daniel senise
vai que nós levamos as partes que te faltam
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p. 1
34–01 38 AVE, LIC II 2005
Colagem sobre impressão em jato de tinta, 91x90cm
Collage on ink jet printing, 35.8x35.4in
p. 2–3
W.L. 140 setembro 2008 III (04/09) 2008
Colagem sobre impressão em jato de tinta, 91x90cm
W.L. 140 September 2008 III (04/09) 2008
Collage on ink jet printing, 35.8x35.4in
p. 4–5
W.L. 140 setembro 2008 II (05/09) 2008
Colagem sobre impressão em jato de tinta, 91x90cm
W.L. 140 September 2008 II (05/09) 2008
Collage on ink jet printing, 35.8x35.4in
p. 6–7
W.L. 140 setembro 2008 II (06/09) 2008
Colagem sobre impressão em jato de tinta, 91x90cm
W.L. 140 September 2008 II (06/09) 2008
Collage on ink jet printing, 35.8x35.4in
p. 8–9
W.L. 140 setembro 2008 II (03/09) 2008
Colagem sobre impressão em jato de tinta, 91x90cm
W.L. 140 September 2008 II (03/09) 2008
Collage on ink jet printing, 35.8x35.4in
p. 336
34–01 38 AVE, LIC II 2005
Colagem sobre impressão em jato de tinta, 91x90cm
Collage on ink jet printing, 35.8x35.4in
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Algumas obras tiveram seus títulos mantidos na
língua original por decisão do artista.
The artist has chosen to keep some of the works’
titles in their original language.
A grafia dos textos de “Daniel Senise: Cronologia
crítica” foi mantida na língua original.
All texts from “Daniel Senise: Critical Chronology”
were kept in their original writing.
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índice
index
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Apresentação
Ivo Mesquita
19
Territórios de infinitude
María A. Iovino
37
OBRAS works
145
exposições exhibitions
156
daniel senise: cronologia crítica
Glória Ferreira
279
daniel seNise
go. we'll bring the parts you leave behind
327
índice onomástico name index
329
bibliografia bibliography
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Depois de quase 30 anos de trabalho, a obra de Daniel Senise
representa um compromisso consistente e consolidado com a pintura,
sua prática, seu sentido social e histórico, tendo ele criado um
espaço de reflexão pessoal, articulado a partir de um imaginário
sofisticado e original. Com uma palheta econômica, e que se fez
cada vez mais sóbria ao longo do tempo; com composições bem estruturadas sempre privilegiando os grandes formatos, características de toda a sua produção, inicialmente, sua pintura se desenvolveu a partir das tensões entre os planos no espaço do quadro,
onde surgem fragmentos de corpos e objetos industriais como que
amputados de seu todo, de arquiteturas e paisagens imaginárias,
que tomam quase toda a superfície pictórica. Imagens densas,
acentuadamente gráficas, elas são, ao mesmo tempo, evocações de
formas arcaicas da arte e conhecidas do repertório moderno, e uma
16
abordagem de questões específicas da pintura como figura e fundo,
a construção da superfície e a retórica da representação.
No início dos anos 1990, há uma mudança no modo de trabalho
do artista. À sua pesquisa sobre as possibilidades da pintura
a partir do imaginário e da tradição em que ela se inscreve —
programa adotado por diversos pintores em diferentes lugares
desde o final dos anos 1970 —, Senise incorpora o próprio fazer,
a própria materialidade do meio e do suporte, como elementos
constitutivos do discurso plástico e do seu sentido na atualidade.
Ao método tradicional da pintura, ele agrega colas, laca,
betume, processos de oxidação de ferro, e incorpora toda sorte
de acidente sobre superfícies de telas expostas, por longos
períodos de tempo, ao piso do seu ateliê. A partir do recorte
e justaposição de partes escolhidas dos tecidos impregnados
de matéria e memória de sítios específicos, surgem paisagens
inventadas ou apropriadas de pinturas do passado, imagens
lembradas, arquiteturas de interiores reais como galerias e
museus, ou ainda construções utópicas, sem um lugar preciso,
apenas a marcação de espaços constituídos por vigas, planos,
colunas, encaixes e volumes. As imagens apontam também para
um mundo em constante movimento — o rio, o mar, as nuvens, os
estados gasosos, as suspensões — e instável, causando a sensação
de que esses espaços, os volumes e objetos não se acabaram de
construir ou estão em processo de desmanche.
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O livro Daniel Senise. Vai, que nós levamos as partes que te
faltam, de um lado, documenta de forma generosa a produção
do artista nos últimos 15 anos, seu processo de trabalho, e
registra uma série de exposições panorâmicas realizadas sobre
este conjunto de obras, entre 2008 e 2009, em quatro museus
brasileiros, mas com diferentes configurações em cada espaço
expositivo. As fotos mostram a articulação das pinturas com
o lugar em que se apresentaram, o que lhes confere algo de
Apresentação
instalações, criando espaços sobre espaços. Permite ver a
densidade do projeto artístico de Senise, a complexidade de sua
obra, uma reflexão articulada e crítica sobre o sentido da pintura,
um campo possível de ser ativado no presente, pois oferece ainda
uma experiência única de ver e imaginar. De outro, o livro faz um
balanço dos quase 30 anos da carreira do artista, dentro de um
percurso ilustrado sobre um tempo recente.
17
O texto de María Iovino, “Território da infinitude”, analisa a
produção artística de Senise para além das noções de identidade
e contexto que prevaleceram nas últimas décadas na interpretação
dos artistas latino–americanos, para afirmá–la como o registro
do enfrentamento disciplinado de questões como tempo, memória,
ausência, e, portanto, parte de “uma cultura universal” e
histórica da pintura.
A magnífica “Cronologia crítica 1977–2007”, organizada por Glória
Ferreira, por sua vez, oferece uma cuidadosa visão retrospectiva
dos trabalhos do artista desde os anos 1980 e dos fatos mais
significativos para o sistema da arte, e recupera, a partir de
extensa pesquisa, textos importantes na leitura da produção de
Senise, justapondo–os a outros também fundamentais dos movimentos
e questões que orientaram o debate sobre a pintura e a arte
nesse período. Além de representar uma valiosa contribuição
à historiografia e crítica de arte contemporânea, a cronologia
oferece um percurso afetivo e prazeroso de um tempo vivido,
resgatando imagens, ideias e comportamentos de uma geração que
põe em movimento o presente, na forma de outra grande “sinfonia
de memórias”.
ivo mesquita
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IVO MESQUITA
é curador–chefe da Pinacoteca
do Estado de São Paulo.
is the chief curator of the Pinacoteca
do Estado de São Paulo.
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maría a. iovino
dedica-se à pesquisa e curadoria de arte
contemporânea com foco na América Latina
especialmente Colômbia. Reside em Bogotá.
is a researcher and curator focusing in Latin
American and Colombian Contemporary Art.
She lives in Bogotá, Colombia.
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Territórios
de infinitude
María A. Iovino
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concebe — como um esquema arquitetônico —
Daniel Senise pressupõe penetrar na cadeia de
para cada obra específica e de acordo com as
investigações e consequências que guiaram seus
necessidades de luminosidade requeridas pela
admiráveis achados e, além do mais, entender
imagem que corresponde a cada desenho.
nesse caminho que esta proposta, apesar de se
Em consequência, no momento de instalar os
desenvolver no domínio do bidimensional e daquilo
fragmentos das diferentes impressões em um su-
que se entende como pintura, é inclassificável em
porte preparado para tal efeito, ele reúne, além
um meio determinado.
da impressão e da concepção construtiva, uma soma
Na obra deste artista, a pintura, a gravu-
de tempos e de espaços — tanto de forma real como
ra, o desenho e a construção espacial convivem em
metafórica. Acopla também neste exercício um jogo
um equilíbrio tão exato que não permite a demar-
de suportes no qual conjuga a superfície em que
cação de fronteiras técnicas entre os diferentes
realiza a obra, a tela que traz a impressão — que
recursos. Nessa medida, localizar processos de
é, originalmente, um suporte para a pintura — e a
trabalho exclusivamente em algum desses espaços,
matéria que traz de outros lugares, retirada dos
além de limitar a diversidade de possibilidades
pisos sobre os quais transitaram.
de reflexão que a obra oferece, nega a própria
Daí parte uma das complexidades filosóficas
essência de qualquer meio que se queira entender
e de interpretação deste trabalho, pois, não sen-
como principal.
do exata a definição de suporte, que tradicional-
Daniel Senise gera suas imagens a partir
mente se admite como o tema estável de uma argu-
de uma indagação que estabelece um diálogo en-
mentação, o conteúdo da obra se abre ao incerto e
tre impressões, tiradas diretamente de realidades
ao variável da simultaneidade. Na obra de Daniel
diversas, e concepções de imagem e de espaço que
Senise, convive, em uma mesma imagem e superfície,
são produto de sua reflexão. No entanto, são muitos
uma multiplicidade de suportes e histórias, mas,
os aspectos inovadores desta obra. O primeiro é a
além disso, esses suportes representam espaços
própria natureza da matéria pictórica com que o
que são estranhos aos que pertencem. Não há cor-
artista trabalha. Faz pintura com a informação que
respondência entre o lugar de origem da monotipia
extrai dos mais diversos lugares e, naturalmente,
e o espaço representado. Esse é um dos estranha-
em tempos distintos e desiguais. Seu procedimento
mentos materiais produzido pelo artista, ao qual
consiste em aderir a pisos, marcados pela passagem
se agrega o fato de a construção ser uma sinfonia
do tempo, telas tradicionais, usando uma mistura
de memórias.
de cola de marceneiro e água, que espalha sobre
Isso pressupõe que, além da ilusão de pers-
as telas. Quando separa os tecidos, depois de um
pectiva gerada pelas imagens de Daniel Senise em
tempo de secagem, eles trazem matéria do lugar, do
sua obra, há outras múltiplas perspectivas inter-
dado essencial da estrutura e da história em que
nas que comportam os tempos–espaços que se mistu-
se inseriram.
ram em cada trabalho.
Isso quer dizer que, na pintura de Daniel
Esses espaços bidimensionais de aparência
Senise, a cor e o gesto provêm de traços da memó-
tridimensional são, basicamente, construções pla-
ria ou de vestígios da ocupação de espaços que se
nas que encerram um número incalculável de dimen-
acumulam no plano único dos solos nos quais desen-
sões, manifestado nas memórias trazidas por cada
volve parte de seu processo criativo; por isso, em
fragmento de gravura que as conforma.
primeira instância sua obra é um registro. Depois
dessa captura monotípica do real, o artista frag-
partir de suportes, é uma impressão a mais. Assim,
menta e mistura os cortes das distintas camadas de
nesta obra, a conversão de tempos e realidades,
acordo com as formas projetadas nos desenhos que
somada à envolvente monumentalidade do formato e
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Acessar uma obra tão particular como a de
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Às vezes, a imagem obtida, trabalhada a
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de qualquer outro discurso ou tendência racional.
e leva o espectador a um espaço distinto do me-
Nenhum aspecto da obra deste artista está cerca-
ramente frontal, mesmo que isso aconteça também
do por discursos. As propostas intelectuais são
nos casos em que o formato nem sequer é monumen-
forças com as quais evidentemente o trabalho tem
tal. Além do mais, às vezes esses suportes são o
relação, mas elas devem ser desentranhadas nas ma-
apoio de estruturas que se alçam ou se enterram no
neiras específicas em que o artista estruturou seu
vazio; esta é outra maneira que o artista usa para
pensamento e alimentou suas buscas de autodidata.
quebrar a qualidade de superfície do plano para
Por outro lado, é compreensível que os
convertê–lo em um universo em que a imersão não
recursos organizativos das imagens de Daniel
tem fim.
Senise revelem de maneira importante sua formação
No plano e a partir do plano, as cons-
de engenheiro, embora em sua carreira de artista
truções e projeções espaciais de Daniel Senise
ela sobreviva em espaços já distantes e indefiní-
despertam no espectador a consciência da veloci-
veis. Da mesma maneira, são inegáveis os
dade que o circunda. A metáfora seria então a de
diálogos sensoriais e racionais que estabelece
uma mobilidade incontrolável, pois cada questão
com a tradição artística brasileira, assim como
no tempo e no espaço é cimento e apoio para ou-
com a história da arte em geral. Mas, ainda assim,
tras; é uma das formas de circulação infinita que
a personalidade deste trabalho continua alheia aos
este trabalho oferece entre as noções de começo
marcos teóricos ou às referências estabelecidas.
e de fim. O que indica que cada elemento no es-
Não há citações da tradição ocidental, nem mesmo
paço é suporte e, ao mesmo tempo, superfície. As
da latino–americana, a partir das quais possa ser
duas funções estão fundidas e também diferencia-
lido ampla e suficientemente. Se, por necessidade
das. As impressões dos pisos continuam aludindo a
conceitual, estes lhe forem impostos, o alcance de
suportes de memória, mas alteram sua natureza em
uma obra tão rica em conteúdos poderá ficar redu-
desenho sobre outro plano no qual o artista fala
zido ao clichê, o que implica perder um aporte de
de profundidade.
grande valor para a construção filosófica e cultural
Pelas mesmas razões, a humanidade e o sen-
da América Latina e, em particular, do Brasil.
timento povoam cada fragmento mínimo dos espaços
As rotas que podem conduzir a uma aprecia-
racionais, desolados e abissais de Daniel Senise.
ção mais completa e complexa de obras como a de
Neles, a emocionalidade não é impressa apenas pela
Daniel Senise, que se apoiam em muitos territó-
riqueza do gesto da matéria–prima e da vertigem
rios sem pertencer a nenhum, estão por construir
que incita a exatidão do cálculo das projeções es-
ou em construção. Por essas mesmas razões, um
paciais, mas também pela viagem a que conduz cada
trabalho como o seu, que não recorre às retóri-
um de seus elementos componentes. Esse contraste
cas políticas e sociais, mas se edifica nas cir-
entre o poder do gesto e o controle construtivo
cunstâncias de um continente estigmatizado por
permite que se possa, no silêncio imponente da
essa visão, pode ser visto como um comportamento
pintura de Daniel Senise, entender a voz mínima
latino–americano atípico e, consequentemente,
e imprescindível de cada partícula do mundo vivo.
um lugar impreciso e vago.
Assim, apesar de sua estrutura geométrica
Na América Latina, a proposta geométrica
e racional, é impossível ler uma obra como a deste
na arte foi lida, essencialmente, como uma
artista a partir dos preceitos da pintura geomé-
contrarresposta à proposição geométrica abstrata
trica abstrata ou partir dos preceitos do moder-
formulada na Europa, não como racionalização
nismo, não obstante a repercussão que teve na arte
própria ou como produto independente. Sempre
e na arquitetura do Brasil. Tampouco seria possí-
em comunicação para negar ou para traçar
vel acessar este trabalho a partir dos parâmetros
independência em relação a alguns parâmetros que
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da própria imagem, quebra a limitação do plano
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opõe ao identitário foi ter anulado a importância
De qualquer forma, é lógico que tivesse sido
do lugar para favorecer um cenário vago no qual
entendido dessa maneira, na medida que na história
aparentemente não existiriam suportes de nenhum
do continente, assim como na da cultura ocidental,
tipo para as diferentes concepções. O suporte
os temas abstratos se desenvolveram em um cenário
pode ser desconcertante, múltiplo, variável e,
difícil, no qual se tornaram híbridas as adoções
inclusive, um assunto incógnito, como adverte a
e as imposições das culturas de maior poder
obra de Daniel Senise, mas existe.
econômico. Embora isso sempre tenha acontecido no
Embora o fluxo do intercâmbio com outras
meio de esforços notáveis para fazer adaptações que
realidades aporte constantemente novos dados, o
oferecessem interpretações de lugar, estas, pela
lugar onde se vive ou a partir do qual se olha o
própria condição política em que foram abordadas,
mundo como paisagem e como campo no qual se pro-
em geral se politizaram, romantizaram ou, inclusive, duz e se ouve determinada sonoridade não pode
se exotizaram como versões do subdesenvolvimento.
deixar de exercer uma influência decisiva no pro-
No entanto, é importante reconhecer
cesso de construção do olhar. Assim, o lugar pode
hoje que o século XXI herdou do XX atitudes
ser ressemantizado, mas não eliminado. A questão
intelectuais e propostas artísticas que não são
é que não se trata mais de identificação, que é um
despenhadas na resistência, apesar de serem gera-
conceito restritivo atado a preceitos discursivos,
das ou fortalecidas em lugares tradicionalmente
mas de pertencimento, que é uma posição flexível e,
compreendidos, a partir de si mesmos e a partir
no entanto, acomodável às mudanças das circuns-
de fora, nessa condição de contradição política.
tâncias e, inclusive, à própria mudança de lugar.
No enlace ocorrido entre a maturação dos
Dessa maneira se entende que um lugar possa ser
processos políticos da América Latina, da expansão
ao mesmo tempo o próprio e outros mais.
da comunicação, da aceleração na cobertura e da
No caso particular da arte produzida na
capacidade de espaços da internet, assim como da
América Latina ou como latino–americana, a reflexão
popularização e da democratização dos transportes
acerca do lugar está ligada à da memória, mesmo
e das conexões entre diferentes lugares do mun-
que esta não apareça como objetivo expresso de
do, cresceu com muita naturalidade o sentimento
um determinado projeto criativo.
de pertencimento a uma cultura universal, ao lado
Levando–se em conta que na base de toda
da ideia de livre mobilidade por qualquer tipo
estrutura poética a memória é o ingrediente de
de espaços informativos, educativos, culturais e,
fundo, no continente este foi por décadas o grande
inclusive, geográficos e espaciais.
tópico da produção artística e intelectual, ques-
Não obstante, mesmo quando se considera
tão que se explica por sua condição histórica.
que foi assimilada uma nova realidade em que
Na América Latina, a reflexão sobre o que o passado
as fronteiras do pensamento estão cada vez mais
significa no presente surge da necessidade — e isso
dissolvidas, persiste a permanência de discur-
de maneira espontânea —, a partir de distintas
sos viciosos de identidade, fato que pressupõe a
ocasiões, e não só por meio do diálogo estrito com
necessidade de amadurecer uma compreensão distinta
a narrativa social ou a dificuldade de seu devir
na qual a comunicação com o lugar seja assumida
político. O contato com o labirinto criado pela
de forma natural e não forçada, em uma competição
fusão — muitas vezes inarticulada — de realidades
entre dominadores e dominados.
obriga a entender tanto o originário como a com-
plicada trama dos acontecimentos.
É impossível reconhecer há mais de um sé-
culo, e em especial no presente, o próprio ter-
Como todos os países que trabalham para
ritório fora de um diálogo entre muitas culturas,
se libertar de diversos processos de colonização,
espaços e interesses. O erro do discurso que se
para os latino–americanos o trauma central foi a
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não é possível acolher ou que se evita favorecer.
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Bumerangue 1994 (detalhe)
Esmalte sintético e óxido de ferro sobre tela, 165x256cm (obra p.134–135)
Boomerang 1994 (detail)
Synthetic enamel and iron oxide on canvas 64.9x100.7in (work p.134–135)
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não como corpo, e seus vestígios fazem uma inti-
negação cultural e a destruição de suas tradições
nerância infinita, não apenas pelo movimento que
e crenças, mediante uma intensa e urgente tare-
propõem como desenho, mas pela atividade mesma
fa de silenciamento e ideias impostas em todos os
do rastro impresso, cuja oxidação não se detém.
campos que permitem interpretar o mundo e o uni-
Equivale a dizer que a memória é tratada
verso. Entre as múltiplas negações estão não ape-
neste trabalho como atualidade, como presente,
nas as construções culturais, mas também a própria
e não como testemunho de um tempo passado. Na
paisagem e o entorno mais próximo. Isso explica
obra de Daniel Senise, o tempo é concebido como
o fato de que a criação crítica tivesse procurado
uma questão em ação, e em ação múltipla. Daí que
desentranhar, de várias maneiras, uma atmosfera
as obras realizadas a partir de interconexões
própria através de diversos mecanismos, apesar
de impressões feitas em camadas sejam a negação
de não existir uma programação para fazê–lo.
de um êxtase do registro, como o é, também, a
Não é acontextual então que entre os moti-
conversão dos distintos suportes impressos em
vos centrais da reflexão de Daniel Senise estejam
estruturas ou em edificações totalmente estranhas
a memória, a expansão do tempo e do espaço, que
à sua natureza de origem.
em seu trabalho obrigam a sentir o infinito. Da
Por esse mesmo motivo, a inquietude de
mesma forma, é compreensível que o artista pen-
Daniel Senise desde que realizou o primeiro mono-
se nestes temas em um sentido pessoal no qual
tipo no piso de seu ateliê foi alterar a situação
não contam avaliações de ordem social, histórica
monolítica distinta, referida a outro lugar.
ou política. Não existe formato algum capaz de
Esta é outra forma de circulação infinita que a
precisar suficientemente quais são os domínios da
obra de Daniel Senise adota. Nela, o passado é
memória, pois esta é, afinal, a matéria que compõe
sempre presente.
cada sensação, percepção, reflexão e concepção vi-
De fato, a primeira impressão não foi con-
tal. São incontáveis as maneiras de se aproximar
sequência de uma indagação de registro, mas um
dela e de expressá–la.
acidente que apresentou novas possibilidades de
No caso da obra de Daniel Senise, o ar-
representar o material, quando a obra do artista
tista pensou na matéria como uma voz autônoma e
ainda podia ser definida mais estritamente como
como expressão per se desde os primeiros trabalhos
pintura. Uma tela que preparava para usar em um
nos quais investigou imagens e processos que lhe
trabalho aderiu com mais força ao solo do ateliê
permitiram revelar sua forma de perceber o mundo e
por um excesso de aplicação de tinta acrílica.
suas questões.
A tinta traspassou a tela fina, provocando assim
O exemplo mais claro desse modo de operar
a aderência. A separação da tela trouxe então
é constituído pelos traços de movimentos infinitos
consigo camadas da história do espaço em que
feitos com a oxidação de pregos, um exercício mais
estava, e as mais visíveis foram os rastros do
direto desse pensamento. O desenho que o artis-
trabalho que Daniel Senise estava então desenvol-
ta dispôs em determinado percurso sobre a tela
vendo. Naquele momento, sua experimentação con-
fez dele o elemento mesmo com sua própria oxida-
sistia em sobrepor superfícies de material, nas
ção. Depois de ocorrido esse fenômeno de tempo e
quais depois fazia extrações para deixar desta
de vida, a realidade como matéria foi retirada da
maneira traços de uma atividade distinta sobre a
obra para que ela fizesse de si mesma sua evocação.
pintura. No entanto, essa primeira tela impressa,
Ausência, então, é um conceito chave na
que recolheu os resíduos que haviam caído no chão
obra do artista, com o qual edifica um jogo de
durante a elaboração de vários exercícios, pare-
acesso às diferentes camadas da memória. Nesta
cia também uma obra sua, como o próprio artista
obra, os pregos se fazem presentes como rastros,
esclareceu em várias entrevistas.
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perda e o descontrole da memória a que levaram a
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Só encontra quem está procurando, e nesse
mantêm ausentes a coisificação e a realidade viva
sentido foi que aquele acaso desembocou em refle-
e mutável do material.
xões e concepções sobre a memória, a imagem e o
Com essa lógica, em obras como as aqui men-
espaço de crescente complexidade.
cionadas, o projeto de Daniel Senise já entrara em
Enquanto experimentava a oxidação dos pre-
um tempo e um espaço metafísico, percepção que em
gos e de outros sólidos metálicos, Daniel Senise
seguida ele incrementa bastante por meio da auste-
também estudava, com suas pinturas, imagens icô-
ra construção de espaços e estruturas a partir das
nicas da história da arte e da ilustração como
impressões tiradas dos pisos e pelo desaparecimen-
representação e ausência, como formas de habitar
to total em suas imagens de qualquer esquema do
o espaço e de se expressar nele em distintas or-
corpo humano.
dens. A essas séries pertencem obras como Retrato
Embora no começo tenham representado cons-
da mãe do artista (1992, p.215), Despacho (1993,
truções reais, esses espaços levaram o trabalho
p.220) e Casamento (1994, p.224), inspiradas
do artista a passar radicalmente ao terreno da
na conhecida pintura do artista norte–americano
reflexão abstrata, e isto em uma solução de todo
James Whistler; Mountain e Cliff (1994, p.132–
pessoal. O que não está neles são muitas coisas:
133), inspiradas na obra do pintor alemão Caspar
o lugar e a realidade de onde provêm, os seres
David Friedrich, assim como Ela que não está
que os habitam e o interminável entorno em que
(1994, p.126–131), inspirada no esquema de restau-
se projetam, e o chamado ao infinito em que se
ração por perda de material de um dos afrescos do
sustentam. Com esses mecanismos, Daniel Senise
pintor italiano Giotto, na capela Barci da Igreja
leva a sonoridade e a importância do imenso mundo,
da Santa Cruz, de Florença. O artista conheceu a
que por força se distancia de qualquer proposta
imagem nos livros em que estudava história da arte
de representação, a uma instância de maior poder
e depois diretamente em uma viagem àquela cida-
metafórico e poético.
de italiana, em 1994. O fato de tê–la estudado
Interpretei com insistência em outros es-
primeiro em um impresso no qual se manifestava a
tudos e textos que esse chamado ao infinito e a um
deterioração e o processo de restauração da obra
tempo–espaço circular, instável e complexo na arte
gerou a ênfase na observação e reflexão que Daniel
e no pensamento que amadureceu sob os esquemas do
Senise fez do ausente nela.
moderno e do contemporâneo na América Latina —
ou no campo de ação latino–americano — tem uma
Em especial neste último trabalho, a
observação do artista se concentra naquilo que
relação direta com a libertação do tempo–espaço
desapareceu, uma questão vital que encerra uma
único, plano e quieto da fotografia. E também com
explicação do mundo e sem a qual é impossível
o das importações discursivas de diferentes or-
decifrar um conteúdo ou uma mensagem. É uma
dens: políticas, econômicas, sociais, artísticas
reflexão muito semelhante a que faz o artista
e intelectuais em geral, que submeteram os Estados
francês Marcel Duchamp na obra Tu manque qui
latino–americanos, em sua nascente história, a uma
(1918), a marca final de seu trabalho em pintura
ordem rígida, central, monocular, na qual pareciam
e o começo do desenvolvimento de sua reflexão
ter resolvido de muitas maneiras o problema de
sobre o mundo objetal. Em Tu manque qui, Duchamp
interpretação do real, a partir da compreensão do
representou apenas a sombra do cabide e com o
tempo, do espaço e da história, comparáveis às do
título apontou sua ausência, para se referir,
plano fotográfico.
com esse ato, a uma falha da representação
Em primeiro lugar, concebi–o desta maneira
pictórica e inclusive fotográfica, que consiste
porque lembrei que no continente, na maioria dos
em fornecer uma expressão acerca do real ao
casos, as academias de arte foram fundadas depois
retrato de um fragmento aplanado, enquanto se
de a fotografia ter sido amplamente experimentada.
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para se integrar com a mesma velocidade ao estudo
com seu apoio para o treinamento em padrões rígi-
da imagem nos ateliês de pintura e escultura.
dos da correta representação do real, alimentados
Como complemento a essa situação de descon-
por um neoclassicismo e romantismo que se preten-
certo acerca do que implica a apreensão do real,
dia aclimatar.
se soma o fato de que mais tarde aparece o cine-
Isso implicou o achatamento e a simplifica-
ma, integrando–se ao mesmo entendimento plano e
ção da dificílima apreensão do real que havia sido
fragmentado, mas agora em movimento, poucos anos
trabalhada por séculos nas academias históricas,
depois de seus primeiros passos na Europa.
e também, em consequência, a destruição do exercí-
Como consequência desse processo, não é de
cio filosófico e de observação em que a realidade
se estranhar que quando teve início a assimilação
se compreende inabarcável e inapreensível e, por
dos trabalhos vanguardistas na América Latina —
essa razão, sujeita a uma interpretação, através
quando, na Europa, através das imagens do cubismo
de códigos e símbolos como os do horizonte, da
e do surrealismo estava sendo entendida a ruptura
fuga, ou da estrutura geométrica, etc.
do tempo único e se desenvolvendo uma filosofia da
Pelo contrário, a fotografia chega com
simultaneidade — esse produto tenha sido acolhido
essa abstração resoluta no interior de um aparato
no novo mundo de maneira plana e frontal e dentro
construído a partir da lógica cartesiana, na qual
da lógica estrutural do tempo linear e inerte da
o mundo se ordena em um eixo matemático simétrico.
fotografia. Não era possível conceber no continente
A realidade que se observou então foi a da câmera,
a transcendência do tempo único refutada desde o
que faz um registro exclusivamente frontal e,
Impressionismo sem que se tivesse especulado sobre
além disso, fragmentado e compactado em um único
a instabilidade do real e quando, pelo contrário,
plano, no qual o horizonte se transforma em linha
os avanços da fotografia, que era trabalhada como
reta e finita, apagando desta maneira a noção da
o principal apoio do entendimento da imagem na
circularidade do mesmo, e da mesma forma a do
academia, afirmava a possibilidade de congelar o
tempo–espaço.
instante e, com ele, a imagem.
México, Brasil e Cuba tiveram a sorte
No século XX, a fotografia se transformou em
de ter fundado as primeiras academias da Améri-
texto que documenta e testemu
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daniel senise: cronoloGia crítica