análise do papel do reitor na universidade estatal tomará como referência
algumas metáforas de universidade que exprimem configurações resultantes das
articulações e desarticulações entre a dimensão burocrática e a dimensão política
patentes na dinâmica organizacional universitária.
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Eugénio Alves da Silva é Professor Auxiliar do Instituto de Educação da Universidade do Minho e
investigador do Centro de Investigação em Educação da mesma universidade, em Braga, Portugal.
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Introdução
O regime de tutela recentemente instituído no subsistema do ensino superior em
Angola decorrente do novo quadro orgânico representa um claro retrocesso para a
autonomia universitária e impõe restrições ao exercício do cargo de reitor que passou a
nomeado pelo Ministério do Ensino Superior e da Ciência e Tecnologia (MESCT).
Deste modo, a universidade estatal angolana deixa de ser encarada como estrutura
autónoma para se constituir como uma extensão do Estado, sujeitando-se ao controlo e
avaliação periódica pela tutela.
O atual regime jurídico ao qual a universidade se sujeita define o papel do reitor,
considerando as dimensões da autonomia, da dependência hierárquica e do controlo,
conduzindo a um quadro em que, tendo em conta as regras de nomeação, este passa a
atuar como delegado do ministro, mandatado para cumprir as políticas educativas
estatais, exercendo, portanto, uma ação executiva. Coloca-se aqui a questão da
definição, no atual quadro de funcionamento das universidades estatais, do papel dos
reitores e da sua influência no funcionamento e desenvolvimento das universidades.
Nesta conjuntura torna-se difícil para qualquer universidade estatal em Angola
assumir-se como locus de produção de políticas (Lima, 2001, pp. 63-64) na medida em
que deixa de usufruir de uma condição fundamental - a autonomia - com a agravante de
o reitor, por ser nomeado pelo governo a quem deve fidelidade, ter de agir quase
exclusivamente como delegado deste, embora não deixe de ser, também, um
representante dos seus pares. Este facto coloca-o perante uma dualidade de papéis
dificilmente conciliáveis - representante da tutela e representante da academia.
Assim, pretende-se explorar teoricamente algumas metáforas de universidade que
exprimem configurações resultantes das articulações e desarticulações entre a dimensão
burocrática e a dimensão política, analisando o papel e o lugar do reitor em cada uma
delas, tendo em conta as lógicas concordantes com a respetiva conceção de universidade
e os constrangimentos da gestão académica em Angola.
1. As imagens organizacionais de universidade
O modelo teórico proposto para analisar a gestão na universidade parte de uma
matriz onde se cruzam algumas dimensões que caracterizam a dinâmica organizacional
e certas orientações que conferem sentido a essa dinâmica. De entre as dimensões temos
a consensualidade e a conflitualidade. Estas referem-se à maneira como os atores
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tomam decisões e aos mecanismos desencadeados para a sua produção. Como
orientações, destacam-se as profissionais e as burocráticas, umas fazendo apelo à perícia
e colegialidade e outras à conformidade, formalidade e controlo (Weber, 1971).
Assim, é possível criar cenários resultantes dos possíveis cruzamentos entre
dimensões e orientações. Teremos, portanto, contextos de orientação profissional e
outros de orientação burocrática, caracterizados por índices de consensualidade ou de
conflitualidade. A menor ou maior conflitualidade indica o grau de articulação entre o
burocrático e o político. Cada um dos contextos adquire uma configuração (Silva, 2004,
pp. 244-250), a que corresponde uma metáfora que identifica o tipo organizacional de
universidade, conforme indicado no quadro I.
Quadro I: Metáforas de Universidade considerando o modelo em ação
Desarticulação entre modos de regulação  ação divergente
Processos
Orientações
PROFISSIONAIS
Autonomia
Colegialidade
Adhocracia
Autorregulação
Critérios
académicos
Compromisso
com a ciência
BUROCRÁTICAS
Hierarquização
Centralização
Controlo estatal
Socialização
normativa
Padronização
Compromisso
com ordem social
Consensualidade
Normatividade
Objetivos claros e partilhados
UNIVERSIDADE CONCLAVE
Conflitualidade
Ambiguidade
Objetivos ambíguos e incertos
UNIVERSIDADE COLISEU
Modelo burocrático-colegial
(burocrático e político em confronto)
Universidade: colégio de profissionais
Modelo político-participativo
(político em rutura com o burocrático)
Universidade: arena política
1. Formalidade, centralização e controlo

uniformidade; Autonomia dos
docentes  discricionariedade
2. Domínio do profissional sobre o
burocrático;
Burocracia
bloqueia
produção das políticas
3. Modo de regulação colegial 
negociação de agendas divergentes 
lógicas democráticas
1. Burocracia  mecanismo para mobilizar
e integrar atores nas instâncias de decisão
2. Rutura entre o político – impulsionador
e o burocrático - força de bloqueio 
conflito
3.
Antagonismo
entre
regulação
burocrática e autonomia profissional 
incompatibilidade entre perícia académica
e controlo burocrático
UNIVERSIDADE AGÊNCIA
IDEOLÓGICA
Modelo burocrático institucional
(burocrático no serviço do político)
Universidade: extensão local do estado
Locus de reprodução normativa
1.
Burocracia
é
instrumental
e
imprescindível à viabilização das políticas
2. Aparelho burocrático é subsidiário 
cumpre orientações superiores; viabiliza e
legitima políticas
3. Administração universitária verga-se à
autoridade hierárquica do Estado
 domesticação da universidade
UNIVERSIDADE TORRE DE
MARFIM
Modelo burocrático-corporativo
(político legitimador do burocrático)
Universidade: comunidade de pares
Locus colegial
1. Burocracia legitima-se como mecanismo
de reforço do poder dos profissionais
Orientações burocráticas  centralização,
hierarquização e padronização
2. Aparelho burocrático contribui para
aumentar êxito das decisões colegiais
3. Colegialidade académica contrabalança
poder burocrático
Articulação entre modos de regulação  ação convergente
As metáforas expressam modos de regulação que podem ser predominantemente
burocráticos ou essencialmente políticos, ao que se adiciona o efeito de lógicas ou
racionalidades baseadas no consenso ou no conflito. Trata-se de um quadro baseado no
“modelo bifacial” ou no “modo díptico de funcionamento da organização” (Lima, 1992,
p. 157) o qual permite explicar as articulações e desarticulações, do seguinte modo:
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Segundo o eixo vertical, pode-se constatar a variação da ação entre as dimensões
organizacionais (profissionais e burocráticas), surgindo na parte inferior, uma
articulação mais forte entre essas dimensões cuja ação é de mútuo reforço e, na parte
superior, desarticulações entre elas, gerando uma ação oponente entre si. Segundo o
eixo horizontal, pode-se perceber a influência dos fatores consensualidade ou
conflitualidade na estruturação da ação organizacional.
Tendo em conta a conjugação de elementos organizacionais (dimensões versus
orientações) nos vários quadrantes, é possível elaborar quatro metáforas e respetivas
características a que correspondem distintas configurações de universidade. Assim, as
metáforas da “universidade conclave”, da “universidade coliseu”, da “universidade
agência ideológica” e da “universidade torre de marfim” (Silva, 2004, pp. 249-260) são
formas de explicar cada configuração, tomando a estrutura em ação.
Este modelo visa interpretar as relações entre a dimensão burocrática e a dimensão
política da organização como dois sistemas distintos e com modos de atuação
específicos. Pelo modus operandi destes sistemas admite-se que podem coexistir
pacificamente, agindo de modo convergente, ou entrar em conflito, procurando
eliminar-se mutuamente (Silva, 2004, pp. 234-237). Na análise destes dois sistemas
privilegiar-se-á o equilíbrio instável entre o burocrático e o político, enquanto sistemas
de reforço mútuo. Nesta orientação, um e outro “coligam-se” para viabilizar decisões e
políticas, recorrendo a processos para estabelecer uma “ordem institucionalizada”,
gerando-se uma lógica de cumplicidade ou de colaboração estratégica.
Numa orientação mais divergente surgem arranjos em que predomina a
burocracia, que pretende confrontar e anular o sistema político ou, em contrapartida, à
tentativa de controlo do político, que se sobrepõe ao burocrático, influenciando os
processos decisórios. Neste caso, estamos perante uma lógica de confronto onde os
conflitos adquirem lugar central (Bolman & Deal, 1989, p. 109). Estes cenários ajudam
a compreender as dinâmicas universitárias, através das metáforas que se seguem.
1.1. A universidade “agência ideológica” ou “missionária”
Esta metáfora (Silva, 2004, pp. 251-254) incorpora dois tipos de fatores: um de natureza
sociopolítica, que se relaciona com o lugar da universidade no sistema social e enquanto
estrutura integrante do aparelho ideológico do Estado. No caso de Angola a
universidade foi incumbida de apoiar o projeto revolucionário de construção do
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socialismo, o que se tornou prioridade no conjunto das suas missões, existindo
atualmente o desafio de reorganizar o sector para elevar a eficiência daquela numa
sociedade em democratização. Outro, de natureza organizacional, ligado com o modo
como a estrutura funciona e dá resposta aos objetivos impostos. Nesta dependência, a
organização universitária funciona segundo uma estrutura burocrática, baseada na
institucionalização dos normativos, hierarquização da autoridade e controlo,
assegurando-se os níveis desejados de consensualidade e partilha de objetivos. No plano
das orientações, denota-se a existência de estruturas supraorganizacionais, ligadas à
tutela, que a dirigem impondo orientações políticas e objetivos operacionais. O aparelho
burocrático universitário é subsidiário de uma estrutura política estatal - o ministério - e
tem de funcionar de acordo com orientações superiores. Integrada num sistema
centralizado, a gestão universitária tem de se “vergar” à autoridade hierárquica do
Estado e reproduzir internamente as orientações recebidas. Daqui deriva a dependência
da universidade que se estrutura como “locus de reprodução normativa” (Lima, 1992, p.
72), funcionando o reitor como delegado do ministro, com mandato para executar as
políticas oficiais.
No plano da ação, as políticas, processos e práticas tendem a ser o reflexo das
orientações normativas, executadas por responsáveis nomeados segundo o princípio da
lealdade. Portanto, o aparelho burocrático está configurado como um instrumento da
política (Beethan, 1988 e Baudouin, 2000), cabendo-lhe a viabilização das orientações e
sua legitimação, promovendo-se a conformidade institucional. Isto configura, na aceção
de Clegg (1998, p. 45), uma instrumentalização da burocracia em relação à esfera
política (Beetham, 1988, p. 80) tornando-a um aliado do sistema político.
Nesta configuração, o aparelho burocrático atua no sentido da operacionalização
das políticas, o que a torna subsidiária do sistema político, realizando uma função de
socialização normativa com a qual se institucionaliza a ordem vigente. Por isso, Nizet &
Pichault (2000, pp. 219-221 e 280-283) designam esta estrutura de “missionária” porque
se dedica à difusão de valores que inspiram o trabalho a partir de orientações superiores
e na qual a coordenação se faz por ajustamento mútuo e por estandardização, gerando-se
um comportamento conformista. Segundo os mesmos, este tipo de organização recorre à
mobilização ideológica visando comprometer os indivíduos e gerar maior engajamento.
Uma
estrutura
desta
natureza
existe
apenas
em
contextos
de
forte
condicionamento ideológico. A universidade estatal em Angola continua sendo uma
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peça importante do projeto do partido no poder, pelo que assume o papel de “agência
ideológica” do regime com quem, graças a um pacto político, se legitima socialmente.
Neste contexto, a gestão universitária torna-se dependente de uma regulação
política por parte do Estado, gerando-se a “domesticação” da universidade (Lima, 1998,
p. 72). A função da estrutura administrativa é concretizar os objetivos definidos, pelo
que tende a desenvolver estratégias de isomorfismo em relação ao regime, reproduzindo
estruturas, modos e princípios de atuação vigentes na esfera do governo. Nestes termos,
não faz sentido falar de autonomia institucional pois não há espaço de decisão autónoma
ao nível dos órgãos internos que atuam como extensões da estrutura central e o reitor
mais não é do que um delegado do ministro, por este nomeado. A sua legitimidade
decorre do mandato da tutela, levando-o a atuar como transmissor das orientações
superiores, com a responsabilidade da sua execução. É, portanto, encarado como chefe
hierárquico que tem de salvaguardar os interesses do Estado, sujeitar-se ao controlo
deste, prestar contas, não reunindo condições para a produção interna de políticas.
1.2. A universidade “torre de marfim”
Esta metáfora (Silva, 2004, pp. 254-256) remete para a representação da
universidade como “santuário no qual o erudito segue silenciosamente o seu ofício
livresco” (Wolff, 1993, p. 29) o que pressupõe considerar um certo isolamento da
universidade. Esta é concebida como “comunidade de intelectuais, informalmente
organizada, autogovernada e gerida por normas internas de erudição e não por normas
sociais de produtividade ou utilidade” (Wolff, 1993, p. 32).
Para Buarque (1994: 72), a imagem da “torre de marfim” tem a ver com o modo
como a universidade funciona, fechada sobre si, mediante uma linguagem hermética
criada “para dificultar o entendimento, colocar o orador no pedestal, protegê-lo das
críticas, dando-lhe o monopólio do conhecimento”, o que a torna uma “ilha de saber”.
A universidade revela orientações burocráticas expressas em órgãos diferenciados
e hierarquizados nos quais se concentra grande parcela de poder. A colegialidade (Kast
& Rosenzweig, 1976), fundada em lógicas profissionais, contrabalança o poder
burocrático, gerando-se alguma conflitualidade entre o controlo burocrático e a
autonomia profissional. O aparelho burocrático chega a fazer recomendações para
aumentar as probabilidades de êxito das decisões profissionais, daqui decorrendo o
reconhecimento do seu valor para a construção da política universitária (Peters, 1999,
6
pp. 115-116). Assim, a burocracia legitima-se perante a política como mecanismo de
reforço do poder dos profissionais.
A estrutura universitária está configurada segundo padrões burocráticos mas a
autonomia dos docentes leva-os a agir de duas maneiras: resistem e contrariam estas
lógicas se interpretam a intervenção da administração como entraves, reduzindo a
iniciativa dos burocratas; reforçam as medidas burocráticas se estas trazem benefícios
para a decisão, buscando o apoio dos burocratas. Nesta configuração, os docentes
demonstram forte corporativismo, pretendendo desenvolver as suas atividades sem
interferências da administração burocrática.
A coexistência das duas dimensões (burocrática e colegial) gera um modo de
regulação híbrido apoiado em mecanismos burocráticos e em procedimentos de natureza
profissional que fazem com que o exercício do poder seja resultado de compromissos
prévios, pacificando-se as relações entre académicos e burocratas. A organização
procura funcionar na base de consensos, da conciliação de regras e da tomada de
decisões em órgãos apropriados, evitando o conflito. Os profissionais não desejam ser
incomodados no seu reduto e nem pretendem criar entraves ao processo administrativo.
Deste modo, a produção de decisões e políticas fica reservada às instâncias próprias
onde se admite a representação dos diferentes corpos da estrutura. Lima (1998, p. 71)
caracteriza esta estrutura como “um sistema não participativo ou, quando muito, de
participação cooptativa limitada a certas categorias de actores.”
Nesta configuração a gestão faz-se apelando a critérios de engajamento fundados
nas solidariedades de grupo e nos objetivos de missão. Os profissionais confiam mais
nos mecanismos estabelecidos do que nos dispositivos criados pela administração por
considerarem que estes não contemplam a especificidade do seu trabalho. O reitor surge
como um “funâmbulo” que tenta conciliar os interesses da administração burocrática
com os interesses colegiais da comunidade de pares, procurando manter a “harmonia
organizacional” para que a sua legitimidade não seja beliscada e a sua gestão possa
aproveitar os recursos institucionais providos pelos dois modos de regulação.
1.3. A universidade “conclave”
Esta imagem de universidade (Silva, 2004, pp. 256-258) é congruente com a de
uma estrutura concebida por e para profissionais que nela exercem o ofício ao abrigo
das ingerências de outros atores. Assim, o conclave é a assembleia em que se tomam as
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decisões fulcrais nas quais apenas alguns membros da comunidade participam. Por
analogia, a organização universitária seria a instância de participação de algumas
categorias de profissionais (ou seus representantes) para deliberarem e decidirem,
recorrendo ao seu poder pericial, constituindo uma espécie de “reduto tecnocrático”.
A organização constitui uma estrutura balcanizada: de um lado, os órgãos da
administração, com as suas lógicas e critérios fundados no modo burocrático de
regulação, cuja função essencial é manter a ordem e a estabilidade através da
padronização e do controlo. Do outro, uma estrutura profissional integrada pelos
docentes, dotados de perícia profissional que lhes confere poderes para resistir aos
critérios burocráticos e impor as lógicas académicas. Estas estruturas competem entre si
pelo privilégio de estabelecer os mecanismos de regulação.
A consensualidade vigora como condição de entendimento e de interação entre os
atores que partilham valores comuns e em função dos quais constroem o sentido de
comunidade. A formalidade e normatividade burocráticas permitem inculcar valores e
consensualizar objetivos cuja determinação está a cargo das hierarquias superiores. Isto
pressupõe a existência de níveis de autoridade exercida por meio de mecanismos legais.
Nesta organização cultiva-se uma racionalidade técnica apriorística assente nos
princípios da autoridade hierárquica e do respeito aos objetivos fixados, entendidos
uniformemente. Os mecanismos da centralização e do controlo ajudam a produzir os
níveis de consenso que garantem a uniformidade e a unidade dos critérios pelos quais se
pauta a autonomia institucional dos órgãos.
A autonomia decorre da perícia profissional dos docentes que lhes confere
discricionariedade e competência para decidir. Valoriza-se o poder profissional
legitimado pela competência com a qual contrabalançam a influência da administração
burocrática. Os dois poderes entram em tensão porque, de um lado, prevalecem normas
e valores de índole burocrática e, do outro, sobressaem critérios e modos de atuação
profissionais que legitimam as decisões de natureza científica mais congruentes com a
índole cognocrática da universidade.
Nesta organização reforça-se a ação dos órgãos académicos de decisão e
participação o que exprime o predomínio do profissional sobre o burocrático que
aparece como estrutura auxiliar e de suporte aos processos de decisão e implementação.
Uma vez que estes órgãos se ocupam essencialmente das questões da docência e da
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investigação, os seus membros procuram estabelecer uma racionalidade técnicocientífica que confere o sentido de comunidade.
Se, de um lado, o sentido corporativo dos docentes os leva a desenvolver lógicas
para salvaguardar os seus interesses, preservando o seu poder e legitimando a sua ação
enquanto “corpo” capaz de se mobilizar para lutar por mais autonomia, do outro,
encontramos uma estrutura burocrática ciosa do controlo e que desencadeia mecanismos
para restringir a produção das políticas, tornando-se um entrave ao jogo político
(Terrén, 1999). O recurso à lei e ao orçamento indicia como a burocracia pode limitar a
ação dos académicos impondo critérios de gestão externos ao campo do conhecimento
ou promovendo um controlo burocrático das políticas.
As lógicas dos atores integram-se e harmonizam-se como corolário de um modo
de regulação colegial fundado no consenso e pressupondo a negociação de agendas
divergentes. Este fator possibilita a expressão de lógicas democráticas que
fundamentam a tomada de decisões em órgãos colegiais. Os docentes e os órgãos são
forçados a desenvolver uma cultura democrática mesmo quando a rigidez burocrática
tenta impor as regras da autoridade hierárquica ou da conformidade legal.
O reitor, cuja legitimidade decorre da capacidade de mobilizar quer as lógicas
colegiais quer as burocráticas, surge como um árbitro, tentando conciliar os interesses,
aproveitando a força pericial dos pares e o conforto das normas burocráticas para
legitimar decisões. O seu compromisso é assumido em relação à produção autónoma de
políticas segundo as necessidades de desenvolvimento da instituição pelo que, por
vezes, tem de se confrontar com as lógicas burocráticas e com o poder da tutela.
1.4. A universidade “coliseu”
A abordagem da universidade à luz desta metáfora (Silva, 2004, pp. 258-260)
remete à representação do coliseum romano da antiguidade onde se realizavam
combates. A imagem do coliseu destaca o confronto que caracteriza os processos de
debate político. A universidade “coliseu” é uma expressão da possibilidade de se
transformar numa organização de produção autónoma de políticas ou, como afirmou
Lima (1998, p. 72) “na forma de governação democrática e participativa (participação
no processo de decisão) representando a universidade como uma ‘arena política’
constituída por atores, projectos e interesses diversos e eventualmente antagónicos, com
liberdade de expressão, democraticamente dirimidos por processos de participação e de
9
escolha democrática, em órgãos de governo participados, assemelhando-se a […] uma
comunidade governada em termos democráticos.”
Esta conceção releva elementos essenciais que configuram a universidade como
um locus de produção de políticas, dotado de autonomia, capaz de definir as suas linhas
de rumo a partir de processos participativos e conflituais. Fundado no modelo políticoparticipativo, a organização universitária assemelha-se a uma estrutura complexa de
órgãos e relações, debilmente articulados (Weick, 1976, pp. 4-6; Balderston, 1995, p.
102), que se confrontam na tomada de decisão. As fontes de conflito residem no
antagonismo entre a regulação burocrática e a autonomia dos órgãos e atores, na
incompatibilidade entre a perícia académica e o controlo burocrático e na disputa de
poder entre os burocratas e os profissionais.
Esta imagem de universidade evoca a conflitualidade resultante da multiplicidade
de interesses e lógicas que se confrontam pois disso depende a capacidade de influência
sobre as políticas. Outra característica é a existência de ambiguidades respeitantes aos
objetivos (Weick, 1995, p. 91-92; Baldridge et al., 1978, p. 20-21) o que conduz a que
estes sejam interpretados de diferentes maneiras, criando oportunidades para a elevação
dos níveis de consenso face à presença de múltiplas racionalidades.
Os departamentos são centros de atividades profissionais onde interagem
indivíduos com elevada perícia profissional e que controlam as condições do exercício
da sua atividade. Assim, a atividade departamental constitui o centro da vida académica
e o ponto de confluência das decisões e políticas académicas e a autonomia académica
constitui uma condição importante para a produção de políticas, contribuindo para
reduzir o poder burocrático da administração.
Neste tipo de configuração, o conflito é vital para a dinâmica organizacional
(Bush, 1986; Baldridge, 1971, p. 203), ativando e mobilizando estruturas e atores para a
participação nos processos de decisão. Aqui, a dimensão política entra em choque com
o aparato burocrático, procurando abrir espaços de participação e de expressão de
interesses e lógicas que divergem dos padrões burocráticos. Processa-se uma rutura
entre o político, considerado força impulsionadora, e o burocrático, encarado como
força de bloqueio, pelo que as decisões estratégicas resultam de processos negociais
traduzidos em compromissos que definem a ordem institucional.
Os atores universitários, dotados de interesses, participam no exercício do poder
através de estratégias com as quais alimentam o jogo político. Este exprime-se como um
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conjunto de “jogos de poder” (Mintzberg, 1995, pp. 344-348; Bolman & Deal, 1989, p.
120; Friedberg, 1995, p. 231) onde se disputam recursos e capacidade de influência nas
decisões, em relação às quais os profissionais querem ter uma intervenção decisiva. Esta
atividade política faz surgir coligações de interesses que alimentam expectativas quanto
ao grau de influência que podem exercer no processo decisório.
A governação universitária, fundada na participação dos membros da comunidade
académica, é o exemplo de como a democracia pode contribuir para legitimar os
processos decisórios e os próprios atores universitários que, enquanto estrategas (Silva,
2004, p. 241), são uma peça-chave importante para a qualidade das políticas. Apesar da
fragmentação estrutural, devida à autonomia e ao estado de “conflito endémico”, o
cenário da arena política (Millett, 1978; Baldridge, 1971; Bush, 1986; Clegg, 1990)
parece compaginar-se melhor com o de “uma organização cívica onde se busca a
cidadania organizacional” (Lima, 1998, p. 72; Estêvão, 2002, p. 89) na base da
afirmação de projetos institucionais próprios que mobilizem a capacidade negocial dos
vários intervenientes. Neste âmbito, a burocracia é o mecanismo através do qual os
atores são mobilizados e integrados nas instâncias de decisão legitimando os processos
e os resultados e assegurando a pluralidade necessária ao diálogo democrático. Na
opinião de Beetham (1988, pp. 166-167), “a administração burocrática não é
antidemocrática por inerência. As suas capacidades organizacionais só passam a sê-lo
quando protegidas pelo secretismo. [...] (Assim) uma burocracia que opere dentro de
uma ordem democrática é particularmente rica.” Isto faz dela um adequado sistema de
gestão no sentido de acomodar os vários interesses.
Nestes termos, o reitor é o líder e primus interpares, com uma legitimidade
decorrente do mandato para o qual foi escolhido pelos pares, assumindo um
compromisso com o projeto sufragado, cujo sucesso dependerá, também, da sua
capacidade de mobilizar o aparato burocrático. Este será cooptado para viabilizar as
decisões da esfera política que acabam obtendo cobertura legal pois esta é uma condição
para a legitimação do poder. O reitor é o político e o académico que vela pelo interesse
institucional, esperando-se que, na opinião de Romêo (1995, pp. 35-36), concentre a sua
atenção no estabelecimento da agenda da instituição e na visão do projeto da
universidade com o qual se deve comprometer.
A ação do reitor direciona-se para dentro, no sentido de salvaguardar os interesses
da academia, expressos através de projetos próprios, ao contrário do que acontece
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quando a dinâmica organizacional se baseia numa lógica de dependência burocrática
onde, o que conta é o modo como o reitor responde aos interesses da tutela.
O papel do reitor em cada uma destas configurações fica retratado no Quadro II.
Quadro II - O papel do reitor na gestão universitária
Desarticulação entre modos de regulação  ação divergente
Processos
Consensualidade
Normatividade
Objectivos claros e compartilhados
UNIVERSIDADE CONCLAVE
Orientações
PROFISSIONAIS
Autonomia
Colegialidade
Adhocracia
Autorregulação
Critérios
académicos
Compromisso com a
ciência
Reitor: árbitro e moderador
Apelo a lógicas burocráticas e políticas
Reitor: primus inter pares
Político e académico autónomo
Conciliador de interesses, aproveitando
perícia dos pares e normas burocráticas
Legitimidade  capacidade de acionar
lógicas colegiais e burocráticas
Compromisso  produção autónoma de
políticas
em confronto
com
lógicas
burocráticas
Capacidade de mobilizar ou neutralizar
o aparato burocrático  estratega
Legitimidade  mandato para o qual
foi escolhido pelos pares
Compromisso

projeto
sufragado
e estabelecimento da agenda e do projeto
educativo da universidade
UNIVERSIDADE AGÊNCIA
IDEOLÓGICA
UNIVERSIDADE TORRE DE
MARFIM
Reitor: delegado do ministério
Executor das políticas da tutela
Reitor: “funâmbulo” negociador
Conciliador de interesses
Transmissor das orientações superiores
Chefe hierárquico burocrata  preservar
interesses do Estado
Legitimidade  mandato da tutela
Compromisso
 apelo às normas
burocráticas para gerar conformidade
com as orientações superiores
Mobiliza
lógicas
burocráticas
e
interesses colegiais dos pares
Legitimidade  articular burocracia e
colegialidade: harmonia organizacional"
Compromisso  aproveitar recursos
providos por ambos os modos de
regulação para viabilizar as políticas
BUROCRÁTICAS
Hierarquização
Centralização
Controlo estatal
Socialização
normativa
Padronização
Compromisso com
a ordem social
Conflitualidade
Ambiguidade
Objectivos ambíguos e incertos
UNIVERSIDADE COLISEU
Articulação entre modos de regulação  ação convergente
Considerações finais
O regime de tutela no ensino superior em Angola tem implicações na gestão
universitária e na atividade dos reitores, cuja ação tem sido influenciada pelas
exigências e normativos do MESCT. Trata-se, no contexto de uma administração
burocrática centralizada, de uma “gestão por controlo remoto”, que vem coartar a
autonomia das universidades públicas, convertendo-as em extensões do Estado o que
abre espaço a uma intervenção excessivamente reguladora e controladora da tutela,
justificada pela necessidade de estabelecer uma certa ordem na gestão do sistema.
Assim, a gestão universitária, influenciada pelas lógicas centralizadoras
reforçadas pelos princípios do Estado regulador e avaliador, obriga os reitores a agir no
sentido de executar as determinações ministeriais e seguir as instruções superiores, o
que gera uma cultura de obediência. Esta “gestão à pressão”, sujeita às lógicas da
uniformidade e do controlo, restringe a margem de autonomia dos reitores e a sua
capacidade de influência sobre a dinâmica universitária deixando a instituição refém do
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Estado. Deste modo, é colocada em causa a ideia de autonomia universitária a qual
requer outro tipo de gestão, de natureza emancipatória e liberta das peias tutelares,
permitindo à universidade estatal, assumida como locus de produção de políticas,
salvaguardar os seus próprios interesses e projetos.
Neste sentido, os reitores seriam encarados como representantes dos interesses
académicos, decidindo em contexto de colegialidade e assumindo as necessidades e
interesses da universidade como critérios para uma ação contextualizada em prol do
desenvolvimento da instituição, o que os obrigaria a demarcar-se da tutela, instituindose uma “gestão do interesse doméstico”. Isto corresponde à conceção da universidade
como “arena política” (Baldridge, 1971; Bush, 1986) onde os atores dispõem de
suficiente autonomia para decidir em função de interesses, objetivos e projetos que
comprometem a universidade face à comunidade que serve.
Aos reitores cabe assumir o compromisso com o desenvolvimento da instituição
numa base colegial e implantar um estilo de gestão baseado na participação dos
docentes, considerados profissionais dotados de perícia e autonomia. Esta atitude será
um passo importante para o resgate da autonomia de que as universidades estatais
necessitam para a reafirmação da gestão democrática. Até lá, os reitores viverão no “fio
da navalha”, tendo de atuar ora como representantes do ministério, de quem são
delegados, ora como representantes dos pares da academia de que são membros de
pleno direito. Neste caso, seriam os guardiães dos interesses da comunidade académica,
agindo numa lógica de afirmação dos interesses da universidade segundo o seu projeto
de desenvolvimento, assumido na base da responsabilidade perante a tutela.
A assunção do reitor como primus interpares remete-nos para a repolitização da
gestão universitária, o que permite contrariar a tendência para a governamentalização da
universidade (Silva, 2004, p. 408) e contribuir para a institucionalização de uma gestão
emancipadora, fundada na ética de serviço público e baseada num plano estratégico de
desenvolvimento construído segundo os princípios da autonomia e baseado nos
interesses intrínsecos da universidade. Por outro lado, o restabelecimento do equilíbrio
entre o poder político da tutela e o poder académico (Simão, Santos & Costa, 2002, p.
71) que sustenta a dinâmica organizacional é uma condição vital para revalorizar a
função dos reitores e restaurar a autonomia universitária pois é esta a dimensão que
define a essência de uma universidade. Assim, por mais centralizadora que seja a
administração, haverá sempre espaço para a afirmação do projeto académico de cada
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universidade de que o reitor é o seu principal responsável. Este deixará de ser apenas o
representante da tutela na universidade para se assumir como líder que define, orienta e
atua segundo um programa estratégico que concretiza a missão da universidade.
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Eugénio Alves da Silva