alice munro
Vida querida
Contos
Tradução
Caetano W. Galindo
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Copyright © 2012 by Alice Munro
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Título original
Dear Life
Capa
Elisa von Randow
Foto de capa
Keystone/ Corbis/ Latinstock
Preparação
Ana Cecília Agua de Melo
Revisão
Marina Nogueira
Jane Pessoa
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Munro, Alice
Vida querida / Alice Munro; tradução Caetano W. Galindo.
— 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Título original: Dear Life
isbn 978-85-359-2367-4
1. Ficção canadense I. Título.
13 - 12523
cdd
- 813
Índice para catálogo sistemático:
1. Ficção: Literatura canadense
813
[2013]
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Sumário
Que chegue ao Japão, 7
Amundsen, 34
Deixando Maverley, 70
Cascalho, 93
Recanto, 111
Orgulho, 134
Corrie, 156
Trem, 177
Com vista para o lago, 218
Dolly, 234
finale
O olho, 257
Noite, 271
Vozes, 285
Vida querida, 297
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Que chegue ao Japão
Quando Peter pôs a mala dela no trem ele pareceu querer
sumir logo de vista. Mas não ir embora. Ele explicou a ela que
simplesmente receava que o trem fosse começar a se mover. Da
plataforma, olhando para a janela delas lá em cima, ele ficou
acenando. Sorrindo, acenando. O sorriso para Katy era aberto,
ensolarado, sem uma única sombra de dúvida, como se ele acreditasse que ela continuaria sendo um encanto para ele, e ele
para ela, para sempre. O sorriso para sua mulher parecia esperançoso e confiante, e havia nele algum tipo de determinação.
Alguma coisa que não podia facilmente ser posta em palavras e
que na verdade talvez nunca pudesse. Se Greta tivesse mencionado uma coisa dessas, ele teria dito, Não seja ridícula. E ela teria
concordado com ele, achando que não era normal que pessoas
que se viam todo dia, o tempo todo, tivessem que ficar se dando
qualquer tipo de explicações.
Quando Peter era bebê, a mãe dele o carregou através de
umas montanhas cujo nome Greta vivia esquecendo, para sair
da Tchecoslováquia soviética e entrar na Europa Ocidental. Ti7
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nha mais gente, claro. O pai de Peter queria ter ido com eles, mas
tinha sido mandado para um sanatório logo antes da data da
partida secreta. A ideia era que ele fosse atrás deles quando pudesse, mas acabou morrendo.
“Eu li umas histórias assim”, Greta disse, quando Peter falou nisso pela primeira vez. Ela explicou como nas histórias o
bebê começava a chorar e invariavelmente tinha que ser sufocado ou estrangulado para o barulho não pôr todo o grupo de ilegais em risco.
Peter disse que nunca tinha ouvido uma história dessas e
não saberia dizer o que sua mãe faria em tais circunstâncias.
Mas o que ela fez mesmo foi chegar à Colúmbia Britânica,
onde melhorou o inglês e conseguiu um emprego de professora do
que então se chamava Práticas Comerciais para alunos do colegial. Ela criou Peter sozinha e o mandou para a universidade, e
agora ele era engenheiro. Quando ela ia ao apartamento deles,
e mais tarde à casa deles, sempre ficava sentada na sala de entrada, sem nunca entrar na cozinha, a menos que Greta a convidasse. Era o jeito dela. Ela levava o não prestar atenção ao extremo.
Não prestar atenção, não se meter, não dar palpite, muito embora
deixasse a nora muito para trás em toda e qualquer arte ou ofício
do lar.
Além disso, ela se livrou do apartamento onde Peter havia
crescido e se mudou para um menor, sem quarto, que só tinha
espaço para um sofá-cama. Então Peter não pode vir ficar na casa
da mamãe? Greta provocou, mas ela fez cara de espantada. Piadas
a faziam sofrer. Talvez fosse um problema de língua. Mas o inglês
agora era a língua habitual dela, e na verdade era a única língua
que Peter sabia. Ele tinha estudado Práticas Comerciais — embora não com a mãe — quando Greta estava estudando o Paraíso
perdido. Ela evitava tudo que era útil como se fosse uma doença
contagiosa. Aparentemente ele fazia o contrário.
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Com o vidro entre eles, e sem que Katy deixasse os acenos
diminuírem de velocidade, eles se permitiram trocar expressões
de uma boa vontade cômica ou até insana. Ela pensou em como
ele era bonito, e como parecia não ter consciência disso. Ele estava com o cabelo cortado à escovinha, na moda na época —
sobretudo se você era alguma coisa parecida com um engenheiro —, e a pele clara dele nunca corava como a dela, nunca ficava
com manchinhas de sol, mas estava sempre uniformemente bron­
zeada, em qualquer estação do ano.
As opiniões dele eram algo parecidas com sua compleição.
Quando eles iam ao cinema, ele nunca queria falar do filme depois. Dizia que tinha sido bacana, ou bem bacana, ou legal. Não
via sentido em ir além. Via televisão, lia um livro mais ou menos
do mesmo jeito. Ele tinha paciência com coisas do gênero. As
pessoas que arranjavam aquilo tudo provavelmente estavam fazendo o melhor que podiam. Greta discutia, perguntando rispida­
mente se ele diria a mesma coisa de uma ponte. As pessoas que a
construíram fizeram o melhor que podiam, mas o melhor que po­
diam não era bom o suficiente, então a ponte desmoronou.
Em vez de discutir, ele só ria.
Não era a mesma coisa, ele dizia.
Não?
Não.
Greta devia ter percebido que essa atitude — desligada, tolerante — era uma bênção para ela, porque ela era poeta, e havia coisas nos poemas dela que de maneira alguma eram alegres
ou fáceis de explicar.
(A mãe de Peter e o pessoal do trabalho dele — os que sabiam desse fato — ainda diziam poetisa. Ela tinha treinado Peter
para não fazer isso. De resto, nenhum treinamento foi necessário. Os parentes que ela tinha deixado para trás na vida, e as
pessoas que ela hoje conhecia enquanto desempenhava seu papel
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de dona de casa e mãe, não tinham que ser treinadas porque
nada sabiam a respeito dessa peculiaridade.)
Ia ficar cada vez mais difícil de explicar, conforme os anos
fossem passando, o que exatamente era o.k. naquele período e o
que não era. Dava para dizer, enfim, o feminismo não era. Mas
aí você ia ter que explicar que feminismo não era nem uma palavra que as pessoas usavam. Aí você ia ficar toda enrolada dizendo que ter qualquer ideia séria, quem dirá uma ambição, ou
quem sabe até ler um livro de verdade, podia parecer uma coisa
suspeita, com alguma relação com o fato de seu filho ter pegado
pneumonia, e um comentário sobre política numa festa do escritório podia custar a promoção do seu marido. Independente do
partido político. O problema era uma mulher abrir a matraca.
As pessoas iam rir e dizer Ah, claro que você está brincando,
e você teria que dizer, Bom, mas não tanto assim. Aí ela ia dizer,
Mas uma coisa, por outro lado, era que se você estivesse escrevendo poesia ser mulher era de certa forma mais seguro que ser
homem. Era aí que a palavra poetisa vinha a calhar, como uma
rede de fios de algodão-doce. Peter não pensaria assim, ela disse,
mas lembre-se que ele nasceu na Europa. Ele teria entendido,
de todo modo, o que os homens que trabalhavam com ele achariam dessas coisas.
No verão daquele ano, Peter ia passar um mês ou quem sabe
mais se ocupando de um trabalho que estavam fazendo em Lund,
bem longe, na verdade o ponto mais ao norte que dava para atingir no continente. Não havia acomodações para Katy e Greta.
Mas Greta mantivera-se em contato com uma moça que
tinha trabalhado com ela na biblioteca de Vancouver, que agora
estava casada e morando em Toronto. Ela e o marido iam passar
um mês na Europa naquele verão — ele era professor — e ela
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havia escrito para Greta perguntando se Greta e família poderiam
lhe fazer o favor — ela era muito educada — de ocupar a casa
de Toronto por um tempo, para não deixá-la vazia. E Greta tinha
respondido contando do trabalho de Peter, mas aceitando a oferta para ela e para Katy.
Era por isso que agora eles estavam acenando sem parar na
plataforma e no trem.
Havia uma revista naquele tempo chamada The Echo An­
swers, publicada sem regularidade em Toronto. Greta tinha acha­
do a revista na biblioteca e mandado uns poemas. Dois deles tinham sido publicados, e o resultado foi que quando o editor da
revista viajou a Vancouver, no outono anterior, ela foi convidada
para uma festa, com outros escritores, para conhecê-lo. A festa foi
na casa de um escritor cujo nome lhe era familiar, parecia, desde que ela se conhecia por gente. Foi no fim da tarde, quando
Peter ainda estava no trabalho, então ela contratou uma baby-­
-sitter e pegou o ônibus North Vancouver passando pela ponte
Lions Gate e pelo Stanley Park. Aí ela teve que ficar esperando
na frente da Hudson’s Bay por um trajeto longo até o campus da
universidade, que era onde o escritor morava. Descendo no
ponto final, achou a rua e foi andando enquanto espiava os números das casas. Ela estava de salto alto, o que a deixava consideravelmente mais lenta. E também estava com o vestido preto
mais sofisticado que tinha, de zíper nas costas e agarrado na
cintura e sempre meio apertado demais no quadril. Ela ficava
meio ridícula com aquele vestido, pensou, enquanto seguia
meio tropeçando pelas ruas curvas sem calçadas, a única pessoa
por ali na tarde que morria. Casas modernas, janelas imensas,
como em qualquer subúrbio endinheirado, nem de longe o tipo
de vizinhança que ela tinha imaginado. Ela estava começando a
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se perguntar se não havia anotado errado o nome da rua, e esse
pensamento não a deixou infeliz. Ela podia voltar para o ponto
de ônibus, que tinha um banquinho. Podia tirar os sapatos e se
preparar para o longo trajeto solitário de volta para casa.
Mas quando viu os carros estacionados, viu o número, era
tarde demais para voltar atrás. Vazava barulho pela porta fechada e ela teve que tocar a campainha duas vezes.
Foi recebida por uma mulher que parecia estar esperando
outra pessoa. Recebida era a palavra errada — a mulher abriu a
porta e Greta disse que devia ser ali o lugar da festa.
“O que parece?”, a mulher disse, e se apoiou no umbral. A
entrada ficou barrada até que ela — Greta — disse: “Posso entrar?” e veio um movimento que pareceu causar uma dor considerável. Ela não pediu a Greta para segui-la, mas Greta a seguiu
mesmo assim.
Ninguém falou com ela nem prestou atenção nela, mas dali a pouco uma adolescente enfiou na cara dela uma bandeja
com copos do que parecia ser uma limonada cor-de-rosa. Greta
pegou um copo, e bebeu inteiro de um só gole, sedenta, aí pegou outro. Ela agradeceu a menina, e tentou começar uma conversa sobre a longa caminhada no calor, mas a menina não estava
interessada e lhe deu as costas, continuando o seu trabalho.
Greta seguiu em frente. Ela continuava sorrindo. Ninguém
olhou para ela com qualquer mostra de reconhecimento ou de
prazer, e por que deveriam fazê-lo? Os olhos das pessoas escorregavam a sua volta e aí elas seguiam com suas conversas. Riam.
Todo mundo menos Greta estava equipado de amigos, piadas,
meios segredos, todo mundo parecia ter encontrado alguém que
lhe desse as boas-vindas. A não ser os adolescentes, que ficavam
passando macambúzios com suas bebidinhas cor-de-rosa.
Mas ela não desistiu não. A bebida estava ajudando e ela decidiu que tomaria outra assim que a bandeja aparecesse. Procurou
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uma roda que parecesse estar com um buraco, onde ela pudesse
se inserir. Parecia ter encontrado uma quando ouviu nomes de
filmes sendo mencionados. Filmes europeus, como os que estavam começando a passar em Vancouver naquela época. Ela ouviu o nome de um que ela e Peter tinham ido ver. Os incom­
preendidos. “Ah, eu vi esse aí.” Ela disse isso em voz alta e
entusiástica, e todas do grupo olharam para ela e um deles, evidentemente um porta-voz do grupo, disse: “É mesmo?”.
Greta estava bêbada, claro. Licor No 1 da Pimm’s e suco
rosa de grapefruit engolido às pressas. Ela não se incomodou
com essa esnobada como poderia ter se incomodado numa situação normal. Só foi em frente, sabendo que de alguma maneira tinha perdido o norte mas sentindo que naquela sala havia
uma atmosfera algo inebriada de permissividade, e dava na mesma não fazer amigos, ela podia simplesmente ficar andando à
toa e criar seus próprios juízos.
Embaixo de uma arcada havia um punhado de gente que
era importante. Ela viu no meio de todo mundo o anfitrião, o
escritor cujo nome e rosto ela conhecia havia tanto tempo. Ele
falava em voz alta e acelerada e parecia haver um perigo em
torno dele e de uns outros homens, como se eles estivessem tão
prontos a cuspir um xingamento quanto a olhar para você. As
mulheres deles, ela concluiu, compunham o círculo em que ela
tinha tentado se encaixar.
A mulher que tinha atendido a porta não estava em nenhum desses grupos, por ser ela mesma escritora. Greta viu que
ela se virou quando a chamaram pelo nome. Era o nome de
uma colaboradora da revista em que ela também tinha sido publicada. Com esses precedentes, será que não era possível ela ir
até lá e se apresentar? Uma igual, apesar da frieza à porta?
Mas agora a mulher estava com a cabeça apoiada no ombro
do homem que a tinha chamado pelo nome, e eles não iam receber bem uma interrupção.
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Essa ideia fez Greta sentar, e como não havia cadeiras, ela
sentou no chão. Ela pensou uma coisa. Pensou que quando ia
com Peter a uma festa de engenheiros, a atmosfera era agradável
apesar de o papo ser chato. Isso era porque todo mundo tinha
uma importância determinada e aceita pelo menos por um tempo. Aqui ninguém estava seguro. Podiam falar de você pelas costas, mesmo que você fosse conhecido e publicado. Pairava sempre um ar de esperteza ou de nervosismo, não importa onde você
es­tivesse.
E ela já estava ficando desesperada por alguém que começasse uma conversinha qualquer.
Quando desenvolveu a teoria da atmosfera desagradável ela
se sentiu aliviada e não deu mais muita bola se alguém falava ou
não com ela. Tirou os sapatos e o alívio foi imenso. Sentou com
as costas apoiadas na parede e as pernas esticadas numa das vias
menos transitadas da festa. Ela não queria correr o risco de derramar o drinque no tapete, então virou o copo.
Um homem parou e a olhou de cima. Ele perguntou: “Como foi que você chegou aqui?”.
Davam pena dos pés pesados e chatos dele. Dava pena de
qualquer um que tivesse que ficar de pé.
Ela disse que tinha sido convidada.
“Claro. Mas você veio de carro?”
“A pé.” Mas isso não foi o bastante, e logo ela conseguiu dar
um jeito de entregar o que faltava.
“Eu vim de ônibus, e aí andei.”
Um dos homens do círculo especial agora estava atrás do
cara dos sapatos. Ele disse “Ideia excelente”. Ele de fato parecia
disposto a conversar com ela.
O primeiro homem não dava muita bola para o outro. Ele
tinha pegado os sapatos de Greta para ela, mas ela recusou, explicando que eles eram muito apertados.
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“Leve na mão. Ou eu levo. Você consegue se levantar?”
Ela procurou o homem mais importante, para ajudá-la,
mas ele não estava ali. Agora ela lembrava o que ele tinha es­
crito. Uma peça sobre os Doukhobors* que havia causado um
gran­de falatório porque os Doukhobors teriam que estar nus.
Claro que não eram Doukhobors de verdade, eram atores. E no
final não os deixaram ficar nus.
Ela tentou explicar isso para o homem que a ajudou a se
levantar, mas ele definitivamente não estava interessado. Ela
perguntou o que ele escrevia. Ele disse que não era esse tipo de
escritor, era jornalista. Ele estava de visita na casa, com o filho e
a filha, netos dos anfitriões. Eram eles — as crianças — que
passavam com os drinques.
“Letal”, ele disse, se referindo à bebida. “Criminoso.”
Agora eles estavam do lado de fora. Ela andava só de meias
pela grama, quase pisando numa poça.
“Alguém vomitou aqui”, ela disse ao seu acompanhante.
“É mesmo”, ele disse, e a acomodou num carro. O ar lá de
fora tinha alterado o humor dela, de um êxtase intranquilo para
algo que quase chegava ao constrangimento, ou até mesmo à
vergonha.
“Norte de Vancouver”, ele disse. Ela devia ter lhe dito isso.
“Tudo bem? Vamos indo. Lions Gate.”
Ela torcia para ele não perguntar o que ela estava fazendo
na festa. Se tivesse que dizer que era poeta, a situação atual dela,
aquele excesso todo, seria considerada horrendamente típica.
Não estava escuro lá fora, mas já era noite. Aparentemente eles
estavam seguindo na direção certa, acompanhando a água e depois pegando uma ponte. A ponte de Burrard Street. Aí mais
trânsito, ela via árvores passando cada vez que abria os olhos, que
* Grupo de dissidentes religiosos russos estabelecido no Canadá. (n. t.)
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aí fechava de novo sem querer. Ela soube quando o carro parou
que era cedo demais para eles estarem em casa. Quer dizer, na
casa dela.
Aquelas arvorezonas folhudas em cima deles. Não dava para
ver nenhuma estrela. Mas um brilhozinho na água, entre aquele
lugar onde eles estavam e as luzes da cidade.
“Só pare um pouco e pondere”, ele disse.
Ela ficou enlevada com a palavra.
“Pondere.”
“Como você vai entrar em casa, por exemplo. Você consegue fazer um ar digno? Não exagere. Indiferente? Presumo que
você tenha um marido.”
“Primeiro vou ter que te agradecer por me trazer em casa”,
ela disse. “E aí você vai ter que me dizer seu nome.”
Ele disse que já tinha dito. Possivelmente duas vezes. Mas
de novo, tudo bem. Harris Bennett. Bennett. Ele era genro do
pessoal que tinha dado a festa. Eram os filhos dele, passando
com as bebidas. Ele e eles estavam de visita, eram de Toronto.
Satisfeita?
“Eles têm mãe?”
“Têm sim. Mas ela está no hospital.”
“Sinto muito.”
“Não se preocupe. É um hospital muito simpático. Para
problemas mentais. Ou talvez você prefira dizer problemas emo­
cionais.”
Ela se apressou em lhe dizer que seu marido se chamava Pe­
ter e que ele era engenheiro e que eles tinham uma filha chamada Katy.
“Puxa, que bom”, ele disse, e se afastou um pouco.
Na ponte Lions Gate ele disse: “Me desculpe por agir daquele jeito. Eu estava pensando se ia ou não te beijar e decidi que
não”.
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Ela achou que ele estava dizendo que algo nela não estava
exatamente à altura de um beijo. A humilhação foi como ficar
sóbria com um tapa.
“Agora quando a gente passar pela ponte a gente segue à
direita na Marine Drive?”, ele continuou. “Vou confiar no que
você disser.”
Durante o outono e o inverno e a primavera seguintes não
passou um dia sem pensar nele. Era como ter o mesmíssimo sonho assim que você pega no sono. Ela apoiava a cabeça na almofada do encosto do sofá, pensando que estava deitando nos braços
dele. Não se esperaria que ela lembrasse como era o rosto dele,
mas ele aparecia em detalhes, o rosto de um homem enrugado e
com uma aparência algo cansada, satírica, um sujeito que não sai
muito de casa. E nem o corpo dele faltava, apresentava-se um
tanto gasto mas competente, e singularmente desejável.
Ela quase chorava de desejo. E no entanto toda essa fantasia sumia, entrava em hibernação quando Peter voltava. Os afetos cotidianos saltavam para a boca de cena, confiáveis como
sempre.
O sonho na verdade lembrava muito o clima de Vancouver
— um tipo de desejo funesto, uma tristeza lírica e chuvosa, um
peso que cercava o coração.
Mas e a recusa do beijo, que podia parecer um golpe nada
cavalheiresco?
Ela simplesmente apagou essa parte. Esqueceu completamente.
E a poesia dela? Nem um verso, nem uma palavra. Nem
um sinal de que ela um dia tivesse dado importância àquilo.
Claro que ela dava espaço para esses surtos, basicamente
quando Katy estava dormindo. Às vezes ela dizia o nome dele
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em voz alta, entregava-se à imbecilidade. Isso seguido de uma
vergonha abrasadora em que ela se desprezava. Imbecilidade
mesmo. Imbecil.
Aí veio um baque, a perspectiva e depois a certeza do trabalho em Lund, a oferta da casa em Toronto. Um nítido raio de sol
naquele clima, um acesso de coragem.
Ela se viu escrevendo uma carta. Não começava de nenhum
jeito convencional. Nada de Caro Harris. Nada de Lembra de
mim.
Escrever esta carta é como colocar um bilhete numa garrafa —
E torcer
Que chegue ao Japão.
A coisa mais próxima de um poema em algum tempo.
Ela não tinha ideia do endereço. Teve a coragem e a tolice
de ligar para o pessoal que tinha dado a festa. Mas quando a
mulher atendeu sua boca ficou seca e parecia ter o tamanho de
uma tundra e ela teve que desligar. Aí ela arrastou Katy até a biblio­
teca e encontrou uma lista telefônica de Toronto. Havia vários
Bennett, mas nenhunzinho Harris ou H. Bennett.
Ela então teve uma ideia repulsiva, olhar nos obituários.
Não conseguiu se deter. Esperou até que o homem que estava
lendo o exemplar da biblioteca terminasse. Ela não via normalmen­
te o jornal de Toronto porque era preciso passar pela ponte para
comprar, e Peter sempre trazia o Vancouver Sun para casa. Farfalhando as páginas ela finalmente encontrou o nome dele no alto
de uma coluna. Então ele não estava morto. Colunista de jornal.
Lógico que ele não ia querer ser incomodado por pessoas ao telefone o procurando pelo nome, em casa.
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Ele escrevia sobre política. O texto dele parecia inteligente,
mas ela não deu a menor importância para aquilo.
Ela endereçou a carta que havia escrito para lá, para o jornal. Não tinha como se assegurar de que ele abria a sua correspondência pessoalmente e achou que escrever particular no
envelope era pedir para dar errado, então escreveu só o dia em
que chegaria e o horário do trem, depois daquilo da garrafa. Sem
nome. Ela achou que a pessoa que abrisse o envelope podia pensar num parente mais velho dado a fraseados lúdicos. Nada que
o comprometesse, mesmo supondo que uma carta tão peculiar
acabasse sendo mandada para a casa dele e que a esposa abrisse,
já de volta do hospital.
Katy evidentemente não tinha entendido que o fato de Peter estar lá fora na plataforma significava que ele não ia viajar
com elas. Quando elas começaram a andar e ele ficou, e quando
com velocidade cada vez maior elas o deixaram de vez para trás,
ela não gostou nada dessa deserção. Mas logo se aquietou, dizendo a Greta que ele ia chegar de manhãzinha.
Quando aquela hora chegou Greta ficou apreensiva, mas
Katy nem sequer mencionou a ausência. Greta lhe perguntou se
ela estava com fome e ela disse que sim, e aí explicou para a mãe
— como Greta tinha explicado a ela antes até de elas entrarem
no trem — que elas agora iam ter que tirar o pijama e ir tomar o
café da manhã em outro lugar.
“O que você quer de café?”
“Suco de ilhos.” Isso queria dizer Sucrilhos.
“Vamos ver se tem.”
Tinha.
“Agora a gente vai atrás do papai?”
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