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HISTÓRIA
Número 9 - 2ª série
O que Uanhenga Xitu falou
E
u sou, na minha terra, um
“mais velho”, pessoa a quem a
idade permite, independentemente o saber das escolas, conhecer
a vida por a ter vivido, e conhecer a
vida por ter escutado de outros mais
velhos o relato das suas experiências.
Cada um de nós, “os mais velhos”
que na nossa terra existem, resume
em si a memória de centenas de
anos. Cada dia mais rica, porque vivemos hoje mais tempo do que viviam os nossos avós. Cada dia mais
rica, porque vivemos tempos mais
movimentados e de maior experiência. Cada dia mais rica, porque temos ao nosso dispôr as técnicas que
nos enriquecem com a experiência
sem fronteiras de outros povos.
Cada um de nós, os “mais velhos”
que na nossa terra existem, vão vendo definhar a importância da sua
experiência. Se somos mais ricos,
estam os cada dia mais pobres, porque a juventude não aprende já pela
nossa boca.
Se ficámos mais ricos, estamos
cada vez mais pobres, porque a juventude de tanto outro saber que
parece acumular, tem com o velho
que fala o ar condescendente de
quem ouve inutilidades, de quem
não precisa, de quem já sabe para lá
do que lhe dizemos.
Os “mais velhos” da nossa terra,
vão morrendo na importância. À
medida que nos urbanizamos, que
a memória dos avós vai perdendo
o interesse para os mais novos, que
a juventude deixa as nossas tradições para se apropriar da moda do
seu tempo e que não deixa de ser, de
certo modo, a tradição de outros povos. Não como a nossa, que era uma
tradiçâo para passar de pais para
filhos, sem custos nem interesses.
Mas com as regras que o mercado
impõe neste comércio de aliciamento em que a juventude se afoga.
Perguntem a um dos vossos jovens o que foi o vinte e cinco de
Abril; o que terão sido os “turras”;
contem-lhe dos sofrimentos da
guerra, dos outros tempos de medo
e desconfiança e eles não entenderão, porque acham estas histórias
sem piada, sem interesse e até são
capazes de pensar que nunca aconteceram. E escrevem-na com É e
sem Agá.
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Ano 2 - Fevereiro / Março 2014
Porque me disseram que agora
quando a história é história aconteci da leva Agá, quando é assim só
coisa de invenção escreve-se com É.
Quando eu era menino e aprendi a
ler e a escrever, as história tinham
sempre Agá. Fossem elas história
verdadeiras ou inventadas ... Já me
tentaram explicar porque é que
a história pode ter ou não Agá. O
Luandino Vieira bem me explicou,
e eu não aprendi. Veio este e aquele
- explicaram-me e eu continuei na
mesma, sem aprender. Porque, ou é
essa coisa que vocês dizem aqui em
Portugal que burro velho não aprende línguas, ou é mesmo que todas as
minhas estórias se escrevem com
Agá.
Porque, verdadeiramente, eu só
escrevo histórias com Agá. Quando
eu estava lá nas minhas cadeias, naquelas noites e dias que pareciam
ter comprimento de anos, eu começava a pensar nos tempos da minha
terra. Naquilo que eu tinha vivido
e naquilo que eu tinha escutado da
boca dos meus “mais velhos”. Às
vezes, conversando com os meus
companheiros, contava as minhas
histórias. Todas verdadeiras e com
Agá, mas acrescentadas de uma
coisinha aqui, acrescentadas de
qualquer facto que tinha acontecido noutra história, misturadas com
esta ou aquela figura que não vivera
nela, mais valia a pena recuperar.
Assim, eu contava aos meus colegas de cativeiro, porque contar aos
outros é um dever que a tradição
obriga a qualquer”mais velho”. Mas
contar aos outros dentro de uma
prisão limita: uns ficam fartos de
ouvir, outros estão mal dispostos e
não nos querem escutar, nós mesmos, muitas vezes, nos sentimos
sem apetite para falar, muito embora as histórias circulem dentro da
nossa cabeça no fogo sempre aceso
da memória. Há alturas em que o
desespero da solidão é tão grande
que só nos apetece estar sós: a palavra dos outros, o barulho dos outros, o próprio interesse dos outros,
a solidariedade de cada um é como
se fosse u~a afronta ao peso da nossa vida.
Foi então que resolvi, animado
por alguns dos meus companheiros, escrever. Escrever é de certo
modo uma forma de estar só comigo mesmo. Quando o desespero
te aperta, foge dos outros e escreve para todos. Foi assim, que do
Mendes de Carvalho que eu sou,
nasceu o escritor Uanhenga Xitu
que vos fala agora. É por isso que
eu vos digo e afirmo que todas as
minhas histórias se escreveram
todas com Agá.
É possível que haja escritores
que arranquem tudo da imaginação. São como Deus que do nada
fez tudo quanto existe. Eu não sei
escrever assim. Sou como o homem da terra que trabal as reita
o fruto velho para fazer crescer a
sementeira nova.
As has hi órías ê a vida verdadeira
daquilo que aconteceu. Eu sou, minhas senhoras e meus senhores,
um contador de histórias utilizando uma técnica nova - a escrita da
a1avra. Eu sou um “mais velho” que
sabe coisas e as transmite.
Reconhecendo que o que se ganha em memória, se perde em naturalidade.
Falta a palavra inventada no momento, quando se usa a palavra
pensada.
Falta o gesto, o das mãos e o dos
olhos. Porque os olhos também fazem gestos, quando se abrem ou
fecham, quando as sobrancelhas se
unem, quando a testa enruga ou a
tristeza os faz lagrimar.
Falta a entoação da voz, a imitação dos animais e das pessoas, a
suspensão da narrativa quando se
quer alimentar o interesse de ouvir.
Falta o canto que por vezes aparece, falta a pergunta que eu posso também fazer quando escrevo,
mas que não tem para me animar,
os olhos dos ouvintes que me ouvem, me respondem, ou não me
dizem nada e me aguardam.
Falta, enfim, contar à boa maneira africana, com o adorno de
tudo quanto atrás ficou dito e o
calor e o sentimento e o interesse
de uma comunidade inteira.
Falta, minhas senhoras e meus
senhores, contar (tal como escrevo) a minha história com Agá para
que cada um a oiça e nela se reconheça, para que cada um a escute
e nela ganhe e encontre o desejo
de a contar um dia quando a idade
se adiantar, os cabelos se embranquecerem e o coração vier impor
o dever de contar aos ais novos
os passos passados de uma outra
vida.
Uanhenga Xitu
Depoimento do escritor ao JL - Jornal
de Letras Artes e Ideias em Lisboa
aos12 de Agosto de 1998, sob o título:
Histórias de mais velho.
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