PATERNIDADES SACRÍLEGAS: TESTAMENTOS E TESTEMUNHOS DA RUPTURA DO CELIBATO
FRENTE AO ULTRAMONTANISMO NA DIOCESE DE GOYAZ (1891 – 1907)
Wellington Coelho Moreira1
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Resumo
Dom Eduardo Duarte Silva, Bispo da Diocese de Goyaz de 1891 a 1907, foi o precursor do processo da
romanização da Igreja Católica em solo goiano. As visitas e atuações pastorais empreendidas por Dom
Eduardo tiveram por finalidade a reforma do modo de vida do clero, e, concomitantemente, do campo
religioso goiano. Este processo normatizador desencadeou inúmeros embates sociais e religiosos,
envolvendo padres e autoridades civis da época. Apesar de sua tentativa de reformular a vida clerical
nos Goyazes, inúmeros sacerdotes diretamente ligados a este bispo ou a funções significativas na
hierarquia católica, constituíram famílias e paternidades que revelam a quebra do celibato. Documentos
como a autobiografia deste bispo e as cartas pastorais por ele expedidas, além de alguns testamentos
de padres desta diocese, denotam a situação concubinária do clero goiano e uma religiosidade nada
ortodoxa. Dois pontos destacam-se nesta análise. Primeiramente a negação desta forma de conjugalidade por parte das autoridades católicas e, o reconhecimento e a aceitação deste modelo familiar pela
sociedade local. Simultaneamente, o silêncio da Igreja em relação a estas relações e paternidades
sacrílegas envolvendo padres da Diocese de Goiás atesta a fragilidade eclesial de se combater esta
prática ou ainda certa conveniência institucional.
Palavras-Chave: Ultramontanismo, conjugalidades e paternidades clericais, ruptura do celibato.
Com a transferência de Dom Cláudio José Ponce Leão para a Diocese de Porto Alegre/RS no início ano de 1890, Goyaz novamente se configura como sede episcopal vacante. Em junho
do mesmo ano é nomeado para este cargo Dom Joaquim Acoverde de Albuquerque, que renuncia logo
em seguida ao posto que lhe foi destinado. O báculo desta diocese foi confiado a Dom Eduardo Duarte
Silva, recém-nomeado bispo em Roma, a 08 de fevereiro de 1891, tomando posse deste prelado via
procuração, pelo então governador da diocese, o Cônego José Iria Xavier Serradourada. Sua chegada
à Cidade de Goyaz deu-se na data de 23 de setembro de 1891 (cf. SILVA, 2006, p. 314-320; SILVA,
2007, p. 15-22, 59-60). O período histórico abordado deseja analisar o governo da Diocese de Goyaz
sob a direção de Dom Eduardo (1891 a 1907), cujo prelado representa a implantação do modelo romanizador da Igreja neste sertão. Esta tentativa de reformulação eclesial visou principalmente à mudança
da vida moral e religiosa dos clérigos e conseqüentemente da população desta diocese. Isto não acon1
Mestrando em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
teceu sem embates. Em 1896, devido aos problemas criados pelos liberais que detinham o controle
político da região e pelas situações de incongruência de posicionamento religioso por parte de alguns
representantes locais que desafiaram a autoridade episcopal de Dom Eduardo, tomou-se a decisão de
transferir a sede da diocese para a cidade de Uberaba. Em 1907 cria-se a Diocese de Uberaba, sendo
Dom Eduardo Duarte Silva o seu primeiro bispo.
Dom Eduardo ao evocar sobre si a responsabilidade de romanizar esta Igreja particular, anseia dar-lhe substrato hierárquico e autonomia em relação aos poderes civis e liberais que interferem substancialmente em sua organização e erradicar de seu seio as influências oriundas da religiosidade popular, tendo por ensejo principal desta ação a interligação deste prelado à chefia direta do
Pontífice Romano. Porém, o que se observa no território dos Goyazes é uma Igreja marcada pela desvinculação das diretrizes tridentinas e desconexa de qualquer influência que possa derivar da Cúria
Romana. Constituem-se como fatores históricos deste desvínculo: os inúmeros períodos de vacâncias
episcopais, a vasta extensão do território goiano, uma Igreja determinada pela religiosidade popular e
um clero identificado com o modo de vida da população local.
Para Riolando Azzi a atuação da Igreja no sentido de instaurar no Brasil um catolicismo de cunho ultramontano ocorreu muito tardiamente, adquirindo vigor somente a partir de meados do
século XIX. Segundo este historiador da Igreja, os relatórios remetidos pela nunciatura apostólica no
Brasil à Santa Sé destacam criticamente a ignorância e a imoralidade do povo brasileiro, e, concomitantemente, do clero em relação à doutrina moral católica, pontuando incisivamente sobre as influências das idéias liberais no território brasileiro que se contrapõem fortemente às orientações do Primado
de Roma (AZZI, 1991, p. 226-231). Neste aspecto, é recorrente citar um extrato de uma das cartas
pastorais de Dom Eduardo dirigida ao clero, que após ter empreendido inúmeras visitas pastorais nas
várias localidades desta diocese, percebe a situação de abandono e de desconhecimento da doutrina
cristã pelo “pasto espiritual” goiano:
Temos percorrido a maior parte da Diocese, e podemos dizer, sentindo estalar-se-Nos o coração de dor: não se sabe a doutrina christã – non est scientia
Dei in terra. Não ha, caros Reverendos Cooperadores nossos, não ha na
maior parte das Parochias o conhecimento exacto, completo e tam necessario dos ensinamentos de Jesus Christo, das suas leis, dos seus conselhos,
de sua Egreja, de seus Sacramentos, de seu Sacerdocio; em suma dessa
doutrina unica, que se adapta a todas as capacidades, e contem documentos
de vida para todos os tempos e condições; desta doutrina na qual se encontram todos os principios de sociabilidade, todos os elementos de ordem, todas as condições de bem estar individual e social; doutrina que é freio de todos os vicios, remedio de todos os males [...] Para que dissimular, meus Reverendos Parachos e outros Sacerdotes; sejamos francos e convençamo-nos
de que não ha, como disse, na Diocese essa sciencia de Deus; em outros
termos, não se sabe a doutrina christã. (SILVA, 1892, p. 2-3)
De acordo com José Luiz de Castro, deve-se ter em mente que o Regime do Padroado sob o qual a Igreja foi subscrita no Brasil e, de modo particular em Goiás, durante o período colonial,
impediu que a Cúria Romana pudesse intervir nos assuntos eclesiásticos pertinentes a realidade eclesial dos Goyazes. Somam-se a isto, na opinião do mesmo autor, as dificuldades oriundas do exercício
prelatício em decorrência da grande extensividade territorial e do longo período de vacâncias episcopais que de certo modo impossibilitaram que a Igreja se implantasse institucionalmente de modo eficaz
nesta localidade. Goyaz só vem a conhecer o seu primeiro bispo, Dom Francisco de Azevedo, em
1824, que por sinal era cego desde 1821.
A extensão dessas dioceses era muito ampla, dando poucas condições a
seus prelados de exercerem suas obrigações pastorais. (...) Outro aspecto
importante a ser ressaltado são as longas vacâncias entre um bispo e outro.
O desinteresse da Coroa Portuguesa quanto à nomeação de um sucessor e
o retardamento dos bispos na corte, contribuíram para que uma diocese ficasse longos anos sem um bispo. (CASTRO, 2006, p. 28)
Esta situação histórica proporcionou a formação e o surgimento de uma religiosidade
popular totalmente aquém do que preceitua e determina os cânones aprovados pelo Concílio de Trento
(1545-1563). A eclesialidade católica se forma em território goiano sem o nexo direto da autoridade do
papa. Esta conjuntura eclesial incidiu circunstancialmente sobre a vivência do celibato pelos sacerdotes
desta diocese. Vários padres constituíram um relacionamento conjugal duradouro e estável, alguns
possuindo uma prole numerosa. Este modelo de Igreja composta por sacerdotes que constituíram famílias à margem da instituição a que pertencem representa uma afronta a normativos morais da Igreja. A
identificação do clero com o modo de vida da população constituiu-se como um grande desafio deste
processo romanizador. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707) ao se referirem ao
amancebamento de clérigos brasileiros classificam-no como um ato torpe e indigno de um ordenado. A
ruptura do celibato pelos clérigos é assim definida por este documento:
Considerando Nós quão indigna cousa é nos Clérigos o torpe estado do concubinato, pois sendo pessoas dedicadas a Deos, é maior nelles a obrigação
de serem puros, e castos, e de vida, e costumes mais reformados, para que
os fieis os não tenham por indignos do alto ministerio que tem, nem de sua
deshonesta vida resulte opprobrio ao estado Clerical, conformando-se com a
disposição dos Sagrados Canones e Concilio Tridentino, ordenamos, e mandamos, que se algum Clerigo Beneficado, em nosso Arcebispado, for convencido de estar amancebado com alguma mulher, pela primeira vez seja
admoestado em segredo, que se aparte da illicita conversação, e faça cessar
a fama, e escandalo. (VIDE, 2007, p.342)
Note-se que a primeira observação tange à questão da pureza e da castidade daqueles que devem zelar pela administração das coisas sagradas. O clérigo que vive em estado de concubinato é tido por uma pessoa indigna de exercer o ministério que lhe é confiado. Este deve ser advertido em segredo, sem publicidade alguma. Visa-se por esta norma a preservação da imagem da Igreja,
tencionando não maculá-la pela ação e humanidade de seus próprios pares. A admoestação por parte
da Igreja deve resultar no cessar do escândalo e da fama do concubinato, isto é, deve resultar no fim
de sua visibilidade e de seu reconhecimento público. Para isso se exige que o clérigo “lance fora em
termo breve” (IDEM, p. 338) a sua concubina. A Igreja, por sua vez, dificilmente e/ou quase nunca conseguiu impor seu ponto de vista. Sua tentativa de normatizar o clero e a população dificilmente objetivou-se. Tais normas não atingiram a erradicação das práticas concubinárias de sacerdotes e leigos no
cotidiano brasileiro.
O clero goiano não ficou imune a esta realidade. Ao contrário, ele acabou por identificar-se com o modo de vida da população local absorvendo costumes e valores que se atrelaram ao
seu estado de vida. Uma destas situações pode ser observada na autobiografia de Dom Eduardo, cujo
relato traz à tona o encontro de um representante ultramontano com este modelo de Igreja nada ortodoxa. Alguns sacerdotes, cujos nomes não são citados na maioria dos casos, são descritos em sua
auto-narrativa como exemplos de contradição frente ao processo romanizador que a Igreja tenta implantar em Goyaz através de sua pessoa. Estando a deslocar-se para a Cidade de Goyaz, em uma
parada para descanso e realização de uma visita pastoral, este bispo depara-se com uma situação
concubinária desconcertante e única em seu trajeto de viagem. Numa destas passagens, saindo de
Pouso Alto e hospedando-se em Bela Vista, eis que ocorre na casa de um coronel daquela localidade,
o encontro com uma realidade que se opõe ao celibato apregoado pelo magistrado da Igreja. O que
salta aos olhos é a tamanha naturalidade manifestada pelo padre local sobre o seu estado de concubinato. Este oferece como gesto de acolhida ao recém-vindo bispo o dispor de sua própria prole nos
serviços comensais oferecido à ilustre convidado. Assim relata Dom Eduardo este fato “incomum”:
Eu disse a um dos padres que se informasse de quem era aquela casa e que
pessoal era o que nos estava servindo.
Soube então que era o palacete do coronel Vicentão e que aquelas moças
eram as filhas do vigário. Mandei que o chamassem, e, vindo ele, declarei-lhe
que, se ali quisesse ficar com as filhas, que ficasse, indo eu para qualquer
outra casa; se não quisesse, que se fosse para a sua casa com a sua infeliz
prole. Muito magoado e chorando foi ter com um dos missionários e assim
queixou-se: “Que mal fiz eu a este bispo para separar-me assim de minha
mulher e de minhas filhas”. (SILVA, 2007, p. 85-86)
Atônico diante de tal fato exclama Dom Eduardo: “Fiquei embasbacado à vista de tanta
simplicidade e ignorância, para não usar outro termo” (IDEM, p. 86). Este padre simboliza a mesclagem
entre sacerdócio e vivência conjugal, o encontro ímpar de modelos aparentemente díspares, mas congruentes neste sertão. Há um dado circunstancialmente interessante neste episódio. Esta conjugalidade clerical, gestada no sertão goiano oitencentista, é de caráter público e aparentemente é aceita pela
comunidade local. Basta notar que o fato ocorre na casa de um representante civil conhecido na localidade. Como se serve um banquete é de supor que há outros convidados para a recepção de Dom Eduardo. Mesmo com a presença efetiva de um bispo e de outras pessoas daquela região este clérigo
não escamoteia seu hábito de vida. Aliás, supõe-se pelo texto que o ato da revelação pública do estado
de concubinato clerical à autoridade eclesiástica imediata partiu do próprio sacerdote local, ao colocar à
disposição do bispo as suas próprias filhas para servi-lo no banquete que lhe foi oferecido. Diante da
reprovação a ele destinada, devido à ruptura de seu celibato, o padre parece não compreender o motivo desta objurgatória e se retira condoído pelo modo como tal gesto foi interpretado, recusado e pelo
ríspido direcionamento coercivo dado pelo bispo Dom Eduardo.
Este episódio revela a constituição de uma conjugalidade e de uma paternidade sacerdotal pela imbricação de elementos familiares culturais e tradicionais vinculados ao exercício ministerial. Göran Therborn, ao observar as instituições familiares presentes no mundo, pontua a existência de
uma padronização dos costumes familiares “não apenas pelos sistemas normativos mais amplos; elas
também incluem variantes introduzidas pelo costume local, que termina por incorporá-las à inércia da
configuração familiar” (THERBORN, 2006, p. 354). Nas palavras de Alessandra da Silva Silveira, ela é
“o amor possível”, “aquela que as pessoas puderam viver, tendo em vista as limitações que aquele
mundo lhes impunha” (SILVEIRA, 2005, p. 207). De certo modo, a formação deste modelo familiar pelos padres deste prelado constitui-se como uma transgressão para a Igreja, como uma ruptura de seus
normativos morais e, simultaneamente, como uma relação culturalmente vivida pelos clérigos tendo a
aceitação e o reconhecimento da população dos Goyazes. Para o historiador Danilo Rabelo,
Os comportamentos que não se enquadram nos padrões disciplinares vigentes são desqualificados como “desordem”, agentes do caos que desestabilizam a sociedade. Não se tratam de desordens, mas sim da pluralidade da
existência social, consubstanciada na existência de outras ordens, outros saberes, que são demarcados, reprimidos, mas não totalmente eliminados.
(RABELO, 1997, p. 193).
O processo de romanização da Igreja pressupõe que o sentido da unidade e da universalidade eclesial perpassa pela uniformização tanto da estrutura quanto da hierarquia católica ao Primado de Roma. A mesclagem entre o sacerdócio e conjugalidades representa um enfrentamento, uma
ameaça à reforma dos costumes e da oficialidade proposta pela Igreja Católica em Goiás.
O celibato rompido
Os testamentos de padres trazem à tona, além da oficialização jurídica de seus filhos,
a revelação da vida privada do indivíduo. Revelam ainda uma profunda imbricação entre vida sacerdotal e constituição familiar. Este modo de vida familiar é aceito pela sociedade em que vive o sacerdote.
Os testamentos apenas atestam tardia e legalmente esta forma de vivência familiar presente na sociedade goiana. Eni de Mesquita Samara, ao trabalhar a relação familiar paulistana no século XIX, sob o
prisma das relações de poder que envolvem mulheres, afirma contundentemente que a conduta do
clero não representa nenhum constrangimento a pessoa ou ao cargo que ocupa o sacerdote, dada a
freqüência relações concubinárias e da prole oriunda destes envolvimentos. Afirma ainda esta historiadora que os testamentos atestam “a existência reconhecida de filhos naturais, frutos destas uniões”,
sendo este ato legal freqüentemente utilizado pelos padres que requeriam a legitimação de seus filhos
(SAMARA, 1989, p. 128). Os testamentos descrevem ainda todo um roteiro que deverá ser obedecido
pelo testamenteiro que assumirá post-mortem a responsabilidade sobre o ritual fúnebre até a destinação dos bens do moribundo. Deve-se focalizar neste tipo de fonte as minúcias, os detalhes, os sentimentos inseridos nestes documentos que revelam dados circunstanciais desta modalidade familiar,
típica da região dos Goyazes, conforme sinaliza Carlo Ginzburg (2003, p. 143-179).
No governo de Dom Eduardo, presencia-se na Cidade e na Diocese de Goyaz paternidades sacrílegas reveladas pelos testamentos de sacerdotes goianos. Os clérigos de um modo geral
usufruíram desta razão jurídica no intuito de legitimar seus filhos, garantindo a eles o direito de uso do
sobrenome paterno e, concomitantemente, da transmissão da herança. Alguns sacerdotes que vivem
em estado de concubinato ou que assumiram a paternidade de seus filhos são exímios cooperadores
da Diocese de Goiás oitencentista, chegando estes a ocupar postos de grande importância na hierarquia católica e/ou civil. Pode-se supor que estes padres, pela sua graduação hierárquica, possuem
certo conhecimento das leis e da doutrina da Igreja. No entanto, a vivência do estado sacerdotal e o
conhecimento de regras e normativos não implica necessariamente na observância total destes preceitos definidos pela Igreja Católica. Ademais, alguns testamentos deixados por eclesiásticos goianos
revelam a dificuldade de membros da Igreja de manterem-se obedientes a certas exigências, princi-
palmente quanto ao quesito celibato. Certo é que nem todos os padres submetiam-se ao celibato exigido pelo Concílio Tridentino.
O padre José Iria Xavier Serradourada assumiu, via procuração, o governo do bispado
de Goyaz interinamente a pedido de Dom Eduardo Duarte Silva até a sua posse. Durante muito tempo
este clérigo foi o vigário geral do bispado, assumindo mais tarde a direção da Igreja goiana após a
transferência da sede diocesana para a cidade de Uberaba. Este padre era um membro da Igreja que
tinha trâmite direto com o seu bispo. Este dado é confirmado por Dom Eduardo (SILVA, 2007, p. 87,
143) e encontra menção nos escritos do Cônego Trindade (SILVA, 2006, p. 347). Em seu testamento o
padre José Iria faz assim a sua auto-descrição:
Declaro que sou Catholico Apostólico e Romano, Natural d’esta Cidade, filho
legitimo de Bazilio Martins Braga Serradourada e sua mulher Dona Anna Maria Violante Xavier, já falecidos, e que sou Presbítero Secular da Ordem de
São Pedro, Vigário Collado da Freguesia de Santa Anna d’esta Capital, Geral
do Bispado no Estado, e presentemente governador do Bispado n’este mesmo Estado. (Testamento-Cerrado, 1898)
O seu testamento traz à tona a revelação da ruptura de seu celibato, sugestionado pela inscrição “por fraqueza humana”. Apesar de dizer professar viver e morrer na fé católica, diga-se na
fé celibatária, Pe. José Iria assume ser pai de dois filhos com duas mulheres diferentes. Ambos os filhos residem na Cidade de Goiás próximo ao seu genitor.
Declaro que por fraqueza humana tive uma filha de nome Benedicta, com
Maria Joaquina da Rocha e um filho de nome Benedicto, com Norberta da
Silveira Borges, ambos solteiros; cujos meus filhos existem vivos n’esta Capital, estimando-me e respeitando-me com todo o affecto e carinho; e como
não os tivesse ainda sido reconhecidos, os reconheço por meus filhos por
meio d’este testamento e de conformidade com as leis que regem esta matéria. (IDEM)
Um dos cernes centrais deste testamento é o reconhecimento desta paternidade por
este instrumento legal, uma vez que anteriormente isto não havia sido feito. Revela-se também a existência de uma relação próxima entre o padre José Iria e seus filhos sacrílegos: “estimando-me e respeitando-me com todo o affecto e carinho”. Embora esta relação não fosse reconhecida oficialmente pela
Igreja ela é aceita e admitida pela sociedade dos goyazes, pois, o sacerdote-pai convive cotidianamente próximo de sua prole. Ambos, pai e filhos, vivem na capital, na sede do bispado. Será que os bispos
que instalaram-se neste sertão não tinham o real conhecimento da notoriedade destas relações envolvendo padres ou se esquivaram do compromisso e do cumprimento das diretrizes eclesiásticas? Este
silêncio significa em parte conivência em seus pares evitando a mácula pública e oficial do catolicismo
ou atesta a fragilidade da Igreja em debelar-se? Fato é que o padre citado é um emitente eclesiástico,
pois ocupa um cargo de responsabilidade delegada pelo bispo.
Outro testamento, do padre Antônio Pereira Ramos Jubé, padre colado da Paróquia de
Nossa Senhora do Pilar de Ouro Fino, revela a existência de um modelo familiar heterodoxo. Apesar de
seu estado sacerdotal exigir o cumprimento do celibato, o padre Ramos Jubé teve nada menos que
seis filhos, sendo quatro mulheres e dois homens, com três genitoras diferentes:
Declaro que sou filho legitimo do Tenente Coronel José Antonio Ramos Jubé
e D. Urçula Pereira Valle: Qué tenho seis filhos; sendo uma Eufemia Marcellina Ramos Jubé tida com Maria Eufemia de Mello; quatro que são: Januaria
Pereira Ramos Jubé, Urçula Pereira Ramos Jubé, Antonio Pereira Ramos
Jubé, e Joaquim Rufino Ramos Jubé, tidos com Joanna Cordeira de
Sant’Anna, e uma Benedicta Pereira Ramos Jubé menor de três annos, havida com Maria Carolina da Conceição, que é natural da Cidade da Uberaba
(Província de Minas). (Testamento-Cerrado, 1896)
É possível ainda observar pelo cruzamento com outros documentos eclesiásticos que os
filhos não se ausentaram do convívio de seu pai. Para a sociedade da época, ao que parece, não era
segredo a existência de filhos de padres, entretanto ao serem batizados não recebiam o nome do pai e,
por isso, muitos foram considerados filhos bastardos. Todavia é possível suscitar hipóteses acerca do
cotidiano dos filhos desse padre na cidade de Ouro fino ou na Capital de Goyaz. Este esteve sempre
presente em momentos importantes como, por exemplo, na celebração do batismo ou de casamento.
Na Matriz de N. S. do Pilar de Ouro fino, o pai realizou os batismos de Januaria Pereira Ramos Jubé,
no dia 26 de março de 1850 (Livro de Batizados, 1850, n. 1, fl. 16), de Ursula, no dia 15 de fevereiro de
1852 (IDEM, 1852, n. 1, fl. 22, n. 120), de Joaquim, no dia 31 de outubro de 1855 (IDEM, 1855, n. 1, fl.
38, n. 118), Eufemia, no dia 03 de abril de 1881 (IDEM, 1855, n. 14, fl. 19), e o de Benedicta, no dia 24
de janeiro de 1883 (IDEM, 1883, n. 2, fl.7, n. 46). O outro filho do Pe. Ramos Jubé, Antonio, foi batizado
pelo seu companheiro de sacerdócio, o Sr. Joaquim Vicente de Azevedo, no mês de outubro de 1856,
sendo o celebrante padrinho juntamente com Ana Cordeiro de Sant’Ana (IDEM, 1856, n. 1, fl. 45). O
escrivão da capital de Goyaz, Joaquim Rufino Ramos Jubé, sendo filho do Pe. Ramos Jubé, renuncia
ao exercício de sua função no cartório em que atua, nos procedimentos referentes ao cumprimento do
testamento de seu pai. Este dado se encontra na primeira folha do documento manuscrito (Testamento-Cerrado, 1896). Com toda esta exposição pública e proximidade dos filhos não é possível que não
haja por parte da população conhecimento da paternidade deste sacerdote.
Um terceiro testamento, do Cônego José Olynto da Silva, pároco colado na Freguesia
de Piracanjuba, datado em 28/06/1895, afirma ter tido três filhos, duas mulheres e um homem, com a
falecida Rita Gonçalves Meirelhes.
Declaro que nunca fui casado e que não tenho herdeiros necessários, descendentes ou ascendentes, por isso posso livremente dispor de todos os
meus bens. Declaro que por fragilidade humana tive e tenho vivos três filhos
com Rita Gonçalves Meireles, solteira, já fallecida, os quaes são: Maria Olyntha de Almeida, casada com Belizário Alexandre de Almeida, Anna Olyntha
Brandão, casada com José Augusto da Silva Brandão, e José Olyntho da Silva, menor, actualmente alunno do Seminário Episcopal d’este Estado. (Testamento, 1895)
Como afirma o testamento do Pe. José Olynto, o seu filho menor, José Olynto da Silva,
além de ter o mesmo nome do pai, está seguindo a carreira eclesiástica no seminário episcopal deste
Estado. Este Cônego afirma ter feito o seu testamento de modo livre e sem constrangimento algum:
“inscrevo de minha livre vontade e sem constrangimento ou induzimento de pessoa alguma” (IDEM).
Ao afirmar que a sua prole é oriunda de sua “fragilidade humana”, Cônego Olynto apenas tem por intuito facilitar a legitimação de seus filhos, e não, demonstrar arrependimento pelo seu ato/vivência conjugal. É possível deduzir que a paternidade deste padre não é considerada por ele como causa de ofensa ou infâmia ao seu estado sacerdotal. Neste aspecto, Maria da Conceição Silva assevera que a formulação testamentária tem por finalidade dar direcionamento à herança e reconhecer a gravidade das
faltas contra o celibato eclesiástico. Basta
notar que esses eclesiásticos usufruíram da razão jurídica para fazer a legitimação de paternidade dos filhos em testamento, que permanecera lacrado.
Certamente, os padres sabiam que o documento (testamento) se tornaria público após a confirmação do óbito do testador. Desse modo, o fato de os filhos serem frutos de transgressão ao celibato não causaria nenhum constrangimento ao exercício religioso do pai. (SILVA, 2008, p. 01)
Estes testamentos atestam a nulidade da vivência do celibato pelos sacerdotes da Diocese de Goiás durante o governo de Dom Eduardo Duarte Silva. Ida Lewcowicz, ao indagar sobre a
fragilidade do celibato, certifica que “que o clero não permaneceu imune ao ambiente social que o rodeava”, sendo a vida casta o seu constante problema (LEWCOWICZ, 1987, p. 58). Não obstante, a
transgressão ao celibato é assumida pela vivência e pela exposição pública da conjugalidade, confirmada oficialmente via testamento, revelando a formação de uma verdadeira família constituída por
princípios religiosos heterodoxos. A Igreja não consegue pelo processo de romanização impor o celibato, muito menos desassociar o clero dos valores que norteiam a sociedade dos Goyazes.
Considerações Finais
O ultramontanismo, ou, o projeto de reformulação da vida eclesial da Diocese de Goyaz acerca da vivência moral dos padres e da população neste território não alcançou o êxito planejado. Os testamentos, as cartas pastorais e a autobiografia de Dom Eduardo Duarte Silva deixam transparecer a formação de famílias autênticas pelos próprios eclesiásticos. Porém, estas não são reconhecidas pela instituição católica uma vez que simbolizam a ruptura com os preceitos de castidade e de
obediência à autoridade religiosa constituída.
O sertão de Goiás favorece, por seu modo de vida social e religioso, o surgimento e o
reconhecimento de famílias sacrílegas. Estas conjugalidades são vistas pela Igreja como sinônimo de
desobediência e escândalo. No entanto, para a população local estas famílias, embora não sejam geradas pelo sacramento do matrimônio, são aceitas e reconhecidas como verdadeiras e legítimas, assim
como a prole que dela resulta.
O silêncio da Igreja em relação às famílias e paternidades constituídas por padres goianos revelam a incapacidade desta instituição de combater e extirpar de seu meio esta prática. A humanidade dos clérigos acaba por prevalecer sobre os normativos e preceitos morais, ainda que a margem da oficialidade do matrimônio. Por outro lado, a permanência destes sacerdotes na hierarquia da
Igreja, em proximidade da família que constituíram, denota certa conveniência das autoridades eclesiásticas em relação aos seus pares. Não é possível não se tenha conhecimento de relevante situação
tão comum e corriqueira como neste período.
O concubinato clerical pode ser definido como a família negada pelas autoridades e
normativos eclesiásticos, por outro lado, confessada e assumida pelos sacerdotes que constituem à
margem de sua própria instituição um matrimônio marginal. A aprovação desta conjugalidade é circunscrita por aqueles que vivem um catolicismo tolerante e culturalmente embrenhado de valores universais e regionais. Esta forma de concubinato nada mais é do que uma alternativa produzida pela
própria Igreja, que ao proibir aos padres o acesso ao matrimônio, concede a eles o “direito” e o “livrearbítrio” de construir um modelo de conjugalidade singular.
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paternidades sacrílegas: testamentos e testemunhos da