ENTRE O MOSTRAR E O ESCONDER: O CINEMA COMO ARTE DO OLHAR NOS
PROCESSOS EDUCACIONAIS
Damianne Aparecida de Sampaio
Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil
Resumo
O fio condutor deste trabalho é a problematização que envolve o cinema enquanto uma arte do olhar
que se constitui por artifícios que são capazes de ficcionalizar o real. A partir disso, é possível
questionar sobre como a construção da obra cinematográfica influi sobre aquele que a aprecia. Nesse
sentido, faz-se necessário pensar sobre uma aproximação entre esta constituição junto aos processos
educacionais.
Palavras-chave: cinema; processos educacionais; ficcionalização do real.
Resumen:
El hilo conductor de este trabajo es la problematización que envuelve al cine como un arte
sobre la mirada que se constituye por dispositivos capaces de ficcionalizar lo real. A partir de
esto, es posible cuestionar acerca de cómo la construcción de las obras cinematográficas
influyen sobre aquello que se aprecia. En este sentido, es necesario pensar una posible
aproximación entre esta configuración y los procesos educativos.
Palabras-claves: cine; procesos educativos; ficcionalización de lo real.
ENTRE O MOSTRAR E O ESCONDER: O CINEMA COMO ARTE DO OLHAR NOS
PROCESSOS EDUCACIONAIS
Cinema e ficcionalização do real
Procuro neste texto ocupar-me de uma construção inicial que visa o cinema como uma
arte do olhar que na medida em que ficcionaliza o real permite-nos experimentá-lo. Se
considerarmos que ficção, do latim fictione significa inventar, então o cinema ao ‘inventar’
uma realidade produz, paradoxalmente, outra realidade. Por assim dizer, suspeito que o
cinema seria um meio de ficcionalização do real. A tentativa que faço, nesse sentido, é
aproximar essa problematização junto a possíveis implicações educacionais.
Essa construção não é simples, pois implica pensar sobre o que é o real, como o
percebemos e como isso seria uma experiência a partir do cinema. Ao mesmo tempo, não
desejo ater-me a construções objetivantes que buscam o ‘conhecimento do real’ ou a sua
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‘transformação’. Na verdade, o exercício de pensamento ao qual me desafio está voltado a
refletir sobre como o cinema pode trazer o fulgor do real. Fulgor este que não é fácil de ser
percebido, pois aquilo que nos escapa que foge do nosso controle de compreensão e
determinação faz-nos desestabilizar. É nessa abertura para o inesperado que pode estar a
potência para a experiência do real a partir da fruição fílmica em diversos contextos, com
ênfase no educacional ao qual me proponho pensar.
Desejamos a realidade, mas ao mesmo tempo, carece-nos reconhecê-la. O anseio pelo
real aparece como se houvesse uma incompletude na vida e em sua própria vitalidade. “Esse
sentimento que nos faz dizer que esta vida não é vida, ou que a vida está em outra parte. Se
temos vontade de viver, não é porque não estejamos vivos, e sim porque vivemos uma vida
desvitalizada, uma vida que lhe falta vida” (LARROSA, 2008, p. 185). O real que desejamos
parece não caber naquilo que queremos dele mesmo, como se fôssemos à procura de um real
que escapasse a si próprio.
Ao remeter-me ao cinema considero que esta arte é construída através de várias
dimensões: a decupagem, a fotografia, a montagem, entre uma série de outros elementos
técnicos e estéticos que contribuem para que a obra exista e possa ser apreciada. Talvez o que
há de comum entre essas dimensões seja o rastro do real que é deixado na linguagem
cinematográfica. O real ao qual me refiro é justamente aquele vivido pelos sujeitos em sua
relação com o mundo. Este somente possui a possibilidade de existir verdadeiramente se for
experimentado “o real é o que nos passa, nos acontece na experiência” (LARROSA, 2008, p.
186). O sujeito dessa experiência, como nos mostra o filósofo, é justamente aquele exposto,
sensível e receptivo. Então, a exposição ao filme possibilita a este sujeito contemplador,
padecente e passivo uma aproximação com o real, na medida em que ao deixar-se afetar pelo
o que o cinema coloca em voga na tela este sujeito cria novas formas de habitar e ser habitado
pelo mundo. Quiçá por este motivo o cinema nos ajude a pensar o educativo.
Entre os territórios dos quais habitam o sujeito contemplador e o filme talvez a tela de
projeção seja o elemento que ao colocar essas duas realidades numa certa distância, possui a
possibilidade de aproximá-las. Isso ocorre pela própria natureza de existência da tela. Esta
possui em seu significado uma ambiguidade que existe, a meu ver, em duas direções: a
primeira é a potencialidade de mostrar, de exibir uma imagem, deixando-a transparecer para
que seja objeto de contemplação. A segunda direção é o que a tela de projeção é capaz de
esconder. Às vezes, imagens não são mostradas, palavras deixam de ser ditas em diálogos que
se tornam curtos, mas esse ‘esconder’ existe na própria potencialidade de mostrar e de
possibilitar novos olhares para um vazio capaz de ansiar o desejo de realidade.
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Entre o mostrar e o esconder: o cinema como arte do olhar nos processos educacionais
“As imagens projetadas na tela seduzem o espectador a nelas penetrarem, pois, apesar
de serem artificiais do ponto de vista da técnica que as produzem, são reais quando
consideramos que a consciência do espectador é tomada pela temporalidade dessas imagens”
(BARRETO, 2014, p. 76). Há, nesse sentido, um artifício do cinema que visa essa
aproximação com o espectador. O posicionamento da câmera, a captura de determinada
imagem, o foco, os planos escolhidos, as sequências exploradas e construídas são frutos de
uma relação particular com o real e existem a partir de uma escolha.
No ecrã, ou tela de projeção, a imagem é projetada em duas dimensões, permitindonos percebê-la de forma análoga ao espaço em que habitamos, trazendo uma sensação de
realidade. O cinema, como nenhuma outra arte, é capaz de produzir no movimento, na
duração e no som o brilho do real ficcionalizado na tela no qual mergulhamos. Esses
artifícios, ao comporem a obra cinematográfica, são capazes de nos fazer crer em sua
autenticidade. Nesse sentido, é possível concordar com Aumont (1995) ao defender que todo
filme é um filme de ficção.
Ao mesmo tempo em que ficcionaliza, o cinema é capaz de proporcionar a experiência
do real a partir daquilo que é exposto aos nossos olhos. Se essa experiência é um modo de
relação com o mundo a partir daquilo que nos passa é preciso considerar que
o real só acontece na medida em que escapa ao que já sabemos, ao que já
pensamos. O real da experiência supõe uma dimensão de estranheza, de
exterioridade, de alteridade. Por isso, o desejo de realidade é também um desejo de
alteridade. Mas de uma alteridade que não tenha sido anteriormente capturada pelas
regras da razão identificante e identificadora. Uma alteridade que se mantenha
como tal, sem identificar, em sua dimensão de surpresa (LARROSA, 2008, p. 187
– grifo do autor).
Força de realidade e ‘transmissão de sentido’
A imagem exposta em tela possui uma força de realidade não apenas pela reprodução
da aparência, mas pelo próprio processo de escolha do artista, que em si, já envolve uma
relação com o mundo e formas de se relacionar com o real. Assim, é possível questionar: seria
o cinema um artifício na produção do real a partir da forma como ele o ficcionaliza? Como
pensar o educativo nesse processo?
O cinema é capaz de amalgamar as dimensões temporais, permitindo além da
ficcionalização do real, a sua recriação. Essa dinâmica explicita um tempo que é abstrato,
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próprio da imagem cinematográfica. O filme, em sentido material, quando projetado apresenta
imagens nas quais percebemos o movimento que nelas é colocado. Esse movimento, bem
como sua duração, obedece a uma diligência que pertence a arte cinematográfica. “No
entanto, se por um lado, o cinema é resultado da fragmentação do movimento em fotografias
imóveis, com a restauração aparente do fluxo contínuo pela freqüência com que os
fotogramas são exibidos, por outro, pode fazer coincidir a vida interior do espectador com o
tempo esculpido na tela de projeção” (BARRETO, 2015, p. 75). Ao ‘esculpir’ o tempo, o
cinema entra em diálogo com o espectador que ao contemplar esta arte pode experimentar o
real a partir da própria maneira com que o tempo é apresentado no filme.
Expostos a uma obra cinematográfica ficamos diante de uma atmosfera diferente
daquela presente nos espaços habitados cotidianamente. Na sala de projeção (ou em uma sala
no espaço escolar) o espectador permanece sentado em uma poltrona, afetado pela escuridão
que o cerca e rodeado de pessoas que, assim como ele, possuem um mundo particular
permeado de construções acerca deste mesmo espaço em que habitam no momento de
exibição de um filme. De repente o brilho da tela coloca em voga uma imagem. Percebe-se
neste instante o contato com um mundo ficcional. Com a projeção do filme as dimensões que
separam o real concebido pelos espectadores, do ficcional acoplado ao cinema se aproximam,
ficando totalmente imbricadas, o que faz, muitas vezes, sairmos da sala de projeção afetados.
Retiramo-nos da sala, mas o filme não dispensa sua presença em nossa mente, deixando-nos
na companhia de toda sua potência. Assim, somos capazes de demorar nosso pensamento
sobre vários aspectos por ele provocados.
O ato de crença entrelaçado na relação cinematográfica não é um gesto simples...
Acreditar dá medo. Medo faz acreditar. Trata-se, para o espectador, de ao mesmo
tempo gozar da potência do cinema e dela se proteger. Acionamento de toda uma
cadeia de denegações. Sei muito bem que é apenas uma imagem, mas mesmo
assim quero a coisa... Isso até a denegação da imperfeição, pois uma representação
cinematográfica nunca alcança a plenitude de uma ilusão sem manchas ou falhas.
Quase tudo claudica e, no entanto, funciona (COMOLLI, 2008, p. 94).
Jean Luc Godard (apud Bergala, 2008, p.30) lembra que a arte é a exceção, e se a
escola é, por natureza, o lugar da construção e do fortalecimento das regras, cabe-nos pensar
no cinema como lugar de exceção. Assim, pensar esta arte no trabalho do professor na sala de
aula, ou em qualquer outro contexto educativo é um passo importante para oportunizar aos
alunos e aos professores a fruição e a experiência que o cinema possibilita.
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Entre o mostrar e o esconder: o cinema como arte do olhar nos processos educacionais
A exposição à obra cinematográfica permite um momento de passagem onde o
espectador adentra o território do filme. “A passagem de um território para o outro se dá num
acordo tácito entre o que os olhos e os ouvidos do espectador capturam e aquilo que ele
concebe como realidade” (BARRETO, 2015, p. 76). O cinema convida o espectador a fazer
parte do espetáculo na forma com que se assemelha ao espaço deste
A impressão da analogia com o espaço real produzido pela imagem fílmica é,
portanto, poderosa o suficiente para chegar normalmente a fazer esquecer não
apenas o achatamento da imagem, mas, por exemplo, quando se trata de um filme
preto e branco, a ausência de cores, ou a ausência de som, se o filme for mudo – e
também fazer esquecer, no quadro, que sempre permanece presente, mas o fato de
que, além do quadro, não há mais imagem (AUMONT, 1995, p. 24).
De acordo com o teórico a impressão do movimento apresenta-se a nós no formato de
uma imagem plana e delimitada por um quadro, mas ao revelar um fragmento do mundo as
imagens transbordam suas bordas. Segundo o autor o quadro é para Bazin, uma janela aberta
para o mundo. A feição deste mundo na tela coloca em voga o poder da imagem
cinematográfica de preservar a autenticidade da duração e, nesse sentido, trazer a concretude
do momento vivido.
Essa concretude possibilita trazer ao espectador, em contexto escolar, por exemplo,
uma fruição fílmica a partir da forma com a qual a imagem é apresentada em determinado
filme. A possibilidade de pensar sobre uma cena onde os acontecimentos ocorrem de forma
demorada, sem grandes ações, possibilita a este espectador, seja ele aluno ou professor, uma
visão da produção cinematográfica, contribuindo, ainda, para que este se aproxime de uma
forma de realidade. Poderíamos chamar esse acontecimento de experiência poética?
No campo da Educação há proposições que consideram que o cinema capaz de
‘educar’ é aquele que nos faz pensar - “e que (nos) faz pensar não somente sobre o cinema em
si mesmo, mas, igualmente, sobre as mais variadas experiências e questões que ele coloca em
foco” (XAVIER, 2008, p. 14). Por não ser simplesmente um instrumento a arte “tanto para
alunos quanto para professores, deve ser, na escola, uma experiência de outra natureza que
não a do curso localizado” (BERGALÁ, 2008, p. 30). Nesse sentido, pensar o cinema em sua
relação com a educação é vê-lo para além de uma função instrumental que o reduz ao uso
didático nas salas de aula ou que procura através da arte a transmissão de um sentido que se
deseja construir no espectador. Que impacto isso traz para a sua relação com arte
cinematográfica? Ao mesmo tempo, como habitá-la de outra forma?
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O uso didatizado da arte é carregado de intencionalidade e de aplicação prática de
determinado discurso. No entanto, “o real não é intencional” (LARROSA, 2008, p. 188).
Sendo assim, não pode ser objetivado, pois mesmo que o objetivo seja válido, só fará
aumentar a distância que dele nos separa. Além disso, é possível encontrar ou transmitir um
‘sentido’ em arte?
Penso que o cinema, enquanto uma arte do olhar tem a potencialidade de nos permitir
ver o mundo de outra maneira, de nos impulsionar para algo indeterminado, mas isso somente
torna-se possível a partir da exposição, da receptividade e da abertura do espectador à obra.
“O tipo de relação com o que existe e que não é posta a perder, ou não é desperdiçada, não
parte de posição alguma, se não que é, literalmente, ‘ex-posição’” (ibid., p. 186). O cinema é
uma arte de olhar e nos possibilita ver o mundo de outro modo, por isso traz com tanta força o
desejo de realidade. Quem sabe, partindo desse ponto, o real poderá ser experimentado no
contexto educativo, bem como em outros contextos.
Implicações educacionais a partir do cinema
Deleuze (2013) nos fala que há dois regimes de imagem: a imagem-movimento
presente no cinema clássico e a imagem-tempo presente no cinema neo-realista. Tendo isso
em vista, procuro enunciar algumas diferenciações que considerem essa proposição. Seria
extenso narrar toda a problematização que envolve estes dois regimes de imagem. Sendo
assim, limito-me a apenas considerar algumas de suas distinções e implicações para o
educativo na tentativa de iniciar um diálogo acerca de tais proposições das quais pretendo
aprofundar futuramente.
No cinema de qualquer um desses movimentos é evidente que o realismo procede de
artifícios. “Toda estética escolhe forçosamente entre o que vale ser salvo, perdido e recusado,
mas, quando se propõe essencialmente, como faz o cinema, a criar a ilusão do real, tal escolha
constitui sua contradição fundamental, a um só tempo inaceitável e necessária” (BAZIN,
2014, p. 292). Nas palavras de André Bazin esta contradição é necessária na medida em que
envolve uma escolha e inaceitável, pois esta escolha se faz à custa da própria realidade a qual
o cinema quer reconstituir.
O movimento enquanto artifício em uma produção cinematográfica é como um corte
do tempo, da sua duração. No cinema clássico a montagem dos planos aparece enquanto uma
sucessão linear dos acontecimentos. As imagens agem e reagem umas sobre as outras de
maneira orgânica. De acordo com Machado (2009) a imagem-movimento encadeia três tipos
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Entre o mostrar e o esconder: o cinema como arte do olhar nos processos educacionais
de imagem, junto a três tipos de planos cinematográficos, quais sejam: a imagem-percepção
corresponde ao plano geral que pode ser objetiva ou subjetiva; a imagem-afecção corresponde
ao close ou primeiro plano e; a imagem-ação corresponde ao plano médio. É a montagem que
oferece o todo do filme, junto ao enquadramento e à determinação do plano cinematográfico.
Essa maneira de construir uma obra cinematográfica imprime no contemplador uma
forma de olhar para o filme, permeada também pela escolha do diretor. Se um filme é
construído de forma linear, o olhar daquele que o assiste tende a acompanhar essa direção em
outras produções. A forma como se cria as imagens no cinema clássico faz com que o
espectador não se confunda nas sequências do filme. Nesse sentido, a exposição a outras
narrativas fílmicas que não correspondam ao padrão do cinema clássico podem provocar
estranhamento e, até mesmo, resistência.
Acerca disso, é possível suspeitar que ocorram algumas implicações educacionais. Se
nos remetermos a uma escola na qual a exibição de filmes é uma possibilidade notaremos que
a forma com que os alunos e professores olham para um filme está atrelada à própria
formação que eles tiveram em relação a esta arte. O que quero dizer é que na medida em que
somos expostos a narrativas diferenciadas, ou seja, quando há a ampliação do repertório
fílmico há a possibilidade do espectador pensar sobre a construção dessas narrativas e de
deixar-se afetar pelo o que elas colocam em voga.
Quando há uma sobreposição de ações - presente nos filmes comerciais de grande
bilheteria (como os filmes do gênero ‘ação’) - o olhar daquele que o assiste estará, certamente,
voltado para a compreensão de quem é o herói e de suas atitudes diante de um problema
determinado, do qual as ações buscam uma resolução, implicando em um final feliz para os
personagens. As possibilidades de contemplação sobre uma cena específica, sobre a maneira
com a qual um objeto toma sentido no filme não é capaz de existir com tanta força devido ao
próprio encadeamento orgânico do qual o cinema clássico impõe ao espectador.
Outra possibilidade cinematográfica é a neo-realista (cinema moderno). Com o
término da Segunda Guerra Mundial, os países europeus ficaram devastados. Em meio à
miséria, à insegurança de uma vida sem sentido e destroçada pela guerra as formas de vida se
modificaram. Uma nova maneira de se pensar a cinematografia, presente no ânimo dos países
afetados pela guerra, começou a ser desenvolvida na Itália: o neo-realismo. Já não havia uma
resposta às situações, ou soluções plausíveis e mensuráveis para um problema: o que se
revelou nessa nova forma de se fazer cinema foi justamente a indeterminação humana, o
padecer do homem diante de uma situação da qual ele não consegue encontrar uma saída
possível ou imaginada.
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II SIEFPE – Faced-UFJF – Outubro de 2015
O neo-realismo italiano traz a possibilidade de uma nova forma de ver e fazer cinema.
O real proposto por esse movimento não é algo representável ou decifrável. Pelo contrário, o
real é tomado como algo ambíguo a ser decifrado. O cinema neo-realista possui uma
dimensão estética e filosófica profunda na medida em que, diferente do cinema clássico que
se caracteriza por ter a ação como peça fundamental, vai além dos clichês.
Nessa nova forma de cinema, abandonou-se o regime da imagem-movimento, para a
prevalência da imagem-tempo. O vínculo sensório-motor deu lugar às situações ópticas.
Houve, nesse sentido, uma mudança na relação entre movimento e tempo. Esse novo regime
de imagem com situações puramente ópticas e sonoras trouxe consigo uma nova relação dos
planos na montagem, onde cada imagem possui algo novo. O tempo em estado puro, presente
no cinema neo-realista se aproxima da dimensão virtual do tempo que deixa de ser
cronológico.
Trata-se de um cinema em que o personagem registra mais do que age e tem a
revelação ou a iluminação de alguma coisa de intolerável, de insuportável, de uma
situação impossível de ser vivida; um cinema em que se percebe alguma coisa forte
demais, injusta demais, uma brutalidade visual e sonora insuportável que excede a
nossa própria capacidade sensório-motora (MACHADO, 2008, p. 287).
Deleuze (2013) afirma que o neo-realismo define-se por ser “essa ascensão de
situações puramente óticas (e sonoras, embora não houvesse som sincronizado no começo do
neo-realismo) que se distinguem essencialmente das situações sensório-motoras da imagemação no antigo realismo” (p. 11). Essa ‘ex-posição’ a situações óticas possibilitam um novo
olhar sobre o cinema. O fato dos personagens serem, muitas vezes, neste tipo de cinema,
pessoas comuns propõe novas possibilidades de aproximação entre aquele que contempla e a
obra contemplada. A duração que se faz presente na imagem cinematográfica convida o
espectador a olhar para outro lugar. Diferente do cinema clássico, o cinema realista, em
especial o neo-realismo italiano, traz o movimento como algo dependente do tempo, pois a
ênfase está coloca naquilo que a imagem mostra em sua duração e não em seu corte.
Tarkovskiaei (2010) nos fala que o tempo é nossa condição de existência, nossa vida
possui uma dimensão temporal e o cinema é capaz de imprimi-lo na forma de evento
concreto. “(…) Um evento concreto pode ser constituído por um acontecimento, uma pessoa
que se move ou qualquer objeto material; além disso, o objeto pode ser apresentado como
imóvel e estático, contanto que essa imobilidade exista no curso real do tempo”
(TARKOVSKIAEI, 2010, p. 71). Nesse sentido, é possível compreender que o cinema é uma
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Entre o mostrar e o esconder: o cinema como arte do olhar nos processos educacionais
arte que faz durar o tempo através da imagem. “O espectador está em busca de uma
experiência viva, pois o cinema, como nenhuma outra arte, amplia, enriquece e concentra a
experiência de uma pessoa - e não apenas a enriquece, mas a torna mais longa,
significativamente mais longa” (ibid., p. 72).
A temporalidade esculpida no cinema permite imaginar outros mundos possíveis,
ficcionalizando, recriando o real. As possibilidades educacionais a partir deste cinema podem
ser riquíssimas, pois libertam o espectador/contemplador das determinações que buscam um
sentido na obra. Já não há apenas construções de sentidos, mas construções de experiências
não intencionais que podem ser potentes para uma aproximação com o real do qual eu narrava
no início deste texto. Se assim for, o que seria habitar o cinema e a educação sem vinculá-lo a
transmissão de um sentido ‘aparente’? Como pensar o educativo por outras vias que não
sejam as das determinações, das construções de sentidos? E, para recomeçar, como habitar
poeticamente esses dois campos?
Referências
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BERGALA, Alain. A Hipótese – Cinema. Rio de Janeiro: Booklink, CINEAD- LISEFE/UFRJ, 2008.
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MACHADO, Roberto. Deleuze e a crise do cinema clássico. In: MACHADO, Roberto.
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TARKOVSKIAEI, Andreaei Arsensevich. Esculpir o tempo. Tradução: Jefferson Luiz
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XAVIER, Ismail. Um Cinema que “Educa” é um cinema que (nos) faz pensar. Educação e
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