UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DOUTORADO EM ECONOMIA FORMALIZAÇÃO E INTERMEDIAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO NA AGRICULTURA BRASILEIRA: PERSPECTIVAS HISTÓRICAS E IMPLICAÇÕES ANA CECÍLIA DE MEDEIROS NITZSCHE KRETER Orientadora Prof. Dra. Renata Del-Vecchio Co-Orientador Prof. Dr. Gervásio Castro de Rezende Niterói Estado do Rio de Janeiro – Brasil Agosto – 2010 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DOUTORADO EM ECONOMIA FORMALIZAÇÃO E INTERMEDIAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO NA AGRICULTURA BRASILEIRA: PERSPECTIVAS HISTÓRICAS E IMPLICAÇÕES ANA CECÍLIA DE MEDEIROS NITZSCHE KRETER Tese apresentada para o programa de doutorado em economia da Universidade Federal Fluminense como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Economia. Orientadora Prof. Dra. Renata Del-Vecchio Co-Orientador Prof. Dr. Gervásio Castro de Rezende Niterói Estado do Rio de Janeiro – Brasil Agosto – 2010 ANA CECÍLIA DE MEDEIROS NITZSCHE KRETER FORMALIZAÇÃO E INTERMEDIAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO NA AGRICULTURA BRASILEIRA: PERSPECTIVAS HISTÓRICAS E IMPLICAÇÕES Tese apresentada para o programa de doutorado em economia da Universidade Federal Fluminense como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Economia. BANCA EXAMINADORA: __________________________________ Professora Doutora Renata Del-Vecchio – UFF (orientadora) __________________________________ Professor Doutor José Pastore – USP __________________________________ Professor Doutor Steven Helfand – Universidade da Califórnia Riverside __________________________________ Professor Doutor Léo da Rocha Ferreira – UERJ __________________________________ Professora Doutora Daniele Carusi Machado – UFF Niterói Estado do Rio de Janeiro – Brasil Agosto – 2010 Dedico, com muito carinho, a meus pais, Rodolpho e Maria Luiza. iv RESUMO Esta tese apresenta uma coletânea de três artigos sobre o mercado de trabalho agrícola. Dois temas foram destaque neste estudo: a informalidade e a intermediação de mão de obra, conhecida como empreitada. Entende-se por informalidade o não pagamento dos encargos trabalhistas e contribuições sociais, e por intermediação de mão de obra, o sistema de contratação de trabalhadores sazonais via intermediário. O Artigo 1 apresenta uma perspectiva histórica sobre os direitos do trabalhador rural no Brasil, suas relações de trabalho ao longo do século XX, e seus impactos nos salários recebidos no campo. O Artigo 2 aprofunda a análise do papel do intermediário, através de dois estudos realizados entre os anos de 2006 e 2010. O primeiro deles, na região de Piracicaba (SP), e o segundo, na Alemanha. Para finalizar, o Artigo 3 replica a estrutura do mercado de trabalho brasileiro a partir dos dados da PNAD de 2008, e simula duas alternativas para a inclusão do trabalhador rural no sistema de seguridade social. Os cenários apresentados no último artigo representam casos extremos de repasse dos encargos trabalhistas e contribuições sociais dos empregados e conta própria que se declararam informais em 2008. Mais do que refletir sobre a participação dos agentes envolvidos (empregado e empregador), e do papel do governo federal como criador de políticas sociais, a idéia é usar esses e futuros resultados para assegurar padrões razoáveis de vida da população rural. Palavras-chave: mercado de trabalho, agricultura, sazonalidade, Brasil, Alemanha. v ABSTRACT This thesis presents a collection of three articles on the agricultural labor market. Two issues were highlighted in this study: the informality and the outsourcing of labor. In this study, informality is understood as a non payment of taxes and social contributions, and outsourcing of labor is a system of hiring seasonal workers via a third person. Article 1 provides a historical perspective on the rights of rural workers in Brazil, its labor relationship throughout the twentieth century and their impact on wages earned in this sector. Article 2 deepens the analysis of the role of an outsourcing, through two studies conducted between 2006 and 2010: the first one in Piracicaba (SP), and second one, in Germany. Finally, Article 3 replicates the structure of the Brazilian labor market based on the PNAD 2008, and simulates two alternatives for the inclusion of rural workers in the social security system. The scenarios presented in the last article represent extreme cases of payroll transfer taxes and social contributions of the employees and self-employed, who declared informal in 2008. These results reflect not only the role played by those agents (employees and employers), but also by the federal government as a policy maker. The idea is to use these results to ensure reasonable standards of living of the rural population. Keywords: labor market, agriculture, seasonality, Brazil, Germany. vi SUMÁRIO Página LISTA DE FIGURAS ....................................................................................................... x LISTA DE GRÁFICOS ................................................................................................. xi LISTA DE TABELAS ................................................................................................... xii INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 1 Artigo 1 – SALÁRIOS E LEGISLAÇÃO TRABALHISTA NO CAMPO: PERSPECTIVAS HISTÓRICAS 1 Introdução................................................................................................................ 4 1.1 Por que analisar os salários rurais? ......................................................................... 5 2 As fontes de dados e a metodologia........................................................................ 9 2.1 Descrição dos dados do Censo Demográfico de 1920 ........................................... 9 2.2 Correspondência dos municípios ........................................................................... 10 2.3 Descrição dos dados do Censo Demográfico de 1991 ......................................... 11 2.4 Correspondência das categorias ocupacionais....................................................... 11 2.5 Outras fontes de dados ........................................................................................... 13 3 Legislação trabalhista e relações de trabalho......................................................... 14 3.1 As relações de trabalho nas atividades agrícolas ................................................... 14 3.2 Histórico da legislação trabalhista no campo......................................................... 19 3.2.1 1ª fase: A criação da CLT ...................................................................................... 20 3.2.2 2ª fase: A criação do ETR ...................................................................................... 23 o 3.2.3 3ª fase: A criação da Lei n 5.889, de 8 de junho de 1973..................................... 25 4 27 Houve impacto efetivo da legislação trabalhista nas atividades agrícolas? .......... vii 4.1 O que dizem os Censos...................................................................................... 27 4.2 O que dizem os dados de Remuneração do Trabalho Agrícola ........................ 31 5 Considerações finais .......................................................................................... 35 Referências bibliográficas........................................................................................... 37 Anexo I Composição setorial da renda no Brasil, por setor de atividade, 1947 a 2007... 41 Anexo II Média dos salários rurais diários, por ocupação e por região, 1920 e 1991 .... 42 Anexo III Salários reais pagos no setor agrícola ao diarista e o salário mínimo, 1966 a 1999............................................................................................................................. 43 Artigo 2 – O MERCADO DE TRABALHO AGRÍCOLA E A INTERMEDIAÇÃO DE MÃO DE OBRA 1 Introdução.............................................................................................................. 44 2 Características do setor agrícola............................................................................ 45 3 Brasil: um estudo de caso sobre o corte de cana................................................... 48 3.1 As atividades dos empreiteiros na região de Piracicaba ....................................... 48 3.2 As condições de vida dos trabalhadores sazonais em São Paulo........................... 51 3.3 As relações entre os agentes entrevistados na região de Piracicaba..................... 53 3.4 Tipos de contratos estabelecidos pelos intermediários .......................................... 55 3.5 Tipos de empreitada para as usinas na região de Piracicaba ................................. 56 4 Alemanha: uma visão geral sobre o fluxo migratório do Leste europeu............... 57 4.1 Uma visão histórica................................................................................................ 58 4.2 Os fluxos migratórios Leste-Oeste......................................................................... 62 4.3 As políticas alemãs para o mercado de trabalho agrícola...................................... 64 4.4 Como contratar um estrangeiro como trabalhador sazonal?.................................. 69 5 Considerações finais .......................................................................................... 72 Referências bibliográficas........................................................................................... 77 Anexo I Direitos dos trabalhadores sazonais, 2009........................................................ 80 viii Artigo 3 – COMO REDUZIR OS NÍVEIS DE INFORMALIDADE NA AGRICULTURA? UM MODELO DE MICRO-SIMULAÇÃO PARA O BRASIL 1 Introdução............................................................................................................... 81 2 Metodologia........................................................................................................... 82 2.1 Os modelos de micro-simulação ........................................................................... 82 2.2 O algoritmo de conversão de renda bruta-líquida-bruta no modelo SM2............. 84 2.3 As fontes de dados utilizadas ................................................................................ 88 2.3.1 A PNAD ................................................................................................................. 89 2.3.2 O Sistema de Contas Nacionais (SCN).................................................................. 94 3 O sistema tributário no Brasil................................................................................. 98 3.1 Os custos sociais do trabalho no Brasil.................................................................. 99 3.2 As regras para a declaração do Imposto de Renda (pessoa física) ...................... 102 4 Aplicando o modelo SM2 .................................................................................... 105 4.1 Considerações específicas sobre o uso da PNAD no SM2.............................. 105 4.2 Checagem dos dados........................................................................................ 107 4.3 Os cenários analisados..................................................................................... 108 5 Resultados preliminares e considerações finais............................................... 110 Referências bibliográficas......................................................................................... 114 Anexo I Fluxograma de seleção dos dados da PNAD, 2008........................................ 116 Anexo II Variáveis consideradas como demais rendimentos, PNAD 2008................. 118 Anexo III Componentes dos rendimentos agregados, cenários 1, 2 e 3, Brasil e setor agrícola, 2008............................................................................................................. 119 Anexo IV Componentes dos rendimentos médios, cenários 1, 2 e 3, Brasil e setor agrícola, 2008........................................................................................................................... 120 CONCLUSÃO ............................................................................................................. 121 ix LISTA DE FIGURAS Página ARTIGO 1 1 Evolução da legislação trabalhista no campo ...................................................... 20 2 Direitos previstos na CLT para o trabalhador rural, 1943 ................................... 21 ARTIGO 2 1 Regiões de origem dos trabalhadores sazonais contratados pelos empreiteiros de São Paulo......................................................................................................... 2 49 Relação entre os agentes participantes do mercado de trabalho agrícola sazonal na região de Piracicaba ........................................................................... 54 3 Relações contratuais nas empreitadas de corte e transporte de cana ................... 55 4 Fluxo migratório do Leste europeu para a Alemanha.......................................... 63 ARTIGO 3 1 Relação básica entre os valores líquidos e brutos dos rendimentos..................... 84 2 Tipos de ocupação, PNAD 2008.......................................................................... 98 3 Canários analisados sobre a formalização do empregado, Brasil e setor agrícola............................................................................................................... x 109 LISTA DE GRÁFICOS Página ARTIGO 1 1 Composição setorial da renda no Brasil, por setor de atividade, 1947 a 2007 ...... 2 Média da taxa de salário diário com e sem sustento, principais ocupações, 7 setor agrícola, 1920 .............................................................................................. 10 3 Média dos salários rurais diários, por ocupação, Brasil, 1920............................. 28 4 Média dos salários rurais diários, por ocupação, Brasil, 1991............................. 29 5 Média dos salários rurais diários, por ocupação e por região, 1920 e 1991 ........ 31 6 Salários reais pagos no setor agrícola, Brasil, 1966 a 1999................................. 32 7 Salários reais pagos no setor agrícola ao diarista e o salário mínimo, regiões Sudeste e Nordeste, 1966 a 1999 ......................................................................... 34 ARTIGO 2 1 Participação do emprego por setor, Alemanha, 1950 a 2007............................... 59 2 Tamanho das propriedades por estado, Alemanha, 2007..................................... 60 3 Participação do emprego na agricultura, Alemanha, 1950 a 2007....................... 61 4 Emprego na agricultura e a Regra de Canto, 2007 e 2008................................... 75 xi LISTA DE TABELAS Página ARTIGO 1 1 População ocupada na agricultura, 1920 a 1998.................................................... 2 Compatibilização das categorias ocupacionais nos Censos Demográficos de 8 1920 e 1991.......................................................................................................... 13 3 Relações de trabalho, atividades agrícolas, Brasil, 1900 a 1970 ......................... 16 4 Relações de trabalho, diaristas, atividades agrícolas, Brasil, 1900 a 1970 .......... 18 ARTIGO 2 1 Custos fixos e variáveis para o cálculo da tonelada de cana cortada, 2007......... 2 Número de estrangeiros contratados na Alemanha, por programa, 1991 a 1996...................................................................................................................... 3 57 66 Permissões de trabalho de acordo com as cláusulas de exceção do ASAV, 2006...................................................................................................................... 67 4 Trabalhadores sazonais, por país de origem, 1991 a 2007................................... 68 5 Contratação de trabalhadores sazonais, Brasil e Alemanha, 2010....................... 76 ARTIGO 3 1 Algoritmo de conversão de renda bruta em líquida ............................................. 2 Fontes de dados secundários disponíveis sobre o mercado de trabalho no 85 Brasil .................................................................................................................... 88 3 Definições básicas, PNAD 2008.......................................................................... 90 4 Ocupações, PNAD 2008 ...................................................................................... 91 5 Rendimento de outras fontes, PNAD 2008.......................................................... 92 xii 6 Variáveis de controle, PNAD 2008 ..................................................................... 93 7 Descrição dos componentes das famílias no SCN ............................................... 95 8 Correspondência da PNAD no SCN .................................................................... 97 9 Contribuição social mensal no Brasil e suas respectivas alíquotas, 2008.......... 100 10 Benefício do salário-família por faixa de salário mensal, 2008......................... 100 11 Custos sociais do trabalho no Brasil, 2008 ........................................................ 102 12 Checagem da PNAD pelo SCN ......................................................................... 107 13 Principais componentes do rendimento, imposto, contribuições sociais e deduções no sistema tributário no Brasil ........................................................... 110 14 Componentes dos rendimentos brutos, Brasil e setor agrícola, 2008 ................ 111 15 Componentes dos rendimentos do trabalho, cenários 1, 2 e 3, Brasil, 2008...... 112 16 Componentes dos rendimentos do trabalho, cenários 1, 2 e 3, Brasil e setor agrícola, 2008..................................................................................................... xiii 113 INTRODUÇÃO Esta tese apresenta uma coletânea de três artigos sobre o mercado de trabalho agrícola. Dois temas foram destaque neste estudo: a informalidade e a intermediação de mão de obra, conhecida como empreitada. Entende-se por informalidade o não pagamento dos encargos trabalhistas e contribuições sociais, e por intermediação de mão de obra, o sistema de contratação de trabalhadores sazonais via intermediário. Esses temas representam duas características recorrentes no setor agrícola, que, sob alguns aspectos, se relacionam entre si. O Artigo 1 apresenta uma perspectiva histórica sobre os direitos do trabalhador rural no Brasil, suas relações de trabalho ao longo do século XX, e seus impactos nos salários recebidos no campo. Dado que os trabalhadores rurais continuam a engrossar as estatísticas de informalidade e pobreza, a hipótese adotada foi que os direitos trabalhistas previstos em lei estão sendo cumpridos de forma insatisfatória, mas que a criação do salário mínimo impactou positivamente os salários das atividades agrícolas. Para isso, foram estabelecidas três fases da evolução da legislação trabalhista com base na criação da CLT, do ETR e da Lei no 5.889. A partir dos Censos Demográficos de 1920 e 1991, dos dados de Remuneração do Trabalho Agrícola e da metodologia de áreas mínimas comparáveis, desenvolvida pelo IPEADATA, verificamos que a terceira fase foi a que teve maior impacto nos níveis de salários recebidos pelo trabalhador rural, mas que esse impacto não foi homogêneo entre as cinco regiões brasileiras. Em relação à contratação de mão de obra, o destaque é para o Estatuto do Trabalhador Rural, que, já em 1963, introduziu a equivalência do proprietário com o empreiteiro e o parceiro no que se refere às reclamações trabalhistas, embora, na prática, essa equivalência não tenha sido observada. Mesmo assim, o fato do ETR ter incluído o intermediário como um dos três principais agentes contratantes de mão de obra sazonal já na década de 1960 sinaliza para sua importância no mercado de trabalho agrícola. Nesse sentido, o Artigo 2 aprofunda a análise do papel do intermediário, através de dois estudos realizados entre os anos de 2006 e 2010. O primeiro deles, na região de Piracicaba (SP), e 1 o segundo, na Alemanha. O Artigo mostra que ainda hoje a intermediação de mão de obra na agricultura é considerada proibida pela legislação trabalhista brasileira. Isso porque a Lei no 6.019, que dispõe sobre as empresas de trabalho temporário, se restringe às áreas urbanas. Pelo estudo de caso com o corte de cana em Piracicaba, ficou claro que os empreiteiros não são meros intermediários de mão de obra. Todos os contratos estabelecidos entre empreiteiros e usinas se baseiam no sistema de empreitada. Mas, como a Justiça do Trabalho não reconhece o intermediário como empregador, se houver fiscalização, as usinas acabam arcando com todo o ônus da contratação. Mesmo assim, a capacidade desse intermediário de distribuir os custos fixos de contratação de mão de obra por vários produtores e de aliviar os produtores das tarefas difíceis de seleção e de supervisão de mão de obra é que explicam a sua existência (ilegal) na agricultura brasileira. Na Alemanha, os produtores contam com uma estrutura pública de apoio à contratação de mão de obra sazonal, que pode ser interpretada até como uma espécie de intermediário. Sem dúvida, essa estrutura reduz bastante o problema de oferta de mão de obra, e conseqüentemente, a qualidade do trabalho ofertado. Mas o intermediário, mesmo sob o papel do Estado, ainda não é condição suficiente para garantir que todos os trabalhadores tenham carteira assinada. Por isso, o Artigo 3 busca outras alternativas dentro da estrutura tributária vigente para a formalização do trabalhador rural, com destaque para o sazonal. Assim, o Artigo 3 replica a estrutura do mercado de trabalho brasileiro a partir dos dados da PNAD de 2008 (cenário 1), e simula duas alternativas para a inclusão do trabalhador rural no sistema de seguridade social. O cenário 2 repassa para os empregados todos os custos de contratação, considerando que os empregadores não querem pagar além do que eles já pagam pelo serviço de seus empregados. De forma contrária, o cenário 3 mantém o nível de salário dos empregados, e repassa os custos de formalização para o empregador. Essas simulações foram feitas para o Brasil e para o setor agrícola através da transformação do rendimento do trabalho bruto em líquido utilizando o Modelo de Micro-Simulação de Siena (SM2), que já foi utilizado amplamente pelo EUROSTAT em outros países da Europa. Para o sistema tributário do Brasil, consideramos os custos sociais do trabalho e as regras para a declaração do Imposto de Renda (pessoa física). Apesar dos resultados ainda serem preliminares, observamos que tanto para o Brasil, quanto para o setor agrícola, os rendimentos do trabalho foi o componente mais significativo no total de rendimentos, seguido do rendimentos de aposentadorias e pensões. Na comparação dos três cenários para o setor agrícola, verificamos que, no cenário 1, os encargos 2 trabalhistas são bem inferiores à média brasileira. Já no cenário 2, os impostos e as contribuições sociais do empregado são reduzidas. Contudo, a redução no rendimento líquido é mais acentuada no Brasil do que no setor agrícola. Na comparação do cenário 1 com o cenário 3, apesar de não haver diferença no rendimento líquido, o impacto do cenário 3 no custo final da mão de obra é de 5% para o Brasil e 14% para o setor agrícola, o que compromete qualquer política de repasse de encargos trabalhistas no campo nesse cenário. Os cenários apresentados no último capítulo representam casos extremos de repasse dos encargos trabalhistas e contribuições sociais dos empregados e conta própria que se declararam informais em 2008. Mais do que refletir sobre a participação dos agentes envolvidos (empregado e empregador), e do papel do governo federal como criador de políticas sociais, a idéia é usar esses (e principalmente futuros) resultados para assegurar padrões razoáveis de vida da população rural. 3 Artigo 1 SALÁRIOS E LEGISLAÇÃO TRABALHISTA NO CAMPO: PERSPECTIVAS HISTÓRICAS 1. Introdução No início do século XX, o Brasil era predominantemente rural, e sua economia dependia em grande parte das exportações agrícolas. Nesse momento, o emprego de tecnologia para a produção de excedente ainda era restrito, o que aumentava a importância da mão de obra nesse processo produtivo. Se houvesse equilíbrio entre a oferta e a demanda no mercado de trabalho agrícola, talvez os trabalhadores rurais recebessem melhores salários. No entanto, três grupos distintos disputavam as vagas então existentes: os brancos, os negros (ex-escravos) e os imigrantes recém chegados no Brasil. E não havia um piso salarial que servisse de base para as diferentes atividades. Essas questões, juntamente com a não-qualificação da mão de obra, não são novas, e poderiam servir de justificativa para os baixos níveis de remuneração no campo no início do século XX. Contudo, quase cem anos depois, os trabalhadores rurais continuaram a engrossar as estatísticas de pobreza no Brasil. O presente artigo foi motivada por esta constatação, e tem como objetivo analisar os salários recebidos nas atividades agrícolas durante esse período a partir da evolução dos direitos trabalhistas conquistados pelo trabalhador rural. Entende-se que os salários recebidos têm uma relação direta com a renda do domicílio e, conseqüentemente, com o grau de pobreza. A hipótese adotada no presente estudo é que os direitos trabalhistas previstos em lei estão sendo cumpridos de forma insatisfatória, mas que a criação do salário mínimo impactou positivamente os salários dos trabalhadores rurais. De forma complementar, foi feita uma análise regional desses salários, dando ênfase a singularidade entre as regiões brasileiras. No intento de obter uma análise histórica, foram selecionados os Censos Demográficos de 1920 – o primeiro com informações sobre salário por categorias ocupacionais – e o de 1991 – o último realizado no século XX e que nos fornece um nível desagregado das categorias ocupacionais, o que facilitou a compatibilização com o primeiro Censo selecionado. Para o período intermediário, quando são promulgadas as principais leis trabalhistas, foram utilizados os dados de Remuneração do Trabalho Agrícola, publicado pela Fundação Getúlio Vargas.1 Para os anos posteriores a 1991, 1 Entende-se por promulgação a publicação de uma lei ou de um decreto pelo chefe de Estado (Michaelis, 2009). 4 fez-se uso da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Este artigo possui cinco seções, e se inicia com a presente introdução. Essa introdução também é acompanhada de uma discussão teórica sobre a importância da análise dos salários rurais à luz da legislação trabalhista. A seção dois apresenta as fontes de dados e a metodologia empregada de compatibilização das categorias ocupacionais selecionadas, bem como as fontes de dados secundárias. A seção três, faz-se uma descrição das diferentes formas de relações de trabalho existentes no meio rural, e da história dos direitos conquistados pelo trabalhador do campo ao longo do século XX. A análise da evolução do salário rural e o impacto da legislação trabalhista nos seus níveis encontram-se na seção quatro. Finalmente, a seção cinco apresenta as principais conclusões do artigo. 1.1. Por que analisar os salários rurais? A análise dos salários recebidos nos diferentes setores da economia é fundamental para entender não apenas o processo de acumulação de capital, mas também as variações que se produzem na distribuição de renda de um determinado país. No caso das atividades agrícolas, esse indicador é ainda mais relevante. Primeiro, por ser até hoje o setor que mais emprega mão de obra nãoqualificada. Segundo, por ser o setor que possui os rendimentos mais próximos do nível mínimo estabelecido pelo governo (salário mínimo). E terceiro, por ser o setor que mais emprega mão de obra informal. A combinação dessas três características faz com que o campo ainda esteja associado aos índices mais baixos de pobreza no Brasil. A literatura brasileira, ao abordar os salários recebidos, tem se preocupado principalmente com os indicadores que os determinam – como em Saylor (1974), Gasques (1975 e 1981), Cunha & Maia (1984) e Staduto (2002) – e com a dinâmica do mercado de trabalho – como em Bacha (1979), Gasques (1980), Rezende (1985), Sabóia (1985) e Rezende & Kreter (2007). Entre os fatores determinantes dos salários rurais, encontram-se não apenas a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas também o que é considerado como salário não-monetário, ou seja, a concessão de moradia, alimentação, etc. Esses benefícios aparecem de forma bastante recorrente, por exemplo, nos diferentes levantamentos feitos pelo Ministerio da Agricultura, Industria e Commercio em 1911, através da distinção do salário a seco, ou com comida. Os benefícios concedidos aos trabalhadores rurais nas primeiras décadas podem ser interpretados como resquícios de relações de trabalho adotadas em períodos anteriores, quando o empregado (escravo ou livre) também residia na propriedade onde trabalhava (Freyre, 2006). Por 5 isso, o termo benefício aparece neste trabalho sempre entre aspas quando referido ao período anterior à criação da CLT. E é por isso também que as diferentes formas de pagamento no campo (monetárias e não-monetárias) foram contempladas neste artigo. Além dessas duas perspectivas, os salários recebidos têm sido utilizados de forma complementar para a análise do êxodo rural inter-regional, do movimento sindical e do movimento populista – Harding (1973), Weffort (1980), Oliveira (2002), Mattos (2004), Paulo (2004) e Corrêa (2007). Segundo Martine & Arias (1987), cerca de 30 milhões de pessoas sairam do campo entre 1960 e 1980. Vale lembrar que, apesar da CLT ter sido promulgada em 1943, sua extensão ao campo não foi observada de forma clara nos anos subseqüentes, nem mesmo após a criação do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), em 1963. Mesmo assim, a possibilidade de incremento nos salários recebidos a partir da criação do salário mínimo como piso estimulou um intenso debate na academia durante a década de 1970. Na literatura mais recente, o setor agrícola não tem tido a mesma atenção, talvez porque esse setor, ao longo dos anos, tenha perdido sua importância na composição da renda nacional, ou talvez porque muitos pesquisadores consideram que a extensão da legislação trabalhista ao campo tenha solucionado os problemas vivenciados pelos trabalhadores nas áreas rurais.2 Para o primeiro argumento, o Gráfico 1 ilustra a mudança na composição setorial da renda nos últimos sessenta anos. Note que, na década de 1950, a participação da agropecuária e a da indústria eram muito semelhantes. No final da década de 1990, a participação da agropecuária na renda já estava em torno de 7%, enquanto que a indústria participava com 31%, e o setor serviços, com 52%. Em 2007, esses percentuais passaram a ser 6%, 28% e 66%, respectivamente. 2 Para o aprofundamento dessa abordagem, consultar Silva (1997) e Balsadi (2007). 6 Gráfico 1 Composição setorial da renda no Brasil, por setor de atividade, 1947 a 2007 90 80 70 60 % 50 40 30 20 10 0 1947 1950 1953 1956 1959 1962 1965 1968 1971 1974 1977 1980 Fonte: Ipeadata. Elaboração: Própria. 1983 1986 1989 1992 Agropecuária 1995 1998 2001 Indústria 2004 2007 Serviços Apesar da redução de importância do setor agropecuário na composição da renda nacional, a população economicamente ativa (PEA) agrícola ainda responde por cerca de 24% do total da PEA nacional. Note, pela Tabela 1, que mesmo com a redução da população ocupada, a agricultura ainda empregava quase 14 milhões de pessoas em 1998. A Tabela 1 também sinaliza para uma acomodação no número de pessoas ocupadas nesse setor. 7 Tabela 1 População ocupada na agricultura, 1920 a 1998 Pessoal Ocupado (mil Variação a.a. (%) pessoas) 1920 6.312 ----1940 11.343 79,71 Censo 1950 10.997 -3,05 Agropecuário 1960 15.634 42,17 1970 17.582 12,46 1975 20.346 15,72 1980 21.164 4,02 1985 23.395 10,54 1995 17.931 -23,36 PNAD 1996 13.905 -22,45 1997 13.679 -1,63 1998 13.758 0,58 Fonte: IBGE - Estatísticas Históricas do Brasil - Séries Estatísticas Retrospectivas, v.3, Séries Econômicas, Demográficas e Sociais, 1950 a 1985 e Censo Agropecuário de 1985 e 1995/1996 e IBGE - Diretoria de Pesquisas - Departamento de Contas Nacionais. Ano A queda significativa do número de empregos na agricultura a patir da década de 1990 coincide com o processo mais recente de modernização da agropecuária brasileira. Vários estudos como Ávila & Evenson (1995), Gasques & Conceição (1997), Dias & Bacha (1998), Conceição (1998) e Rezende (2006) analisaram essa modernização como resultado de um consistente aumento da produtividade total dos fatores.3 Deve-se considerar, contudo, que o aumento da produção e da produtividade de maneira diferenciada entre as regiões e estados no Brasil pode ter influenciado os níveis dos salários rurais vigentes, assim como as políticas fundiária e creditícia, o custo de vida, a sindicalização dos trabalhadores, etc. Apesar da importância desses aspectos, o presente artigo abordou apenas dois deles: a efetividade das instituições jurídicas e a diversidade das relações de trabalho. 3 Entendem-se como fatores de produção na agricultura os recursos naturais (terra), o trabalho (mão de obra) e o capital. Segundo Rezende & Kreter (2007), a agropecuária, mais do que os demais setores, é caracterizada pela maior flexibilidade na escolha de tecnologia. Essa diversidade deu lugar ao conhecido modelo de inovação tecnológica, de Hayami e Ruttan, onde, através dos casos americano e japonês, os autores mostram que as escolhas tecnológicas são variadas porque os preços desses fatores de produção também variam. Nos Estados Unidos, há abundância de terra e falta mão de obra. Já no Japão, a terra é que é o fator de produção escasso (Hayami & Ruttan, 1985). Vale lembrar que a tecnologia empregada na agropecuária pode ser analisada não apenas de forma temporal (histórica), mas também entre regiões e entre culturas. Normalmente as culturas voltadas para o mercado internacional costumam ser beneficiadas pelas políticas governamentais e, conseqüentemente, tendem a empregar mais tecnologia. 8 2. As Fontes de Dados e a Metodologia O presente trabalho utilizou como fonte de dados principal os Censos Demográficos de 1920 e 1991. Para tanto, adotamos dois critérios básicos de adequação da metodologia desses Censos. Esses critérios foram desenvolvidos pelo Ipeadata, e se baseam: Na compatibilização dos municípios e das ocupações: dado que o número de municípios instalados em ambos os Censos é diferente, a comparabilidade foi feita através da identificação das mudanças na divisão territorial. Isto permitiu o seguimento e o monitoramento dos municípios instalados oficialmente no Censo de 1920, e sua correspondência no Censo de 1991. Ex.: a área territorial de Resende e Itatiaia, no Censo de 1991 correspondia a Resende em 1920. O mesmo critério de compatibilização foi aplicado para as categorias ocupacionais; e Na agregação dos salários por categoria ocupacional e por regiões geográficas: depois de ter gerado a base de dados comparável, as informações foram processadas em grandes agregados, possibilitando a elaboração de análises regionais. Os valores apresentados por categoria ocupacional e por grandes regiões permitem uma melhor visualização e compreensão das mudanças ocorridas no setor agrícola ao longo do século XX. O termo salário no presente artigo se refere às taxas de salários diários das ocupações rurais, ou seja, “o salário-base pago a força de trabalho não-qualificada no núcleo realmente capitalista de uma economia” (Sabóia, 1985). 2.1. Descrição dos dados do Censo Demográfico de 1920 O Censo Demográfico de 1920 – o qual abrangeu os Censos de População, Agricultura e Indústria – registrou em 1˚ de setembro um total de 1.329 municípios instalados legalmente. Entre as profissões apresentadas no Censo, selecionamos: - Arador - Derribador de Madeira - Carpinteiro - Ferreiro - Carroceiro - Lenhador - Oleiro - Vaqueiro - Trabalhador de Enxada - Ordenhador 9 Dentro do universo de municípios instalados, 748 possuíam algum tipo de informação para os trabalhadores diaristas no setor rural.4 E, para esses municípios, foram coletadas informações sobre os salários diários com e sem sustento por categorias ocupacionais. Embora o Censo de 1920 não seja muito claro ao definir esses dois conceitos, estamos supondo que, além da remuneração em dinheiro, o trabalhador que recebia o salário sem sustento recebia também outros benefícios – como, por exemplo, moradia – que não foram incluídos no salário com sustento. Isso pode ser comprovado pelo próprio número de observações. O número de trabalhadores que se auto-declararam sem sustento foi maior, e o valor da média do rendimento também foi 29% maior se comparado com o salário diário com sustento (ver Gráfico 2). Portanto, como não temos uma definição exata de ambos os conceitos, vamos considerar o salário sem sustento como sendo o total dos rendimentos recebidos pelo trabalhador diarista, sendo em dinheiro ou em espécie. Desse ponto em diante, ao mencionarmos o salário do Censo Demográfico de 1920, estaremos nos referindo ao salário diário sem sustento. 2.2. Correspondência dos municípios Sendo o objetivo deste artigo analisar historicamente o comportamento dos salários recebidos nas atividades agrícolas, o passo seguinte foi compatibilizar os municípios dos Censos Demográficos de 4 Cabe mencionar que, entre os valores coletados, não conseguimos diferenciar valores zeros dos valores missing (valores perdidos ou ausência de informação fornecidos pelo programa SAS). Por isso, optamos por trabalhar unicamente com os municípios que tem declarado valores positivos nos rendimentos em pelo menos uma categoria ocupacional. 10 1920 e de 1991. Em primeiro lugar, foram identificados os municípios de 1991 no Censo Demográfico de 1970. Em seguida, vinculou-os com os municípios do Censo de 1940 até chegarmos à correspondência dos municípios de 1940 com os declarados no Censo Demográfico de 1920. Essa compatibilização foi criada pelo Ipeadata e faz parte do projeto de geração de áreas mínimas comparáveis (AMCs). Após a criação das AMCs com base no Censo de 1920, foram feitas novas agregações para compor as atuais regiões brasileiras.5 2.3. Descrição dos dados do Censo Demográfico de 1991 Para a obtenção do salário diário por ocupação, utilizamos os microdados da amostra do Censo Demográfico de 1991. O universo de análise se restringiu aos trabalhadores que se declararam ocupados no período de referência da pesquisa. Para gerar uma base compatível com o Censo Demográfico de 1920, foi necessário filtrar, na amostra dos microdados do Censo de 1991, as pessoas ocupadas. São consideradas ocupadas aquelas pessoas que declararam ter trabalhado de maneira habitual ou eventualmente durante os últimos 12 meses anteriores à data do Censo.6 Outro aspecto fundamental na base do Censo Demográfico de 1991 foi a construção do valor total das remunerações salariais dos ocupados. Para a construção da renda dos indivíduos, no caso de 1991, foram agregados três tipos de rendas: Renda por trabalho: valores brutos da ocupação principal e valores brutos das outras atividades; Renda por transferências: rendimentos brutos de aposentadoria ou pensão; e Outras rendas: rendimentos brutos de outros rendimentos.7 Os valores de rendimentos para os ocupados são declarados mensalmente, de tal forma que os valores foram divididos por trinta para se tornarem comparáveis com o Censo de 1920, que coletou informações sobre os salários diários. 2.4. Correspondência das categorias ocupacionais Para compatibilizar as categorias ocupacionais de 1920 e 1991, foram utilizados apenas os municípios identificados em ambos os Censos Demográficos e que possuíam correspondência. Como foi dito anteriormente, a partir das agregações municipais é que foram gerados os dados por 5 Para maiores informações, consultar http://www.ipeadata.gov.br. Para este filtro foi utilizada a variável V0345. 7 As variáveis utilizadas para este filtro foram: V0356 para os valores brutos da ocupação principal; V0357 para os valores brutos das outras atividades; V0360 para os rendimentos brutos de aposentadoria ou pensão; e V0361 para os rendimentos brutos de outros rendimentos. 6 11 região. Entretanto, mesmo obtendo a equivalência dos salários diários dos trabalhadores no setor agrícola e das regiões, ainda seria necessária a seleção das ocupações (mencionadas no item 2.1). A compatibilização dessas ocupações foi feita através do universo de ocupados na área rural.8 Ao compatibilizar as estruturas ocupacionais do Censo Demográfico de 1991 com respeito ao Censo de 1920 obtivemos três grandes grupos de compatibilização: Plena concordância: nesse caso, a categoria ocupacional apresentada no Censo Demográfico de 1920 foi descrita de igual maneira em 1991, o que é o caso das seguintes ocupações: carpinteiro, ferreiro, lenhador, oleiro e pedreiro; Reagrupação: aqui, duas ou mais categorias ocupacionais de 1920 se encontram juntas no Censo de 1991. Esse é o caso dos carroceiros e tropeiros que no Censo de 1920 apareceram com informações salariais independentes, mas que em 1991 possuíram o mesmo código de atividade. Outro exemplo de nossa base se refere às três categorias ocupacionais: arador, roçador de mato e trabalhador de enxada, que no Censo de 1991 se encontraram agrupadas na categoria trabalhador braçal; e Código mais atividade: a terceira e última forma de compatibilizar as categorias ocupacionais selecionadas foi misturar o código de ocupação com o código de atividade – ambas variáveis presentes no Censo de 1991 – e dessa forma obter uma aproximação da categoria ocupacional apresentada no Censo de 1920.9 Por exemplo, para obter a categoria ocupacional de derribador de madeira presente no Censo de 1920, foi necessário considerar a categoria ocupacional de serrador, mais o código de atividade de extração de madeira, dessa maneira obtivemos uma aproximação da categoria ocupacional em 1920 (Tabela 2). 8 9 Variável V0346, também chamada de código da ocupação. Variável V0347. 12 Tabela 2 Compatibilização das categorias ocupacionais nos Censos Demográficos de 1920 e 1991 Categoria Ocupacional 1920 1991* Carpinteiro Carpinteiro Ferreiro Ferreiro Lenhador Lenhador Oleiro Oleiro Pedreiro Pedreiro Carroceiros Carroceiros, Tropeiros Tropeiros Arador Rocador Trabalhador Bracal Trabalhador da Enxada Derribador de Madera Serrador Tripeiros, Peixeiros e Ordenhador Leiteiros Vaqueiro Atividade Ocupacional 1991* Posição na Ocupação 1991* Extração de Madeira Criador de Gado Bovino Pecuária Trab. Agr. Volante / Trab. Dom. Empregado Fonte: IBGE - Censos Demográficos de 1920 e 1991. * Para 1991 as ocupações se referem unicamente a área rural. Existe um caso na nossa base onde, além do código da ocupação e de atividade, foi necessário controlar nossa variável pela posição na ocupação.10 Esse foi o caso dos vaqueiros, onde, para ter certeza que nos referíamos aos assalariados desta ocupação, levamos em consideração também o tipo de trabalho (trabalhadores agrícolas volantes ou trabalhadores domésticos empregados). A Tabela 2 mostra as variáveis utilizadas no Censo Demográfico de 1991 para obter de forma comparável as categorias ocupacionais pertencentes ao Censo de 1920. 2.5. Outras fontes de dados Como foi apresentado na Introdução, utilizamos outras duas fontes de dados para complementar a análise dos salários rurais. São elas: a Remuneração do Trabalho Agrícola, publicado semestralmente pela Fundação Getúlio Vargas de 1966 a 2006; e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), publicada anualmente pelo IBGE a partir de 1967. Para essas duas fontes, foram utilizadas apenas as categorias ocupacionais agregadas – mão de obra eventual (sazonal) e mão de obra permanente. 10 Variável V0349. 13 3. Legislação Trabalhista e Relações de Trabalho O conjunto de leis, conhecido como direitos trabalhistas, é relativamente recente. Eles representam conquistas adquiridas ao longo do século XX, mas que em grande parte se desenvolveram a margem das atividades agrícolas. Esta seção tem como objetivo analisar as relações de trabalho existentes no meio rural, e suas singularidades quando comparadas às cidades (3.1). Esta seção apresenta ainda um histórico da legislação trabalhista, dando ênfase às leis que regularam e que ainda regulam o campo (3.2). 3.1. As relações de trabalho nas atividades agrícolas Nove horas da noite o silêncio enchia tudo e a gente se estirava nas tábuas que serviam de cama e dormíamos um sono só, sem sonho e sem esperanças. Sabíamos que no outro dia continuaríamos a colher cacau para ganhar três mil e quinhentos que a despensa nos levaria. (p. 47, Cacau, 1933, Jorge Amado) Jorge Amado ao descrever a produção de cacau na década de trinta estava retratando uma realidade que não fazia parte somente dos campos baianos. Até 1970, boa parte dos trabalhadores rurais passava toda a sua vida em uma única propriedade, normalmente onde nasciam. Dos seus pais eles herdavam as condições de moradia e a dependência em relação à providência de alimentos que não os produzidos por eles – o que é conhecido hoje em dia como dívida de carteirinha. Esse ciclo de renovação de mão de obra se perpetuava dentro das famílias e era fomentado por uma espécie de pacto informal com o proprietário da fazenda. Box 1 O que são e quando surgiram as chamadas dívidas de carteirinha? As dívidas de carteirinha são conhecidas assim nas áreas rurais do Brasil por serem comumente dívidas anotadas em pequenos cadernos, em formato de cadernetas. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), as dívidas de carteirinha representam uma das formas de servidão por dívida, que foi definida pela Convenção sobre Escravidão assinada em Genebra, em 25 de setembro de 1926, como sendo “o estado ou a condição resultante do fato de que um devedor se haja comprometido a fornecer, em garantia de uma dívida, seus serviços pessoais ou os de alguém sobre o qual tenha autoridade, se o valor desses serviços 14 não for eqüitativamente avaliado no ato da liquidação da dívida ou se a duração desses serviços não for limitada nem sua natureza definida”. No setor agropecuário brasileiro, essa modalidade de dívida surgiu juntamente com o assalariamento da mão de obra, já que no campo, mais do que nas cidades, boa parte do pagamento era feito em espécie. A utilização de mercadorias como pagamento era a forma mais fácil que o produtor tinha para remunerar seus empregados. Esses produtos poderiam ser vendidos no mercado local mais próximo ou trocados em outras propriedades rurais. Ocorre que nem tudo que era consumido pelas famílias dos trabalhadores era produzido nas regiões próximas. Como alternativa as mercadorias consumidas pelas famílias passaram a ser adquiridas na cidade ou vila mais próxima pelos produtores (patrões) e a serem oferecidas em suas propriedades a um determinado preço. Os armazéns – como eram conhecidos os estabelecimentos que estocavam os produtos nas fazendas – eram locais de compra a crédito, onde os trabalhadores adquiriam mercadorias para si e para as suas famílias. Eles também recebiam adiantamentos em dinheiro. O acerto do débito era feito entre o trabalhador e o patrão no final do mês, ou por ocasião do recebimento do salário. De forma alternativa, foi criado o pagamento em vale, que ampliava, mesmo que de maneira precária, as opções de compra. Nesse caso, o trabalhador poderia adquirir mercadorias no armazém próprio do produtor ou em outros, onde o produtor mantivesse conta aberta para compras a crédito. Note que algumas circunstâncias contribuíram para que esse crédito se transformasse em dívida, dentre elas: a falta de mobilidade por parte do trabalhador para buscar alternativas de consumo, a falta de conhecimento também por parte do trabalhador sobre o preço de mercado do produto adquirido e a não obrigatoriedade de pagamento do salário em dinheiro. O governo federal tentou solucionar a terceira delas através da CLT, que estabeleceu que 30% do valor do salário deveria ser pago em dinheiro. Entretanto, mesmo hoje, que há obrigatoriedade do pagamento integral do salário em dinheiro, a falta de mobilidade e o desconhecimento dos preços de mercado permanecem. A Tabela 3 destaca as principais relações de trabalho existentes nas atividades agrícolas até a década de 1970. Apesar das categorias apresentadas serem as mais relevantes, a nomenclatura utilizada na Tabela 3 se baseou nas denominações comumente usadas no meio para caracterizar ou classificar o status do trabalhador rural nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. Essas mesmas categorias podem ser encontradas em outros estados com nomes distintos. 15 Tabela 3 Relações de trabalho, atividades agrícolas, Brasil, 1900 a 1970 Categoria Principais Características Trabalhadores Proprietários Rurais Eram os trabalhadores que executavam a Não há contrato. maior parte de suas atividades em estabelecimento próprio, seja sozinho, seja com a ajuda da família. O que era produzido, era apropriado pelo trabalhador proprietário e pela família - em espécie, quando consumido diretamente, ou em dinheiro, quando o produto fosse vendido no mercado. Colonos Eram os trabalhadores que residiam na propriedade rural e que executavam tarefas no período de safra nas culturas do café e da cana-de-açúcar, na época de colheita ou fora dela. Em algumas regiões, o empreiteiro também era conhecido como colono. Por escrito, com os seguintes elementos: nome da propriedade e sua localização, nome das partes contratantes, valores dos pagamentos, processo a ser adotado na exploração do produto, preferência na aquisição das safras de cereais dos colonos, comportamento, penalidades, número de pés ou área a ser tratada sob sua responsabilidade e vigência do contrato. Esse contrato era assinado pelo proprietário, pelo colono e por duas testemunhas. Em dinheiro e em espécie. A remuneração era fixa e estipulada por mil pés tratados ou por sacas de café em côco colhida, no caso dos cafeeiros, e por hectare de cultura e tonelada de cana, na cana-de-açúcar. O pagamento era estipulado no início da safra para vigorar durante uma safra completa. O colono não podia pleitear reajuste. Empreiteiros Eram os trabalhadores contratados para a execução de um serviço por empreitada, ou seja, executavam uma tarefa mediante o recebimento de uma quantidade previamente estabelecida. Os contratos por escrito eram praticamente inexistentes. Eles eram feito na maior parte das vezes por combinações verbais entre as partes ("contratos de boca"). Normalmente o pagamento era feito por uma quantia fixa em dinheiro, mas era comum em certas lavouras o recebimento da colheita total ou parcial das primeiras safras da cultura em formação. Parceiros Eram todos os agricultores que pagavam aluguel pelo uso da terra - onde faziam suas explorações agrícolas ou possuíam animais. O valor do aluguel era previamente O pagamento do parceiro ao proprietário combinado entre agricultor e proprietário. era feito através de um percentual da Entretanto, na maior parte das vezes, eram produção em troca do uso da terra. contratos verbais ("contratos de boca"). Arrendatários Assim como os parceiros, eram todos os agricultores que pagavam aluguel pelo uso da terra - onde faziam suas explorações agrícolas ou possuíam animais. Assim como os parceiros, o valor do aluguel era previamente combinado entre agricultor e proprietário. Entretanto, na maior parte das vezes, eram contratos verbais ("contratos de boca"). A forma de pagamento pelo uso da terra era a única característica que distinguia um arrendatário de um parceiro. No caso do arrendatário, o pagamento era feito através de uma quantidade fixa de dinheiro ou de produto. Mensalista Eram os trabalhadores que prestavam serviço com base em uma remuneração mensal. Não foi especificado. Em dinheiro. Raramente era feito o pagamento em espécie, a não ser o oferecimento de moradia dentro da propriedade e a lenha para o combustível. Diarista Eram os trabalhadores que prestavam serviço com base em uma remuneração diária. Fonte: Ettori (1955). Elaboração: Própria. Tipo de Contrato Pagamento Todas as variações de contrato referentes aos diaristas encontram-se no Quadro 2. A primeira categoria apresentada é a de trabalhadores proprietários rurais. De acordo com o levantamento feito em 1955 pela Secretaria da Agricultura do estado de São Paulo, 84% desses trabalhadores possuíam terras com área de até 99 hectares. Esse número decresce à medida que a área aumenta. Isso porque, a produção em propriedades maiores necessitava de contratação de mão de obra assalariada, e gerava renda independente do trabalho físico do proprietário. Essa renda, por sua vez, variava de acordo com o tipo de mão de obra empregada e a tecnologia adotada para a produção. Entretanto, a constatação mais relevante apresentada pela Secretaria de Agricultura foi verificar que as propriedades paulistas com área de 10 a 99 hectares também contratavam um 16 número expressivo de assalariados em 1955. Segundo a Instituição, diversas razões podem ter contribuído para isso, dentre elas: a) a relativa facilidade de se obter mão de obra assalariada no estado, bem como parceiros e arrendatários; b) a baixa remuneração em vigor na região; c) o baixo emprego de tecnologias intensivas em capital; d) a precária legislação trabalhista e tributária; e e) a pequena oportunidade de emprego nos centros urbanos. Note que um dos entraves enfrentados pelos proprietários era a falta de liquidez. Nesse momento o sistema bancário era incompatível com as necessidades creditícias da agricultura, e a renda monetária proveniente da comercialização dos seus produtos era escassa e incerta, o que limitava o uso de energia – animal ou motorizada – e o emprego de novas tecnologias. Os colonos representam a segunda categoria apresentada na Tabela 3, e a única, dentre as analisadas, que aparece com recorrência de contratos por escrito. Embora o termo colono seja comumente referido ao imigrante europeu do final do século XIX e início do século XX, denominamos colono, ou meeiro, todo trabalhador residente na propriedade rural que executava tarefas no período de safra nas culturas do café e da cana-de-açúcar. Além dos dispositivos apresentados na Tabela 3, para o estado de São Paulo, os contratos incluíam ainda direitos e deveres sociais, sendo entendido como social, a cobrança de taxas para o clube de futebol, cinema, cerimônias religiosas e outras recreações. A inclusão desses direitos e deveres sociais deve ser interpretada com uma certa ressalva, porque não encontramos qualquer evidência no estado de São Paulo que apresentasse o número de contratos que previam na prática essas cláusulas. Apesar dos colonos serem também conhecidos em algumas regiões como empreiteiros, a denominação empreiteiro na Tabela 3 se refere ao prestador de serviço por empreitada. Os diaristas e os mensalistas eram prestadores de serviços e podiam ser contratados tanto pelos arrendatários e parceiros, quanto pelos proprietários rurais de grandes explorações agrícolas, ou que operavam no sistema intensivo em mão de obra. Em algumas regiões, esses trabalhadores também eram conhecidos como camaradas11. Os mensalistas possuíam denominações próprias derivadas da função que exerciam dentro da propriedade: mensalistas categorizados (administradores e fiscais), mensalistas especializados (tratoristas e motoristas) e mensalistas comuns (carroceiros, retireiros, peões e foiceiros). Contudo, de todas as categorias apresentadas na Tabela 3, os diaristas representavam o maior grupo de assalariados, e o que possuía a maior diversidade nas relações de trabalho. A Tabela 4 sintetiza as singularidades de cada subcategoria de diarista. 11 Camarada é o indivíduo empregado no serviço de campo ou das fazendas (Michaelis, 2009). 17 Tabela 4 Relações de trabalho, diaristas, atividades agrícolas, Brasil, 1900 a 1970 Subcategoria Principais Características Com Comida Eram os menos representativos e costumavam ser organizados em turmas para a execução de serviços especiais como, por exemplo, no desbravamento de terras ou na formação de agricultura em zonas novas. A Seco Eram os mais comuns nas atividades agrícolas e, ao contrário dos diaristas "com comida", costumavam ser contratados avulso. Eram os trabalhadores que residiam nas propriedades e desempenhavam trabalhos variados ou específicos durante o ano todo. Eram os trabalhadores que residiam nas propriedades, e que possuíam, geralmente, outra função regular, tal como colono de café ou parceiro agrícola, mas prestavam, em ocasiões de necessidade, certos dias de trabalho como diarista. Eram os trabalhadores que residiam fora da propriedade rural, principalmente na zona urbana, e que se deslocavam para o estabelecimento para prestar serviços em determinadas épocas do ano. Permanente Temporário Volante Agregado Eram os trabalhadores que residiam na propriedade e que só prestavam serviço e recebiam o pagamento quando eram solicitados, pois não se acham obrigados a trabalhar diariamente. Eles ficavam à disposição do estabelecimento, em qualquer emergência e sem recebimentos. Fonte: Ettori (1955). Elaboração: Própria. Segundo Ettori (1955), a contratação de todas as modalidades de diaristas era feita diretamente pelo produtor rural, a exceção dos volantes, que também eram contratados por um encarregado da turma, conhecido já nessa época como gato. O volante é a única subcategoria que aparece com pagamento exclusivamente em dinheiro, e com valor superior ao dos camaradas residentes nas propriedades rurais. Eles poderiam ser contratados tanto por diárias quanto por tarefas. É importante lembrar que as categorias da Tabela 3 e as subcategorias da Tabela 4 aqui apresentadas também poderiam ser combinadas entre si. Por exemplo, o parceiro ou o arrendatário, em períodos de safra, se tornava diarista por um curto período para o dono da terra que eles alugavam. O volante, se levasse a refeição para o trabalho, também era chamado de diarista com comida. E assim por diante. Além dos tipos de contrato de mão de obra, até a década de 1970 os valores das diárias e dos salários pagos aos trabalhadores eram bastante variáveis, tanto dentro quanto fora das propriedades. Tomemos como exemplo o colono da lavoura de café. Parte do seu pagamento era feita em espécie, e parte em dinheiro. Entende-se como espécie todos os bens recebidos pelo colono e seus familiares para consumo. Havia variação na quantidade, na qualidade e na composição dessa cesta de bens, mesmo em regiões próximas. Os produtos que apareciam com mais freqüência eram: café beneficiado, arroz, milho e lenha para combustível. O colono podia receber ainda terra para plantar 18 seus cereais (isolada ou intercalada)12, pasto para seus animais e residência. As propriedades com áreas menores forneciam os cereais ao invés de terras para o seu cultivo. O pagamento dos colonos em dinheiro tinha uma parte fixa e outra variável. No caso da lavoura de café, o valor recebido era fixado por mil pés de café por ano, proporcional ao tamanho das famílias, que, no interior de São Paulo, tinha uma média de quatro a cinco pessoas. O colono era responsável por três carpas anuais no cafezal, além da arrumação e da esparramação dos grãos. O pagamento variável poderia ser por outros serviços no cafezal – como adubação e combate às pragas –, pela participação na colheita – recebendo proporcionalmente à quantidade colhida na safra – e por outros serviços dentro da propriedade – como roça de pasto, carpa de lavouras e concerto de cercas. Entretanto, o colono não dispunha de muitos dias ao longo do ano para tarefas que não as acordadas no contrato. Por isso, outras categorias de assalariados eram contratadas para complementar todas as etapas da produção agrícola. Como podemos verificar, as relações de trabalho nas zonas rurais brasileiras até 1970 eram as mais diversas possíveis. Pela tradição colonial, havia uma ampla flexibilidade regional, baseada nos usos e costumes locais. Entretanto, essa flexibilidade estava longe de ser uma negociação justa entre empregado e empregador. Pelo contrário. O sistema de contratos era flexível ao comportar e criar diferentes categorias de emprego e modalidades de pagamento, na maioria das vezes impostas pelo empregador. Mesmo assim, o trabalhador compactuava com o patrão um acordo de dependência mútua, onde ele o ajudava nos momentos de crise agrícola (quebra de safra, baixa dos preços, etc.), e era ajudado quando sua família precisava, o que costumava ocorrer em casos como o de falecimento e o de doença.13 Ainda hoje percebemos uma linha muito tênue entre o espaço privado e o local de trabalho nas zonas rurais do Brasil, onde o patrão, além de empregador, tem uma função social fundamental de assistência à família do empregado. Daí a maior dificuldade de distinguir os direitos e deveres de cada parte. 3.2. Histórico da legislação trabalhista no campo A história dos direitos dos trabalhadores rurais se confunde ainda hoje com o que está previsto na legislação e o que de fato é cumprido. No campo, isso ocorre principalmente pela falta de conhecimento por parte do empregado – seja pela baixa escolaridade, seja pela dificuldade de acesso 12 Entende-se como terra intercalada a área de terra limitada pelas ruas de café, e por terra isolada, a área de terra solteira, que poderia ser bruta ou preparada. Em todas elas, o mais comum era a utilização para o plantio de arroz, feijão e milho. 13 O termo proprietário está sendo usado somente quando a propriedade do estabelecimento rural é condição necessária. Nos demais casos, quando estão sendo analisadas apenas as relações de trabalho, usamos os termos empregador, patrão ou produtor com a mesma finalidade. 19 à informação – e pelo desinteresse por parte do produtor em regularizar os contratos de trabalho em sua propriedade. Mas é interessante observar que a própria academia não costuma considerar a existência de uma legislação trabalhista que incluía o trabalhador rural antes de 1963. Nossa análise começa com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), criada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e com algumas leis e decretos especiais que poderiam ser aplicáveis aos contratos de trabalho em atividades agrícolas. A Figura 1 apresenta as diferentes fases dos direitos trabalhistas referente ao trabalhador rural. Figura 1 Evolução da legislação trabalhista no campo 1ª Fase 1943 2ª Fase 1963 3ª Fase 1973 1999 Elaboração: Própria. 3.2.1. 1ª fase: A criação da CLT Até 1963 não havia uma legislação específica para os trabalhadores rurais, mas a CLT tinha alguns títulos e capítulos que eram explicitamente aplicáveis à eles. Isso serviu de base para o início de um processo de inclusão do trabalhador rural e para as discussões que viriam posteriormente sobre condições de trabalho, equipamentos de segurança, sistema previdenciário, etc. Em termos de cumprimento, os resultados foram inexpressivos para todas as regiões do Brasil. Entretanto, existe um dado curioso: a Secretaria de Agricultura do estado de São Paulo observou, já na década de 1950, certa recorrência nos tribunais competentes de desavenças entre diaristas e mensalistas contra produtores, e de parceiros e empreiteiros contra proprietários. A reclamação mais comum era a solicitação de direito a férias e repouso semanal remunerado, gozado com freqüência nos domingos. De forma secundária, a Secretaria verificou as seguintes reivindicações: aviso prévio, contrato individual de trabalho, remuneração (mesmo que parcial) em dinheiro, salário mínimo, indenização por dispensa e estabilidade. As seis reivindicações que estavam previstas em lei serão analisadas separadamente, de acordo com a Figura 2. Mas, antes de iniciar essa análise, é fundamental definir o grupo que estava sendo considerado como trabalhador rural. De acordo com o artigo 7º da CLT, trabalhadores rurais eram todos “aqueles que, exercendo as funções diretamente ligadas à agricultura e à pecuária, não (eram) empregados em atividades que, pelos métodos de execução dos respectivos trabalhos ou pela finalidade de suas operações, se (classificassem) como industriais ou comerciais”. 20 A inclusão dos colonos nessa categoria não era clara, e variava conforme o entendimento dos tribunais locais. As jurisprudências encontradas no estado de São Paulo, por exemplo, apresentavam controvérsias. Figura 2 Direitos previstos na CLT para o trabalhador rural, 1943 Férias Aviso Prévio Contrato Individual de Trabalho Repouso Semanal Remunerado Remuneração Salário Mínimo Elaboração: Própria. O primeiro direito previsto na CLT era o aviso prévio, aplicado à demissão sem justa causa. A parte rescindente deveria avisar sua decisão à outra parte com antecedência mínima de oito dias, para pagamentos semanais ou inferiores a uma semana, e trinta dias, para pagamentos quinzenais ou mensais. Se uma das partes não concordasse com a concessão do período do aviso prévio, havia necessidade de ressarcimento (art. 487). Por outro lado, o empregado que estava cumprindo o aviso prévio poderia descontar duas horas de trabalho por dia do seu horário normal para uso próprio (art. 488). Ainda estava previsto a reconsideração da decisão de demissão, caso as duas partes concordassem com a continuidade da prestação do serviço (art. 489), e a rescisão imediata do contrato, caso uma das partes praticasse algum ato que justificasse essa rescisão durante o período do aviso prévio (art. 490 e 491). O segundo direito previsto se referia ao repouso semanal remunerado (Lei no 605, de 14 de janeiro de 1949), que era entendido como um intervalo de 24 horas consecutivas de descanso, preferencialmente aos domingos (art. 1º), exceto para os que trabalhavam em regime de parceria, meação ou forma semelhante de participação na produção (art. 2º). Caso o empregado não cumprisse integralmente seu horário na semana estritamente anterior e não apresentasse justificativa, ele perderia o direito a gozar desse descanso (art. 6º). A remuneração do repouso semanal 21 correspondia a um dia de serviço (art. 7º). Os feriados civis e religiosos também eram remunerados, sendo os feriados civis, com base na lei federal, e os religiosos, com base na lei municipal, de acordo com a tradição local e sem ultrapassar sete dias anuais. Caso houvesse necessidade de se trabalhar em tais dias, sem o acerto de folga em outro dia, o empregado receberia em dobro (art. 8º). No mesmo ano, em 12 de agosto de 1949, o governo estabeleceu o Decreto no 27.048, que detalhava os tipos de serviços que eram permitidos aos domingos e feriados nas atividades agrícolas – mais especificamente, limpeza e alimentação dos animais em propriedades agropecuárias. A CLT, através do art. 76º, também instituiu o direito ao salário mínimo. Foi definido como salário mínimo “a contraprestação mínima devida e paga diretamente pelo empregador a todo trabalhador, inclusive ao trabalhador rural, sem distinção de sexo, por dia normal de serviço, e capaz de satisfazer, em determinada época e região do país, as suas necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte”, que correspondia a 30 dias ou a 240 horas de trabalho mensais (art. 76º). Para os trabalhadores que fossem contratados por empreitada ou por tarefa, a remuneração diária deveria ser igual ou superior à do salário mínimo por dia (art. 78º). A CLT previa o trabalho de menores aprendizes – de 14 a 18 anos – com remuneração de até 50% do salário mínimo (art. 80º). Para o trabalhador rural, havia a opção de pagamento in natura, ou em espécie. Nesse caso, o salário em dinheiro não poderia ser inferior a 30% do salário mínimo. O salário em dinheiro era determinado pelo valor total do salário mínimo menos a soma dos valores das parcelas em espécie na região, zona ou subzona (art. 82º). Em 13 de outubro de 1961, o Decreto no 51.336 definiu o montante máximo a ser descontado no pagamento em espécie: 30% para alimentação, 23% para habitação, 10% para vestuário, 4% para higiene e 3% para transporte, num total de até 70%. Ou seja, oficialmente a CLT garantia para o trabalhador 30% do salário mínimo em dinheiro. O artigo 129º da CLT previa “direito ao gozo de férias, sem prejuízo da respectiva remuneração”, “após cada período de 12 meses de vigência do contrato de trabalho” (art. 130º). O período de férias deveria ser gozado durante os 12 meses seguintes (art. 131º), sendo proporcional ao número de faltas sem justificativa. Os empregados que não tivessem cometido essa modalidade de falta, teriam direito há 20 dias úteis (art. 132º). Qualquer afastamento por parte do empregado deveria ser registrado na Carteira Profissional (art. 133º). Contudo, algumas situações estavam previstas sem desconto, como os dias que não houvesse trabalho e a ausência do empregado por doença ou acidente de trabalho (art. 134º). A escolha dos dias de férias ficava a cargo do empregador (art. 139º), e a remuneração recebida nesse período era calculada a partir da média percebida no período correspondente ao de férias (art. 140º). No caso das remunerações em espécie, o empregador deveria pagar a quantidade equivalente a declarada na Carteira Profissional (art. 22 140º). E todos os pagamentos deveriam ser realizados até a véspera do primeiro dia de férias (art. 141º). A CLT também previa a firmação do contrato individual de trabalho, entendido como sendo “o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego” (art. 442º). Esse acordo poderia ser verbal ou por escrito, por prazo determinado ou por prazo indeterminado (art. 443º), conforme entendimento entre as partes interessadas (art. 444º). Entretanto, a prova de que havia contrato individual de trabalho era feita a partir dos registros na Carteira Profissional ou de instrumentos escritos, o que inviabilizava a comprovação dos acordos verbais. Para os contratos com prazo determinado, a vigência não poderia ser superior a quatro anos (art. 445º). Se o contrato fosse prorrogado mais de uma vez, ele passaria a vigorar sem determinação de prazo (art. 451º). A mulher casada e o menor que tivesse entre 18 e 21 anos poderiam participar de contratos individuais, desde que o trabalho não acarretasse ameaça aos vínculos familiares. A decisão de pleitear a rescisão por esse motivo era facultada ao marido ou ao pai (art. 446º). No caso dos contratos de sub-empreiteiros, a reclamação referentes ao inadimplemento das obrigações trabalhistas recaía sobre o empreiteiro principal (art. 455º). O último direito previsto pela CLT ao trabalhador rural era o recebimento de um salário como pagamento pelo serviço prestado, em moeda corrente do país (art. 463º). Esse salário era composto de um montante fixo estipulado, mas poderia ser acrescido de comissões, gratificações, diárias, etc. (art. 457º). O montante fixo deveria ser igual ao pagamento feito por serviço equivalente na mesma propriedade (art. 460º e 461º). Os intervalos entre o pagamento de um salário e outro não poderiam ser superiores a um mês (art. 459º), sendo feito sempre em dia útil e no local de trabalho, durante o expediente, ou imediatamente após o seu encerramento (art. 465º). Para cada salário pago, havia a necessidade de se efetuar um contra recibo assinado pelo empregado. Caso ele fosse analfabeto, a assinatura do empregado era substituída pela sua impressão digital ou ainda pela assinatura de uma testemunha (art. 464º). Os descontos eram permitidos apenas em casos de adiantamentos (art. 462º). 3.2.2. 2ª fase: A criação do ETR Como foi dito no início desta seção, a partir de 1943, parte dos atuais direitos trabalhistas já existiam. Entretanto, em termos de cumprimento, a CLT teve pouca repercussão no campo. Por essa razão, em 1963 o governo federal criou uma legislação única para reger as relações de trabalho nas atividades agrícolas brasileiras, já que o Brasil da década de 1960 ainda era predominantemente 23 rural. Assim, o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR) foi escolhido como o marco inicial da segunda fase da evolução da legislação trabalhista no campo (apresentado na Figura 1). O ETR confirmava os dispositivos anteriores como aviso prévio, repouso semanal remunerado, salário mínimo, férias, contrato individual de trabalho e remuneração. A seguir, destacamos seis pontos novos introduzidos pelo Estatuto em 1963: 1. Criação do Conselho Arbitral vinculado ao Ministério Público: criação, em cada comarca, de um Conselho Arbitral integrado por dois representantes dos empregadores, dois dos empregados e presidido por representante do Ministério Público, com a finalidade de solucionar de forma conciliatória disputas resultantes da aplicação do Estatuto; 2. Extensão do prazo de reclamação: estabelecimento do prazo de dois anos para reclamação de qualquer direito trabalhista, a partir do fim do contrato de trabalho; 3. Estabilidade: o trabalhador rural que contasse mais de dez anos de serviço efetivo na mesma propriedade não poderia ser despedido, a não ser por motivo de falta grave repetida ou em circunstância de força maior, devidamente comprovada; 4. Equivalência do proprietário, do empreiteiro e do parceiro: igualdade de responsabilidades entre o proprietário, o empreiteiro e o parceiro frente as reclamações trabalhistas; 5. Carteira Profissional obrigatória: instituição da carteira de trabalho para todos os trabalhadores rurais; e 6. Jornada de trabalho: estabelecimento de oito horas por dia para a jornada normal de trabalho. Houve ainda queda no percentual das deduções de 23% para 20% do salário mínimo para habitação, e de 30% para 25%, para alimentação. As demais deduções, assim como a obrigatoriedade de 30% do pagamento em dinheiro, permaneceram. Contudo, a maior contribuição do Estatuto foi a criação do seguro obrigatório que ficou a cargo do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL)14 a partir de 1968. Tinha direito a esse seguro todo trabalhador que exercesse atividade agrícola. Os benefícios prestados consistiam em aposentadoria por invalidez e por velhice, pensão por morte, auxílio-maternidade, auxílio-doença, auxílio-funeral e assistência médica.15 Em 1972, o plano básico foi novamente substituído pelo Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (PRÓ-RURAL)16, e os benefícios conferidos a esses trabalhadores e a seus dependentes passaram a ser: aposentadoria por idade e por invalidez, pensão, auxílio-funeral, 14 o Lei n 4.214, de 1963. É importante destacar que a concessão efetiva da maior parte dos direitos previdenciários era restrita ao chefe ou arrimo de família. Para maiores informações, consultar Kreter (2005). o 16 Decreto n 69.919, de 1972. 15 24 serviço social, readaptação profissional e serviço de saúde. De fato, a previdência rural foi o único dispositivo do ETR que recebeu regulamentação17 nesta fase. Mas foi um dispositivo de extrema importância porque foi a primeira vez que se instituiu um mecanismo governamental que dissociasse a assistência aos trabalhadores da benevolência do patrão ou das políticas de caridade locais. O trabalhador teria a possibilidade de assumir certa independência, caso ele fosse impossibilitado de exercer suas tarefas cotidianas. Pela falta de regulamentação, o impacto do ETR no campo também foi praticamente inexpressivo. Além disso, algumas dúvidas permaneceram em relação aos dispositivos citados. A primeira delas era como enquadrar cada categoria de trabalhador e de produtor rural dentro das modalidades empregado e empregador, levando em consideração as singularidades regionais. Em relação à estabilidade, não estava claro se a agricultura seguiria a mesma interpretação das leis trabalhistas para a indústria, ou seja, se o período de tempo anterior à publicação do Estatuto também seria contado para efeitos de estabilidade. A terceira e última dúvida se referia a outro problema recorrente na agricultura: o pagamento do trabalhador em dias prolongados de chuva (salário chuva), quando a tarefa era suspensa parcial ou totalmente. Boa parte dessas questões passaram a ser prevista em 1973. 3.2.3. 3ª fase: A criação da Lei no 5.889, de 8 de junho de 1973 A última fase da evolução da legislação trabalhista no campo se inicia com a Lei no 5.889, de caráter exclusivamente rural. Essa Lei é aplicada ainda hoje nos tribunais, ficando a cargo da CLT apenas o que não colidir com ela (art. 1º). O primeiro ponto importante é que a definição de empregado rural se tornou mais abrangente e passou a incluir “toda pessoa física que, em propriedade rural ou prédio rústico, presta serviços de natureza não eventual a empregador rural, sob a dependência deste e mediante salário” (art. 2º). Note que a identificação do trabalhador rural deixou de ser pelo critério de exclusão – não sejam empregados em atividades classificadas como industriais ou comerciais. Em relação à jornada de trabalho, ficou estabelecido um período mínimo de onze horas consecutivas entre uma jornada e outra. Se a jornada for superior a seis horas, o trabalhador rural passou a ter direito a um intervalo para repouso ou alimentação de acordo com os usos e costumes locais (art. 5º). Também foi incluída a diferenciação entre trabalho diurno e noturno, com acréscimo de 25% sobre a hora normal no segundo caso. Pela Lei no 5.889, considera-se trabalho noturno aquele “executado entre as vinte e uma horas de um dia e as cinco horas do dia seguinte, na lavoura, 17 Entende-se por regulamentação a “conclusão do texto de uma lei, com os princípios que orientam o seu cumprimento” (Michaelis, 2009). 25 e entre as vinte horas de um dia e as quatro horas do dia seguinte, na atividade pecuária” (art. 7º). Veja que a diferença de jornada noturna entre a agricultura e a pecuária é uma forma de se adaptar às especificidades do setor, como é o caso do trabalho do ordenhador, que tem por costume fazer a primeira ordenha às quatro horas da manhã. Entretanto, o trabalho noturno continuou sendo vetado ao menor de 18 anos (art. 8º). A remuneração no valor de um salário mínimo foi estendida ao trabalhador rural maior de 16 anos. O empregado com menos de 16 passou a ter o salário fixado em 50% do valor de um salário mínimo, e não mais negociado em até 50% (art. 11º). O menor de 14 anos continuou sendo proibido de executar qualquer tarefa. Em 2000, a remuneração de 50% foi modificada para em pelo menos o salário mínimo hora (Lei no 10.097). Os descontos de até 20% do salário mínimo com habitação e de até 25% com alimentação continuaram existindo (art. 9º), mas a partir de 1996, com a Lei no 9.300, esses descontos só puderam ser efetuados mediante “contrato escrito celebrado entre as partes, com testemunhas e notificação obrigatória ao respectivo sindicato de trabalhadores rurais”. Essa foi mais uma forma de garantir ao empregado transparência no valor do seu salário. De todos os temas abordados pela Lei no 5.889, a maior contribuição foi a inclusão do contrato de safra, com duração de acordo com as variações estacionais e sazonais. O contrato de safra é uma espécie de contrato por prazo determinado, “certo quanto ao fato e incerto quanto ao tempo”. Ao safrista está previsto o direito a férias, adicional de 1/3 de férias, 13º salário, descanso semanal remunerado, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e salário-família. Quando o contrato de safra é prorrogado por mais de uma vez, ele se transforma automaticamente em contrato de prazo indeterminado. Teoricamente essa modalidade cobriria toda a demanda de curto e curtíssimo prazos existentes no setor agrícola, que ocorre principalmente nos períodos de colheita. Na prática, a burocracia enfrentada na contratação é tão grande, que para os pequenos produtores contratarem demora mais tempo que a execução do próprio serviço. Esse é o caso, por exemplo, da colheita do tomate e do feijão, que são intensivas em mão de obra e que duram em média 15 dias. Os parceiros, os meeiros e os arrendatários foram excluídos da Lei no 5.889, mas têm previsão legal no art. 95º do Estatuto da Terra (Lei no 4.504, de 1964), que foi alterado em 2007 – no caso do arrendamento, pela Lei no 11.443, e no caso da parceria e da meação, pela Lei no 11.443. Além disso, outras características específicas do campo não foram abordadas pela legislação trabalhista em vigor, como a vulnerabilidade da produção frente às intempéries – a instituição do salário chuva – e algumas modalidades de contratação de mão de obra. A Lei no 6.019, de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário, só é válida para as empresas urbanas. A empreitada nas 26 propriedades rurais também é restrita às atividades-fim, ou seja, à qualquer atividade fora do processo produtivo, o que restringe a empreitada a colocação de cerca, a construção de celeiro, etc. Existem alguns projetos de lei ainda hoje transitando no Congresso Nacional acerca desses entraves no setor. Entretanto, é difícil prever quando uma nova mudanças será implementada. 4. Houve Impacto Efetivo da Legislação Trabalhista nas Atividades Agrícolas? Esta seção tem como objetivo analisar o impacto das leis trabalhistas apresentadas na seção anterior sobre as atividades agrícolas brasileiras. Dessa forma, utilizamos os dados dos Censos Demográficos de 1920 e 1991 para verificar se houve mudanças nos níveis de salários recebidos, tanto no agregado quanto por categoria ocupacional (4.1), e analisamos a evolução desses níveis salariais a partir da década de sessenta, e a relação entre a regulamentação das leis trabalhistas e as variações dos salários (4.2). Para essa análise, foram utilizados os dados de Remuneração do Trabalho Agrícola da FGV. 4.1. O que dizem os Censos Como foi apresentado na seção 2, selecionamos o Censo de 1920 por ser o primeiro a disponibilizar a abertura dos salários por categorias ocupacionais, e o de 1991 por ser o último realizado no século XX e por fornecer um nível desagregado de categorias ocupacionais compatível com o primeiro. A análise dos extremos – primeiro e último Censos do século XX – é interessante porque inclui situações antagônicas do ponto de vista jurídico, mas relativamente semelhantes do ponto de vista do grau de informalidade. Os Gráficos 3 e 4 apresentam as médias dos salários rurais diários por ocupação para os anos de 1920 e 1991, respectivamente. A média geral foi construída a partir das ocupações selecionadas, e está representada em ambos os gráficos por uma linha horizontal. De acordo com o Gráfico 3, observamos que, em 1920, das dez ocupações equivalentes, apenas cinco se encontravam acima da média: carpinteiro, ferreiro, oleiro, pedreiro e derribador de madeira. Não por acaso, as quatro primeiras são ocupações fundamentalmente não-rurais, e que necessitam de qualificação técnica para exercê-la. Entretanto, a ocupação que aparece com maior freqüência em todas as regiões é o trabalhador braçal, que, como foi apresentado na seção 3, pode ser classificado como diarista, mensalista, colono, etc. Destacamos ainda em 1920 a elevada variação entre os salários das ocupações selecionadas. 27 Gráfico 3 Média dos salários rurais diários, por ocupação, Brasil, 1920 8.000 7.000 6.000 Mil-Réis (Rs) 5.000 4.000 3.000 2.000 1.000 0 Carpinteiro Ferreiro Lenhador Oleiro Pedreiro Carroceiro / Tropeiro Trabalhador Bracal Ordenhador Derribador de Madeira Vaqueiro Fonte: Censo Demográfico de 1920. Elaboração: Ipeadata. Ao compararmos os Gráficos 3 e 4, percebemos a permanência de praticamente as mesmas ocupações acima da média, ou seja, a permanência de categorias ocupacionais sem especialização propriamente rural como sendo as mais bem remuneradas no campo. Essa constatação corrobora a percepção generalizada – e, de certa forma, equivocada – de que a atividade agrícola é uma atividade não-qualificada, e que é, por isso, merecedora de salários mais baixos. Vale lembrar, entretanto, que nem todas as pessoas estão aptas a exercer atividades agrícolas. Ao contrário dos centros urbanos, em que a qualificação está relacionada ao grau de escolaridade e à especialização técnica, no campo o critério de seleção é baseado na qualificação específica, ou seja, no conhecimento do trabalhador sobre o cultivo de determinada cultura e/ou sobre o manuseio de determinados equipamentos (Rezende e Kreter, 2007). Esse é o caso, por exemplo, dos cortadores de cana e dos empregados na apanha do café.18 Outro ponto interessante observado no Censo Demográfico de 1991 é a distribuição das categorias ocupacionais. Elas aparecem com pouca variação entre si e mais próxima do valor médio. A pequena variação dos salários das categorias ocupacionais selecionadas pode ser resultado de um processo de uniformização dos salários, ocorrido principalmente pela institucionalização do salário 18 De forma ilustrativa, podemos citar a tentativa da Prefeitura de Piracicaba (SP) no final da década de noventa de cadastrar os desempregados do município para contratá-los na produção de cana-de-açúcar. Ao final de uma semana, dos mil contratados, apenas dezenove permaneceram no emprego. 28 mínimo como piso para todas as atividades no Brasil. Entretanto, em termos regionais, o efeito uniformização não é tão perceptível (Gráfico 5). Gráfico 4 Média dos salários rurais diários, por ocupação, Brasil, 1991 2.500 Cruzeiro (Cr$) 2.000 1.500 1.000 500 0 Carpinteiro Ferreiro Lenhador Oleiro Pedreiro Carroceiro / Tropeiro Trabalhador Bracal Ordenhador Derribador de Madeira Vaqueiro Fonte: Censo Demográfico de 1991. Elaboração: Ipeadata. O Gráfico 5 apresenta a média dos salários rurais diários por ocupação e por região para os dois anos selecionados. Devido às mudanças de moeda entre 1920 e 1991, optamos por calcular os salários em número índice, sendo os dados referentes ao Brasil igual a 100. Dessa forma, a média nacional, representada no gráfico por uma linha horizontal, é significativa para os dois anos. Ao contrário do que esperávamos, a região Norte apresentou a maior variação positiva de salário em quase todas as categorias. Por outro lado, a região Nordeste ficou com os piores indicadores em todas as ocupações e para todos os anos, estando sempre abaixo da média brasileira. De forma marginal, o efeito uniformização pode ser percebido pelas quedas nos salários de 1920 para 1991 em algumas ocupações, como foi o caso do pedreiro na região Sul, e do trabalhador braçal na região Sudeste. Como seguimos um critério rígido para a compatibilização das ocupações, a constatação da volatilidade dos salários rurais per se indica que a criação do salário mínimo teve impactos diferentes entre as regiões brasileiras, e que um aumento nos níveis salariais não significa garantia 29 de pagamento dos encargos trabalhistas previstos em lei, o que é bastante coerente com os elevados níveis de informalidade existentes ainda hoje no país. Além da instituição do salário mínimo como piso para todas as atividades no Brasil, o aumento nos níveis salariais rurais também pode ter sido resultado de outros fatores como, por exemplo, custo de vida, organização dos trabalhadores, e efetividade das instituições jurídicas. Por essa razão, a próxima seção analisa uma série anual de salários rurais, onde esse tipo de verificação é possível. 30 Gráficos 5 Média dos salários rurais diários, por ocupação e por região, 1920 e 1991 Carpinteiro Ferreiro 140 130 130 120 120 (Brasil = 100) (Brasil = 100) 140 110 100 90 110 100 90 80 80 70 70 60 60 Centro-Oeste Nordeste Norte Sudeste Fonte: Censos Demográficos de 1920 e 1991. Elaboração: Ipeadata. Sul 1920 Centro-Oeste Nordeste Sudeste Sul 1920 1991 Oleiro 140 140 130 130 120 120 (Brasil = 100) (Brasil = 100) Lenhador 110 100 90 110 100 90 80 80 70 70 60 60 Centro-Oeste Nordeste Norte Sudeste Fonte: Censos Demográficos de 1920 e 1991. Elaboração: Ipeadata. Sul 1920 Centro-Oeste Nordeste Norte Sudeste Fonte: Censos Demográficos de 1920 e 1991. Elaboração: Ipeadata. 1991 Pedreiro Sul 1920 1991 Carroceiro e Tropeiro 140 150 130 140 120 130 (Brasil = 100) (Brasil = 100) Norte Fonte: Censos Demográficos de 1920 e 1991. Elaboração: Ipeadata. 1991 110 100 90 80 120 110 100 90 80 70 70 60 60 Centro-Oeste Nordeste Norte Sudeste Fonte: Censos Demográficos de 1920 e 1991. Elaboração: Ipeadata. Sul 1920 Centro-Oeste Nordeste Norte Sudeste Fonte: Censos Demográficos de 1920 e 1991. Elaboração: Ipeadata. 1991 Trabalhador Braçal Sul 1920 1991 Ordenhador 150 200 140 180 (Brasil = 100) (Brasil = 100) 130 120 110 100 90 160 140 120 100 80 80 70 60 60 Centro-Oeste Nordeste Norte Sudeste Sul 1920 Fonte: Censos Demográficos de 1920 e 1991. Elaboração: Ipeadata. Centro-Oeste 1991 Nordeste Norte Sudeste Derribador de Madeira Sul 1920 Fonte: Censos Demográficos de 1920 e 1991. Elaboração: Ipeadata. 1991 Vaqueiro 180 140 130 160 (Brasil = 100) (Brasil = 100) 120 140 120 100 110 100 90 80 80 70 60 60 Centro-Oeste Nordeste Norte Fonte: Censos Demográficos de 1920 e 1991. Elaboração: Ipeadata. Sudeste Sul 1920 Centro-Oeste 1991 Nordeste Norte Fonte: Censos Demográficos de 1920 e 1991. Elaboração: Ipeadata. Sudeste Sul 1920 1991 4.2. O que dizem os dados de Remuneração do Trabalho Agrícola A seção anterior apresentou a análise do primeiro e do último Censos do século XX, contemplando o período anterior à legislação trabalhista e o posterior à Constituição Federal de 1988. De um modo geral, as mudanças observadas nesse período indicam que a instituição do salário mínimo pode ter 31 impactado os níveis salariais das atividades agrícolas através do efeito uniformização. Como outros fatores também podem ter contribuído para essas mudanças, foram selecionados os dados de salários pagos no setor agrícola ao trabalhador eventual (safrista) e ao empregado permanente, a partir de 1966. No caso dos diaristas, foi calculado o salário mensal considerando uma folga semanal, ou seja, tomando como base vinte e seis dias de trabalho por mês. A idéia foi verificar o comportamento dos salários nos anos subseqüentes à promulgação das leis discutidas na seção 3. Gráfico 6 Salários reais pagos no setor agrícola, Brasil, 1966 a 1999 (ago. 1994 = 100, Deflator: IGP-DI) 1994-1995 1984-1986 240 1973 260 220 200 180 160 140 120 100 80 19 66 19 67 19 68 19 69 19 70 19 71 19 72 19 73 19 74 19 75 19 76 19 77 19 78 19 79 19 80 19 81 19 82 19 83 19 84 19 85 19 86 19 87 19 88 19 89 19 90 19 91 19 92 19 93 19 94 19 95 19 96 19 97 19 98 19 99 60 Fonte: FGVDados. Elaboração: Própria. Permante Diarista O Gráfico 6 apresenta a evolução dos salários reais pagos no setor agrícola, e destaca três momentos distintos: 1973, 1984-1986 e 1994-1995. O primeiro deles se refere à criação da Lei no 5.889, primeira lei regulamentada de caráter estritamente rural. Note que nos dois anos subseqüentes houve um incremento substancial nos salários, em especial no salário do diarista.19 Esse incremento na média dos salários recebidos no setor agrícola pode ser interpretado como conseqüência da criação da Lei no 5.889. Os anos seguintes da década de 1970 foram anos de relativa estabilidade. A partir de 1980, os salários rurais voltaram a sofrer queda acentuada. Não por acaso, esse período foi marcado pela elevação da taxa de juros nos Estados Unidos – principal credor do Brasil –, pelo conseqüente aumento do endividamento externo e pelo processo de inflacionário. As áreas 19 Vale lembrar que os diaristas, apesar de serem contratados pelo sistema de diárias, recebiam na maioria das vezes a remuneração no final de cada mês. 32 rurais, em especial na região Nordeste, sofreram com períodos de seca e quebra de produção. Esse cenário de crise no setor agrícola, juntamente com as quedas nos salários rurais, propiciou as sucessivas greves dos trabalhadores, reivindicando melhores salários e condições de trabalho. As mais conhecidas ocorreram nas cidades paulistas de Guariba e Leme, entre os anos de 1984 e 1986 – segundo destaque no Gráfico 6. Como foi amplamente documentado na época, dentre as principais reivindicações estavam: a jornada de trabalho diária de 8 horas, a elevação do piso salarial, o fornecimento de ferramentas, roupas e equipamentos de proteção individual, a melhoria das condições de transporte para o local de trabalho, e o pagamento das horas de transporte e dos dias não trabalhados por motivos alheios aos trabalhadores (Alves, 1993). No caso de São Paulo, havia ainda reivindicações específicas do setor sucroalcooleiro, como o pagamento por metro de cana cortada, em substituição do pagamento por tonelada.20 Nem todas as reivindicações foram atendidas, entretanto, no segundo semestre de 1986 os salários rurais reais chegaram ao seu nível mais elevado de toda a série. A partir desse ano, os salários apresentaram quedas subseqüentes. Nesse momento o Brasil vivia um acentuado processo de hiperinflação associado à perda generalizada do poder de compra. O setor agrícola, particularmente, enfrentava a derrocada do Programa Pró-Álcool, e a política nacional de tabelamento de preços no mercado doméstico. Esses fatores, juntamente com as duas quebras de safra que viriam em 1990 e 1991 foram fundamentais para a derrocada da agricultura brasileira (Rezende, 2000). Entre 1992 e 1993 foram registrados os níveis de salário mais baixos de toda a série, tanto para o empregado permanente quanto para o trabalhador eventual. A partir de 1994, com a adoção do Real, o Brasil entra numa fase de estabilidade monetária. No setor agrícola, o governo federal intensificou as linhas de crédito e houve nova expansão da produção. O aumento nos níveis salariais a partir desse ano também pode ser explicado pela criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que iniciou um trabalho de fiscalização na zona rural, através da instituição de multas pesadas e suspensão da produção para os produtores que não pagassem todos os encargos trabalhistas previstos em lei. Mas, de que forma se comportou os salários rurais nas diferentes regiões do Brasil? O Gráfico 7 apresenta os dados de salários do Gráfico 6 para as regiões Nordeste e Sudeste em relação ao salário mínimo vigente. Note que até 1973 os salários dos diaristas eram inferiores ao salário mínimo em ambas as regiões – cerca 20 Nessa modalidade de pagamento, cada metro de cana cortada teria um preço definido de acordo com o contrato coletivo de trabalho. Ao final de cada dia, o cortador de cana receberia um recibo, explicitando a quantidade de metros cortada por ele e o valor do metro de cana acordado para aquele eito. O valor do metro podia variar com o tipo de cana – cana de primeiro corte, cana caída, cana enrolada, etc. Assim, o trabalhador tinha controle da sua produção, já que o pagamento por tonelada era calculado na usina por não existir balança nos locais de produção. 33 de 70% e 48% do mínimo, respectivamente. Isso indica que nos dois casos o diarista recebia de salário em dinheiro em média mais do que os 30% previstos na CLT. Em 1973 observamos um incremento nos salários em ambas as regiões, que pode ser atribuído à criação da Lei no 5.889. Entretanto, no Nordeste esse incremento não foi suficiente para elevar o salário dos diaristas a níveis superiores ao mínimo. Isso só vai ocorrer nessa região a partir de 1983. O Gráfico 7 apresenta ainda as trocas de moeda ocorridas a partir de 1966.21 Note que a forte variação observada nos salários rurais a partir de 1983 coincide com a reincidência dos planos econômicos de contenção inflacionária adotados pelo governo federal, o que não descarta a constatação anterior de forte relação entre as greves dos trabalhadores rurais com o pico nos salários atingido no ano de 1986. Gráfico 7 Salários reais pagos no setor agrícola ao diarista e o salário mínimo, regiões Sudeste e Nordeste, 1966 a 1999 (ago. 1994 = 100, Deflator: IGP-DI) 240 190 140 90 19 66 19 67 19 68 19 69 19 70 19 71 19 72 19 73 19 74 19 75 19 76 19 77 19 78 19 79 19 80 19 81 19 82 19 83 19 84 19 85 19 86 19 87 19 88 19 89 19 90 19 91 19 92 19 93 19 94 19 95 19 96 19 97 19 98 19 99 40 Salário Mínimo Fonte: Ipeadata e FGVDados. Elaboração: Própria. Sudeste Mudanças de Moeda Nordeste Se compararmos os Gráficos 6 e 7 com os dados dos Censos de 1920 e 1991 analisados na seção anterior, verificamos que a Lei no 5.889 foi mais importante para as atividades agrícolas do 21 Em fevereiro de 1967, a moeda passou de Cruzeiro (Cr$) para Cruzeiro Novo (NCr$), em maio de 1970, voltou para Cruzeiro. Em agosto de 1984, os centavos foram eliminados, para retornarem em fevereiro de 1986, com os Planos Cruzado I e Cruzado II. Em janeiro de 1989, a moeda passou novamente de Cruzado para Cruzado Novo, com os Planos Collor I e Collor II. Em agosto de 1993, o Brasil entrou na fase de transição para o Plano Real, adotando como moeda o Cruzeiro Real (CR$). A última mudança ocorreu em julho de 1994, com a implantação do Real (R$). 34 que a CLT e a Constituição Federal de 1988. De fato a regulamentação de leis trabalhistas teve impacto positivo nos níveis de salários, mas não foi suficiente para garantir que os trabalhadores rurais tivessem acesso a todos os direitos previstos em lei, como, por exemplo, a Carteira Profissional. No campo, ao contrário dos centros urbanos, o estabelecimento de novas regras é mais moroso. Por mais que haja um esforço por parte do MTE em fiscalizar as relações de trabalho nas atividades agrícolas, onde há maior dificuldade, há também maior incidência de irregularidade. 5. Considerações Finais O objetivo deste artigo foi analisar os salários recebidos nas atividades agrícolas a partir da evolução dos direitos trabalhistas conquistados pelo trabalhador rural. Entende-se que os salários recebidos têm uma relação direta com a renda do domicílio e, conseqüentemente, com o grau de pobreza. A hipótese adotada no presente estudo foi que os direitos trabalhistas previstos em lei estão sendo cumpridos de forma insatisfatória, mas que a criação do salário mínimo impactou positivamente os salários dos trabalhadores rurais. Inicialmente identificamos três fases distintas da evolução da legislação trabalhista no campo. A primeira delas se refere à criação da CLT, que incluía alguns títulos e capítulos explicitamente aplicáveis aos trabalhadores rurais. Dentre os direitos previstos em 1943 estavam o aviso prévio, o repouso semanal remunerado, o salário mínimo, as férias, o contrato individual de trabalho e a remuneração em moeda corrente pelos serviços prestados. Verificamos que, em termos de cumprimento, os resultados foram inexpressivos para todas as regiões do Brasil. Entretanto, a Secretaria de Agricultura do estado de São Paulo identificou alguns processos de empregados contra produtores rurais nos tribunais estaduais acerca desses direitos. A segunda fase da legislação trabalhista no campo se refere à criação do ETR em 1963. Esse Estatuto foi instituído pelo governo federal com o objetivo de criar uma legislação única para reger as relações de trabalho nas atividades agrícolas brasileiras. Além da confirmação dos dispositivos da CLT, o ETR ainda propunha a criação de um Conselho Arbitral vinculado ao Ministério Público, a extensão do prazo de reclamação, a estabilidade no emprego, já garantida nos centros urbanos, a equivalência do proprietário, do empreiteiro e do parceiro frente às reclamações trabalhistas, a obrigatoriedade da Carteira Profissional e o estabelecimento da jornada de trabalho de 8 horas. Contudo, a maior contribuição do Estatuto foi a criação do seguro obrigatório (FUNRURAL), por ter sido a primeira vez que se instituiu um mecanismo governamental que dissociasse a assistência aos trabalhadores da benevolência do patrão ou das políticas de caridade locais. Aliás, a previdência rural foi o único 35 dispositivo do ETR que recebeu regulamentação e, por isso, o único que efetivamente existiu. A terceira e última fase da evolução da legislação trabalhista no campo se inicia com a criação da Lei no 5.889. Além da ampliação da definição de empregado rural, a maior contribuição da Lei no 5.889 foi a inclusão do contrato de safra como alternativa para a contratação de mão de obra de curto e curtíssimo prazos. Na prática, observamos que a burocracia concernente a essa modalidade de contrato é tão grande, que para os pequenos produtores se torna inviável. Concluímos que a maior dificuldade encontrada pelo governo federal para regular o mercado de trabalho agrícola foi o enquadramento das diferentes modalidades de relações de trabalho em apenas duas categorias – empregador e empregado – sem levar em conta o serviço de empreitada (terceirização de tarefas) e a intermediação de mão de obra, ambas previstas nos outros setores da economia. Além disso, outras características específicas do campo não foram abordadas pela legislação trabalhista, como a instituição do salário chuva. Através da análise do Censo Demográfico de 1920, observamos que, dentre as ocupações selecionadas, as que se encontraram com salários acima da média foram aquelas fundamentalmente não-rurais, e que necessitam de qualificação técnica. Entretanto, a ocupação que apareceu com maior freqüência em todas as regiões foi o trabalhador braçal, que representava diversas categorias, como diarista, mensalista, colono, etc. No Censo de 1991, percebemos a permanência de praticamente as mesmas ocupações acima da média, mas os salários recebidos apresentaram menor variação, ou seja, mais próxima do valor médio. Esse processo foi identificado como uniformização dos salários, e pode ter ocorrido principalmente pela instituição do salário mínimo como piso para todas as atividades no Brasil. Na análise regional, a região Norte foi a que apresentou a maior variação positiva de salário em quase todas as categorias de 1920 para 1991. Por outro lado, a região Nordeste ficou com os piores indicadores em todas as ocupações e para todos os anos, estando sempre abaixo da média brasileira. Constatamos também que o efeito uniformização, perceptível nos dados agregados, apareceu de forma marginal na análise regional. A análise do impacto da legislação trabalhista nos salários rurais foi consolidada através da série anual de Remuneração do Trabalho Agrícola da FGV referente ao trabalhador eventual (safrista) e ao empregado permanente. Observamos que até o ano de 1973 os salários recebidos estavam acima dos 30% do mínimo previsto em lei, e que depois desse ano houve um incremento substancial nos salários, em especial no salário do diarista, que pode ser interpretado como conseqüência da criação da Lei no 5.889. Contudo, a elevação dos salários rurais a partir de 1983 e o pico da série em 1986 podem estar relacionados às reivindicações dos trabalhadores rurais por melhores salários e condições de trabalho. Observamos também que as trocas de moeda e a 36 hiperinflação, em especial na década de oitenta, contribuíram de maneira expressiva para a volatilidade dos salários rurais. A conclusão geral do presente artigo é que a legislação trabalhista, através da instituição do salário mínimo, contribuiu para a elevação dos níveis de salários recebidos pelo trabalhador rural. Entretanto, um aumento nos níveis salariais não significou garantia de pagamento dos encargos trabalhistas, o que é bastante coerente com os elevados níveis de informalidade existentes ainda hoje no país. Referências Bibliográficas ALVES, Francisco. Greve nos canaviais e agricultura modernizada: novos desafios. São Paulo: Revista São Paulo em Perspectiva, v.3, n.7, p.133-137, julho/setembro, 1993. AMADO, Jorge. Cacau. 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Indústria 21,36 23,44 24,18 25,08 24,57 25,81 24,36 24,99 24,32 21,80 21,20 19,01 17,66 18,28 17,48 18,05 16,47 16,86 16,50 14,77 14,32 12,32 11,92 12,35 13,05 13,08 12,63 12,19 11,52 11,71 13,63 11,19 10,78 10,89 11,19 9,69 12,47 13,79 12,61 12,09 10,82 11,39 9,79 8,10 7,79 7,72 7,56 9,85 5,77 5,51 5,40 5,52 5,47 5,60 5,97 6,62 7,39 6,91 5,71 5,47 5,98 6,70 41 25,97 24,87 25,36 24,96 25,97 24,97 26,26 26,69 26,58 28,23 28,86 32,15 33,94 33,19 33,53 33,57 34,18 33,68 33,24 34,21 33,45 36,34 36,88 38,30 38,83 39,51 41,92 43,16 43,27 43,03 41,78 43,08 43,57 44,09 44,31 45,77 44,35 46,20 47,97 47,20 47,51 46,76 46,34 38,69 36,16 38,70 41,61 40,00 27,53 25,98 26,13 25,66 25,95 27,73 26,92 27,05 27,85 30,11 29,27 28,78 28,05 27,96 Serviços 55,68 54,56 53,01 53,33 52,81 52,51 52,79 51,93 52,75 53,34 53,72 52,16 51,30 51,48 52,05 51,74 52,63 53,04 54,28 55,44 56,65 55,86 55,84 56,22 55,33 54,20 51,35 51,24 52,40 53,09 52,72 54,80 54,44 52,73 55,16 55,61 57,11 53,46 52,89 48,69 57,59 58,64 70,36 70,34 68,93 77,50 81,82 64,25 66,70 68,50 68,47 68,82 68,58 66,67 67,10 66,33 64,77 62,97 65,02 65,75 65,97 65,34 ANEXO II Média dos salários rurais diários, por ocupação e por região, 1920 e 1991 (1920 = Mil-Réis, 1991 = Cruzeiro) Carpinteiro Ferreiro Lenhador Oleiro Pedreiro Carroceiro / Tropeiro Trabalhador Bracal Ordenhador Derribador de Madeira Vaqueiro Centro-Oeste 1920 1991 8.100 2.125 8.981 3.248 1.610 5.000 1.714 6.613 2.012 3.038 1.122 1.877 1.716 2.708 1.722 3.681 2.050 2.613 1.433 Nordeste 1920 1991 5.236 1.495 5.553 1.432 2.399 900 3.356 950 5.230 1.543 1.935 927 1.342 1.095 1.808 1.331 2.666 1.116 2.102 843 Norte 1920 7.278 7.852 4.086 5.500 7.211 2.800 1.529 3.591 3.929 1.923 Fonte: Censos Demográficos de 1920 e 1991. Elaboração: Ipeadata. 42 1991 2.334 2.159 1.600 1.781 2.286 1.730 1.995 3.172 2.581 1.218 Sudeste 1920 1991 7.342 1.965 7.222 2.583 3.841 1.567 5.084 1.557 7.156 2.419 2.966 1.674 2.513 1.573 3.018 1.957 4.503 1.619 2.803 1.274 Sul 1920 7.824 7.600 4.457 5.470 8.634 3.971 2.964 2.862 5.198 2.293 1991 2.397 2.046 1.543 1.757 2.328 1.636 1.480 1.726 1.451 1.542 Brasil 1920 6.710 6.806 3.369 4.475 6.707 2.760 2.069 2.633 3.835 2.506 1991 1.853 1.929 1.305 1.338 2.014 1.242 1.421 1.734 1.626 1.138 ANEXO III Salários reais pagos no setor agrícola ao diarista e o salário mínimo, 1966 a 1999 (ago. 1994 = 100, Deflator: IGP-DI) PERMANENTE Ano Brasil 111,69 jun-66 107,13 dez-66 118,44 jun-67 114,27 dez-67 117,09 jun-68 109,35 dez-68 123,65 jun-69 122,08 dez-69 123,52 jun-70 dez-70 128,07 jun-71 132,79 dez-71 130,79 132,58 jun-72 135,28 dez-72 145,93 jun-73 154,99 dez-73 162,56 jun-74 159,22 dez-74 173,77 jun-75 170,02 dez-75 172,83 jun-76 173,60 dez-76 176,85 jun-77 182,77 dez-77 195,24 jun-78 185,24 dez-78 193,46 jun-79 195,38 dez-79 191,13 jun-80 184,79 dez-80 179,44 jun-81 194,78 dez-81 188,21 jun-82 196,45 dez-82 180,97 jun-83 163,61 dez-83 154,43 jun-84 161,76 dez-84 173,13 jun-85 184,98 dez-85 jun-86 148,90 dez-86 181,63 jun-87 165,44 139,22 dez-87 152,52 jun-88 168,73 dez-88 174,04 jun-89 204,11 dez-89 119,53 jun-90 117,33 dez-90 121,93 jun-91 129,03 dez-91 159,85 jun-92 114,40 dez-92 170,24 jun-93 151,79 dez-93 166,13 jun-94 85,56 dez-94 103,03 jun-95 102,24 dez-95 105,75 jun-96 104,64 dez-96 105,66 jun-97 104,24 dez-97 108,01 jun-98 108,34 dez-98 106,03 jun-99 100,14 dez-99 Fonte: Ipeadata e FGVDados. Nordeste 91,83 89,99 97,76 95,51 92,76 86,11 92,11 94,69 101,35 94,62 97,85 95,70 95,75 96,14 103,69 112,50 125,00 124,04 135,55 127,69 134,78 130,93 135,81 136,86 149,56 151,24 162,32 169,06 162,41 147,73 156,98 168,47 170,74 170,63 162,01 143,29 151,11 143,39 155,45 169,02 138,66 156,86 148,31 126,33 139,11 151,49 151,40 173,78 101,57 103,60 101,28 111,14 132,23 98,48 150,71 129,58 141,76 75,28 89,72 86,25 91,13 88,90 88,77 88,01 91,88 91,74 86,12 84,06 EVENTUAL Sudeste Brasil 111,69 107,13 116,56 112,57 121,65 113,45 133,75 131,20 130,91 139,54 145,90 142,75 141,42 146,95 158,09 169,35 169,76 170,49 183,82 180,61 181,67 189,36 190,13 204,51 216,60 204,16 207,10 209,62 197,66 197,64 180,70 202,49 191,33 208,06 182,58 171,63 146,39 167,52 174,10 189,68 152,72 198,36 170,86 144,08 160,52 183,61 188,19 219,02 132,85 123,59 132,44 148,05 181,03 118,25 176,92 161,54 178,63 91,47 108,67 111,00 113,56 114,86 116,15 114,81 117,90 119,65 116,27 109,12 100,67 97,48 102,65 101,11 106,35 100,93 103,01 100,26 104,30 105,11 110,39 111,97 116,05 117,66 132,63 149,99 173,61 181,65 189,08 187,56 188,33 183,06 190,10 190,35 187,72 186,48 190,51 195,00 203,49 194,24 194,02 189,43 179,02 177,95 166,98 153,20 147,50 148,05 161,92 179,04 162,44 233,86 201,73 154,48 137,46 147,93 183,95 180,46 127,85 132,57 138,67 147,29 147,97 123,81 159,73 138,80 162,63 117,92 134,48 129,70 129,39 127,21 130,12 125,41 124,70 125,30 122,21 116,48 43 Nordeste 85,18 83,56 88,96 90,46 89,35 81,74 80,70 77,72 79,87 84,74 88,82 87,92 88,09 89,09 97,18 108,29 138,16 146,59 152,48 148,85 152,29 148,83 153,38 152,82 153,24 157,54 161,40 167,14 174,02 161,86 167,68 164,70 155,73 146,47 139,82 129,12 135,24 124,95 129,23 154,62 135,37 184,63 147,10 118,76 110,88 119,54 147,16 140,36 99,33 101,55 102,85 112,84 107,90 100,02 125,88 104,37 119,14 90,08 99,99 96,85 99,49 96,38 99,83 94,97 94,15 95,26 91,49 88,20 Sudeste 98,73 92,47 99,72 98,00 113,08 109,81 108,92 107,38 115,56 113,56 116,53 122,13 130,03 129,26 148,27 173,64 188,19 195,84 200,48 202,60 203,43 200,65 213,85 217,39 210,71 212,20 214,32 212,91 214,71 205,66 201,73 193,16 184,01 185,28 166,05 159,30 143,95 150,35 174,14 187,17 175,98 262,58 231,15 168,96 161,39 176,22 220,74 207,20 147,85 149,38 167,88 175,52 187,44 128,11 182,16 162,09 193,88 135,88 166,89 156,58 152,79 151,60 151,24 150,20 149,21 151,78 145,95 138,14 Salário Mínimo 193,59 179,97 184,25 179,08 184,61 177,14 174,63 177,98 175,67 178,92 174,73 179,92 176,77 184,58 181,26 186,71 171,61 172,84 182,78 187,94 180,26 186,21 177,21 192,40 185,31 192,91 182,78 190,53 180,19 171,97 165,08 172,62 172,62 172,27 162,97 135,81 128,26 122,16 123,41 132,11 127,73 126,87 111,50 96,43 103,11 98,57 105,53 99,37 79,60 76,49 82,33 75,57 91,60 77,94 90,00 83,61 72,27 66,44 70,73 82,05 81,38 84,05 82,45 84,13 84,26 88,86 84,30 80,38 Artigo 2 O MERCADO DE TRABALHO AGRÍCOLA E A INTERMEDIAÇÃO DE MÃO DE OBRA1 1. Introdução Este artigo tem como objetivo apresentar uma compilação de dois estudos realizados entre os anos de 2006 e 2010 sobre intermediação de mão de obra. O primeiro deles, na região de Piracicaba (SP), e o segundo, na Alemanha. A intermediação de mão de obra na agricultura, apesar de ser uma prática recorrente, ainda hoje é proibida pela legislação trabalhista brasileira. Como apresentado em Kreter (2010), a empreitada nas propriedades rurais é restrita às atividades-fim, ou seja, a qualquer atividade fora do processo produtivo, quais sejam: colocação de cerca, construção de celeiro, etc. Situações como as comumente vista entre prestadoras de serviço e montadoras de veículos automotores, por exemplo, são impensáveis no campo, embora elas tenham muitas semelhanças quanto à divisão de tarefas nas diferentes etapas de produção. Na agricultura, a intermediação – ou empreitada, como é conhecida – sempre existiu, e por ser ilegal, deve ser responsável por grande parte da informalidade e seus impactos sobre os níveis de desigualdade e pobreza nesse setor. A intensificação da fiscalização nos últimos anos, como será apresentado no estudo de caso em Piracicaba, melhorou as condições de trabalho e moradia dos trabalhadores rurais. Mas, ao contrário do esperado, a mesma fiscalização, em conjunto com uma política massiva de crédito de investimento por parte do governo federal desde a década de 1990, vem acelerando o processo de mecanização e a conseqüente substituição dos trabalhadores sazonais por máquinas, sem necessariamente serem absorvidos em outros setores da economia.2 Por outro lado, é interessante notar que em países com alto grau de mecanização na agricultura, como é o caso da Alemanha, determinadas culturas ainda demandam mão de obra em alguma etapa da produção. Deve-se avaliar, portanto, se é possível mudar o padrão atual, em favor de um outro mais consistente visando a manutenção dos postos de trabalho já existentes. Isso requereria uma mudança 1 Os estudos de caso presentes neste artigo foram financiados com verba da taxa de bancada do CNPq e da bolsa de doutorado sanduíche do DAAD/Capes. 2 Cabe ressaltar que a crítica ao processo de mecanização é restrita às linhas de crédito subsidiadas para a compra de máquinas e equipamentos. O destaque, nesse sentido, é para o programa Moderfrota. Ao contrário das décadas anteriores, hoje em dia o setor agrícola encontra-se capitalizado suficiente para financiar novos investimentos sem a necessidade de ajuda do governo federal. 44 política que visasse absorver em maior quantidade tanto no setor agrícola quanto em outros setores da economia um tipo de mão de obra hoje considerado pouco qualificada, embora passível de adquirir, a um custo relativamente baixo, a qualificação necessária para esse novo padrão de tecnologia. O presente artigo está dividido em cinco seções, incluindo esta introdução. A seção 2 apresenta as características do setor agrícola, dando destaque para a oferta de mão de obra e a sazonalidade. Na seção 3 descreve os principais resultados da pesquisa de campo realizada com a produção de cana-de-açúcar na região de Piracicaba (SP). Esta seção aborda as atividades dos empreiteiros, as condições de vida dos trabalhadores sazonais em São Paulo, as relações entre os agentes entrevistados na região de Piracicaba, os tipos de contratos estabelecidos pelos intermediários e os tipos de empreitada na região de Piracicaba. A seção 4 contempla o segundo estudo de caso do artigo: uma visão geral sobre o fluxo migratório do Leste europeu para a Alemanha. Além de apresentar uma visão histórica do País, a seção descreve os fluxos migratórios Leste-Oeste, as políticas alemãs para o mercado de trabalho agrícola, e o processo de contratação de estrangeiros para o trabalho sazonal. Finalmente a seção 5 apresenta as considerações finais do artigo. 2. Características do Setor Agrícola Existem características gerais do mercado de trabalho, e características específicas para o setor agrícola. Essas singularidades tornam-se claras quando pensamos, por exemplo, no processo de contratação de mão de obra sazonal. Se o produtor morasse num centro urbano, ele provavelmente deixaria um cartaz na porta do seu estabelecimento com os dizeres “procura-se trabalhador”. Mas na zona rural, quanto mais isolada a propriedade, maior a probabilidade do cartaz nem ser visto. Claro que esse problema pode ser amenizado com o crescimento das cidades, como já ocorre em muitas regiões da Europa, mas a expansão dos centros urbanos está longe de ser considerada uma solução para o processo de contratação de mão de obra no campo. Pelo contrário. Para aqueles que ainda estão ocupados no setor agrícola, a cidade torna-se uma oportunidade para se especializar e, conseqüentemente, adquirir salários melhores e mais estáveis em outras atividades. Assim, os produtores enfrentam todos os anos a difícil tarefa de encontrar pessoas dispostas a trabalhar em suas propriedades, com contrato de curtíssima duração e salários abaixo da média da região. Em épocas de safra, quando a demanda por mão de obra aumenta consideravelmente, a situação é ainda mais grave. 45 Além do problema da oferta de mão de obra, outro fenômeno recorrente na agricultura é a sazonalidade. A sazonalidade está presente em todos os setores da economia. No entanto, a razão pela qual ela ocorre e suas respectivas conseqüências variam de um setor para o outro. Na agricultura, particularmente, a sazonalidade explica grande parte dos empregos de curta duração, e gera os seguintes problemas: (a) desincentivo ao investimento em mão de obra, devido à alta rotatividade; (b) concentração de demanda por mão de obra em períodos curtos, especialmente durante a época da colheita; e (c) como já apresentado, incerteza em relação à oferta de mão de obra, muitas vezes como um problema de assimetria de informação (Rezende e Tafner, 2006). Destaca-se ainda a possibilidade de quebra de safra por problemas climáticos, e a perda (parcial ou total) da produção pelo atraso em algumas de suas etapas3, além do alto custo de supervisão. Nesse sentido, duas considerações devem ser feitas acerca da qualificação da mão de obra. Se o trabalhador sazonal é também pequeno produtor ou agricultor familiar, não há necessidade de se investir em qualificação específica4. Contudo, mesmo que o trabalhador sazonal não tenha experiência, não vale a pena para o produtor investir em qualificação. A incerteza em relação à oferta de mão de obra poderia até induzir o produtor a investir em na sua para contratá-la na safra seguinte, como uma espécie de pacto de fidelidade para contratações futuras. Na prática, isso não é observado, já que boa parte dos trabalhadores mora em regiões distantes do local de trabalho – às vezes, em outros países –, e acabam não possuindo qualquer vínculo com o local de trabalho atual. Uma alternativa encontrada pelos produtores para minimizar o problema de oferta de mão de obra é criação do condomínio dos empregadores. Através desse sistema, o trabalhador é contratado em caráter permanente por uma cooperativa local e trabalha ao longo do ano em diferentes propriedades. Entretanto, esse tipo de contratação só é adequada para regiões com diversidade de produção. Se a região for monocultora, por exemplo, a demanda por mão de obra ocorrerá simultaneamente, o que não permitirá um sistema de rodízio entre os produtores (Rezende e Kreter, 2007). Outra alternativa defendida em muitos países e apoiada pela FAO, é o subsídio à agricultura familiar, que barateia o custo do capital para o setor agrícola. Nesse caso, os picos sazonais de demanda por mão de obra seriam minimizados pela divisão do trabalho entre os membros da família. 3 Esse atraso pode ser proveniente de greve dos próprios trabalhadores contratados, ou de alguma etapa externa, como no transporte. 4 Ao contrário da literatura tradicional, em que a qualificação é analisada a partir do histórico de educação, o presente artigo considera como qualificação específica a atividade agrícola caracterizada pelo uso extreme da força física, como no caso dos cortadores de cana, ou pela execução de uma determinada técnica, como no caso dos apanhadores de café. Assim como ocorre em qualquer atividade, nem todas as pessoas que buscam emprego estão aptas a trabalhar no setor agrícola. 46 Nos países em que o sistema de crédito é utilizado por todos os produtores, em especial o crédito para investimento, o agricultor familiar conta ainda com a possibilidade de mecanizar algumas etapas da produção (Rezende, 2006). Mas no Brasil, além da agricultura familiar ter acesso restrito à políticas de crédito, ela tem pouca representatividade na produção nacional. Por parte do empregado, é importante destacar que o trabalho sazonal é percebido como qualquer outro trabalho temporário. Ele pode representar renda complementar para os que já possuem uma atividade principal, ou renda principal, para aqueles que não encontram outra alternativa no mercado de trabalho permanente. De qualquer forma, o trabalho sazonal é característico por atrair uma população de baixa renda, que, no caso do Brasil, é proveniente de regiões de periferias, e que, no caso da Alemanha, é proveniente de países de fronteira. Por muito tempo, a literatura internacional acreditou que os problemas decorrentes da oferta de mão de obra seriam resolvidos através de um extensivo processo de mecanização, também conhecido como modelo de inovação induzida. Essa percepção teve como base o modelo de Hicks, que analisa a renda a partir da escolha entre capital e trabalho. Hayami e Ruttan (1985) aplicaram esse modelo no Japão e nos Estados Unidos, e concluíram que no caso americano, onde há abundância de terra e escassez de mão de obra, foram adotadas tecnologias poupadoras de mão de obra e intensivas em terra. De forma inversa, no caso japonês, os autores verificaram que as tecnologias implementadas na agricultura eram intensivas em mão de obra e poupadoras de terra. Mas mesmo nos Estados Unidos, em que houve o uso massivo de tecnologia, alguns estados, como a Califórnia, ainda precisam recorrer aos estrangeiros para suprir a demanda do setor.5 O mesmo problema ocorre na Alemanha, onde estrangeiros se candidatam todos os anos a uma vaga na agricultura. Nesse sentido, o caso do Brasil é único. Não há necessidade de se recorrer a outros países para suprir a demanda de mão de obra, o salário permanece no País, e ainda aumenta a renda dos seus respectivos domicílios. Essa combinação poderia ser realmente positiva se boa parte dessa mão de obra não trabalhasse aquém das condições mínimas necessárias a qualquer trabalhador. Mas as dificuldades encontradas no mercado de trabalho agrícola não se resumem ao seu funcionamento per se. Tanto pesquisadores quanto o próprio governo têm dificuldade de analisar o setor pela falta de dados, justificada tanto pela grande mobilidade da mão de obra e pelo alto grau de informalidade, quanto pela falta de informação nas pesquisas com coletas regulares. Mais uma vez, o Brasil é uma exceção. A PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) dedica boa parte do seu questionário sobre características do trabalho e rendimento dos moradores às atividades 5 Uma comparação entre os sistemas de intermediação de mão de obra da Califórnia, da Alemanha e do Brasil encontrase em Kreter et al. (2010). Neste artigo, apresentamos apenas os casos do Brasil e da Alemanha. 47 agrícolas. Contudo, em setembro – mês em que o questionário é aplicado – aqueles que estão ocupados nas atividades sazonais da agricultura se encontram temporariamente fora do domicílio (chamados, na década de 1980, como residentes ausentes), e seus dados são fornecidos por terceiros, que muitas vezes não conseguem dar todas as informações. Isso pode ser verificado pelo alto percentual de missing, principalmente na caracterização da mão de obra por cultura. O estudo de caso apresentado na próxima seção trata do corte da cana no estado de São Paulo. Ele é um exemplo interessante porque reúne não só o problema de oferta e de intermediação de mão de obra, mas também porque apresenta muitos missings, se fosse analisado apenas pela PNAD. 3. Brasil: Um Estudo de Caso sobre o Corte de Cana Essa pesquisa de campo foi realizada em duas etapas entre os anos de 2006 e 2008 na região de Piracicaba (SP). Na primeira delas, os agentes foram escolhidos tendo por base um estudo realizado anteriormente pela UNIMEP6 e o Dossiê Mobilidade, produzido pela Pastoral do Migrante de Guariba em 2003. Assim, foram entrevistados os seguintes agentes: Sindicato dos Empreiteiros, Prestadores de Serviços de Mão de obra e Serviços Terceirizados na Área Rural de Capivari e Região, Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Piracicaba e Saltinho, Central de Pastoral da Diocese de Piracicaba, Subdelegacia do Ministério do Trabalho de Piracicaba e Grupo COSAN. Juntamente com o Sindicato dos Empreiteiros, foi realizada ainda uma visita a dois dos alojamentos dos empreiteiros na região. Nessa seção apresentamos os principais resultados da pesquisa. 3.1. As Atividades dos Empreiteiros na Região de Piracicaba O Sindicato dos Empreiteiros, Prestadores de Serviços de Mão de obra e Serviços Terceirizados na Área Rural de Capivari e Região foi criado em 2003. Sua primeira preocupação foi a de montar um quadro de advogados para verificar a legalidade da atividade (terceirização). Em 2007, o Sindicato possuía 139 sindicalizados, localizados nos municípios de Capivari e Rio das Pedras. A maior parte dos associados era antigos fornecedores de cana das usinas, mas também tinham pessoas da região, com capital, que decidiram investir na terceirização de serviços para o setor. É considerado pequeno empreiteiro o que tem apenas uma turma7, médio, o que possui duas turmas, e grande o que possui três ou mais (normalmente os grandes possuem cinco turmas). No caso dos grandes, para evitar o 6 Os resultados deste estudo foram apresentados sob forma de painel – O trabalho agrícola temporário assalariado na agroindústria canavieira: o caso do corte na região de Piracicaba – no Congresso da SOBER de 2005. 7 Cada turma tem cerca de 40 trabalhadores, o equivalente à lotação de um ônibus (que os transporta para o trabalho). 48 pagamento de impostos mais pesados8, são abertas diversas empresas, com CNPJs distintos, cada uma delas com uma ou duas turmas. Até 2006 cada empreiteiro fazia sua própria contratação. Os contratos coletivos – ou seja, pelo sindicato – passaram a ser feitos a partir do ano seguinte. Os custos iniciais de operação9 – principalmente o de contratação – são normalmente bancados pelos pequenos empreiteiros. Os grandes recebem uma ajuda de custo das usinas. Os trabalhadores contratados pelos empreiteiros vêm principalmente da Bahia (Feira de Santana e grande região), da Paraíba (São José das Piranhas e Cajazeiras) e do Ceará, em iguais proporções (Figura 1). Figura 1 Regiões de origem dos trabalhadores sazonais contratados pelos empreiteiros de São Paulo Fonte: IBGE (2010). Quando os trabalhadores são contratados pelos empreiteiros, antes da contratação é feita uma pré-seleção ainda na origem. Todos eles recebem seguro de vida (com apólice na mão), contratação no local de moradia com carteira assinada, exame admissional (hemograma completo e exame clínico), registro em carteira e ônibus fretado com seguro para o transporte até São Paulo. Esse ônibus também é vistoriado pela vigilância sanitária (NR24 – condições de higiene e segurança) e segurado. 8 O Sindicato estava se referindo à possibilidade da utilização do SIMPLES pelas pessoas jurídicas associadas. Estão sendo considerados como custos iniciais de operação todas as etapas necessárias para a viabilização da mão de obra, desde a seleção na cidade de origem dos trabalhadores, à chegada dos mesmos no estado de São Paulo. 9 49 O transporte é dividido em duas etapas: o transporte da origem até o estado de São Paulo (alojamentos), e o transporte diário dos alojamentos até o local de trabalho. O deslocamento dos trabalhadores de sua origem só é permitido através de ônibus fretado e segurado. Normalmente o sindicato negocia a vinda com empresas transportadoras que existem nas duas pontas do percurso. Antes do embarque, a vigilância sanitária faz uma vistoria e concede também uma autorização. O transporte até o local do corte da cana é feito por turmas de cerca de 40 trabalhadores. Cada turma tem seu responsável, chamado turmeiro. Ele acompanha o grupo desde a saída do alojamento até seu retorno. O turmeiro pode ser também um cortador de cana, sendo remunerado pelos dois serviços realizados. Neste caso, os ônibus são fornecidos diretamente pelas usinas ou pelos empreiteiros. O custo do transporte diário é negociado previamente no ato do contrato coletivo entre dos empreiteiros e a usina. O processo de contratação é iniciado com a demanda da usina com o número de trabalhadores necessários para a próxima safra. A partir daí, os empreiteiros entram em contato com um trabalhador conhecido na região de origem (geralmente por telefone) – norte do estado de Minas Gerais e Nordeste. É esse trabalhador quem faz a propaganda na sua cidade. A propaganda, por sua vez, é feita das mais variadas formas: pela rádio, na praça da igreja, na missa e até com o apoio da prefeitura. Ex.: o padre avisa durante a celebração que num determinado horário as pessoas deverão se reunir embaixo do pé do imbuzeiro. Com o pessoal reunido, é feita uma pré-seleção, que inclui o exame admissional, o registro na carteira e o seguro de vida (todas as exigências do governo federal descritas anteriormente). Os trabalhadores contratados através do Sindicado dos Empreiteiros têm entre 18 e 40 anos, e são provenientes de cidades pequenas – de 2.000 a 5.000 habitantes. A maioria possui até 30 anos de idade. Um representante dos empreiteiros vai para a região de origem dos trabalhadores apenas uns cinco dias antes. Sua primeira parada é no Ministério do Trabalho na capital do estado, ou na cidade mais próxima da origem dos trabalhadores, quando ele dá entrada na documentação necessária para a contratação, incluindo fotos dos alojamentos e das condições de trabalho. A autorização é concedida em cerca de 24 horas, momento em que o empreiteiro segue viagem para efetivar a contratação dos trabalhadores. Apesar de todas as condições de trabalho serem corroboradas com fotos, o Ministério do Trabalho visita estes alojamentos para confirmar as condições declaradas. Por isso, todos os alojamentos possuem na entrada, de preferência num local visível, uma cópia do documento de vistoria da vigilância sanitária. 50 Tanto o sindicato, quanto as usinas procuram contratar trabalhadores produtivos de safras anteriores, ou que tiveram produção mediana e bom comportamento.10 Os empreiteiros participam como intermediários das diferentes etapas de produção – plantio, controle de pragas, queima, corte, limpeza da área cortada e transporte. Alguns podem até participar de mais de uma delas, mas o mais recorrente é a especialização do empreiteiro em um dos serviços. A preferência é que os migrantes sejam alocados no corte. O contrato com os migrantes dura cerca de 6 meses. A média de produção é de 10 toneladas por dia, com um salário mensal de R$1.000,00. Os gastos são em torno de R$250,00 por mês, que inclui alimentação e alojamento. Do valor restante, apenas 25% é gasto na região de trabalho em produtos, em geral, em eletroeletrônicos. Os outros 50% retornam com eles para as cidades de origem. Considerando 10 toneladas cortadas por dia por trabalhador, e 26 dias trabalhados no mês, cada turma de 40 trabalhadores corta 10.400 toneladas mensais. Admitindo que o preço acordado na última safra foi de R$6,59 por tonelada, a usina paga R$68.536,00 por turma ao empreiteiro. O empreiteiro ganha, por turma e por mês, cerca de R$2.750,00, 4% do total pago pela usina. 3.2. As Condições de Vida dos Trabalhadores Sazonais em São Paulo Os alojamentos modelo visitados na região de Piracicaba abrigam os trabalhadores sazonais migrantes contratados somente pelo Sindicato dos Empreiteiros. Esse alojamento tem capacidade para 120 trabalhadores, mas costuma receber entre 90 e 100 todos os anos. Os dois que visitamos possuem cozinhas e refeitórios, e se localizavam dentro de antigas vilas de fazendas, juntamente com os trabalhadores permanentes. Todos os serviços extras oferecidos aos trabalhadores contratados pelos empreiteiros, como moradia e alimentação, são pagos por eles mesmos, para evitar qualquer tipo de denúncia de escravidão por dívida. Um dos serviços recorrentes é o de alimentação. Nos alojamentos visitados, são contratadas cerca de três cozinheiras da origem dos trabalhadores para fazer a comida “do gosto deles”. Os salários das cozinheiras e os alimentos que elas trazem estão incluídos no rateio dos custos. O prato oferecido é sempre o mesmo todos os dias: arroz, feijão, farinha, carne (apenas de vaca ou porco) e molho. O molho é uma mistura com sustância, tipo batata. A salada também é oferecida, mas quase ninguém come. Nos armazéns próximos, os trabalhadores costumam comprar 10 O Sindicato nos confirmou a existência de uma lista de trabalhadores problemáticos, ou seja, uma lista com os nomes daqueles que pelo menos uma vez não cumpriram com todas as exigências dos contratos anteriores. Essa lista é trocada entre as usinas e os empreiteiros. Mas o contrário não acontece. Não há divulgação dos bons trabalhadores entre os dois. 51 alimentos para lanche e objetos de utilidade. O produto mais consumido fora das refeições costuma ser cachaça e biscoito. As cozinheiras iniciam as suas atividades às 3h30 para que a primeira refeição possa ser servida às 5h. Neste horário, os trabalhadores comem o equivalente ao nosso almoço e separam uma segunda refeição para levar para o campo. Além do lanche, cada trabalhador recebe uma garrafa térmica de água e um medidor para fazer soro caseiro. Atualmente os ônibus também são obrigados a transportar água fresca e a ter um toldo para a pausa do almoço. Note que, apesar das refeições serem oferecidas nos locais de moradia, elas são pagas pelos próprios trabalhadores. Não há desconto em folha (no contra-cheque). Eles se organizam e elegem um representante. Esse representante, com o auxílio do gerente do alojamento, faz um balanço de quanto de comida vai comprar. O valor final é rateado pelo número de pessoas que está no alojamento. Por esse motivo, os trabalhadores podem repetir as refeições quantas vezes quiserem. A comida é servida dentro de bacias (como as que usamos para lavar roupa). O responsável pelos alojamentos disse receber vistorias regulares da vigilância sanitária (NR24), que concede, por sua vez, uma autorização de funcionamento, renovado a cada safra. Cópia deste documento fica exposta em local visível próximo à porta de entrada.11 Em relação aos quartos dos alojamentos visitados, eles abrigam de 4 a 12 trabalhadores. São disponibilizados, para cada trabalhador, um armário e uma cama, com colchão e travesseiro. As camas são, em sua maioria, beliches. Os quartos menores (para quatro pessoas) costumam não ser propriamente em alojamentos, mas em pequenas casas em antigas vilas de trabalhadores, localizadas nos canaviais. As casas destas vilas são adaptadas para os trabalhadores, e as refeições feitas num refeitório, também localizado na mesma vila. Nos alojamentos que possuem cozinha industrial, o acesso a essa cozinha é restrito. O mais comum é encontrar alojamentos que possuem uma pequena cozinha disponível para os trabalhadores. Eles só podem usá-las para tarefas simples, como fritar um ovo, mas não para preparar refeições completas. No caso das vilas, cada casa possui uma dessas pequenas cozinhas, com funções semelhantes. Os sanitários, as duchas e as pias são construídos separadamente. No caso das duchas, algumas possuem água quente, mas a maioria é com água fria. Cada trabalhador tem seu material de higiene pessoal, mas poucos são os que usam sabonete, shampoo e pasta de dente. 11 Estas cozinhas podem ser montadas pelos empreiteiros nos moldes das cozinhas industriais, mas também existem casos em que as refeições são terceirizadas. Os pequenos empreiteiros não possuem capital para esses investimentos, então preferem comprar as refeições de empreiteiros maiores ou até mesmo de restaurantes. 52 Em relação ao pagamento, os trabalhadores recebem até o dia 5 de cada mês. Para evitar assaltos, o gerente do alojamento não avisa o dia preciso. Os pagamentos também são feitos por turmas, nos dias de escala de folga. Nunca coincide do pagamento sair para todos ao mesmo tempo. A escala de folga é de cinco pra um, ou seja, cinco dias trabalhados para um de folga. Todos são orientados a não deixar qualquer quantia nos alojamentos. Aproveitando essa orientação, um banco da região passou a oferecer à esses trabalhadores uma espécie de poupança, ou a possibilidade de enviar seus salários para as suas respectivas famílias. Mas nem todos utilizam o recurso por não conseguirem manusear o cartão magnético. Aliás, por esse motivo, o salário é pago em cheque. Ainda sobre o pagamento, muitos trabalhadores trocam o cheque no próprio armazém, próximo ao alojamento. O armazém, por sua vez, é avisado sobre a data e se prepara para fornecer o dinheiro à vista. Os trabalhadores também têm a opção de irem até o centro da cidade para efetuar as trocas nos bancos. Mesmo comprando diversas mercadorias, a grande maioria não gasta mais que 25% do salário na cidade de trabalho. Eles buscam economizar o máximo para levar o dinheiro de volta para as suas famílias. 3.3. As Relações entre os Agentes Entrevistados na Região de Piracicaba Antes de iniciar propriamente esta seção, é necessário apresentar a distinção entre dois personagens, ora tratados pela literatura como semelhantes, mas que possuem posições singulares nas relações de trabalho agrícola sazonal: o empreiteiro e o turmeiro. O empreiteiro é aquele que assina a carteira do trabalhador, e pode ser classificado de acordo com o tipo de empreitada – pequeno, se tem apenas um turmeiro, médio, se tem dois ou três turmeiros, ou grande, se tem quatro ou mais. O turmeiro é o responsável pelo grupo de trabalhadores. Cada turma tem cerca de 40, o equivalente à lotação de um ônibus (que os transporta para o trabalho). É bastante difícil ter turmas com número inferior de trabalhadores. A Figura 2 apresenta os cinco agentes entrevistados e as relações entre os mesmos. A Central de Pastoral, mais especificamente a Pastoral do Migrante, se relaciona apenas com as usinas e com o Ministério do Trabalho. É pelas usinas que ela consegue a lista dos alojamentos a serem visitados. Os seminaristas não visitam os alojamentos dos empreiteiros pela dificuldade de acesso à listagem com a localização dos mesmos. Após as denúncias feitas pela Pastoral do Migrante até as usinas passaram a restringir a atuação da igreja, já que ela se tornou uma ameaça à sua produtividade. Aliás, as denúncias é que interligam a igreja e o Ministério do Trabalho. Outra fonte recorrente de denúncia é o Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Os filiados que se sentem de alguma forma prejudicados fazem a denúncia pessoalmente ou por telefone. O 53 Sindicato, por sua vez, sai para verificar se a denúncia e procedente ou não. A partir do momento que ela é constatada, faz-se necessário o registro no Ministério do Trabalho. Figura 2 Relação entre os agentes participantes do mercado de trabalho agrícola sazonal na região de Piracicaba Central de Ministério do Trabalho Pastoral Ministério Público Federal Usinas Sindicato dos Empreiteiros Sindicato dos Trabalhadores Rurais Fonte: Elaboração própria. O Ministério do Trabalho também verifica se a denúncia é procedente e, embora o denunciante permaneça no anonimato, todos seus dados são registrados. O intuito é evitar emboscadas e possíveis mortes. Por isso, o Ministério não aceita denúncias por telefone e trabalha com a Polícia Federal. A participação do Ministério Público é conseqüência do andamento do processo. As usinas são réus deste processo. Aliás, independente do contratante, ou seja, empreiteiro ou não, as usinas são as únicas autuadas e punidas. Seus contratos podem ser diretos – entre a usina e os trabalhadores, representados pelo Sindicato –, ou indiretos – entre a usina e os empreiteiros. 54 3.4. Tipos de Contratos Estabelecidos pelos Intermediários Na região de Piracicaba ficou claro que, quando o intermediário participa da negociação do contrato de safra, o serviço prestado é oferecido sob a forma de empreitada, ou seja, o contrato é feito por tarefa e não apenas com o compromisso de fornecer mão de obra. A empreitada demandada pela usina pode ser para o corte da cana, ou para o transporte da mesma até a usina, sendo que o trabalhador sazonal participa apenas da primeira etapa. As relações contratuais de tarefas pelo intermediário são apresentadas na Figura 3. De acordo com a Figura 3, é possível perceber que a usina funciona como agente central, ora contratando os serviços dos intermediários, ora coordenando o corte de cana tanto por parte dos fornecedores quanto em suas próprias terras. As empreitadas apresentadas neste processo, quando são realizadas nas terras dos fornecedores, são sempre intermediadas pela usina. No caso dos trabalhadores sazonais, como já foi dito, eles podem ser contratados diretamente pela usina ou por um empreiteiro. Os contratos, em ambos os casos, são feitos por 6 meses no início da safra – por volta de maio de cada ano. Nos períodos de entressafra os trabalhadores também são contratados temporariamente. Neste caso, o contratante é normalmente a usina, os trabalhadores são da região e a forma de remuneração é distinta da do período de corte – já que eles não podem se basear na produção. Figura 3 Relação contratuais nas empreitadas de corte e transporte de cana12 Trabalhador Sazonal I N T E R M E D I Á R I O corte da cana transporte da cana para a usina U S I N A Fornecedor de Cana Fonte: Elaboração própria. 12 Além do corte e do transporte da cana, existem outros tipos de empreitada, que serão explicadas na seção seguinte. 55 3.5. Tipos de Empreitada para as Usinas na Região de Piracicaba Os empreiteiros podem ser classificados de acordo com o tipo de serviço prestado, e, para cada tipo de serviço, são feitos contratos distintos. O empreiteiro pode ser responsável pelo corte da cana, pelo plantio ou pela aplicação de herbicida, ou ainda pela combinação dessas tarefas, embora a primeira seja a mais recorrente. Essa primeira tarefa pode ser combinada com o fornecimento do trator e o carregamento (transporte) da cana do local de corte até a usina. Existe ainda o empreiteiro que executa as três tarefas, além de arrendar terras da usina.13 Nesse caso, ele é o conhecido fornecedor de cana. Para os serviços que utilizam mão de obra de outros estados, os contratos dos empreiteiros com as usinas são feitos considerando todos os custos adicionais, ou seja, todos os custos extras que são gerados pelo trabalhador se encontrar em outro município – transporte, alojamento, etc. Por isso, a usina paga apenas pela empreitada, e o empreiteiro executa a tarefa. Para exemplificar a relação do empreiteiro da região de Piracicaba com a usina, a Tabela 1 apresenta todos os custos fixos e variáveis utilizados pelo Sindicato para o cálculo do preço da tonelada na safra 2005/2006. Pela Tabela 1 é possível perceber que, a partir do valor base para o cálculo da tonelada, a viagem e o alojamento estão entre os custos mais significativos. Porém, apesar do trabalhador de outras regiões ser mais oneroso, ele possui qualidades que o torna necessário nesse processo de produção, dentre elas a estrutura física e a experiência no roçado. A predominância de jovens também delimita ainda mais o grupo, já que, além da probabilidade de maior produtividade, esses jovens têm menos chance de serem reprovados nos exames admissionais.14 Nas negociações, o sindicato monta uma proposta de valor por tonelada (como a da Tabela 1) e manda para as usinas. Algumas retornam para marcar uma conversa, dizendo qual tarefa, provavelmente, será contratada e, conseqüentemente, qual o número estimado de trabalhadores que será necessário para tal tarefa. O contrato é fechado após os trabalhadores chegarem. 13 Para os fornecedores de cana, o mais comum é ter as terras arrendadas da usina, mas na região de Piracicaba alguns deles têm suas próprias terras para o plantio. 14 Nas cidades de origens, os trabalhadores fazem apenas um exame pré-admissional. Hemograma, Chagas, eletrocardiograma e exame clínico (em especial, anemia, hérnia e varizes) são feitos apenas quando eles já estão em São Paulo. 56 Tabela 1 Custos fixos e variáveis para o cálculo da tonelada da cana cortada, 2007 DESCRIÇÃO R$ % Valor da base de cálculo (valor inicial por tonelada) 2,4444 33,2657 CUSTOS VARIÁVEIS Férias 1/3 sobre férias 13o salário FGTS Subtotal 0,2036 0,0679 0,2036 0,2118 0,6869 2,7708 0,9240 2,7708 2,8824 9,3480 CUSTO FIXO 1 Feriados Exame admissional e demissional Jornada 5X1 Horas transporte Viagem Alojamento PPR* EPIS* Cesta básica* Subtotal 0,0682 0,0683 0,4093 0,2301 0,4167 0,6750 0,0000 0,0000 0,0000 1,8676 0,9281 0,9295 5,5701 3,1314 5,6709 9,1860 0,0000 0,0000 0,0000 25,4160 CUSTO FIXO 2 Acidente de trabalho e auxílio doença Escritório contábil e materiais de escritório Transporte: combustível e manutenção Toldo para ônibus Salários fixos Férias sobre os salários fixos 1/3 das férias sobre os salários fixos 13o salário sobre os salários fixos FGTS sobre os salários fixos Subtotal 0,0417 0,0875 0,5833 0,0333 0,1953 0,0163 0,0054 0,0163 0,0169 0,9960 0,5675 1,1908 7,9381 0,4532 2,6578 0,2218 0,0735 0,2218 0,2300 13,5545 0,6111 8,3164 0,7422 10,1006 7,3481 100 LUCRO SOBRE O VALOR TONELADA Simples (8,10%) + ISS (2%) INICIAL DA TOTAL (Preço de Venda) Fonte: Sindicato dos Empreiteiros de Capivari (2007). * Itens estabelecidos na negociação como responsabilidade da usina. 4. Alemanha: Uma Visão Geral sobre o Fluxo Migratório do Leste Europeu O estudo sobre a Alemanha foi realizado entre os anos de 2009 e 2010 no Instituto para o Futuro do Trabalho (Forschungsinstitut zur Zukunft der Arbeit), em Bonn. 57 4.1. Uma Visão Histórica Nos últimos 20 anos a Alemanha passou por transformações políticas e econômicas nunca antes imaginadas. O processo de reunificação começou com a possibilidade dos cidadãos da República Democrática Alemã (DDR) cruzarem a fronteira da Hungria em setembro de 1989. Alguns meses depois – em novembro –, o muro de Berlim caiu, e no dia 3 de outubro de 1990, a Alemanha celebrou a reunificação. Durante a sua existência, a antiga DDR alocou uma quantidade considerável de recursos nos setores agrícola, energético, de mineração e de processamento, enquanto que o Oeste se concentrou nas áreas de comércio e finanças (Kirsche e Noleppa, 2000). Também havia diferenças significativas em relação aos preços e incentivos por parte do governo. Por exemplo, se compararmos os preços dos produtos agrícolas entre as duas Alemanhas após a reunificação, o preço absoluto de cada produto no Leste era muito maior, apesar do preço dos fatores ser bem menor. Até o ajuste macroeconômico de 1991, a agricultura permaneceu como sendo o setor principal no Leste.15 Não por acaso, os estados que compunham a antiga DDR continuaram tendo as maiores propriedades rurais – tanto apenas em tamanho médio, como também em área absoluta (Instituto Federal de Estatística da Alemanha, 2009). Entretanto, isso não significou que o setor criou novos postos de trabalho. O Gráfico 1 apresenta a participação do emprego por setor desde 1950. Como apresentado abaixo, apesar das estatísticas oficiais do governo considerarem apenas o território da antiga República Federal da Alemanha até 1990, a partir dessa data o setor agrícola no Leste não foi suficiente para impactar significativamente a estrutura de trabalho do País. Kirsche e Noleppa (2000) argumentam que isso aconteceu por duas razões. A primeira foi a migração. Após a reunificação muitas pessoas do Leste foram atraídas pelas oportunidades de emprego no Oeste, em especial por setores não agrícolas. A segunda razão foi a intervenção do governo via subsídios, que impactou diretamente a taxa de desemprego na antiga DDR. Os autores estimam que, se essas duas coisas não tivessem ocorrido, o desemprego no Leste poderia atingir 30% em vez de 18% como de fato ocorreu no ano de 1990. Häger e Hagelschuer (1996) analisaram esse fenômeno profundamente, e concluíram que apesar da migração Leste-Oeste ter sido intensa no início de 1990, somente metade dos trabalhadores que deixaram a produção agrícola encontraram emprego em outro setor, e a outra metade permaneceu desempregado. 15 O ajuste macroeconômico de 1991 fez parte de um conjunto de políticas adotadas após a reunificação e tinha como objetivo adaptar a economia do Leste, até então socialista, para os padrões capitalistas presentes no Oeste. 58 Gráfico 1 Participação do emprego por setor, Alemanha, 1950 a 2007* 80 70 60 % 50 40 30 20 10 0 1950 1955 1960 1965 1970 1975 1980 1985 1990 agricultura 1995 2000 indústria 2005 serviços Fonte: Secretaria de Migrações e Refugiados (2006). Elaboração própria. * Até 1990, os dados incluem apenas o território da antiga República Federal da Alemanha. Entre 1950 e 1959 foram excluídos as áreas de Berlim e Saarland. Entre 1950 e 1969 as definições não foram baseadas no Sistema Europeu de Contas Econômicas Integradas (ESA) – discriminação pela classificação das atividades, edição de 1979. A partir de 1970, os resultados foram baseados na ESA, de acordo com a revisão 2005/2006 – discriminação seguindo a Classificação das Atividades Econômicas, edição de 2003 (Instituto Federal de Estatística da Alemanha). Adicionalmente a isso, foi implementada em 1990 a primeira Lei de Ajuste Agrícola, que pretendia privatizar as terras usadas para a agricultura na antiga DDR. Até então, a agricultura do Leste era baseada num sistema de cooperativas, onde o Estado controlava grande parte da produção através da utilização de terras públicas. Essa Lei foi mudada várias vezes a fim de esclarecer as regras de distribuição de terras; entretanto, algumas características permaneceram. Uma delas é o tamanho das propriedades. O Gráfico 2 mostra a estrutura das propriedades na Alemanha, por estado. 59 Gráfico 2 Tamanho das propriedades por estado, Alemanha, 2007 3.500 3.000 (1 milhão de hectares) 2.500 2.000 1.500 1.000 500 2-20 20-40 40-100 en at ng en dt st a St a in st e -H ol w ig Th ür i t nh al Sc hl es hs en -A Sa c Sa ch se n lz rl an d Sa a nd -P fa es tf. he in la R n ch se N or dr he in -W p. de rs a N ie V or en es s H ec M er Ba y kl en bu rg - n Br a g m be r ür tte Ba de nW nd en bu rg 0 100-200 200-500 >500 Fonte: Instituto Federal de Estatística da Alemanha (2010). Elaboração própria. De acordo com o Gráfico 2, os estados do leste – Brandenburg, Mecklenburg-Vorpommern, Sachsen, Sachsen-Anhalt e Thüringen – ainda possuem as maiores propriedades, mas em termos de número de propriedades os estados da Baviera e Niedersachsen são os principais. A estrutura das propriedades e a sua distribuição territorial são muito importantes para estimar o número de empregados necessários por cultura a cada ano. Isso reforça o impacto da distribuição de terras pela Lei de Ajuste Agrícola, como a estrutura de emprego na agricultura alemã (Gráfico 3). Antes de 1990, a mão de obra prevalecente no setor era composta por conta própria. Típico das pequenas propriedades – parte dos conta própria são provavelmente procedentes da agricultura familiar. Note que, durante todo o período foi considerado o território da República Federal da Alemanha. Em outras palavras, até 1990 o Gráfico 3 mostra somente o Oeste alemão, e a partir desse ano, o Leste e o Oeste. 60 Gráfico 3 Participação do emprego na agricultura, Alemanha, 1950 a 2007 90 80 70 % 60 50 40 30 20 10 1950 1955 1960 1965 1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000 conta própria 2005 empregados Fonte: Instituto Federal de Estatística da Alemanha (2010). Elaboração própria. Hoje em dia o território da República Federal da Alemanha compreende uma área de cerca de 357.000 km2. Apesar da alta densidade populacional, 55% dessa área ainda é usada para a agricultura e 30% para a silvicultura (Instituto Federal de Estatística da Alemanha, 2008). Em 2007 aproximadamente 1,26 milhão de pessoas ainda trabalhavam em tempo integral ou parcial no setor agrícola. Isso representou cerca de 3% da população economicamente ativa, ou 41,4 milhões de pessoas em 2007 (Bundesministerium für Ernährung, Landwirtschaft und Verbraucherschutz, 2006). Dos 3%, 58% eram agricultores familiares, 14% eram empregados como não membros da família e 28% eram trabalhadores sazonais. Regularmente, cerca de 336.200 deles trabalham sazonalmente em propriedades rurais, mas existe um contingente de trabalhadores informais que fazem o mesmo serviço. Sabemos que na Alemanha quase unicamente imigrantes dos países da Europa Central e do Leste trabalham sazonalmente na agricultura (formal ou informalmente), apesar da elevada taxa de informalidade no País e das restrições legais no mercado de trabalho por parte do governo (Hess, 2006). 61 4.2. Os Fluxos Migratórios Leste-Oeste A Alemanha passou por seis fases de migração após a Segunda Guerra Mundial. São elas: De 1945 a 1950: é composta pelo movimento de refugiados e de pessoas do Leste alemão. Aproximadamente 8 milhões de refugiados migraram para a Alemanha nesse período; De 1950 a 1961 (ano em que o muro de Berlim foi construído): um número grande de fugitivos e Übersiedler migraram da DDR para o Oeste. Esse período também testemunhou o primeiro movimento de imigração dos Aussiedler provenientes da então União Soviética, resultado de acordos especiais celebrados entre o Chanceler Adenauer e as autoridades soviéticas;16 Do final da década de 1950 a 1973: foi caracterizada pelos altos fluxos migratórios de estrangeiros. Esses Gastarbeit, como eles acabaram sendo chamados, se mudaram para a Alemanha no âmbito dos acordos de contratação bilateral com a Itália, Grécia, Iugoslávia, Turquia, Espanha, Portugal, Marrocos e Tunísia. Dentre todos os países, destaque para a Turquia. Esses acordos foram suspensos devido à primeira crise do petróleo em 1973; De 1973 até o fim da década de 1970: foi marcado pelas conseqüências da proibição da contratação de mão de obra, mas que gerou novas formas de contratação: dos membros das famílias dos Gastarbeit. A ida das famílias contribuiu para estender a estadia deles no País; De 1980 a 1988: foi caracterizado por dois desdobramentos bem diferentes: (a) pela consolidação de fluxos migratórios dos Aussiedler, principalmente da Polônia, da União Soviética e da Romênia; e (b) pelo acentuado aumento no número de requerentes de asilo provenientes da Turquia, Polônia e Romênia. Para o primeiro grupo, o governo alemão se baseou em políticas de apoio para a inserção desses países na economia de mercado e possibilidade de cooperação econômica;17 e De 1988 em diante: foi marcado por uma série de eventos, como: afluxo crescente de Aussiedler da Europa Oriental, movimentos migratórios de Übersiedler provenientes da antiga DDR, e um movimento mais amplo vindo da Polônia e da ex-União Soviética, aumento no número de requerentes de asilo da ex-Iugoslávia, da África e da Ásia (Figura 4). 16 Übersiedler eram os alemães do Leste que migraram da antiga DDR para o Oeste alemão. Já os aussiedler eram os alemães ou pessoas de origem alemã, que imigraram da Europa Central e Oriental para a Alemanha. 17 Os países que compõem a Europa Central e do Leste são chamados de MOE-Staaten. 62 Figura 4 Fluxo migratório do Leste europeu para a Alemanha Fonte: Instituto Federal de Estatística da Alemanha (2010). Elaboração própria. Na Alemanha, a falta de oferta de mão de obra não é explicada apenas pela assimetria de informação. Além dos salários pagos no setor agrícola não serem atrativos se comparados com os outros setores, o País conta ainda com uma ampla rede de assistência social. A diferença entre o que um alemão desempregado ganha do governo, e o que é pago pelo setor agrícola é mínimo – em alguns casos, não há diferença no rendimento líquido. Por isso, não há grande interesse por parte dos alemães em trabalhar na agricultura. Mas, aproveitando esses postos de trabalho temporário, a Alemanha decidiu assinar acordos para importação de mão de obra de países de fronteira, sob condições específicas, como permissão limitada à permanência no país de destino, estabelecimento de uma remuneração mínima18, pagamento de contribuições sociais, etc. Essa foi uma tentativa de evitar a entrada de imigrantes ilegais, adotada também por outros países europeus. Apesar da migração mais significativa ter ocorrido depois da queda do muro, é sabido que antes de 1989 alguns grupos tinham permissão de entrar na Alemanha para trabalhar 18 Embora a Alemanha tenha um mínimo recebido por atividade e por setor, não há um salário mínimo nacional como no Brasil. 63 temporariamente (Eichhorst, 2000). Entretanto, desde 1990 o governo alemão desenvolveu políticas de restrição dos fluxos migratórios Leste-Oeste, incluindo novas regras para regular o mercado de trabalho e também para controlar o processo de contratação de mão de obra.19 4.3. As Políticas Alemãs para o Mercado de Trabalho Agrícola Os acordos assinados pela Alemanha sobre a contratação de mão de obra do Leste europeu para o setor agrícola faz parte de um grande programa criado em 1990, que oferece postos de trabalho temporários no País. Essa política foi seguida por outros países da Europa, mas não com as mesmas dimensões que na Alemanha.20 Assim, esse programa contemplava cinco formas de contratação: (a) por vínculo a projetos; (b) trabalhadores da fronteira; (c) Gastarbeit; (d) enfermeiros; e (e) trabalhadores sazonais. O primeiro programa permitiu que empresas alemãs pudessem subcontratar empresas estrangeiras para a execução de partes de projetos, com seus respectivos empregados. Esse programa incluiu diversos setores da economia – como o de construção civil – mas não o setor agrícola. A permanência do empregado na Alemanha dependia diretamente do contrato entre as empresas alemã e estrangeira. Havia um limite máximo anual de contratações, que variava de ano para ano, e também de acordo com a procedência de cada país: em 1992, 100 mil empregados entraram na Alemanha com o contrato com vínculo a projetos. Em 1993 e 1994 a quota foi reduzida para 50 mil, em resposta a pleitos de empresas alemãs sobre concorrência desleal. A quota chegou a ser aumentada de novo nos anos seguintes, mas alguns critérios obrigatórios foram introduzidos. Esses critérios deveriam ser satisfeitos antes da concessão do visto de trabalho. Por exemplo, as empresas contratantes eram obrigadas a garantir que as empresas subcontratadas pagariam aos seus empregados o piso salarial da categoria, de modo a equiparar os salários dos estrangeiros com o dos alemães. Por outro lado, como os contratos entre as empresas subcontratadas e seus empregados eram feitos em outro país, os encargos trabalhistas, como as contribuições sociais, deveriam ser recolhidas nos países de origem. Isso significa que, mesmo tentando assegurar o piso salarial, o custo total da mão de obra era muito mais baixo se comparado ao empregado alemão. O programa por vínculo a projetos foi praticamente direcionado à indústria da construção civil e atividades relacionadas a elas. Em julho de 1997, a concessão dessa forma de visto de trabalho foi suspensa 19 Está sendo considerado como atividade agrícola não só aquela desenvolvida dentro da propriedade rural, mas também as atividades da indústria de processamento (cadeia agroindustrial), como, por exemplo, a produção de derivados do leite. 20 Como a Alemanha é um país de fronteira com o Leste europeu, esses programas são uma tentativa de controle da imigração na fronteira. 64 após uma intervenção legal da Comissão Européia. A Comissão alegou que esse tipo de contratação viola o princípio da liberdade de contratação de serviços por excluir outros membros da UE dos acordos bilaterais. Entretanto, os outros quatro programas persistem até hoje, inclusive o de trabalhadores sazonais. O segundo programa – denominado de trabalhadores da fronteira – foi criado para os moradores da Polônia e da República Tcheca que vivem em um raio de até 50 km da fronteira alemã. Esse grupo tem permissão para trabalhar na Alemanha, se a Secretaria do Trabalho local identificar que os residentes das cidades que demandam mão de obra não estão disponíveis para essas vagas. Além disso, a atividade demandante deve ser a principal do estrangeiro e não pode ser na indústria da construção civil. Os trabalhadores da fronteira têm que continuar a residir nos seus países de origem e voltar para casa diariamente. De forma alternativa, eles podem trabalhar na Alemanha por no máximo 2 dias por semana com pernoite. Atividades em tempo parcial não são permitidas. A instituição dos contratos é obrigatória, assim como o piso salarial da categoria. Os Gastarbeit fazem parte do terceiro programa. O conceito geral do Gastarbeit é bem conhecido na Alemanha desde o fim da Segunda Guerra Mundial, mas as regras do programa passaram por algumas mudanças. Desde 1990 esse programa permite aos jovens do Leste europeu e alemães ir para outros países para melhorar as suas aptidões profissionais ou fluência na língua estrangeira através de estadias de trabalho. Eles recebem pelo trabalho salário médio da categoria no respectivo país. Os participantes devem ter entre 18 e 40 anos, ter concluído algum treinamento profissional, e ter conhecimento básico do idioma do país de destino. Mas não há critérios de admissão específicos sobre a avaliação da formação do jovem durante a sua estadia de trabalho. O quarto programa é específico para enfermeiros estrangeiros. A maior parte deles é proveniente da Iugoslávia. O quinto e último programa foi criado para preencher as vagas de curta duração. Esse programa permite que estrangeiros ocupem os postos de trabalho sazonais, desde que nenhum alemão queira ocupar essas vagas. Desde o final de 1993 a contratação de pessoas do Leste europeu no âmbito desse programa tem sido limitada à agricultura e ao processamento de produtos agrícolas, aos hotéis e restaurantes, e aos trabalhadores de feiras de negócios, porque até essa data, muitos empregadores alemães usavam o programa de trabalho sazonal para contratar estrangeiros para postos regulares – por exemplo, para preencher as vagas de empregados em férias na construção civil. Com essa limitação, a agricultura e o processamento de produtos agrícolas passaram a representar as principais atividades desse programa, com contratos de até 3 meses. Os demais setores poderiam ainda contratar por um período um pouco maior. Outra característica do programa é que a grande maioria dos estrangeiros contratados vem da Polônia. É importante 65 destacar que os trabalhos sazonais sempre representaram o principal programa dos cinco criados pelo governo, e ainda hoje é responsável por criar de 200 a 300 mil postos de trabalho na Alemanha por ano. A Tabela 2 apresenta o número de contratações nos primeiros anos de cada um desses programas para o Leste europeu. Tabela 2 Número de estrangeiros contratados na Alemanha, por programa, 1991 a 1996 Programa Trabalhadores com vínculo a projetos (1) Trabalhadores da fronteira (1) Gastarbeit (2) Enfermeiros (2) Trabalhadores sazonais (2) (3) Total 1991 1992 1993 1994 1995 1996 51.770 7.000 2.234 90.000 93.592 12.400 5.057 1.455 212.000 67.270 11.200 5.771 506 164.377 39.070 8.000 5.529 412 140.656 47.565 8.500 5.478 367 176.590 44.020 7.500 4.351 398 203.856 151.004 324.504 249.124 193.667 238.500 260.125 Fonte: Hönekopp (2003). (1) Pessoas ocupadas, média anual com base mensal. (2) Posições de trabalho. (3) Volume anual de trabalho. De acordo com a Tabela 2, o programa de trabalhadores sazonais foi o mais significativo em termos de política pública de geração de emprego para estrangeiros nos anos de 1990. Depois disso, esse programa se tornou cada vez mais representativo – não só em termos de participação dentro dos cinco programas para o Leste europeu, mas também se comparado com outras permissões de trabalho do Anwerbestoppausnahmeverordnung (ASAV). A Tabela 3 apresenta o número de permissões de acordo com as cláusulas de exceção. 66 Tabela 3 Permissões de trabalho de acordo com as cláusulas de exceção do ASAV, 2006 Nacionalidade Trabalhadores sazonais 212.883 5.645 1.084 1.455 117 Polônia Eslováquia República Tcheca Hungria Eslovênia Estônia Letônia Lituânia Total Declarado 4 221.188 Outros 8.796 1.451 1.269 1.022 61 57 48 102 12.806 Total 221.679 7.096 2.353 2.477 178 57 48 106 233.994 Fonte: Secretaria de Migrações e Refugiados (2006). Elaboração própria. Não há informação detalhada por cada categoria. A desagregação mais próxima que conseguimos da Secretaria do Trabalho na Alemanha a partir dos dados da Tabela 3 foi o país de origem dos contratados para os trabalhos sazonais – agricultura, processamento de produtos agrícolas e feira de negócios. Essa compilação de 1991 a 2007 se encontra na Tabela 4. 67 Tabela 4 Trabalhadores sazonais, por país de origem, 1991 a 2007 69.644 3.514.841 Total Declarado Eslovênia República Tcheca 6.984 7.781 12.027 5.753 3.465 3.939 5.574 5.443 3.722 5.732 6.255 3.391 5.839 6.365 2.347 4.665 5.534 2.182 5.101 6.158 2.031 5.943 8.375 3.235 6.157 10.054 2.913 5.913 10.654 2.791 5.069 9.578 2.235 4.680 8.995 1.974 4.598 7.502 1.625 4.785 6.778 1.232 4.647 5.122 1.087 4.402 7.235 5.346 2.458 2.841 3.516 3.572 3.200 3.485 4.139 4.783 4.227 3.504 2.784 2.305 1.806 1.800 2.907 3.853 2.272 3.879 4.975 4.961 6.236 7.499 11.842 18.015 22.233 24.599 27.190 33.083 51.190 56.893 1.114 601 600 559 466 359 302 311 264 257 223 195 159 141 119 71 70 131 188 203 236 332 825 1.349 1.492 1.434 1.249 1.320 1.293 1.182 128.688 212.442 181.037 155.217 192.766 220.894 225.951 231.810 230.345 263.805 286.940 307.182 318.549 333.690 329.795 303.492 299.657 81.440 108.059 61.403 281.627 5.670 11.375 4.222.260 46.731 Bulgária Romênia 41.466 78.594 136.882 143.861 136.659 170.576 196.278 202.198 209.398 205.439 229.135 243.405 259.615 271.907 286.623 279.197 236.267 228.807 Eslováquia 32.214 37.430 Hungria 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 Total Croácia Iugoslávia (2) 13.478 27.988 Ano Polônia CSFR (1) Nacionalidade Fonte: Secretaria do Trabalho da Alemanha (2009). (1) Até 1992, esses dados se referem à Tchecoslováquia (CSFR). A partir de 1993, esses dados foram separados em Eslováquia e República Tcheca. (2) Até 1992, esses dados se referem à Iugoslávia. A partir de 1993, os dados não foram mais disponibilizados. De acordo com a Secretaria do Trabalho, alguns critérios deveriam ser seguidos para a contratação de trabalhadores sazonais. São eles: O trabalhador sazonal pode ser contratado durante a rotação de culturas; O salário pode ser pago por produto ou por peso; As atividades são ao ar livre, com periodicidade regular, não importando as condições do tempo; Normalmente as atividades executadas pelo trabalhador sazonal exigem pouca qualificação, mas muito esforço físico; e 68 Os trabalhadores sazonais devem ser transportados todos os dias de seus alojamentos para os locais de trabalho nas áreas rurais. No geral, os salários são inferiores aqueles pagos nos demais setores, e têm um baixo reconhecimento social – determinado principalmente pela baixa qualificação. 4.4. Como contratar um estrangeiro como trabalhador sazonal? De acordo com a Secretaria do Trabalho, a agricultura familiar era muito mais comum em épocas anteriores na Alemanha. Hoje em dia as propriedades rurais alemãs são grandes produtoras, e funcionam como uma indústria, sendo responsável pelas diferentes etapas de produção, incluindo as que adicionam valor até o produto final. Esse tipo de empresa agrícola realiza, portanto, a seleção, embalagem, rotulagem, transporte e venda dos seus produtos. Assim, quando se fala em mercado de trabalho agrícola na Alemanha nos referimos a todas as etapas de produção. Devido ao aumento no número de trabalhadores sazonais no mercado de trabalho (Tabela 4), o governo decidiu iniciar uma política de substituição de mão de obra estrangeira por desempregados alemães. Essa política foi iniciada com a safra 2006/2007. A idéia era fazer com que os então desempregados dependessem menos da assistência social, começando com contratos de curta duração – podendo ser renovados nas safras seguintes ou substituídos por contratos de longa duração. O governo federal percebeu nessa política benefícios para ambos os lados: o trabalhador teria a possibilidade de retornar para o mercado de trabalho, e o governo importaria menos mão de obra – além de diminuir os gastos com a assistência social e a taxa de desemprego. O governo ainda defende que a mão de obra nacional é mais barata, já que os produtores não precisam pagar os alguns custos de contratação. Mas, na prática, a substituição proposta pelo governo não foi tão simples assim. Os atuais desempregados alemães alegam que o tipo de atividade exige esforço físico demasiado, e os salários recebidos são muito próximos ao que eles já ganham de assistência social. O desinteresse por parte dos alemães também pode ser verificado pela opinião dos agricultores. Segundo eles, os alemães que são contratados para atividades sazonais na agricultura não executam as tarefas de forma satisfatória. Foram identificadas situações em que eles abandonam o trabalho antes do final do contrato, além de faltar confiança, motivação e até força física. Por outro lado, o governo reconhece que mesmo que os desempregados migrem para o setor agrícola, eles não serão suficientes para atender toda a demanda. Essa é a razão pela qual o governo alemão ainda tem que pensar na contratação de estrangeiros, especialmente para períodos específicos, como o de colheita. As leis que regulam esse mercado são: gesetzliche Regelungen und Verordnungen (Sozialgesetzbuch 69 Drittes Buch – SGB III), Eckpunkteregelung des Bundesministerium für Arbeit und Soziales (BMAS) mit Garantieregelung (SGB III), e Vermittlungsabsprachen mit ausländischen Partnerverwaltungen. Na agricultura, além dos alemães, dois grupos de estrangeiros podem ser contratados: Trabalhadores dos novos países membros da UE (Polônia, Eslováquia, Eslovênia, República Tcheca, Hungria e Romênia)21; e Trabalhadores de países de terceiro mundo (Croácia). O processo de contratação dos dois grupos é idêntico. A única diferença é que no segundo, o governo alemão exige também visto de trabalho. Eles são contratados sob as seguintes condições: Para os estrangeiros, deve haver um acordo entre as Secretarias do Trabalho da Alemanha e do país ofertante de mão de obra; A vaga ocupada pelo estrangeiro não deve gerar impactos adversos no mercado de trabalho alemão; e Alemães e estrangeiros devem ter iguais condições de trabalho e salário – o que corresponde à remuneração entre 3,30€ e 7,50€ por hora.22 Os estrangeiros são autorizados a trabalhar na Alemanha durante 4 meses por ano, no entanto os produtores só podem usar mão de obra estrangeira por 8 meses. Isso significa que os produtores têm que compartilhar seu calendário anual entre, pelo menos, 4 meses com mão de obra nacional e 8 meses com mão de obra estrangeira. Para algumas culturas, como o tabaco, vinho, frutas, legumes e lúpulo, o período de contratação cai de 8 para 6 meses ao ano. Nesse caso, os produtores podem contratar estrangeiros durante todo o ano. Logo que os produtores sabem quantos trabalhadores eles querem contratar, eles entram em contato com a Secretaria do Trabalho na Alemanha. Em seguida a Secretaria autoriza o recrutamento e calcula quantos estrangeiros o produtor está autorizado a contratar. 21 A Alemanha só assinou acordo com esses novos países membros da EU. A única exceção é a Bulgária, que o acordo é restrito aos hotéis e aos serviços de bufê. 22 O salário pode variar de estado para estado, e também do tipo de cultura. 70 Box 1 Como calcular a quantidade de estrangeiros contratados permitida por produtor? A Eckpunktregelung (Regra de Canto)! Como foi apresentado nessa seção, o governo mudou a regra de contratação, a fim de promover a inserção de alemães no setor agrícola. Com a adoção dessa política, alguns passos devem ser seguidos. O primeiro é verificar quantos estrangeiros foram contratados no ano civil anterior. Note que o governo considera para a regra ano civil e não ano safra. Com base no total, os produtores estão autorizados a contratar apenas 80% do número de trabalhadores contratados no ano anterior. Se a demanda do produtor for superior a 80%, ele precisará obter uma permissão especial da Secretaria do Trabalho. A Secretaria verifica a taxa de desemprego na região de demanda de mão de obra, e pode conceder a contratação de até 90%. Para os pequenos produtores, é possível contratar até 4 estrangeiros sem a permissão da Secretaria. Outra exceção é condicional à taxa de desemprego regional. Se essa taxa estiver abaixo de 20% da taxa nacional, os produtores dessa região estão autorizados a contratar até 90% de estrangeiros sem permissão especial da Secretaria do Trabalho. Está claro que essa política pública tem como objetivo reduzir o desemprego e não depender tanto de mão de obra estrangeira na produção agrícola! Todas as formalidades contratuais são tratadas pela Secretaria do Trabalho, tanto para os alemães quanto para os estrangeiros. Em ambos os casos, a Secretaria usa um contrato padrão, com os dados do produtor e do futuro empregado.23 Se a contratação for feita fora da Alemanha, a Secretaria transmite ao órgão responsável do país de origem a sua demanda. Esse órgão publica a oferta de emprego na Alemanha e faz a primeira seleção dos candidatos. A demanda do produtor é geralmente dirigida a um trabalhador conhecido ou indicado por alguém de confiança do produtor. Para cada estrangeiro contratado, a Secretaria do Trabalho cobra 60€ por trabalhador, que corresponde a um dos itens dos custos de contratação. O trabalhador recebe um visto de permissão para 120 dias.24 Como apresentado, a Secretaria do Trabalho só contrata mão de obra provenientes de países que assinaram o acordo de cooperação – novos países membros da EU e a Croácia. Algumas considerações devem ser feitas sobre o pagamento das contribuições sociais para a contratação dos trabalhadores sazonais. São elas: 23 É importante destacar que até 2004 alguns países que enviavam trabalhadores para a Alemanha – como no caso da Polônia – dividiam com a Secretaria do Trabalho alemã parte do processo de contratação. Hoje em dia, devido à Leis mais rígidas de entrada de estrangeiros no País, isso não é mais possível. 24 A Secretaria do Trabalho concede um visto de permanência maior para os estrangeiros que vão para a Alemanha trabalhar nas feiras de negócios, mas essa prorrogação não é válida para o setor agrícola. 71 Seguro para trabalhadores originários de países-membro da UE: é obrigatório possuir o Cartão Europeu do Seguro Saúde (European Health Insurance Card). A contribuição é paga no país de origem, embora a Alemanha exija que uma espécie de registro de controle. Existem ainda regras específicas, como as referentes aos conta própria, mas como elas não se referem aos sazonais, não serão mencionadas no presente artigo; Seguro saúde (Krankenversicherung): se o estrangeiro não tem o Cartão Europeu do Seguro Saúde, o produtor tem que pagar o seguro saúde separadamente. Caso o produtor não pague, ele se torna responsável por todos os custos do empregado (acidente, tratamento após o acidente, e todas as situações que geralmente são cobertas pelo seguro saúde regular); Seguro contra acidentes (Unfallversicherung): pago na Alemanha para todos os trabalhadores sazonais; e Contribuições sociais (Sozialversicherung): incluído nos contratos dos trabalhadores sazonais apenas se a duração for superior a 2 meses. 5. Considerações Finais Este artigo teve como objetivo apresentar uma compilação de dois estudos realizados entre os anos de 2006 e 2010 sobre intermediação de mão de obra. No estudo de caso sobre o corte de cana na região de Piracicaba, verificamos que as diferentes atividades na produção de cana-de-açúcar – plantio, controle de pragas, queima, corte, limpeza da área cortada e transporte – são quase sempre intermediadas por um prestador de serviço, chamado de empreiteiro. Essa intermediação é bastante heterogênea, inclusive para a mesma região, ou seja, o mesmo agente ora contrata e supervisiona, ora só supervisiona, e ora apenas paga pelo serviço prestado. A legalidade do empreiteiro é questionada tanto pelas usinas, como pelo Ministério do Trabalho, mas o Sindicato dos Empreiteiros de Capivari sobrevive até os dias de hoje com base na Lei no 6.019, que diz que “a contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formandose o vínculo diretamente com o tomador de serviços, salvo no caso de trabalho temporário”. Até a visita ao Sindicato, acreditávamos que a dificuldade da instauração do trabalho sazonal na agricultura estivesse na classificação da tarefa do trabalhador contratado. Caso fosse caracterizado como atividade meio, estava assegurada a viabilidade jurídica. Do contrário, os trabalhadores se encontrariam em situação ilegal. Contudo, a Lei no 6.019, que dispõe sobre as empresas de trabalho temporário, se restringe às áreas urbanas. Não há, portanto, a menor possibilidade de se contratar temporários e de se prestar serviço no setor agrícola. 72 É importante observar que, após a visita a região de Piracicaba, ficou claro que os empreiteiros não são meros intermediários de mão de obra. Na verdade, todos os contratos estabelecidos entre empreiteiros e usinas se baseiam no sistema de empreitada, como apresentado na Tabela 1. No ato do contrato, a usina tem uma estimativa de quantos trabalhadores serão necessários para executar tal tarefa, mas a decisão de contratação e a responsabilidade da execução é do empreiteiro. Por isso, se a Lei no 6.019 fosse aplicável ao campo, o sistema de empreitada poderia ser executado a partir do cumprimento das atividades acordadas. O empreiteiro poderia ser considerado como um empregador rural, assim como a usina, já que, pela definição, “empregador rural é a pessoa física ou jurídica, proprietária ou não, que explore atividade agroeconômica, em caráter permanente ou temporário, diretamente ou através de prepostos com auxílio de empregados”, respondendo por todas as obrigações contratuais. Assim como no caso do empregador rural, essas atividades poderiam ser agrícolas, pastoris, hortigranjeiras, bem como extração de produtos primários animais ou vegetais; e o que definiria se a atividade é rural ou não, seria o local de execução da atividade – devendo ser em estabelecimento rural ou em prédio rústico. Essa é a interpretação verificada na atuação do Sindicato dos Empreiteiros. Mas a jurisprudência dos tribunais não entende de forma diferente. Em relação à produção, observamos que o controle é feito pela quantidade produzida pelo campeão. Campeão é o nome dado ao trabalhador que mais cortou cana naquele dia. Ele acompanha o transporte até a usina e confere quanto ele próprio cortou. Os demais trabalhadores receberão proporcional à ele, já que eles fazem a estimativa por trabalhador e por quadra. Os empreiteiros de Capivari se encontram bastante organizados, com contratos padronizados, serviços básicos oferecidos na própria sede, e estrutura de transporte e alojamento para os trabalhadores sazonais. Apenas 20% dos que prestam este tipo de serviço na região ainda não é sindicalizado. O sistema de empreitada na região de Piracicaba é um bom exemplo de como as relações de trabalho podem beneficiar produtores, trabalhadores sazonais e os próprios intermediários. Entretanto, sabemos que o sistema apresentado neste artigo é uma exceção dentro das condições atuais oferecidas aos trabalhadores. O governo brasileiro deveria aproveitar a disponibilidade de um contingente de sua própria população para suprir a demanda doméstica de mão de obra nas atividades agrícolas. Nesse sentido, a legalização do intermediário e a redução da burocracia para os contratos de safra poderiam representar não só o aumento no grau de formalização, mas também a redução da pobreza nas áreas rurais através do impacto na renda domiciliar per capita. 73 Como destaca Vandeman et al. (1991), a capacidade desse intermediário de distribuir os custos fixos de contratação de mão de obra por vários produtores e de aliviar esses produtores das tarefas difíceis de seleção e de supervisão de mão de obra é que explicam sua prevalência na agricultura. Vandeman (1988) destaca ainda que a quantidade de trabalhadores contratados e suas respectivas jornadas de trabalho não são suficientes para garantir um nível médio de produção, o que, segundo a autora, reforça a importância da existência de um intermediário, que se responsabiliza pelo cumprimento da tarefa. Entretanto, nos dois estudos apresentados, não há meios legais de se viabilizar o intermediário. No caso do Brasil, mesmo ilegal, o intermediário continua existindo. No caso da Alemanha, os produtores contam com uma estrutura pública de apoio à contratação de mão de obra sazonal, que pode ser interpretada até como uma espécie de intermediário. Sem dúvida, essa estrutura reduz bastante o problema de oferta de mão de obra, e conseqüentemente, da qualidade do trabalho ofertado. Mas também foi observado que os produtores, em ambos os países, tendem a dirigir suas demandas aos trabalhadores conhecidos ou indicados por alguém de confiança.25 Esse aspecto só reforça a importância da mão de obra na agricultura frente aos demais setores porque, se o trabalhador fizer algo de errado ou entrar em greve, o produtor poderá perder parte (ou toda) a sua produção daquele ano. Outro aspecto merecedor de destaque é que o intermediário, mesmo sob o papel do Estado, pode contribuir para a formalização, mas não é condição suficiente para garantir que todos os trabalhadores tenham carteira assinada. No campo, o trabalhador não tem margem de negociação de salário, nem opção de alimentação ou alojamento, o que contribui fortemente para condições de trabalho precárias e salários abaixo da média nacional. Com o intuito de reduzir ainda mais o número de trabalhadores informais na agricultura – em especial os estrangeiros – e a taxa de desemprego no País, o governo alemão estabeleceu a Regra de Canto a partir da safra 2006/2007. Em setembro de 2009, a Secretaria do Trabalho publicou os primeiros resultados dessa política (Gráfico 4), que se mostraram bastante satisfatórios sob o ponto de vista das metas estabelecidas. Novamente observamos uma forte intervenção do governo federal, mas que dentre algumas safras, poderá esbarrar na falta de oferta de mão de obra nacional para o setor. 25 Na cana, particularmente, os empreiteiros compartilham com as usinas a lista de trabalhadores que já apresentaram algum tipo de problema. Contudo, a lista com os nomes dos trabalhadores bons é mantida em segredo. 74 Gráfico 4 Emprego na agricultura e a Regra de Canto, 2007 e 2008 350 300 Número (1.000) 250 200 150 100 50 0 Janeiro Fevereiro Março Abril Maio Junho Julho Agosto 2007 Setembro 2008 Outubro Novembro Dezembro Regra de Canto Fonte: Secretaria do Trabalho da Alemanha (2009). Elaboração própria. Por fim, a Tabela 5 apresenta as principais características da contratação de trabalhadores sazonais no Brasil e na Alemanha. Algumas delas são bastante semelhantes, como a idade de admissão, o tipo de trabalho executado, e o local da assinatura do contrato. Mas duas características também chamam a atenção. A primeira delas se refere aos custos com transporte – cidade de origem ao local de trabalho e do alojamento ao local de execução da tarefa –, alimentação e alojamento. Todos esses itens podem ser negociados nos contratos de trabalho na Alemanha, e variam de acordo com o salário pago por hora e a localização da cidade de origem do trabalhador. No Brasil, a responsabilidade desses custos é bem definida: todos os custos com transporte ficam a cargo do produtor, e aqueles com alojamento e comida, a cargo dos sazonais. A segunda característica se refere ao pagamento do seguro saúde na Alemanha. Até 2004, não era obrigatório para os trabalhadores sazonais que tivessem contratos de até 3 meses, se eles viessem de países não pertencentes a UE – o que representava praticamente todos os países que tinham acordos com a Alemanha. Se o contrato fosse superior a 3 meses, o trabalhador entraria na Lei de exceção ASAV. 75 Tabela 5 Contratação de trabalhadores sazonais, Brasil e Alemanha, 2010* Característica Lei Origem dos trabalhadores* Idade* Tipo de contrato Duração do contrato Tipo de trabalho* Alemanha gesetzliche Regelungen und Verordnungen (Sozialgesetzbuch Drittes Buch – SGB III), Eckpunkteregelung des Bundesministerium für Arbeit und Soziales (BMAS) mit Garantieregelung (SGB III), e Vermittlungsabsprachen mit ausländischen Partnerverwaltungen. A maior parte vem de fora do País, em especial da Polônia, Romênia, Eslováquia e Croácia. A partir de 18 anos. A idade predominante é de 20 a 39 anos, mas a idade não pode ser considerada uma barreira de entrada. Para o estrangeiro tem uma Lei de exceção (ASAV), válida para a agricultura e outros setores. Até 3 meses por trabalhador estrangeiro, mas o proprietário pode contratar estrangeiros por até 8 meses. Normalmente atividades referentes à colheita e ao processamento de produtos agrícolas. Brasil Lei no 5.889, de 8 de junho de 1973, e a CLT, para o que não colidir com ela. Somente de dentro do País, em especial do estado de Minas Gerais, e das regiões Norte e Nordeste. A partir de 18 anos, mas a maior parte deles tem menos de 30 anos, é homem, e trabalha em média por 5 safras. Válido somente agricultura. para a Não há restrição. Nas diferentes etapas de produção – plantio, controle de pragas, queima, corte, limpeza da área cortada e transporte. Mas o mais comum é no corte da cana. Grandes produtores. Os pequenos não têm conseguem arcar com os custos de contratação da forma como a Lei exige. Oficialmente o salário é baseado no salário mínimo, mas sem contrato os trabalhadores aceitam receber menos. Tipo de propriedade rural Pequenos e médios produtores (para os padrões brasileiros), produzindo para os mercados local e regional. Salário Entre 3,30€ e 7,50€ por hora, que é uma remuneração baixa para o País. Estrangeiros e alemães devem receber o mesmo, mas os ilegais recebem ainda menos. O produtor envia sua demanda Os produtores são responsáveis à Secretaria do Trabalho. A pela contratação de sua mão de Secretaria se responsabiliza por obra. todo o processo de contratação. Forma de contratação 76 Onde o contrato de trabalho Na cidade de origem. Se o trabalhador for estrangeiro, ele é assinado? já deve ter o visto de trabalho. Custo fixo de 60€ por Custos de contratação trabalhador, pago à Secretaria do Trabalho. Até 2004, os contratos com Contribuições sociais duração inferior a 3 meses não incluíam o pagamento de contribuições sociais. Custos com transporte É negociado entre o produtor e (cidade de origem ao local de o trabalhador no início do trabalho e do alojamento ao contrato. local de execução da tarefa) Custos com alojamento e É negociado entre o produtor e o trabalhador no início do alimentação contrato. Na cidade de origem. Custo variável. Depende do local de origem do trabalhador. As mesmas contribuições pagas aos trabalhadores permanentes. Custos pagos pelos produtores. Custos pagos trabalhadores. pelos Fonte: Elaboração própria. * No caso do Brasil, se refere às características específicas da produção de cana-de-açúcar. No caso do Brasil, oficialmente o sazonal tem os mesmos direito que os trabalhadores permanentes. Na prática, os custos de contratação são relativamente altos se comparado ao período em que a tarefa é executada e, a associação com a dificuldade de fiscalização, contribui de forma expressiva para os atuais 80% de informalidade na agricultura. Na expectativa de adequar a legislação trabalhista ao padrão de produção agrícola brasileiro, existem alguns projetos de lei transitando no Congresso Nacional. Entretanto, é difícil prever o desdobramento dessas propostas. Enquanto isso, a expansão da mecanização é motivada pelo atrativo mercado de crédito de investimento, uma dupla perda para o trabalhador agrícola. Referências Bibliográficas BUNDESMINISTERIUM FÜR VERBRAUCHERSCHUTZ ERNÄHRUNG, (BMELV). Markt LANDWIRTSCHAFT & Recht. Disponível UND em: http://www.bmelv.de (último acesso 23/01/2010) EICHHORST, W. Europäische Sozialpolitik zwieschen nationaler Autonomie und Marktfreiheit: die Entsendung von Arbeitnehmern in der EU. Frankfurt am Main: Campus, 2000. HÄGER, A.; HAGELSCHUER, P. Einige soziale Auswirkungen der Transformation im Agrarsektor der Neuer Bundesländer. Berlin: Humbold-Universität zu Berlin, Wirtschafts77 und Sozialwissenschaften an der Landwirtschaftlich-Gärtnerischen Fakultät, 1996 (Working Paper n.21). 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UM MODELO DE MICRO-SIMULAÇÃO PARA O BRASIL1 1. Introdução Em setembro de 2009, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) com a qual foi possível calcular o percentual de informalidade nas atividades agrícolas para o ano de 2008. Entende-se por informalidade o não recolhimento da contribuição para um instituto de previdência.2 Apesar do aumento da fiscalização federal e da mobilização da Justiça do Trabalho no intuito de punir com mais rigor os produtores que não cumprem a legislação trabalhista no campo, para o ano de 2008 a informalidade presente nas relações de trabalho continuou próxima dos 80%, pouco se diferenciando dos 86% calculados a partir da mesma pesquisa para o ano de 1998.3 Esse percentual, além de significativo, indica que os esforços de diferentes agentes do governo não estão sendo suficientes para melhorar as condições de vida dos trabalhadores rurais. Em outras palavras, os resultados dessas ações estão muito aquém do necessário para garantir as condições mínimas de vida desse contingente. O objetivo do presente artigo é apresentar alternativas para a redução dos níveis de informalidade nas atividades agrícolas através da flexibilização dos encargos trabalhistas e, conseqüentemente, da pobreza nas áreas rurais do país. Flexibilizar, nesse caso, não significa perda de direitos para os trabalhadores. Pelo contrário. Os resultados apresentados neste artigo podem servir de base para futuros estudos sobre políticas de inclusão do trabalhador rural no sistema de seguridade social. Nesse sentido, a hipótese adotada 1 Artigo elaborado com o apoio financeiro do Projeto Nemesis (http://www.nemesis.org.br), em parceria como Departamento de Economia Política da Universidade de Siena (Itália). Uma versão preliminar está no prelo como texto para discussão na Universidade de Siena: http://www.econ-pol.unisi.it/dipartimento/en/frontpage. 2 Note que o termo setor informal foi utilizado pela primeira vez pela Organização das Nações Unidas (ONU), mais especificamente pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), para descrever as atividades dos trabalhadores pobres que executavam suas tarefas sob condições não reconhecidas, registradas, protegidas ou reguladas pelas autoridades públicas na África em 1972 (Vargha, 1992). De lá pra cá esse termo foi sendo incorporado pelas diferentes áreas da ciência, e hoje em dia raramente se analisa o mercado de trabalho sem falar de informalidade. O cálculo da informalidade a partir da contribuição previdenciária é uma das alternativas possíveis na PNAD. 3 Para o cálculo da informalidade foram usadas as variáveis V4747 e V4711, que se referem à contribuição para um instituto de previdência – federal, estadual ou municipal. Outra possibilidade de análise da informalidade pela PNAD é a verificação da assinatura da carteira de trabalho (V4706). Pela legislação brasileira, essas duas condições são necessárias. Entretanto, optamos pela primeira porque é sabido que alguns empregadores, apesar de assinar a carteira de seus empregados, atrasam com o pagamento da contribuição social. Além disso, como será visto na seção 3, a contribuição social é o que conta para efeito do Imposto de Renda. 81 aqui é que há um problema estrutural de regulação, e que para se reduzir o cenário atual de informalidade, faz-se necessária uma revisão na legislação trabalhista vigente. A proposta do presente estudo foi possível a partir da análise dos rendimentos mensais de cada indivíduo. Assim, pelos microdados da PNAD recompomos os agregados do setor famílias das Contas Econômicas Integradas (CEI), utilizando as regras do Imposto de Renda (IR) e a legislação trabalhista. Após a checagem desses agregados, doravante chamado de realidade, foram simulados mais dois cenários alternativos para o Brasil e para o setor agrícola, quais sejam: a formalização via empregador – onde apenas o empregador paga os encargos trabalhistas – e a formalização via empregado – onde o empregador não abre mão de gastar o montante atual pelo serviço prestado, cabendo, portanto, ao empregado pagar todos os encargos trabalhistas. Utilizamos como base de dados a PNAD do ano de 2008, os dados da CEI do Sistema de Contas Nacionais (SCN) de 2006, e as regras da declaração do IR de 2009, que tem como ano base fiscal o ano-calendário de 2008, além da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e da Lei no 5.8894, que estatui as normas reguladoras do trabalho rural no Brasil. A passagem da condição de cada indivíduo empregado de informal para formal foi feita através do Modelo de Micro-Simulação de Siena (SM2), que é um modelo robusto de conversão de rendimento bruto em líquido, a nível domiciliar e individual – e que já foi utilizado amplamente pelo EUROSTAT em outros países da Europa.5 O presente artigo está organizado em cinco seções, incluindo esta introdução. A segunda seção apresenta uma descrição detalhada da metodologia, das bases de dados empregadas, e da compatibilização da PNAD com a CEI para a checagem dos resultados do cenário 1, doravante chamado de realidade. A seção três descreve o sistema tributário brasileiro vigente em 2008, o que inclui os custos sociais do trabalho e as regras para a declaração do imposto de renda. A aplicação do modelo SM2 é feita na seção quatro, onde também são apresentadas as considerações adotadas para o uso da PNAD e descritos os cenários propostos tanto para o Brasil quanto para o setor agrícola. Finalmente a seção cinco apresenta os resultados preliminares e considerações finais sobre o presente estudo. 2. Metodologia 2.1. Os Modelos de Micro-Simulação Os modelos de micro-simulação são amplamente utilizados como parte integrante do processo de avaliação e elaboração de políticas públicas tributárias e sociais, especialmente nos Estados 4 5 Lei de 8 de junho de 1973. Para a descrição detalhada do SM2, consultar Betti et al. (2010). 82 Unidos, Canadá, Reino Unido e em vários outros países do norte da Europa (Martini e Trivellato, 1997). Ao longo das últimas três décadas, a micro-simulação passou de uma descrição do impacto distributivo dos sistemas fiscal e de transferência de renda para uma complexa ferramenta de avaliação de propostas de mudanças para o sistema já existente. Exemplos bem conhecidos de modelos fiscais incluem: o TAXBEN elaborado pelo Instituto de Estudos Fiscais (Institute for Fiscal Studies) do Reino Unido; o STINMOD, que é um modelo de micro-simulação do Imposto de Renda e do sistema de transferências construído pelo Centro Nacional de Modelagem Sócio-Econômica (National Centre for Social and Economic Modelling) da Austrália; o TRIM (Modelo de Transferência de Renda), que é um modelo de micro-simulação mais abrangente do Instituto Urbano (Urban Institute) de Washington DC, Estados Unidos; o SPSD/M (Modelo e Base de Dados de Simulação de Políticas Sociais) desenvolvido pela Agência de Estatística do Canadá (Statistics Canada) para avaliar as interações financeiras entre o governo e os indivíduos; e o Euromod (Sutherland, 2001; Sutherland et al., 2008), representando um modelo integrados de diversos países para a União Européia.6 Esses modelos foram desenvolvidos para simular impostos, encargos sociais, benefícios e outras transferências recebidas que sejam relevantes para a transformação de renda bruta em líquida, e vice-versa, contemplando as especificidades do sistema fiscal de cada país. O presente artigo trata de alguns aspectos puramente estatísticos de modelagem de rendimento individual e domiciliar. O Modelo de Micro-Simulação de Siena (SM2), adotado neste artigo, foi desenvolvido como uma ferramenta versátil para transformar informações sobre renda – coletadas de pesquisas domiciliares ou outras fontes – em formas padronizadas necessárias para diversas análises, dentre elas, a simulação de mudanças fiscais (Verma et al., 2003, Betti et al., 2010). Para isso, o sistema SM2 é composto de dois núcleos principais: (a) um conjunto padronizado de rotinas, que pode lidar com uma grande diversidade de formas de entrada de dados e sistemas fiscais; e (b) rotinas elaboradas para cada país, que considera parâmetros específicos do sistema tributário nacional. Esse modelo foi oficialmente adotado por alguns membros da União Européia, como Portugal, Itália, Turquia, Grécia e Espanha. Este artigo é a primeira aplicação prática fora da Europa. Embora o SM2 permita a conversão de renda bruta em líquida a nível nacional, nosso foco é o mercado de trabalho agrícola. Como foi mencionado na seção anterior, o objetivo é criar alternativas para realocar trabalhadores rurais do mercado informal para o sistema de seguridade social no Brasil, o que é possível através da análise da incidência dos encargos trabalhistas nos salários. 6 Para maiores informações, consultar: http://www.ifs.org.uk/ para o Reino Unido, http://www.canberra.edu.au/centres/natsem/ para a Austrália, http://www.urban.org/ para os Estados Unidos, http://www.statcan.gc.ca/ para o Canadá, e http://www.iser.essex.ac.uk/research/euromod para a União Européia. 83 2.2. O Algoritmo de Conversão de Renda Bruta-Líquida-Bruta do Modelo SM2 A Figura 1 mostra a relação básica entre as formas bruta e líquida de rendimento, quando estão envolvidos mais de um componente do rendimento e possivelmente mais de um indivíduo na unidade fiscal7, como proposto por Betti et al. (2010). As relações entre o rendimento bruto tributável para um componente específico, Hi, e as quantidades, como o rendimento bruto (Gi) e a renda após o IRRF (XSTi) são geralmente simples – depende apenas do i, do componente do rendimento em questão, que é determinado de forma independente de outros componentes e de outras pessoas na unidade fiscal. O mesmo se aplica à relação entre Hi (rendimento bruto tributável) e Ni (rendimento líquido por componente) que são tributados separadamente a uma alíquota fixa ou variada de acordo com o valor unitário desse componente. Os componentes isentos de tributação também são separados. Às vezes, a aplicação da regra de tributação depende da relação do componente analisado com outras fontes de renda, mas em sua grande maioria esses componentes estão simplemente sob a forma de limites máximos. Figura 1 Relação básica entre os valores líquidos e brutos dos rendimentos Gi Contribuições Sociais Deduções na Fonte XSi, XTi, XSTi Hi Tributação separada Tributação conjunta Isento de tributação Ni Fonte: Betti et al. (2010). 7 Entende-se como unidade fiscal a declaração de dois ou mais indivíduos para o Imposto de Renda. O exemplo mais recorrente é a declaração conjunta de pessoas casadas. Todas as formas de declaração conjunta estão na seção 3.2. 84 No entanto, todos ou a maioria dos rendimentos tributáveis são agrupados em componentes e em pessoas nas unidades fiscais para determinar o montante de imposto devido. A relação entre Hi e Ni para os componentes do grupo é mais complexa do que parece na Figura 1. Em todo o caso, a transformação de Hi em Ni é menos problemática se as regras tributárias forem uma função de Hi, ou seja, do rendimento bruto tributável. Essas relações estão especificadas com mais detalhe na Tabela 1. Mas para chegar em Hi a partir de Ni é preciso se adotar soluções interativas. 8 As entradas da Tabela 1 têm as seguintes interpretações: as duas últimas linhas definem as medidas de rendimento de acordo com as linhas anteriores; já as colunas se referem ao rendimento total e ao rendimento por componente. Tabela 1 Algoritmo de conversão de renda bruta em líquida 1 Medida de Renda RENDIMENTO BRUTO (2) 2 Contribuição para o INSS 3 RENDIMENTO BRUTO TRIBUTÁVEL Total G = ∑Gi ← Por Componente(1) Gi Si = Si(Gi) H = ∑Hi ← 4 Componentes de deduções específicas 1.1. Agregação por componentes e indivíduos em unidade fiscal 5 RENDIMENTO TRIBUTÁVEL Y = ∑Yi ← 6 Deduções comuns D0 = D0(H) 7 Rendimento tributável (0) Y0 = Y - D0 8 Imposto devido (0) W0 = W0(Y0) 9 Isenções tributárias comuns C0 = C0(Y0) 10 IMPOSTO DEVIDO W = W0 - C0 11 12 13 Componentes específicos de isenções tributárias TOTAL PAGO TOTAL LÍQUIDO C = ∑Ci ← X=W-C N=H-X 14 Alíquota de imposto (0) Hi = Gi - Si Di = Di(Hi) Yi= Hi - Di Ci = Ci(Yi) R0 = X/H ALÍQUOTA DE IMPOSTO = IMPOSTO 15 DEVIDO / RENDIMENTO TRIBUTÁVEL R = W/Y 1.2. Desagregação – rendimento pessoal por componente 16 Alíquota proporcional por componente 17 LÍQUIDO POR COMPONENTE Xi= R * Yi - Ci Ni = Hi - Xi Fonte: Elaboração própria. (1) As relações funcionais nesta coluna podem ser um pouco mais complexas ou variadas. (2) A renda bruta, que inclui a contribuição dos empregadores para a seguridade social (SS), é: GG=G+SS(G1) 8 Estas soluções serão detalhadas na próxima seção. 85 Contribuições sociais. As contribuições sociais Si, quando aplicáveis ao componente, são geralmente uma função do rendimento bruto (Gi), mas no caso do rendimento do trabalho, sem a contribuição do empregador (veja nota (2) da Tabela 1). A relação funcional Si(Gi) é específica para o componente e para o país. Por isso, o SM2 tem uma subrotina nos programas de aplicação, onde a relação funcional é calculada separadamente da estrutura comum apresentada na Tabela 1. No entanto, algumas situações mais complexas podem ser incorporadas pelo modelo, mantendo a estrutura básica. Mais especificamente, o SM2 pode permitir a dependência de Si para qualquer componente particular i em qualquer conjunto de componentes do rendimento. No sistema francês, por exemplo, as contribuições de associados para uma série de componentes podem estar sujeitas a um limite máximo comum. Deduções. Os rendimentos (líquidos) tributáveis (linha 7 da Tabela 1) são obtidos subtraindo do rendimento tributável bruto a parte que está isenta do imposto – as deduções. Essas deduções são determinadas em função do rendimento tributável bruto. Elas podem ser de dois tipos: (i) deduções específicas aplicáveis aos componentes do rendimento particular Di (linha 4); e (ii) deduções comuns aplicáveis aos rendimentos (tributáveis restantes) de todas as fontes em conjunto (linha 6). No caso (i), a relação funcional Di(Hi) é específica para o componente i, ou seja, Di depende da renda bruta tributável Hi para o componente em questão. De um modo geral, o modelo pode permitir a dependência de Di para qualquer componente particular i em qualquer conjunto de componentes do rendimento, ou seja, uma relação funcional da fórmula Di = Di(HI), – mais genericamente como Di = Di(HI, GI) – em que o I se refere a um conjunto de componentes do rendimento (normalmente incluindo o i particular). No caso (ii), uma relação funcional da fórmula D0(H) é, em termos de rendimento total bruto, tributável, ou seja, de todos os componentes juntos. Ambos os tipos de função são, evidentemente, específicos de cada país. Novamente, no SM2 essas relações podem ser especificadas separadamente da estrutura comum representada na Tabela 1. Agregação. Após a retirada das deduções específicas do componente, é necessário somar os rendimentos dos indivíduos na mesma unidade tributável e por componente, que são tratados em conjunto para efeito de tributação. Alguns componentes do rendimento podem ser excluídos desse “agrupamento” comum e tributados separadamente; esse tipo de situação é o adotado no presente modelo. Isenções tributárias. O imposto devido inicial é calculado em função do rendimento tributável total (linha 8). Ele é determinado pelo ano-calendário do Imposto de Renda de cada país, normalmente aplicado aos rendimentos obtidos a partir de diferentes fontes. Esse imposto é normalmente reduzido por isenções tributárias. As isenções tributárias são baseadas, na sua maioria, em características individuais (mãe solteira, pensionista, etc.) ou são dadas como 86 compensação de despesas particulares (médicas, educacionais, etc.), ou seja, não são específicas a uma fonte de renda particular. Nós nos referimos a elas como isenções tributárias comuns (linha 9), nas quais são normalmente expressas como uma função do total do rendimento tributável. O resultado é uma expressão mais precisa do imposto total devido (linha 10). Adicionalmente às isenções tributárias comuns, há também componentes específicos de isenções tributárias (linha 11). Geralmente, eles são baseados no rendimento tributável líquida para o componente em questão. No entanto, a relação funcional pode ser mais complexa, envolvendo outros componentes de renda e/ou outras formas de rendimento (bruto, bruto tributável, etc.). Imposto pago e rendimento líquido. As deduções das isenções tributárias do montante do imposto devido (conforme definido na linha 10) nos dá o imposto a ser pago (linha 12), ou seja, o imposto total a ser pago é igual ao imposto devido menos todas as isenções tributárias (as comuns e as específicas). Da mesma forma, o rendimento líquido total é igual ao rendimento bruto tributável total menos o imposto pago (linha 13). Essas duas quantidades, imposto pago e rendimento líquido (linhas 12 e 13), se referem nessa fase ao rendimento total, e não ao rendimento de cada componente. Alíquota de imposto. É a alíquota efetiva de imposto aplicada aos componentes agregadas. A alíquota de imposto na Tabela 1 foi definida de duas formas. A primeira (linha 14), é uma medida descritiva que representa a razão entre o montante total do imposto a ser pago, e do rendimento bruto tributável (linha 12 / linha 3), e que é, portanto, um indicativo da carga tributária geral. A segunda forma (linha 15) fornece uma medida mais analítica no seguinte sentido: é a razão entre o montate do imposto devido total – antes de levar em conta quaisquer componentes específicos de isenções tributárias (linha 11) – e o rendimento tributável total após a dedução dos componentes de deduções específicas (linha 4). Ao eliminar todos os aspectos dos componentes específicos, que são os de isenções tributárias e de deduções, o R pode ser visto como uma alíquota comum aplicável a todos os rendimentos tributáveis, independente da fonte, que foram agrupadas e estão sujeitos a um calendário fiscal comum. O parâmetro R tem duas funções. Em primeiro lugar, fornece um meio de desagregação do imposto total e dos rendimentos líquidos em componentes, quando necessário for. Em segundo lugar, o R é o parâmetro de interação do rendimento líquido para o bruto, como descrito em Betti et al. (2010). Desagregação dos impostos e do rendimento líquido por componente. Essa alíquota de imposto comum pode ser vista como uma alíquota aplicável para cada componente individualmente, e não apenas uma alíquota média aplicável ao rendimento total. Isso permite a decomposição da alíquota paga por componentes do rendimento (linha 16) e, conseqüentemente, a decomposição do rendimento líquido total em componentes (linha 17). Geralmente, uma decomposição como 87 essa requer menos informação do que a repartição do rendimento bruto por cada componente individualmente. 2.3. As Fontes de Dados Utilizadas Existem sete fontes secundárias com periodicidade regular que podem ser usadas para analisar o mercado de trabalho. Essas fontes são classificadas em: registros administrativos ou pesquisas domiciliares. Segundo o MDA (2007, p.7), “os registros administrativos referem-se a cadastros que, por obrigação legal, são preenchidos pelas empresas com informações referentes ao empreendimento e a seus empregados, enquanto as pesquisas domiciliares resultam de questionários aplicados no domicílio”. A Tabela 2 apresenta suas principais características. Tabela 2 Fontes de dados secundários disponíveis sobre o mercado de trabalho no Brasil 1.1. Pesquisas domiciliares Publicação Censo Demográfico Censo Agropecuário PNAD Instituição IBGE Periodicidade decenal Abrangência Todos os municípios brasileiros. Início da Série 1872 IBGE decenal Todos os municípios brasileiros. 1920 IBGE PME IBGE PED DIEESE anual, exceto em Todas as Unidades da Federação, anos de Censo grandes regiões e Brasil. Demográfico mensal Regiões metropolitanas de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. mensal Distrito Federal e regiões metropolitanas de São Paulo, Porto Alegre, Recife, Salvador e Belo Horizonte. 1967 1980 1984 1.2. Registros administrativos Publicação RAIS Instituição MTE Periodicidade anual CAGED MTE mensal Abrangência Início da Série Todos os empregos formais do 1975 setor privado e os vínculos empregatícios do setor público. Todos os empregos formais do 1965 setor privado. Fonte: Elaboração própria. De acordo com a Tabela 2, o Brasil possui sete pesquisas regulares sobre mercado de trabalho. As duas primeiras são os Censos e têm a vantagem de serem significativos a nível municipal, abrangendo os setores formal e informal. Como desvantagem encontra-se a periodicidade, que não permite a construção de séries temporais. A terceira pesquisa (PNAD) é a mais usada nas análises sobre mercado de trabalho agrícola. Seu questionário anual segue o 88 Censo predecessor, com a vantagem de ser publicada anualmente – exceto nos anos de Censo. Pela restrição da amostra, sua principal desvantagem é a abrangência, que para análises gerais é estadual e para análises específicas – como o estudo de uma determinada cultura – é nacional.9 A Pesquisa Mensal de Emprego (PME) e a Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), apesar de serem mensais, só abrangem as regiões metropolitanas e, por isso, não se adequam ao estudo em questão. A RAIS (Relação Anual de Informações Sociais) e o CAGED (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) são os dois principais registros administrativos criados para operacionalizar ações de caráter fiscalizador do governo federal. Ambos oferecerem desagregações por setor de atividade (CNAE 1.0) e por ocupação (CBO 2002), mas se restringem ao emprego formal. Para este artigo foram selecionados os dados da PNAD 2008 e, de forma complementar, o Sistema de Contas Nacionais (SCN), como apresentado a seguir. 2.3.1. A PNAD Como Barros et al. (2007) destacaram, pesquisas domiciliares com abrangência nacional são utilizadas no mundo inteiro como uma das principais fontes de informação para estudos sobre desigualdade de renda. Essas pesquisas também são importantes para servir de base para modelos de simulação de políticas públicas. O Banco Mundial, bem como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), apontaram a PNAD como a melhor fonte de informação sobre o Brasil.10 A PNAD é uma pesquisa domiciliar, implementada em 1967 pelo IBGE. Trata-se de uma pesquisa anual que tem a vantagem de adotar a mesma metodologia por toda a década. Mas essa não foi a razão pela qual a PNAD foi escolhida como fonte de dados principal para o presente estudo, mas sim pela sua cobertura – setores formal e informal, áreas urbanas e rurais – e pelas características de trabalho e renda dos moradores dos domicílios. Para o modelo SM2, organizamos os dados em quatro grupos de variáveis: definições básicas, indentificação do domicílio e da família, ocupações e composição do rendimento. Definições básicas. A primeira definição básica se refere ao período de referência. Embora a PNAD ofereça quatro opções – semana de referência, 358 dias, mês de referência e ano de referência –, escolhemos a primeira. A segunda se refere ao rendimento total e rendimento per capita. Nesse caso, foram utilizados ambos os conceitos: unidade domiciliar e família. Note que cada família tem que ter pelo menos duas pessoas, não importando se em um mesmo domicílio vivem uma ou mais famílias juntas. Existe apenas uma exceção: aqueles que moram sozinhos 9 Até 2003, a PNAD não incluía a área rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. Barros et al. (2007) destacaram três estudos que mencionam a PNAD: Deninger e Squire (1996), Banco Mundial (2005) e PNUD (2005). 10 89 também são contados como domicílio e família. Assim, na mesma unidade domiciliar é possível identificar: (a) quantas pessoas moram juntas no mesmo domicílio; (b) quem é a pessoa de referência na unidade domiciliar (pessoa de referência); (c) quem é a pessoa de referência em cada família (pessoa de referência secundária); (d) quantas famílias moram juntas na mesma unidade domiciliar (número de famílias); e (e) quem é quem em cada unidade domiciliar (número de ordem). No último caso, o número um é dado sempre à pessoa de referência. Depois dela, vêm seus familiares – cônjuge, filho(s) – se mais de um, do mais velho para o mais novo –, outro(s) parente(s), agregado(s), pensionista(s), empregado(s) doméstico(s) e parente(s) do empregado(s) doméstico(s). A descrição das definições básicas encontra-se na Tabela 3. Se a unidade domiciliar tiver mais de uma família, a(s) família(s) secundária(s) segue(m) a mesma ordem apresentada para a família principal. É importante destacar que a ordem das famílias é dada pela variável número da família. Tabela 3 Definições básicas, PNAD 2008 Nomenclatura Semana de referência Unidade domiciliar Família Dependência doméstica Normas de convivência Morador Pessoa de referência Pessoa de referência secundária Número da família Número de ordem Cônjuge Descrição De 21 a 27 de setembro de 2008. Os domicílios são classificados em dois grupos: os domicílios particulares e os domicílios coletivos. O primeiro deles é a moradia onde o relacionamento é ditado por laços de parentesco, de dependência doméstica ou por normas de convivência. São eles: casas, apartamentos, as unidades em apart-hotéis, casas de cômodos e cortiços ou cabeças-de-porco. Também são particulares os domicílios situados em edifícios em construção, embarcações, veículos, barracas, tendas, grutas e estabelecimentos comerciais, desde que estejam servindo de moradia. Já o domicílio coletivo é a moradia onde prevalece o cumprimento de normas administrativas. São domicílios coletivos os estabelecimentos destinados a prestar serviços de hospedagem (hotéis, pensões e similares) ou as instituições que possuem locais para residência e alojamento das pessoas institucionalizadas (orfanatos, asilos, casas de detenção, hospitais, etc.). São incluídos ainda os alojamentos de trabalhadores em canteiros de obras. É o conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência, que more na mesma unidade domiciliar. A pessoa que mora só em uma unidade domiciliar também é considerada família. É a relação estabelecida entre a pessoa de referência e os empregados domésticos e agregados da família. São as regras estabelecidas para o convívio de pessoas que moram juntas, sem estarem ligadas por laços de parentesco ou dependência doméstica. É a pessoa que tem a unidade domiciliar como local de residência habitual, na data da entrevista. É a pessoa responsável pela unidade domiciliar ou que assim for considerada pelos demais moradores. Note que a pessoa de referência não é necessariamente a pessoa que está respondendo o questionário. É a pessoa de referência da família. Em cada unidade domiciliar, o número da pessoa de referência secundária se refere ao número da família. É o número de famílias que vivem na mesma unidade domiciliar. É o número de ordem de cada morador. É a pessoa que vive conjugalmente com a pessoa de referência na unidade 90 Filho Outro parente Agregado Pensionista Empregado doméstico Parente do empregado doméstico domiciliar, existindo, ou não, o vínculo matrimonial. É a pessoa que é filho, enteado, filho adotivo ou de criação da pessoa de referência na unidade domiciliar ou do seu cônjuge. É a pessoa que tem qualquer grau de parentesco com a pessoa de referência na unidade domiciliar ou com o seu cônjuge, exclusive aqueles relacionados anteriormente. É a pessoa que não é parente da pessoa de referência da unidade domiciliar ou do seu cônjuge e não paga hospedagem nem alimentação na unidade domiciliar. É a pessoa que não é parente da pessoa de referência na unidade domiciliar nem do seu cônjuge e paga pela sua hospedagem e/ou alimentação na unidade domiciliar. É a pessoa que presta serviços domésticos remunerados em dinheiro ou somente em benefícios, a membro da unidade domiciliar. É a pessoa que é parente do empregado doméstico e não presta serviços domésticos remunerados a membro(s) da unidade domiciliar. Fonte: IBGE (2008a). Elaboração própria. Identificação do domicílio e da família. A identificação do domicílio é possível pelas variáveis número de série (V0103) e número de controle (V0102). A identificação da família dentro da mesma unidade domiciliar é feita pela variável V0403, que corresponde ao número da família, como explicado na Tabela 3. Ocupações. De acordo com a PNAD, é possível distinguir dois grupos de ocupação: as agrícolas e as não agrícolas. O primeiro grupo inclui os empregados, os empregados temporários, os conta própria, os empregadores, os trabalhadores não remunerado (membro da unidade domiciliar ou outros), e os trabalhadores na produção para o próprio consumo. O segundo grupo inclui os empregados, os empregados domésticos, os conta própria, os empregadores, os trabalhadores não remunerado (membro da unidade domiciliar ou outros), e os trabalhadores na construção para o próprio uso. Nesse grupo encontram-se também os militares e os funcionários públicos estatutários. A Tabela 4 apresenta a descrição de cada ocupação. Na análise, consideramos não só a ocupação principal, mas também a segunda, a terceira, e assim por diante. Tabela 4 Ocupações, PNAD 2008 Nomeclatura Empregado Empregado temporário Empregado doméstico Descrição É a pessoa que trabalha para um empregador (pessoa física ou jurídica), geralmente obrigando-se ao cumprimento de uma jornada de trabalho e recebendo em contrapartida uma remuneração em dinheiro, mercadorias, produtos ou benefícios (moradia, comida, roupas, etc.). É a pessoa que trabalha como empregada temporária em empreendimento do ramo que compreende as atividades da agricultura, silvicultura, pecuária, extração vegetal, pesca, pisicultura e caça ou nos serviços auxiliares deste ramo. É a pessoa que trabalha prestando serviço doméstico remunerado, em dinheiro ou benefícios, em uma ou mais unidades domiciliares. Estão incluídas nesta categoria ocupações como a empregada doméstica, a faxineira, o motorista, a babá, o mordomo, etc. 91 Conta própria Empregador Trabalhador não remunerado (membro da unidade domiciliar) Trabalhador não remunerado (outros) Trabalhador na produção para o próprio consumo Trabalhador na construção para o próprio uso Militar Funcionário público estatutário É a pessoa que trabalha explorando o seu próprio empreendimento, sozinha ou com sócio, sem ter empregado e contando, ou não, com a ajuda de trabalhador não remunerado. É a pessoa que trabalha explorando o seu próprio empreendimento, com pelo menos um empregado. É a pessoa que trabalha sem remuneração, durante pelo menos uma hora na semana, em ajuda a membro da unidade domiciliar que era empregado na produção de bens primários (que compreende as atividades da agricultura, silvicultura, pecuária, extração vegetal ou mineral, caça, pesca e pisicultura), conta própria ou empregador. É a pessoa que trabalha sem remuneração, durante pelo menos uma hora na semana: em ajuda a instituição religiosa, beneficente ou de cooperativismo, ou ainda como aprendiz ou estagiário. É a pessoa que trabalha, durante pelo menos uma hora na semana, na produção de bens, do ramo que compreende as atividades da agricultura, silvicultura, pecuária, extração vegetal, pesca e pisicultura, para a própria alimentação de pelo menos um membro da unidade domiciliar. É a pessoa que trabalha, durante pelo menos uma hora na semana, na construção de edificações, estradas privativas, poços e outras benfeitorias (exceto as obras destinadas unicamente à reforma) para o próprio uso de pelo menos um membro da unidade domiciliar. É a pessoa que é militar do Exército, Marinha de Guerra ou Aeronáutica, inclusive aquele que presta serviço militar obrigatório. É a pessoa que é empregada regida pelo Estatuto dos Funcionários Públicos (federais, estaduais, municipais ou de autarquias). Fonte: IBGE (2008a). Elaboração própria. Composição do rendimento. Normalmente costuma-se relacionar rendimento com renda do trabalho, mas existe uma série de receitas que derivam de outras fontes. Todos esses rendimentos estão sendo considerados. Para o rendimento do trabalho, a PNAD identifica o rendimento de cada um – primeiro (ou principal), segundo, terceiro ou mais. A Tabela 5 apresenta uma parte das receitas de outras fontes. Além delas, há também os juros de poupança, os investimentos, os dividendos, os programas sociais, etc. Tabela 5 Rendimento de outras fontes, PNAD 2008 Nomenclatura Aposentadoria de instituto de previdência ou do governo federal Pensão de instituto de previdência ou do governo federal Outro tipo de aposentadoria Outro tipo de pensão Descrição É o valor do rendimento mensal, em setembro de 2008 recebido de jubilação, reforma ou aposentadoria do Plano de Seguridade Social da União ou de instituto de previdência federal (INSS), estadual ou municipal, inclusive do FUNRURAL. É o valor do rendimento mensal, em setembro de 2008, recebido de pensão das forças armadas, do Plano de Seguridade Social da União ou de instituto de previdência federal (INSS), estadual ou municipal. É o valor do rendimento mensal, em setembro de 2008, recebido de complementação ou suplementação de aposentadoria paga por entidade seguradora ou de participação em fundo de pensão. É o valor do rendimento mensal, em setembro de 2008, recebido de pensão de caixa de assistência social, entidade seguradora ou fundo de pensão, na qualidade de beneficiária de outra pessoa, e de pensão alimentícia (espontânea ou judicial). 92 Abono de permanência Aluguel Doação recebida de não morador É o valor do rendimento mensal, em setembro de 2008, recebido de abono de permanência em serviço (benefício que é concedido à pessoa que, embora tenha tempo de serviço suficiente para se aposentar, permanece trabalhando sem requerê-la). Este benefício é comumente chamado de “pé-na-cova”. É o valor do rendimento mensal, em setembro de 2008, recebido do aluguel, inclusive sublocação ou arrendamento de móveis, imóveis, máquinas, equipamentos, animais, etc. É o valor do rendimento mensal, em setembro de 2008, recebido de doação ou mesada, sem contrapartida de serviços prestados, provenientes de pessoas não moradoras na unidade domiciliar. Fonte: IBGE (2008a). Elaboração própria. Além desses quatro grupamentos de variáveis, foram selecionadas algumas variáveis da PNAD para a checagem dos resultados. À exceção da V9120, as demais variáveis são chamadas de derivadas por terem sido geradas pelo IBGE a partir do questionário original, como uma espécie de apêndice da pesquisa. A Tabela 6 apresenta as variáveis derivadas selecionadas. Tabela 6 Variáveis de controle, PNAD 2008 Descrição V4711 = Contribuição para um instituto de previdência em qualquer trabalho na semana de referência para pessoas de 10 anos ou mais de idade V4707 = Horas habitualmente trabalhadas por semana em todos os trabalhos da semana de referência para pessoas de 10 anos ou mais de idade V9120 = Era contribuinte de alguma entidade de previdência privada, no mês de referência (pessoa de 10 anos ou mais de idade) V4719 = Rendimento mensal de todos os trabalhos para pessoas de 10 anos ou mais de idade V4720 = Rendimento mensal de todas as fontes para pessoas de 10 anos ou mais de idade V4721 = Rendimento mensal domiciliar para todas as unidades domiciliares* V4742 = Rendimento mensal domiciliar per capita V4722 = Rendimento mensal familiar para todas as unidades domiciliares* V4750 = Rendimento mensal familiar per capita V4724 = Número de componentes da família** V4741 = Número de componentes do domícilio** V4713 = Condição de atividade no trabalho principal do período de referência de 365 dias para pessoas de 10 anos ou mais de idade (economicamente ativas?) V4814 = Condição de ocupação no período de referência de 365 dias das pessoas de 10 anos ou mais de idade (ocupadas?) Característica da Variável Dummy (sim ou não) Unidade Dummy (sim ou não) Valor (R$) Valor (R$) Valor (R$) Valor (R$) Valor (R$) Valor (R$) Unidade Unidade Dummy (sim ou não) Dummy (sim ou não) Fonte: IBGE (2008a). Elaboração própria. * Exclusive o rendimento das pessoas cuja condição na unidade domiciliar era pensionista, empregado doméstico ou parente do empregado doméstico e das pessoas de menos de 10 anos de idade. ** Exclusive as pessoas cuja condição na unidade domiciliar era pensionista, empregado doméstico ou parente do empregado doméstico. 93 2.3.2. O Sistema de Contas Nacionais (SCN) O SCN é uma consolidação dos agregados do produto, da renda e da despesa nacionais em um dado ano. Esse sistema utiliza diversas pesquisas disponíveis, inclusive a própria PNAD, para estimar os agregados do Brasil. Apesar dos conceitos utilizados por ambos não serem semelhantes, ainda é possível compará-los nesse nível agregado. Isso significa que podemos analisar o nível e a composição da renda das famílias, mas não a forma como a renda é distribuída entre elas.11 O SCN constitui a fonte de informação mais completa sobre a renda das famílias, e essa é a principal razão para a sua seleção neste estudo. O SCN é composto basicamente de cinco blocos, que “se articulam e são totalmente consistentes porque utilizam os mesmos conceitos, definições, classificações e regras contábeis” (IBGE, 2008b, p. 18). Ainda segundo o IBGE (2008b), esses blocos são: Contas Econômicas Integradas (CEI), nas quais apresenta todo o conjunto de contas dos setores institucionais e do resto do mundo. Tabela Recursos e Usos (TRU), que agrupa as atividades econômicas e os produtos (bens e serviços) de acordo com o tipo de operação econômica, produção, consumo intermediário, consumo final, e os componentes do valor adicionado. Tabela tridimensional das operações financeiras e dos estoques de ativos e passivos financeiros, na qual estão diretamente representadas as relações entre os setores institucionais (de quem a quem). Tabeça de algumas operações dos setores institucionais, que são apresentadas de acordo com sua função. Tabelas de população e emprego. Dentre esses blocos, selecionamos a CEI por ela apresentar uma visão geral do conjunto da economia, e o setor famílias. Além desse setor, a CEI é composta por mais quatro setores, quais sejam: empresas não-financeiras, empresas financeiras, administração pública e instituições sem fins lucrativos à serviço das famílias. Somente através da tabela da CEI, é possível comparar os usos – todas as ofertas de bens e serviços – e os recursos – todas as suas respectivas demandas. Conseqüentemente, os saldos são obtidos através da diferença entre recursos e usos. A Tabela 7 apresenta a descrição dos componentes selecionados no SCN. 11 Para o SCN, o setor família representa não só todas as famílias brasileiras (domicílios), mas também um grupo razoável de empresas – todas elas, exceto as 100 mil maiores. 94 Tabela 7 Descrição dos componentes das famílias no SCN 6.1. Ocupações, ordenados, salários e rendimentos Componente Descrição Ocupações com vínculo As ocupações com vínculo reúnem os assalariados com carteira de trabalho formal assinada, os funcionários públicos estatutários, os militares e os empregadores (sócios e proprietários) de empresas formalmente constituídas. Ocupações sem vínculo As ocupações sem vínculo formal constituem-se dos assalariados sem formal carteira de trabalho assinada e dos trabalhadores autônomos. Autônomos Agregam os trabalhadores por conta própria, os trabalhadores nãoremunerados e os empregadores informais, ou seja, proprietários de empresas não constituídas em sociedade, portanto, que pertencem ao setor institucional famílias. Ordenados e salários Correspondem ao valor dos salários e ordenados recebidos em contrapartida (D.11) do trabalho, quer em moeda ou em mercadorias. Os salários são contabilizados em bruto, isto é, antes de qualquer dedução para previdência social a cargo dos assalariados ou recolhimento de imposto de renda. Os salários e ordenados incluem: importâncias pagas no período a título de salários, remuneração de férias, honorários, comissões sobre vendas, ajudas de custo, gratificações, participações nos lucros, retiradas de sócios e proprietários dentro dos limites fixados pelas autoridades fiscais, e auxílioalimentação, nos casos em que foi possível distingui-lo no conjunto de despesas das empresas. Rendimento misto bruto Os trabalhadores por conta própria e os empregadores recebem rendimento ou de autônomos (B.3) misto, e não remuneração de empregados. A denominação rendimento misto é devida à natureza do ganho do trabalhador, que não pode ser especificada como rendimento do trabalho e do capital. 6.2. Contribuições sociais Componente Descrição Contribuições sociais Referem-se às contribuições previdenciárias dos empregadores registradas (efetivas) dos nos documentos contábeis das administrações públicas e das instituições que empregadores (D.121 e gerenciam a previdência complementar, em contrapartida dos pagamentos D.6111) realizados pelo setor famílias. Contribuição social dos Referem-se às contribuições previdenciárias obrigatórias dos empregados empregados (D.6112) regidos por regimes próprios ou pelo regime geral de previdência, do INSS, registradas nos documentos contábeis das administrações públicas, como também às contribuições voluntárias dos empregados registradas nos documentos contábeis das instituições que gerenciam a previdência complementar, em contrapartida dos pagamentos realizados pelas famílias. Contribuição social dos Referem-se às contribuições previdenciárias dos não-assalariados não-assalariados (D.6113) (autônomos) registradas nos documentos contábeis do INSS e das instituições que gerenciam a previdência complementar, em contrapartida dos pagamentos realizados pelos empregados autônomos, classificados no setor famílias. 6.3. Benefícios Componente Descrição Benefícios de seguridade Referem-se aos benefícios previdenciários pagos pelas administrações social em numerário públicas, através do regime geral de previdência do INSS, bem como aos (D.621) benefícios de natureza social, pagos pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) por conta do abono salarial e do seguro-desemprego, tendo como contrapartida o setor famílias. Benefícios sociais com Referem-se aos saques do FGTS e do fundo remanescente do PIS/PASEP, constituição de fundos bem como os benefícios previdenciários pagos pelas administrações (D.622) públicas aos seus funcionários (famílias), exceto os benefícios considerados dentro do circuito das contribuições sociais imputadas. Mostra, também, os 95 benefícios pagos pelas empresas que gerenciam a previdência complementar às famílias. Benefícios de assistência Refere-se ao valor dos benefícios assistenciais pagos pelas administrações social em numerário públicas às famílias, realizados fora de um esquema de seguro social, e tem (D.624) como objetivo a transferência direta de renda. As fontes destas informações são os documentos contábeis das administrações públicas. 6.4. Rendas de propriedade Componente Descrição Juros (D.41) O juro é uma forma de remuneração recebida pelos proprietários de determinados ativos financeiros (depósitos, títulos exceto ações, empréstimos e outros créditos) que representa direitos dos credores. Os juros devem ser registrados pelo montante contratualmente previsto no momento em que se tornam uma obrigação para o devedor, isto é, no momento devido, e registrados na base de direitos constatados (regime de competência). Devem, ainda, ser registrados pelo valor nominal. Dividendos e retiradas Representam todas as rendas que as empresas, em vista dos resultados de (D.42) sua atividade, decidem distribuir, sob a forma de dividendos e outros rendimentos, aos detentores do seu capital (os acionistas). Os dividendos devem ser registrados no momento em que são efetivamente pagos. Rendimentos de São os rendimentos primários provenientes da aplicação das provisões propriedade atribuído a técnicas. As provisões técnicas constituídas pelas empresas de seguros, detentores de apólices de apesar de serem detidas e geridas pelas seguradoras, são consideradas ativos seguros (D.44) dos detentores das apólices de seguro ou beneficiários, no caso de provisões para sinistro. Essas provisões são investidas pelas seguradoras sob a forma de ativos financeiros, terrenos ou edifícios, e seus rendimentos são distribuídos pelos segurados proporcionalmente aos prêmios pagos. Rendas da terra e direitos São as rendas recebidas pelos proprietários de terra e de ativos do subsolo do subsolo (D.45) como contrapartida da cessão do direito de seu uso, tais como: foros, laudêmios, arrendamentos e royalties pagos às administrações públicas pela exploração de recursos hídricos, minerais e pela extração de petróleo e gás natural. Esta operação é composta pelas remunerações de um direito de uso e não pela transferência de propriedade. O produto desta última não é uma operação de renda e sim de capital. 6.5. Impostos e transferências Componente Descrição Impostos correntes sobre a Compreendem todos os pagamentos obrigatórios cobrados periodicamente renda, patrimônio, etc. pelo Estado, que incidem sobre a renda e o patrimônio dos agentes (D.5) econômicos. Seu valor corresponde à arrecadação líquida, ou seja, deduzidas as devoluções e restituições. Outras transferências Referem-se às operações ligadas à cobertura de seguros de responsabilidade correntes: prêmios civil, incêndio, inundação, acidente, roubo e outros riscos, incluindo, ainda, líquidos de seguro não- o seguro de reembolso de despesas de assistência médico-hospitalar. São os vida (D.71) chamados seguros elementares. Outras transferências São pagamentos que, em função de contratos de seguro contra danos, as correntes: indenizações de comseguros não-vida (D.72) panhias de seguros são obrigadas a efetuar para cobertura de sinistros sofridos por pessoas ou bens e, no caso específi co do seguro-saúde, para cobertura das despesas com assistência médico-hospitalar. Outras transferências São operações de repartição que não foram classificadas em outros itens e correntes: transferências para as quais não se julgou relevante criar categorias separadas. correntes diveresas (D.75) Compreendem: contribuições voluntárias (com exceção das transferências de capital) às instituições sem fins de lucro a serviço das famílias; pagamento de multas e indenizações por infração de regulamentos, bem como multas por atraso no pagamento de impostos; pagamento, pelas famílias, de taxas e emolumentos obrigatórios quando da utilização de determinados serviços não-mercantis das administrações públicas (por exemplo, custos de emissão de passaporte, carteira de motorista, etc.); 96 pagamentos, pelas empresas, de taxas e emolumentos semelhantes (por exemplo, para obtenção de alvará); contribuições internacionais, pagamentos a organismos internacionais e remessas de residentes para nãoresidentes e vice-versa. Ajustamento pela variação Esta operação representa um ajuste com o objetivo de mostrar a alocação, na das participações líquidas poupança das famílias, da variação dos seus ativos oriundos da variação do das famílias nos fundos de patrimônio dos fundos de pensão, FGTS e PIS/PASEP. pensões, FGTS e PIS/PASEP (D.8) Fonte: IBGE (2008c). Elaboração própria. A fim de validar os resultados da PNAD, a Tabela 8 apresenta a correspondência entre os componentes do SCN e as agregações da PNAD. Tabela 8 Correspondência da PNAD no SCN 7.1. Ocupações Categoria GG Empregado Empregado temporário Calculado Empregado doméstico Empregador ---Militar ---Funcionário público estatutário ---Conta própria ---Aposentadorias e pensões ---Constituição de fundos ---Assistência social 7.2. Renda e rendimento Categoria Juros Dividendos e retiradas SI (empregador) G D.121 ou D.6111 SI D.6112 D.11 ------------------- Rendimentos de propriedade atribuído a detentores de apólices de seguros Renda da terra Total (rendas de propriedade) Impostos correntes sobre a renda, patrimônio, etc. Prêmios líquidos de seguro não-vida Indenizações de seguro não-vida Transferências correntes diversas Fundos de pensão, FGTS e PIS/PASEP Fonte: Elaboração própria. 97 B.3 D.621 D.622 D.624 ------D.6113 ---------- Recebidos D.41 D.42 Pagos D.41 ---- D.44 ---- ---D.4 ------- D.45 D.4 D.5 D.71 ---- D.72 D.75 D.8 D.75 ---- 3. O Sistema Tributário no Brasil Para descrever o sistema tributário no Brasil, esta seção foi dividida em duas partes. A primeira contempla os custos sociais do trabalho, e a segunda, as regras de declaração do Imposto de Renda. Em ambos os casos, consideramos sete das onze ocupações mencionadas na Tabela 4 (seção 2.3.1). A principal razão para excluir as outras quatro categorias é que todas elas não são remuneradas. Como foi apresentado na seção anterior, a PNAD agrupa todas essas onze ocupações em dois setores: agrícola e não agrícola (ver Figura 2). Algumas delas são específicas de cada setor. Isso acontece, por exemplo, com o trabalhador temporário no setor agrícola, e com o trabalhador doméstico no setor não agrícola. No entanto, de acordo com Kreter (2010), a legislação trabalhista brasileira distingue o trabalhador temporário e do trabalhador sazonal. De acordo com a Lei no 5.889 (de 8 de junho de 1973), todas as atividades agrícolas que ocorrem de tempos em tempos são obrigatoriamente reguladas pela lei do trabalho rural. Isso inclui, por exemplo, as atividades de plantio e colheita. E, de forma bem explícita, a legislação brasileira coloca que as atividades temporárias são restritas às empresas urbanas (Lei no 6.019, de 3 de janeiro de 1974). Por isso, embora haja essa distinção entre sazonal e temporário, a PNAD considera o temporário exclusivamente no setor agrícola. Essa é a razão pela qual chamamos excepcionalmente sazonal de temporário neste artigo. Figura 2 Tipos de ocupação, PNAD 200812 Posição na ocupação no trabalho principal da semana de referência Agrícola: Não Agrícola: Empregado Empregado temporário Conta própria Empregador Trabalhador não remunerado de membro da unidade familiar Outro trabalhador não remunerado Trabalhador na produção para o próprio consumo Empregado Empregado doméstico Conta própria Empregador Trabalhador não remunerado de membro da unidade familiar Outro trabalhador não remunerado 7 Trabalhador na construção para o próprio Fonte: IBGE (2008a). Elaboração própria. 12 O fluxograma completo de seleção de variáveis da PNAD encontra-se no ANEXO I. 98 3.1. Os Custos Sociais do Trabalho no Brasil Desde 1943, quando a CLT foi promulgada, o mercado de trabalho segue regras estatutárias.13 Pela CLT prever regras gerais e rígidas, a maioria dos itens presentes nos contratos de trabalho não são passíveis de negociação entre empregador e empregado, salvo se for para uma condição melhor para o empregado do que a estabelecida em lei. De uma forma geral, isso significa que as mesmas regras são aplicadas para todos os setores e todas as categorias. Por exemplo, como Pastore (2006) apontou, de acordo com a CLT, as paradas para o almoço devem ser de uma hora. Se o trabalhador quiser ter apenas trinta minutos de almoço para ir para casa trinta minutos mais cedo, a legislação não permite. Esse é um pequeno exemplo de que regras rígidas não significam sempre benefício para o trabalhador. Quanto aos custos sociais do trabalho, embora o Brasil tenha uma regulamentação específica para os funcionários públicos e militares, o INSS é o maior sistema, que inclui os empregadores, todos os empregados privados e os conta própria. Seus segurados são chamados de celetistas. As regras para cada categoria estão descrita a seguir.14 Contribuição social (Lei no 8.029, de 12 de abril de 1990). Todo celetista tem que recolher a contribuição para o INSS. A Tabela 9 apresenta a alíquota de aplicação, que é proporcional ao valor do salário mensal. Note que, para os empregados, é obrigatório o pagamento de ambos os lados: do empregado (seguindo a Tabela 9) e do empregador. No último caso, o percentual é fixo em 12%.15 FGTS (Lei no 5.107, de 13 de setembro de 1966). O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço foi criado pelo governo federal para proteger todo celetista demitido sem justa causa. O FGTS é constituído de conta vinculada, aberta em nome do empregado, a partir do primeiro depósito do empregador. A contribuição do FGTS recolhida pelo empregador é fixa em 8,0% do valor do salário pago para o empregado. Férias (artigo 129 a 145, da CLT). Após cada período de doze meses de vigência do contrato de trabalho, todo empregado tem direito ao gozo de um período de férias, sem prejuízo de remuneração. Além da remuneração mensal, a qual o empregado tem direito durante o período 13 De acordo com Pastore (2006), “o quadro legal no campo do trabalho é formado por 46 dispositivos constitucionais, 922 artigos da CLT, mais de 100 leis subsidiárias, 153 normas do Ministério do Trabalho, 114 normas do Ministério da Previdência, 68 convenções da OIT ratificadas pelo Brasil, 363 enunciados, 375 orientações jurisprudenciais e 119 precedentes normativos do Tribunal Superior do Trabalho”. 14 Desde 1940 o governo brasileiro estabeleceu um valor específico como salário mínimo nacional. Esse valor é o menor salário que um empregador pode pagar legalmente a seu empregado pelo tempo e esforço gastos na produção de bens e serviços. De 1o de abril de 2007 a 29 de fevereiro de 2008, o salário mínimo foi de R$ 380. Entretanto, para o SM2, consideramos R$ 415 como salário mínimo por esse ter sido o valor ajustado pelo governo federal em 1o de março de 2008, e que permaneceu ao longo do resto do ano – inclusive no mês de setembro, quando os questionários da PNAD foram aplicados. 15 Não consideramos os tributos especiais para as pequenas e médias empresas, conhecido como Simples. 99 de férias, o empregador deve pagar um adicional que corresponde a 1/3 do valor do salário do empregado. Tabela 9 Contribuição social mensal no Brasil e suas respectivas alíquotas, 2008 Salário Mensal Empregado ou empregado doméstico Até R$ 911,70 De R$ 911,71 a R$ 1.519,50 De R$ 1.519,51 a R$ 3.038,99 Mais de R$ 3.038,99 Conta própria ou empregador R$ 415,00 (valor mínimo) De R$ 415,00 a R$ 3.038,99 Mais de R$ 3.038,99 (valor máximo) Alíquota Aplicada (%) 8,00 9,00 11,00 11,00 de R$ 3.038,99 11,00 20,00 20,00 de R$ 3.038,99 Fonte: INSS (2010). 13o salário (artigo 7, da Constituição Federal). O 13o salário é uma gratificação natalina que o empregado faz jus na proporção de 1/12 avos por mês ou fração acima de 15 dias de exercício durante o ano – corresponde ao valor da remuneração percebida em dezembro. É importante destacar que o empregador precisa recolher também o FGTS sobre o 13o salário. Salário-educação (artigo 212, § 5º, da Constituição Federal). O salário-educação foi estabelecido em 1964 e é definido como uma contribuição social destinada ao financiamento de programas, projetos e ações voltados para o financiamento da educação básica pública. É calculada com base na alíquota de 2,5% sobre o valor total das remunerações pagas ou creditadas pelos empregadores, a qualquer título, aos empregados. Salário-família (Lei no 4.266, de 3 de outubro de 1963). É um benefício pago aos empregados, exceto os domésticos, com salário mensal de até R$ 710,08 para auxiliar no sustento dos filhos de até 14 anos de idade ou inválidos de qualquer idade (para saber o valor do benefício, consultar a Tabela 10). O benefício é encerrado quando o filho completa 14 anos, em caso de falecimento do filho, por ocasião de desemprego do empregado e, no caso do filho inválido, quando da cessão da incapacidade. Quem financia esse benefício é a Previdência Social. Tabela 10 Benefício do salário-família por faixa de salário mensal, 2008 Salário-Família Até R$ 472,43 De R$ 472,44 a R$ 710,08 Mais de R$ 710,08 Benefício (R$/por filho) 24,23 17,07 ---- Fonte: INSS (2010). 100 Seguro acidente de trabalho (artigo 7, 195 e 201 da Constituição Federal). O SAT é um seguro garantido ao empregado de acordo com a atividade preponderante da empresa. A alíquota é fixada com base no grau de risco dessa atividade – 1% (risco leve), 2% (risco médio) ou 3% (risco grave). Os empregadores são responsáveis pelo pagamento, que deve constar na folha de salários, mas a administração é feita pela Previdência Social. Pela Lei no 8.213, acidente do trabalho é todo aquele ocasionado em função da prestação do serviço à empresa ou pelo desempenho da atividade do segurado, o qual acarreta lesão corporal ou perturbação functional que dê ensejo à morte ou à perda de capacidade, total ou parcial, para o trabalho. Também são consideradas como originadas de acidentes do trabalho as doenças profissionais e, de forma geral, as doenças surgidas em decorrência do trabalho em condições especiais ou a ele diretamente relacionadas. Sistema “S”. Existe um grupo de contribuições que são específicas de cada setor da economia. As mais importantes são: o Serviço Social da Indústria (SESI), o Serviço Social do Comércio (SESC), e o Serviço Social do Transporte (SEST), todos eles com alíquota de 1,5%; e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR), e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (SENAT), com alíquota de 1,0%. SEBRAE (Lei no 8.029, de 12 de abril de 1963). O Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas foi criado com o objetivo de atender a execução da política governamental de apoio a essas empresas, sendo exigida como tributo complementar às contribuições para o Sistema “S”. A alíquota aplicada é de 0,60%. INCRA (Lei no 2.613, de 12 de abril de 1955). A contribuição ao INCRA foi instituída para custear as atividades do Serviço Social Rural (SSR) e, apesar de ter como foco as atividades agrícolas, todas as empresas têm que pagar 0,2%, mesmo as não-agrícolas. A Tabela 11 apresenta um resumo de todos os custos sociais do trabalho, por categoria. 101 Tabela 11 Custos sociais do trabalho no Brasil, 2008* Custos Sociais do Trabalho INSS FGTS Férias + 1/3 13. salário FGTS sobre o 13. salário Salário-educação Salário-família SAT SESI/SESC/SEST SENAI/SENAC/SENAT SEBRAE INCRA Empregado EE X ER X X X X X X X X X X X X Empregado Temporário EE ER X X X X X X Empregado Doméstico EE ER X X Empregador ou Conta Própria X opcional X X opcional X Fonte: Elaboração própria. * EE representa a contribuição social do empregado, e ER a contribuição social do empregador. 3.2. As Regras para a Declaração do Imposto de Renda – Pessoa Física Esta seção traz um resumo do Manual de Preenchimento do Imposto de Renda, Pessoa Física, 2009 (ano-calendário 2008), publicado pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB).16 Existem duas formas de se fazer a declaração do IR: (a) pelo modelo completo, que podem ser utilizadas todas as deduções legais, desde que comprovadas; ou (b) pelo modelo simplificado. No segundo caso, é utilizado um desconto de 20% dos rendimentos tributáveis, limitado a R$ 12.194,86. Esse desconto substitui todas as deduções legais da declaração completa, sem a necessidade de comprovação. Quem declara obrigatoriamente Imposto de Renda? Quem recebeu rendimentos tributáveis em 2008, cuja soma foi superior a R$ 16.473,72 – tais como, rendimentos do trabalho assalariado, não-assalariado, proventos de aposentadoria, pensões, aluguéis, atividade rural; quem recebeu rendimentos isentos, não-tributáveis ou tributados exclusivamente na fonte em 2008, cuja soma foi superior a R$ 40.000,00; quem teve posse ou propriedade de bens ou direitos, em 31 de dezembro de 2008, inclusive terra nua, cujo valor total foi superior a R$80.000,00; quem realizou em 2008 alienação de bens ou direitos em que foi apurado ganho de capital, sujeito à incidência do imposto, ou operações em bolsa de valores, de mercadorias, de futuros e assemelhadas; e ainda quem teve em 2008 receita bruta em valor superior a R$ 82.368,60 relativamente à atividade rural. 16 Este manual pode ser acessado http://www.receita.gov.br/Publico/programas/irpf/2009/Orientacoes/Instrucoesmodelocompleto2009.pdf 102 em: Situações individuais. Existem oito categorias de declaração de IR individual. A primeira se chama contribuinte casado. Nessa categoria é possível apresentar a declaração em separado ou em conjunto com o cônjuge. Se for feita em conjunto, a declaração deve constar o nome de uma das pessoas do casal com o rendimento de ambos, inclusive os provenientes de bens gravados com cláusula de incomunicabilidade ou inalienabilidade, e as pensões de gozo privativo. Se eles optarem por fazer a declaração em separado, cada cônjuge deve incluir na sua declaração os rendimentos próprios e 50% dos rendimentos produzidos pelos bens comuns, compensando 50% do imposto pago ou retido sobre esses rendimentos; ou um dos cônjuges inclui na sua declaração os rendimentos próprios e o total dos rendimentos produzidos pelos bens comuns, compensando o total do imposto pago ou retido na fonte, independentemente de qual dos cônjuges tenha sofrido a retenção ou efetuado o recolhimento. Nesse caso, o outro cônjuge inclui na sua declaração somente os seus rendimentos próprios. A segunda categoria chama-se contribuinte com companheiro. Assim como a primeira, é possível apresentar a declaração em separado ou em conjunto. Se o casal fizer em conjunto, a declaração deve ser apresentada em nome de um deles. Nela devem ser incluídos os rendimentos de ambos, inclusive os provenientes de bens gravados com cláusula de incomunicabilidade ou inalienabilidade, e as pensões de gozo privativo. Se eles fizerem em separado, cada um deve incluir na sua declaração os rendimentos próprios e 50% dos rendimentos produzidos pelos bens em condomínio, salvo estipulação contrária em contrato escrito, quando deve ser adotado o percentual nele previsto. Pode ser compensado o imposto pago ou retido, na mesma proporção dos rendimentos tributáveis produzidos pelos bens em condomínio. A terceira categoria é a do contribuinte viúvo. O contribuinte deve apresentar a declaração com o seu número de inscrição no CPF, abrangendo os rendimentos próprios. No curso do inventário, o viúvo pode optar por tributar 50% dos rendimentos produzidos pelos bens comuns na sua declaração ou integralmente na declaração do espólio. A quarta categoria é a do contribuinte separado de fato, que segue as mesmas regras do contribuinte casado. O contribuinte separado judicialmente ou divorciado é a quinta categoria, que apresenta declaração na condição de solteiro, caso não esteja casado ou vivendo em união estável em 31/12/2008. E as três últimas categorias seguem as mesmas regras. São elas: contribuinte menor, contribuinte menor emancipado e contribuinte incapaz. Rendimentos declarados.17 O rendimento individual é composto de todas as receitas possíveis provenientes do trabalho, com ou sem vínculo empregatício, tais como: (a) salários e ordenados (inclusive férias), de reserva ou de reforma, pensões civis e militares, gratificações e participações no lucro, verbas de representação e remuneração de estagiários e de residentes; (b) 17 Se o rendimento não está em Real, os valores devem ser convertidos para a moeda brasileira. Mas, como a PNAD não declara rendimentos em outra moeda, não estamos apresentando a tabela de conversão do Banco Central. 103 benefícios recebidos de entidades de previdência privada, de Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL) e de Fundo de Aposentadoria Programada Individual (FAPI); (c) despesas ou encargos pagos pelos empregadores em favor do empregado, como aluguéis, contribuições previdenciárias, imposto de renda, seguro de vida, despesas de locomoção; (d) 25% dos rendimentos do trabalho assalariado recebidos em moeda estrangeira por servidores de autarquias ou repartições do governo brasileiro situadas no exterior; (e) rendimentos de profi ssões, de ocupações e de prestação de serviços (inclusive de representante comercial autônomo); (f) honorários de autônomos, como médico, dentista, engenheiro, advogado, veterinário, professor, economista, contador, jornalista, pintor, escultor, escritor e leiloeiro; (g) direitos autorais; (h) 10%, no mínimo, dos rendimentos recebidos pelos garimpeiros, de empresas legalmente habilitadas, pela venda de metais preciosos, pedras preciosas e semipreciosas, por eles extraídos; (i) 40%, no mínimo, do rendimento do trabalho individual no transporte de carga e de serviços com trator, máquina de terraplenagem, colheitadeira e assemelhados, quando o veículo ou a máquina utilizada for de propriedade do contribuinte ou locado e conduzido exclusivamente por ele; e (j) 60%, no mínimo, do rendimento do trabalho individual no transporte de passageiros, quando o veículo for de propriedade do contribuinte ou locado e conduzido exclusivamente por ele. Bens declarados. São considerados bens declarados: (a) todas as propriedades, como prédios (residências e comerciais), galpões, apartamentos, casas, terrenos, terra nua, salas ou conjuntos, construções, benfeitorias, lojas, etc., incluindo propriedades financiadas; (b) todos os bens móveis, como veículos (caminhão, automóvel, moto, etc.), aeronave, embarcação, linha telefônica, etc., incluindo os bens móveis financiados; (c) jóias, quadros, objetos de arte, etc.; (d) outros bens e direitos, que custaram R$ 5.000,00 ou mais; (e) conta corrente, conta de poupança e outros investimentos, que somados chegam a R$ 140,00 ou mais; e (f) ações, ouro e outras operações financeiras, que somadas chegam a R$ 1.000,00 ou mais. Deduções. Assim como em outros países, no Brasil é possível fazer deduções de algumas despesas na declaração do Imposto de Renda. São elas: (a) despesas com instrução própria do contribuinte ou de seus dependentes, no Brasil ou no exterior; (b) despesas com médicos, dentistas, psicólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais, no Brasil ou no exterior; (c) despesas com hospitais, clínicas e laboratórios, no Brasil ou no exterior; (d) despesas com pensão alimentícia, no Brasil ou no exterior; (e) despesas com contribuições a entidades de previdência privada; (f) Fundo de Aposentadoria Programada Individual (FAPI); (g) despesas com advogados, engenheiros, arquitetos e demais profissionais liberais; (h) aluguéis de imóveis; (i) despesas com arrendamento rural; (j) doações em espécie; e (k) doações em bens e direitos. O contribuinte que não declarar todos os bens está sujeito a multa de 20% do valor não declarado. 104 Dependente. O contribuinte pode deduzir R$ 1.655,88 por pessoa considerada dependente, mesmo que a relação de dependência tenha existido por menos de doze meses no ano-calendário 2008, como nos casos de nascimento ou falecimento. A SRFB considera como dependente: (a) companheiro(a) com o qual o(a) contribuinte tenha filho ou viva há mais de cinco anos, ou cônjuge; (b) filho(a) ou enteado(a) até 21 anos de idade; (c) filho(a) ou enteado(a) uiversitário(a) ou cursando escola técnica de 2o grau, até 24 anos; (d) filho(a) ou enteado(a) em qualquer idade, quando incapacitado física e/ou mentalmente para o trabalho; (e) irmão(ã), neto(a) ou bisneto(a) sem arrimo dos pais, do(a) qual o contribuinte detém a guarda judicial, até 21 anos; (f) irmão(ã), neto(a) ou bisneto(a) sem arrimo dos pais, com idade de 21 até 24 anos, se ainda estiver cursando estabelecimento de nível superior ou escola técnica de 2 o grau, desde que o contribuinte tenha detido a guarda judicial até os 21 anos; (g) irmão(ã), neto(a) ou bisneto(a) sem arrimo dos pais, do qual o contribuinte detém a guarda judicial, em qualquer idade, quando incapacitado física e/ou mentalmente para o trabalho; (h) pais, avós e bisavós que, em 2008, tenham recebido rendimentos de até R$ 16.473,72, tributáveis ou não; (i) menor pobre, até 21 anos, que o contribuinte crie e eduque e do qual detenha a guarda judicial; e (j) a pessoa absolutamente incapaz, da qual o contribuinte seja tutor ou curador. Limites de dedução. Existem algumas regras sobre os limites permitidos para a declaração do Imposto de Renda. São elas: (a) a previdência social pública pode ser deduzida integralmente; (b) a previdência social privada ou o Fundo de Aposentadoria Programada Individual (FAPI) pode ser deduzido em até 12% do total do rendimento tributável; e (c) como apresentado no item anterior, o contribuinte pode deduzir até R$ 1.655,88 por pessoa considerada dependente. Imposto de Renda Retido na Fonte. Se o rendimento anual do trabalho for inferior a R$ 16.473,72, não há IRRF. Se o rendimento anual estiver entre R$16.473,73 e R$ 32.919,00, o contribuinte paga a alíquota de 15,0% e pode deduzir até R$ 2.471,06. Mas se o rendimento anual do trabalho for maior que R$ 32.919,00, a alíquota paga pelo contribuinte é de 27,5%, com dedução de até R$ 6.585,93. 4. Aplicando o Modelo SM2 4.1. Considerações específicas sobre o uso da PNAD no SM2 Para replicar a estrutura do mercado de trabalho brasileiro em 2008, algumas considerações foram adotadas na implantação do modelo SM2. Sobre renda e rendimento, foram: Todas as variáveis usadas estão sendo convertidas para mensais. No caso da PNAD, apesar dela ter quatro tipos de recorte temporal – semana de referência, 358 dias, mês de referência e ano de referência –, a principal razão de ter escolhido a primeira opção foi a 105 qualidade da informação disponível, muito superior às demais. Além disso, comparamos as variáveis da semana de referência e dos 358 dias, e os resultados foram semelhantes.18 Para as variáveis referentes ao rendimento individual, consideramos para sem declaração ou não aplicável rendimento igual a R$ 0 (zero). Estamos conscientes de que essa suposição subestima as rendas familiar e domiciliar per capita e, conseqüentemente, sobreestima os níveis de pobreza. Entretanto, é importante destacar que essa consideração foi adotada para apenas 1% dos indivíduos, o que não implica impactos significativos nos resultados como um todo. Por exemplo, no caso da variável V4718 representou 0,77%, da variável V1252, 0,10%, da variável V9982, 0,08%, e de todas as demais variáveis de rendimento juntas representou também 0,08%. Na construção das rendas familiar e domiciliar para o cálculo dos níveis de pobreza, consideramos o rendimento mensal em valor dos produtos e mercadorias. Dessa forma, reconstruímos as variáveis V4650 e V9532 calculadas pelo IBGE. Vale lembrar que para efeito de simulação, esse rendimento é excluído da análise porque é considerado não tributável. As considerações sobre o trabalho foram: Além do trabalho principal, consideramos, se declarado, o segundo e o terceiro trabalho na semana de referência. Como a PNAD não informa quanto tempo essas atividades secundárias foram exercidas, adotamos para elas a mesma duração da principal. Para a condição de formal ou informal, consideramos apenas se o indivíduo era contribuinte para um instituto de previdência (federal, estadual ou municipal), ao invés de considerar se ele tinha carteira de trabalho assinada.19 A principal razão é que, para a declaração do Imposto de Renda, o pagamento da contribuição é mais importante do que a assinatura da carteira per se. Além disso, dessas duas variáveis, apenas a contribuição para um instituto de previdência aparece nos três trabalhos, o que permite uma análise mais homogênea dos encargos trabalhistas. As considerações sobre os custos sociais do trabalho foram: Como foi apresentado na seção anterior, a alíquota do SAT depende da atividade principal da empresa. Estou considerando para o SAT apenas os empregados de empresas. Também não estou considerando os autônomos (por exemplo, os médicos). O grau de risco varia entre 1 e 3%. Estou considerando 2%. 18 Outra razão que contribuiu para a conversão dos dados foi a declaração do tempo de trabalho. Embora a PNAD pergunte separadamente quantos meses e quantos anos o indivíduo está na ocupação principal, mais de 50% declarou o tempo de trabalho para o número de anos. 19 As duas opções estão disponíveis na PNAD. 106 Excluímos o repouso semanal remunerado da relação de custos sociais do trabalho por ela ser específica de algumas categorias (como, por exemplo, de porteiros) e pela informação não estar disponível na PNAD. Por questões metodológicas, algumas deduções não são passíveis de identificação na PNAD, e por essa razão, apesar de aparecerem na declaração do imposto de renda, foram excluídas do modelo. Dentre elas, destacam-se todos os honorários de autônomos (médicos, dentistas, advogados, etc.), pensão alimentícia, salário educação, salário família, etc. De acordo com EUROSTAT (2003), a inclusão dessas despesas no modelo representam uma variação de menos de 1% (EUROSTAT 2003 e 2004). 4.2. Checagem dos dados Na seção 2 foram apresentadas as variáveis da PNAD selecionadas e seus componentes referentes no Sistema de Contas Nacionais (Tabela 8). Apesar da primeira base de dados ser do ano de 2008, e a segunda, de 2006, na comparação dos agregados, os resultados foram bastante semelhantes (Tabela 12). Tabela 12 Checagem da PNAD pelo SCN Componente Custos sociais do trabalho Contribuições sociais Rendimento bruto Impostos Rendimento líquido Contas Nacionais R$* % 1.771.937 100,0 304.784 17,2 1.467.153 82,8 81.950 4,6 1.385.203 78,2 PNAD/SCN PNAD a partir do SM2 (%) R$* % 1.755.338 100,0 99,1 297.675 17,0 97,7 1.457.663 83,0 99,4 89.775 5,1 109,5 1.367.888 77,9 98,7 Fonte: IBGE (2008a e 2008b). Elaboração própria. * Valores em R$ 1.000.000. O componente calculado que apresentou a maior variação entre a PNAD e o SCN foi os impostos. Esse resultado já era esperado, dado que a PNAD agrupa em uma única variável (V1273) os juros de caderneta de poupança e de outras aplicações financeiras, dividendos e programas sociais, ou seja, rendimentos tributáveis e não tributáveis sob a ótica do governo.20 Barros et al. (2007) argumentam ainda que a PNAD inclui os rendimentos de ativos recebidos, mas não desconta os pagos, como é o caso dos juros. Esses foram os principais fatores que contribuiram para superestimar o montante arrecadado com impostos no ano de 2008. A exceção dos impostos, os demais componentes obtiveram percentuais acima do esperado. Nesse caso, os 20 Os demais rendimentos considerados no modelo SM2 estão disponíveis no Anexo II. 107 resultados podem ser atribuídos fundamentalmente ao alto grau de informalidade – onde o rendimento do trabalho bruto acabou sendo igual ao líquido. Limitamos, assim, a aplicação das regras tributárias mais complexas no SM2 ao restrito grupo de indivíduos que declararam ter recebido rendimentos que não do trabalho em 2008. Se compararmos os percentuais da PNAD/SCN da Tabela 12 com os dos demais países que utilizaram a mesma metodologia (EUROSTAT, 2003 e 2004), o Brasil foi o que alcançou os resultados mais próximos das Contas Nacionais. Vale lembrar que além de ser a primeira vez que o modelo foi aplicado a um país fora da União Européia, o presente estudo foi também o primeiro a analisar um setor específico, a simular cenários com sistemas tributários distintos e a usar uma pesquisa domiciliar de âmbito nacional sem tratamento metodológico prévio de padronização de dados. Isso porque o SM2 foi criado originalmente para atender a uma demanda do EUROSTAT de cálculo de transformação de rendimentos brutos em líquidos a partir de uma base de dados construída, o EU-SILC21. Destaca-se, portanto, não só a qualidade desse modelo de micro-simulação, como também dos dados da PNAD. 4.3. Os cenários analisados A partir da legislação trabalhista e das regras do IR vigentes em 2008, foram simulados três cenários para dois grupos populacionais – Brasil e setor agrícola. A Figura 3 ilustra esses cenários, e apresenta a atribuição dos agentes envolvidos a fim de formalizar o empregado e o conta própria. Note que, em termos de contribuição social, esses dois grupos são completamente diferentes. O primeiro depende do empregador para regularizar a sua situação no mercado de trabalho. Já o segundo grupo tem autonomia para decidir se participa ou não do sistema de seguridade social. O salário também pode explicar parte da informalidade em ambos os casos. A dependência do empregado sobre a escolha de ser formal geralmente ocorre em estratos de renda mais baixos, onde não há muito poder de barganha sobre as condições do trabalho. A situação dos conta própria é um pouco diferente. Por eles não possuírem contrato de trabalho, e pelo recolhimento do INSS poder ser feito em atraso, a não contribuição pode ser um reflexo da decisão de se ganhar mais no presente e comprometer a renda no futuro. Assim, apesar do modelo SM2 ter como base todos os setores e todas as ocupações informadas na PNAD, as alternativas de tributação propostas na Figura 3 (cenários 2 e 3) se referem exclusivamente aos empregados e aos conta própria. Mas, antes de simular qualquer proposta de formalização de mão de obra, reproduzimos o sistema tributário vigente (cenário 1). Note que parte de seus 21 O EU-SILC é uma base de dados cross-section sobre rendimento, pobreza, exclusão social e condições de moradia dos países da União Européia. Essa base foi criada pelo EUROSTAT a partir dos dados já existentes em cada país – pesquisas domiciliares ou registros administrativos. Para maiores informações, consultar: http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/microdata/eu_silc 108 resultados já foram apresentados na Tabela 12, e seu principal objetivo foi testar a eficácia do modelo SM2 para o caso brasileiro. Nesse cenário, consideramos os formais e os informais. Para os formais, o rendimento do trabalho líquido foi menor do que o bruto – ou seja, N<H. No caso dos informais, N=H. Para todos os cenários, assumimos a hipótese de que o salário declarado na PNAD para todos os indivíduos é o bruto. Figura 3 Cenários analisados sobre a formalização do empregado, Brasil e setor agrícola RENDIMENTO DO TRABALHO INFORMAL CENÁRIO 1 Realidade Contribuições Sociais, Impostos e Deduções Contribuições Sociais, Impostos e Deduções Salário Líquido para o Trabalhador (Ni) (Ni) CENÁRIO 2 Custos pagos somente pelo empregado CENÁRIO 3 Custos pagos somente pelo empregador Fonte: Elaboração própria. O cenário 2 reflete a seguinte situação: nos casos de informalidade, os empregadores não querem pagar além do que eles já pagam pelo serviço de seus empregados, por isso, todos os encargos trabalhistas foram descontados do atual salário (área cinza da Figura 3). Por isso, incluímos as contribuições sociais e os impostos pagos dos então informais até chegar nos seus respectivos rendimentos líquidos. No caso dos formais, mantivemos a estrutura original do cenário 1. De forma contrária, o cenário 3 mantém o nível de salário dos empregados, e repassa os custos de formalização para o empregador, como as contribuições sociais (S1 ou S2). Em outras palavras, o cenário 3 é uma política que certamente beneficiaria grupos de baixa renda, que a princípio representam a maior parte dos informais e que não teriam poder de barganha para 109 manter seus salários. A Tabela 13 apresenta um resumo de como os componentes selecionados na PNAD foram implementados no SM2. Tabela 13 Principais componentes do rendimento, imposto, contribuições sociais e deduções no Sistema Tributário no Brasil N Componentes do Rendimento 1 Rendimento do trabalho 2 3 4 5 6 7 8 9 Rendimento do trabalho por conta própria Outros rendimentos do trabalho Rendimento de aluguel Rendimento em espécie / bens Aposentadorias e pensões Rendimento de abono permanência Rendimento de doação de não morador Outros rendimentos Contribuições Sociais Imposto (Si) Incluído na Componentes de Agregação Deduções Específicas Comum (Di) Empregador S0(G1) Empregado S1(G1) IRRF Sim D1(Y1) S2(G2) IRRF Sim D2(Y2) Não Não Não Não IRRF Não Não Não Não Não IRRF Não Não Não Não Não Não Não Não Não Não Não Não Não Não Não Não Não Fonte: Elaboração própria. 5. Resultados Preliminares e Considerações Finais Os resultados desta seção são preliminares e foram resumidos em três tabelas.22 A Tabela 14 apresenta os componentes dos rendimentos brutos dos indivíduos declarados na PNAD. Tanto para o Brasil, quanto para o setor agrícola, os rendimentos do trabalho foram em 2008 o componente mais significativo, com 76% e 95% de participação no total de rendimentos, respectivamente. Note que os empregados do setor agrícola – e conseqüentemente seus familiares – são muito mais dependentes do salário. Isso sugere que qualquer proposta de mudança no sistema tributário terá um impacto mais expressivo nas atividades agrícolas. O segundo componente de maior destaque na Tabela 14 são os rendimentos de aposentadorias e pensões, com 20% e 3%. Apesar do baixo percentual no setor agrícola, a soma desses dois componentes ultrapassa 95% em ambos os casos. Ainda sobre a aposentadoria, boa parte dos 3% calculados para o setor agrícola pode representar o benefício da aposentadoria rural, implementada pelo governo federal desde 1992.23 Essa verificação, porém, será contemplada em 22 As tabelas completas encontram-se nos Anexos III e IV. A aposentadoria rural foi criada pelo governo federal com o objetivo de incluir no sistema previdenciário os trabalhadores rurais que tivessem em idade para se aposentar, mas que não tivessem contribuido para o INSS. Esse 23 110 projetos futuros, onde analisaremos, além da aposentadoria rural, o impacto de outros programas sociais no campo. Outra verificação pertinente sobre os resultados apresentados na Tabela 14 se refere aos rendimentos dos conta própria no setor agrícola. Tanto para essa categoria, quanto para as categorias outros rendimentos do trabalho, rendimentos em espécie e abono permanência, obtivemos valor total igual a R$ 0 (zero). No caso do abono permanência, esse resultado já era esperado, mas dos rendimentos em espécie e principalmente dos rendimentos dos conta própria, não. Em outras palavras, isso significa que para o setor agrícola só teremos resultados das simulações para os empregados. Tabela 14 Componentes dos rendimentos brutos, Brasil e setor agrícola, 2008 (R$ 1 000 000) Var Componentes do Rendimento H1 H2 H3 H4 H5 H6 H7 H8 H9 Rendimento do trabalho (empregado) Rendimento do trabalho (conta própria) Outros rendimentos do trabalho Aluguel Rendimento em espécie / bens Aposentadorias e pensões Abono permanência Doação de não morador Outros rendimentos Total Brasil R$ 770.580 337.650 347 24.565 223 286.746 162 7.465 29.539 1.457.277 % 52,9 23,2 0,0 1,7 0,0 19,7 0,0 0,5 2,0 100 Setor Agrícola R$ % 26.451 94,9 0 0,0 0 0,0 132 0,5 7 0,0 909 3,3 0 0,0 26 0,1 340 1,2 27.865 100 Fonte: IBGE (2008a). Elaboração própria. A Tabela 15 apresenta os rendimentos totais líquidos para os três cenários. Essa tabela exemplifica a composição dos cenários 2 e 3. A passagem do cenário 1 para 3 é facilmente percebida, já que os custos de formalização foram incididos diretamente sobre os salários declarados. Os rendimentos do trabalho de todos os empregados que se encontravam fora do sistema de seguridade social foram considerados rendimentos líquidos (note que o N1 continuou com o mesmo valor), ou seja, esses trabalhadores não tiveram perdas salariais. Entre os cenários 1 e 3 também não houve mudança no montante pago de impostos. O maior impacto ocorreu no componente contribuições sociais, que pelas regras vigentes seria repassado para os empregados e empregadores (cerca de 18% para cada um). Mas, como supusemos que o aumento do custo da benefício – sem contribuição compulsória – é concedido ainda hoje. Para maiores informações, consultar Kreter (2004). 111 mão de obra foi pago apenas pelo empregador, a diferença total – R$ 51.530 bilhões, ou cerca de 24% – foram somadas ao SS. Para o cenário 2, os rendimentos brutos dos empregados formais foi repetido, com seus respectivos encargos e contribuições sociais. Para os informais, descontamos do salário bruto todos os custos de formalização. Por isso, pode-se dizer que a diferença apresentada em tax1, S1, SS e GG nos cenários 2 e 3 se referem exclusivamente aos informais. No caso do cenário 2, o repasse dos custos para o empregado gerou, na prática, uma queda de quase 12% do salário final do empregado. Como as regras do sistema tributário permaneceram as mesmas, e dado que elas são proporcionais ao H1 de cada trabalhador, o resultado foi que além do empregado sofrer perdas salariais, o empregador pagou menos encargos e contribuições e o governo recolheu impostos. A exceção do empregador, todos saíram perdendo. Tabela 15 Componentes dos rendimentos do trabalho, cenários 1, 2 e 3, Brasil, 2008 (R$ 1 000 000) Var N1 tax1 H1 S1 SS GG Componente Rendimento líquido Impostos Rendimento bruto Contribuição do empregado Contribuição do empregador Encargos trabalhistas + contribuições sociais Cen 1 712.022 58.558 770.580 58.231 213.201 Brasil Cen 2 627.619 32.773 660.392 51.630 179.304 Cen 3 712.022 58.558 770.580 58.231 264.731 1.042.012 891.326 1.093.542 Fonte: IBGE (2008a). Elaboração própria. A Tabela 16 compara os cenários 1, 2 e 3 do Brasil com o do setor agrícola. Nela, em vez de apresentarmos os valores totais, como feito até agora, optamos por mostrar as médias dos salários, a fim de dimensionar o impacto de cada cenário no montante recebido pelo empregado. Entretanto, as tendências verificadas nas Tabelas 14 e 15 permaneceram. Três considerações podem ser feitas. A primeira delas é que os encargos trabalhistas (tax1) do setor agrícola são bem inferiores à média brasileira. Assim, pela Tabela 16, contratar mão de obra no campo é menos oneroso que em outros setores. Esse resultado já era esperado. A maior parte dos empregados contratados no setor agrícola é composta de temporários, e pela Tabela 11 (seção 3) percebemos que alguns encargos comuns para os empregados permanentes são excluídos dos temporários. Mas isso não pode ser interpretado simplesmente como uma vantagem na contratação de mão de obra no campo. De acordo com os rendimentos do trabalho declarados na PNAD 2008, os níveis 112 salariais no setor agrícola foram maiores do que a média do Brasil. Esse resultado contradiz com o apresentado por Kreter (2010) a partir das séries de salários da Remuneração do Trabalho Agrícola da FGV, e precisará ser revisto. O alto grau de informalidade poderia explicar um incremento no salário líquido do conta própria ou de alguns empregados dos centros urbanos, mas é pouco provável que explique a remuneração do trabalhador rural. Tabela 16 Média dos componentes dos rendimentos do trabalho, cenários 1, 2 e 3, Brasil e setor agrícola, 2008 (R$) Var COMPONENTE N1 tax1 H1 S1 SS Rendimento líquido Impostos Rendimento bruto Contribuição do empregado Contribuição do empregador Encargos trabalhistas + GG contribuições sociais Cen 1 301,38 24,79 326,17 24,65 90,24 Brasil Cen 2 265,66 13,87 279,53 21,85 75,90 Cen 3 301,38 24,79 326,17 24,65 112,05 441,06 377,28 462,87 Setor Agrícola Cen 1 Cen 2 Cen 3 490,74 464,93 490,74 7,54 3,19 7,54 498,28 468,12 498,28 25,21 22,62 25,21 84,77 76,12 172,34 608,26 566,86 695,83 Fonte: IBGE (2008a). Elaboração própria. O cenário 2 confirma o já identificado na Tabela 15: o custo total da mão de obra (GG) é menor do que no cenário 1. Proporcionalmente os impostos e as contribuições sociais do empregado são reduzidas, em especial para o setor agrícola. Contudo, a redução no rendimento líquido é mais acentuada no Brasil (12%) do que no setor agrícola (5%), o que novamente pode ser percebido como reflexo da Tabela 11 (seção 3), já que mantivemos a mesma estrutura tributária. No cenário 3, os quatro primeiros componentes da Tabela 16 (N1, tax1, H1 e S1) foram mantidos, passando os custos de formalização do empregado somente para o empregador. Note que incluir o empregado no sistema de seguridade social além de ser mais oneroso para o setor agrícola (103%) do que para o Brasil (24%), para o trabalhador rural, não há diferença no rendimento líquido (que foi um dos pressupostos adotados nesse cenário). Na prática, o impacto do cenário 3 no custo final da mão de obra é de 5% para o Brasil e 14% para o setor agrícola, o que compromete qualquer política de repasse de encargos trabalhistas no campo. Os cenários apresentados nesta seção representam casos extremos de repasse dos encargos trabalhistas e contribuições sociais dos empregados e conta própria que se declararam informais em 2008. Essas simulações, juntamente com o cenário 1, foram elaboradas em caráter experimental, no intuito de reproduzir através da PNAD os agregados das Contas Nacionais, e de verificar o comportamento dos componentes dos rendimentos do trabalho para futuras propostas 113 de inclusão dos informais no sistema de seguridade social brasileiro. Essas propostas são fundamentais para o setor agrícola, que, como apresentado no início do presente artigo, ainda hoje possui cerca de 80% de trabalhadores sem carteira assinada. Mais do que refletir sobre a participação dos agentes envolvidos (empregado e empregador), e do papel do governo federal como criador de políticas sociais, a idéia é usar esses (e principalmente futuros) resultados para assegurar padrões razoáveis de vida da população rural. 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Dissertação (Mestrado) – Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, Universidade de São Paulo. KRETER, A. C. Salários e legislação trabalhista no campo: perspectivas históricas. Niterói: UFF, 2010. (mimeo) MARTINI, A.; TRIVELLATO, U. The role of survey data in micro-simulation models for social policy analysis. Labour, v.11, n.1, p.83-112, 1997. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO (MDA). Mercado de trabalho agrícola no Brasil. Brasília: MDA/DIEESE, 2007. (NEAD Estudos) PASTORE, J. Reforma trabalhista: o que pode ser feito? São Paulo: Cadernos de Economia da FECOMERCIO, nov. 2006. Disponível em: http://www.josepastore.com.br/artigos/rt/rt_136.htm PNUD. World income inequality database 2005 (WIID). Disponível em: <http://www.wider.unu.edu/wiid/wiid-introduction.htm>. SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL (SRFB). Manual de preenchimento do Imposto de Renda pessoa física: modelo completo. Brasília: SRFB, 2009. SUTHERLAND, H. 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(V9002) 3 Não 2 Sim 4 Não Posição na ocupação no trabalho principal da semana de referência (trabalho principal) Agrícola (V9008): Não Agrícola (V9029): 01, 02, 03 Empregado 04 Empregado temporário 05, 06, 07 Conta própria 08, 09, 10 Empregador 11 Trabalhador não remunerado de membro da unidade familiar 12 Outro trabalhador não remunerado 13 Trabalhador na produção para o próprio consumo 1 Empregado 2 Empregado doméstico 3 Conta própria 4 Empregador 5 Trabalhador não remunerado de membro da unidade familiar 6 Outro trabalhador não remunerado 7 Trabalhador na construção para o próprio uso Se não for empregado: Era contribuinte para um instituto de previdência? (V9059) 1 Sim 3 Não Se for setor privado: Se for empregado, defina: (V9032) 2 Setor privado 4 Setor público Se for setor público, defina: Militar (V9034) ou Funcionário público estatutário (V9035) Neste trabalho (trabalho principal): Número de horas habitualmente trabalhadas por semana (V9058) Número de anos contados até a data de referência (V9611) Número de meses contados até a data de referência (V9612) Rendimento mensal (V4718) CONTINUA NA PÁGINA SEGUINTE … 116 Neste trabalho (trabalho principal): Número de horas habitualmente trabalhadas por semana (V9058) Número de anos contados até a data de referência (V9611) Número de meses contados até a data de referência (V9612) Rendimento mensal (V4718) Número de trabalhos que tinha na semana de referência (V9005) 1 Um (trabalho principal, informações acima) 3 Dois (trabalho secundário, informações abaixo) 5 Três ou mais (três trabalhos ou mais, informações abaixo) What kind of occupation did you have? (V9092) (trabalho secundário) 1 Empregado 2 Trabalhador doméstico 3 Conta própria 4 Empregador 5 Trabalhador não remunerado de membro da unidade domiciliar 6 Outro trabalhador não remunerado Se não for empregado: Neste trabalho (três trabalhos ou mais): Era contribuinte para um instituto de previdência? (V9103) Número de horas habitualmente trabalhadas por semana (V9105) Rendimento mensal em dinheiro (V1022) Se for empregado, defina: (V9093) 1 Setor privado 3 Setor público Se for setor privado: Se for setor público, defina: Militar (V9095) ou Funcionário público estatutário (V9096) Era contribuinte para um instituto de previdência? (V9099) 1 Sim 3 Não Neste trabalho (trabalho secundário): Número de horas habitualmente trabalhadas por semana(V9101) Rendimento mensal em dinheiro (V9982) 117 ANEXO II Variáveis consideradas como demais rendimentos, PNAD 2008 Descrição Variável (R$) Variável (dummy) V1252 V1251 Pensão de instituto de previdência ou do governo federal V1255 V1254 Outro tipo de aposentadoria V1258 V1257 Outro tipo de pensão V1261 V1260 Abono permanência V1264 V1263 Aluguel V1267 V1266 Doação de não morador V1270 V1269 Aposentadoria de instituto de previdência ou do governo federal Juros de caderneta de poupança Investmentos R$ = V1273 Dividendos Dummy = V1272 Programas sociais Outros rendimentos Fonte: IBGE (2008a). Elaboração própria. 118 ANEXO III Componentes dos rendimentos agregados, cenários 1, 2 e 3, Brasil e setor agrícola, 2008 (R$ 1 000 000) Impostos Contr. Sociais Bruto Líquido Componente Rendimento do trabalho (empregado) Rendimento do trabalho (conta própria) Outros rendimentos do trabalho Aluguel Rendimento em espécie / bens Aposentadorias e pensões Abono permanência Doação de não morador Outros rendimentos Rendimento do trabalho (empregado) Rendimento do trabalho (conta própria) Outros rendimentos do trabalho Aluguel Rendimento em espécie / bens Aposentadorias e pensões Abono permanência Doação de não morador Outros rendimentos ENCARGOS TRAB. + CONTR. SOCIAIS Contribuição do empregador Contribuição do empregado Contribuição do conta própria TOTAL BRUTO Rendimento do trabalho Rendimento de trabalhador por conta própria Rendimento de aluguel Aposentadorias e pensões TOTAL LÍQUIDO Var Cen 1 712.022 332.683 347 22.442 223 265.305 162 7.465 29.539 770.580 337.650 347 24.565 223 286.746 162 7.465 29.539 1.754.333 213.201 58.231 25.624 1.457.277 58.558 4.968 2.123 21.441 1.370.187 N1 N2 N3 N4 N5 N6 N7 N8 N9 H1 H2 H3 H4 H5 H6 H7 H8 H9 GG SS S1 S2 H tax1 tax2 tax4 tax6 N Fonte: IBGE (2008a). Elaboração própria. 119 Brasil Cen 2 627.619 306.904 347 22.442 223 265.305 162 7.465 29.539 660.392 310.388 347 24.565 223 286.746 162 7.465 29.539 1.573.055 179.304 51.630 22.295 1.319.826 32.773 3.484 2.123 21.441 1.260.005 Cen 3 712.022 332.683 347 22.442 223 265.305 162 7.465 29.539 770.580 339.417 347 24.565 223 286.746 162 7.465 29.539 1.848.330 253.587 69.375 66.325 1.459.043 58.558 6.734 2.123 21.441 1.370.187 Setor Agrícola Cen 1 Cen 2 Cen 3 26.050 24.680 26.050 0 0 0 0 0 0 129 129 129 7 7 7 895 895 895 0 0 0 26 26 26 340 340 340 26.451 24.849 26.451 0 0 0 0 0 0 132 132 132 7 7 7 909 909 909 0 0 0 26 26 26 340 340 340 33.702 31.505 38.351 4.500 4.041 8.112 1.338 1.201 2.375 0 0 0 27.865 26.263 27.865 400 169 400 0 0 0 3 3 3 14 14 14 27.448 26.078 27.448 ANEXO IV Componentes dos rendimentos médios, cenários 1, 2 e 3, Brasil e setor agrícola, 2008 (R$) Impostos Contr. Sociais Bruto Líquido Componente Rendimento do trabalho (empregado) Rendimento do trabalho (conta própria) Outros rendimentos do trabalho Aluguel Rendimento em espécie / bens Aposentadorias e pensões Abono permanência Doação de não morador Outros rendimentos Rendimento do trabalho (empregado) Rendimento do trabalho (conta própria) Outros rendimentos do trabalho Aluguel Rendimento em espécie / bens Aposentadorias e pensões Abono permanência Doação de não morador Outros rendimentos ENCARGOS TRAB. + CONTR. SOCIAIS Contribuição do empregador Contribuição do empregado Contribuição do conta própria TOTAL BRUTO Rendimento do trabalho Rendimento de trabalhador por conta própria Rendimento de aluguel Aposentadorias e pensões TOTAL LÍQUIDO Var Cen 1 301,38 140,82 0,15 9,50 0,09 112,30 0,07 3,16 12,50 326,17 142,92 0,15 10,40 0,09 121,37 0,07 3,16 12,50 742,57 90,24 35,49 24,65 10,85 616,84 36,86 24,79 2,10 579,97 N1 N2 N3 N4 N5 N6 N7 N8 N9 H1 H2 H3 H4 H5 H6 H7 H8 H9 GG SS S1 S2 H tax1 tax2 tax4 tax6 N Fonte: IBGE (2008a). Elaboração própria. 120 Brasil Cen 2 265,66 129,91 0,15 9,50 0,09 112,30 0,07 3,16 12,50 279,53 131,38 0,15 10,40 0,09 121,37 0,07 3,16 12,50 665,84 75,90 31,29 21,85 9,44 558,66 25,32 13,87 1,47 533,34 Cen 3 301,38 140,82 0,15 9,50 0,09 112,30 0,07 3,16 12,50 326,17 143,67 0,15 10,40 0,09 121,37 0,07 3,16 12,50 782,36 107,34 57,44 29,36 28,07 617,58 37,61 24,79 2,85 579,97 Setor Agrícola Cen 1 Cen 2 Cen 3 490,74 464,93 490,74 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 2,43 2,43 2,43 0,13 0,13 0,13 16,86 16,86 16,86 0,00 0,00 0,00 0,49 0,49 0,49 6,41 6,41 6,41 498,28 468,12 498,28 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 2,48 2,48 2,48 0,13 0,13 0,13 17,12 17,12 17,12 0,00 0,00 0,00 0,49 0,49 0,49 6,41 6,41 6,41 634,89 593,50 722,47 84,77 76,12 152,81 25,21 22,62 44,73 25,21 22,62 44,73 0,00 0,00 0,00 524,92 494,75 524,92 7,85 3,49 7,85 7,54 3,19 7,54 0,00 0,00 0,00 517,07 491,26 517,07 CONCLUSÃO Esta tese apresentou uma coletânea de três artigos sobre o mercado de trabalho agrícola. Dois temas foram destaque neste estudo: a informalidade e a intermediação de mão de obra, conhecida como empreitada. O Artigo 1 teve como objetivo analisar os salários recebidos nas atividades agrícolas a partir da evolução dos direitos trabalhistas conquistados pelo trabalhador rural. Inicialmente identificamos três fases distintas da evolução da legislação trabalhista no campo. A primeira delas se referiu à criação da CLT, que incluía alguns títulos e capítulos explicitamente aplicáveis aos trabalhadores rurais. Verificamos que, em termos de cumprimento, os resultados foram inexpressivos para todas as regiões do Brasil. Entretanto, a Secretaria de Agricultura do estado de São Paulo identificou alguns processos de empregados contra produtores rurais nos tribunais estaduais acerca desses direitos. A segunda fase da legislação trabalhista no campo foi caracterizada pela criação do ETR, que, além de confirmar os dispositivos da CLT, esse Estatuto ainda propunha outros benefícios ao trabalhador rural, como a estabilidade no emprego e o estabelecimento da jornada de trabalho de 8 horas, já garantidos nos centros urbanos. Contudo, o ETR foi fundamental para a criação do seguro obrigatório (FUNRURAL). A terceira e última fase da evolução da legislação trabalhista no campo se iniciou com a criação da Lei no 5.889. Além da ampliação da definição de empregado rural, a maior contribuição da Lei no 5.889 foi a inclusão do contrato de safra como alternativa para a contratação de mão de obra de curto e curtíssimo prazos. Na prática, observamos que a burocracia concernente a essa modalidade de contrato é tão grande, que para os pequenos produtores, seguir todas as exigências estabelecidas pela lei, torna sua produção inviável, não só pelo custo per se, mas também pelo tempo gasto em cumpri-la. Concluímos que a maior dificuldade encontrada pelo governo federal para regular o mercado de trabalho agrícola foi o enquadramento das diferentes modalidades de relações de trabalho em apenas duas categorias – empregador e empregado – sem levar em conta o serviço de empreitada (terceirização de tarefas) e a intermediação de mão de obra, ambas previstas nos outros setores da 121 economia. Além disso, outras características específicas do campo não foram abordadas pela legislação trabalhista, como a instituição do salário chuva. A análise do impacto da legislação trabalhista nos salários rurais foi consolidada através da série anual de Remuneração do Trabalho Agrícola da FGV referente ao trabalhador eventual (safrista) e ao empregado permanente. Observamos que até o ano de 1973 os salários recebidos estavam acima dos 30% do mínimo previsto em lei, e que depois desse ano houve um incremento substancial nos salários, em especial no salário do diarista, que pode ser interpretado como conseqüência da criação da Lei no 5.889. Contudo, a elevação dos salários rurais a partir de 1983 e o pico da série em 1986 podem estar relacionados às reivindicações dos trabalhadores rurais por melhores salários e condições de trabalho. Observamos também que as trocas de moeda e a hiperinflação, em especial na década de oitenta, contribuíram de maneira expressiva para a volatilidade dos salários rurais. A conclusão geral do Artigo 1 foi que a legislação trabalhista, através da instituição do salário mínimo, contribuiu para a elevação dos níveis de salários recebidos pelo trabalhador rural. Entretanto, um aumento nos níveis salariais não significou garantia de pagamento dos encargos trabalhistas, o que é bastante coerente com os elevados níveis de informalidade existentes ainda hoje no país. Nesse sentido, o Artigo 2 aprofundou a análise do papel do intermediário, através de dois estudos realizados entre os anos de 2006 e 2010 na região de Piracicaba (SP) e na Alemanha. No estudo de caso sobre o corte de cana na região de Piracicaba, verificamos que as diferentes atividades na produção de cana-de-açúcar são quase sempre intermediadas por um prestador de serviço, chamado de empreiteiro. Esse agente desempenha diferentes tarefas: ora contrata e supervisiona, ora só supervisiona, e ora apenas paga pelo serviço prestado. A legalidade do empreiteiro é questionada tanto pelas usinas, como pelo Ministério do Trabalho, mas o Sindicato dos Empreiteiros de Capivari sobrevive até os dias de hoje com base na Lei no 6.019, mesmo sabendo que essa lei se restringe às áreas urbanas. Não há, portanto, a menor possibilidade de se contratar temporários e de se prestar serviço no setor agrícola. É importante observar que os empreiteiros da região de Piracicaba não são meros intermediários de mão de obra. Na verdade, todos os contratos estabelecidos entre empreiteiros e usinas se baseiam no sistema de empreitada. A decisão de contratação e a responsabilidade da execução são exclusivas do empreiteiro. Por isso, se a Lei no 6.019 fosse aplicável ao campo, o 122 sistema de empreitada poderia ser executado a partir do modelo que já existe nessa região, com a diferença de que os empreiteiros responderiam por todas as obrigações contratuais. O sistema de empreitada na região de Piracicaba é um bom exemplo de como as relações de trabalho podem beneficiar produtores, trabalhadores sazonais e os próprios intermediários. Entretanto, sabemos que o sistema apresentado neste artigo é uma exceção dentro das condições atuais oferecidas aos trabalhadores. Nesse sentido, a legalização do intermediário e a redução da burocracia para os contratos de safra, como já existe na Alemanha, poderiam representar não só o aumento no grau de formalização, mas também a redução da pobreza nas áreas rurais. A intermediação de mão de obra, como existe atualmente no Brasil, é lamentável tanto pelo aspecto social, quanto pelo aspecto econômico. Mas isso não significa que a presença do intermediário de um modo geral seja ruim. Pelo contrário. A sua capacidade de distribuir os custos fixos por vários produtores e de aliviar esses produtores das tarefas difíceis de seleção e de supervisão de mão de obra é que explicam sua prevalência ainda hoje na agricultura. No caso da Alemanha, também não há intermediação de mão de obra. Entretanto, os produtores contam com uma estrutura pública de apoio à contratação, que pode ser interpretada até como uma espécie de intermediário. Sem dúvida, essa estrutura reduz bastante o problema de oferta de mão de obra, e conseqüentemente, da qualidade do trabalho ofertado. Entretanto, no caso da Alemanha, acabou gerando um outro problema: a migração ilegal de estrangeiros. Para tentar reduzir a informalidade, o governo alemão estabeleceu a Regra de Canto a partir da safra 2006/2007, que teve como objetivo incentivar a contratação da população local a partir do nível de desemprego da região. Os primeiros resultados dessa política se mostraram bastante satisfatórios sob o ponto de vista das metas estabelecidas, mas nos próximos anos o governo federal poderá esbarrar na falta de oferta de mão de obra nacional para o setor, e a entrada ilegal de estrangeiros poderá aumentar. Ao compararmos o sistema de contratação de trabalhadores sazonais no Brasil e na Alemanha, observamos que em muitos aspectos eles são bastante semelhantes, tais como a idade de admissão, o tipo de trabalho executado, e o local da assinatura do contrato. Mas esses sistemas se divergem quanto aos custos com transporte, alimentação e alojamento. No caso da Alemanha, todos esses itens podem ser negociados nos contratos de trabalho, e variam de acordo com o salário pago por hora e a localização da cidade de origem do trabalhador. No Brasil, a responsabilidade é exclusiva do produtor. 123 O Artigo 2 termina destacando a importância da formalização do intermediário no processo de contratação de mão de obra, e as dificuldades ainda hoje enfrentadas pelos trabalhadores no campo. O caso alemão mostra que a presença do Estado contribui para o maior equilíbrio entre a oferta e a demanda de mão de obra, mas que isso não é condição suficiente para garantir a legalidade de todos os trabalhadores. No campo, o trabalhador não tem margem de negociação de salário, nem opção de alimentação ou alojamento, o que contribui fortemente para condições de trabalho precárias e salários abaixo da média nacional. Como o objetivo de reduzir a informalidade nas atividades agrícolas, o Artigo 3 simulou dois cenários para a inclusão do trabalhador rural no sistema de seguridade social, além da reprodução do sistema atual (cenário 1). No primeiro deles (cenário 2), todos os custos de contratação foram repassados para os empregados. De forma contrária, o segundo (cenário 3) manteve o nível de salário dos empregados, e repassou os custos de formalização para o empregador. Essas simulações foram feitas para o Brasil e para o setor agrícola através da transformação do rendimento do trabalho bruto em líquido utilizando o Modelo de Micro-Simulação de Siena (SM2). Apesar dos resultados ainda serem preliminares, observamos que tanto para o Brasil, quanto para o setor agrícola, a variável rendimentos do trabalho foi o componente mais significativo no total de rendimentos, seguido do rendimentos de aposentadorias e pensões. Na comparação dos três cenários para o setor agrícola, verificamos que, no cenário 1, os encargos trabalhistas são bem inferiores à média brasileira. Já no cenário 2, os impostos e as contribuições sociais do empregado são reduzidas. Contudo, a redução no rendimento líquido é mais acentuada no Brasil do que no setor agrícola. Notamos, assim, que os empregados do setor agrícola são muito mais dependentes do salário. Isso sugere que qualquer proposta de mudança no sistema tributário terá um impacto mais expressivo nas atividades agrícolas. No caso dos rendimentos de aposentadorias e pensões, boa parte do resultado obtido para o setor agrícola pode representar o benefício da aposentadoria rural. Essa verificação, porém, será contemplada em projetos futuros, onde analisaremos, além da aposentadoria rural, o impacto de outros programas sociais no campo, como o Programa Bolsa Família. Na comparação dos cenários 1, 2 e 3 para o Brasil e o setor agrícola, verificamos que os encargos trabalhistas do setor agrícola são bem inferiores à média brasileira. Esse resultado já era esperado, já que parte dos encargos comuns para os empregados permanentes são excluídos nos contratos de curta duração. Mas isso não pode ser interpretado simplesmente como uma vantagem 124 na contratação de mão-de-obra no campo. Em 2008, os níveis salariais no setor agrícola foram maiores do que a média do Brasil. Os cenários apresentados no Artigo 3 representam casos extremos de repasse dos encargos trabalhistas e contribuições sociais dos empregados e conta própria que se declararam informais em 2008. Essas simulações, juntamente com o cenário 1, foram elaboradas em caráter experimental, no intuito de verificar o comportamento dos componentes dos rendimentos do trabalho para futuras propostas de inclusão dos informais no sistema de seguridade social brasileiro. Essas propostas são fundamentais para o setor agrícola, que, como apresentado no desde o Artigo 1, ainda hoje possui cerca de 80% de trabalhadores sem carteira assinada. Mais do que refletir sobre a participação dos agentes envolvidos, e do papel do governo federal como criador de políticas sociais, a idéia é usar esses e futuros resultados para assegurar padrões razoáveis de vida da população rural. 125