SÃO JOÃO CLÍMACO
A ESCADA SANTA
SÃO JOÃO CLÍMACO
A ESCADA SANTA
PRIMEIRO DEGRAU
Da renuncia ao mundo.
SEGUNDO DEGRAU
Da necessidade de se despojar das afeições e dos cuidados com
as coisas do mundo.
TERCEIRO DEGRAU
Da fuga do mundo.
QUARTO DEGRAU
Da bem-aventurada e sempre louvável Obediência.
QUINTO DEGRAU
Da verdadeira e sincera penitência.
SEXTO DEGRAU
Do pensamento da morte
SÉTIMO DEGRAU
Da tristeza que produz a alegria
OITAVO DEGRAU
Da Mansidão, que triunfa sobre a cólera.
NONO DEGRAU
Do Ressentimento.
DÉCIMO DEGRAU
Da Maledicência.
DÉCIMO PRIMEIRO DEGRAU
Do falatório e do silêncio.
OBSERVAÇÕES INICIAIS
São João Clímaco viveu entre os anos de 580 e 650 na região
do Sinai. Até os 35 anos viveu como cenobita, mas com a morte
de seu Pai espiritual decidiu se tornar anacoreta, retirandose para o deserto, onde viveu até os 70 anos. Nos últimos
quatro anos de sua vida dedicou-se a escrever "A Escada
Santa", onde resume em trinta degraus o caminho espiritual
que deveriam seguir os monges de sua época. O texto a seguir
foi traduzido da versão francesa, e deve ser lido com a
consciência
de
que
se
trata
de
uma
obra
dirigida
eminentemente a pessoas que seguem a vida monástica, e cuja
aplicação aos dias de hoje é quase inteiramente impossível.
Mas a "Escada Santa" permanece sendo uma referência para os
que desejam se aprofundar no caminho da oração, e aprender um
pouco sobre as armadilhas com as quais os demônios infestam a
alma dos que almejam o Reino dos Céus.
PRIMEIRO DEGRAU
Da renuncia ao mundo.
1. Antes de falar aqui dos Servidores de Deus, convém começar
meu discurso por seu nome santo e adorável. Assim é que Deus,
nosso rei supremo, dotou de livre arbítrio todas as criaturas
racionais, às quais Ele concedeu ser e existir; entretanto,
devemos lembrar que elas são diferentes umas das outras. Com
efeito, algumas mereceram ser amigas de Deus para todo o
sempre; outras são bons e fiéis servidores; outras não passam
de maus servidores; outras se separaram inteiramente Dele; e
outras, enfim, tornaram-se inimigos declarados e, embora nada
possam contra Ele, não deixam de Lhe fazer uma guerra
sacrílega.
2. Ora, meu Pai, malgrado minhas poucas luzes, eu penso que
os amigos de Deus são as inteligências sublimes e espirituais
que cercam seu trono eterno; que seus verdadeiros e fiéis
amigos são aqueles que, com grande ardor e perfeita exatidão,
cumprem sua santa Vontade em todas as coisas; que seus
servidores inúteis são estas pessoas que, tendo sido
purificadas e santificadas pela graça do batismo, não
guardaram a promessa que lhe haviam feito, e violaram
indignamente a augusta aliança que haviam contratado com
Deus; que os que se separaram Dele, ou que caminham longe
Dele, são ou os heréticos que corromperam a fé, ou os infiéis
que jamais a tiveram; enfim, que seus inimigos são pessoas
que não apenas se subtraíram à sua lei transgredindo-a com
insolência, como ainda suscitam e exercem cruéis perseguições
contra os que servem a Deus com amor e observam a santa lei
com inviolável fidelidade.
3. Mas como seriam precisos muitos livros para dizer tudo o
que há para ser dito sobre estas diferentes espécies de
criaturas, e que um homem ignorante como eu seria incapaz de
tamanha empreita, creio ser melhor que, para obedecer aos
verdadeiros servidores de Deus, cuja amável piedade é uma
violência para mim e cujo zelo e boa vontade me pressionam,
eu me limite e me detenha nas coisas que podem servir de
edificação às suas almas; que, por incapaz que eu me
considere, eu tome a penas em minhas mãos e que, molhando-a
com
simplicidade
na
humilde
submissão
a
seus
votos
declarados,
eu
possa,
apesar
de
minha
impotência
e
incapacidade, esperar e receber de minha obediência algumas
graças e algumas luzes, a fim de que, traçando sobre o papel
de admirável brancura as regras de uma vida santa e pura,
possa também escrever em seus corações bem preparados e
santamente purificados como quem escreve sobre misteriosos
cadernos vivos. É desta maneira e com estas disposições que
irei começar.
4. Deus é a vida e a salvação de todas as criaturas racionais
que Ele tirou do nada, quer elas creiam Nele, quer neguem sua
Existência; quer sejam justas ou desonestas; quer pratiquem a
piedade ou se entreguem à irreligiosidade; quer tenham se
libertado de suas paixões ou que sejam delas vis escravos;
quer tenham entrado para uma comunidade religiosa ou que
vivam no século; quer possuam a ciência ou vivam nas trevas
da ignorância; quer desfrutem de boa saúde ou definhem sobre
um leito de sofrimentos; quer estejam na flor da idade ou
tenham chegado à velhice última. Todas essas pessoas estão
destinadas à graça da salvação e dela poderão usufruir, assim
como usufruem da efusão da luz, da vista e das benesses do
céu, da variedade das estações e de todas as demais coisas
que existem e que foram feitas para elas; pois, diante de
Deus “não existe favoritismo[1]”.
5. Ora, chamo de “ímpio” aquele que, embora de natureza
mortal e tendo recebido a inteligência, evita e foge de Deus,
que apesar de tudo é sua vida; que não se ocupa de seu
Criador, como se ele não existisse. Insensato, ele diz em seu
coração: “Não existe Deus algum![2]”.
6. Chamo de “desonesto” aquele que corrompe e obscurece a lei
de Deus, interpretando conforme seu próprio espírito, e que,
mesmo seguindo sua opinião errada e às vezes até herética,
prefere sua própria autoridade àquela de Deus, às suas luzes
a as do Espírito Santo.
7. Chamo de “cristão” o fiel que, na medida de suas forças,
coloca em suas palavras, suas ações e toda sua conduta
caminhar sob os estandartes de Jesus Cristo, e que, por meio
de uma fé pura, sincera e ardente, por uma vida santa e uma
inflamada caridade, devota-se inteiramente à Santíssima
Trindade.
8. Chamo de “amigo de Deus” aquele que, de acordo com as
regras de justiça e de temperança, se utiliza das coisas que
recebeu de Deus na ordem da natureza, e que não negligencia
nenhuma boa obra que possa fazer.
9. Chamo de “homem casto” aquele que, em meio às tentações,
armadilhas e agitações, toma precauções tão sábias, que segue
em sua conduta as normas daqueles que estão fora de perigo.
10. Chamo de “monge” aquele que, num corpo terrestre e
corrupto, se esforça, como se estivesse livre deste corpo,
por imitar o estado e a vida das inteligências celestes.
11. Chamo de “monge” ao homem que, em todos os tempos, em
todo lugar e em todas as coisas, segue exatamente a lei do
Senhor e se conforma perfeitamente com sua santa vontade.
12. Chamo de “monge” ao homem que, violentando sua natureza,
não cessa de vigiar seus sentidos e doma seus apetites
desregrados.
13. Chamo de “monge” ao homem que conserva seu corpo com
santidade, sua língua com pureza, e que orna seu espírito com
as luzes do Espírito Santo.
14. Chamo de “monge” ao homem que, dia e noite, detesta e
chora seus pecados, e não perde de vista o salutar pensamento
da morte.
15. E por “renúncia ao mundo” eu entendo a aversão a tudo o
que os mundanos amam e louvam, ao abandono voluntário dos
bens caducos e perecíveis, no desejo e na esperança de obter
e de possuir os bens sobrenaturais.
16. Três motivos principais levam a fazer generosa e
prontamente o sacrifício das comodidades e dos prazeres da
vida presente: um violento desejo de merecer o reino dos
céus; um amargo e sincero arrependimento das enormes e
numerosas faltas cometidas; um ardente amor a Deus. Ora,
podemos assegurar que uma pessoa que tenha renunciado ao
mundo sem ter algum dos três motivos de que falamos o fez sem
prudência e sem reflexão; mas Deus, que é a própria Bondade e
o soberano remunerador dos que agem e combatem por Sua
glória, presta menos atenção aos motivos que primeiro nos
levaram a entrar na carreira da virtude do que ao resultado a
que chegamos afinal.
17. Assim, que aquele que entra para a vida religiosa com a
intenção de chorar e gemer por seus pecados imite as pessoas
que saem das cidades para ir a sentar-se e chorar sobre o
túmulo de seus próximos. Que ele não deixe jamais secar a
fonte de suas lágrimas amargas, nem fraquejar o fervor de seu
arrependimento, e que arranque sem cessar de seu coração
despedaçado longos gemidos e profundos suspiros, a fim de
merecer ver a Jesus Cristo vir a ele para, desde o alto,
aliviar da funesta pedra do endurecimento seu coração e
escutar a este divino Salvador ordenar aos anjos que o
libertem das amarras que o mantinham sob o jugo de Satanás;
para que, liberto das perturbações e dos reproches de uma
consciência justamente alarmada, ele alcance esta paz
preciosa que traz a verdadeira felicidade. Ora, se ele agir
de outra forma, que vantagem extrairá de sua renúncia ao
mundo?
18. Mas lembremos aqui que, se realmente quisermos sair do
Egito e nos livrarmos da servidão ao Faraó, precisaremos,
assim como o povo judeu, de um Moisés que seja nosso mediador
diante de Deus, que estenda com fervor as mãos suplicantes
para o céu enquanto estivermos em combate, para conseguir
para nós as forças e a coragem necessárias, e para nos
conduzir de tal modo que possamos atravessar com sucesso o
mar Vermelho de nossos pecados, e colocar em fuga ao Amalec
de nossas paixões tirânicas[3]. É apenas por uma deplorável e
funesta ilusão que alguns, cheios de confiança em sua
próprias luzes, acreditam poder dispensar um condutor para
lhes mostrar o caminho da vida espiritual e guiá-los por ele.
19. Os filhos de Jacó tiveram a Moisés para fazê-los sair da
terra do Egito; a família de Lot teve um anjo para sair de
Gomorra. Os que fugiram do Egito representam os pecadores
que, para curar suas almas e purifica-las dos pecados,
necessitam dos cuidados e das luzes dos médicos espirituais.
Os que fugiram de Sodoma são a imagem das pessoas que desejam
se ver livres das tendências de seus corpos miseráveis; é por
isso que elas precisam de um anjo para socorrê-las, ou ao
menos de um homem que, por assim dizer, não seja inferior a
um anjo; pois, pela grandeza e a corrupção das chagas que
possuem, necessitam de um cirurgião e um médico que sejam
dotados de uma ciência e uma experiência pouco comuns.
20. Mas certamente só devemos tomar como testemunhos aqueles
que, possuindo um corpo de pecado, decidiram-se por subir aos
céus e se obrigaram às maiores violências para consigo mesmos
e
aos
maiores
esforços,
devotando-se
generosamente
à
mortificação mais austera e aos trabalhos mais difíceis,
sobretudo no começo de sua conversão, até que o amor pelos
prazeres a que estavam acostumados, que a preguiça na qual
esmoreciam e que a insensibilidade de seus corações em
relação à virtude se transformaram, por meio de uma
penitência proporcional, num ardente amor por Deus e pelas
boas obras, e uma perfeita santidade.
21. Sim, repito, eles tiveram que suportar muitos trabalhos,
engolir muitas aflições, principalmente aqueles que tiveram a
infelicidade de ter vivido sem jamais pensar em sua salvação,
se quisessem que seu coração, depois de se assemelhar aos dos
cães que só pensam em comer e ganir, possa atingir a
simplicidade, a doçura, a paciência, o zelo, o fervor, a
temperança, a pureza e o amor pela salvação eterna. Porém,
por mais que sejamos dependentes de nossas tendências, por
mais graves que sejam as enfermidades de nossas almas, não
percamos a coragem; ao contrário, coloquemos nossa confiança
em Deus, plena e inteiramente. Assim, mesmo quando nos
sintamos
fracos,
sustentados
pela
firmeza
de
uma
fé
inquebrantável, apresentemo-nos diante de Cristo, e, como
grande simplicidade e profunda humildade, exponhamos a ele
nossa fraqueza e nossas misérias, o abatimento de nossas
almas e de nossos corpos; e, por indignos que sejamos, ele
nos estenderá a mão com bondade, e nos tomará sob sua
poderosa proteção com terna caridade.
22. Que todos os que querem entrar para esta carreira que é
bela, mas incômoda, que é rude e estreita, mas adoçada e
alargada pela graça de Deus, precipitem-se com coragem no
meio
das
chamas
das
mortificações
e
dos
trabalhos
espirituais, se for o amor de Deus que os inflama e anima.
Mas que cada um experimente a si mesmo previamente, e somente
depois coma o pão da vida religiosa com suas alfaces amargas,
e beba esta bebida misturada com suas lágrimas; e que ele
tome cuidado para que seu engajamento na milícia santa não se
torne sua condenação. É fácil ver as razões pelas quais nem
todos os batizados alcançam a salvação; não direi mais nada.
23. Querer servir a Deus séria e eficazmente por maio da vida
religiosa equivale a dizer adeus a tudo, a desprezar tudo,
rejeitar tudo e a tudo pisotear. Este é o único fundamento
sólido do edifício espiritual. E este fundamento não será
sólido senão na medida em que o edifício que se erguer acima
dele for sustentado por três colunas: a inocência, a
mortificação e a temperança. É pela prática destas três
virtudes que devem começar aqueles que pretendem se tornar
crianças em Cristo, pois as crianças serão seus modelos:
nelas não vemos nem hipocrisia, nem malícia, nem duplicidade;
elas não se atiram sobre os alimentos com avidez insaciável;
em seus corpos inocentes a cupidez não se faz sentir com seus
ardores culposos; é apenas quando crescem em idade e já não
moderam o comer e o beber, que ficam sujeitas aos movimentos
desregrados do corpo.
24. Um atleta que entra na arena sem força e sem coragem
atrai o desprezo e a aversão dos espectadores e se expõe a
uma derrota iminente; todos consideram que sua perda é certa.
É-nos, portanto, importantíssimo e necessário começar nossa
carreira religiosa com coragem, zelo e fervor, mesmo que
depois de um tempo relaxemos um pouco. Com efeito, nossa
alma, que durante um tempo se viu cheia de coragem e de
ardor, e que se vê agora débil e languescente, encontra nesta
comparação um verdadeiro aguilhão a excitá-la. É assim que
muitos se reanimaram e reaqueceram-se na piedade.
25. Mas todas as vezes que uma alma falta contra si mesma e
percebe que já não possui o santo fervor da devoção, ela deve
se apressar em buscar a miserável causa disto, e então fazer
todos os esforços para destruí-la; ela deve estar totalmente
convencida de que o meio de restabelecer o fervor é fazê-la
sair pela porta pela qual entrou, expulsando-a.
26. Parece-me que podemos comparar o homem que só obedece
pelo temor aos perfumes que queimamos: primeiro eles espalham
um odor agradável, mas depois só resta uma fumaça fatigante.
Aquele que se submete por motivo de recompensa, podemos
compará-lo à roda do moinho, que só gira de uma maneira. Mas
os que, por afeição e por amor a Deus, abandonam o mundo para
abraçar os estreitos caminhos da vida religiosa se veem logo
abrasados pelo sagrado fogo da caridade; e, assim como o
furor e a atividade do fogo natural aumentam na medida em que
ele penetra na floresta em que se iniciou, também a chama do
amor divino se estende nos seus corações na mesma medida,
produzindo um incêndio feliz.
27. Mas prestem atenção, porque são três os tipos de
trabalhadores que erguem o edifício espiritual de sua
salvação: uns trabalham colocando tijolos, depois de terem
usado pedras nas fundações; outros erguem colunas sobre a
terra; e outros enfim, vendo-se no local onde devem
trabalhar, começam a correr com espantoso ímpeto e, uma vez
aquecidos, já não sentem a si mesmos nem são mais donos de
si. Quem tiver inteligência entenda este discurso alegórico.
28. Ora, como é Deus nosso rei supremo, que nos chama a seu
serviço, corramos com todas as nossas forças para atendermos
ao seu apelo, de medo que, tendo pouco tempo de vida, não nos
encontremos, na hora derradeira, miseráveis e privados dos
méritos das boas obras; e que não pereçamos nos horrores da
fome. Semelhantes aos soldados que se estudam para se tornar
agradáveis ao seu general, não negligenciemos nada que possa
nos tornar agradáveis a Deus; pois ele nos pede que, depois
de nos enrolarmos em seus estandartes, o sirvamos com fervor
e fidelidade.
29. Tenho vergonha de dizer, mas temamos ao menos o Senhor
como tememos a certos animais; já vi bandidos sobre quem o
temor a Deus não tinha nenhum poder, mas que, tendo partido a
cometer roubos se detiveram e voltaram de mãos vazias sem
consumar o crime, apenas por terem ouvido latir os cães no
local para onde os conduzia sua desonestidade. Assim, aquilo
que o temor a Deus não pode fazer por eles, o medo dos cães
os obrigou.
30. Amemos a Deus do mesmo modo como costumamos gostar de
nossos amigos: já conheci a muitos que, tendo ofendido ao
Criador não experimentaram nenhum desconforto, mas que, tendo
fatigado seus amigos ficaram desolados, empregaram mil
maneiras e mil artimanhas para expressar seu arrependimento,
não temendo nem humilhações nem sacrifícios para acalmá-los,
e, seja por si mesmos, seja por amigos comuns, ofereceram
grandes e penosas satisfações para obter a reconciliação,
acrescentando a todos estes meios ricos presentes, a fim de
poderem voltar à antiga amizade.
31. Não é senão com muitas penas e esforços que podemos
praticar a virtude no começo de nossa conversão; mas logo que
fazemos algum progresso avançamos quase sem dificuldade; e, a
partir do momento em que temos a felicidade de nos tornarmos
mestres dos sentidos de nossos corpos, submetendo-os à nossa
consciência, ah!, então é com ardor, alegria, prazer e bom
humor que nos dedicamos à prática das boas obras; ficamos
abrasados pelo fogo sagrado da caridade.
32. É assim que devemos tanto louvar aqueles que, desde o
princípio de sua consagração a Deus, fazem todos os esforços
para cumprir exatamente e com alegria a santa lei do Senhor,
como devemos condenar aos que, depois de passar anos inteiros
a serviço de Deus, não praticam a virtude senão com
dificuldade e repugnância.
33. Mas não temamos nem condenemos as pessoas que se
entregaram a Deus por algum acidente curioso que as tenha
forçado a isto; pois já conheci alguns que, enquanto faziam
todos os esforços para não encontrar seu Rei Supremo, Jesus
Cristo, o encontraram contra a vontade e foram envolvidos a
contragosto em seus adoráveis estandartes, entrando em seu
palácio e assentando-se à sua mesa. Também vi a semente da
graça, caída por assim dizer sem destino e ao acaso nos
corações, produzindo aí uma colheita abundante de excelentes
virtudes. Foi assim que uma pessoa que conheci, mesmo tendo
ido a uma escola de medicina espiritual por razões estranhas
à sua consciência, caiu alegremente nas mãos de um médico que
bem soube prende-la, que lhe falou com afetuosa benevolência,
a tal ponto que ela se converteu e abriu seus olhos à luz.
Assim, acontece muitas vezes que uma conversão que parecia
não ter acontecido senão por acaso se tornar mais sólida e
constante que uma outra ocorrida com propósito deliberado.
34. Que ninguém, por considerar a enormidade e o número de
suas faltas, encontre nisto uma razão ou um pretexto para se
crer incapaz de se converter e de abraçar a vida religiosa;
pois é para se temer que este julgar-se indigno esconda um
desejo de não renunciar aos prazeres de que desfrutava, de
não deixar a preguiça que o mantinha cativo, e que deste se
possa dizer: “Eles procuram desculpas para seus pecados[4]”.
Não é assim? Meu Deus, não é justamente quando existe mais
pus e podridão numa ferida que se necessita de um médico
hábil e experiente, e não foi nosso divino Salvador quem
disse que “não são os saudáveis que precisam de médico”?
35. Quando um grande rei, pretendendo empreender uma
expedição importante, nos chama à sua presença e nos declara
que intenta servir-se de nós, ah!, obedecemos prontamente,
não usamos de nenhum subterfúgio, não alegamos nenhum
pretexto; mas, abandonando tudo, apressamo-nos em nos
apresentar diante dele para receber e executar suas ordens.
Ora, será com o mesmo zelo e a mesma diligência que
respondemos à voz do Rei do s reis, do Senhor dos senhores e
do Deus dos deuses, que nos chama e quer n os envolver sob os
estandartes de sua milícia celeste, fazendo-nos entrar nos
caminhos da vida religiosa? Não é de temer que nossa preguiça
e nossa negligência em responder a seu apelo nos coloque sem
escusa e sem defesa quando formos citados para comparecer
diante de seu temível tribunal?
36. Não podemos negar que aquele que se acha ligado por
cadeias de ferro devido aos cuidados e embaraços da vida
mundana não é capaz de caminhar com facilidade pelas vias da
salvação e, se caminha, o faz com grande dificuldade. Eles se
parecem com estes infelizes que estão sob o peso de
correntes, ou em cujos pés foram colocadas pesadas travas: a
cada momento, tentando caminhar, eles caem e se ferem
cruelmente. É por isso que eu comparo o homem que, não sendo
casado, permanece na vida secular só para cuidar dos assuntos
temporais, a alguém que tem algemas nas mãos, pois, se ele
quiser, poderá abraçar a vida religiosa, enquanto que comparo
o homem casado a alguém que tem as mãos e os pés
acorrentados.
37. Um dia, encontrei algumas pessoas que viviam no
esquecimento de sua salvação; eles me perguntaram: “Como nos
será possível pensar na vida religiosa e solitária, nós que
somos obrigados a viver com nossas esposas e que somos
oprimidos sob o peso de nossos assuntos temporais?”. Eu me
contentei com lhes responder: “Não deixem de fazer todas as
boas obras que puderem; fujam da mentira com horror; que o
orgulho não os faça desprezar a ninguém; não tenham raiva de
ninguém; assistam regularmente aos ofícios da Igreja; sejam
caritativos e benevolentes para com os pobres; jamais
escandalizem seus irmãos; respeitem a mulher do próximo, e
que cada um se contente com sua esposa. Se vocês agirem e
viverem assim, vocês não estarão longe do Reino dos céus”.
38. Corramos com uma alegria mesclada de temor ao combate
para o qual Deus nos chama. É aos demônios que devemos fazer
a guerra; não tenhamos medo deles, pois, ainda que não os
possamos ver, eles nos conhecem e penetram no fundo de nossas
almas; e se eles a encontrarem perturbada e medrosa, não
acharão que nos damos por vencidos? Não se precipitarão sobre
nós terrivelmente encarniçados, a fim de nos tornar seus
miseráveis escravos? Ora, como conhecemos suas armadilhas,
armemo-nos contra eles com coragem; pois quando alguém vê uma
armada composta por soldados valentes e corajosos, ansiosos
por se medir com o inimigo, hesita em se lançar à luta.
39. De resto, Deus, em sua Sabedoria e Bondade infinitas,
cuida em especial daqueles que não tem outra coisa a fazer do
que se engajar a seu serviço: Ele mesmo adoça suas penas e
seus trabalhos, a fim de que o primeiro choque e o primeiro
assalto que eles tenham que sustentar não sejam demasiado
violentos e os levem a retornar para o século. Generosos
servidores de Deus, esta certeza não os enche de alegria e
felicidade? Não encontram vocês, nesta admirável conduta do
Senhor, uma prova incontestável de sua afeição e sua ternura
por vocês, e um testemunho seguro de que foi Ele quem os fez
entrar neste gênero de vida?
40. Entretanto, já observamos que muitas vezes, encontrando
Deus corações fortes e generosos, Ele costuma entrega-los, já
no começo de sua conversão, a combates rudes e violentos; mas
é para poder lhes dar logo a seguir a coroa e a recompensa de
uma vida feliz e cheia de méritos.
41. Mas também, por uma providência paternal, pode acontecer
que Deus esconda daqueles que ainda estão no mundo as penas e
as dificuldades encontradas na vida religiosa, não os
deixando entrever senão os modos fáceis da santificação; pois
ele sabe que, se fossem conhecidos os penosos trabalhos que
se deverá suportar, não haveria quem se engajasse.
42. Assim, consagrem a Cristo a flor de sua juventude, e
trabalhem para sua Glória com zelo ardente; e, numa idade
avançada, a lembrança de suas boas obras os inundará de
deliciosa alegria, pois aquilo que ajuntamos e recolhemos na
juventude, nutre e consola nas fraquezas e langores da
velhice.
Enquanto
estamos
cheios
de
força
e
saúde,
trabalhemos com nobre ardor, e percorramos a carreira
religiosa com sabedoria e prudência; pois a morte é incerta,
e teremos que nos haver como inimigos desonestos, cruéis,
poderosos, vigilantes, incorpóreos, invisíveis, e sempre
armados com tochas incendiárias para reduzir a cinzas os
templos vivos do Senhor.
43. Que sobretudo os jovens evitem escutar a voz destes
espíritos ciumentos e mentirosos; pois eles lhes sugerirão
sem cessar de não submeter a carne a tantos rigores, a fim de
evitar as doenças e enfermidades que eles inventam: “Será
possível encontrar, e sobretudo neste século em que vivemos,
será possível encontrar alguém que, por meio de imoderadas
mortificações, haja triunfado sobre seu corpo, matando suas
paixões, privando-se de coisas necessárias? Não basta se
abster
da
intemperança,
e
se
proibir
os
alimentos
sofisticados?” Esta é a linguagem insidiosa dos demônios. Mas
não é evidente que sua intenção, falando-nos assim, é de nos
desencorajar e nos tornar tímidos, preguiçosos e negligentes
desde nossa entrada ao serviço de Deus, a fim de que
estejamos tão pobres e miseráveis no final da carreira quanto
no começo?
44. Antes de tudo, é de extrema importância para os que
querem servir a Deus com ardor e fidelidade, que procurem e
encontrem, seja pela prudência e a sabedoria de alguns padres
experientes, seja pelas luzes e o testemunho de sua própria
consciência, os lugares, o tipo de vida, a moradia e os
exercícios que lhes sejam mais convenientes e apropriados;
pois eu creio que os que amam as delícias não são feitos para
a vida em comunidade, e os que tem um humor irascível não
devem abraçar a vida solitária. Cada qual deve examinar
diante de Deus o tipo de vida que melhor lhe convém.
45. Eu penso que todas as formas de vida religiosa se reduzem
às seguintes três: a primeira consiste em viver em perfeita
solidão; a segunda, em viver no deserto, mas com mais um ou
dois monges; a terceira, em viver em comunidade. Mas em tudo
devemos observar este conselho que nos dá Salomão: “Não vá
nem à direita nem à esquerda[5]”: siga com perseverança o
caminho real de Jesus Cristo. O segundo tipo de vida
religiosa parece convir a muitos; o mesmo Salomão nos diz:
“Infeliz do que é só, porque se ele cair ninguém o ajudará a
que se levante[6]”. Que acontecerá então ao monge que,
estando só, tiver a infelicidade de se aborrecer, de
adormecer, de se tornar preguiçoso ou chegar ao desespero?
Será melhor lembrar as boas palavras de nosso Senhor: “Quando
dois ou três estiverem reunidos em meu Nome, Eu me
encontrarei no meio deles[7]”.
46. Portanto, quem será o monge fiel e prudente? Eu respondo
sem hesitar que é aquele que conservou com perseverança o
fervor de sua entrada na religião, e que, até o final de sua
carreira, não cessou de ajuntar chama sobre chama, fervor
sobre fervor, precaução sobre precaução, desejo sobre desejo.
Portanto, vocês que subiram este primeiro degrau, não olhem
para trás.
SEGUNDO DEGRAU
Da necessidade de se despojar das afeições e dos cuidados com
as coisas do mundo.
1. Quem ama a Deus com todo seu coração, que deseja
ardentemente o Reino dos céus, que trabalha com coragem para
se purificar das faltas que cometeu e para se corrigir dos
maus hábitos adquiridos, que não perde jamais de vista o
juízo final e os suplícios eternos, que alimenta em sua alma
o pensamento e o temor da morte, este não tem mais amor nem
inclinação pelo dinheiro e as riquezas, por seus parentes ou
pela glória do mundo, por seus irmãos e amigos, enfim, por
todas as coisas frágeis e perecíveis; ele expulsou de seu
coração todo sentimento, toda ligação e todo cuidado; ele
odeia sua própria carne, e, num estado de perfeita nudez, ele
estuda por seguir a Cristo com indizível ardor; ele não
suspira senão pela felicidade do céu, e é apenas de Deus que
ele espera todo o socorro necessário para alcançá-la. Ele diz
com Davi: “Minha alma só está ligada a você, ó meu Deus[8]”;
e com o ilustre profeta: “Eu não canso de segui-lo, Senhor;
eu
não
busquei
o
julgamento
dos
homens
nem
suas
consolações[9]”.
2. Mas certamente seria uma vergonha para nós se, depois de
havermos abandonado todas as coisas de que falamos, depois de
nos termos devotado, não a seguir um homem, mas a servir ao
Senhor que nos envolveu em seus estandartes, ainda nos
divertíssemos buscando objetos incapazes de nos trazer o
menor alívio para a extrema necessidade em que nos veremos na
hora da morte. Comportarmo-nos assim não equivale a violar o
preceito de Jesus Cristo que nos proíbe de olhar para trás?
Não é o mesmo que nos declararmos ineptos para o Reino de
Deus?
3. Para nos evitar esta infelicidade, nosso divino Salvador,
que conhece bem até que ponto nossa fragilidade nos expõe à
inconstância e o quanto é fácil para nosso coração se voltar
para as coisas da terra a que havíamos renunciado – basta
conversarmos ou termos qualquer relação com as pessoas do
mundo –, para nos evitar esta infelicidade Ele nos dirigiu
estas palavras memoráveis, ditas ao jovem que pediu permissão
para enterrar seu pai antes de segui-lo: “Deixe que os mortos
enterrem seus mortos[10]”.
4. Lembremo-nos que os demônios, depois que renunciamos às
coisas do século, procuram nos fazer crer que só são felizes
os que, no mundo, fazem o bem aos indigentes, e que somos
infelizes
na
vida
religiosa,
porque
não
temos
esta
facilidade. Ora, o que os inimigos de nossa salvação se
propõem com esta tentação, é nos levar a voltar para o
século, ou nos atirar ao desespero se perseverarmos em viver
retirados.
5. Na vida religiosa, encontramos pessoas que, por orgulho,
desprezam as pessoas que vivem no mundo, e se colocam acima
delas. Vemos também que eles as desprezam com o único
objetivo
de
sufocar
em
si
próprios
pensamentos
de
desencorajamento que os assaltam, e de se fortalecer na
esperança e na confiança em Deus.
6. Portanto, escutemos com especial atenção o conselho que
nosso Senhor deu um dia ao jovem que até então bem observara
a lei de Deus: “Só lhe falta uma coisa, que é vender todos os
seus bens, dar o dinheiro aos pobres e seguir-me[11]”, a fim
de que, fazendo-se voluntariamente pobre, você seja obrigado
a recorrer à caridade dos outros.
7. Nós, que resolvemos seguir nosso curso com ardor e
prontidão, estejamos atentos à condenação que o Senhor
levantou contra os que vivem em mosteiros, e que, vivos,
estão como mortos, quando Ele disse: “Deixe os que estão no
mundo e que estão mortos, que enterrem os que estão
corporalmente mortos[12]”.
8. Mas as riquezas que aquele jovem rico possuía não foram
obstáculo para que ele recebesse o batismo; é por isso que
nós pensamos que se enganam os que dizem que o Senhor lhe
ordenara vender tudo o que tinha para então receber o
batismo. Na verdade, o divino Salvador quis com isto nos
fazer compreender que exigia mais dele para leva-lo ao estado
de perfeição que lhe proporá, do que para admiti-lo a receber
o batismo. Esta prova deve nos convencer da excelência de
nossa profissão.
9. Podemos aqui examinar porque certas pessoas que, enquanto
viviam no mundo se entregavam a penosas vigílias, jejuns
rigorosos,
trabalhos
fatigantes
e
toda
sorte
de
mortificações, chegadas à vida solitária abandonaram estas
práticas de piedade por as verem como falsas e más.
10. É que a vida religiosa permite distinguir as verdadeiras
virtudes
das
que
não
passam
de
virtudes
hipócritas,
mostrando-nos a carreira na qual podemos correr e combater
com sucesso e benefícios reais; pois estou quase afirmando
que a maior parte das boas obras praticadas por quem vive no
século são plantas regadas com a água gasosa e infecta da
vanglória, cultivadas e nutridas em meio à ostentação, os
aplausos e os louvores; uma vez transplantadas para a solidão
dos anacoretas, inacessíveis aos olhares das pessoas do
mundo, e não mais encontrando a umidade mundana da água
corrompida da vanglória, essas pretensas boas obras, essas
falsas virtudes, não tardam em perecer; pois essas plantas,
nascidas em terra úmida, não podem prosperar num terreno seco
e árido, privado de todos os louvores humanos, como o são as
santas escolas da solidão e dos desertos.
11. Aquele que odeia o espírito do mundo se livra alegremente
de tudo o que pode lhe causar penas e aflições; mas quem se
deixa conduzir por este espírito e conserva ainda a feição
pelas coisas da terra não está certamente isento de tristeza
e aborrecimento. Como poderá este, sem penas, se ver privado
das coisas que ama?
12. Ah! Se em todas as coisas devemos ter muita prudência e
circunspecção, aqui mais do que em tudo devemos ser sábios e
discretos; pois não é raro ver um grande número de pessoas
que,
mesmo agitadas no mundo por cuidados e inquietações,
sobrecarregadas de afazeres e de ocupações, enfraquecidas
pelas vigílias profanas, conseguiram se preservar da loucura
e do contágio dos prazeres carnais, mas que caíram vítimas da
mais vergonhosa paixão assim que entraram para o repouso e a
tranquilidade da vida religiosa, ou para o silêncio da
solidão.
13. Tomemos especial cuidado para evitar que, pensando e
dizendo estarmos caminhando pela via estreita e difícil,
estejamos na verdade marchando pela via larga e espaçosa.
Ora, os sinais que nos permitem reconhecer que estamos no
caminho que conduz ao céu são a mortificação no comer, as
vigílias, a privação até de água para beber e de pão para
comer, o amor às humilhações, a paciência nas injúrias, nas
zombarias e nos ultrajes, a renúncia às próprias vontades, a
mansidão nas reprovações e nas afrontas, o silêncio da boca e
do coração quando nos desprezam, a perfeita tranquilidade em
meios aos piores tratamentos, a coragem constante em suportar
com bondade aos que nos fazem injustiças, que nos difamam com
maledicências, que nos cobrem de ignomínias e nos condenam
injustamente. Felizes os que, depois de entrarem na vida
religiosa, seguem esta via! Pois “o Reino dos céus lhes
pertence[13]”.
14. Ninguém será recebido na sala nupcial do Paraíso para aí
receber a coroa da imortalidade se não tiver praticado as
três renúncias de que falei: primeiramente, se não tiver dito
adeus a todas as coisas, a seus parentes e amigos e a todo o
mundo; depois, se não renunciar à sua própria vontade; e em
terceiro lugar, se não imolar a vanglória que costumamos
buscar até mesmo nos deveres da obediência.
15. Foi com esta finalidade que o Senhor nos mandou dizer por
seu profeta: “Saiam do meio deles, mantenham-se separados,
não se sujem com as impurezas do mundo[14]”. Será possível
encontrar dentre os mundanos alguém que tenha feito coisas
dignas de ser admiradas, que tenha devolvido a vida aos
mortos ou expulsado os demônios? Procuraríamos em vão. Estas
maravilhas normalmente são recompensas que Deus concede aos
que estão inteiramente a seu serviço; os mundanos não são
susceptíveis disto, e se pudessem aspirar a tanto, de que
adiantaria deixar o mundo e se consagrar aos penosos
trabalhos de uma vida religiosa?
16. Se, depois de deixarmos o mundo, os demônios nos
perturbam e nos tentam comas lembranças dolorosas e ternas de
nossos pais e mães, de nossos irmãos e irmãs, saibamos
recorrer às santas armas da oração, ao pensamento das chamas
eternas, a fim de que a lembrança destas chamas terríveis
extinga em nós o fogo por meio do qual os demônios querem
reduzir a cinzas nossas generosas resoluções.
17. Lembremos aqui que aquele que se crê independente de tudo
e que renunciou a tudo vive uma funesta ilusão, se ainda
experimentar um sentimento de tristeza por não possuir aquilo
que deseja.
18. As pessoas que, em sua juventude, tiveram a infelicidade
de se deixar levar pelo amor e pela fruição dos prazeres
carnais, mas que apesar disso formaram o desejo e tomaram a
resolução de entrar para uma comunidade religiosa, devem se
dedicar com o maior cuidado às regras austeras da sobriedade
e da temperança, se entregar inteiramente aos sagrados
exercícios da oração, recusar severamente a seus corpos todo
prazer e tudo o que possa lhe trazer bem-estar e alegria,
abster-se de toda espécie de desregramentos e sensualidades,
no temor que seu último estado não se torne pior do que o
primeiro[15]. Pois a religião é um porto no qual encontramos
a salvação; mas nele também podemos encontrar o naufrágio, e
os que já viajaram por este mar espiritual podem atestar esta
verdade. É um triste espetáculo ver pessoas que, depois de
atravessar
o
mar
raivoso
do
mundo,
vêm
naufragar
miseravelmente e perecer no porto. Este é o segundo degrau;
se você subir nele, que em sua fuga imite a Lot, não à sua
esposa.
TERCEIRO DEGRAU
Da fuga do mundo.
1. A retirada, ou a fuga do mundo, consiste numa renúncia
eterna a tudo o que pode se opor aos desígnios de piedade que
criamos; trata-se de uma mudança feliz de hábitos e de
conduta, uma sabedoria desconhecida, uma prudência que foge
com horror dos olhares dos homens, uma vida oculta, um fim e
um objetivo interior e secreto, uma meditação doce e
tranquila, um zelo para com o desprezo e as humilhações, um
desejo ardente por austeridades e sofrimentos, um fundamento
sólido de afeição e amor a Deus, uma fonte fecunda de
caridade, uma renúncia perfeita à vanglória e um profundo
silêncio.
2. Abandonar e deixar seus próximos e aquilo que eles possuem
no mundo, eis o projeto que no mais das vezes com mais
violência agita aqueles que, desde o começo de sua conversão,
se ligam fortemente a Deus e ficam como que abrasados por um
fogo inteiramente celeste. Ora, o que os leva a este piedoso
desígnio, seus novos amantes de beleza nobre e excelente, é o
desejo de se devotar a todo tipo de humilhações e a toda
espécie de penas e de sofrimentos. Mas quanto mais esta
resolução é generosa e louvável, mais é necessária prudência
e discernimento para cumpri-la; pois eu estou longe de dar
minha aprovação a qualquer retirada feita com a maior
coragem.
3. Com efeito, se nosso divino Salvador nos assegura que
“ninguém é bom profeta em seu próprio país[16]”, é para nos
advertir a que tomemos cuidado com que, renunciando à nossa
pátria, não o façamos apenas para reencontrá-la na vanglória
com que nos propusemos fugir ao mundo; pois a fuga do mundo
não é outra coisa que uma separação franca e verdadeira de
todas as coisas da terra, de modo a que nossa alma esteja
invariavelmente unida a Deus sem mais separar-se dele.
Essencialmente, ela deve produzir em nós a dor e o
arrependimento por nossas faltas. Aquele que se separou do
século é alguém que renunciou a toda afeição carnal pelos
seus e pelas coisas que são estranhas ao seu novo estado.
4. A vocês que pensam em sair do mundo, eu lhes peço que,
para fazê-lo, não esperem que seus amigos tenham se
desembaraçado de seus negócios: temam a morte que poderá
surpreendê-los antes de que tenham cumprido seu desígnio.
Pois muitos se enganaram! Eles queriam salvar a outros,
preguiçosos e negligentes; mas ao esperá-los, deu-se que o
fogo do amor divino que os abrasava extinguiu-se pouco a
pouco em seus corações, e eles pereceram miseravelmente junto
com aqueles a quem pretendiam salvar. Ora, se vocês sentem em
si os ardores celestes do amor divino, e não sabem quando ele
poderá desaparecer deixando-os em meio às trevas, caminhem e
corram para onde Deus os chama, lembrando que o Apóstolo nos
advertiu de que não estamos encarregados da salvação de
nossos irmãos: “Irmãos, cada qual prestará contas de si mesmo
a Deus[17]”; e ele acrescenta em outra parte: “Como? Vocês
querem ensinar a outras pessoas sem que tenham instruído a si
mesmos?[18]”. É como se ele dissesse: “no que se refere aos
outros, eu nada sei; mas n o que toca a cada um de nós em
particular, sei bem que estamos obrigados a nos conhecer e
nos salvar”.
5. Vocês que empreendem a viagem que irá fazê-los sair do
mundo, vigiem a si próprios com o maior cuidado; pois o
demônio tentará torna-los inconstantes e sensuais, e sua
própria retirada fornecerá a ele os meios e as ocasiões.
6. Existe o maior mérito diante de Deus em se despojar de
toda afeição pelas coisas da terra, e é a fuga do mundo que
nos coloca neste estado feliz.
7. É por isso que quem, por amor ao Senhor, deixou o mundo,
não deve mais ser animado senão pelo desejo de agradar a este
divino Salvador; de outro modo, ele seguiria ainda cegamente
as afeições e as paixões de seu coração.
8. Vocês que disseram adeus ao mundo deixem de se misturar
aos afazeres do mundo; lembrem-se de que os desejos que vocês
sufocaram no coração tentam novamente se estabelecer ali.
9. Foi pela força e contra sua vontade que Eva foi expulsa do
Paraíso terrestre; mas é por um ato de sua própria vontade
que um monge deixa seu país para encerrar-se num lugar
distante. Se Eva ainda tivesse permanecido no delicioso
jardim onde tinha sido colocada ela não teria deixado de
desejar comer o fruto que a levara à primeira desobediência;
e o monge, permanecendo no mundo, encontraria inúmeros
perigos de se perder no meio de seus parentes e de seus
amigos.
10. Evitem as ocasiões de cair e de pecar, no mínimo com o
mesmo cuidado com que evitariam uma pena ou um grave suplício
que alguém lhes quisesse infligir. Os frutos que não vemos
não nos expõem à tentação e ao desejo de comê-los como
aqueles que vemos.
11. Conheçam bem as armadilhas e os artifícios que
os
espíritos tenebrosos do inferno utilizam para nos derrubar;
eles procuram nos fazer crer que não devemos nos retirar nem
dos embaraços do século nem do meio dos irmãos, porque
fazendo-o estaremos perdendo uma grande recompensa e uma
grande glória; eles nos dizem interiormente, “que mérito não
terá uma pessoa que triunfar sobre si mesma reprimindo os
fogos impuros quando encontra alguma beleza terrestre?”. Ah!
Cuidemos de não ouvi-los em circunstâncias análogas; façamos
o contrário do que nos sugerem.
12. Assim, se depois de havermos abandonado nossos próximos e
nossa família, depois de termos passado alguns ou muitos anos
na vida monástica, depois de termos feito progressos na
piedade e na prática da virtude, depois de havermos chorado
amargamente e reparado o tempo de vida que passamos no pecado
e no contentamento de nossas paixões, depois de termos
alegremente recebido os dons da castidade e da continência,
se depois de tudo isto nos vier ao espírito pensamentos vãos
e frívolos, como os de retornar à pátria sob o pretexto
falacioso de edificar com nossa nova e virtuosa vida aqueles
a quem havíamos escandalizado com nossa vida licenciosa e
desregrada, e, com nossa eloquência, nosso saber e nossos
talentos, nos tornarmos os salvadores do povo, suas luzes,
seus doutores e condutores... Ah! Estejamos certos de que
isto não passa de uma armadilha que os demônios nos colocam:
eles querem que percamos em alto mar o tesouro que
conseguimos adquirir longe das tempestades em nosso porto.
13. Nesta ocasião, devemos imitar a Lot e não à sua esposa;
pois quem quer que retorne ao lugar que deixou e às coisas
que abandonou se tornará como o sal insípido, e merecerá
permanecer imóvel como a mulher de Lot, que foi transformada
em estátua de sal.
14. Fuja para longe do Egito e não conserve sequer o
pensamento de retornar ali; pois os que voltaram para o Egito
em pensamentos e desejos perderam a paz e a tranquilidade da
Jerusalém celeste.
15. Mas aconteceu algumas vezes que pessoas que deixaram o
mundo para conservar sua influência, depois de terem
fortificado solidamente sua virtude e purificado santamente
sua consciência, voltaram ao mundo produzindo grandes
benesses e contribuindo poderosamente para a salvação de
outros, sem negligenciar a sua própria. Assim foi que Moisés,
depois de ter contemplado no deserto a face de Deus, recebeu
a ordem de voltar para o Egito para salvar ali os de sua
nação, coisa que ele fez em meio aos maiores e mais iminentes
perigos e as mais profundas trevas.
16. Vale infinitamente mais descontentar a nossos pais do que
descontentar a Deus; pois ele é o Mestre soberano de nossos
próximos, e foi ele quem nos criou e resgatou. De resto, não
é raro que os pais causem a perda de seus filhos, mesmo os
amando, atirando-os aos suplícios eternos.
17. Dizemos que alguém está verdadeiramente separado do mundo
quando já não fala nem compreende a linguagem do mundo.
18. Quando deixamos o mundo para abraçar a vida solitária,
isto não é devido ao ódio que sentimos por nossos próximos
nem à aversão
que sentimos por nossa pátria: tão
horrível crime está longe de nós. Quando deixamos o mundo
para abraçar a vida solitária é unicamente para evitar que
nos percamos eternamente.
19. Nisto como em todas as coisas é ao Senhor que escutamos,
e cujas pegadas seguimos; pois sabemos que Ele mesmo
abandonou muitas vezes seus pais segundo a carne. Com efeito,
tendo um dia alguém o advertido de que sua mãe e irmãos o
procuravam, o divino Mestre, para nos mostrar que existem
ocasiões nas quais devemos fugir santamente dos parentes deu
esta admirável resposta: “Minha mãe e meus irmãos são aqueles
que cumprem a Vontade de meu Pai que está nos céus[19]”.
20. Reconheçam como pai aquele que pode e quer aliviá-los do
peso enorme dos seus pecados; e como mãe, a compunção do
coração, capaz de purifica-los de toda mancha; como irmãos,
os que podem ajuda-los a obter os dons celestes, trabalhar e
combater com vocês; como esposa, unida indissoluvelmente a
vocês, o pensamento constante da morte; como únicos filhos
amados, os gemidos do coração; como escravos, seus sentidos e
sua carne; e como amigos, as legiões celestes, que lhes
trarão mais benefícios na hora da morte na medida em que
durante a vida vocês tenham tido o cuidado de manter sua
amizade.
Este
é
o
santo
parentesco
dos
que
buscam
sinceramente ao Senhor[20].
21. Que o desejo do céu faça pronta e facilmente desaparecer
as afeições carnais que sentimos pelos próximos! É um erro
grosseiro imaginar que é possível ao mesmo tempo amar a seus
parentes segundo a carne e amar o céu segundo Deus, porque
nosso divino Salvador emitiu esta sentença condenatória:
“Ninguém pode servir a dois mestres[21]”.
22. Em outra passagem, ele nos declarou positivamente não ter
vindo à terra “para trazer a paz, mas a guerra e a espada”,
ou seja, que ele não veio trazer aos pais e irmãos um amor
carnal por seus filhos e irmãos que quisessem se consagrar a
seu serviço, mas que ele veio para separar os que amam e
servem a Deus dos que amam e servem o mundo; os que estão
ligados à terra dos que colocam sua atenção nos céus; os que
buscam o orgulho dos que só se sentem bem na humildade: pois
Ele ama esta divisão e separação espirituais.
23. Cuidado, eu repito, para que o afeto que vocês sentem
pelos próximos e pelas coisas da terra não os faça naufragar
em meio às águas de pecado de que o mundo está inundado. E se
vocês não quiserem chorar eternamente, não sejam sensíveis às
lágrimas de seus pais e amigos.
24. Assim, se para detê-los em seus piedosos desígnios eles
os cercarem como moscas ao redor do mel, ou melhor, como
marimbondos, e para fazê-los desistir, eles se rasgarem em
lamentações, coloquem prontamente em seus espíritos o
pensamento da morte e os terríveis perigos a que vocês
estarão expostos, e, sem desviar sua atenção destes dois
objetos, comparem a pena que lhes propõem seus próximos com a
que farão a si próprios expondo-se à infelicidade eterna,
como quem fecha um buraco com outro buraco.
25.
Estas
pessoas
que
parecem
ser
devotadas
aos
nossos
interesses e que realmente não querem nos fazer mal nos
prometem montanhas de ouro e nos asseguram com zelo que só
farão coisas que nos sejam agradáveis e úteis. Mas todos
estes testemunhos são enganosos: tudo o que eles propõem é
que nos desviemos do caminho que nos conduzirá à felicidade
eterna, e nos levar a seguir suas próprias vontades.
26. Quando finalmente deixarmos o mundo, é importante nos
retirarmos para lugares onde encontremos o mínimo de
consolações humanas, o mínimo de ocasiões de vanglória, onde
estivermos menos expostos à funesta celebridade; de outro
modo nos pareceremos aos pássaros que mudam de ares: nosso
coração permaneceria o mesmo e nossas paixões continuariam a
imperar sobre nós.
27. É ainda de muito proveito esconder o esplendor de seu
nascimento ou o brilho do seu nome, a fim de que sua vida e
suas ações não anunciem outra coisa que o amor a Deus e sua
salvação.
28. Dificilmente encontraremos alguém que tenha abandonado
sua pátria e seus próximos com uma generosidade e uma
perfeição semelhantes às do santo patriarca Abraão. Mal ele
havia escutado as palavras de Deus: “Deixe seu país, seus
pais e o seio de sua família[22]”, e se pôs a caminho, sem
hesitar, ainda que fosse para se colocar no meio de povos
bárbaros cuja língua ele ignorava.
29. Existem assim alguns a quem o Senhor cobriu de glória por
haverem
imitado
esta
grande
personagem,
deixando
generosamente tudo o que possuíam neste mundo. Entretanto eu
creio que, embora esta glória venha de Deus, devemos evitála, e não nos propormos a ela senão com um espírito de
humildade.
30. Quando os demônios, ou mesmo os homens, louvam nossa
retirada como sendo uma ação forte e generosa, é para nos
fazer
conceber
um
sentimento
de
orgulho.
Expulsemos
imediatamente esta tentação, pensando que por amor a nós e
para nossa salvação o Filho de Deus se rebaixou a deixar os
esplendores
eternos
de
sua
Glória
para
vir
habitar
humildemente sobre a terra; e saberemos que, ainda que
vivêssemos toda uma eternidade, seríamos incapazes de fazer
algo semelhante para lhe testemunhar nosso reconhecimento.
31. A afeição que conservamos interiormente por nossos
próximos, e mesmo pelos estranhos, pode se tornar funesta
para nós; ela nos levaria pouco a pouco a retornar para o
mundo, ou no mínimo poderia extinguir em nós o fervor da
piedade e da compunção.
32. Assim como é impossível mirar o céu com um olho e ao
mesmo tempo fixar o outro na terra, também é impossível a uma
pessoa que não se retirou do meio de seus próximos e de todas
as pessoas que lhe são caras segundo a carne, por uma
separação perfeita de espírito e de corpo, deixar de se expor
ao perigo evidente de uma perda espiritual.
33. Saibamos assim que só com muitas penas e trabalhos
conseguiremos reformar nossos hábitos e nossa conduta, e que
pode muito bem acontecer de perdermos num instante tudo o que
adquirimos com um trabalho longo e penoso; pois os discursos
vãos e profanos, e sobretudo os maus, rapidamente corrompem
os bons hábitos[23].
34. Portanto, aquele que, tendo renunciado a tudo, não deixa
de seguir os costumes e frequentar as pessoas do mundo, cairá
nas mesmas armadilhas que eles e manchará seu coração com o
pensamento de coisas profanas; ou, se não encher sua
consciência de coisas mundanas, a encherá com juízos
temerários que fará a respeito de quem achar que está sujo
por maus pensamentos. É assim que, de um lado ou de outro,
ele não se preservará de pecar com os seculares. São sonhos
que costumam perturbar o sono de quem deixou o mundo.
35. Seria vão eu tentar esconder o quanto meu espírito é
pouco sutil e penetrante, o quanto meus conhecimentos são
limitados e minha ignorância profunda. Assim como o palato da
boca julga o gênero e a natureza dos alimentos, assim como os
delicados
ouvidos
dos
auditores
julgam
a
beleza
dos
pensamentos do orador, assim como o brilho do sol nos faz ver
a fraqueza dos olhos, também minhas palavras ilustram minha
pouca capacidade; mas às vezes o amor nos leva a empreender
coisas que estão acima de nossas forças. Assim é que eu
penso, sem ousar afirmá-lo, que, depois de ter falado – ou
melhor, falando da fuga do mundo – convém dizer algumas
coisas a respeito dos sonhos, a fim de que se saiba que os
demônios se servem deles coo armadilhas para perder as almas.
36. Digo que o sonho não é outra coisa do que um movimento e
uma agitação do espírito, enquanto os sentidos do corpo estão
em suspenso.
37. Uma visão imaginária é uma ilusão por meio da qual a
imaginação sozinha, sem poder julgá-la, crê perceber certos
objetos no momento mesmo do despertar: trata-se de uma
representação de coisas que não têm nem ser nem existência.
38. O motivo que nos leva a falar dos sonhos, depois de
termos dito algumas coisas sobre a fuga do século, deve
parecer evidente. De fato, a partir do momento em que, por
amor ao Senhor, renunciamos a nossos bens e a nossos
próximos, e que, no exílio voluntário, nos consagramos e como
que nos vendemos a seu serviço e ao amor dos bens celestes,
os demônios, invejosos de nossa felicidade, tratam de
espalhar a perturbação e a inquietude em nossas almas por
meio dos sonhos. Assim é que eles nos representam nossos
próximos, às vezes em prantos, às vezes estendidos num leito
de morte, ou mergulhados em amargura por nossa causa, ou
atormentados por alguma infelicidade; aquele que acredita nos
sonhos como sendo algo real se assemelha a uma pessoa que
corre atrás de sua própria sombra esforçando-se para apanhála.
39. Lembremos aqui que os demônios, para nos vender qualquer
fumaça de vanglória, se fazem de profetas para nós: eles nos
anunciam em sonhos coisas futuras que adivinharam pela
sutileza de suas conjecturas; e, vendo acontecer aquilo que
víramos em sonhos, ficamos surpresos e admirados. E assim
eles nos conduzem ao orgulho, fazendo com que pensemos que é
Deus quem nos faz conhecer as coisas futuras.
40. É preciso confessar aqui que, para os que acreditam nas
coisas do demônio, este espírito de malícia revela coisas que
acabam acontecendo; mas para os que desprezam os sonhos que
ele dá, ele não passa de um mentiroso; pois, sendo um puro
espírito, ele pode com mais facilidade conhecer as coisas que
acontecem no universo. Assim, por exemplo, sabendo que uma
pessoa está perto de morrer, eles podem em sonhos anunciar
esta morte aos que se prestam às suas insinuações.
41.
Quanto
às
coisas
futuras,
disto
nada
sabem:
sua
presciência não chega a tanto. E do mesmo modo, médicos
hábeis e experientes poderiam também fazer as mesmas
previsões sobre a morte de certos doentes.
42. Saibamos que estes espíritos das trevas se transformam
muitas vezes em anjos de luz, aparecendo-nos em sonhos, sob a
figura de algum mártir, a fim de que, ao despertarmos, nos
façam experimentar uma funesta alegria, inspirando-nos uma
opinião orgulhosa a nosso próprio respeito.
43. Eis a marca pela qual vocês poderão reconhecer a fraude e
os artifícios dos demônios em relação aos cuidados que os
anjos têm para conosco: estes últimos, nos sonhos de que são
autores, não nos fazem ver outra coisa do que os suplícios
eternos, o juízo final, a temida separação dos bandidos e das
pessoas de bem, inspirando-nos um temor e uma tristeza
salutares ao despertarmos.
44. Se acreditarmos nas coisas que os demônios nos inspiram
durante o sono eles brincarão conosco mesmo durante a
vigília. Assim, devemos dizer que quem crê nos sonhos não tem
luz nem discernimento, e que é prudente e sábio que ele não
lhes dê nenhuma fé.
45. Não respeitem senão os sonhos que representam as penas
eternas e os julgamentos de Deus. Ser, ao contrário, os
sonhos os levarem ao desespero, tenham mais certeza ainda de
que se trata de obra dos demônios. Este terceiro degrau
completa o símbolo da santíssima Trindade; e, se você tiver a
felicidade de ter subido nele, não olhe nem à direita nem à
esquerda.
QUARTO DEGRAU
Da bem-aventurada e sempre louvável Obediência.
1. É apenas aos que combatem sob os estandartes de Jesus
Cristo que dirigiremos a palavra daqui por diante, de acordo
com a ordem que estabelecemos; pois assim como a flor
antecede o fruto a fuga do século antecede a obediência, seja
porque renunciamos ao mundo por uma separação real, seja
porque o deixamos renunciando a seu espírito e suas máximas.
É em cima destas duas separações do mundo que a alma, sobre
asas de ouro, se esforça para subir aos céus; é o que o
salmista cantava nestes versos tão doces e agradáveis: “Quem
me dará, dizia ele, asas semelhantes às da pomba, para que eu
possa voar até o céu e aí repousar deliciosamente depois de
haver trabalhado, meditado e praticado uma humildade profunda
e uma obediência perfeita?[24]”.
2. Mas eu creio que cabe considerar aqui quais são as armas
espirituais de que se servem os generosos soldados de Jesus
Cristo de que falamos aqui, e de conhecer de que maneira eles
seguram o escudo da fé e da confiança em Deus, para afastar
para longe deles todo pensamento de infidelidade e de
desobediência: como eles sempre mantêm a espada do espírito
de Deus fora da bainha para imolar todos os movimentos de sua
própria vontade, como eles estão inteiramente cobertos com as
couraças da paciência e da doçura para amaciar todas as
pontas perigosas das injúrias, das zombarias e das palavras
ultrajantes, e como eles trazem sobre a cabeça o capacete da
salvação, que consiste nas preces ferventes de seu superior,
que os defende das flechas incendiárias de seus inimigos.
Vocês verão como eles são firmes e inamovíveis em suas
posições, e como apesar disso eles desfrutam da deliciosa
liberdade das crianças de Deus; pois enquanto eles estão
imóveis em suas preces contínuas, eles não deixam de exercer
os deveres da caridade em favor de seus irmãos em Deus.
3. A obediência é assim uma
vontade, que se faz presente em
uma mortificação completa das
vida, é um movimento que nos
simplicidade
e
sem
nenhuma
voluntária, uma vida isenta
segurança no meio dos perigos,
renúncia perfeita à própria
ações exteriores; ou antes, é
paixões numa alma cheia de
faz agir com uma perfeita
preferência,
é
uma
morte
de toda curiosidade, uma
um excelente meio de defesa
para aparecer diante de Deus, uma segurança desejável na hora
da morte, uma navegação sem recifes nem tempestades, uma
viagem feita em segurança e sem dificuldade. Sim, a
obediência dá à alma a paz e a calma contra o temor da morte,
enterra a vontade e faz viver a humildade; ela não resiste e
não contradiz jamais; ela não pronuncia nenhum julgamento e
vê com igual indiferença os bens e os males da vida presente.
O homem que tiver mortificado santamente seu coração sob o
jugo da obediência nada temerá em suas ações, e aparecerá
diante de Deus com uma confiança segura. Enfim, a obediência
é uma renúncia completa às próprias luzes e ao próprio
julgamento, pela submissão perfeita às luzes e ao julgamento
de um superior.
4.
Entretanto,
é
preciso
confessar,
o
começo
desta
mortificação, ou antes, desta morte religiosa com a qual é
preciso crucificar a vontade do coração, os sentidos da
carne, são acompanhados de muitos trabalhos e de penas; os
progressos feitos na obediência são ainda seguidos de alguns
suores e algumas dificuldades; mas ao final nos encontramos
alegremente libertos de toda sensação penosa e dolorosa, e
entramos numa paz e numa tranquilidade perfeitas: pois a
única pena que experimenta este homem obediente , ao mesmo
tempo morto e vivo, consiste em saber que seguiu sua própria
vontade em qualquer seja lá o que for: então ele teme ter que
responde a Deus pela determinação que tomou por conta
própria.
5. Vocês, que para correr mais depressa e com mais
desembaraço se descarregam de tudo; que desejam carregar
apenas o jugo de Jesus Cristo; que buscam por meio da
obediência se desfazer do pesado fardo que carregavam; que,
para usufruir da única verdadeira liberdade querem se tornar
escravos da vontade de outros; que, sustentados e protegidos
pelo socorro de outros, se decidem a atravessar o mar imenso
que separa o tempo da eternidade: saibam, e não esqueçam
jamais, que escolheram o caminho mais curto e mais seguro,
embora seja o mais difícil e mais áspero, e que, seguindo-o,
vocês não se perderão a menos que se deixem confiar em seu
próprio julgamento e se recusarem a se deixar conduzir por
seus superiores. Com efeito, todos eles chegaram ao final
feliz a que se propuseram, tendo sido, nas coisas boas,
religiosas e agradáveis a Deus, dirigidos pelas luzes e pela
sabedoria de seus diretores: pois a obediência consiste
essencialmente em desconfiar de si mesmo em todas as coisas.
6. Assim, quando enfim tomamos a resolução de carregar o jugo
de Jesus Cristo, e de confiar a um pai espiritual o cuidado e
a conduta de nossa alma, devemos, se nos resta um mínimo de
julgamento e sabedoria, ver e pesar bem quais são as luzes e
a prudência daquele a quem iremos confiar uma tarefa de tão
grande importância; e, se posso me expressar assim, devemos
empregar todos os recursos para conhecer o diretor que
escolhemos, a fim de não termos a infelicidade de cair nas
mãos de um mau imediato, em lugar de um piloto experiente; de
um homem ignorante e doente, em lugar de um médico sábio e
prudente; de uma pessoa cheia de vícios, em lugar de um de
virtude consumada, e de um escravo das paixões ao invés de
alguém perfeitamente liberto; e que assim, pretendendo evitar
Sila, não caiamos em Caribde, naufragando lamentavelmente. De
resto, uma vez entrados na carreira da piedade e da
obediência, devemos nos proibir absolutamente todo julgamento
sobre o virtuoso diretor que escolhemos, e de modo algum
censurar sua conduta, ou suas ações, ainda que possamos notar
nele algumas imperfeições ou quedas; ora, nenhum homem sobre
a terra está isento! Mas se agirmos de outro modo, não
obteremos nenhum fruto de nossa obediência.
7. Que esta consideração nos faça compreender o quanto é
necessário, para que tenhamos uma perfeita e constante
confiança em nossos diretores, gravarmos profundamente em
nossos espíritos e nossos corações as boas obras e as
virtudes que os vemos praticar; que nada possa apaga-las de
nossa memória, e que, quando os demônios nos tentarem nos
levar a desconfiar das luzes e da sabedoria dos diretores que
nos conduzem, afastemos vitoriosamente esta tentação por meio
das lembranças de suas boas e santas ações. Pois não podemos
anular pela dúvida aquilo que nos decidimos a fazer sob suas
ordens, e com maior zelo e prontidão na medida em que
tenhamos mais confiança naquele que está no comendo. Podemos
assegurar que aqueles que não têm confiança em seus diretores
estão muito perto de cair, se é que já não caíram, pois “tudo
o que não vem da confiança é pecado[25]”.
8. Assim, se lhes vierem pensamentos no sentido
condenar seu diretor, rejeitem-nos com tanto
devem fazer a um pensamento desonesto com uma
tentação é uma víbora do inferno à qual vocês
de julgar ou
horror como
virgem. Esta
devem fechar
toda entrada, toda abertura, e recusar qualquer espaço em
seus corações. Digam a este dragão, com santo orgulho:
“Saiba, infame impostor, que não fui eu quem recebeu o poder
de julgar as ações de meu pai espiritual, e que eu sei
perfeitamente que é ele quem tem o direito de julgar as
minhas”.
9. Nossos ancestrais nos ensinaram que podemos encontrar
nossas armas espirituais no canto dos salmos, que os
exercícios da oração são muralhas para nos defendermos, que
as lágrimas de penitência são um banho em que nossa alma se
purifica de suas manchas, e que, sem obediência, que é a
confissão do Senhor, ninguém, carregando seu pecados, verá a
Deus.
10. Quem é perfeitamente submisso e obediente, proclama
contra si mesmo; e se, para agradar a Deus, ele obedece
perfeitamente, ainda que o que faça não esteja isento de
imperfeição, de nada precisará prestar contas apo soberano
Juiz. O mesmo não podemos dizer de quem segue sua própria
vontade em qualquer coisa, ainda que lhe pareça estar
cumprindo as ordens de seu superior; pois ele prestará contas
a Deus daquilo que fez, em seu ato de obediência, conforme
sua própria vontade. Se, nestas circunstâncias, o superior do
mosteiro não cessar de corrigi-lo e repreende-lo, nem tudo
está perdido para ele; mas se por infelicidade o superior
ficar em silêncio, já não ouso dizer aqui o que eu penso.
11. Todos aqueles que, no Senhor, obedecem com simplicidade
de coração, percorrem alegremente a carreira religiosa; pois,
evitando pela obediência toda busca curiosa sobre as coisas
que lhes são ordenadas, escapam das armadilhas e dos embustes
dos demônios.
12. A primeira coisa que devemos fazer em relação ao diretor
que escolhemos é fazer-lhe uma confissão exata de todos os
pecados de nossa vida, e, se ele julgar a propósito que
façamos uma confissão pública, nos submetermos a esta ordem
de bom coração; pois esta confissão de nossas faltas, seja
secreta, seja pública, contribuirá em muito para cicatrizar e
curar as feridas que elas produziram em nossa alma.
História de um ladrão penitente.
13. Tendo eu ido um dia a um mosteiro cujo abade era um juiz
e um pastor excelente, ouvi ser pronunciado um julgamento
terrível. Eis o que se passou: enquanto eu estava no
mosteiro, chegou nele um ladrão famoso, que pedia com grandes
brados para entrar e abraçar a vida monástica. O abade, como
bom pai e bom médico, lhe ordenou descansar por sete dias,
para que também conhecesse os usos e o modo de vida do
mosteiro. Passado este lapso de tempo, chamou-o em particular
e lhe perguntou se ainda desejava permanecer no mosteiro e
viver segundo as regras da casa; Como ele respondeu
afirmativamente com candura e franqueza admiráveis, o abade
lhe disse que seria preciso que ele fizesse uma confissão
completa e detalhada dos crimes com que manchara sua vida.
Mal tinha o abade lhe dado esta ordem, o ladrão apressou-se a
executá-la,
declarando-lhe
todos
os
seus
pecados
com
sinceridade e prudência espantosas. Mas para prová-lo ainda,
o abade perguntou se ele consentiria em fazer a mesma
confissão diante da comunidade. O homem não hesitou um
segundo, respondendo afirmativamente, tão viva e sincera era
sua aversão e a contrição que sentia por seus pecados, e
tamanha vergonha de declará-los tinha na alma; ele chegou até
a dizer que, se preciso fosse, os proclamaria no meio de
Alexandria. O santo abade, vendo tão feliz disposição, reuniu
todos os monges na igreja do mosteiro. Eram trezentos, e isto
aconteceu no domingo após o Evangelho. Ele fez vir o ladrão,
que já estava justificado. Este tinha as mãos amarradas às
costas, o corpo vestido de cilício, a cabeça coberta de
cinzas; alguns irmãos o levavam por uma corda enquanto outros
lhe batiam levemente com varas. Como nem todos sabiam o que
se passava, este espetáculo atemorizou de tal modo os
religiosos, que eles não puderam conter os gritos e os
gemidos. Quando o ladrão chegou à porta da igreja, o
superior, cheio de zelo e de sabedoria, lhe disse com voz
forte e terrível: “Detenha-se, pois você não é digno de
entrar na casa de Deus!”. Estas palavras, saídas da boca
deste prudente diretor, que estava no interior do lugar
santo, impuseram ao ladrão tamanho terror, que ele pensou não
ouvir uma voz humana mas um golpe de trovão e, tomado de
temor e de horror, caiu com o rosto por terra; isto ele nos
assegurou muitas vezes depois sob juramento. Ora, enquanto o
ladrão penitente estava assim prosternado, lavando o chão com
uma torrente de lágrimas, o abade, que com estas ações só
buscava a salvação deste infeliz, e que queria apresentar a
seus monges um modelo eficaz de uma profunda e salutar
humildade, lhe ordenou que declarasse em ordem, com detalhes
e diante de todos, os crimes que cometera e as faltas que
fizera; ele o fez, tremendo, e causando nos que o ouviam
confessar
crimes
horríveis
um
espanto
e
um
terror
inexprimíveis: pois ele confessou não apenas os pecados que
cometera violando as leis ordinárias da natureza e levando a
brutalidade
além
do
razoável
e
racional,
mas
ainda
envenenamentos, homicídios e outros atos tão execráveis que
não é dado aos ouvidos escutar, nem à pena escrever. Quando
ele terminou, o abade ordenou que cortasse o cabelo que fosse
recebido em meio aos irmãos.
14. Cheio de admiração pela sabedoria deste santo homem ousei
perguntar-lhe em particular quais eram as razões que o haviam
levado a dar a seus monges um espetáculo tão extraordinário.
Eis a resposta que me deu este excelente médico de almas:
“Agi assim, disse ele, por duas razões principais. A
primeira, para que este penitente, pela vergonha temporal e
passageira que sofreu confessando publicamente seus pecados,
se preservasse da confusão futura e eterna; e foi isto que
felizmente lhe aconteceu, pois ele ainda não havia se
levantado do chão e Deus generosamente o perdoara de todos
seus crimes; e você não deve duvidar disto, caro abade João,
pois um dos nossos monges que estava presente e muito atento
me garantiu ter visto um homem de aspecto terrível que em uma
das mãos tinha um papel escrito e na outra uma pena com a
qual riscava sobre o papel cada pecado, na medida em que este
penitente, prosternado por terra, ia confessando. E isto não
deve nos surpreender, pois está escrito: ‘Tão logo, ó Deus,
tomei a resolução de confessar minhas iniquidades diante de
meu Deus e de mim mesmo, você me perdoou do negrume e da
impiedade de minhas faltas[26]’. A segunda razão para eu ter
me comportado deste modo é que tenho em minha comunidade
alguns monges que ainda não confessaram suas faltas, e
aproveitei a ocasião para incentivá-los a fazê-lo; pois, sem
a confissão, ninguém pode receber o perdão dos seus pecados”.
Outras mostras de virtude.
15. Mas, além daquilo que contei, eu vi neste abade e no
mosteiro que ele dirigia com tanta prudência e sabedoria
muitas outras coisas que me deixaram espantado e admirado, e
que merecem ser contadas. Tentarei ao menos contar as
principais; pois fiquei muito tempo nesta casa, para me
instruir exatamente na vida, na disciplina e na conduta dos
monges que a habitavam; e lhes asseguro que considerando o
ardor com que esses pobres mortais se esforçavam para imitar
a vida e a perfeição das inteligências celestes, ficava fora
de mim, e meu espanto não tinha limites.
16. Uma santa amizade os mantinha estreitamente unidos, a
caridade que tinham uns pelos outros os ligava por cadeias
indissolúveis; e o que me espantava era que sua afeição era
isenta de toda familiaridade e toda leviandade, seja em suas
relações com outros, seja em suas conversas. Acima de tudo,
eles tinham o maior cuidado em nunca ferir a consciência dos
irmãos. Se alguma vez um irmão deixava transparecer qualquer
aversão por outro, o abade o purgava do mosteiro, enviando-o
em exílio para outra casa, como um miserável. Ora, eis o que
aconteceu diante de meus olhos: um dia um monge disse algumas
palavras injuriosas a outro; logo que o abade soube disso,
ordenou que ele fosse expulso do mosteiro, dizendo-lhe que
não era possível manter dois demônios na mesma casa, um
visível e um invisível, ou seja, um demônio real e um homem
que era semelhante a um demônio.
17. Dentre estes respeitáveis monges vi outras coisas que
podem ser úteis a nós e nos encher de admiração: por exemplo,
lembro de uma sociedade de irmãos, formada no espírito de
Deus
e
fortificada
na
mais
perfeita
caridade.
Eles
partilhavam tudo o que tinham de mais excelente, fosse na
ação ou na contemplação; eles se dedicavam com tanto ardor
aos exercícios da vida religiosa que quase não precisavam de
opiniões nem conselhos de seu superior, pois tanto eles
estimulavam uns aos outros no fervor e numa diligência quase
divinos. Eles haviam combinado, regrado e determinado algumas
práticas de piedade muito especiais; assim, por exemplo, se
durante a ausência do abade um deles falasse a outro de modo
inconveniente
ou
o
condenasse
por
um
julgamento
inconsiderado, ou mesmo dissesse palavras inúteis, logo um
irmão o advertia de sua falta por um sinal secreto e o
reconduzia ao dever; se este monge parecesse não entender ou
não se visse o sinal, o que o advertira devia se prosternar e
se retirar. Nos momentos de recreação o pensamento da morte e
do juízo era o objeto habitual de suas conversas.
18. É impossível não lhes falar aqui da virtude rara e
singular do irmão encarregado de preparar os alimentos. Como
nas ocupações tumultuadas de seu cargo eu o via num
recolhimento admirável e sempre banhado em lágrimas, pedi-lhe
que não me censurasse por lhe perguntar de que maneira teria
ele obtido de Deus tão grande favor. Vencido pela minha
insistência, ele me deu enfim esta resposta: “É que em meu
posto eu nunca me vejo servindo os homens, mas a Deus mesmo;
eu me considero indigno de qualquer repouso, qualquer
tranquilidade; e, vendo diante de mim todos os dias o fogo
material, eu me lembro sem cessar do fogo eterno”.
19. Vejamos ainda outra prática de piedade não menos rara e
espantosa. À mesa, estes fervorosos monges não interrompiam
suas santas meditações e, com sinais particulares advertiam
uns aos outros a que renovassem o espírito de prece e oração;
e não era só aí que agiam assim, mas todas as vezes em que se
encontravam e se reuniam.
20. A caridade entre eles era admirável; pois, se acontecia a
um deles cometer alguma falta, os outros o procuravam
pedindo-lhe com insistência que descarregasse sobre eles o
cuidado e a pena de prestar contas ao superior de tal
fraqueza, para que recebessem a reprimenda e a punição. Desta
forma o abade, que conhecia quais eram os sentimentos de
caridade que reinavam nos corações de seus monges, não
podendo ignorar que o culpado não estava entre os que se
apresentavam diante de si, os repreendia com menos severidade
e os punia com menos rigor; em algumas ocasiões ele nem
tentava descobrir o autor da falta.
21. De resto, nunca os ouvi conversar sobre assuntos vãos,
ridículos ou cômicos. Quando acontecia que alguém tivesse um
pequeno contencioso com um irmão, outro irmão que se achasse
presente, prosternando-se por terra, colocava fim à questão;
se este método não funcionasse e não fizesse cessar o azedume
e o ressentimento, o padre que substituía o abade era
avisado, a fim de que tomasse as medidas eficazes para
conseguir uma reconciliação perfeita antes do por do sol.
Enfim, se este último recurso fosse inútil e o coração dos
irmãos ofendidos permanecesse inflexível, era-lhes proibido
todo alimento até que se reconciliassem perfeitamente; em
último caso, os irmãos contendores era impiedosamente
expulsos do mosteiro e da comunidade dos irmãos.
22. Ora, esta disciplina, tão regular e louvável, não era
estéril, como se pode pensar: ela produzia grandes benesses e
trazia as maiores vantagens; pois a maior parte dos irmãos
faziam grandes progressos tanto na vida ativa como na
contemplativa, e, cheios de luz e discernimento, eram de uma
modéstia perfeita e de uma humildade profunda. Via-se assim
no mosteiro um espetáculo celeste, capaz de trazer a maior
admiração. Ali estavam anciãos, cujo rosto brilhava com
venerável majestade, correr como crianças para receber as
ordens do superior, colocando toda sua glória e toda sua
felicidade em executá-las com escrupulosa exatidão e inteira
submissão.
23. Penetrado de re3speito pelos monges que já haviam passado
de cinquenta anos em exercícios constantes de obediência, um
dia não pude me impedir de lhes perguntar que consolo
extraíam da prática tão penosa e dolorosa desta virtude. Ora,
uns me responderam que pela prática da obediência haviam
descido a um tal ponto de humildade que se tornaram isentos
de qualquer outro combate e experimentavam continuamente as
doçuras de uma profunda paz; outros me confessaram que eles
tinham a felicidade de não experimentar a menor perturbação
em meio a injúrias e ultrajes.
24. Dentre esses homens respeitáveis e dignos de eterna
memória, ainda observei alguns anciãos cuja cabeça era branca
pela idade e que mais se assemelhavam a anjos do que a
homens. Ora, estes anciãos, conduzidos e dirigidos pelo
espírito de Deus, santificados pelos esforços contínuos de
sua boa vontade, haviam atingido o mais alto grau de
inocência, simplicidade e sabedoria; pois, enquanto que os
hipócritas apresentam duas faces, uma que podemos ver e outra
oculta e invisível, o homem amigo da simplicidade não
apresenta senão uma única e mesma face que manifesta o que
ele é. Estes anciãos estavam ainda bem longe de anunciar o
enfraquecimento da razão e de apresentar o menor sinal que
mostrasse o caráter desta leviandade pueril que, no século,
censuramos aos velhos. Neles não víamos senão uma mansidão
encantadora, uma bondade arrebatadora e uma alegria cheia de
gravidade; em sua conduta e em suas conversações nada
percebíamos de dissimulado, estudado, falso ou pouco sincero,
coisa raríssima de encontrar entre os homens. Suas santas
almas não tinham senão uma ambição, a de repousar em Deus e
de obedecer a seu superior; é por isso que para seus
superiores eles eram como filhos sem malícia e sem fraude, ao
mesmo tempo em que estavam cheios de vigor e de coragem
contra os demônios e os vícios, perseguindo a uns e outros
quase com furor.
25. Mas oh! pai santo, e vocês, rebanho fiel tão amado por
Deus, toda minha vida não seria bastante se eu quisesse
contar aqui todas as virtudes e as ações verdadeiramente
celestes desses monges; entretanto, acho importante repassar
a vocês seus trabalhos e seus suores: esta visão será capaz
de inflamar seus corações com um nobre ardor pelo céu, mais
do que as instruções que lhes dou e as exortações que dirijo
a vocês. De resto, todo mundo sabe que muitas vezes as coisas
defeituosas
são
corrigidas
por
aqueles
que
são
mais
perfeitos. O que eu lhes peço que me concedam, é que
acreditem que tudo o que eu lhes contar aqui não contém nem
fábula nem ficção, mas que é a exposição da mais exata
verdade: pois eu sei que uma simples dúvida sobre a
veracidade de um fato basta para impedir que dele se retirem
frutos e benefícios. Mas retomemos nosso discurso.
História de Isidoro.
26. Nos tempos em que estive no mosteiro conheci um homem de
qualidade que se chamava Isidoro. Ele havia sido um dos
principais magistrados de Alexandria; mas tendo generosamente
renunciado aos negócios do século, em cuja gestão fizera
grande renome e uma brilhante reputação, ele se retirou para
esta casa religiosa. O santo abade que o recebeu percebeu
logo que toda a vivacidade de seu espírito e todo o ardor de
seu coração haviam sido voltados para o mal; que ele era
violento, impiedoso, arrogante e cheio de si. Mas a sabedoria
e a prudência deste excelente superior permitiram-lhe romper
as amarras com que os demônios mantinham cativo a este homem;
e eis de que maneira ele o fez: “Isidoro, disse-lhe ele, se
você tomou a firme resolução de levar o jugo de Jesus Cristo,
quero antes de mais nada que você se exercite na prática da
obediência”. Isidoro respondeu: “Santíssimo Pai, eu me
entrego a você para ser tão submisso quando o ferro na mãos
do ferreiro”. Esta resposta satisfez e encorajou o abade,
que, encantado com a comparação, colocou-o a seguir como
sobre uma bigorna. “Muito bem, meu caro irmão, lhe disse o
abade, eu considero conveniente e lhe ordeno que se mantenha
à porta do mosteiro e que se ponha de joelhos diante de todos
os que entram e saem, dizendo: meu Pai, ore por mim, que não
passo de um epilético espiritual”. Isidoro obedeceu ao abade
com a mesma submissão e a mesma exatidão com que os anjos
obedecem a Deus. Assim ele passou sete anos consecutivos.
Ora, depois de ter passado este tempo neste duro e penoso
exercício e de ter adquirido uma obediência perfeita, uma
humildade profunda e uma viva compunção por seus pecados, o
abade, do alto de sua sabedoria, considerou que por estas
sólidas virtudes este homem se tornara digno de ser recebido
entre os irmãos e de poder entrar para a ordem sagrada; mas
Isidoro, que durante todo este tempo havia praticado uma
paciência extraordinária e uma submissão generosa, fez
inúmeras instâncias, por si, pelos outros, por mim próprio,
no sentido de que lhe fosse permitido terminar sua carreira
naquele mesmo lugar e nos mesmos exercícios, dando a entender
que ele acreditava não ter mais muito tempo de vida e que ele
estava a ponto de deixar este mundo, e, conforme se conta, o
abade lhe concedeu aquilo que solicitava com tanto zelo e
ardor. E dez dias depois, este ilustre penitente entrava na
posse da glória eterna que havia merecido pelo desprezo
perfeito que tivera pela glória temporal; e sete dias depois
de sua morte, conforme prometera a ele, chamou para o céu o
porteiro do mosteiro, pois lhe havia dito logo antes de
morrer: “Se eu tiver qualquer poder diante de Deus no céu,
logo estaremos reunidos junto dele, para não nos separarmos
mais”. Ora, foi isto que aconteceu, porque o Senhor quis
mostrar, de um modo sensível e dramático, a excelência e o
mérito da obediência pela qual ele não teve vergonha de fazer
exatamente e de coração as coisas baixas e humilhantes que
lhe haviam sido ordenadas, e a excelência e o mérito de sua
profunda humildade, com a qual imitara com tanta perfeição o
Filho de Deus.
27. Ora, enquanto Isidoro ainda vivia assim à porta do
mosteiro, eu me permiti um dia lhe perguntar quais eram os
pensamentos que enchiam seu espírito e quais sentimentos
agitavam seu coração. Como ele viu que, respondendo,
contribuiria para minha salvação e me seria útil de alguma
maneira, ele não hesitou em me dar a seguinte resposta: “No
primeiro ano, disse-me ele, eu repeti para mim mesmo que
haviam sido os meus pecados que me haviam vendido e me
tornado escravo. Esta consideração me perfurava o coração de
amargura e dor, e me levava a me violentar para cumprir as
ordens que me haviam sido dadas; é por isso que, me
prostrando aos pés dos meus irmãos, eu os lavava de lágrimas,
e algumas vezes com sangue. Depois deste primeiro ano, tive
esperança de que Deus recompensaria minha submissão e minha
paciência, o que me fez cumprir sem esforço minha penitência.
Enfim, nos cinco últimos anos eu não senti em mim mesmo senão
um vivo sentimento de minha indignidade, que me fazia
considerar-me indigno não apenas de entrar no mosteiro, mas
até de permanecer aonde estava; de gozar da presença e da
conversa dos irmãos; de ser admitido a participar dos santos
mistérios; e até mesmo de ser visto pelas pessoas, quem quer
que fossem. É por isso que, mantendo meus olhos e meu coração
voltados para a terra, eu pedia aos que entravam ou saiam,
que orassem a Deus por mim”.
História de Lourenço.
28. Um dia em que eu estava à mesa junto ao superior, ele se
inclinou docemente para mim e me disse ao ouvido: “Quer que
eu lhe mostre, num ancião extremamente velho, uma razão e uma
sabedoria totalmente celestes?”. Como eu lhe fiz sinal de que
o desejava e lhe pedi que o fizesse, ele chamou um bom padre
chamado Lourenço, que estava sentado em outra mesa. Este
respeitável monge passara quarenta e oito anos no mosteiro e
era o segundo em dignidade na igreja da comunidade. Ele se
colocou imediatamente ao lado do superior e pôs-se de
joelhos, segundo o costume da casa, para receber a bênção;
depois se levantou para receber suas ordens, mas o abade não
lhe disse nada e o deixou em pé diante da mesa, sem lhe dar
de comer. Isto aconteceu no início da refeição. Ele passou
assim uma hora ou mais, imóvel e sem movimento, o que me
causou tal confusão que eu não conseguia nem olhar este bom
padre todo branco de velhice, pois ele tinha oitenta anos.
Quando a refeição terminou, seu superior lhe ordenou que
fosse encontrar Isidoro, o grande penitente de que falamos, e
lhe recitasse estas palavras do salmista: “Eu esperei um
longo tempo pelo Senhor, e não deixei de esperá-lo[27]”.
29. Ora, como eu sou muito malicioso, não perdi ocasião para
falar com este venerável ancião e perguntar-lhe em que
pensava ele durante o tempo em que permaneceu de pé diante da
mesa. “Eu vi, respondeu-me, o próprio Jesus Cristo na pessoa
de meu superior, e assim não considerei que a ordem me
tivesse sido imposta a partir de um homem, mas de Deus; é por
isso, caro padre João, que eu estava bem longe de me ver em
pé diante de uma mesa ao redor da qual estavam reunidos
simples mortais; mas imaginando estar diante do altar do
Senhor, eu lhe dirigi fervorosas preces, tanto quanto pude; e
posso lhe assegurar que sequer me veio ao espírito um mau
pensamento contra meu superior, tamanha é a confiança que
tenho nele, e tamanha afeição lhe dedico; pois, acrescentou
ele, ‘o amor não pensa mal de ninguém[28]’. De resto, meu
Pai, saiba que o demônio não encontra por onde entrar num
coração que está inteiramente devotado e consagrado à
simplicidade, à inocência e à bondade”.
História de um ecônomo.
30. Como Deus, em sua Misericórdia e sua Justiça, havia dado
aos religiosos deste mosteiro que era um sábio pastor e um
terno salvador, também dera um ecônomo, um administrador
admirável; pois se tratava de um homem cheio de moderação e
prudência, de doçura e de paciência, como poucos podemos
encontrar. Ora, como o abade queria que o exemplo de sua
humildade e paciência servisse à salvação dos irmãos,
repreendeu-o um dia severamente, ainda que ele fosse
inocente, e levou esta severidade a ponto de expulsá-lo
vergonhosamente da igreja. Sabendo eu que não tinha sido ele
quem cometera a falta pela qual o estava punindo com tanto
rigor, chamei à parte o superior para me colocar como
advogado de seu ecônomo; mas este sábio diretor me respondeu:
“Sei tão bem como você, meu Pai, que ele é inocente; mas
assim como não convém a um pai, e é até uma coisa condenável,
negar ao filho que tem fome um pedaço de pão, também o pai
espiritual prestará a si mesmo e a seu inferior um mau
serviço, se não buscar nele a todo momento novos méritos e
novas
coroas,
fazendo-lhe
reproches
e
apresentando-lhe
humilhações, seja cobrindo-o de desprezo, seja lhe fornecendo
mortificações, seja enfim exercitando-o nas repreensões e nas
condenações, na medida em que o saiba capaz de suportar a
tudo com paciência e resignação. Do contrário, este inferior
será privado de três grandes benefícios: o primeiro será o de
não receber a recompensa de uma correção caridosa sofrida com
paciência; o segundo, que seus irmãos sejam privados dos bons
efeitos que seu exemplo produzirá neles; enfim o terceiro,
que é também o pior mal que lhes pode acontecer, será que os
inferiores percam pouco a pouco a doçura e a paciência, pois
muitas vezes acontece que estes, que em seus trabalhos
espirituais e em suas humilhações parecem ser em verdade
homens de paciência, se não forem de tempos em tempos
exercitados, repreendidos e humilhados por seu superior, que
os vê como pessoas virtuosas e perfeitas, caem depressa num
funesto relaxamento; e suas almas, embora seja de boa terra,
úmida e fértil, se não forem regadas periodicamente com a
água da humilhação, perdem depressa e facilmente sua
fertilidade, acabando por produzir não mais do que os
arbustos e espinhos de orgulho, do desregramento dos costumes
e de uma confiança presunçosa, que expulsa todo temor a Deus.
Isto não era ignorado pelo grande Apóstolo, quando deu este
conselho a seu querido Timóteo: ‘Insista, dizia ele, no tempo
oportuno e no inoportuno.’[29]”
31. A todas estas razões eu repliquei que poderia acontecer
por circunstâncias infelizes e sobretudo pela fraqueza da
natureza humana que muitos, vendo-se repreendidos sem razão –
e até com razão – poderiam abandonar o mosteiro; mas a
resposta deste tesouro de sabedoria não se fez esperar: “Uma
alma, respondeu ele, que Jesus Cristo ligou a seu pastor
pelas cadeias do amor e da fé, conservará invariavelmente
esta santa união; ela preferirá derramar todo o seu sangue a
rompê-la, sobretudo se Deus dele se serviu para curá-la das
feridas que o pecado fez nela; pois ela se recorda que está
escrito: ‘Nem os anjos, nem os principados, nem nenhuma outra
criatura poderá nos separar do amor de Deus, que é nosso
Senhor Jesus Cristo[30]’; e se esta alma não está ligada,
amarrada e unida inseparavelmente de seu diretor, não consigo
conceber como ela poderá, de um modo útil, permanecer num
lugar aonde não a retém senão uma obediência falsa e
enganadora”. É preciso confessar que este homem não se
enganava, porque, pelos meios de que se utilizava, ele
dirigia e conduzia seu mosteiro com sucesso, oferecendo e
consagrando a Jesus Cristo um grande número de almas, que
eram como hóstias vivas.
História de Abacir.
32. Consultemos assim a Sabedoria de Deus, pois ela se
encontra até mesmo nos vasos de barro; é isto o que deve nos
causar a maior admiração. É a resolução que me fez tomar a
conduta de alguns jovens religiosos, pois eu fiquei fora de
mim ao ver com que vivacidade de fé, com que constância, com
que paciência e força de alma eles sofriam ser repreendidos,
mortificados e desprezados, não apenas por seu superior, mas
também por irmãos que estavam bem abaixo deles. Havia no
mosteiro um irmão que chamava minha atenção de maneira
especial: ele se chamava Abacir e tinha pouco mais do que
quinze anos. Eu percebi que ele era quase sempre maltratado
pelos outros monges, e não se passava um dia sem que aqueles
que serviam a mesa o expulsassem do refeitório, porque ele
era naturalmente falador. Procurei uma ocasião para conversar
com ele e, tendo-o encontrado, perguntei-lhe insistentemente
por que razões o expulsavam assim do refeitório e o mandavam
dormir sem ter comido nada. “Creia-me, padre, respondeu-me
com simplicidade, os monges me tratam assim para conhecer
minhas disposições interiores e para saber se eu estou pronto
para levar uma vida solitária; não é por severidade, mas pelo
caridoso desejo de me testar que eles agem assim. É por isso
que, conhecendo perfeitamente as piedosas intenções de nosso
excelente superior e dos outros padres, eu sofro tudo com
alegria e prazer. Faz quinze anos que estou no mosteiro, e me
tratam como você viu. Quando cheguei a esta casa, os padres
esconderam de mim que eles testam durante trinta anos aqueles
que renunciaram ao mundo; e certamente, caro padre João, não
é sem boas razões que eles mantêm esta conduta; pois não é no
cadinho e pelo fogo que se passa o ouro para o depurar e
polir?”.
33. Este corajoso Abacir viveu ainda por dois anos durante
minha estada nesta comunidade e, como ele estava a ponto de
deixar este mundo, disse aos irmãos que cercavam seu leito de
morte: “Eu lhes agradeço, irmãos, e dou graças a Deus, por me
haverem tratado como fizeram; pois há dezessete anos vocês me
puseram ao abrigo das provas e das tentações do demônio”.
Estas palavras causaram uma viva impressão no espírito do
abade, este justo apreciador das virtudes de seus irmãos, que
ele colocou Abacir no grupo dos confessores e fez com que
colocassem seu corpo junto aos dos santos padres que
repousavam no interior do mosteiro.
História de Macedônio.
34. Seria uma verdadeira pena para todos os que têm zelo e
amor pela prática da virtude, se eu não dissesse nada aqui
dos santos exercícios e dos grandes trabalhos de Macedônio,
primeiro diácono deste mosteiro. Este grande servidor de
Deus, tão favorecido por seu divino Mestre, solicitou ao
abade, dois dias antes da solenidade de Reis, a que os gregos
chamam de Teofania, permissão para ir a Alexandria por causa
de negócios importantes que exigiam sua presença. Foi-lhe
dada a permissão, mas com a condição expressa de retornar ao
mosteiro em tempo de preparar tudo o que era necessário para
a solenidade. Mas o demônio, inimigo jurado da virtude, fez
surgir tantos obstáculos, que Macedônio não conseguiu
retornar no prazo estipulado, chegando no dia seguinte à
festa. Para puni-lo pela desobediência, o abade suspendeu-o
de suas funções e o condenou a servir entre os noviços. Ora,
este santo diácono, grande por sua paciência e maior ainda
por sua constante humildade, recebeu esta ordem e aceitou a
penitência com a mesma calma e tranquilidade de espírito como
se as coisas não se passassem com ele. Depois de ter passado
quarenta dias entre os noviços, o abade resolveu devolver-lhe
o cargo e suas honoráveis funções; mas no dia seguinte,
quando o abade o restabeleceu em sua dignidade, ele foi
procurar seu superior para pedir-lhe insistentemente a que o
deixasse naquele estado de humildade e penitência, e que o
deixasse viver no meio dos irmãos mais jovens até o fim de
sua vida. Para obter esta graça, ele assegurou ter tido a
infelicidade de cometer uma grande falta durante sua viagem a
Alexandria, que o tornava indigno de perdão. Embora o santo
abade soubesse perfeitamente que isto não acontecera, e que
seu diácono só alegava isto como pretexto para poder
permanecer no estado de rebaixamento em que se encontrava,
cedeu ao louvável desejo, feito com fervor e humildade. Assim
é que víamos então, no meio dos jovens monges, um homem
venerável pela dignidade de sua idade, pedindo-lhes o auxílio
e a assistência de suas orações, a fim de obter de Deus o
perdão pela execrável desobediência de que se tornara culpado
em sua viagem a Alexandria. Este santo diácono, por indigno
que eu fosse, ensinou-me um dia a razão particular que o
tinha feito desejar permanecer neste estado tão humilhante:
“Jamais, disse-me ele, me vi menos atacado por perturbações
interiores, nem menos agitado pelos trabalhos da guerra
espiritual que fazemos ao demônio, nem jamais experimentei
tão deliciosamente as doçuras abundantes da luz celeste, como
a partir do momento em que fui posto no exercício desta
penitência”.
História do ecônomo do mosteiro.
35. “É característico dos anjos, acrescentou ele, não estar
mais expostos a quedas, e mesmo, conforme alguns doutores
ensinam, não poderem cair; é típico dos homens cometerem
faltas, mas pela graça de Deus eles podem se levantar todas
as vezes em que lhes acontece estas infelicidades. Ao
contrário, os demônios caíram para nunca mais se levantarem
desta queda”. Eis agora o que me contou o ecônomo deste
mosteiro célebre: “Quando eu era jovem, ele disse, era
encarregado de cuidar dos animais de uma casa, e tive a
infelicidade de cometer uma falta enorme; mas, como eu tinha
por costume jamais manter oculto em meu coração a serpente
que nele se escondera, tomei-a pela cauda assim que a percebi
e a mostrei ao médico espiritual de minha alma; eu lhe contei
a enganadora ação da qual fui considerado culpado. Olhando-me
com um rosto sorridente e me dando um tapinha, ele me dirigiu
estas palavras: ‘Vai, meu filho, continue com seus exercícios
costumeiros
como
dantes,
e
nada
tema’.
Eu
confiei
inteiramente nas suas palavras; e alguns dias depois tive a
certeza de minha cura. A partir daí caminheis pelas vias do
Senhor com grande alegria, embora sempre com temor e com
tremor”.
36. Alguns doutores observaram sabiamente que, como existem
certas diferenças essenciais entre todas as criaturas às
quais Deus deu existência, também nas casas religiosas vemos
diferentes modos de caminhar e de avançar na carreira e na
prática da virtude, e diversas inclinações más que é preciso
combater e mortificar. É assim que o sábio médico que
presidia este mosteiro, tendo percebido que alguns monges se
deliciavam, por ostentação e vaidade, em aparecer diante dos
seculares quando estes vinham ao mosteiro, os humilhava
severamente em sua presença, tanto lhes ordenando o que havia
de mais baixo e mais desprezível quanto reprovando-os
ignominiosamente, de modo que estes monges eram obrigados,
para evitar esta afronta, a se esconder assim que viam chegar
as pessoas do mundo. Ora, esta conduta produzia m efeito
espantoso, pois ela fazia com que a vanglória perseguisse a
vanglória, impedindo estes monges de dar espetáculo aos
outros.
História de são Menas.
37. Como Deus, por uma graça insigne, não quis me privar do
auxílio das orações de um santo padre que se encontrava nesse
mosteiro, ele o chamou sete dias antes de minha partida. Este
santo homem se chamava Menos. Ele havia passado cinquenta e
nove anos nesta casa, e havia exercido sucessivamente todos
os cargos aí estabelecidos, sendo então o primeiro depois do
abade. Ora, no terceiro dia depois de sua morte, enquanto
celebrávamos seus funerais e fazíamos as orações de costume,
o lugar onde estava seu santo corpo foi subitamente tomado
por um perfume doce e de suave odor. O abade, que estava
presente, nos ordenou que abríssemos o caixão e então vimos
que de seus veneráveis pés saíam como que duas nascentes de
óleo odorífico. Então este excelente mestre das vias
religiosas nos dirigiu estas palavras: “Vocês todos são
testemunhas, disse-nos ele, deste milagre; mas saibam que
seus trabalhos e seus suores tiveram também um perfume
delicioso e agradável a Deus”.
38. Ele tinha razão; pois os padres se puseram a contar
algumas excelentes ações deste santo homem, e, entre outras,
que um dia o abade resolvera colocar à prova sua paciência
celestial. Eis o fato: retornado de fora numa tarde, ele
tinha ido se prosternar aos pés do abade, a fim de lhe pedir
a bênção, conforme o costume; mas o abade deixou-o assim
prosternado até a hora do ofício, quando o abençoou e
permitiu que se levantasse. Depois disto ele lhe fez severas
admoestações sobre sua ostentação, sua vaidade e sua pouca
mansidão e paciência. Ora, o abade só se comportava assim por
saber com quanta coragem e generosidade este santo ancião
sofreria este tipo de humilhante mortificação, e o quanto seu
exemplo serviria à edificação dos outros. Foi o que me
assegurou em particular um dos discípulos deste santo monge,
acrescentando que lhe perguntara em outra ocasião se ele não
tinha adormecido enquanto se encontrava prosternado aos pés
do abade; e ele lhe respondeu candidamente que não, mas que
ele havia recitado o saltério inteiro.
39. Não cometerei nenhuma falta se enfeitar aqui meu discurso
com o relato de um fato que o fará brilhar como uma esmeralda
faz brilhar uma coroa. Aconteceu que, enquanto eu vivia no
meio dos ilustres padres deste mosteiro, a conversa caiu
sobre a vida dos anacoretas; então eles me disseram com o
rosto cheio de doçura e benevolência: “Quanto a nós, caro
padre
João,
por
sermos
tão
grosseiros
e
tão
pouco
espirituais, acreditamos que não devemos abraçar senão a vida
que mais nos convém. É por isso que empreendemos uma guerra
proporcional à nossa fraqueza, e consideramos que é mais
vantajoso para nós não termos que combater senão contra
homens que se enraivecem e agridem, mas que depois voltam a
si e se acalmam, do que demônios que estão em permanente
furor e armados contra o gênero humano”.
40. Ora, dentre estes homens de eterna memória, que me amava
muito em Deus e que me falava com grande liberdade. Um dia
ele me disse, com afeição especial: “Se você, meu pai, que é
um sábio, experimentar a força daquele que, no arrebatamento
de seu coração, exclama: ‘tudo posso naquele que me
fortalece![31]’; se o Espírito Santo descer sobre você como
um orvalho de graças e pureza, como desceu antes sobre a
santa Virgem, e se a força do Altíssimo o rodear de
paciência, cinja os rins, a exemplo do Homem-Deus, com o
linho branco da obediência e, como Ele, levante-se da mesa,
ou seja, saia da solidão; para lavar os pés dos seus irmãos
na água pura da compunção e da penitência, ou de se atirar a
seus pés com o sentimento da humildade mais profunda; coloque
nas portas de seu coração sentinelas que não dormem jamais e
que jamais são coniventes com o inimigo; detenha a
instabilidade e a leviandade de seu espírito, fixando
invariavelmente, malgrado as distrações e a dissipação que
lhe causam sem cessar a agitação dos negócios e das
importunações dos sentidos; conserve um repouso perfeito no
meio dos movimentos e cuidados com a vida se agita
continuamente; e, o que é mais difícil e mais admirável,
permaneça firme e imóvel no seio das perturbações e das
tempestades que se sucedem todo o tempo. Prenda sua língua
com as cadeias de um silêncio perfeito, e impeça-a de cair em
disputas ácidas e em contradições audaciosas; combata setenta
e sete vezes por sai
contra esta soberana impiedosa e
tirânica; carregue a cruz de Jesus Cristo em seu coração, e,
assim como ´pregamos um prego na madeira, pregue seu espírito
nela, de sorte que ele seja capaz de resistir a todos os
golpes, a todas as tentações, a todas as afrontas, a todas as
calúnias, a todas as intrigas e a todas as injustiças que
possam lhe acontecer, de modo a nunca ser ferido, nem
ofendido, nem agitado, nem afligido, nem desencorajado, nem
abatido, mas persevere imutavelmente na paz e na calma.
Despoje-se de toda sua vontade, como de uma veste de
ignomínia, e entre nu na carreira celeste; e, o que é bem
mais raro e mais difícil, permaneça numa confiança total e
inquebrantável naquele que deve e que vai coroá-lo após a
vitória, e que esta seja tal que não possa ser penetrada nem
pelas flechas da dúvida nem pela lanças da desconfiança.
Mortifique seus sentidos com as austeridades da temperança, e
cuide para não sofrer com seu furor audacioso e insolente.
Sirva-se vantajosamente da meditação da morte para combater e
vencer a curiosidade dos olhos, que pedem sem cessar a
contemplação da beleza das criaturas sensíveis. Faça de modo
a reter a indiscrição e a injustiça de seu espírito, que,
enquanto você se entrega à negligência mais condenável, o
leva a julgar mal as ações e a conduta dos seus irmãos; e se
esforce para exercer sempre uma caridade sincera para com
todos. É por meio dessas coisas que saberemos que você é
realmente discípulo de Jesus Cristo, segundo a palavra: ‘Todo
o mundo saberá, disse Ele, que são meus discípulos, se na
sociedade em que se reúnem amarem uns aos outros e derem
testemunho de uma afeição mútua[32]’. Venha, venha, venha
para cá, acrescentou este excelente amigo, fixe aqui sua
moradia, beba conosco da água amarga das admoestações e das
humilhações; ela logo se tornará doce e salutar. Lembre-se de
que Davi buscou por longo tempo aquilo que pudesse ser mais
doce e mais agradável ao homem, sem poder encontrar; e foi
perguntando a si mesmo que coisa seria esta que ele deu a si
mesmo esta admirável resposta: ‘Como é bom e agradável viver
em meio aos meus irmãos![33]”. Mas se Deus não considerar a
propósito nos fazer participar da excelente benesse desta
paciência e desta obediência, ao menos nos será benéfico
reconhecer nossa fraqueza e nossa miséria, a fim de que, se
tivermos que passar nossa vida longe desta carreira,
permaneçamos cheios de estima pelos que a percorrem, e, por
intermédio de nossas preces, peçamos a Deus as graças de que
eles necessitam para combater corajosamente e obter a
vitória”. É assim que este bom padre, este excelente mestre
da vida espiritual me convenceu por passagens e autoridades
extraídas do Evangelho e dos Profetas, e pela terna afeição
que ele demonstrava, que nada havia de comparável à
recompensa e à coroa que se pode obter vivendo sob o jugo da
obediência. Antes de partir deste paraíso de delícias para
regressar aos arbustos e espinheiros das minhas palavras, que
não podem senão lhes desagradar e ser-lhes inúteis, quero
ainda lhes dizer algumas coisas dos religiosos deste
mosteiro, e das raras virtudes que eles praticavam vocês
encontrarão grandes benefícios espiritais.
41. Tendo o abade deste mosteiro avisado que durante o
ofício, ao qual eu assistira muitas vezes, alguns irmãos
haviam andado trocando palavras, lhes ordenou em tom severo
que permanecessem na porta da igreja durante uma semana,
prosternando-se diante de todos os que entravam e saíam para
lhes pedir perdão. Ora, os que ele condenara assim eram
clérigos, e dentre eles havia alguns que tinham sido honrados
com o sacerdócio.
42. Observei um dia que durante o canto dos salmos havia um
monge que era mais atento do que os outros, que tinha uma
devoção extraordinária e que, sobretudo no começo dos salmos
e dos hinos parecia falar a alguém. Perguntei-lhe porque agia
assim. “É para que, respondeu-me ele, desde o começo, eu
reúna todos os meus pensamentos e as faculdades de minha alma
para lhes dirigir estas palavras: venham adorar a Jesus
Cristo, nosso rei e nosso Deus, e prosternem-se a seus
pés[34]”.
43. Prestei também especial atenção ao que era encarregado do
refeitório, e vi com espanto que ele trazia pequenas
tabuinhas à cintura, sobre as quais escrevia a cada dia todos
os pensamentos que tinha, a fim de prestar contas exatas ao
abade que comandava o mosteiro. Aquilo que ele fazia outros
também faziam, e entendi que era porque o superior lhes havia
ordenado.
44. Um irmão, por haver falsamente acusado a outro de se
entregar a conversas vãs e tolas, foi impiedosamente
condenado pelo superior a ser vergonhosamente expulso do
mosteiro, e a permanecer por sete dias inteiros no vestíbulo
que ficava à porta da casa, durante os quais ele não devia
fazer outra coisa do que suplicar que lhe deixassem entrar e
que lhe perdoassem a falta cometida. Ora, ele cumpriu esta
penitência de tão bom coração que o abade, sabendo-o, e
sabendo também que durante os seis primeiros dias ele não
comera nada, mandou dizer-lhe que, se ele tinha um desejo
verdadeiro de retornar ao mosteiro, deveria estar resoluto em
viver daí por diante dentre os penitentes, o que este irmão,
tocado de verdadeiro espírito de compunção, aceitou de bom
grado. O abade então ordenou que o reintroduzissem e o
encaminhassem ao lugar destinado aos que choravam e expiavam
seus pecados, o que foi executado imediatamente.
E como a
ocasião nos leva a falar deste mosteiro dos Penitentes,
contarei algumas coisas deste.
45. Este local ficava a aproximadamente uma milha do mosteiro
e era comumente chamado de Prisão. Todas as consolações
humanas estavam ali banidas; jamais se via ali fogo algum, o
óleo e o vinho não entravam nos mantimentos consumidos, que
consistiam em pão e alguns legumes insípidos. O abade enviava
para esta triste casa todos os monges que, depois de sua
profissão religiosa, caíam em alguma falta considerável, e
eles eram de tal modo encerrados, que não lhes era possível
sair nem viver juntos, mas apenas a sós ou, no máximo, em
dois. Eles aí permaneciam até que o Senhor desse a conhecer
ao abade que suas faltas haviam sido perdoadas e que eles
estavam reconciliados com Deus. O superior geral lhes havia
dado como superior específico um excelente homem chamado
Isaías, que deles exigia uma oração quase constante e
praticamente não lhes dava descanso. Entretanto, para impedilos de cair no abatimento e no desânimo, ele distribuía entre
eles uma certa quantidade de folhas de palmeira, com as quais
eles teciam pequenas cestas. Assim era a vida e a disciplina
dos penitentes, que buscavam com ardor ver a face do Deus de
Jacó.
46. É belo admirar seus trabalhos e sua penitência, mas é
salutar imitá-los; mas seria tolice não reconhecer a fraqueza
humana e pretender imediatamente seguir suas pegadas.
47. Assim, se nossa consciência nos dirige admoestações
merecidas, consideremos com dor os pecados que cometemos, até
que Deus queira lançar um olhar favorável à penitência que
fazemos, aos esforços que nos conduzem a desejo violento de
nos reconciliarmos com Ele, de recebermos o perdão por nossas
faltas,
de
transformarmos
o
arrependimento
e
a
dor
dilacerante de nossos corações em deliciosa alegria, conforme
as palavras do rei-profeta: “Suas consolações, meu Deus,
encheram meu coração de alegria, segundo a multitude e a
grandeza das dores que afligiam meu coração[35]”. Lembremos
ainda, segundo nossa necessidade, destas outras palavras de
Davi: “Senhor, foram grandes, numerosas e cruéis as aflições
com que você me oprimiu! Mas enfim você se voltou para mim,
deu-me a vida e me retirou do abismo em que eu havia
caído[36]”.
48. Feliz, portanto, quem, no desejo de agradar a Deus, se
violenta todos os dias e suporta com paciência e resignação o
desprezo e as injúrias! Este participará abundantemente, não
duvidemos, da glória dos mártires e da alegria dos
supliciados. Feliz o monge que, em sua profunda humildade,
não se vê senão como o mais vil e desprezível dos homens, e
não crê merecer senão a humilhação e o rebaixamento! Feliz
aquele que soube deixar morrer sua própria vontade, e se
abandonar sem reservas à conduta do diretor que Deus lhe deu
como pai e mestre espiritual! Seu lugar será à direita de
Cristo crucificado.
49. Mas observem bem que o homem que não quer sofrer nenhuma
correção, justa ou injusta, age diretamente contra os
interesses eternos de sua salvação, enquanto que aquele que a
recebe com paciência e alegremente obtém incontestavelmente o
perdão de seus pecados.
50. Assim, apresentem a Deus, em espírito e verdade, a
confiança e o afeto que vocês têm para com seu pai
espiritual; e, por uma graça singular, Deus o fará conhecer o
amor e a ternura que vocês têm por ele, e este conhecimento
os inspirará a tratá-lo com doçura e respeito; e, conforme
vocês o queiram, ele se tornará seu amigo devotado.
51. Não é pequena prova de confiança em seu superior
apresentar-lhe todas as tentações que você experimenta: desta
forma você seguirá o caminho da salvação, mas dele se
afastará terrivelmente se esconder nas trevas interiores do
coração estas serpentes cruéis e funestas.
52. Se vocês querem saber se têm pelos irmãos um amor sólido
e verdadeiro e uma afeição terna e sincera, verifiquem se os
pecados dos quais você os considera culpados o entristecem e
desolam, e se as graças abundantes que eles recebem de Deus,
e o progresso que fazem na virtude o enchem de alegria e de
prazer.
53. Numa discussão, quem quer sustente obstinadamente uma
opinião, mesmo verdadeira, e um sentimento fundamentado,
demonstra estar enfermo da doença do demônio, que é o
orgulho. Se for diante de seus iguais que ele age assim,
talvez ainda possa se curar pela correção que irá receber de
seus superiores; mas se for diante de seus superiores,
cremos, humanamente falando, que sua doença é incurável.
54. De fato, como poderá observar as regras e os deveres de
obediência em suas ações alguém que os viola com tanta
insolência em suas palavras? E não agirá ele nas outras
coisas mais necessárias e mais importantes tal como o faz nas
que são menores e menos necessárias? Vemos assim que ele
trabalha em vão e que não colherá, com sua pretensa
obediência, senão um julgamento terrível e uma sentença de
morte.
55. Quem, com disposição santa e intenção pura e reta, se
submete e se dedica inteiramente à vontade de um diretor
sábio e zeloso, não vê a morte chegar senão como um doce
sono, ou melhor, ele a espera e a deseja todos os dias como
sendo o começo de uma nova vida; pois ele confia em que não
será dele, mas do diretor de sua alma, que Deus cobrará
explicações.
56. Quem recebe com prazer e por haver solicitado, das mãos
de seu superior, alguma função ou cargo a exercer, e que em
seguida comete alguma falta ou tropeça no exercício desta
tarefa, será a si mesmo e não a seu superior que deverá
culpar, pois as armas que recebeu, recebeu por seu próprio
movimento e por sua própria vontade. Ele deveria usá-las
contra o inimigo e desastradamente se serviu delas para ferir
seu próprio coração. Mas se, ao contrário, foi contra sua
vontade, depois de lembrado seu superior de sua fraqueza e de
sua incapacidade e depois de ter rogado humildemente e com
insistência que este não pensasse nele, se apesar disto ele
foi obrigado a receber este encargo e a se dedicar a executálo, deve fazê-lo com coragem; pois se ele vier a cair, sua
queda não será mortal.
57. Mas eu ia esquecendo de lhes apresentar, caros amigos, um
pão delicioso e salutar para alimento de suas almas; quero
lhes falar da virtude admirável desses monges que, para se
acostumar a receber com a maior paciência e a mais perfeita
caridade as injúrias, as afrontas e o desprezo dos outros, se
reuniram para exercitar a resignação sob toda espécie de
humilhações, ultrajes e admoestações.
58. A alma que pensa sem cessar em confessar seus pecados
encontra em cada pensamento um antídoto eficaz contra o
perigo de cometê-los novamente; pois nós nos entregamos com
muita facilidade às faltas que escondemos nas trevas.
59. Assim, ainda que não estejamos na presença de nosso
superior, se, por meio de uma viva representação, o
imaginamos no meio de nós, esta imagem de sua presença em
muito contribuirá para que evitemos com cuidado tudo o que
sabemos desagradá-lo em nossas tarefas, nossas conversas,
nosso repouso, nossa alimentação e em todas as coisas; se nos
conduzirmos
desta
maneira,
praticaremos
uma
verdadeira
obediência. De resto, os discípulos verdadeiros e sinceros
veem a ausência de seu superior como uma infelicidade real, e
se afligem com isto, enquanto que os maus discípulos se
alegram.
60. Um dia eu perguntei a um dos mais virtuosos padres do
mosteiro como ele tornara a obediência uma companheira fiel e
inseparável da humildade; eis a resposta que ele me deu:
“Quem pratica a obediência, disse-me ele, não é apenas
obediente, mas é ainda cheio de reconhecimento. Assim, mesmo
que ele ressuscite os mortos, que ele possua o dom das
lágrimas, que ele desfrute da paz soberana do coração, ele
sempre pensará que só possui estes benefícios por intermédio
de seu superior, que ele só desfruta deles em virtude de suas
orações”.
61. “Por isso ele estará isento de todo sentimento de
presunção e de vanglória. Como poderá ele se orgulhar,
sabendo que não é por seu mérito nem por suas virtudes que
ele possui todas estas coisas, mas apenas pelo auxílio de seu
superior? É isto que faz com que o hesiquiasta seja de certo
modo incapaz de partilhar desta humildade interior em meio às
coisas de que falamos, pois é mais fácil para ele crer que é
por suas forças e seu trabalho que ele consegue levar a cabo
as boas obras que pratica”.
As duas armadilhas do demônio.
62. Assim, quando um monge que está submetido a um superior
evitar as duas armadilhas do demônio, ele permanecerá, como
um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo, sob o jugo de uma
obediência eterna.
63. O demônio não cessa de tentar de mil maneiras diferentes
aos que fazem profissão de obediência: tanto ele procura
perturbar e manchar sua imaginação com pensamentos e imagens
impuras, a fim de revoltar a carne contra o espírito, quanto
ele enche seus corações de penas, sofrimento e tristeza; aqui
ele os incentiva à irritação e ao mau humor, e procura todas
as vias capazes de paralisar sua vontade e de tornar sua
virtude estéril e vã; lá ele leva à intemperança nas
refeições, à negligência na prece, à preguiça no sono; enfim
ele envolve seu intelecto em nuvens e trevas espessas, a fim
de que, afadigando-os, os faça crer que é inútil praticar a
obediência, que eles não extraem nenhum benefício espiritual
de seus esforços e dos sacrifícios que fazem, e que, ao invés
de avançar na perfeição, dão marcha a ré. É assim que pouco a
pouco ele os desencoraja e os desgosta das santas ocupações
comandadas
pela
obediência,
e
os
fazem
abandonar
miseravelmente o campo de batalha; muitas vezes ele sequer
lhes dá tempo de ver e reconhecer que Deus, para fornecer a
seus servidores uma ocasião favorável para praticar de modo
mais perfeito a humidade e a obediência, permite que o
tesouro de suas virtudes lhes seja subtraído; mas este é um
efeito da Bondade de Deus, e ele nos devolverá este tesouro
mais rico e mais precioso.
64. Porém, malgrado as longas importunações do demônio,
acontece a alguns de alcançar o objetivo, por sua corajosa
paciência, vencendo-o e pondo-o em fuga. Mas assim que
acabamos de vencer este demônio da desobediência, já outro
aparece, com novos truques e novas tentações, para nos tentar
e nos perder.
65. Com efeito, eu vi monges que, depois de se terem inteira
e
generosamente
entregues
ao
espírito
da
obediência,
obtiveram de Deus, com o auxílio de seu superior, grandes
sentimentos de compunção e de penitência, alcançando um
estado de sublime doçura, modéstia, castidade, fervor e
constância, vencendo e submetendo seus apetites desregrados e
vivendo num santo e fervoroso amor a Deus. Ora, os demônios,
invejosos de sua felicidade, para conseguir fazê-los cair
deste bem-aventurado estado, trabalharam por inspirá-los
interiormente e para que cressem que seriam capazes de viver
na solidão daí por diante, e que eram fortes o bastante na
virtude para ousarem esperar, no repouso da solidão, a paz
soberana da alma e uma doce e celeste tranquilidade. Mas o
que aconteceu? Estes infelizes se deixaram enganar. Eles
deixaram o porto e se fizeram ao mar; a tempestade os
surpreendeu sem condutor e sem piloto; as ondas furiosas dos
pensamentos impuros e das outras tentações logo atacaram e
emborcaram a frágil barquinha que carregava seu tesouro e a
eles próprios. Foram-se assim num triste naufrágio e
pereceram da maneira mais miserável.
66. De fato, não é necessário que o mar se agite, se enfureça
e se revolte para rejeitar sobre a praia os restos e as
imundícies que os rios e os córregos despejam nele? Do mesmo
modo nossa alma é agitada de tempos em tempos para se
desembaraçar da sujeira que nossas paixões, que são como rios
em relação a ela, lhe trazem; e, se refletirmos bem, veremos
que em nossa alma, como no mar, uma grande tempestade é
normalmente seguida de uma grande calmaria.
67. Quem tanto obedece como desobedece a seu superior é
semelhante a alguém que coloca sobre os olhos doentes ora um
excelente colírio, ora cal viva. A Escritura diz: “Se um
edifica e outro destrói, o que poderá obter cada um, senão
trabalho e sofrimento?[37]”.
68. Portanto, vocês que são filhos e servidores obedientes do
Senhor, não se deixem confundir pelo demônio do orgulho e
jamais confessem seus pecados ao seu superior usando um nome
falso; pois é a vergonha que vocês experimentam neste mundo
que evitará a vergonha eterna no outro. Mostrem, sim, mostrem
a nu todo seu mal a seu médico espiritual; digam-lhe sem
temor e com simplicidade: “Meu Pai, esta falta é toda minha;
este ferimento é minha própria obra; tanto um como outro me
ocorreram por que vivi na negligência; não posso culpar a
ninguém: eu mesmo fui seu autor, é impossível eu me escusar
por ter sido levado pelos maus exemplos de meus irmãos, pelas
tentações dos demônios, pelas fraquezas e limitações de meu
corpo ou por qualquer outra causa; foi apenas em razão de
minha tibieza, de minha preguiça e de minha negligência que
eu caí”.
69. Quando vocês se apresentarem para fazer a confissão de
seus pecados, adotem os modos, a postura e as maneiras de um
criminoso; que seu rosto anuncie modéstia e humildade e que
você encham seu espírito com o pensamento de seus pecados;
que seus olhos não mirem senão a terra; se puderem, lavem os
pés de seu pai espiritual com lágrimas amargas e abundantes,
como fariam se estivessem diante do próprio Jesus Cristo.
Porém, ao confessar os pecados, cuidado e defendam-se de uma
tentação muito funesta: os demônios redobram então seus
esforços para nos levar a não fazer uma confissão completa e
sincera, ou a nos confessarmos sob um nome inventado, ou para
não colocarmos nossas faltas sobre outro, como se tivessem
sido a causa ou a ocasião.
70. Se o hábito que adquirimos de fazer uma coisa qualquer se
torna tão forte e tão poderoso que pode vencer e sobrepujar
todos os obstáculos da natureza, quanto mais não poderá o
hábito de fazer boas obras, ajudados e sustentados pela graça
de Deus?
71. Creiam-me, meus filhos, se desde o início vocês se
entregarem inteiramente ao desprezo, aos sofrimentos e às
humilhações, vocês não terão que combater suas paixões por
muitos anos, logo vocês as vencerão e encontrarão a preciosa
paz do coração.
72. Portanto, não negligenciem em fazer a confissão de seus
pecados ao seu diretor com disposições tão santas e humildes
como se fosse ao próprio Deus. Oh! Já vi pecadores felizes
que, por sentimentos de verdadeira contrição, por uma
confissão humilde e completa, por preces fervorosas, logo
amoleceram a severidade de seu juiz, que parecia inexorável e
transformaram seu rigor e sua indignação em misericórdia e
ternura. É por isso que vemos no Evangelho que são João, este
digno precursor de Jesus Cristo, tendo de conferir o batismo
aos que se apresentavam para o receber, obrigava-os a fazer a
confissão de seus pecados. Ora, ele não tinha necessidade
desta confissão, mas a exigia para buscar a salvação dos
pecadores que recorriam ao seu ministério.
73. Não devemos nos espantar se, depois de havermos
confessado nossos pecados com as disposições requeridas,
ainda nos restem combates a sustentar; pois devemos saber que
é mais fácil lutar contra a corrupção de nossos corpos, que
nos humilha, do que contra o coração que se enche de si, que
nos eleva.
74. Vão com calma e amansem seu ardor, quando lhes contarem a
vida e as virtudes dos anacoretas que vivem no deserto; e não
creiam poder abraçar este tipo de vida que estaria acima de
suas forças, pois, pela obediência, vocês caminham sob o
estandarte do primeiro mártir.
75. Assim, se lhes faltar força e coragem durante o combate,
não abandonem o posto que ocupam, pois é nos momentos
difíceis da vida que temos mais necessidade de um médico
esclarecido e hábil. Ora! É preciso dizê-lo? Aquele que,
ainda que protegido e dirigido pela sabedoria e a experiência
de um superior, mesmo assim se deixa cair, levaria um tombo
mortal e não conseguiria mais se levantar se estivesse a sós
e privado de socorro!
76. Assim sendo, é verdadeiro afirmar que quando temos a
infelicidade de cair em alguma falta, os demônios, para
aproveitar nossa queda e preparar nossa perda eterna, nos
sugerem e nos inspiram fortemente o desejo e o desígnio de
nos retirarmos para a solidão. Mas é evidente que por meio
desta tentação, se eles pudessem nos fazer sucumbir a ela,
estes inimigos de nossa salvação querem apenas acrescentar
uma ferida sobre outra e nos desorientar eternamente.
77. Se o médico espiritual que temos no momento nos declara
que é impossível conseguir a cura que queremos para nossa
alma, não devemos perder a coragem, mas buscar um outro e nos
confiarmos às suas mãos; pois devemos saber que muito poucos
doentes se curaram sem o socorro de um médico. Eh! Quem
ousará sustentar um sentimento contrário? Um navio que
naufraga apesar de ser dirigido por um bom e valente piloto
teria se salvado da tempestade se ele não estivesse ali? Quem
ousará afirmá-lo?
78. É a obediência que produz a humildade e a humildade
produz a paz e a calma na alma; pois ela a liberta das
tempestades das paixões e lhe leva à perfeita vitória sobre
seu próprio coração. É isto que o rei-profeta nos ensina com
estas palavras: “O Senhor se lembrou de nossa humilhação e
nos libertou das mãos dos nossos inimigos[38]”. Nada pode nos
impedir de afirmar que a obediência engendra a preciosa paz
do coração, pois ela produz a humildade e a humildade faz
existir esta paz, que por sua vez aperfeiçoa e coroa esta
humildade. Assim, a obediência é o princípio e a causa da
humildade, e a paz da alma, que é filha da humildade, confere
à sua mãe a perfeição última. É assim que Moisés, que é a
imagem da obediência, deu começo à lei, e que Maria, que é a
imagem da perfeita paz da alma, conferiu a perfeição final à
humildade.
79. Merecem ser severamente punidos por Deus estes doentes
que, conhecendo a destreza e a sabedoria de seu médico pelos
benefícios já obtidos, abandonam-no com desdém, e recorrem
aos cuidados de outro qualquer a quem preferem.
80. Não deixem as mãos de quem em primeiro lugar os
apresentou ao Senhor, pois vocês não encontrarão outro por
quem possam ter uma afeição mais respeitosa.
81. Assim como um soldado sem experiência se expõe a um
grande perigo se se separar de sua companhia para ir sozinho
combater o inimigo, também se expõe ao perigo o monge que,
sem ter passado pelos exercícios espirituais e sem conhecer o
modo como são combatidas e vencidas as paixões, deixa a
sociedade dos irmãos para dirigir-se só, na solidão, fazer a
guerra aos demônios. A temeridade do soldado coloca-o em
risco de perder a vida do corpo, e a do monge de perder a
vida da alma. É assim que o Espírito Santo nos diz que “vale
mais estarem dois juntos do que permanecer só[39]”; ou seja,
para combater eficazmente seus maus hábitos com o auxílio e a
assistência do Espírito Santo, é preciso que o filho seja
assistido pelo pai espiritual.
82. Tirar de um cego seu guia; do rebanho, seu pastor; do
passageiro, o condutor; da criança, seu pai; do doente, seu
médico; do navio, o piloto; não equivale a colocar todas
essas pessoas e coisas em perigo de morrer? Não estará
exposto à mesma infelicidade aquele que, sem o socorro de seu
pai espiritual será temerário o bastante para declarar e
fazer a guerra aos demônios? Ora! Seus inimigos se lançarão
sobre ele, o perfurarão c om suas lanças e o deixarão
estendido no campo de batalha.
83. Aqueles que pela primeira vez se apresentam num lugar
onde se cuida de doentes, deve ter tomado precauções no
sentido de conhecer as doenças que os afetam; e os que pensam
em se submeter ao jugo da obediência devem saber qual a
humildade que possuem no fundo do coração, pois, se os
doentes percebem que sua cura se opera na medida em que as
dores diminuem, os doentes da alma não podem sentir sua cura
espiritual senão na medida em que vejam a humildade crescer
em seus corações, na medida em que envergonhem, se condenem e
detestem suas vidas passadas.
84. Portanto, consultem sua consciência para ver as marcas de
suas almas, assim como consultam o espelho para ver as marcas
de seu rosto. Se agirem assim, isto lhes bastará.
85. Os monges que vivem na solidão sob a direção de um pai
espiritual só têm por inimigos os demônios que se opõem
normalmente à salvação dos homens; mas os que passam sua vida
num mosteiro têm que combater não apenas os demônios, mas
muitas vezes os homens. Os primeiros, por estarem sempre sob
os olhos de seu pai, cuidam de não transgredir suas ordens;
os últimos, por estarem raramente em presença de seu
superior, estão expostos a viver na negligência. Mesmo assim,
estes últimos, caso estejam cheios de fervor e paciência,
podem vantajosamente suprir esta ausência pela doçura, a
resignação e a humildade com as quais suportarão tudo o que
os pode mortificar e fatigar de parte de seus irmãos, e assim
merecer a dupla coroa da glória.
86.
Estejamos
atentos
e
tomemos
todas
as
precauções
possíveis; pois um mosteiro é como um porto cheio de navios:
é fácil que seus balanceios constantes os joguem uns contra
os outros, ferindo-os mutuamente. O mesmo pode ser dito dos
monges, ainda mais se em meio a eles existir alguns com humor
bilioso e irascível.
87. Quando estivermos em presença de nosso superior,
mantenhamos o mais escrupuloso silêncio, e não deixemos
transparecer que o fazemos por sua causa, mas porque aquele
que ama e observa o silêncio é discípulo da sabedoria e atrai
para si as maiores luzes em todas as coisas.
88. Um dia observei um monge interromper seu superior; e lhes
digo que desisti de vê-lo alguma vez sob o jugo da verdadeira
obediência, porque ele usava as palavras de seu pai
espiritual não para se humilhar, mas para se elevar.
89. Devemos distinguir com prudência e sabedoria, observar
com toda atenção possível e pesar com perfeita circunspecção
o tempo, a maneira e as condições em que devemos preferir à
oração os exercícios de que nos encarregamos, pois não
devemos fazê-lo – preferir os exercícios à oração – nem
sempre, nem nas mesmas condições, nem da mesma maneira.
90. Quando você se encontrar no meio dos seus irmãos, cuidado
para não parecer mais justo nem mais sábio do que eles, seja
no que for; do contrário, você incorrerá em dois males:
primeiro, você fatigará sensivelmente seus irmãos com esta
justiça falsa e que não passa de aparência; segundo, você não
tirará para si senão uma tola vaidade e um orgulho bobo.
91. Seja zeloso para com sua alma, mas jamais deixe
transparecer exteriormente sua regularidade; jamais se sirva,
para este miserável fim, nem de ações, nem de gestos, nem de
palavras, nem de qualquer outro sinal secreto, e viva sempre
com esta precaução até sentir que se corrigiu desta paixão
que o faz buscar os louvores dos outros e que o leva a julgar
e desdenhar seus irmãos. Se ainda assim você notar que ainda
está inclinado a desprezá-los, estude a si mesmo fortemente
para conformar sua conduta à deles, e para jamais se
distinguir nem se separar deles por um espírito de vaidade e
de vanglória.
92. Conheci um discípulo que, em presença de outros, se
servia dos louvores que seu superior merecia, bem como de
suas virtudes, para gloriar a si mesmo; mas este miserável,
por colher assim no campo de seu mestre, ao invés da glória e
da honra que imaginara colher, só encontrou vergonha e
confusão, pois todos se puseram a lhe dizer: “Como pode
acontecer que uma árvore tão boa e excelente produza um ramo
tão ruim e marcado por tamanha esterilidade?”.
93. Não pensemos ter adquirido uma paciência perfeita apenas
porque
aguentamos
sem
tremer,
ou
porque
sofremos
generosamente as admoestações e as reprimendas humilhantes de
nosso superior. Suportaríamos da mesma maneira os ultrajes e
as injúrias feitas por todo tipo de gente? Ora! Se sofremos
mansamente o que nosso superior nos faz suportar é porque o
tememos, porque não queremos desagradá-lo, nem faltar-lhe com
o reconhecimento pelos serviços que nos presta, o que aliás é
o mínimo que lhe devemos.
94. O essencial para nós é receber humilhações e desprezo da
mão de quem quer que seja e fazê-las passar por dentro de
nossa alma como uma água que dá saúde e vida; pois esta
bebida amarga não nos é apresentada senão para que dela nos
sirvamos
para
nos
purificar
dos
humores
malignos
e
corrompidos que tornam nossa alma doente. Se você receber
assim as contradições e o desprezo, é porque uma pureza
perfeita estará se tornando ornamento de sua alma e que o
brilho da luz divina não mais se eclipsará no seu espírito.
95. Quem quer que veja um grande número de monges repousarem
tranquilamente sobre a sabedoria e os cuidados que tenha por
eles, este deve cuidar para não se glorificar, mas deve se
lembrar de que existe sempre uma infinidade de ladrões e de
bandidos ao seu redor e ao redor dos seus, prontos a lhes
estender armadilhas ocultas. Gravem profundamente em seus
corações este aviso que nos deu Jesus Cristo: “Depois que
vocês tiverem feito tudo o que lhes foi ordenado, digam
ainda: Somo servidores inúteis, só fizemos o que devíamos
fazer[40]”; pois somente na hora da morte saberemos de fato o
juízo que será feito a respeito de nossas boas obras e de
nosso trabalho.
96. Um mosteiro é nesta terra uma espécie de paraíso; convém,
portanto, que sendo assim imitemos os sentimentos e as
afeições dos anjos que rodeiam o trono de Deus no céu, e que
cumprem com tanta perfeição suas adoráveis vontades. Ora,
neste paraíso terrestre, vemos monges cujo coração é tão seco
e duro como as pedras; em compensação, há outros que, por
suas lágrimas de terna e sincera compunção merecem as
consolações divinas. Mas lembremos aqui da bondade inefável
do Senhor: os primeiros são duros e insensíveis para que não
caiam
no
orgulho,
que
lhes
caberia
se
tivessem
a
sensibilidade dos segundos; e estes são consolados pela
abundância de lágrimas que espalham.
97. Um pequeno fogo é capaz de amolecer uma grande massa de
cera; muitas vezes uma pequena humilhação, um ligeiro desdém
inesperado pode amansar, corrigir e fazer desaparecer a
rudeza de espírito, a dureza, a insensibilidade e o
endurecimento do coração.
98. Conheci dois monges que se escondiam num lugar secreto
para examinar os trabalhos e para escutar os gemidos de
alguns santos atletas de Jesus Cristo. Um deles agia assim
com um coração direito e simples: era pelo ardente desejo de
imitá-los; o outro, ao contrário, tinha uma péssima intenção:
ele o fazia a fim de poder depois rir-se publicamente destes
bons monges, ridicularizá-los e desviá-los de seus santos
exercícios de piedade.
99. O monge que vive numa comunidade não extrai tantos frutos
do canto dos salmos como da oração, pois a confusão das vozes
dissipa a atenção e perturba o intelecto.
101. Combata corajosamente a leviandade do espírito, quando
os pensamentos são vagabundos e voláteis, e force-o a
retornar sobre si mesmo. De resto, Deus não exige dos que
ainda são crianças em relação à obediência que façam orações
isentas de toda distração. Não se desencorajem então se,
durante suas orações, seu espírito vague de lá para cá por
causa de pensamentos involuntários; mas conduza-o fortemente
do recolhimento interior. Somente os anjos são capazes de uma
atenção sustentada e perseverante.
102. Quem quer que, no segredo de seu coração, tenha
resolvido se expor mil vezes à morte do que, por toda sua
vida, não sustentar com vigor a guerra que iniciou um dia
para salvar sua alma, este não cairá facilmente nos
inconvenientes que acabei de assinalar. A inconstância e as
mudanças de lugar são fontes inesgotáveis de males e
infelicidades; assim é que os que passam de um lugar a outro,
de um mosteiro a outro, não estão longe de receber o epíteto
vergonhoso de infames. Nada é melhor para produzir a
esterilidade
das
boas
obras
numa
alma
do
que
esta
inconstância continuada.
103. Assim, se vocês chegarem a uma escola de medicina
espiritual que lhes seja totalmente desconhecida e se se
colocarem sob a direção de um pai espiritual que vocês não
conhecem, o que devem fazer é examinar com atenção qual é o
espírito e qual a maneira de viver de todos os que estão
reunidos naquele local. Se vocês acharem que os operários e
os ministros da salvação são capazes de lhes trazer algum
alívio e de contribuir para a salvação de sua alma, sobretudo
se vocês encontrarem aí um remédio singular e eficaz contra a
vaidade e o inchaço do coração aproximem-se deles sem temor e
com confiança, reúnam-se com eles, vendam-se a eles; e para
passar o contrato de venda, apresente-lhes o ouro precioso da
humildade; como papel, a obediência; como lacre, seus
serviços e trabalhos; e por testemunhas os anjos. Rasguem
diante deles a cédula vergonhosa por cujo valor vocês se
tornaram escravos de suas próprias vontades; pois se vocês
até então erraram por aí, sem se fixar em parte alguma,
perderam o preço pelo qual Jesus Cristo os resgatou. Que este
mosteiro seja para vocês como um túmulo, de onde os mortos
não devem sair senão para comparecer diante do soberano Juiz;
e se alguns saem por outras razões, temo que seja porque
estão realmente mortos. É por isso que devemos pedir ao
Senhor que nos afaste desta espantosa infelicidade.
104. Os preguiçosos, para não fazer as coisas cansativas que
lhes são ordenadas, costumam alegar a necessidade de orar;
mas quando as ordens são doces ou agradáveis, têm tanta
vontade de orar quanto de se queimar.
105. Existem monges que desistem dos encargos e dos empregos
que exercem no mosteiro, mas por motivos bem diferentes; pois
uns os abandonam em favor de um irmão, ou porque alguém lhes
pede; outros não querem exercê-los por preguiça e comodidade;
estes renunciam por uma vã ostentação, aqueles os deixam com
grande prazer para serem mais livres.
106. Se você entrar para uma comunidade e perceber que sua
alma, em lugar de se iluminar com novas luzes, mergulha ao
contrário nas trevas mais profundas, não há outra coisa a
fazer do que sair o mais depressa possível; pois ainda que o
homem de bem possa sempre e em qualquer lugar permanecer um
homem de bem, o bandido não se torna bom em parte alguma.
107. No mundo, as maledicências e as calúnias produzem
normalmente discussões e animosidades; num mosteiro a
intemperança mata todas as virtudes e inspira o horror à vida
religiosa. Assim, se lhes foi dado reduzir à escravidão este
domínio tirânico, vocês desfrutarão da paz e da tranquilidade
da alma em qualquer lugar; mas se ela estabelecer seu império
sobre vocês, sua salvação estará em perigo iminente de agora
até a morte.
108. Deus, por um favor singular, concede aos que são
verdadeiramente crianças obedientes de ver e contemplar as
virtudes de seu superior, e lhes esconde corretamente as más
qualidades e as más ações. O demônio, que é o inimigo
declarado da virtude, faz tudo ao contrário.
109. Amigos, tomemos o mercúrio como imagem da perfeição da
obediência; e atentemos para o fato de que embora ele esteja
continuamente em movimento e se coloque sob os demais
líquidos ele é sempre puro e não se mancha com nenhuma
impureza.
110. Portanto, quem praticar a virtude com santo ardor deve
cuidar para não crer que os demais se entregam à negligência;
pois eles merecem ser julgados e condenados mais severamente
do que os que condenam e criticam a preguiça. Eis por que eu
penso que o bom patriarca Lot fui considerado digno de ser
chamado de justo, porque, vivendo no meio de ímpios, ele
jamais condenou ninguém.
111. É verdade que sempre e em toda parte devemos trabalhar
para preservar nossa alma da dissipação, das perturbações e
da inquietude; porém isto é ainda mais importante no momento
em que nos entregamos aos exercícios da prece e ao canto dos
salmos: pois é então que os demônios redobram seus esforços
para encher nosso espírito de distrações, a fim de que
percamos o fruto de nossa santa ocupação.
112. É verdadeiramente servidor de Deus aquele que, ao mesmo
tempo em que serve a seus irmãos, eleva seu coração ao céu e
nele fixa seus votos, sua afeição e seus sentimentos, e não
cessa de bater à porta de Deus com preces fervorosas.
113. As injúrias, o desdém, as humilhações e todas as coisas
duras e sofridas produzem a amargura do absinto na alma de
quem está devotado aos deveres da obediência; enquanto que os
louvores, os aplausos e as honras enchem de uma doçura
semelhante à do mel o coração de quem só busca as coisas
doces e agradáveis. Mas lembremo-nos de quais são as
propriedades do mel e do absinto: enquanto que este purifica
o estômago e as entranhas dos humores malignos e biliosos,
aquele quase que só os faz aumentar.
114. Tenhamos uma confiança sem limites naqueles que, no
Senhor, são encarregados de conduzir nossa alma ao porto da
salvação, ainda que nos pareça que eles de nós exigem coisas
contrárias
à
salvação;
pois
é
sobretudo
nestas
circunstâncias, nestas circunstâncias penosas, que nossa
confiança em suas luzes e em sua sabedoria é testada no fogo
da obediência e da humildade; e a marca menos equívoca que
podemos dar da firmeza de nossa fé consiste em cumprir sem
hesitar aquilo que nossos superiores nos ordenam, ainda que
suas ordens nos pareçam opostas ao que esperamos e desejamos.
115. Já dissemos que a humildade nasce da obediência; e a
prudência religiosa tem sua origem na humildade. Os doutores
a chamam de discernimento. Cassiano disse desta virtude
coisas admiráveis num excelente tratado específico sobre o
tema. Ora, esta excelente virtude orna o espírito com luzes e
lhe comunica até a faculdade de prever as coisas futuras.
Considerando assim estas vantagens, quem poderá se recusar a
percorrer a bela carreira da obediência? Foi ela que o
salmista cantou: “Você preparou, meu Deus, em sua grande
Bondade, um tesouro para seu povo”; e este povo feliz,
podemos assegurar que são os monges obedientes, e que este
tesouro preciosa é a presença de Deus em seus corações.
116. Não percam jamais a lembrança deste grande servidor de
Deus, deste intrépido atleta de Jesus Cristo, o qual, durante
os dezoito anos em que viveu em perfeita obediência a seu
superior, nunca recebeu dele uma só vez estas palavras de
consolo: Meu filho, desejo que você se salve! Mas, enquanto
os homens lhe recusavam esta consolação, o próprio Deus o
consolava admiravelmente, pois ele não dizia apenas no fundo
do seu coração: “Desejo que você seja a sombra dos meus
eleitos”, palavras que parecem expressar algo incerto, mas
ele assegurava que ele de fato fora salvo; na verdade, o que
ele lhe anunciava era um estado certo e indubitável.
117. Dentre os que vivem sob o jugo da obediência, existem
alguns que não dão atenção ao fato de viver uma ilusão
bastante funesta: trata-se daqueles que, conhecendo a
condescendência de seu superior, lhes pedem e obtêm cargos,
encargos e exercícios conforme a seus gostos e inclinações;
mas que saibam e compreendam estes infelizes que assim
obtendo o que desejam perdem todo direito à coroa e à
recompensa
destinadas
à
perfeita
obediência:
pois
a
obediência consiste numa renúncia completa e absoluta a toda
dissimulação ou vontade própria.
118. Acontece às vezes que um monge, tendo recebido uma ordem
de seu superior, prevê que se a cumprir sofrerá, e assim, por
este motivo, não a cumpre; como também acontece que outro
monge, prevendo a mesma coisa, executa sem hesitar a ordem
recebida. Pergunto: qual dos dois monges teve a conduta mais
santa e mais conforme ao espírito da obediência?
119. É preciso nunca pensar que o demônio possa agir de modo
contrário à vontade que ele sente de nos fazer mal; vocês
devem estar convencidos desta verdade pelo exemplo daqueles
que, tendo vivido por algum tempo numa cela ou num mosteiro,
com doçura e paciência, caíram depois no relaxamento. Assim,
se experimentamos em nós o desejo de deixar um mosteiro para
passar a outro, devemos, a fim de saber o que Deus quer de
nós, examinar seriamente se não lhe agradará mais que
permaneçamos aonde estamos; pois me parece que esta é uma
tentação que devemos combater; ao sermos atacados assim pelo
demônio, devemos nos defender.
História de santo Acácio.
120. Eu me tornaria culpado de malícia e crueldade se
passasse em silêncio certas coisas a respeito das quais não
se pode calar. Ora, foi João Sabaíta, a quem prezo
muitíssimo, que me contou estas coisas maravilhosas; e você
sabe por experiência própria, caro pai, o quanto este grande
homem foi isento de paixões e de exaltação, e o quanto lhe
aborrece a vanglória nas palavras. Eis o que ele me disse:
“Havia num mosteiro na Ásia onde eu vivi um tempo, um ancião
muito negligente e de má conduta; digo-o não para julgar as
intenções secretas de um homem, mas em honra da verdade.
Aconteceu, não sei como, que este ancião tinha como discípulo
Acácio,
jovem
de
admirável
simplicidade
e
espantosa
prudência. Este jovem monge sofria de parte de seu mestre
tantos e tão maus tratos, que muitas pessoas recusariam crer;
pois ele não se contentava em cobri-lo e oprimi-lo com
injúrias, ultrajes e humilhações, mas ainda o espancava e
enchia seu corpo de ferimentos e chagas por causa dos golpes
que descarregava sobre ele todos os dias. Acácio sofria todas
essas indignidades com uma paciência e uma sabedoria
verdadeiramente espantosas. Ora, como eu via que a cada dia
este jovem era tratado mais cruelmente, como se fosse o mais
vil dos escravos, lhe dirigia algumas palavras de consolo
quando o encontrava: ‘Caro Acácio, dizia-lhe eu, com está
você hoje? O que há de novo?’. Como resposta, este bom monge
me mostrava os olhos ternos e sem vivacidade, um pescoço
maltratado e uma cabeça cheia de feridas e contusões; e como
eu sabia quão grande e generosa era sua paciência, eu me
contentava em lhe dizer, para encorajá-lo: ‘Coragem, caro
irmão, tudo vai bem, sim, tudo vai bem: sofra sempre com
doçura e resignação, e logo você colherá os frutos abundantes
da paciência’. Ora, depois de haver passado nove anos sob a
ferocidade deste impiedoso ancião, sua alma santa voou para o
céu. Cinco dias depois da morte de Acácio, seu mestre foi
procurar um ancião solitário, homem muito recomendado por
suas virtudes, e, depois de tê-lo saudado, lhe contou da
morte de seu santo e fervoroso discípulo. Mas o bom velho lhe
respondeu que em verdade ele não podia acreditar. Então o
mestre de Acácio acrescentou: ‘Venha comigo, e verá que não o
engano’. O ancião se levantou, e foi com este padre até o
túmulo daquele grande e valente atleta de Jesus Cristo.
Quando ali chegou, como se Acácio estivesse vivo – e, de
fato, ele não estava morto, mas dormia o sono dos justos –
ele lhe dirigiu estas palavras: ‘Irmão Acácio, é verdade que
você morreu?’. Então aquele nobre filho da obediência, mesmo
morto, deu este ilustre exemplo de submissão: pois ele
obedeceu àquele que o interrogava, e lhe respondeu: ‘Como
poderia, meu Pai, um discípulo sincero da obediência
morrer?’. Estas palavras tocaram o mestre do jovem monge com
tão grande terror que, desmanchado em lágrimas, este caiu com
o rosto por terra e se apressou a pedir ao superior do
mosteiro que lhe permitisse fixar moradia junto ao túmulo de
seu discípulo. Ele obteve esta permissão e aí passou o resto
de sua vida, praticando uma modéstia, uma paciência e uma
submissão perfeitas. Ele não cessava de repetir aos padres
desta comunidade: ‘Pais meus, eu cometi um homicídio’. Ora,
meu pai, acho bom lhe dizer que o ancião que falou com o
jovem Acácio foi o próprio abade João, que nos conservou e
contou esta história, sob outro nome, até que eu descobri que
fora com ele mesmo que a coisa tinha se passado.
História de João o Sabaíta, ou de Antióquio.
121. Ele me disse que enquanto vivia ainda no mesmo mosteiro,
notou um outro monge que estava sob a disciplina de um padre,
homem de idade avançada, de espírito manso, paciente,
razoável e moderado; mas como seu jovem discípulo percebeu
que seu mestre era cheio de respeito e precaução para com
ele, considerou sabiamente que esta conduta lhe seria tão
funesta e daninha como fora a muitas outras pessoas. Ele se
permitiu solicitar ao bom monge que lhe permitisse se retirar
de sua companhia. Ora, como este tinha ainda um outro
discípulo, não viu dificuldade em atender ao pedido. Então o
jovem deixou seu mestre, que bondosamente lhe deu muitas
cartas de recomendação, para que ele pudesse entrar para
outro mosteiro no Ponto. Na primeira noite em que ele passou
neste mosteiro, ele viu em sonhos pessoas que o pressionavam
fortemente a que lhes pagasse uma soma de dinheiro que ele
lhes devia; estas, depois de examinarem seriamente as coisas,
convenceram-no de que ele era devedor de cem libras de ouro.
Ao acordar, ele entendeu o que significava esta visão. Por
isso ele não cessava de repetir para si mesmo: “Infeliz
Antióquio (este era seu nome), é bem verdade que lhe restam
muitas dívidas a quitar”. Continuou ele: “Eu passei três anos
neste mosteiro obedecendo cegamente a tudo o que me ordenavam
e, como eu era estrangeiro, todo mundo me desprezava, me
humilhava e me maltratava. Depois de haver passado assim
esses três primeiro anos, tive uma segunda visão, na qual
alguém me quitava apenas dez libras de outro das cem que eu
devia. Ao acordar, compreendi a advertência que me vinha do
alto e disse para mim mesmo: ‘Se durante três anos de
trabalhos e penas você não pagou mais do que dez libras de
ouro, quando poderá você, miserável, quitar o restante? É
preciso, pobre Antióquio, que para se libertar inteiramente
você suporte trabalhos maiores e devore humilhações mais
profundas’. Tomei a resolução extraordinária de me fingir de
louco, mas sem fazer crer que havia perdido inteiramente a
razão. Os padres do mosteiro, vendo-me neste estado, e
conhecendo por outro lado a prontidão com que eu cumpria as
ordens que me eram dadas, me encarregaram de todas as
ocupações mais penosas e mais difíceis da casa, considerando
a mim como o dejeto da comunidade. Passei mais treze anos
neste estado, ao fim dos quais as mesmas pessoas que vira me
apareceram outra vez durante o sono e me quitaram enfim toda
a dívida. Ora, durante todos esses anos, quando os padres me
oprimiam com maus tratos, o pensamento da enorme dívida que
eu tinha a pagar me enchiam de força e coragem e me faziam a
tudo sofrer com paciência e resignação”. Eis, meu caro padre
João, aquilo que João o Sabaíta, este tesouro de sabedoria,
me contou a respeito de si mesmo, sob o nome falso de
Antióquio. Foi ele próprio quem por sua heroica paciência,
pode ser libertado de toda a dívida e mereceu o perdão de
todos os seus pecados.
122. Mas consideremos ainda qual foi sua rara prudência nos
julgamentos que fazia sobre as disposições internas dos
homens, prudência admirável que ele só adquiriu por causa de
uma perfeita obediência. No tempo em que permaneceu no
mosteiro de São Sabas, três monges se apresentaram a ele para
se colocar sob sua disciplina. Ele os recebeu com afeto
especial, e fez tudo o que sua caridade lhe sugeriu para
aliviá-los da fadiga da viagem; mas, depois de três dias este
santo ancião lhes dirigiu estas palavras: “Meus irmãos, ele
lhes disse, eu não passo de um miserável pecador; é
impossível para mim fazer o que vocês me pedem”. Porém, os
monges não levaram em conta sua resposta nem as razões que
ele alegava, e lhe pediram insistentemente para que os
recebesse como discípulos, tão grande consideravam sua
virtude. E, como viram que nada o poderia fazer mudar de
ideia, lançaram-se a seus pés e imploraram que ele lhes desse
ao menos algumas regras salutares de conduta e que lhes
dissesse de que modo e em que lugares deveriam passar o resto
de suas vidas. Cedendo então à suas ardentes súplicas e
sabendo que eles receberiam seus conselhos com submissão e
humildade, este santo ancião disse a um deles: “Meu filho,
agradará a Deus que você viva na solidão sob a direção de um
pai espiritual”. Depois, dirigindo-se ao segundo: “Quanto a
você, vá e consagre ao Senhor sua vontade, sem nada reservar
para si, carregue a cruz que ele lhe destinou: viva num
mosteiro,
em
sociedade
com
os
irmãos,
e
você
terá
indubitavelmente um tesouro no céu”. Enfim ele disse ao
terceiro: “Quanto a você, é preciso que não haja um instante
sequer de sua vida em que você não pense nesta sentença do
Senhor: ‘Aquele que perseverar até o final, este será
salvo[41]’. Vão, então, e façam de modo a que dentre todos os
homens não haja ninguém mais severo do que aqueles que vocês
tomarem como mestres e condutores de suas vidas religiosas;
jamais se separem deles e a cada dia avaliem como leite e mel
os desprezos e humilhações que os fizerem passar”. A estas
palavras, um dos irmãos respondeu a este grande homem: “Mas,
se este pai espiritual viver na preguiça e na negligência, o
que devemos fazer?”. Ele disse: “Ainda que você o veja cair
em alguma falta que lhe cause horror, permaneça com ele e
contente-se em dizer para si mesmo: ‘meu amigo, o que você
veio fazer aqui?’. Então, triunfante da tentação, você
sentirá todo o balão do orgulho se esvaziar, e o fogo da
concupiscência diminuir e se extinguir”.
123. Todos nós que tememos ao Senhor devemos nos esforçar
para combater sob seus estandartes com toda a energia e
coragem de que somos capazes, por medo de, colocados numa
escola de virtude, ao invés de aprendermos a ciência feliz
das boas obras, aprendermos a funesta arte de nos tornarmos
viciosos e falsos, astuciosos e enganadores, raivosos e
coléricos; e não se espantem que estas infelicidades ocorram
às vezes: pois, na medida em que estamos neste mundo, seja
dentre tripulantes, seja dentre operários, seja onde for, os
inimigos de nosso rei, os demônios, não nos atacam com grande
violência; mas quando eles nos veem sob os estandartes de
nosso divino General, e percebem que ele nos recebeu a seu
serviço, dando-nos armas, uma espada, um uniforme militar,
então eles fremem de furor, procuram e empregam toda sorte de
meio de armadilhas para nos derrotar; é por isso que estamos
essencialmente obrigados a vigiar sem cessar, por nós e ao
redor de nós.
124. Eu vi crianças amáveis pela inocência e simplicidade de
suas almas e pela beleza de seus corpos que, enviadas para
casas de educação para aí se formar na ciência e na sabedoria
e adquirir outros conhecimentos úteis, pelo comércio que
tiveram
com
condiscípulos
viciosos
e
perversos,
se
perverteram também, e infelizmente só aprenderam a mentira, a
astúcia e a corrupção do coração. Quem tiver inteligência que
entenda porque falo isto.
125. É impossível que aqueles que se aplicam com todas as
forças para adquirir a ciência da salvação não façam nela
grandes progressos. Mas admiremos aqui a divina Providência:
enquanto uns sabem o progresso que adquiriram, outros não o
percebem.
126. Um banqueiro que pretende gerenciar bem seus negócios
não deixa de verificar diariamente, a conta exata e
circunstanciada dos ganhos e perdas que fez durante a
jornada. Mas ele não poderá saber com certeza aonde está, se,
a cada instante, não anotar os negócios que trata; é desta
maneira que lhe será possível ter um conhecimento exato
daquilo que fez a cada dia.
127. Quando recriminamos um mau monge, o vemos em seguida
triste e de mau humor, ou então se atirando com baixeza aos
pés do superior que o admoestou, a fim de lhe apresentar mil
desculpas. Mas ao se humilhar assim, o faz menos pelo desejo
de praticar a humildade e a submissão do que para por fim a
uma coisa que o afadiga. Assim, se vocês forem mortificados
por reprovações amargas, saibam guardar um silêncio salutar e
suportem com paciência corajosa o ferro e o fogo das
correções severas aplicadas às suas almas, que os purificarão
e espalharão no seu espírito luzes abundantes; e quando seu
médico espiritual terminar sua operação prosternem-se aos
seus pés para pedir-lhe perdão; porque se vocês o fizerem no
momento em que ele os repreende com zelo, ele poderá não os
escutar, e até rejeitá-los.
128. Os que vivem em comunidades devem sem dúvida travar uma
guerra mortal contra todos os vícios; mas existem dois, acima
de tudo, que devem atacar todos os dias com mais vigor e
coragem do que todos os outros. Estes dois vícios são a
intemperança e a cólera. Ora, eu digo que estes dois vícios
devem ser objeto especial dos cenobitas, porque estas paixões
encontram na sociedade dos homens que vivem conosco os
alimentos que melhor lhes convêm.
129. Ainda que estejamos bem longe de praticar virtudes raras
e sublimes, o demônio, para nos fazer quebrar o jugo da
obediência sob o qual temos a felicidade de viver, não deixa
de nos sugerir isto em pensamento e nos inspirar um desejo
intenso disto. Penetrem no íntimo dos monges imperfeitos e
temerários e vocês verão que eles suspiram pela vida
solitária, que eles desejam com ardor os jejuns mais
rigorosos, a prece mais contínua e mais recolhida, a
humildade mais profunda, a mais constante meditação da morte,
a compunção mais viva, a vitória mais completa sobre suas
paixões, o silêncio mais absoluto e uma pureza de anjo. Mas
como, por uma conduta secreta da divina Providência, eles não
puderam, desde o começo de seu noviciado, praticar segundo
seu desejo estas belas e excelentes virtudes, logo se
desencorajaram, abandonando as práticas mais comuns e se
retirando do mosteiro. O demônio os enganou, fazendo-os
desejar fora de hora a prática destas virtudes, a fim de que
eles não pudessem, pela perseverança, adquiri-las no tempo
conveniente. Mas não são apenas os monges cenobitas que o
demônio busca enganar, ele ataca também os anacoretas. É
assim que, para desencorajar e derrubar os solitários, este
inimigo enganador e mentiroso lhes prega e exalta a
felicidade dos monges que vivem em comunidade; ele elogia a
hospitalidade que eles exercem, os serviços de caridade que
fazem uns aos outros, sua afeição e sua união fraternais, os
cuidados afetuosos e assíduos que eles têm para com os
doentes, e mil outras vantagens a fim de os fazer desgostar
do gênero de vida que abraçaram, e fazê-los se perderem por
uma falsa via.
130. Mas é preciso confessar que a hesíquia só está alcance
de um pequeno número, e esta vida de perfeição não convém
senão àqueles a quem o Senhor, por graças especiais e
consolações celestes, sustenta e fortifica nos trabalhos
penosos que eles têm que suportar e nos combates difíceis e
cruéis que eles têm que sustentar.
131. O conhecimento que temos de nossas más disposições e de
nossos defeitos deve nos fazer buscar e escolher de
preferência o estado de obediência como sendo o mais
apropriado e mais conveniente. Por conseguinte, aquele que se
sente levado à intemperança e aos prazeres carnais cuide para
se colocar sob a disciplina de um superior experimentado e de
inflexível rigor na prática da temperança e da sobriedade,
mais do que de um fazedor de milagres, de um amigo da
hospitalidade ou de um homem que goste de servir os outros à
mesa. Quem sente seu coração agitado pela vaidade e possui o
orgulho escolha como pai espiritual um homem de grande
severidade e perfeita austeridade, que jamais lhe mostre um
rosto risonho e satisfeito, mas que seja constantemente sem
clemência nem doçura.
132. Jamais devemos procurar como diretor um homem que, por
sua sabedoria e luzes, seja capaz de predizer as coisas
futuras e de prever o que vai acontecer. Desejemos e
procuremos os verdadeiros doutores, que, por seus bons
exemplos na prática da obediência e da humildade, e por sua
sólida ciência, possam nos curar de nossas enfermidades
espirituais, nos dar regras de conduta, nos fazer conhecer o
estado e o lugar que são necessários para que nos
santifiquemos.
133. Assim, se vocês têm o desejo sincero de se devotarem
inteiramente à obediência, não percam nunca de vista o
exemplo que nos deu Abacir; como este grande servidor de
Deus, digam com frequência a si mesmos: “Meu superior quer
provar e conhecer a minha fidelidade; é por isso que ele me
coloca à prova”. Este pensamento os impedirá que se enganem,
vocês não se afastarão da via a seguir; e se vocês tiverem
nele uma confiança tão mais completa e um amor tão mais
afetuoso quanto mais ele os repreender com rigor e
severidade, esta será uma marca certa e indubitável de que o
Espírito Santo concedeu em visitá-los e que ele habita
secretamente em seus corações. De resto, observem bem que, se
vocês sofrerem com paciência corajosa e constante às
admoestações e humilhações de seu superior, longe de se
glorificar e regozijar por isto, terão mil razões para chorar
e gemer; pois foi sua conduta que mereceu estas reprimendas
ou estas correções humilhantes, e que fez com que seu pai
espiritual ficasse de mau humor contra vocês.
134. Não se perturbem nem fiquem espantados com o que vou
dizer, pois eu o direi apoiado e fundamentado sobre uma
autoridade sólida: Moisés. Eu lhes digo que é menos funesto
pecarmos contra Deus do que contra nosso pai espiritual. E
eis a razão: se com nossos pecados irritamos a Deus contra
nós, nosso pai espiritual pode acalmá-lo e nos reconciliar
com ele; mas quando ofendemos nosso pai em Deus, a quem
poderemos
recorrer
para
tornar
Deus
propício
a
nós?
Entretanto, parece-me que Deus acalmará nosso superior, assim
como nosso superior acalmou a Deus em nosso favor.
135. Em tudo o que dissemos, existe uma coisa que devemos
examinar, considerar e pesar com grande cuidado e sem paixão:
é saber em que circunstâncias somos obrigados a sofrer com
amor e reconhecimento, com paciência e sem nada dizer as
admoestações
feitas
por
nosso
superior,
e
em
que
circunstâncias nos é permitido, para nos desculparmos,
explicar a ele o porquê de nossa conduta merecedora de sua
indignação e reprimendas. Quanto a mim, penso que todas as
vezes em que as humilhações não recaem senão sobre nós
devemos guardar silêncio; pois é uma excelente ocasião para
enriquecer e ornamentar nossa alma. Mas se estas humilhações
são nocivas ao próximo, me parece que, por caridade e pelo
bem da paz, estamos autorizados a romper o silêncio e
defender nosso irmão, cuja inocência conhecemos.
136. Ninguém pode instruir tão bem sobre as vantagens da
prática da obediência como aqueles que não mais a praticam,
pois eles compreendem bem em que estado de felicidade viviam
enquanto estavam sob o jugo da submissão.
137. Quem estiver verdadeiramente possuído do desejo de
adquirir a paz e a tranquilidade da alma, e de encontrar a
Deus, sente uma grande perda quando passa um dia em sua vida
sem sofrer alguma humilhação.
138. Assim como as árvores mais lançam raízes fortes e
profundas quanto mais são agitadas pelo vento, também os que
vivem na obediência se tornam fortes e invencíveis quanto
mais são testados e provados.
139. Podemos dizer que era cego e recobrou a visão que nos dá
Jesus Cristo aquele que, reconhecendo ser fraco demais para
levar a vida eremítica, sai da solidão e se dirige para um
mosteiro para aí se consagrar e se dedicar inteiramente aos
salutares exercícios da obediência.
140. Generosos atletas do Senhor tenham coragem, tenham
coragem, sim, eu repito pela terceira vez: tenham coragem!
Perseverem em correr nesta bela carreira da obediência e
escutem atentamente as palavras do Sábio: no mosteiro, “o
Senhor os testa como quem prova o ouro na fornalha e os
recebe em seu seio com as vítimas que são sacrificadas para
serem oferecidas a ele nos holocaustos[42]”. Até agora,
tratamos dos degraus do paraíso que estão expressos no número
dos quatro evangelistas. Atleta, continue a correr sem temor!
QUINTO DEGRAU
Da verdadeira e sincera penitência.
1. Naquele tempo, João correu mais depressa do que Pedro[43];
é por isso que a obediência vem aqui antes da penitência.
Pois quem chega primeiro é a imagem da obediência, e o outro
a imagem da penitência.
2. A penitência é o restabelecimento do batismo. É uma
espécie de contrato por meio do qual prometemos a Deus
corrigirmos as faltas de nossa vida passada e viver melhor o
futuro. A penitência, se eu ousar me servir desta expressão,
esta carregada com os interesses da humildade; trata-se de
uma renúncia perfeita a todos os prazeres dos sentidos, de um
julgamento severo que fazemos contra nós mesmos, da ocupação
mais séria de uma alma que se aplica de bom grado aos
afazeres de sua salvação eterna. Ela é a filha mais velha da
esperança e a inimiga mortal do desespero. O verdadeiro
penitente é um criminoso que confessa seus pecados sem
desculpar nenhuma infâmia. A penitência tem o dom de nos
reconciliar com Deus, fazendo com que pratiquemos as boas
obras opostas às faltas cometidas; é ela que descarrega.
Purifica e santifica a consciência; é ela que nos leva a
sofrer generosamente todas as penas e todas as aflições que
nos acontecem. Aquele a quem ela anima se torna de uma
atividade admirável no sentido de buscar e empregar todos os
meios capazes de puni-lo; é ela que combate e supera a
intemperança, e que acusa sem negociar no tribunal da
consciência.
3. Todos vocês que, com suas múltiplas ofensas, irritaram a
cólera de Deus, acorram, aproximem-se, venham e escutem:
reúnam-se aqui e considerem comigo as maravilhas que aprouve
a Deus me permitir descobrir e me dar a conhecer, para o
exemplo e a salvação de todos. Comecemos por dizer algumas
coisas a respeito desses homens devotados a Jesus Cristo por
meio de profundas humilhações, dignos, por isso mesmo, dos
nossos
louvores
e
dos
primeiros
lugares.
Escutemos,
contemplemos e imitemos estes belos modelos, nós todos que
tombamos em faltas mortais! Levantem-se e estejam atentos,
vocês que ainda estão sob o vergonhoso jugo do pecado!
Irmãos, deem ouvidos às minhas palavras; e vocês, quem quer
que sejam, se desejam sinceramente se reconciliar com Deus
por meio de uma verdadeira conversão, não deixem de prestar
aqui toda a sua atenção.
4. Tendo eu sabido – eu, que não passo de um homem preguiçoso
e imperfeito – no tempo em que eu residi no grande mosteiro
de que falei, que havia alguns religiosos que, num outro
mosteiro aos qual chamávamos de Prisão, levavam uma vida
especialmente
extraordinária
e
que
praticavam
toda
a
perfeição da humildade, pedi ao santo abade do grande
mosteiro, ao qual estava submetida esta outra comunidade,
permissão para ir até lá, para ser testemunha do que lá se
passava. Ora, este grande luminar, este santo abade me
permitiu de boa vontade, até por que ele temia causar-me a
menor pena.
5. Assim que cheguei ao mosteiro dos Penitentes (que
poderíamos chamar de região do choro e dos gemidos, a Prisão,
para dizer numa palavra), fui testemunha, se me é permitido
dizer, de coisa que o olho de um moleirão e preguiçoso jamais
viu, que o ouvido de um negligente jamais escutou, e que o
espírito de um indolente jamais compreendeu; fui testemunha,
repito, de ações e de palavras capazes de fazer violência ao
próprio Deus, de trabalhos e de mortificações tão poderosas a
ponto de merecer em pouco tempo sua Clemência e sua
Misericórdia.
6. Vi alguns destes culpados inocentes passar noites inteiras
de pé, com os pés imóveis, lutando vigorosamente contra o
cruel e inoportuno sono, não se concedendo o menor repouso,
acusando a si próprios de lassidão e negligência, instando a
si mesmos na perseverança e fazendo a si próprios as mais
humilhantes reprimendas.
7. Vi outros que, com os olhos humildemente postos no céu,
imploravam pela Clemência e a Bondade de Deus com palavras e
um tom de voz que penetravam a alma de piedade e compaixão.
8. Vi ali outros que, como infames celerados, com as mãos
amarradas às costas e cobertos de opróbrio, presas da mais
dilacerante aflição, curvavam humildemente o rosto à terra,
considerando-se indignos de olhar o céu, e que não ousavam
falar, nem soltar gemidos, nem fazer preces.
9. O pensamento aterrorizador de seus pecados, os remorsos
abrasadores de sua consciência terrificada, a vergonha e o
opróbrio que sentiam, os preenchiam, e atormentavam de tal
maneira, que eles eram incapazes de ousar pronunciar o santo
nome de Deus para invocá-lo, eles não sabiam nem como começar
nem como terminar as preces que queriam lhe endereçar, e eram
assim obrigados a lhe apresentar uma alma muda, um espírito
cheio de trevas, um coração quase entregue aos horrores do
desespero. Outros vi que, tristemente sentados no chão,
cobertos de cinzas e vestidos com um rude cilício, escondiam
o rosto entre os joelhos e arranhavam a face penitentemente.
10. Vi ainda outros que batiam no peito sem cessar,
relembrando com arrependimento inexprimível o estado de
felicidade em que viviam quando praticavam a virtude. Dentre
estes ilustres penitentes, alguns inundavam a terra com a
abundância de suas lágrimas; outros, incapazes de chorar,
feriam-se com golpes; outros, não conseguindo comprimir a dor
que lhes trespassava o coração, o exprimiam por soluções
semelhantes aos lamentos dos que assistem ao funeral de seus
próximos; outros, em suas celas, rugiam como leões em suas
cavernas, frementes de temor e medo, afogando-se em seus
gemidos, ou, por vezes, incapazes de conte-los, explodiam em
gritos contundentes e lamentosos.
11. Vi alguns que por seus gestos pareciam estar fora de si,
e que, pela dor que suportavam, permaneciam numa estupefação
indizível, e mantinham o mais triste silêncio. Poderiam ser
tomados facilmente por pessoas privadas de razão, insensíveis
e mortas para todas as funções da vida; e, no entanto, eles
só se achavam neste estado por terem descido às maiores
profundezas da humildade, e as lágrimas que derramavam não
eram outra coisa que a expressão de sua contrição viva e
inflamada.
12. Observei outros que, com a cabeça encurvada para o chão,
imóveis
como
estátuas,
estavam
entregues
a
profundas
meditações, e que, pelos muitos movimentos de suas cabeças,
anunciavam a grandeza de sua aflição, gemiam e rugiam de
tempos em tempos como leões. Encontrei ainda alguns outros,
cheios de uma deliciosa esperança, que conjuravam o Senhor
com preces admiráveis pedindo-lhe que lhes concedesse a
remissão de todas as suas faltas. Outros vi que, devido a uma
inexprimível humildade, julgavam ser indignos de perdão, e
proclamavam em alta voz que lhes era impossível satisfazer à
justiça de Deus, por causa da grandeza e da enormidade de
seus crimes. Alguns conjuravam sem cessar a Deus que os
punisse severamente neste mundo, mas que lhes concedesse sua
Amizade e os coroassem com suas Misericórdias no outro.
Alguns ainda, oprimidos sob o peso terrível da reprovação de
suas consciências, oravam com humildade e fervor ao Deus de
toda bondade que ao menos os preservasse dos suplícios
eternos que eles mereciam, e se declaravam pública e
sinceramente indignos do Reino dos céus.
13. “Oh!, clamavam eles, desde que esta graça não nos seja
recusada, devemos estar contentes.” Isto foi o que vi destas
almas verdadeiramente humildes, mortificadas e varadas de
dor, que conheciam e sentiam toda a enormidade de seus
pecados. E eles ainda soltavam gritos e lamentos, dirigindo a
Deus preces tão fervorosas e animadas, que teriam amolecido a
dureza e a insensibilidade de rochedos. Eu podia ouvi-los em
seu santo estremecimento, humildemente prosternado contra a
terra, repetir sem cessar: “Sim, Senhor, nós reconhecemos e
confessamos que muito merecemos toda sorte de penas e
castigos, e que, ainda que o universo inteiro se reunisse a
nós para chorar pelo número e a grandeza de nossas ofensas,
todas estas lágrimas não seriam suficientes para lavar nossas
almas e satisfazer sua Justiça; apenas uma graça lhe pedimos,
suplicamos com insistência e lhe conjuramos que não no-la
recuse: de não sermos corrigidos por sua Cólera, nem
castigados por sua indignação[44], mas sermos recebidos nos
braços
de
suas
Misericórdias.
Basta-nos,
Senhor,
não
precisarmos mais temer as terríveis Ameaças, e que sejamos
preservados dos suplícios inexprimíveis e incompreensíveis
que merecemos; pois não ousamos pedir que nos livre de todas
as penas que nos pecados atraíram, nem que nos conceda um
perdão inteiro e perfeito. Oh, Senhor, com que descaramento
poderíamos nós solicitar tal favor – nós que tivemos a
audácia sacrílega de profanar e de violar os votos de nossa
santa
profissão,
e
de
pisotear
indignamente
a
graça
inestimável que recebemos – que sejam perdoadas, tão
generosamente e com tanta bondade, as faltas que cometemos
antes de deixar o mundo”.
14. Caros amigos, foi neste lugar, sim, neste lugar de
penitência que eu vi pontualmente a realização daquilo que
Davi dizia de si mesmo[45], foi lá que tive sob meus olhos o
espetáculo enternecedor de pessoas mergulhadas na mais
desoladora aflição, e curvadas até o fim da vida sob o peso
imenso de sua dor; que todos os dias traziam a amargura de
sua tristeza estampada em seus rostos e expressa em seus
movimentos e no seu caminhar; e que, pela horrível purulência
que exalava de suas chagas, anunciavam que seus corpos, com
os quais não tinham nenhum cuidado e nem sequer pensavam
neles, estava coberto de ulcerações. Aí eu vi homens que
esqueciam de comer seu pão, que misturavam suas lágrimas à
agua que bebiam, que se alimentavam de cinzas em lugar do
pão; cujos ossos, secos, eram envoltos apenas por uma pele
enrugada colada a eles; e cujo coração havia secado como a
erva batida pelos ardores do sol[46]. Não os ouvi dizer senão
estas palavras: “Infelizes de nós, os miseráveis! Infelizes
de nós!”; e também: “É com justiça, sim, com justiça, que
estamos neste estado destroçado”; enfim, também estas
noutras: “Perdoe-nos, Senhor, nós lhe pedimos, perdoe-nos”.
Mais adiante, outros enchiam o ar apenas com estas palavras:
“Piedade, Senhor! Piedade!”, enquanto outros ainda não
cessavam de repetir, com a voz lamentativa: “Oh, Senhor, se
ainda podemos esperar, perdoe-nos! Sim, Senhor, queira nos
perdoar!”.
15. Ora, dentre estes penitentes, havia alguns que, pelo
ardor de sua dor, tinham a língua tão inflamada e ardente que
não a suportavam dentro da boca; você encontraria os que, em
busca de novos sofrimentos, permaneciam expostos aos ardores
do sol, enquanto outros se expunham aos rigores mais
insuportáveis do frio; outros só bebiam água o suficiente
para não morrer de sede; outros comiam com esforço um mínimo
de pão, rejeitando o resto com justa indignação, e diziam a
si mesmos que, tendo estado desprovidos de sentimentos por
tanto tempo a ponto de viverem como vis animais, tinham se
tornado indignos de se alimentar como as criaturas racionais.
16. Ah! No meio desses homens, poderíamos encontrar o menor
sinal de alegria? Poderíamos ouvir aí sequer uma palavra
inútil? Seríamos testemunha de qualquer impaciência ou
cólera? Eles haviam esquecido até que os homens fossem
capazes de se atirar aos enfrentamentos, tanto sua grande
aflição havia extinguido em seus corações todo movimento
desregrado. Encontraríamos entre eles a menor aparência de
discussão,
o
menor
relaxamento,
a
menor
licença
nas
conversações, o mais ordinário cuidado com o corpo, o menos
aparente vestígio de vanglória, a mais fraca inclinação peara
as facilidades e as comodidades da vida? Pensariam eles no
vinho, nas frutas, nas comidas temperadas e nas carnes
preparadas? Teria o alimento que tomavam o menor sabor? Ora,
eles haviam perdido todo o sentimento por qualquer destas
coisas. Ocupar-se-iam eles talvez dos negócios do mundo?
Teriam algum pendor para fazer julgamentos, temerários ou
fundamentados, a respeito de qualquer um dos irmãos? Jamais.
17. Eles não falavam senão por meio de seus gemidos e suas
lágrimas, assim como a Deus. Alguns, como se estivessem às
portas
do
Paraíso,
mortificando
o
peito
com
golpes
redobrados, clamavam: “Abra-nos, ó justo Juiz dos vivos e dos
mortos; abra-nos, nós o conjuramos, esta porta de felicidade
eterna, que fechamos com nossos pecados. Abra-nos!”. Outros
não cessavam de repetir esta oração admirável do Salmista:
“Mostre-nos apenas, Senhor, um rosto favorável, e seremos
salvos das mãos cruéis de nossos inimigos[47]”. Você poderia
encontrar alguém que dizia sem cessar, como Zacarias: “Meu
Deus, faça brilhar sua luz sobre todos os infelizes que se
assentam no meio das trevas e das sombras da morte[48]”. Mais
adiante você veria um que dirigia a Deus esta prece
fervorosa: “Que suas Misericórdias nos previnam prontamente,
ó meu Deus[49]; pois estamos reduzidos à última miséria,
estamos perdidos sem você, nos deixamos ir ao desespero e
tombamos em total erro”. Noutra parte, você poderia escutar
alguém se perguntando esta triste questão: “Pensam vocês que
o Senhor nos mostrará jamais um rosto sereno e benevolente, e
que ele derramará sobre nós as luzes de sua glória?[50]”,
enquanto outro indagaria com santa e penosa inquietação:
“Creem vocês que possamos esperar que nossa alma atravesse
esta torrente de trevas, cujas águas são intransponíveis[51],
e que o Senhor nos conceda alguma consolação?”. “Oh! –
acrescentariam outros – estamos de tal maneira ligados às
cadeias do pecado, que na verdade poderíamos esperar que o
Senhor nos diga: ‘Saiam, sejam enfim libertos de suas
correntes
criminosas,
vocês
que
vivem
os
rigores
da
penitência’? Ah! Chegarão até ele nossos gemidos e nossos
gritos dolorosos?”.
18. Enfim, eu os via todos imóveis, fixados no pensamento da
morte, dizendo a si mesmos: que nos acontecerá no momento da
última hora? Qual será nosso julgamento?
O que nos
tornaremos durante a eternidade? Passaremos desta terra de
exílio ao céu, nossa pátria querida? Pode ainda haver alguma
esperança para estes pobres pecadores imersos nas trevas e
cobertos de confusão? Terão nossas preces e nossas lágrimas
conseguido subir até o trono da divina Misericórdia? Ah!
Quantos motivos temos para pensar e crer que elas foram
rejeitadas, desprezadas e feridas por um ignominioso desdém!
E, ainda que tenham sido recebidas favoravelmente, terão sido
capazes de apaziguar a justa Cólera de nosso Juiz? Quanto
terão elas conseguido abreviar nossa reconciliação com Deus?
Em que estado nos terão elas colocado diante de sua santa
Presença? Que favores e que graças terão elas obtido para
nós? Oh! Nossas bocas impuras e criminosas, nossos corpos
cheios de pecado certamente paralisaram sua eficácia. Terão
elas conseguido, seja muito, seja ao menos um pouco, nos
reconciliar com nosso soberano Juiz? Podermos nós ser
aliviados da metade das nossas iniquidades e curados da
metade de nossas chagas espirituais? Ah! Como são imensas as
dívidas que contraímos! Quantos trabalhos não suportamos!
Que satisfações teremos que prestar para ficarmos quites?
Será que afinal nossos anjos guardiões, que tão indignamente
expulsamos, se reaproximarão de nós? Não estarão eles
demasiadamente afastados? Oh! Se estes espíritos celestes não
se dignarem retornas a nós, nossos esforços e nossos
trabalhos de nada nos servirão, estaremos para sempre sem
esperança de sermos libertados e de recuperar a preciosa
liberdade dos filhos de Deus[52], nossas preces não poderão
inspirar nenhuma confiança bem fundamentada, elas não terão a
santidade necessária para alcançar o trono do Senhor, pois é
preciso que nossos anjos, tornando-se outra vez nossos
amigos, as apresentem a Deus com suas mãos puras e santas.
19. Indo adiante, ouvi outros que comungavam seus temores e
suas esperanças, dizendo entre si: pensam que fizemos algum
progresso com nossas penitências? Acham que obteremos enfim o
objeto de nossos votos e de nosso desejo? Escutará Deus as
nossas orações? Creem que ele nos abrirá o seio de suas
Misericórdias e de sua Ternura? A todas estas questões,
outros
respondiam:
quem
sabe
se,
como
nossos
irmãos
habitantes de Nínive, não poderemos dizer que Deus revogará a
sentença terrível que pronunciou contra nós, e que nos
livrará dos castigos rigorosos que merecemos? Ah! Para
receber este favor insigne, redobremos o zelo e a coragem,
cumprindo exatamente nossa penitência. Quanta felicidade será
para nós se ele abrir as portas de sua Ternura! E mesmo que
ainda não no-las abra, não deixemos de louvar e bendizer seu
santo Nome, pois sua Conduta a nossos olhos é sempre justa e
cheia de equidade, e perseveremos até o fim de nosso caminho,
batendo na porta de seu Coração com nossos gemidos e nossas
lágrimas. Esta importunação constante e esta perseverança
talvez lhe façam alguma violência, e quem sabe obteremos o
que buscamos com tanto ardor. Era assim que eles encorajavam
uns aos outros. Gritavam eles com santo entusiasmo: corramos,
caros irmãos, pois temos que correr, e correr com todas as
nossas forças, pois perdemos a companhia celeste na qual
transcorriam nossos dias tão doces e agradáveis, e agira
estamos perdidos! Corramos, então, corramos, e não poupemos
esta
carne
de
pecado
e
corrupção:
matemos,
imolemos
generosamente nossos corpos: eles causaram a morte de nossas
almas!
20. Tal era a conduta, tais eram os sentimentos, e tais as
palavras destes santos penitentes que eram enviados à Prisão.
À força de permanecerem de joelhos, eles haviam coberto esta
parte do corpo de espessas calosidades; seus olhos, de tanto
derramarem lágrimas, estavam ressecados, já não tinham cílios
e afundavam nas órbitas; as maçãs do rosto eram pálidas e tão
magras que mais se assemelhavam às de pessoas mortas; o peito
estava ferido pelos repetidos golpes que se infligiam, e
estes
golpes
lhes
causavam
dolorosos
sangramentos.
Encontraríamos neste mosteiro camas arrumadas? Veríamos
roupas apropriadas e capazes de proteger contra o frio? Tudo
aí estava em farrapos, largado, feio e cheio de vermes. Para
finalizar, diremos que os tormentos daqueles que são
possuídos pelo demônio, a dor cruel dos que choram a morte de
seus próximos, o coração rasgado dos que são condenados ao
exílio, o suplício dos parricidas, estas coisas não passam de
uma fraca imagem das dores, da aflição e dos sofrimentos
destes santos penitentes; as penas que essas pessoas que
mencionamos tiveram que suportar por necessidade nada são
comparadas com aquelas que estes generosos penitentes sofriam
voluntariamente. E não pensem, irmãos, que estou relatando
uma fábula da imaginação: esta é a própria verdade.
21. Eu via estes penitentes extraordinários conjurar seu
superior,
este
pastor
excelente,
este
juiz
sábio
e
esclarecido, este anjo entre os homens, que lhes colocassem
colares de ferro ao pescoço, como se fossem infames
criminosos, algemas nas mãos, pesos nos pés, e que os
deixassem neste estado cruel até que a morte os levasse ao
túmulo; e muitos
enterrados.
ainda
se
consideravam
indignos
de
serem
22. Não me calarei; não, não passarei sob silêncio por este
novo tipo de humilhação, ainda que inspire arrepios, nem por
este humilde amor a Deus, nem por este excesso de penitência;
falarei agora da conduta de alguns dentre eles, quando
acreditavam haver chegado à última hora e a ponto de
comparecerem diante do temível tribunal de Deus. Quando estes
ilustres penitentes eram conduzidos ao lugar do mosteiro
reservados
aos
que
estavam
gravemente
doentes,
eles
conjuravam seu superior, ele que era este tesouro de luz e
sabedoria, por tudo o que lhe fosse de mais sagrado e
respeitável, que lhes concedesse a graça de não honrá-los com
a sepultura que é dada a todos os homens, mas que atirasse
seus corpos ao rio, ou que os abandonasse no campo para a
voracidade dos animais selvagens. Assim o superior ordenava
que seus cadáveres fossem atirados fora do mosteiro,
recusando a eles as honras do sepultamento e as preces
costumeiras da Igreja.
23. E que horrível e arrepiante espetáculo tínhamos diante
dos olhos, quando algum destes santos penitentes chegava à
sua última hora! Neste momento todos os seus fervorosos
companheiros cercavam seu leito de morte; e estes homens,
devorados por uma sede ardente, presas da mais cruel das
aflições, inflamados pelo ardor e a vivacidade de seus
desejos e de seus votos, lhe exprimiam, com a contenção que
lhes inspirava a compaixão, por meio de suas palavras
lamentativa, por seus movimentos de cabeça, os sentimentos da
mais terna e maior comiseração. “O que há, querido irmão,
terno companheiro, diziam-lhe com uma doçura que tocava o
coração, o que há de novo com você? Como se sente neste
momento? Quer nos dizer alguma coisa? Quais são suas
esperanças? Quais são suas afeições e seus pensamentos? Você
acredita ter obtido aquilo que buscou com tantas penas e
tanto ardor, ou teria você trabalhado sem sucesso? Você
conseguiu alcançar o porto da salvação, ou ainda teme um
triste naufrágio? Você chegou diretamente ao fim de sua
viagem, ou ainda se encontra perdido? Você tem uma esperança
certeira de haver recebido o perdão de seus pecados, ou não
tem nenhuma garantia de sua salvação? Você se encontra em
plena liberdade de espírito ou ainda permanece em meio à
perturbação e à angústia? Sua alma foi iluminada pelas luzes
consoladoras do céu ou está ainda nas trevas e na noite da
confusão? Terá você enfim escutado as palavras: ‘Você está
curado[53], seus pecados foram remidos[54], sua fé o
salvou[55]’? Ou, ao contrário, estas sentenças terríveis:
‘Que os pecadores sejam lançados aos infernos[56], amarremlhes os pés e as mãos e atirem-no às trevas exteriores[57],
que o ímpio seja levado, pois ele não verá a Glória do Senhor
em seu Templo[58]’? Que respostas, caro irmão, poderá você
dar a todas estas questões? Fale-nos sem subterfúgios e com
toda franqueza, a fim de que possamos conhecer um pouco da
sorte que também nos aguarda, pois, para você, o tempo de
vida está se esgotando, e quando você penetrar na eternidade,
já não existirá tempo”. Alguns respondiam com estas palavras:
“Bendito seja Deus para sempre! Pois ele não rejeitou minha
oração nem retirou de mim sua Misericórdia[59]”. Outros
respondiam: “Bendito seja o Senhor, que não nos deixou ser
vítimas do furor e da voracidade dos dentes cruéis de nossos
inimigos[60]”. Outros, oprimidos pela dor que traziam no
coração, se contentavam em dizer: “Poderá nossa alma
atravessar esta torrente impetuosa, na qual as potências do
inferno procuram fazê-la perder-se?[61]”. Estes falavam da
sorte, pois não estavam seguros de sua salvação, e temiam a
conta terrível que teriam que prestar a Deus. Outros ainda
davam uma resposta ainda mais aflitiva: “Infelizes de nós,
clamavam, infeliz da alma que não guardou os votos de sua
profissão! Eis a hora única em que ela é capaz de saber o que
ela merece por toda a eternidade!”.
24. Tais são as coisas que vi e ouvi durante o tempo em que
permaneci neste mosteiro, e confesso com franqueza que ao
comparar minha preguiça e negligência com as impressionantes
mortificações que estes ilustres penitentes praticavam com
tanto zelo e coragem, eu fui violentamente tentado a me
deixar levar pelo desencorajamento e o desespero. De resto,
de qualquer ângulo que se olhasse o mosteiro, era difícil
crer que aquilo fosse uma morada habitada por homens: pois
ele não se fazia notar senão pelas trevas e a obscuridade que
reinavam em todos os seus cômodos, pelo mau odor que exalava
de todos os cantos e pelo lixo e os trastes que estavam por
toda parte. Assim, é com razão que ele era chamado de
“prisão” e cubículo de criminosos; pois, apenas o olhávamos,
e nos sentíamos penetrados pela tristeza e levados a
sentimentos de penitência. Mas o que parece difícil e
impraticável a certas pessoas, se torna fácil e mesmo amável
aos que conhecem e sentem a perda que tiveram por abandonar a
inocência e, com ela, os dons preciosos do céu. Com efeito,
uma alma que se veja privada da santa amizade que a unia
deliciosamente a Deus, e da confiança tão doce e consoladora
que nele depositava; que perdeu toda esperança de poder neste
mundo desfrutar da paz perfeita do coração e da suprema
tranquilidade, que violou o selo de sua virgindade; que por
si mesma se despojou do tesouro inestimável da graça e das
consolações divinas; que rompeu a aliança augusta que fizera
com o Senhor; que extinguiu em si miseravelmente os ardores
celestes da caridade e fez secar a fonte das lágrimas que
derramava com tanta doçura; uma alma que já não é açoitada
pela lembrança dilacerante dos bens que perdeu e dos males
que fez, e que se encontra como que rasgada, destroçada pela
dor que sente à vista de sua loucura e de seus crimes, não
apenas se desvelará e se consagrará prontamente e com ardor
aos trabalhos e exercícios penosos de que falamos, mas, na
medida em que for capaz, se punirá e se purificará por meio
de exercícios espirituais. E como poderia ela agir de outra
maneira, se ainda conservou em si a mínima centelha de amor e
de temor a Deus? Tais eram os sentimentos destes homens de
quem falamos; pois, ao fazer todas estas reflexões salutares,
e conhecendo de que alto grau de virtude caíram, eles não
cessavam de repetir: “O que aconteceu com os dias felizes que
vivemos?
Que
fizemos
nós
das
boas
obras
que
então
praticávamos com ardor? Em outras ocasiões, eles clamavam:
Onde estão Senhor, suas antigas Misericórdias[62], das quais
recebíamos tantas e tão grandes provas? Um outro dizia:
Lembre-se, Senhor, das humilhações, das vergonhas e dos
trabalhos de seus servidores! Outro ainda gritava: Quem
poderá me devolver ao estado em que me encontrava nos tempos
felizes que se foram, quando o próprio Senhor velava por mim
para me proteger, e sua lâmpada derramava uma luz benfazeja
sobre minha cabeça[63] e meu coração?
25. Era assim, e derramando lágrimas abundantes, que eles
expressavam o arrependimento por haverem dissipado tão
grandes riquezas espirituais, e, no abismo profundo de sua
desolação, alguns pediam com inacreditável ardor que fossem
possuídos pelo pior dos demônios, a fim de começarem a sofrer
desde já; outros pediam insistentemente a Deus que os
castigasse com uma vergonhosa e humilhante epilepsia; outros
desejavam se tornar inteiramente cegos e ser transformados em
monstros medonhos, capazes de infundir horror aos homens e
lhes servir de espetáculo, enquanto outros ainda queriam
perder o uso dos nervos e dos músculos e serem tomados de uma
paralisia universal; todos se considerariam felicíssimos se,
sofrendo de tais males, pudessem evita os suplícios eternos.
Quanto a mim, caros amigos, confesso que não consigo
justificar o motivo pelo qual permaneci com prazer nesta
morada de tristeza e prantos; mas o fato é que ali estava eu,
tão satisfeito e contente, que já não pensava em mim, e,
arrebatado de espanto, já não era mestre de meus pensamentos
nem de meus sentimentos. Mas voltemos ao nosso tema.
27. Depois de permanecer por um mês no mosteiro da Prisão, e
como, devido à minha indignidade, já não conseguia suportar,
retornei o grande mosteiro e fui ao encontro do abade que o
presidia. Vendo-me diferente do que estava costumado, e
percebendo com a penetração de seu espírito o espanto e a
admiração em que me encontrava, ele compreendeu facilmente
qual seria a causa de meu estupor e do meu arrebatamento, e
me disse: “Muito bem, caro João, o q eu tem você? Pode
examinar de perto os combates, os trabalhos e os exercícios
de nossos penitentes?”. “Si, meu Pai, respondi-lhe, eu os vi
e admirei; e estimo mais admiráveis estes homens decaídos,
mas que choram e expiam suas faltas, do que os que não caíram
e que nem pensam em chorar; pois, reerguendo-se desta
maneira, eles se colocam na feliz posição de não mais cair”.
“Você tem razão”, respondeu-me ele.
28. Esta língua que jamais soube mentir me contou o seguinte
fato: “Há quase dez anos, tínhamos aqui um irmão que era tão
cheio de piedade, que prestava tanto cuidado e atenção em ser
um verdadeiro soldado de Cristo, que estava animado de um
zelo tão vivo e de tão grande ardor nos exercícios da vida
religiosa, que, vendo-o em tão boas disposições, eu tremia
por ele e temia muito que o demônio, invejoso de seus
virtudes e de seus méritos, não se serviria de seu ardor e
seu zelo para bater seu pé contra alguma pedra de tropeço.
Ora, aquilo que quase sempre acontece com os que caminham com
excesso de precipitação, infelizmente aconteceu a este irmão:
ele teve uma queda. Mas logo veio me procurar. Era perto do
crepúsculo. Ele me encontrou e mostrou a ferida que fizera em
sua
alma;
no
abismo
de
sua
dor,
ele
me
conjurava
insistentemente que ali aplicasse ferro e fogo, e que lhe
ordenasse os remédios convenientes. Como ele viu que seu
médico espiritual não iria aplicar o rigor e a severidade que
ele desejava, e como este pobre religioso não era indigno de
indulgência, ele se atirou aos meus pés, molhando-os com suas
lágrimas e me pedindo que o enviasse à Prisão que você
visitou; e, para conseguir me convencer, ele não cessava de
repetir que era impossível dispensá-lo de tal condenação.
Assim, pela violência com que me tratou, ele praticamente me
forçou a converter em rigor e severidade a doçura e a ternura
que eu sentia por ele. Pude ver neste religioso o que não é
costumeiro ver nos doentes, e que é o contrário aos curso
natural das coisas. E assim que eu concordei em dar-lhe a
permissão que pedia com tanta insistência, ele correu
prontamente para os penitentes, para se tornar seu confrade e
imitador de seus trabalhos e de suas lágrimas. A contrição
que seu amor a Deus lhe fizera conceber a respeito de sua
falta era tão viva e violenta, que oito dias depois de entrar
no mosteiro ele partiu deste mundo para se apresentar diante
do Senhor; mas, antes de morrer, ele teve o cuidado de pedir
que seu corpo fosse provado de sepultura. Desta vez, porém,
eu achei por bem não ceder ao seu desejo, e fiz com que
levassem seu corpo e o depositassem no cemitério destinado ao
sepultamento dos padres. Eu o considerei digno desta honra,
por que após uma penitência de sete dias na Prisão, Deus o
considerara capaz, no oitavo, de desfrutar da liberdade e da
felicidade dos céus. Com efeito, existe um religioso que
soube de maneira certa que antes mesmo que este ilustre
penitente se levantasse diante dos pés vis e desprezíveis
daquele que lhe fala, ele já havia recebido o perdão de seu
pecado e estava perfeitamente reconciliado com Deus. Eh! Não
nos espantemos, por que ele tinha no coração a mesma fé que a
pecadora do Evangelho, e foi com esperança e confiança
perfeitas em Deus que ele molhou com suas lágrimas meus
miseráveis pés. Pois tudo é possível àquele que crê[64]”.
Quanto a mim, vi almas manchadas de pecados, e até possuídas
pela loucura e o amor pelos prazeres sensuais, e que, não
obstante, por meio de exercícios de penitência, pela presente
dos que amam a Deus e sobretudo pela consideração profunda de
seu triste estado, entregaram seu coração a Deus, amaram-no
unicamente, triunfaram de todo temor servil e conseguiram por
fim se entregar inteiramente aos santos ardores da caridade3.
Lembremo-nos de que nosso Senhor não disse à pecadora
convertida: “Ela tremeu muito”, mas: “Ela muito amou[65]”. E
foi por este amor ardente que ela se livrou do amor carnal e
profano.
29. Depois de tudo, ilustres Padres, não posso me impedir de
pensar que as coisas extraordinárias que lhes contei
parecerão inacreditáveis a quase todo mundo, que alguns as
verão como impossíveis e que enfim outros as tomarão como
motivo para se desencorajar e cair no desespero. Mas também é
verdade que os corações generosos e cheios de boa vontade e
coragem delas se servirão como um aguilhão para estimulá-los
na prática perfeita das virtudes mais heroicas, como uma
flecha a trespassá-los no amor a Deus, enchendo-os de zelo e
fervor. Para os que ainda não estão tão avançados na piedade,
estes trabalhos os farão sentir mais e mais sua hesitação e
sua negligência, e, pelas reprimendas que serão obrigados a
fazer a si próprios, comparando-se com estes fervorosos
religiosos e estes ilustres penitentes, eles adquirirão uma
humildade profunda, farão mais esforços para imitar estes
corações generosos, e poderão, quem sabe, alcançá-los. Quanto
aos que ainda não possuem senão hesitação e negligência, é
imprudente que tentar fazer como estes corações fervorosos e
generosos, e que tentem caminhar nas pegadas destes homens
perfeitos: o que eles devem fazer presentemente é não
abandonar aquilo que começaram, a fim de que sob eles não
paire esta ameaça: “Ser-lhes-á tirado até mesmo o que eles
pensam possuir[66]”.
30. Não nos esqueçamos de que, uma vez que tenhamos a
infelicidade de cair no abismo do pecado, dele não poderemos
sair senão à custa de exercícios de uma verdadeira
penitência, que dele nos retirem e nos precipitem alegremente
no abismo da humildade.
31. A humildade plena de tristeza que reina no coração dos
verdadeiros penitentes é muito diferente daquela que se
encontra nos pecadores, a quem condenam apenas os remorsos da
consciência, e mesmo da que Deus inspira aos que vivem na
perfeição da virtude. Não tentemos aqui expressar no que
consiste a humildade destes homens perfeitos: não chegaríamos
a nenhum resultado. Quanto à humildade dos que fazem
penitência, vocês a reconhecerão por causa da paciência em
meio às humilhações e ao desprezo. Mas seus maus hábitos
ainda os poderão derrubar em determinadas faltas.
32. As quedas não devem nos surpreender; pois os motivos de
Deus, assim como frequentemente a causa e o princípio das
faltas que cometemos, são cobertos por espessas trevas,
impenetráveis ao espírito humano, e nos é verdadeiramente
impossível distinguir as quedas em que incorremos por nossa
própria negligência daquelas que nos acontecem por permissão
de Deus e das que causamos por que Deus, em sua justa
indignação, nos entrega à nossa fraqueza. Já ouvi dizer que,
com a permissão de Deus, os que caem em algum pecado não
permanecem aí longo tempo, por que Deus não permite que
permaneçamos demasiado sob a escravidão desta falta.
33. Depois de nossas quedas, apliquemo-nos de modo especial a
combater o demônio da tristeza. Ele nunca deixa de nos atacar
no momento das nossas orações, a fim de que, reconstituindo
fortemente em nosso espírito o estado feliz em que nos
encontrávamos antes de pecar, nos desvie a atenção que
devemos aplicar ao santo exercício da prece, e nos inspire a
perturbação e ao desencorajamento.
34. Acreditem, irmãos: ainda que vocês cometam faltas todos
os dias, evitem perder a coragem, não abandonem seus
exercícios de piedade, mas perseverem generosamente e
fortemente no serviço de Deus; e seu anjo da guarda
respeitará sua heroica paciência e sua bem-aventurada
perseverança.
35. Prestem atenção no seguinte: uma ferida recente é fácil
de curar. Mas se a negligenciamos, os humores se alteram e se
corrompem: a partir daí, ela só cicatriza com dificuldade e,
muitas vezes, para curá-la, são precisos muitos cuidados,
tempo e trabalho, e às vezes são necessários ferro e fogo, e
o emprego de um sem-número de remédios. Vocês nunca viram
chagas como estas se tornarem incuráveis? Mas Deus, para quem
nada é impossível, pode nos livrar até mesmo destas.
36. Eis outra observação importante: os demônios, estes
inimigos cheios de ardis e artifícios, antes de nos empurrar
para o pecado e para nos fazer cair mais facilmente, nos
representam a Deus cheio de bondade e de compaixão por nós.
Mas quando obtêm sucesso em seu cruel projeto e nos fazem
violar a lei santa do Senhor, eles o mostram como um juiz
terrível, severo e inexorável.
37. Evitem confiar em qualquer um que, sabendo que vocês se
tornaram culpados de qualquer falta considerável, lhes sugira
não dar atenção às faltas leves a que todos estamos expostos
diariamente, e que lhes diga, por outro lado, em relação à
falta maior, que seria desejável que não a tivessem cometido,
e, por outro lado, em relação às faltas leves, que elas nada
são;
pois
os
cuidados
múltiplos
que
empregamos
são
semelhantes aos pequenos presentes que fazemos. E não é
verdade que muitas vezes estes pequenos presentes, à força de
se multiplicarem, acalmam a cólera do soberano juiz?
38. Devemos dizer que quem está resolvido a satisfazer a
Justiça de Deus pelas faltas cometidas, perde qualquer
jornada na qual não tenha se consagrado ao pranto e aos
gemidos da penitência, ainda que tenha nestes dias praticado
as mais excelentes obras da piedade.
39. Quanto aos que choram seus pecados, evitem aguardar a
hora da morte para se assegurar que estes lhes foram
perdoados; pois nunca poderão ter disto plena certeza. Ao
contrário, devemos sempre fazer esta oração: “Dê-me, Senhor,
a doce esperança de ter perdoado meus pecados, a fim de que
eu não deixe este mundo na cruel incerteza de minha
salvação[67]”.
40. Entrementes, para nossa instrução e nossa consolação,
lembraremos que os laços do pecado são destruídos naqueles em
que reside o Espírito de Deus; e diremos o mesmo daqueles em
cujo coração reina uma humildade sincera. Ah! Que quem parte
deste mundo sem ter possuído uma destas duas coisas não caia
numa funesta ilusão: ao contrário, estejam convencidos que
ainda se encontram sob o jugo de seus pecados.
41. Todos os que passaram suas vidas no mundo, aí vivendo
segundo seu espírito e suas máximas, ao deixarem a vida, não
terão em si estas duas marcas essenciais da justificação,
sobretudo a segunda. Não obstante, existem entre estas
pessoas do mundo as que preparam sua última hora por meio de
obras de misericórdia e penitência: eles receberão destas o
prêmio e a recompensa.
42. Quem chora amargamente suas próprias faltas está longe de
se ocupar da penitência e das faltas de seus irmãos, e de
lhes fazer reprimendas.
43. Um cachorro mordido por um animal selvagem se atira sobre
ele com toda a fúria de que é capaz; pois a intensidade da
dor que eles experimenta o faz correr contra ele com uma
determinação implacável.
44. Prestemos atenção ao silêncio de nossa consciência, e
fiquemos preocupados: não esteja nossa consciência silenciosa
por termos nosso coração cego e endurecido, e não por a
termos purificado.
45. Uma das provas que podemos ter neste mundo, agora e daqui
para frente, de que foram quitadas as dívidas que contraímos
por nossos pecados, consiste em crer que somos ainda culpados
e devedores perante a Justiça de Deus.
46. Nada pode se comparar às Misericórdias do Senhor: elas
estão soberanamente acima de qualquer coisa. Assim, não
esperar em Deus equivale a querer se perder eternamente.
47. A marca verdadeira e o sinal inequívoco da penitência
consiste em estar convencido e persuadido que merecemos, seja
no corpo, seja no espírito, todas as penas, todos os males e
todas as aflições que suportamos, e que merecemos sofrer
ainda mais.
48. Moisés, ainda que tenha visto a face de Deus e a sarça
ardente, não obstante retornou ao Egito, vale dizer, às
trevas do século, para se encarregar de produzir tijolos a
serviço do Faraó, que era a figura do demônio. Porém, ele não
tardou em regressar para junto do arbusto, e pouco tempo
depois ele mereceu subir até a montanha santa onde Deus havia
fixado sua morada de maneira visível. Quem compreender o
significado da figura a seguir jamais desesperará de sua
salvação: Jó, este homem eterno, de prosperidade e riquezas
extraordinárias, caiu numa pobreza espantosa; e, no entanto,
a seguir se tornou duas vezes mais rico do que jamais havia
sido.
49. Esses monges preguiçosos e negligentes que, depois de sua
santa profissão, caem em faltas, sofrem na realidade quedas
perigosas e funestas; pois estas normalmente os fazem perder
a esperança de alcançar a paz do coração, e os fazem
acreditar que podem se dar por felizes se conseguirem se
reerguer e merecer o perdão.
50. Mas atentem para o fato de que não é possível que a
preguiça que nos separou de Deus seja o meio capaz de nos
reenviar a ele; é preciso outra maneira, para que possamos
nos aproximar do Senhor.
51. Eu conheci dois religiosos num mosteiro que se dirigiam a
Deus ao mesmo tempo e pela mesma via. Um era um ancião
exercitado depois de longos anos de trabalhos de penitência;
o outro era um noviço nos caminhos da vida religiosa. E no
entanto, este último corria mais depressa do que o primeiro;
desta forma, também ele mereceu o primeiro lugar no túmulo da
humildade.
52. Devemos tomar cuidado, principalmente nós que caímos no
pecado, em não deixar envenenar o espírito e o coração com o
erro contagioso de Orígenes. A miserável doutrina deste
doutor sobre a excessiva Bondade de Deus para com os homens é
saboreada e apreciada por todos os que só se agradam dos mais
grosseiros prazeres dos sentidos.
53. Quanto a nós, acreditemos que é em nossas meditações
fervorosas, e mais ainda em nossos exercícios de penitência,
que se inflamará o fogo de nossa prece, o qual devorará a
matéria de nossos pecados.
54. Que os penitentes que eu lhes apresentei neste quinto
degrau sejam seus guias e seus condutores; que sua
penitência, e o fim a que se propunham, seja o modelo e a
imagem da sua penitência e o fim ao qual vocês se proponham,
consagrando-se aos seus salutares exercícios! E estejam
certos de que durante sua peregrinação pela terra, vocês não
terão necessidade de outro livro para conduzi-los e fazê-los
chegar com felicidade ao porto da salvação, até que por fim
Jesus Cristo, o Filho único de Deus, lhes apareça e ilumine
com suas luzes na ressurreição produzida por uma verdadeira e
sincera penitência. Amém.
Pela penitência vocês subiram até o quinto degrau; assim, com
seu auxílio, vocês purificaram os cinco órgãos de seus
corpos, e, por meio de expiações voluntárias, evitaram as
penas e os suplícios que teriam merecido sofrer na
eternidade.
SEXTO DEGRAU
Do pensamento da morte
1. O pensamento precede necessariamente as palavras que o
expressam. É assim que o pensamento da morte e a lembrança
dos pecados precedem as lágrimas e os gemidos que uma e outra
nos fazem derramar; é por isso que falaremos destas coisas
aqui, segundo sua ordem e seu lugar.
2. Assim é que afirmamos que o pensamento da morte é uma
espécie de morte cotidiana, e que a lembrança de nossa hora
derradeira é um gemido contínuo.
3. Foi a desobediência do homem que deu nascimento ao temor
da morte, e é por isso que o temor da morte se nos tornou, de
certa forma, natural. Mas vocês sabem o que nos demonstra
este temor? Ele nos mostra que nossa alma ainda não está
perfeitamente lavada nem purificada pelas lágrimas e as
austeridades da penitência.
4. Cristo, para nos ensinar que ele é a um tempo Deus e
homem, e para nos ensinar que os atributos da natureza divina
e da natureza humana nele estavam partilhados, teve medo à
vista da morte; mas o divino Salvador não a temeu.
5. Ora, assim como, de todos os alimentos com os quais
nutrimos nossos corpos, é o pão o mais necessário, da mesma
forma, de todas as coisas que devem alimentar e manter viva
nossa alma, nada é mais necessário do que a lembrança e o
pensamento da morte.
6. É o pensamento da morte que faz com que os monges que
vivem em comunidade abracem todos os trabalhos e as
austeridades da penitência; é ele que os faz amar as delícias
do desprezo e das humilhações; é também o pensamento da morte
que faz com que os solitários que vivem nos desertos e longe
do tumulto renunciem generosamente a toda preocupação com as
coisas presentes, a fim de se consagrar unicamente aos santos
exercícios da prece e da meditação, e de vigiar assiduamente
seu espírito e seu coração. Estas virtudes são igualmente
filhas do pensamento da morte.
7. Mas observemos aqui que, embora o estanho tenha muita
semelhança com a prata, podemos distingui-lo facilmente
quando o aproximamos dela; da mesma forma, os que possuem
alguma experiência nas coisas relacionadas à salvação, sabem
muito bem colocar uma diferença entre o pensamento da morte
produzido por um sentimento e um movimento da natureza, e o
sentimento da morte produzido pela impressão da graça.
8. A prova certa e indubitável de que tememos a morte por um
movimento da graça é que este temor nos leva a nos despojar
de toda afeição pelas coisas criadas, e nos faz renunciar
perfeitamente à nossa própria vontade.
9. É louvável pensar todos os dias na morte, como se a cada
dia ela nos pudesse atingir; mas é um sinal de santidade
desejá-la e aguardá-la.
10. Evitemos pensar que todo desejo de morte seja bom e
salutar; pois existem os que desejam a morte porque se veem
expostos – pelos pendores que ainda não conseguiram vencer
inteiramente e pelos hábitos que não lhes é possível corrigir
perfeitamente – a incidir sempre e sempre em novas quedas e
novos pecados; existem outros que só desejam a morte por um
movimento de desespero: são pessoas que não querem fazer a
penitência; outros ainda chamam a morte por acreditarem estar
livres da servidão das paixões, pensando haver alcançado a
impassibilidade; enfim, há os que, movidos e conduzidos pelo
movimento e as luzes do Espírito Santo, desejam sair deste
mundo. Mas estes últimos são bastante raros.
11. Alguns homens penam, e gostariam de saber, considerando
que o pensamento da morte é tão salutar, por que Deus não
quer que conheçamos o momento em que ela irá nos alcançar.
Mas estas pessoas não consideram que Deus, fazendo desta
maneira, só visa nossa própria salvação. De fato, se a hora
da morte fosse conhecida, quem dentre os homens se apressaria
em receber o batismo, em se converter ou em abraçar a vida
religiosa? Ah! A maior parte passaria a vida no crime, e
somente na última hora pensariam em recorrer ao santo batismo
ou à penitência.
12. Vocês que choram seus pecados, evitem as armadilhas
demônio: ele tentará enganá-los, dizendo que Deus é bom
misericordioso. Esta é uma verdade que só devemos ter
mente para os preservarmos do desespero; mas o demônio,
do
e
em
ao
sugeri-la, quer com isto banir de seus corações o horror e a
dor de seus pecados, e fazê-los perder o temor a Deus, o
único que concede a verdadeira segurança.
13. Sabem com quem devemos comparar aqueles que, pretendendo
nutrir em sua alma o pensamento da morte e a lembrança do
Juízo, não deixam ao mesmo tempo de abraçar toda espécie de
preocupações e de ações profanas? Comparam-nos a pessoas que
tentam nadar tendo amarrados os pés e as mãos.
14. O pensamento da morte, que devemos tomar como verdadeiro
e eficaz, é o que extingue em nós a intemperança; pois, uma
vez que trinfamos sobre esta paixão, conseguiremos facilmente
vencer as demais.
15. A insensibilidade do coração produz a cegueira na alma; a
quantidade de comidas faz secar inteiramente a fonte das
lágrimas; a sede, a fome e as vigílias afligem o coração; e
um coração aflito e mortificado conforme a Deus derrama
lágrimas abundantes e salutares. Sem dúvida estas verdades
parecerão duras aos que amam a boa vida, e impraticável aos
que vivem nos braços da preguiça, mas um coração fervoroso e
generoso as apreciará e as praticará com alegria; e
adquirindo
o
costume,
se
tornará
fiel
com
indizível
facilidade. Mas que tentar conhece-las apenas para falar
delas, só encontrará penas e tristeza.
16. Assim como nossos pais nos ensinaram normalmente que a
caridade perfeita é imune à queda, eu direi que a perfeita
meditação da morte é imune de qualquer temor.
17. Uma alma que procura por todos os meios assegurar sua
salvação se ocupa de muitos pensamentos salutares: ela pensa
no amor que Deus tem por ela, na morte, na presença de Deus,
no Reino celeste, no fervor dos mártires; mas é sobretudo o
pensamento de Deus presente em toda parte que a absorve
inteiramente. É por isso que ela medita sem cessar estas
palavras: “Eu olhei continuamente para o Senhor, e o tive
sempre diante de meus olhos[68]”. Ela não perde de vista a
lembrança dos anjos e das potências celestes, sem sua
derradeira hora neste mundo, nem o momento terrível em que
comparecerá diante do tribunal do soberano Juiz, nem os
suplícios eternos, nem, por fim, a sentença que condenará os
pecadores a tal. Estas são as grandes verdades de que se
ocupam as almas que desejam servir a Deus. Nós apresentamos
aqui
em
primeiro
lugar
os
que
nos
pareceram
mais
respeitáveis, e a seguir os mais capazes de inspirar o horror
ao pecado e de nos impedir de tombar.
18. Um certo monge do Egito me contou um dia o que lhe
acontecera. Ele me disse que havia gravado de tal maneira em
seu coração a lembrança e o pensamento da morte, que este
pensamento produzira nele uma impressão tão vívida e
poderosa, que, quando procurava qualquer alívio para seu
corpo, que muito necessitava, este pensamento, como um juiz
inexorável, se opunha vitoriosamente; e, o que lhes parecerá
ainda mais espantoso, acrescentou ele que tentava por vezes
rejeitar, ainda que por um instante, este pensamento, sem
nunca o conseguir.
19. Conheci outro monge que vivia num lugar chamado Tholas.
Nele, o pensamento da morte fazia com que perdesse todo
sentimento; vendo-o, era de se crer que ele houvesse
evanescido, ou que tivesse caído em estado epilético.
Diversas vezes seus irmãos de mosteiro o encontraram neste
estado, e o transportaram como a um morto.
20. Não posso deixar de contar o que se passou com um
solitário, chamado Hesíquio, da montanha de Horeb. Este pobre
solitário teve a infelicidade de passar os três primeiros
anos de seu retiro esquecido de sua salvação, negligenciando
todos os exercícios da vida religiosa. Enfim, Deus o atingiu
com uma doença tão grave que, por mais de uma hora, ele foi
considerado morto. Quando ele voltou a si, pediu-nos com
insistência que fôssemos embora e o deixássemos só. Nós o
obedecemos, e logo ele fechou a porta de sua cela e aí
permaneceu recluso de tal maneira, que durante os doze anos
em que viveu depois disto, jamais voltou a trocar uma palavra
sequer com quem quer que fosse, e se alimentava de um pouco
de pão e da água que lhe levávamos; ele permanecia sentado
todo o tempo no mesmo lugar e jamais mudava; ele repassava
tão fortemente as coisas terríveis que presenciara em sua
visão, que seu corpo mantinha sempre a mesma posição e a
mesma atitude, e, sempre sob o impacto do mesmo terror, e
fora de si, ele mantinha o mais absoluto silêncio e chorava
lágrimas ferventes. Por fim, quando soubemos que ele estava
chegando ao fim da vida, forçamos a porta de sua cela para aí
entrar e lhe fazer muitas perguntas que desejávamos saber.
Mas foi em vão, pois dele só obtivemos uma única palavra:
“Perdoem-me, irmãos, mas nada posso lhes dizer, senão que é
impossível que ouse pecar quem tiver o pensamento da morte
gravado
em
seu
espírito”.
Esta
resposta
nos
deixou
espantados, e nos admirávamos que um homem de quem havíamos
conhecido a preguiça e a negligência pudesse ter mudado e se
transformado em outro homem, e que houvesse adquirido tão
grande perfeição e uma santidade tão prodigiosa. Ao final,
ele faleceu e o enterramos no cemitério próximo ao mosteiro.
No dia seguinte fomos visitar seu túmulo, para ver o santo
corpo deste solitário; mas ele já não estava ali. Foi sem
dúvida para dar uma lição aos homens, que Deus permitiu esta
maravilha: ele quis nos fazer compreender que, mesmo depois
de abandonar a virtude e negligenciar a salvação, a conversão
sincera e a adoção de uma nova vida de penitência por parte
deste solitário lhe foi preciosa e agradável, e, por
conseguinte, agradável seria igualmente a penitência de todos
os pecadores.
21. Assim como dizemos que um abismo possui uma profundidade
de água insondável (e por isso lhe damos este nome), também o
pensamento da morte produz em nós um abismo sem fundo de
pureza e boas obras. É o que nos demonstra o fato que lhes
contei acima, pois os penitentes que, assim como este santo
homem, possuem continuamente no espírito a imagem da morte,
sentem aumentar em si o temor e o medo que ela inspira, até
que por fim ela os consuma até a medula dos ossos.
22. De resto, conforme devemos perceber, estejamos certos de
que este temor não é das menores benesses que recebemos de
Deus: pois não é verdade, e não nos atesta nossa própria
experiência, que muitas vezes, mesmo no meio dos túmulos,
mostramos uma insensibilidade férrea, sem derramar uma
lágrima sequer, enquanto que em outras ocasiões, sem estarmos
em meio aos mortos e sem a visão da triste imagem da morte,
vertemos torrentes de pranto?
23. Quem pensa verdadeiramente na morte, mata em si toda
afeição pelas criaturas e pelas coisas do mundo; mas quem
ainda é dominado pelos desejos profanos não cessa de colocar
armadilhas diante de seus próprios pés.
24. Não use palavras para dizer às pessoas que você gosta
delas, que você as ama comum amor afetuoso; contentem-se em
pedir a Deus que as faça saber, do modo como lhe aprouver, os
sentimentos de caridade e de ternura que você sente por elas;
pois se você agir de outro modo, nem todo o tempo de sua vida
será suficiente para testemunhar a seus amigos a afeição que
você tem por eles, e ao mesmo tempo para incitá-lo à
compunção e à dor de seus próprios pecados.
25. Não se deixem enganar, vocês que são louvados por
trabalhar na vinha de Cristo, e não pensem que podem resgatar
o tempo com o tempo; pois cada dia vivido não basta para
quitar as dívidas que contraímos a cada instante que vivemos.
26. É assim que um Padre nos disse que pobres mortais, como
nós, não conseguem passar um dia sequer de suas vidas de modo
santo e louvável, se não considerarem para si próprios que
este dia é o último de sua existência nesta terra. E o que é
surpreendente é que alguns escritores, mesmo no seio do
paganismo, dizem algo semelhante: pois eles escreveram que o
amor à sabedoria não era outra coisa do que o pensamento da
morte. Quem alcançar este sexto degrau já não se deixará cair
em pecado, conforme o oráculo divino: “Lembrem-se de seu fim
derradeiro, e não pequem jamais[69]”.
SÉTIMO DEGRAU
Da tristeza que produz a alegria
1. A tristeza segundo Deus é uma aflição do coração e um
sentimento
de
dor
que
a
alma
penitente
experimenta:
sentimento inefável que a faz buscar com ardor aquilo que ela
deseja intensamente; que, não obtendo este bem desejado, a
faz enfrentar trabalhos inacreditáveis; que, quando sente que
não a pode obter, ela lança gritos de dor e gemidos
lamentáveis.
2. Podemos dizer que esta tristeza é um aguilhão precioso da
alma que, pelas preciosas agulhadas que causa, a livra e
purifica de todas as afeições terrestres, e que, pela dor que
lhe inflige, a fixa e a obriga unicamente a velar sobre si
mesma e a cuidar de sua salvação.
3. A compunção que os monges chamam de compunção religiosa é
um remorso da consciência por meio da qual esta força uma
alma a se acusar interiormente como sendo culpada e
criminosa, e, por meio desta confissão interior a abrasa com
um fogo divino e lhe traz um maravilhoso refresco.
4. Esta confissão ainda faz com que esqueçamos das
preocupações da natureza, conforme esta palavra de Davi: “Eu
esqueci de comer meu pão e de tomar meu alimento[70]”.
5. A penitência é uma alegre e agradável renúncia a toda
espécie de consolação humana.
6. O silêncio e a temperança são a alegre partilha de todos
os que progridem nesta tristeza salutar. A mansidão e o
esquecimento das injúrias ornam o coração das pessoas que,
por meio de combates sustentados com coragem, obtiveram
alguma vitória; enfim, os que com toda felicidade alcançaram
a perfeição desta bem-aventurada tristeza, se enchem de afeto
e amor pela prática da mais profunda humildade, são devorados
por uma sede ardente pelo desprezo e as humilhações, por uma
fome violenta por todas as coisas que assustam e fazem gritar
a natureza; de resto, eles queimam com uma caridade tão pura
e forte por seus irmãos, que não apenas perdoam-lhes as
faltas que os veem cometer, como ainda seu coração é tocado
por uma compaixão celeste em relação a eles. Devemos aprovar
os que fizeram algum progresso, louvaram os que obtiveram
algumas vitórias, e proclamar felizes os que têm fome de
humilhações e sofrimentos: pois estes últimos serão saciados
com este alimento celeste que jamais inspira desgosto.
7. Assim, se vocês tiverem a felicidade de obter o dom das
lágrimas, empreguem todos os meios capazes de conservá-lo.
Pois assim como a cera se derrete facilmente no fogo, este
dom, caso não possua raízes firmes na alma, se perde e
desaparece depressa por causa das inquietudes do espírito,
pelos cuidados que tomamos com o corpo, com os prazeres
sensuais
e
sobretudo
pela
coceira
de
falar,
pela
inconsequência e a petulância.
8. E, ousaremos dizê-lo? Esta feliz fonte de lágrimas é, de
certa forma, mais forte e poderosa do que a água do batismo.
Com efeito, o batismo nos purifica das faltas de que somos
culpados ainda antes de receber este sacramento; mas o dom
das lágrimas nos purifica de todas as faltas que tenhamos
cometido no decorrer de nossa vida. O batismo que recebemos
em nossa infância no conferiu uma graça infinitamente
preciosa, e nos colocou num estado sobrenatural; mas os
pecados em que caímos de forma miserável nos fez perder esta
graça inestimável e este estado feliz; o dom das lágrimas nos
faz recuperar esta graça, e, de certo modo, restabelece o
batismo em nós. Devemos concordar que seriam bem raros os
homens capazes de alcançar a salvação, se Deus, em sua
infinita Bondade, não nos houvesse concedido o dom das
lágrimas.
9. Vejam como os gemidos e a aflição de um coração contrito e
arrependido penetra até o trono de Deus, como as santas
lágrimas que o temor ao Senhor nos faz derramar são como
emissários que enviamos adiante de nós para lhe pedir graça e
misericórdia; e como aquelas que seu Amor nos faz derramar
nos dão a segurança deliciosa de que nossas preces e nosso
arrependimento lhe é agradável.
10. Mas lembremo-nos bem que, se nada é mais conforme e
favorável à verdadeira humildade do que as lágrimas de uma
penitência sincera, também nada é mais contrário e nocivo do
que a dissipação de uma vida mundana.
11. Conservem portanto, na medida do que forem capazes, a
tristeza salutar de uma santa compunção; ela lhes trará a
alegria sólida e verdadeira; não cessem de aumentá-la a
aperfeiçoá-la em vocês até que ela os desembarace de todas as
coisas da terra, purifica suas almas e toda mancha, a
apresente a Cristo seu sacrifício puro e santo.
12. Esforcem-se continuamente, tanto para a mortificação dos
sentidos, como para o recolhimento do espírito e uma profunda
meditação, para representar para si próprios este abismo
imenso, esta fornalha abrasada por chamas tenebrosas, este
juiz severo e inexorável, esta vasto caos dos fogos eternos,
estas descidas estreitas e obscuras dos lugares subterrâneos,
estas moradas desesperadas e estes precipícios profundos.
Sim, gravem com força no espírito a ideia e a imagem de todas
estas coisas assustadoras e outras semelhantes, a fim de que,
se seu coração se dirigir infelizmente a uma vida mole e
relaxada, atingido por um justo terror ele se aplique em
procurar
uma
castidade
incorruptível,
e
que,
pelos
sentimentos de uma tristeza salutar ele possa usufruir das
luzes espirituais, e se tornar mais puro e mais luminoso do
que as chamas mais puras e mais resplendentes.
13. Quando vocês se dedicarem ao santo exercício da oração,
estejam diante de Deus como um criminoso diante do juiz;
tremam e façam de modo a que, pela postura humilde do corpo e
mais ainda pelas disposições internas da alma, tenham a
felicidade de acalmar sua justa Indignação: pois ele não pode
rejeitar uma alma que se apresenta a ele da mesma maneira que
a viúva desolada de que fala o Evangelho, e que, pelo fervor
e a persistência de sua prece, continuou a bater à porta de
sua Bondade suprema.
14. Quem recebeu o dom das lágrimas sempre está bem, para
chorar seus pecados, em qualquer lugar que seja; mas quem não
chora senão por razões humanas escolherá os locais mais
convenientes às suas disposições naturais, e ficará feliz em
ter testemunhas de suas lágrimas.
15. Assim como um tesouro escondido está menos exposto à
rapacidade dos ladrões do que o que está à vista de todo
mundo, também as lágrimas interiores estão menos propensas a
serem perdidas do que as exteriores.
16. Evitem imitar aqueles que enterram seus mortos:
verão chorar por um momento sobre o túmulo, e um
depois os encontrarão em plena bebedeira. Façam
trabalhassem como condenados nas minas e que a toda
cruelmente chicoteados pelo encarregados de vigiar.
vocês os
instante
como se
hora são
17. Aquele que ora chora, ora se entrega à alegria e ao
prazer, se parece com um homem que, para se desembaraçar de
um cachorro de rua, lhe atira um pão ao invés de lhe atirar
pedras: é evidente que ao agir assim, ao invés de afastar o
animal, fará com que este o siga todo o tempo.
18. Assim é que vocês que choram seus pecados devem ser
inimigos de toda ostentação, aplicando-se unicamente à guarda
do coração. Os demônios temem tanto as pessoas que vivem no
recolhimento e na vigilância, como os ladrões temem os cães
de guarda à noite.
19. Meus amigos, Deus, ao nos chamar para a vida monástica,
não nos chamou para as núpcias para que nos entreguemos à
alegria; ele deseja que choremos por nós mesmos.
20. Existem pessoas que, por um lamentável erro, ao
derramarem lágrimas de dor e de arrependimento, violentam-se
para não pensar em nada. Eles ignoram que as lágrimas, sem os
bons pensamentos, podem convir a criaturas desprovidas de
razão, mas não às criaturas dotadas de intelecto e de razão:
pois não é dos pensamentos que nascem as lágrimas? E não é
por meio do espírito e da razão que são produzidos os
pensamentos?
21. Quando vocês forem repousar, tenham o cuidado de assumir
a mesma posição em que serão colocados no túmulo, e vocês
experimentarão menos as delícias dos sonhos. Quando estiverem
à mesa, pensem na triste e fúnebre mesa na qual vocês
próprios servirão de alimento aos vermes, e estarão menos
tentados a se entregar à sensualidade. Vocês se sentem
sedentos e querem aliviar a sede? Lembrem-se da sede
devorante que sofrem os condenados em meio às chamas do
inferno, e será fácil violentar a natureza, não concedendo a
ela tudo o que ela pede.
22. Não sofreu Nosso Senhor humilhações desonrosas e honrosas
a um só tempo? Ele nos faz reprimendas amargas, e nos inflige
penitências rigorosas? Lembremo-nos esta sentença fulminante
do soberano juiz: “Retirem-se de mim, malditos![71]”, e esta
lembrança, como uma espada de dois gumes, rasgará e dará
morte em nós aos injustos e funestos sentimentos de tristeza
e amargura, e nos conduzirá a viver na paciência e na
resignação.
23. O tempo, conforme o santo homem Jó, faz secar o mar[72],
e, por meio da paciência, nos fará adquirir e aperfeiçoar em
nós as virtudes de que falamos.
24. Que o pensamento das chamas eternas os acompanhe ao
entardecer, quando vocês se dirigirem ao leito; que ao
amanhecer ele presida ao seu despertar, e estejam certos de
que a preguiça e a negligência jamais dividirão seus
corações: acima de tudo, vocês serão preservados durante suas
orações e a recitação dos salmos.
25. Que os cuidados que vocês têm para com seus corpos e o
hábito monástico que vestem os instiguem a chorar por suas
faltas; pois os que trazem em si o luto se revestem de
hábitos com o mínimo de cores. Se vocês não choram ao menos
chorem por não chorar; e, se vocês choram, que seja por que
seus pecados os fizeram perder o estado feliz em que estavam
pela graça e a amizade de Deus, reduzindo-os ao penoso estado
em que se encontram agora.
26. Em nosso pranto e nossa penitência, como em todas as
demais coisas, Deus, que é um juiz cheio de clemência e
equidade, terá olhos para a nossa fraqueza. Mais de uma vez
me aconteceu ver pessoas que, derramando poucas lágrimas, as
vertiam com tão grande dor que as tomaríamos por gotas de
sangue, assim como vimos outras que choravam abundantemente e
sem esforço. Eu estimo mais a violência da dor do que a
abundância das lágrimas; e creio que Deus julga da mesma
maneira.
27. Não convém aos que choram tratar e se ocupar de matérias
relevantes e de questões teológicas: semelhante ocupação
poderia secar a fonte de suas lágrimas; pois quem se aplica a
estas ciências é semelhante a um doutor gravemente sentado
numa cadeira para, com sua autoridade, dar aula aos outros;
enquanto que aquele que chora suas faltas não deve ter
nenhuma semelhança senão como alguém sentado sobre uma
esterqueira e coberto com um saco e um cilício. É por esta
razão que Davi, por maior que tenha sido sua ciência e por
mais profunda que tenha sido sua sabedoria, respondeu aos que
lhe pediam que cantasse os cânticos: “Como poderíamos cantar
cânticos de louvor ao Senhor, estando numa terra estrangeira?
[73]”; ou seja, no país para onde nossos pecados nos
conduziram em cativeiro.
28. No curso natural das coisas, existem aquelas que possuem
um movimento por si mesmas, e outras que o recebem de uma
causa externa a eles. Ora, na penitência de nossos pecados,
existem lágrimas que correm por si sós de nossos olhos; mas
também existem aquelas que que só derramamos com esforço e
violência. Assim, quando sem movimento ou esforço nos
sentimos enternecidos e derramamos com abundância lágrimas de
uma doçura celeste, neste momento devemos nos apressar em
correr para o Senhor; pois esta é uma prova de que, sem que
tenhamos lhe pedido, ele veio a nós para nos presentear com a
esponja misteriosa da tristeza que lhe é agradável, para
criar em nós uma fonte de água refrescante, e para nos fazer
dom dessas lágrimas felizes que apagam nossos pecados do
livro de sua eterna Justiça. Conservemo-la preciosamente com
o maior cuidado, guardando-a até que ele considere que deva
no-la retirar; pois esta dor, que sua graça produz em nós,
possui mais virtude para nos purificar de nossas faltas do
que a que provocaríamos em nossos corações por meio de muitos
esforços e violências.
29. Quem chora quando quer certamente não recebeu de Deus o
dom das lágrimas; recebeu este dom aquele que chora o que
quer chorar, ou melhor, aquele que chora as coisas que Deus
quer que ele chore.
30. É muito comum que às lágrimas da penitência misturemos as
da vanglória, que são odiosas aos olhos de Deus. É a
prudência e a verdadeira piedade que nos fazem conhecer esta
falsa tristeza. Como poderíamos esperar sinceridade de nossas
lágrimas, se, ao mesmo tempo em que as derramamos, deixamos
de corrigir nossos defeitos?
31. A verdadeira compunção é isenta de todo inchaço do
coração e de toda vaidade, e não nos traz nenhuma consolação
humana, mas nos lembra continuamente de nossa última hora e
nos faz esperar de Deus, o único Consolador dos humildes de
coração, as consolações e as doçuras inefáveis que devem ser
para nós um banho refrescante e de paz.
32. Todos os que receberam esta aflição divina e consoladora
sentem uma santa aversão pela vida presente, vendo-a como
fonte e princípio funesto de todas as suas penas e de suas
misérias, e sentem contra seus próprios corpos a mesma raiva
que temos contra um inimigo que tenta nos matar.
33. Assim é que, se percebemos, nos que se acreditam
verdadeiramente aflitos segundo Deus, certos movimentos de
cólera ou sentimentos de orgulho, podemos, sem medo de errar,
considerar que suas lágrimas não são sinceras nem produzidas
por uma verdadeira compunção; pois, como disse são Paulo: “O
que existe de comum entre a luz e as trevas?[74]”.
34. A verdadeira compunção derrama consolações nas almas; a
falsa só produz orgulho.
35. Assim como o fogo consome a palha, também as lágrimas
sinceras consomem e fazem desaparecer inteiramente as
sujeiras visíveis e invisíveis da alma.
36. Muitos padres não hesitam em afirmar que não é difícil
distinguir as lágrimas sinceras das que não o são,
principalmente em pessoas que estão no começo da penitência,
quando seu discernimento ainda está cheio de trevas e
obscuridade; pois, dizem eles, as lágrimas podem ser
produzidas por diversas causas diferentes: tanto por um
sentimento natural e por um motivo louvável, como por uma
razão vergonhosa. Neste último caso, o princípio terá sido a
vanglória ou um amor desregrado e profano; no primeiro, terão
sido produzidas pelo pensamento da morte ou por muitas outras
boas considerações do gênero.
37. Depois de nos termos servido do temor a Deus para
descobrirmos e conhecermos a fonte das lágrimas que vertemos,
dediquemo-nos a procurar as que são causadas pelo pensamento
de nossa última hora, pois este tipo de lágrima é pura e
sincera; elas não susceptíveis de vaidade nem de ilusão, elas
purificam nossa alma e acendem em nosso coração o fogo do
santo amor a Deus; por fim, elas apagam os pecados, e nos
trazem o bem inestimável da paz no coração.
38. Evitemos ficar surpresos e espantados, se por vezes
lágrimas produzidas por uma dor sincera do pecado ou por uma
outra boa causa insuspeita se tornem apesar disso más e
condenáveis; o que nos deve encher de espanto é ver lágrimas
que, tendo desde o começo um mau princípio e uma fonte
envenenada, cheguem a se tornar sobrenaturais e santas. As
pessoas levadas à vanglória não deixarão de compreender o que
queremos dizer aqui.
39. Não contem com a abundância de suas lágrimas, se vocês
não se sentirem purificados de seus pecados. O vinho que
acaba de ser retirado do lagar não merece elogio nem
depreciação.
40. Ninguém duvida que as lágrimas produzidas pela graça de
Deus nos são soberanamente úteis e salutares; mas somente na
morte conheceremos perfeitamente sua utilidade e seus
preciosos benefícios.
41.
Assim,
aquele
que
passa
sua
vida
a
derramar
constantemente lágrimas agradáveis a Deus, celebra todos os
dias novas bodas espirituais, enquanto que quem passa os dias
em prazeres e alegrias profanas chorará pelos séculos
infinitos da eternidade.
42. Podem os criminosos experimentar algum prazer na prisão?
E como poderiam os verdadeiros experimentá-los na terra? E
não era com este sentimento que falou este grande penitente,
tão célebre pela sinceridade e a pureza de suas lágrimas,
quando disse: “Tire, ó Senhor, minha alma deste lugar onde me
encontro encerrado[75]”, a fim de que eu estremeça de alegria
no seio de sua luz incompreensível.
43. Conservem-se no meio de seus corações como um general em
meio à sua armada; ordenem ao coração com absoluta autoridade
todas as práticas da mais profunda humildade. Assim, quando
vocês ordenarem à alegria que se retire, dizendo-lhe: ‘vá’,
ela irá; e, quando disserem às lágrimas: ‘venham’, elas
virão; e ao seu corpo, que é seu escravo: ‘faça isso’, ele o
fará[76].
44. Qualquer um que tenha se revestido do dom das lágrimas
como de uma roupa nupcial, sentirá o que é a doçura
inexprimível da alegria espiritual.
45. Que monge terá vivido tão santamente para poder dizer
que, desde sua entrada na religião, não perdei um só dia, uma
só hora, um só momento, mas que consagrou ao serviço de Deus
sua vida inteira, com o pensamento de que um dia perdido não
voltará jamais?
46. Este monge será verdadeiramente feliz, este que, pela
vivacidade de sua fé, pode contemplar a beleza dos anjos e
usufruir assim da convivência com estas Inteligências
celestes; mas é também feliz, de outro modo, aquele que, pela
meditação da morte, pela lembrança amarga de seus pecados e
pelas lágrimas abundantes de sua fervorosa penitência,
conseguiu se colocar no estado feliz de não recair no pecado.
É difícil me convencer, eu creio, de que, para chegar à
perfeição do primeiro estado, não se deva primeiro passar
pelo segundo.
47. Eu vi pobres cuja audácia chegou ao ponto de se dirigirem
diretamente a reis, e que os pressionaram com palavras tão
engenhosas
e
maneiras
tão
envolventes,
que
estes
se
enterneceram em vista de sua posição miserável e foram
levados a sentir piedade de sua miséria. Mas também vi pobres
de outra espécie, os quais, sem absolutamente virtude alguma,
se dirigiram ao Rei do céu. Eles reclamavam seu socorre e
seus favores com uma perseverança e uma assiduidade que
poderíamos chamar de inoportunas; em tudo isso não empregavam
expressões escolhidas e estudadas, mas se contentavam em lhe
expor suas necessidades prementes com uma modéstia perfeita,
uma humildade profunda e um temor respeitoso; não cessavam de
lhe expressar os sentimentos de sua dignidade e de lhe
repetir com um tom de profunda dor e inteira convicção não
serem merecedores de ser escutados nem atendidos; e, no
entanto, esta violência com que agiram, de alguma forma o
forçou, a ele, o Rei, a sentir compaixão por eles e a lhes
conceder aquilo que pediam.
48. Aquele que se sente envaidecido por haver recebido o dom
das lágrimas, e que condena os demais por ainda estarem
privados disto, se parece com alguém que pediu armamentos ao
seu soberanos e, tendo-os recebido, ao invés de usá-los
contra os inimigos de seu príncipe, dele se serve para ferira
si mesmo e acabar morrendo.
49. Não nos esqueçamos de que Deus não precisa de nossas
lágrimas, e que ele não gosta de ver que as inquietudes e a
tristeza devoram e consomem nossos corações; o que ele deseja
é
que,
abrasados
pelo
fogo
sagrado
de
seu
Amor,
experimentemos e saboreemos as delícias de uma felicidade
pura e totalmente espiritual.
50. Retirem o pecado de seus corações, e vocês não terão mais
motivos para derramar lágrimas. Por que razão alguém
colocaria um emplastro sobre um dos membros de uma pessoa que
não tivesse ferida alguma? Derramaria lágrimas Adão, antes de
sua desobediência fatal? Ou o farão os justos, depois da
ressurreição e da inteira abolição do pecado? Não está
escrito que então “não haverá nem pranto, nem gemidos, nem
dor, nem aflição[77]”?
51. Vi pessoas que pareciam não ter tristeza, ainda que
estivessem na realidade aflitas; mas exteriormente as
tomaríamos por pessoas felizes, e não tomadas pela aflição. O
Amor de Jesus Cristo as mantinha ao abrigo de todo perigo; os
demônios nada podiam contra elas, pois a elas poderíamos
aplicar as palavras: “O Senhor ilumina as trevas dos
cegos[78]”.
52. Também é comum acontecer de as lágrimas encherem de
vaidade aos que não possuem senão uma virtude fraca e
cambaleante.
Então,
por
uma
traço
admirável
de
sua
Providência, Deus os priva deste dom que para eles se tornou
funesto, a fim de que, desejando e pedindo estas lágrimas,
eles se aflijam e se condenem, que vivam em suspiros e
gemidos, na dor e na tristeza, nas duras inquietações e na
ansiedade dilacerante; pois, nos desígnios de Deus, todas
estas penas que eles suportam então tomam o lugar do dom das
lágrimas, e, embora a eles pareça não retirar daí nenhum
fruto, elas lhes são infinitamente vantajosas.
53. Observando atentamente os diversos artifícios do demônio,
veremos que muitas vezes ele nos faz cair numa ilusão
bastante funesta e bem própria a nos causar pena, e que ele
nos engana de maneira bem patética. Com efeito, por acaso é
raro que, estando bem saciados e contentes em nossa
sensualidade, ele nos amoleça e nos faça derramar lágrimas em
abundância, e que, quando observamos fielmente o jejum e as
regras da temperança, ele nos endureça e faça secar a fonte
de nosso pranto? Ora, quem não vê que, pelas falsas lágrimas
que ele coloca em nossos olhos, ele quer que nos abandonemos
à intemperança e à sensualidade, duas fecundas fontes de
vícios? Assim, em lugar de cairmos nestas armadilhas,
estejamos atentos para fazer o contrário do que ele nos
sugere.
54. Quanto a mim, eu lhes confesso que ao considerar a
natureza da compunção do coração eu fico cheio de espanto, e
não posso deixar de me admirar como é possível que a dor e a
aflição da penitência encerrem em si mesmas a felicidade e a
alegria, como uma colmeia de abelhas esconde o mel. Mas o que
nos ensina esta maravilha? Que a tristeza e as lágrimas de
uma alma contrita e penitente são real e verdadeiramente um
dom de Deus; pois o que faz com que esta alma arrependida
experimente este prazer e esta alegria interiores, tão doces
e consoladores, é que o próprio Deus, de um modo secreto e
invisível, comunica aos corações aflitos e quebrantados pela
dor de suas faltas as doçuras e as consolações de uma alegria
celeste.
55. Mas nada, creio eu, poderá contribuir mais a nos
convencer o quanto temos necessidade de chorar nossos
pecados, e o quanto as lágrimas de uma doçura sincera são
úteis
à
nossa
alma,
como
a
história
verdadeiramente
extraordinária a surpreendente que eu vou lhes contar. Havia
no mosteiro em que eu estava um monge chamado Estevão; como
ele amava a vida solitária e eremítica, desde de muitos anos
ele vivia inteiramente separado dos irmãos e tinha se tornado
um
exemplo
por
seus
jejuns
rigorosos,
suas
lágrimas
abundantes e por outras virtudes semelhantes. Ele havia
fixado sua cela ao pé da santa montanha onde um dia estivera
Elias na presença de Deus. Mas este homem verdadeiramente
respeitável, desejando praticar exercícios de uma penitência
mais austera e mais laboriosa, se retirou para o deserto dos
Anacoretas, chamado Sidon, e aí viveu muitos anos na mais
severa e estrita disciplina. Este lugar, inteiramente privado
de
qualquer
consolação
humana,
era
de
início
quase
inacessível, distante setenta milhas de toda habitação. Por
fim este santo ancião, chegado ao final de seus dias,
retornou para sua primitiva cela na montanha de Elias, onde
tinha por discípulos dois monges da Palestina, que eram muito
piedosos e severos observadores da disciplina religiosa. Eles
haviam permanecido nesta cela durante a ausência do ancião, o
qual,
depois
de
alguns
dias
de
seu
retorno,
caiu
perigosamente doente, e esta doença o conduziu ao túmulo.
Durante a vigília de sua morte ele esteve arrebatado fora de
si, e neste arrebatamento ele olhava à direita e à esquerda,
como se houvessem pessoas ao seu redor; e ele prestava contas
de sua vida a estas pessoas, em tão alta voz, que todos os
que estavam presentes podiam ouvi-lo. “Sim, dizia ele algumas
vezes, é verdade; eu cometi esta falta, mas jejuei muitos
anos para expiá-la”; e outras vezes: “Não, eu não cometi esta
falta; vocês me acusam erradamente”. Depois ele acrescentava:
“Eu confesso que me tornei culpado desta fraqueza; mas eu a
chorei, fiz penitência e busquei afastá-la de mim por meio de
santos exercícios e de obras de caridade. E é absolutamente
falso que eu seja acusado disto agora”, dizia vivamente.
Sobre outras questões, ele dizia: “Vocês têm razão, eu
confesso que sou culpado e que nada tenho a apresentar para
me justificar, que não tenho outro recurso senão a
Misericórdia de Deus, em quem ponho toda minha confiança”.
Ora, este exame extraordinário era um espetáculo tanto mais
amedrontador e terrível na medida mesma em que este pobre
monge era acusado de faltas que não havia cometido. Ah!
Justos céus! Se um fervoroso solitário, um anacoreta que,
durante quarenta anos passados em vida eremítica, chorara tão
amargamente seus pecados, e os tinha expiado por meio de toda
espécie de austeridades, se este homem confessava que
determinadas
faltas
eram-lhe
ainda
indesculpáveis,
que
poderia então acontecer a mim? Não devo eu clamar: Infeliz
que sou! Sim, infeliz, miserável, pois este grande solitário
não foi capaz de calar os demônios que o acusavam com estas
palavras de Ezequiel: “O Senhor disse: eu os julgareis
segundo seus caminhos.[79]”? Mas glória seja dada a Deus, o
único que conhece as coisas ocultas! E no entanto muitas
pessoas me disseram que, enquanto vivia no deserto, este bom
solitário dera com suas próprias mãos de comer a um leopardo.
E foi no decurso deste exame rigoroso, enquanto prestava
contas de sua vida, que ele entregou sua alma a Deus, sem que
pudéssemos saber o final deste julgamento, e qual teria sido
a sentença recebida.
56. Assim como uma pobre viúva, após a morte de seu marido,
só encontra consolo no único filho que lhe resta, também uma
alma que caiu no pecado não consegue encontrar nenhum alívio
no momento de deixar a vida senão nos trabalhos penosos que
suportou, nos rigorosos jejuns praticados, nas lágrimas
vertidas e na penitência realizada.
57. Estes tipo de penitentes não se permitem sequer cantar
hinos e cânticos quando estão a sós, por que estes cânticos
seriam capazes de sufocar seus suspiros e diminuir suas
lágrimas. Então, se vocês imaginam que, cantando os hinos,
incitarão em si sentimentos de penitência, saibam que estão
bem longe disto, e que a penitência está bem longe de vocês.
A penitência é uma dor da alma que vem habitar nela depois de
muito tempo, e que nela se conserva por intermédio do fogo do
amor.
58. Esta penitência precede na alma a paz e a tranquilidade
do coração: é ela que, purificando-a e buscando a vitória
sobre as paixões e os maus hábitos, a reveste de seu primeiro
ornamento.
59. Eis o que me contou a respeito de si próprio um homem
ilustre por sua longa e rigorosa penitência: “Quando eu era
tentado a me entregar à vanglória, à impaciência, à
intemperança, a lembrança de minha penitência se opunha
fortemente e me fazia escutar dentro de mim estas palavras
severas: ‘Cuidado para não se deixar levar pela vanglória,
pois do contrário eu o abandonarei’; e o mesmo acontecia em
relação às outras tentações. Então eu lhe respondia, dizendo
que jamais a desobedeceria até que pudesse ser apresentado
com segurança diante do tribunal de Jesus Cristo”.
60. Mas se uma alma profundamente penitente e sinceramente
afligida por seus pecados recebe de Deus consolações
inefáveis, uma alma pura e santa recebe dele luzes
extraordinárias. Ora, esta iluminação divina é uma impressão
doce e forte, que não podemos exprimir, nem compreender, nem
ver: somente a fé é capaz de compreendê-la, vê-la e senti-la.
Quanto às consolações da alma penitente, é um certo frescor
doce e agradável que torna de certo modo esta alma semelhante
a uma criança que chora e ri ao mesmo tempo. Este frescor,
por um efeito admirável, renova esta alma aflita e faz com
que suas lágrimas, de amargas, se tornem doces e agradáveis.
61. As lágrimas produzidas pelo pensamento da morte fazem
nascer o temor a Deus nos corações; este temor a Deus
engendra a confiança, e esta firma confiança produz uma
alegria perfeita, que enfim gera a flor divina do amor.
62. Afastem para longe, com um espírito de verdadeira
humildade, toda alegria estrangeira, como sendo indigna de
vocês; e não deixem de temer que, pelas mentiras do demônio,
venham a receber um lobo devorador aos invés do pastor de
suas almas.
63. Cuidado para não desejar, antes do tempo, se elevar a uma
sublime contemplação; façam de modo a que, pela perfeição de
sua humildade, seja ela a procurá-los e capturá-los para se
unir à sua alma numa união pura e indissolúvel.
64. Vejam como uma alma religiosa se assemelha à de uma
criança: apenas se aproxima o pai e ela se enche de uma
alegria que não consegue expressar; e, se por qualquer razão
seu pai se ausenta, quando ele retorna, a criança mostra ao
mesmo tempo seu contentamento e sua pena: seu contentamento,
por que ela recebe seu pai depois de uma ausência que muito
custou a ela; sua pena, por que ela ficou tanto tempo privada
de sua presença.
65. Também esta alma se parece com uma criança: vejam como
uma mãe se esconde e se oculta da vista de seu filho, mas
que, assim que ouve seus gemidos e vê suas lágrimas,
experimenta um prazer delicioso, por que o está ensinando a
sentir a importância e a necessidade de não se afastar de sua
presença; deste modo ela nutre e aumenta em seu filho o afeto
que ele sente por ela. Ora, disse o Senhor: “Quem tiver
ouvidos para ouvir, escute estas palavras[80]”.
66. O criminoso condenado à pena capital por acaso pensa nos
exercícios do Ginásio ou nas peças apresentadas no teatro?
Ora, quem pensa nos pecados que lhe condenam aos tormentos
eternos, será este capaz de se entregar ao prazer, à
vanglória, à cólera e ao mau humor?
67. A penitência, que consiste numa viva e profunda dor da
alma, não deve ela nos fornecer a cada dia novos motivos para
nos afligir e sofrer? Não se parece a alma penitente com uma
mulher que se encontra nas dores do parto?
68. O Senhor, cuja justiça iguala sua santidade, recompensa,
pelo sentimento de uma compunção cheia de fé, o monge que, na
solidão, vive segundo a fé e as regras da santidade, assim
como recompensa, por meio de inefáveis consolações, o monge
que, por motivos louváveis, habita num mosteiro para aí viver
santamente sob a autoridade e a obediência de um superior.
Mas quem, sinceramente e segundo Deus, não abraça nenhum
destes modos de vida, estará infelizmente privado do dom das
lágrimas.
69. Afastem e expulsem para longe o demônio do desespero,
este cão raivoso, que, vendo-os considerar com dor os pecados
cometidos, faz todos os esforços para lhes apresentar um Deus
sem clemência, sem bondade e sem misericórdia; se vocês
prestarem atenção, verão que, antes de fazê-los cair nas
faltas que agora choram, este miserável lhes pintava
vivamente a bondade, a clemência e a misericórdia de Deus e,
sobretudo, sua admirável facilidade em receber os pecadores e
perdoá-los.
70. O santo exercício da penitência produz seu próprio e
feliz costume em nossa alma, e este costume o torna fácil e
agradável. Eis por que ele coloca em nossos corações raízes
tão forte e tão profundas que se torna difícil arrancá-lo de
nós.
71. De resto, será inútil nos entregarmos aos mais excelentes
exercícios de piedade, se não tivermos esta dor interior e
sincera por nossos pecados; neste caso, não seremos nada,
nada estaremos fazendo; pois para nós, que manchamos e
perdemos a graça preciosa do batismo, que enchemos nossas
mãos de iniquidades, é absolutamente necessário que nos
purifiquemos e, por meio do fogo ardente e contínuo do
arrependimento e pelo azeite da misericórdia de Deus,
consigamos derreter esta graxa repugnante dos nossos vícios.
72. Conheci pessoas que estavam, por assim dizer, no último
degrau da penitência. Elas sentiam uma contrição tão viva e
aguda de seus pecados, que chegavam a vomitar sangue. Esta
visão me lembrou as palavras do salmista: “Eu fui flagelado,
Senhor, pelo rebenque se sua cólera, como a erva pelos raios
do sol, e meu coração ressecou[81]”.
73. As lágrimas que o temor a Deus nos faz verter produzem em
nós o temor de vê-las secar e a vigilância necessária para
conservá-las. Os que não choram seus pecados senão pelo
movimento de uma caridade pouco inflamada e que não tem a
perfeição requerida, logo as verão desaparecer. Não se pode
dizer o mesmo dos que choram suas faltas por que seu coração
está abrasado no tempo por uma fogo digno de uma memória
eterna; e acrescentemos aqui que em nossa penitência, para
nossa admiração, foi o mais humilde e o mais abjeto que criou
em nós realmente a maior certeza e segurança de ser agradável
a Deus.
74. Existem coisas que fazem secar as lágrimas da penitência,
e outras que nelas misturam, se podemos nos exprimir assim, a
lama e as bestas selvagens. As primeiras foram causa do
incesto de Lot com suas duas filhas, e as segundas, da queda
de Lúcifer e de seus anjos.
75.
A
malícia
dos
inimigos
de
nossa
salvação
é
verdadeiramente incrível: eles se servem de tudo para
transformar nossas virtudes em vícios e para nos encher de
orgulho em coisas das quais devíamos nos cobrir de vergonha.
76. A solidão em que nos encontramos, as celas que ocupamos,
os diversos objetos que encontramos, são muitas vezes capazes
de nos levar à compunção; e não é isto o que nosso Senhor,
Elias e são João Batista nos ensinam com seu exemplo? Pois
eles se retiraram para o deserto para estará aí mais
desimpedidos para a oração, e para oferecer a Deus o tributo
de suas lágrimas.
77. E no entanto acontece também, e eu próprio já vi isto,
que no centro das cidades e nomeio do tumulto e das agitações
do século, monges derramassem lágrimas abundantemente. Mas
não nos enganemos com isto: o inimigo quer nos levar a que
entremos no mundo, fazendo-nos crer que não sofreríamos
nenhum prejuízo nem perda espiritual alguma por frequentarmos
os homens, e para que nos coloquemos no meio das coisas e dos
negócios do século, e que, por conseguinte, é errado temermos
assim o mundo e suas agitações tumultuadas.
78. Não percamos de vista que às vezes basta uma palavra para
fazer secar a fonte das lágrimas de uma alma penitente.
79. Podemos dizer que, sem algum tipo de milagre, uma só
palavra é capaz de fazê-las jorrar outra vez? Eh! Meus ternos
amigos, na hora de nossa morte, o soberano Juiz não
considerará um crime não termos feito milagres durante a
vida, ou não termos tratado com sutileza as matérias elevadas
da teologia, ou não havermos alcançado um elevado grau de
contemplação, mas sim o não termos chorado nossos pecados de
modo a obter seu perdão. Este é o sétimo degrau da escada do
paraíso. Aquele que chegou até aqui, por favor dê-me sua mão,
pois somente isto é possível com o auxílio de alguém, que
também chegou a este ponto e que tenha se purificado dos
pecados cometidos durante sua vida.
OITAVO DEGRAU
Da Mansidão, que triunfa sobre a cólera.
1. A água que é pouco a pouco derramada sobre um incêndio
acaba por extingui-lo inteiramente; é o que fazem as lágrimas
vertidas por causa de uma verdadeira dor pelos pecados,
apertando e fazendo morrer os movimentos da cólera e
acalmando a impetuosidade do coração: é por esta razão que
vamos tratar agora da mansidão e da bondade da alma.
2.
A
vitória
que
obtemos
sobre
a
cólera
consiste
essencialmente
numa
sede
inextinguível
e
num
desejo
insaciável de menosprezo e humilhações, assim como a vaidade
consiste num desejo imenso de honras e elogios. A mansidão é
assim uma vitória que obtemos sobre a natureza, sofrendo toda
sorte de injúrias com inviolável paciência, que ao final irá
coroar nossos combates e nossas fadigas.
3. É assim que ela torna a alma inquebrantável e impassível
em meio ao despreza e às humilhações, dos aplausos e dos
elogios.
4. Manter nossa língua em cativeiro e guardar silêncio quando
nosso coração é violentamente agitado, são as primeiras armas
desta virtude e as primeiras vantagens que ela obtém sobre a
cólera:
saber
acalmar
o
tumulto
interior
de
nossos
pensamentos e de nossos sentimentos nos momentos em que
estamos agitados, são progressos que fazemos na prática da
mansidão; mas conservar nossa alma em calma e tranquilidade
em meio aos ventos mais impetuosos, as tempestades mais
furiosas, eis aqui a perfeição da mansidão e da vitória que
obtemos sobre a cólera.
5. Esta paixão se alimenta num pensamento de raiva secreta e
na lembrança das injúrias recebidas; ela nos leva a buscar a
vingança contra os que nos ofenderam.
6. O furor é uma paixão instantânea e violenta da alma.
7. O azedume ou a amargura do coração consiste num
sentimento, ou antes numa sensação cheia de malícia que
habita o coração e o precipita no abatimento e na tristeza,
sem lhe trazer nenhum contentamento.
8. A cólera já corrompeu rapidamente muitos hábitos doces e
tranquilos, aviltando o coração e cobrindo-o com uma horrível
deformidade.
9. Assim como as trevas se põem em fuga quando o sol derrama
seus raios sobre a terra, também o azedume e a cólera
desaparecem prontamente quando a humildade se apresenta e
verte seus perfumes olorosos.
10. Apesar disso, encontramos ainda pessoas que, embora
tenham podido atestar o quanto uma experiência deplorável é
capaz de conduzi-las a movimentos de cólera, não buscam nem
empregam os meios e os remédios capazes de curar seus
corações desta funesta enfermidade. Insensatos! Esquecem-se
desta sentença memorável: “O momento da cólera é o momento da
perda e da ruína da alma[82]”.
11. Os movimentos de cólera são muito semelhantes aos
movimentos de uma mó de moinho: eles são capazes de num
instante fazer uma alma perder mais farinha e benefícios
espirituais, do que outros levariam nisto um dia inteiro.
12. Eles se assemelham também a estas chamas que, empurradas
por um vento impetuoso, logo reduzem tudo a cinzas. Portanto,
vigiemo-nos com grande atenção, a fim de nos opormos com
vigor às suas devastações terríveis e instantâneas.
13. Não esconderei de vocês, meus amigos, que muitas vezes os
demônios, estes implacáveis inimigos de nossa alma, sabem
destramente cessar de nos tentar, a fim de que pouco a pouco
nos tornemos negligentes, que encaremos como leve e pequeno o
que é grave e criminoso, até que por fim tombemos em
enfermidades incuráveis e mortais.
14. Uma pedra aguda, à custa de bater contra outras pedras,
perde suas pontas e se torna arredondada. Da mesma forma uma
pessoa dom temperamento bilioso e colérico, vivendo entre
pessoas do mesmo tipo, experimentará necessariamente um
destes dois efeitos: ou corrigirá por meio da paciência seu
humor irritadiço e violento; ou, vencido pelas injúrias que
irá receber, se retirará de seu convívio, e mostrará com esta
retirada o quanto ela perdeu de força e de coragem.
15. Um homem escravo da cólera é um epilético espiritual que,
primeiro pela própria vontade e depois pela necessidade do
hábito, se arranha e se despedaça.
16. Nada é mais funesto aos que choram seus pecados do que
esta paixão funesta: ela perturba seus corações e os impede
de retornar a Deus através dos sentimentos de humildade que
lhes inspirava a vida religiosa que abraçaram; pois a cólera
é a prova evidente de que se está sob o domínio do orgulho.
17. Se a perfeição da mansidão é ser calmo e tranquilo e
conservar sentimentos de amor e afeto pela pessoa que nos
ofendeu, mesmo em sua presença, será o cúmulo do furor nos
irritarmos e manifestarmos nossa cólera por palavras e ações
contra quem nos mortificou e irritou, quando estamos a sós e
a pessoa está longe de nós.
18. Se o Espírito Santo é chamado de paz da alma – e o é, com
efeito – e a cólera é chamada de perturbação da alma – e o é,
igualmente – não devemos concluir necessariamente daí que é
sobretudo a cólera que nos priva da presença deste Espírito
divino?
19. Dentre os numerosos e traiçoeiros filhos da cólera existe
um que, apesar de sua maldade, nos traz algum benefício. De
fato, já vi pessoas que, estando inflamadas de furor, por um
movimento súbito e violento expulsaram de seu coração uma
aversão
que
nutriam
há
muito
tempo;
pois
com
isto
possibilitaram a quem os havia ofendido, ou de lhes dizer de
seu arrependimento pela conduta passada, ou de lhes dar
satisfação pelo mal feito. Desta forma, por um movimento de
cólera, elas se livraram desta paixão. Mas também vi outros
que, por uma hipocrisia infernal, faziam cara de sofrer com
paciência as injúrias que lhes era dirigidas, mas que
guardavam delas uma lembrança exata e perfeita.
20. Eu creio que estas pessoas são piores do que as que se
deixam levar pelos rompantes da cólera; pois elas mancham e
empanam a brancura e a simplicidade da pomba com a cor negra
e infecta da raiva.
21. Não existe precaução excessiva contra tão infame conduta:
trata-se de uma serpente da qual devemos desconfiar em todas
as coisas; é um demônio que, semelhante ao demônio da
impureza, tenta nos por a perder, favorecendo as inclinações
da natureza corrompida.
22. Eu já vi que certas pessoas são de tal modo transportadas
pela cólera, que não podem sequer comer, e esta abstinência,
ao invés de acalmar seu furor, só o faz aumentar; mas, ao
contrário, observei que existem outras que, em seus acessos
de cólera e acreditando estar certas, se atiram com uma
espécie de raiva sobre a comida, devorando-a com ferocidade
aterradora: e assim estes miseráveis caem da fossa no abismo.
Por fim, vi também alguns que, mais sábios e semelhantes a
médicos experientes, sabem guardar o justo meio entre estas
duas extremidades, extraindo daí grandes benefícios.
23. O canto é apropriado para trazer à alma a calma e a paz;
mas ele também pode prejudicá-la levando a ela prazeres e
alegrias; mas quem souber consultar as circunstâncias e as
conveniências dele poderão se servir sabiamente.
24. Num dia em que fui encontrar alguns anacoretas por
motivos pessoais, detive-me por algum tempo fora de suas
celas, e ouvi que faziam um grande barulho, e que discutiam
entre si como perdizes numa gaiola, tal era a fúria que os
animava. Tamanha era ela que, embora aquele que os irritara
estivesse ausente, eles agiam como se ele estivesse presente
e os estivessem vendo ali diante deles. Eu os aconselhei a
que
deixassem
suas
celas
e
se
retirassem
com
toda
simplicidade para um mosteiro; pois eu temia que, de homens
que eram, pudessem se transformar em abomináveis demônios. Em
outras comunidades eu vi coisas de natureza completamente
diferente: tratava-se de pessoas indolentes e afeminadas,
homens sujeitos à intemperança e à sensualidade, demasiado
afetados e lisonjeiros uns em relação aos outros, e que
tomavam todos os cuidados mais minuciosos com a higiene e a
beleza de seus corpos. A estes eu aconselhei que se
retirassem para o deserto, por que a solidão é a inimiga
irreconciliável da luxúria e da sensualidade; pois eu temia
que de homens racionais que eram, se tornassem como animais
desprovidos de razão. E quando acontecia de encontrar pessoas
que padeciam amargamente de se ver tentados pela cólera e
para indolência, eu as pressionava fortemente a não se
conduzirem por si próprias, mas que vivessem sob o jugo da
obediência. Assim eu pedia caridosamente a seus superiores
que lhes permitissem viver tanto na solidão como no interior
do mosteiro, de maneira a que, pelo menos, em um ou outro
destes estados, elas estivessem sempre na dependência e sob a
autoridade de seus superiores.
25. Se é verdade que aqueles que são levados aos prazeres dos
sentidos e à indolência, não apenas perdem a si mesmos como
põem a perder as pessoas que lamentavelmente se ligam a eles
e os frequentam, é também verdade que, como um lobo furioso,
o homem colérico é capaz de perturbar toda uma comunidade e
levar à perdição um grande número de almas.
26. Eu penso que se trata de um crime hediondo perturbar o
olho de seu coração, atitando-se à fúria, conforme a palavra:
“A fúria turvou meus olhos[83]”; mas penso também que é um
crime ainda mais temível mostrar por palavras amargas a
agitação interior na qual nos encontramos; enfim, penso que o
cúmulo da infâmia é chegar às vias de fato: isto é o que há
de mais contrário à vida angélica, religiosa e quase divina
que nos propusemos vive.
27. Mas devemos frisar aqui que, se você quer retirar do olho
de seu irmão uma palha que você viu ali, cuidado para que
este não seja um desejo enganador; não se utilize, para esta
operação delicada, de um instrumento grosseiro, mas empregue
algum que seja próprio e conveniente, e cuidado para não a
afundar ainda mais, em lugar de retirá-la. O instrumento
grosseiro é a imagem da reprovação dura e humilhante que
fazemos aos outros, e os modos bruscos e violentos com que a
manifestamos; o instrumento delicado é a imagem de uma
reprimenda cheia de bondade, doçura e benevolência. O
Espírito Santo nos disse: “Repreendam, corrijam e peçam”; mas
ele não nos disse: “batam”. Se formos obrigados a fazê-lo,
que seja muito raramente; e que isto só aconteça por mãos de
terceiros.
28. Se prestarmos atenção, veremos que existe nas pessoas
violentas e coléricas uma inclinação pronunciada para a
prática do jejum, das vigílias e do silêncio. É assim que o
demônio, este inimigo cheio de astúcia, sob o pretexto da
penitência e do derramamento de lágrimas, lhes fornece a
matéria e os meios de aumentar seu humor violento e azedo.
29. Se um mau monge, como dissemos acima, auxiliado pelo
demônio e semelhante a um lobo, é capaz de perturbar toda uma
casa religiosa, um bom monge, pela razão contrária, escolhido
dentre os mais prudentes e sábios, e ajudado por um anjo,
poderá derramar o azeite precioso da doçura em meio a seus
irmãos, apaziguar as tempestades excitadas e os ventos
furiosos da cólera e conduzir com sucesso o navio ao porto da
tranquilidade e da calma. Assim, do mesmo modo como o mau
monge deve ser julgado, condenado e punido por sua conduta, o
bom monge, que por sua doçura se tornou exemplo e modelo para
seus irmãos, é digno de receber uma recompensa proporcional à
grandeza e à importância dos serviços prestados.
30. O primeiro grau da mansuetude consiste em sofrer os
ultrajes e as humilhações, por mais amargura e dor que a alma
ainda possa sentir; o segundo grau consiste em suportar estas
coisas com calma e tranquilidade; o terceiro, que é a
perfeição da mansidão, consiste em receber o desprezo e as
injúrias com mais prazer do que recebem os mundanos os
elogios que lhes são dirigidos. Mas onde está este homem que
alcançou tal perfeição? Fique contente quem chegou ao
primeiro grau; persevere com constância, quem alcançou o
segundo; mas quem atingiu o terceiro, este terá triunfado no
Senhor.
31. Mas eis uma coisa verdadeiramente digna de pena: é que as
pessoas irascíveis costumam, devido a uma inconcebível
vaidade, se irritar e se encolerizar por se deixarem vencer
por seu mau humor. Em verdade, não é lamentável voltar a
cair, pretendendo se punir por haver caído uma primeira vez?
Quanto a mim, considerando a excessiva malícia do demônio, eu
me proíbo disto, pois, observando estas pessoas, eu percebo
que
elas
não
estão
longe
de
cair
no
mais
funesto
desencorajamento.
32. Se alguém percebe que se deixa facilmente vencer pela
vaidade e a cólera, pela maldade e a hipocrisia, e decide
empregar contra esses vícios a espada de dois gumes da doçura
e da paciência, eu o aconselho fortemente a entrar para uma
comunidade de irmãos, como numa oficina que lhe será muito
salutar; a escolher, se deseja de todo seu coração corrigirse, a morada onde as regras e a disciplina forem mais
austeras, a fim de que, por meio das humilhações, do desprezo
e das mais duras provas ele seja como que flagelado,
despedaçado, retalhado, apagado e pisoteado. É assim que ele
irá purificar sua alma
verdade de uma palavra
se glorificar, não é
oprimidos com injúrias
meu modo”.
das faltas cometidas e compreenderá a
muito empregada no mundo; pois, para
raro ouvirmos dizer aos que foram
e ultrajes: “Eu lavei sua cabeça ao
33. Existe uma diferença essencial entre a vitória que os
jovens conversos obtêm sobre a cólera, servindo-se das armas
de uma humilde penitência, e a imobilidade tranquila dos que
alcançaram a perfeição da doçura, pois, entre os primeiros,
as lágrimas, como correntes, amarram e reprimem a cólera,
enquanto que, nos últimos, a calma e a tranquilidade de seus
corações insensíveis às injúrias levaram à morte este paixão,
como o faria uma espada a uma serpente.
34. Certo dia, diante de meus olhos, três monges receberam o
mesmo ultraje. Um sentiu-se ferido mas sofreu em silêncio,
afogando a mágoa que sentia; outro alegrou-se internamente,
mas
se
sentiu
aflito
interiormente
por
caridade
e
benevolência em relação a quem o maltratara; o terceiro,
enfim, esqueceu-se totalmente de si para só se ocupar de seu
irmão, por quem chorava cálidas lágrimas, tamanha era a
caridade que devorava seu coração. Assim podiam-se ver nestes
monges três excelentes virtudes: o temos a Deus, a esperança
e o amor.
35. Como acontece com nossos corpos, embora a febre seja
sempre a mesma, ela não deixa de ter múltiplas causas; também
a cólera, assim como outras paixões, tem muitas causas e
inicia-se de várias maneiras. É impossível fornecer aqui
instruções específicas e relativas a cada causa ou início.
Tudo o que eu posso fazer é aconselhar aos que se sentirem
afetados
por
esta
paixão,
que
busquem
os
remédios
convenientes e capazes de curá-los, e sobretudo que conheçam
as causas do mal, a fim de que, conhecendo-a perfeitamente,
possam, com a Bondade de Deus e sob a direção de seu médico
espiritual,
empregar
os
remédios
necessários.
Que
se
apresentem, e que conosco entrem nesta busca que propusemos
aos monges, todos os que, tocados pelas palavras que lhes
dirigimos, desejam conhecer o verdadeiro estado de sua alma;
que examinem seriamente, e no mais profundo silêncio, quais
são os tristes efeitos e os funestos princípios das paixões
que acabamos de descrever.
36. Um coração colérico e furioso deve ser acorrentado como
um cruel tirano, mas com as cadeias de uma doçura e paciência
constantes; é preciso vergastá-lo com o chicote da clemência,
e conduzi-lo por meio da caridade ao tribunal da razão
soberana de Deus, para responder às questões que lhe serão
feitas. Diga-nos, tola e impudente paixão da cólera, o nome
de seu pai, da mãe que infelizmente a deu à luz, e dos filhos
corrompidos que nasceram de você. Diga-nos quem são aqueles
que, combatendo-a, a poderão exterminar e fazer desaparecer.
A estas questões, quais respostas nos dará a cólera? Eu quase
a ouço dizer: “Muitas causas concorreram para a minha
existência; eu não tenho apenas um pai, mas muitos, e o
primeiro a contribuir para a minha existência foi o orgulho.
Eu tenho muitas mães, dentre as quais estão a vanglória, a
avareza, a intemperança, a luxúria. Minhas filhas são o
pensamento das injúrias, a raiva, as discussões e as
inimizades; e os inimigos que podem me vencer e acorrentar
são as virtudes opostas às minhas filhas, e ainda a paciência
e a moderação; mas a virtude que maior mal me faz é a
humildade”. Com o tempo, vocês aprenderão de onde esta
virtude extrai sua origem. É neste oitavo degrau que se
encontra a coroa da doçura e da mansidão. Aquele que, pela
compleição de sua natureza, é de um temperamento doce e
tranquilo, eventualmente poderia não merecê-lo. Mas o merece
aquele que, por seus esforços laboriosos, obteve a vitória
sobre a cólera, passando sucessivamente pelos sete primeiros
degraus: dele é esta bela coroa.
NONO DEGRAU
Do Ressentimento.
1. É com razão que podemos comparar as virtudes ais diversos
degraus da escada de Jacó, e os vícios às correntes que
caíram dos pés e das mãos de são Pedro, príncipe dos
apóstolos. Com efeito, estando as virtudes unidas umas às
outras por anéis admiráveis, eles permitem subir até os céus
aqueles que têm a felicidade de praticá-las, enquanto que os
vícios, ligados entre si por laços diabólicos, conduzem à
infelicidade eterna os que se deixam miseravelmente conduzir
por eles. É por isso que pensamos ser aqui o lugar para
tratarmos da lembrança das injúrias, por que ouvimos da
própria boca da cólera que esta é uma de suas perversas
filhas.
2. Ora, nós diremos que a lembrança das injúrias, na medida
em que representa o cúmulo da cólera, é também sua cauda. É
ela que faz viver os pecados numa alma, que nela alimenta o
ódio à justiça, que causa a morte das virtudes, que envenena
o coração, que obscurece a inteligência, que cobre de
vergonha os que recitam a oração dominical, que paralisa a
prece, que destrói a caridade, que trespassa sem interrupção
os corações com suas flechas afiadas, que os enche de
amargura e aí faz reinar, com um império absoluto, o pecado,
o crime e a maldade.
3. Ora, como a lembrança das injúrias extrai sua origem de
algumas outras paixões vis e abjetas, e como ela não as
apresenta, senão raramente, dela diremos pouca coisa.
4. Quem mata a cólera, mata, por isso mesmo, a lembrança das
injúrias. Mas enquanto esta violenta paixão domina o coração,
ela aí gera novos filhos.
5. Observem atentamente como e quão rápido expulsa e bane de
sua alma a cólera, o homem que queima de amor por seus
irmãos, e quantas penas e inquietudes vergonhosas cria para
si mesmo o que se entrega a esta paixão brutal.
6. Saibam que uma pequena refeição de caridade dissipa a
raiva, e que presentes feitos com intenções puras e sinceras
acalmam e conquistam os corações; enquanto que um festim, no
qual as leis da sobriedade não são observadas, dá lugar à
licenciosidade, e assim, sob pretexto de fazer um gesto de
caridade, nos entregamos aos excessos do comer e do beber.
7. Eu já vi a cólera romper de um só golpe uma velha ligação,
profana e criminosa, e degenerando em ódio violento, contra a
expectativa geral, manter a lembrança das injúrias recebidas,
de modo a perseverar nesta ruptura até o fim. Mas neste caso,
trata-se mais da obra de Deus do que da do demônio.
8. A lembrança das injúrias é sempre infinitamente oposta ao
amor, coisa que não podemos assegurar em relação às
tendências criminosas, pois estas se misturam facilmente com
esta virtude para manchar e corromper a brancura e a pureza
desta inocente pomba.
9. Vocês querem não esquecer das injúrias recebidas? Eu o
consinto, desde que sejam aquelas recebidas do demônio. Quem
quiser nitrir em seu coração o ódio e a inimizade, que o
faça, mas contra seu próprio corpo, que é seu mais perigoso
inimigo; pois este corpo miserável, sob o enganoso título de
amigo, não passa de um ingrato e de um traidor: quanto mais
cuidamos dele, mais mal ele nos faz.
10; A lembrança das injúrias é um péssimo intérprete das
santas Escrituras. Ela não sabe explicar os oráculos sagrados
do Espírito Santo a não ser conforme seus gostos depravados e
seu senso corrompido. Que a prece que nosso Senhor nos
ensinou cubra de confusão aqueles que se deixam conduzir por
tão mau doutor. Eh! Como poderão estes recitar esta admirável
oração, com Jesus Cristo e segundo suas intenções, se o
pensamento das injúrias se mantém gravado em sua memória?
11. Se vocês lutaram contra si próprios por muito tempo e com
todo
vigor,
para
esquecer
um
ultraje,
sem
conseguir
desenraizar sua lembrança de seu coração, eis o conselho que
eu acredito poder lhes dar: humilhem-se na presença daquele
que os ofendeu, dirigindo-se a ele com palavras doces; vocês
verão que pouco a pouco começarão a enrubescer devido a esta
longa dissimulação, e que assim, continuamente agitados pelas
reprimendas de sua própria consciência, vocês acabarão por
consumir a inimizade no fogo da caridade, reconciliando-se
perfeitamente com seu irmão.
12. Vocês saberão que seu coração está livre de todo
sentimento de ódio, não apenas por que oram pela pessoa que
os ofendeu, nem por que lhe oferecem presentes e o convidam à
mesa, mas apenas quando, sabendo que a ele aconteceu algum
acidente – no corpo ou na alma – vocês se sentirem desolados
e aflitos, como se a infelicidade acontecesse com vocês
mesmos.
13.Um monge que conserva em seu coração a lembrança das
injúrias guarda aí um ninho de serpentes, e traz seu veneno
no próprio seio; e este veneno é mortal.
14. O pensamento e a meditação das injúrias e dos sofrimentos
que Jesus Cristo suportou com paciência exemplar são ideais,
por nos cobrirem de uma salutar confusão, para expulsar de
nosso coração a lembrança dos ultrajes que recebemos.
15. Os vermes, como sabemos, são gerados na madeira; mas
podemos ignorar que a cólera se torna hóspede dos corações
que não possuem senão uma doçura exterior e aparente? Quem
quer que, por seus esforços, conseguir expulsá-la para longe
de si, merece o perdão de seus pecados; mas quem conserva e
alimenta esta paixão se torna indigno de toda misericórdia.
16. Vemos muitas pessoas empreenderem grandes trabalhos e se
condenar a rigorosas privações para obter a remissão de suas
faltas; mas avança muito mais na obra admirável da
justificação aquele que baniu de seu coração toda ideia e
toda lembrança das injúrias recebidas. É o que nos assegura o
oráculo de eterna verdade: “Perdoem, e serão perdoados[84]”.
17. Si, eu repito, o esquecimento dos ultrajes é a marca
segura de uma penitência sincera e eficaz. Engana-se
grosseiramente quem, não querendo esquecer, se convence de
estar tocado e animado por uma verdadeira dor por seus
pecados. Infeliz! Assemelha-se a um homem que, em seu sonho,
pensa que corre.
18. Eu encontrei pessoas que, mesmo conservando em si a
lembrança das ofensas recebidas, exortavam com grande zelo a
outras pessoas que se encontravam no mesmo estado a renunciar
a toda lembrança das injúrias recebidas. Estas pessoas,
tocadas pelas exortações que faziam aos outros, acabaram por
renunciar inteiramente à
próprias haviam recebido.
lembrança
dos
ultrajes
que
elas
19. Que ninguém imagine que o pensamento e a lembrança das
injúrias não passam de um pequeno defeito e de uma paixão
perdoável. São males funestos que penetram nos corações mais
piedosos e mais religiosos, que os corrompem e os perdem
miseravelmente. Portanto, vocês que alcançaram este degrau,
peçam com confiança ao Deus Salvador o perdão e a remissão
dos seus pecados.
DÉCIMO DEGRAU
Da Maledicência.
1. Não há pessoas que goste de refletir e que seja capaz de
dizer que a maledicência não é uma filha da cólera e da
lembrança das injúrias, e de não concordar que temos razão em
dizer algumas palavras a respeito deste detestável vício,
depois de havermos tratado dos dois primeiros.
2. A maledicência é gerada pela raiva. É uma paixão muito
sutil; não obstante é uma sanguessuga gorda e voraz, que se
esconde destramente para trair e sugar todo o bom sangue da
caridade. Sob o pretexto enganador do amor e da afeição, a
maledicência exerce a devastação de um ódio implacável e
assassino,
mancha
horrivelmente
o
coração,
carrega
enormemente a consciência e destrói inteiramente a castidade.
3. Assim como existem filhas do sexo que perpetram o mal sem
enrubescer, outras se escondem para pecar e, por isso mesmo,
cometem faltas ainda mais graves: assim é também a marcha
normal das paixões. Elas cobrem nossa alma de ignomínia,
pois, muitas vezes semelhantes às jovens dissimuladas, elas
deixam
exteriormente
manifestar
exatamente
o
contrário
daquilo a que se propõem de fato. Ora, as paixões que se
conduzem assim são a hipocrisia, a malícia, a tristeza, a
lembrança
das
injúrias,
o
julgamento
temerário,
as
condenações da conduta de outrem e a maledicência.
4. Tendo um dia encontrado algumas pessoas que falavam mal de
outras, tomei a liberdade de repreende-las com severidade.
Eis o que elas responderam diante de minha correção, e a
desculpa que alegaram por suas línguas maledicentes: “Não
falamos ao acaso, disseram, mas por motivos da mais ardente
caridade, e com o desejo sincero de buscar a salvação para
aqueles cuja conduta condenamos”. Diante desta resposta, eu
confesso que retruquei com emoção: “Coragem, amigos; com
semelhante caridade vocês poderão acusar como mentiroso este
oráculo do Espírito Santo: ‘Porei a perder os que maldizem ao
próximo
em
segredo’[85].
Infelizes!
Se
vocês
amam
verdadeiramente a estas pessoas, ofereçam por elas a Deus
preces secretas e fervorosas; mas não manchem sia reputação
com palavras difamatórias, pois a melhor maneira de amar aos
irmãos é orar a Deus por eles; esta é a conduta que agrada ao
Senhor”.
5. Se vocês desejam de todo coração se abster de fazer
julgamentos injuriosos a respeito dos que caem em alguma
falta, eu lhes peço, prestem atenção numa coisa: não
pertencia Judas ao sagrado colégio dos apóstolos? Não estava
o ladrão entre os homicidas? E que mudança espantosa
aconteceu com estes dois homens!
6. Quem estiver resolvido a vencer em si mesmo o espírito de
maledicência, jamais atribuirá o pecado ao homem que o
cometeu, mas ao demônio que o fez cometer; pois, ainda que
caiamos voluntária e livremente no pecado, não obstante
ninguém, ao pecar, se propõe como fim o pecado em si mesmo,
na medida em que ofende a Deus.
7. De resto, não pode acontecer aquilo que eu vi com meus
próprios olhos? Uma pessoa teve a infelicidade de cometer uma
falta
publicamente,
mas
fez
secretamente
uma
severa
penitência; ora, vejam que, enquanto por uma má disposição de
espírito eu considerava culpada e criminosa esta pessoa, Deus
não via nela senão um coração puro e casto, por que, por meio
de uma conversão sincera ela havia se reconciliado com o
Senhor.
8. É por isso que, se vocês se encontrarem na companhia de
maledicentes, evitem se deixar dominar pelo respeito humano e
temer impor-lhes o silêncio, dizendo-lhes, por exemplo:
“Calem-se, eu lhes peço; pois eu tenho cometido diariamente
faltas maiores. Como, então, posso eu condenar meu irmão?”.
Assim vocês obterão dois benefícios preciosos: vocês se
preservarão do pecado, e conseguirão a cura de seu próximo. E
observem aqui que o caminho mais curto e mais seguro para
alcançar a remissão dos pecados consiste em jamais julgar nem
condenar nossos irmãos. É o que nos ensina Jesus Cristo com
as palavras: “Não julguem para não serem julgados[86]”.
9. Não é tão contrária a água ao fogo, como os julgamentos
temerários o são em relação ao verdadeiro espírito de
penitência.
10. Ainda que vejamos uma pessoa cometer uma falta no momento
mesmo da morte, devemos nos abster de julgá-la e condená-la;
pois os homens ignoram completamente os desígnios de Deus.
11. Existem pessoas que, depois de cometer publicamente
grandes faltas, conseguiram repará-las vantajosamente por
meio de obras santas e de virtudes perfeitas. Enquanto isso,
os impiedosos críticos da conduta alheia, ao condenar estas
pessoas, enganaram-se grosseiramente: eles tomaram a neblina
pelo sol.
12. Vocês que tão acidamente censuram as ações de seus
irmãos, escutem-me e creiam-me. Não deveriam vocês tremer?
Pois é verdadeira a sentença: “Vocês serão julgados do mesmo
modo como julgam os outros[87]”. Então, não devemos temer
que, seja pelo corpo, seja pela alma, estamos sujeitos a cair
nos mesmos erros que condenamos em nosso próximo? É certeza!
13. Todos os que criticam com tanta facilidade e azedume a
vida e os defeitos dos outros, normalmente são pessoas que
não se lembram de suas próprias imperfeições, que perderam de
vista a lembrança dos seus pecados, e que não tomaram nenhum
cuidado em se corrigir. De fato, as pessoas que, sem amor
próprio, examinam as faltas que mancham sua consciência, não
veem elas que nenhum espaço de tempo, ainda que vivam cem
anos, será suficiente para chorar o tanto necessário os
pecados cometidos, e que será ainda inútil que derramem
tantas lágrimas quanta água corre no Jordão?
14. Da mesma forma eu já frisei que não se encontra o menor
vestígio de maledicência naqueles que foram verdadeiramente
tocados pelo sentimento de um arrependimento vivo e sincero,
nem traço algum de julgamento temerário e de condenação de
seus irmãos.
15. É também por isso que os demônios, estes inimigos
irreconciliáveis de nossa salvação, quando não podem nos
fazer cair diretamente em pecado, fazem todos os esforços
para nos levar a julgar e condenar os que caíram, a fim de
que também nós sejamos manchados.
16. Não se esqueçam de que uma marca segura para reconhecer
os vingativos e os invejosos é a facilidade com a qual eles
criticam a doutrina malignamente, bem como a conduta e as
ações dos demais. É um espírito de ódio que os leva a falar
desta maneira. Vejam ainda até onde pode ir a cegueira a este
respeito.
17. Conheci alguns que, em segredo e sem testemunhos, haviam
cometido
faltas
execráveis;
e,
acreditam
vocês?
Eles
confiavam de tal maneira na boa opinião que sabiam que os
demais depositavam em sua santidade e inocência, que eles
insultavam e atacavam a reputação dos que havia cometido
publicamente as menores faltas.
18. Dar a si próprio a liberdade de julgar seus irmãos
equivale a se atribuir um direito e usurpar impudentemente
este direito, que só pertence a Deus. E condená-los equivale
a condenar a si próprio, é causar a própria morte.
19. De fato, se o orgulho, sem mais vícios, é capaz de nos
fazer perder, não devemos dizer o mesmo dos julgamentos
temerários? Não é a desgraça que aconteceu ao fariseu, da
qual se fala no Evangelho[88]?
20. Assim como um produtor de vinhos sábio e prudente sabe
escolher as vinhas maduras e boas, rejeitando as que não
estão maduras e as que são ácidas, também a alma que possui a
bondade e a sabedoria cuida para observar nas demais apenas
as virtudes e as boas obras que elas praticam. O insensato só
presta atenção nos vícios e nos defeitos. É dele que está
escrito: Eles procuraram crimes, e foram feridos[89].
22. Não devemos julgar nossos irmãos sob a perspectiva de
nossos próprios olhos. Com efeito, ainda que os vejamos cair
em pecado, evitemos condená-los. Não é raro nos iludirmos e
nos enganarmos sobre este ponto tão delicado. Aquele que
alcançar vitoriosamente este décimo degrau, só se conduzirá
segundo as leis de uma caridade sincera e de uma sólida
penitência.
DÉCIMO PRIMEIRO DEGRAU
Do falatório e do silêncio.
1. Vimos em poucas palavras o quão perigoso e funesto é, para
aqueles que vivem religiosamente, julgar os demais, por que
eles se expõem a ser julgados severamente e punidos
rigorosamente. Resta-nos agora buscar a causa deste defeito,
qual a porta pela qual ele penetra na alma, ou antes, por
qual porta devemos fazê-lo sair.
2. Devemos dizer sem hesitação que o desregramento em falar é
como um trono sobre a qual a vanglória se senta para se fazer
contemplar com pompa e ostentação, e promover seu espetáculo.
Este destempero de palavras é prova inequívoca de uma grande
ignorância: ela é, na verdade, a porta de entrada da
maledicência, a mestra das diversões tolas, o instrumento da
mentira, a dissipadora da compunção, a inventora e operária
da preguiça e da irresponsabilidade, a guarda avançada do
sono, a inimiga da meditação, a ruína da vigilância; é ela
que esfria e congela a devoção e o fervor do coração, que faz
languescer e que extingue a piedade e o ardor nos santos
exercícios da oração.
3. Ao contrário, o silêncio é sábio e prudente; ele fornece o
espírito de oração, liberta a alma do cativeiro, conserva o
fogo do amor divino, vigia os pensamentos do espírito,
observa atentamente os movimentos dos inimigos da salvação,
sustenta e alimenta o fervor da penitência, alegra-se com as
lágrimas, recorda incessantemente a imagem da morte e a
lembrança dos suplícios eternos, faz considerar os Juízos de
Deus com temor salutar, favorece a santa tristeza do coração,
combate o espírito de presunção, favorece a tranquilidade da
alma,
aumenta
a
ciência
da
salvação,
nos
forma
na
contemplação das verdades sobrenaturais, nos aperfeiçoa das
boas obras e nos faz subir até Deus.
4. Quem conhece e sente bem suas faltas, não tem dificuldades
em refrear sua língua; mas quem se diverte falando está bem
longe de conhecer a si mesmo.
5. Quem ama o silêncio se torna amigo particular de Deus, e,
enquanto em seu interior lhe fala com sentimentos inspirados
por esta santa familiaridade, dele recebe a luz.
6. Não foi o silêncio que protegeu Jesus diante de Pilatos, e
que inspirou neste príncipe um grande respeito pelo Deus
Salvador? O silêncio nos preserva da vanglória.
7. Pedro, por não ter guardado silêncio com prudência, teve
que chorar amargamente. Ele havia esquecido as palavras de
Davi: “Eu observarei cuidadosamente minhas palavras, para não
pecar com minha língua[1]”, e também esta sentença do
Espírito Santo: “É menos perigoso e funesto escorregar e cair
do que fazer mau uso de sua língua[2]”.
8. Mas devo parar de entretê-los com esta matéria, ainda que
a malignidade artificiosa do desregramento no falar e os
vícios que produz me convidem a falar mais. Eu me contentarei
com repetir aquilo que um dia me disse uma pessoa muito
respeitável. Falando sobre o silêncio com esta pessoas, ela
me assegurou que a loquacidade provinha de uma dessas causas:
em primeiro lugar, do mau hábito de muito falar, livre e
desembaraçadamente;
pois,
acrescentava,
a
língua,
semelhantemente aos demais membros do corpo, faz com forte
inclinação aquilo que ama, e o que aprendeu com o muito uso;
em segundo lugar, da vanglória, sobretudo nas pessoas que
estão apenas no início do exercício da prática das virtudes;
em terceiro lugar, da gulodice: pois, mais de uma vez
aconteceu que pessoas, castigando este defeito, e encorajadas
pelas violências auto infligidas,
pelas privações auto
impostas e pela fraqueza a que reduziram seus corpos, se
libertaram do desregramento no falar, e fecharam a porta à
intemperança das palavras.
9. Devemos acrescentar ainda que quem pensa seriamente na sua
última hora não terá esforço em corrigir este mau hábito. E
que aquele que chora suas faltas com sinceridade teme as
conversas frívolas mais do que o fogo.
10. Quem realmente gosta da quietude, ama o silêncio; mas os
que gostam de correr para baixo e para cima, fora de suas
celas e de suas casas, comportam-se assim por estar possuídos
de necessidade e paixão por falar.
11. Chamaremos a atenção para o fato de que as pessoas em
cujo coração a caridade derramou seus divinos perfumes, fogem
das companhias e da sociedade com mais horror do que as
abelhas fogem da fumaça; e que a fumaça não incomoda mais,
nem faz sofrer mais as moscas que buscam o mel, do que
fadigam e fazem sofrer a estes servidores de Deus o convívio
social.
12. É difícil deter o curso de um rio sem criar cataratas;
mas é ainda mais difícil deter e domar a intemperança da
língua e o curso das palavras. Quem foi capaz de galgar este
décimo-primeiro degrau terá conseguido, por isso mesmo, de um
só golpe, cortar as raízes de um número incontável de vícios.
DÉCIMO SEGUNDO DEGRAU
Da Mentira
1. O fogo nasce da pedra e do ferro. A mentira nasce da
tagarelice e do gosto pelo gracejo.
2. A mentira nos faz renunciar à caridade, como o perjúrio
nos faz renunciar a Deus.
3. Ninguém que seja sábio e prudente pensará que a mentira
não passa de uma falta leve e de um pequeno defeito. Com
efeito, em nossos livros sagrados não encontramos vícios
contra os quais o Espírito Santo tenha pronunciado sentenças
mais terríveis do que o fez contra a mentira. Assim é que se
Davi disse, falando com Deus: “Você condenará, Senhor, todas
as pessoas que p0roferem mentiras[3]”, o que acontecerá com
aqueles que sequer temem acrescentar à mentira o perjúrio?
4. Vi muitos que, pelos aplausos que buscavam com suas
mentiras, e pelo prazer que sentiam em mentir, estudavam como
fazer rir os outros por meio de invencionices e contos
fabulosos; mas esta conduta insensata faz secar a fonte das
lágrimas e sufoca os sentimentos dos penitentes.
5. Perceberão os demônios, quando os contadores de fábulas
começam seus discursos enganadores, que desejamos nos retirar
de sua companhia, como se fosse de um lugar onde reina uma
moléstia contagiosa e pestilenta? Eles se esforçam por nos
segurar e nos reter por meio de dois motivos falsos, mas que
iludem: eles nos dizem que, se sairmos desta maneira,
causaremos uma dor sensível àquele que discursa, e que
tentamos parecer mais modestos, mas pudicos e santos do que
aqueles que escutam. Mas nestas circunstâncias, não discutam:
saiam imediatamente, pois, se vocês agirem de outro modo,
verão
que,
durante
a
prece,
seu
espírito
estará
incessantemente atormentado e agitado pela imagem e a
lembrança das coisas que vocês ouviram; e não se contentem em
apenas fugir, mas tratem de romper e dissipar a conversa
profana por meio do pensamento da morte e do juízo. Talvez
vocês sintam um pequeno pensamento de vanglória; mas é melhor
sofrer esta imperfeição do que buscar vantagens de todo o
mundo.
6. A hipocrisia é a mãe, a matéria e o objeto da mentira.
Alguns ensinam que a hipocrisia não é outa coisa do que a
ação de inventar, preparar e criar a mentira; de modo que a
mentira e a hipocrisia estão sempre reunidas, e como que
entremeadas.
7. Ora, todos os que estão cheios do temor de Deus são
necessariamente inimigos da mentira; pois eles seguem
imperturbáveis as luzes e os movimentos de sua consciência,
que é um juiz incorruptível.
8. Acontece com a mentira o mesmo que com todos os vícios; e
as faltas que cometemos nos entregando a ela também não são
todas da mesma gravidade. Assim, estará sujeito a um
julgamento menos severo e a uma condenação menos rigorosa o
homem que profere uma mentira por medo de algum dano, do que
o que mente sem temor deste perigo. Existem pessoas que
mentem pelo simples prazer de mentir, e outras que buscam
vantagens e benefícios pelas mentiras que proferem; e existem
pessoas cuja única intenção, ao mentir, é de fazer rir os
outros. Mas existem os que com suas mentiras se propõem a
estender armadilhas aos seus irmãos, e a fazê-los cair em
algum prejuízo.
9. Os magistrados e os juízes buscam destruir a mentira; mas
somente a verdadeira penitência é capaz de exterminá-la.
10. Os mentirosos, para se desculpar, costumam alegar que
mentem por boas razões, que é sempre pela salvação das almas,
e para honrar a justiça e a caridade; eles ousam inclusiva
dizer que não fazem mais do que seguir o exemplo de Rahab,
que, por meio de uma mentira feliz, salvou a vida dos
enviados do povo judeu.
11. Quando nos sentirmos inteiramente livres da tola vaidade
de mentir, então, segundo as circunstâncias imperiosas de
tempo e lugar, poderemos inocentemente ocultar a verdade por
meio de algumas mentiras leves e prudentes.
12. Assim como uma criança não sabe mentir, também deve ser
assim uma alma pura e inocente.
13. Vejam de que maneira um homem que se tornou alegre e
divertido por causa do vinho diz a verdade em todas as
coisas; assim é também uma alma que está espiritualmente
embriagada pelas lágrimas da penitência. Aquele que alcançou
este décimo segundo degrau, pode contar que colocou aqui o
fundamento de todas as virtudes.
DÉCIMO TERCEIRO DEGRAU
Da Acídia
1. A acídia, conforme já dissemos, extrai sua origem da
necessidade imperiosa de falar; ela é uma de suas primeiras
crias. É por esta razão que, nesta odiosa cadeia de vícios,
nós a colocamos neste ponto.
2. Dizemos que a acídia consiste em um relaxamento do
espírito, um langor da alma, um desgosto pelos exercícios da
vida religiosa, uma certa aversão pela santa profissão que
abraçamos, uma adulação imprudente das coisas do século, uma
calúnia insolente da Bondade e da Clemência de Deus; ela
torna a alma fria e gelada no canto dos divinos cânticos,
fraca e languescente na oração, e ao mesmo tempo diligente e
infatigável nos trabalhos e nas coisas exteriores, fingida e
dissimulada na obediência.
3. Um monge sinceramente dedicado ao dever da obediência
ignora por completo o que é a acídia; pois ele se aperfeiçoa
na virtude, dedicando-se às ações exteriores apenas na medida
em que lhe são ordenadas por seu superior.
4. A vida monástica é o inimigo declarado da preguiça,
enquanto que esta frequentemente acompanha a vida eremítica e
não cessa de fazer a guerra todo o tempo contra os
solitários. Assim, quando ela vê a cela de um anacoreta, ela
sorri para si mesma, aproxima-se e fixa sua morada bem perto.
5. Normalmente é pela manhã que o médico visita seus doentes;
é a meio-dia que a acídia visita os monges. Ela lhes inspira
uma forte inclinação para os deveres da hospitalidade, e não
cessa de dizer aos monges, em privado, o quanto seria útil
que eles dessem grandes e numerosas esmolas, que visitassem
assiduamente e de bom coração os pobres enfermos; ela não
cessa de repetir, para enganá-los, estas palavras do Senhor:
“Eu estava doente, e vocês me visitaram[4]”. E ainda que ela
esteja sem vigor nem coragem, ela nos conjura a que não
abandonemos os que se encontram tristes e abatidos, e que
fortaleçamos os que estão fracos e desencorajados.
6.
Estamos
nós
em
pleno
exercício
da
oração?
Ela
nos
apresenta a imagem de mil coisas diferentes, que ela nos faz
considerar muito importantes e necessárias, que são na
realidade como um arreio.
7. Coisa que merece toda a nossa atenção: este funesto
demônio da preguiça tenta sobretudo os religiosos três horas
antes da refeição; pois tanto ele os faz sentir dolorosos
calafrios e dores de cabeça, como os atormenta com as dores
da febre e os incômodos da cólica. E, na hora nona, que na
nossa contagem é a terceira hora após o meio dia, ela nos
conforta um pouco e nos deixa, tranquilos.
8. Mas a mesa está servida? Ela recomeça a nos atormentar.
Chegou o momento da oração? Ela nos torna lentos e pesados.
Estamos orando? Ela nos vexa cruelmente com a necessidade de
dormir, e nos impede de pronunciar os versos inteiros por
causa dos bocejos vergonhosos e insuportáveis que nos envia.
9. Mas lembremos aqui que os demais vícios só atacam e
destroem as virtudes que lhes são contrárias. A acídia ataca
e destrói, sozinha, todas as virtudes.
10. Uma alma forte e generosa sabe manter, conservar e mesmo
reviver seu ardor e sua coragem; mas a acídia só faz perder
inteiramente toda riqueza.
11. Como, de todos os pecados capitais, é a acídia que nos
faz maior mal, devemos nos ocupar em combatê-la tanto ou mais
fortemente do que os demais.
12. antes de tudo, notemos que esta maldita paixão não nos
ataca com tanta violência quanto o faz no momento do canto
dos salmos, e que depois deste santo exercício ela nos deixa
bem tranquilos.
13. Nada nos dará coroas mais belas e mais ricas do que os
combates que devemos sustentar corajosamente contra a
preguiça.
14. Quando estamos em pé, ela quer que sentemos; quando
sentados, ela nos faz apoiar contra a parede; e quando
estamos em nossa cela, ela nos leva a olhar aqui e ali e a
fazer barulhos com os pés.
15. Quem chora amargamente
desta funesta paixão.
seus
pecados
não
será
escravo
16. Amarremos este tirano cruel por meio da lembrança
dolorosa de nossas faltas; castiguemo-lo com o trabalho de
nossas mãos; atormentemo-lo sem cessar com os pensamentos dos
bens eternos que esperamos; arrastemo-lo impiedosamente
diante do tribunal de nossa fé; e lá façamo-lo sofrer um
interrogatório
e
um
julgamento
esmagadores;
ordenemos
imperativamente a ele que nos diga quem foi o pai que o
engendrou, e quais os abomináveis filhos que ele próprio
gerou; obriguemo-lo a que nos responda quem são as pessoas
que o combatem até fazê-lo morrer. Contra a sua vontade, ele
nos responderá que os que o combatem até a morte são os
discípulos sinceros da obediência, e que nestes homens ele
não encontra nada que lhe possa servir sequer um momento para
ali repousar; que ele só pode coabitar tranquilamente com os
falsos monges que só fazem a própria vontade; que é por isso
que ele os ama e não os deixa jamais; que as causas que
concorrem para lhe dar existência são em grande número,
dentre as quais ele deve mencionar a insensibilidade do
coração, o esquecimento do céu e das verdades eternas,
algumas vezes um trabalho penoso ou exercícios exagerados e
fatigantes,; que seus filhos são a inconstância, a mudança de
moradia, a desobediência ao superior, o esquecimento do Juízo
e, de tempos em tempos, a negligência em cumprir os deveres
da vida religiosa; que os inimigos que a aprisionam ao banco
e a tornam cativa são a salmodia fervorosa, uma ocupação
contínua e a meditação da morte; e que seus inimigos mortais
são a prece e a esperança viva e segura dos bens futuros.
Quanto à prece, se você quiser conhecer de onde ela extrai
sua origem, deve perguntar a ela própria. Aquele que, pela
vitória obtida sobre a preguiça, conseguir superar o décimo
terceiro degrau, se aperfeiçoará em todas as virtudes.
DÉCIMO QUARTO DEGRAU
Da Gula, que, por impiedosa que seja, agrada a todos
1. Se alguma vez, desde que nos ocupamos destes diversos
assuntos, somos obrigados a falar contra nós, é sobretudo a
respeito do presente tema. De fato, eu acreditaria num
milagre se alguém me garantisse conhecer um homem que tenha
se libertado completamente durante a sua vida da tirania da
intemperança, a menos que tenha vivido numa tumba.
2. A gula é um ato hipócrita de nosso estômago, que nos diz
que, mesmo se o saciarmos, ele não ficará saciado, e que,
mesmo cheio de alimento, não deixa de nos repetir que ainda
tem grandes necessidades.
3. Este vício vexatório é o engenhoso inventor dos temperos
sofisticados, e a fonte dos prazeres da boa mesa.
4. Se por meio de uma ligadura forte é possível deter uma
hemorragia violenta num certo ponto, o sangue encontrará uma
saída por outro lugar; e você conseguir estancá-lo neste novo
local, ele escapará ainda por outra via.
5. A gula brinca com nossos olhos; embora uma parte dos
pratos servidos sobre a mesa sejam suficientes para nos
saciar, ela nos faz crer que poderemos devorar a todos.
6. A saciedade normalmente produz a incontinência, assim como
a temperança engendra a castidade.
7. Vemos muitas vezes que um domador é capaz de, com carinho,
acalmar a fúria de um leão e torná-lo dócil e tratável; mas
qualquer um que trate seu próprio corpo desta mesma maneira o
tornará cada vez mais furioso e mais indócil.
8. O judeu se alegra nos sábados e nos dias de festas, e o
monge nos sábado e nos domingos. Durante a Quaresma, ele
conta os dias que faltam para a Páscoa, e ao se aproximar a
festa,
não
deixa
de
preparar
as
comidas
que
sua
concupiscência o faz desejar. Um infeliz escravo da gula não
pensa senão nos pratos deliciosos que ele terá nas grandes
festas, e é deste modo miserável que ele as prepara e as
celebra; mas o servidor de Deus não pensa senão nas graças e
nas virtudes com as quais deseja se ornar e embelezar sua
alma para essas belas solenidades.
9. Se um amigo, ou mesmo um estrangeiro, visita um escravo do
ventre, você o verá, conduzido por sua paixão, alegrar-se com
esta circunstância, porque, sob o pretexto de cumprir com os
deveres da caridade, ele encontra ocasião favorável para se
entregar à intemperança e se satisfazer, fazendo sua
sensualidade passar por consolo e um alívio que ele deve ao
irmão. É assim que se imagina que, na presença de hóspedes,
pode-se exagerar um pouco na bebida; mas quanto é ilusório
este comportamento! Por mais que tentemos esconder esta
paixão, ela escapa e nos expõe como miseráveis escravos que
somos.
10. Às vezes a vanglória e a gula entram em guerra uma contra
a outra, e disputam vigorosamente um pobre miserável; pois a
gula faz todos os esforços pra levá-lo a violar as regras da
mortificação e do jejum, e a vaidade para fazê-lo alardear a
perfeição de sua vida por seus atos de severa abstinência.
Mas um monge conduzido por um espírito de sabedoria evitará
as armadilhas que lhe põem estas duas paixões e saberá se
aproveitar das circunstâncias para expulsar a ambas para
longe de si.
11. Quando assistimos que nossa carne, pelo calor da idade ou
pela força de nossa constituição, deseja se voltar para os
prazeres dos sentidos, tratemos de castigá-la ou submetê-la
em qualquer tempo ou lugar por meio dos rigores salutares da
mortificação; e não relaxemos estas santas austeridades antes
que estejamos certos por provas certas e indubitáveis que
conseguimos a felicidade de extinguir em nós as chamas
impuras da concupiscência. Mas não creio que consigamos isto
antes da morte.
12. Eu vi sacerdotes miseráveis, de idade bastante avançada,
que se deixaram enganar pelo demônio, a ponto de estarem à
mesa com pessoas nem mais novas e sobre as quais não possuíam
nenhuma autoridade, e convencê-los, por meio de convites
insistentes e solicitações diabólicas, a se excederem nas
bebidas e na intemperança. Ora, se por um acaso nos sucedesse
encontrarmos anciãos com tal comportamento, eis a conduta que
haveríamos de seguir: se estas pessoas desfrutassem com
justeza de uma reputação de virtude e piedade, retrucaríamos
com honestidade ao que nos faziam, com uma moderação cheia de
reconhecimento; se, ao contrário, se tratasse de pessoas
conhecidas
por
sua
conduta
e
virtude
duvidosas,
e
encontrando-nos em circunstâncias nas quais estivéssemos
obrigados a sustentar rudes batalhas contra as revoltas da
carne,
evitaríamos
escutar
tão
funestos
convides,
e
fugiríamos com horror de uma ocasião tão perigosa.
13. Evagro, agitado pelo espírito das trevas, imaginou, por
causa de sua eloquência e da perspicácia de seu espírito, que
era
o
mais
sábio
dos
sábios;
mas
ele
se
enganou
horrivelmente, pois aquilo que vou contar o fez mostrar ao
mundo que era o maior dos tolos. Eis uma de suas máximas:
“Quando a alma suspira por delícias oferecidas pela variedade
dos alimentos, é preciso puni-la severamente nos condenando
sem piedade a um regime de pão e água”. Ora, falando assim,
não equivale a exigir que com um único salto uma criança suba
todos os degraus de uma escada? Eu penso que para tornar esta
máxima sã e praticável seria preciso dizer: “Nossa alma
deseja muitas comidas para contentar seus apetites; sendo
este desejo conforme às inclinações da natureza, devemos usar
de muita prudência e engenho para combater a mais ardilosa e
artificiosa das paixões; pois agindo de outro modo nos
engajaríamos imprudentemente numa guerra perigosa, e nos
exporíamos ao perigo de uma perda iminente. Privemo-nos
inicialmente das comidas capazes de nos engordar, depois
daquelas que podem inflamar nossos humores, e enfim de todas
aquelas que nos são agradáveis”.
14. Entretanto, na medida do possível, não devemos usar senão
alimentos apropriados a nutrir nossos corpos, e que sejam de
fácil digestão, a fim de que, saciados, contentemos o
estômago que sempre pede mais, e ao mesmo tempo nos
preservemos, por meio de uma digestão rápida e fácil, dos
maus humores e dos ardores funestos que os alimentos mais
sólidos costumam produzir. De resto, com um pouco de atenção,
aprenderemos que as comidas mais alimentícias são também
aquelas que nos permitem com mais facilidade sentir os
movimentos da carne.
15. Ria-se do demônio quando, depois de feito sua refeição,
ele lhe sugerir que da próxima vez a retarde para uma hora
mais adiante; pois ele lhe sugere esta resolução apenas para
vê-lo violar sua própria regra.
16. Existe um tipo de abstinência que convém aos que
conservaram sua inocência, e outra voltada para os que a
perderam, e que tentam recuperá-la por meio dos salutares
rigores da penitência; pois as pessoas que guardaram sua
inocência, se mortificam segundo percebem que têm necessidade
disto para resistir aos movimentos da concupiscência,
enquanto que aqueles que caíram em faltas mortais devem, até
o fim de suas vidas, sem relaxar nem amolecer, fazer sofre a
carne que os fez perder o tesouro dos tesouros, a fim de
poder reencontrá-lo. Assim, os primeiros se propõem em sua
mortificação a conservar o feliz estado de justiça e
santidade, e os últimos fazem seus esforços para tornar a
Deus simpático às suas penitências e suas lágrimas.
17. Os tempos de consolação e de alegria verdadeiros para um
homem virtuoso são a época em que ele se vê alegremente
liberto de todos os cuidados e de todas as inquietudes que
vêm com as coisas do século; mas aquele que ainda se encontra
preso às suas paixões e pendores desregrados nunca pode estar
contente, porque se acha necessariamente exposto aos perigos
de uma guerra encarniçada e cruel. E quem está sujeito aos
seus vícios e que vive ao sabor das paixões, a cegueira é
tanta, que este se alegra todos os dias, como se costuma
fazer na festa das festas.
18. Os homens intemperantes quase não pensam em outra coisa
que em comidas e banquetes, e colocam inteiramente sua
afeição nestas coisas grosseira e vis; ao contrário, aqueles
que choram seus pecados não se ocupam, noite e dia, senão com
os pensamentos dos julgamentos de Deus e nas penas eternas.
19. Dedique-se então a se torar mestre se seu apetite
desregrado no beber e no comer, se não quiser que ele se
torne o seu mestre, e que mais tarde você não tenha que ser
vergonhosamente obrigado a fazer grandes esforços, e nem
sempre com sucesso, para viver segundo as regras da
sobriedade e da temperança. Devem compreender-me aqui aqueles
que tombaram ignominiosamente no abismo do pecado; quanto aos
que se tornaram santos e castos, felizmente não têm a
experiência da queda de que falamos.
20. Devemos reprimir fortemente com a lembrança das chamas
eternas todos os movimentos da intemperança, e lembrem-se com
terror que muitos, dentre os que tentaram segui-los por algum
tempo, chegaram a tamanho desencorajamento, que desesperando
de resistir aos movimentos da concupiscência, se trataram de
tal maneira a temer tanto pela vida do corpo como pela vida
da
alma.
Se
quisermos
lhes
dar
alguma
atenção,
compreenderemos que é normalmente a intemperança que conduz
os homens a todas essas infelicidade e a todos esses pecados,
e que os expõem a um triste naufrágio.
21. As orações das pessoas que praticam fielmente a
temperança são acompanhadas de pensamentos santos e piedosos;
ao contrário, durante seus santos exercícios o espírito dos
intemperantes se vê continuamente agitado por ideias más e
manchado por mil representações impuras.
22. Quando nos entregamos à intemperança, esgotamos e secamos
a fonte das graças para nós; mas se a combatermos
furiosamente com o jejum, faremos jorrar em abundância as
lágrimas salutares da penitência.
23. Sabem a quem devemos comparar uma pessoa que, ao mesmo
tempo em se torna escrava de seu ventre, se esforça por
triunfar sobre o demônio da impureza? Comparamo-lo, sem
hesitar, com o home que tenta apagar um incêndio atirando
azeite sobre as chamas.
24. Mortificando nosso pendor pela gula, tornamos o coração
humilde; mas se contentarmos a gulodice, enchemos nosso
espírito com maus pensamentos.
25. Para verificar essas verdades, considere em que estado
você se encontra pela manhã, ao meio-dia e no momento que
antecede sua refeição: não é verdade que na primeira hora
seus pensamentos são quase irracionais e anunciam uma grande
dissipação do espírito, que na sétima hora – o meio-dia –
eles estão mais tranquilos e que ao entardecer eles estão
completamente humildes?
26. Se você observar as regras da temperança, não lhe será
difícil guardar silêncio; porque a língua se derrama em tanto
mais palavras quanto mais força recebe de um estômago cheio.
Use todas as suas forças para combater e abater esta tirânica
intemperança; pois Deus, vendo seus esforços generosos, vira
pessoalmente em seu socorro com uma graça toda particular.
27. Quando umedecemos um odre por algum tempo ele se dilata e
contém mais água do que se não tivéssemos feito esta
operação; quando eles secam, eles se retraem e se tornam
menores. O mesmo acontece com nosso estômago: encha-o de
comidas e de vinho, e ele se estica e se dilata; dê-lhe
menos, ele se encolhe e se torna menor. É assim que vamos nos
tornando temperantes pela necessidade da natureza.
28. Às vezes acalmamos os ardores da sede suportando-os; mas
o mesmo não se pode dizer da fome: nada é capaz de apaziguála, senão o alimento que lhe damos.
29. Comendo o necessário, você domará a gulodice com algumas
penas e alguns sofrimentos; sem por causa de alguma
enfermidade, você não puder se entregar a mortificações,
socorra-se das santas vigílias à noite. Se sentir seus olhos
pesados pelo sono, que uma ocupação laboriosa o impeça de
dormir. Mas não se conduza assim se ficar fatigado pela
necessidade do sono: neste caso dedique-se à oração. É
impossível servir a Deus e a Mammon, e o mesmo podemos dizer
da oração e do trabalho: é quase impossível dedicar-se aos
dois de maneira a que possam nos ser úteis.
30. Uma coisa que devemos frisar aqui é que, uma vez que a
intemperança se apodera de uma pessoa, ela torna seu estômago
insaciável, a ponto de que ele imagina ser capaz de devorar
todas as carnes do Egito e beber todas as águas do Nilo.
Quando conseguimos contentar o demônio da intemperança, ele
se retira para dar lugar a um outro demônio, o da impureza, a
quem ele conta as exatas novidades de nosso estômago: “Vá,
diz ele, ataque duramente esta pessoa; pois seu corpo, que
ela tratou tão bem, lhe fornecerá todos os meios para vencêla e fazê-la cair em suas armadilhas”. Vocês o veem, a este
demônio
infame?
Ele
está
sempre
perto
do
infeliz
intemperante. Oh!, como ele o amarra de pés e mãos! Como se
ri dele durante o sono funesto em que o coloca! Como o trata
de acordo com seus desejos cheios de malícia e perversidade!
Como ele perturba e mancha sua imaginação com fantasmas
vergonhosos!
Como
produz
sobre
seu
corpo
movimentos
humilhantes e culpados!
31. Não é uma coisa espantosa que nosso intelecto incorpóreo
seja capaz de se sujar e perder sua beleza por meio do corpo?
Mas não é menos surpreendente que nosso corpo, que não passa
de um vil composto de terra e lama possa purifica-lo e tornálo, de certa forma, mais santo e belo.
32. Se você prometeu se ligar a Cristo e seguir seu caminho
rude
e
estreito
de
que
fala
o
Evangelho,
reprima
vitoriosamente a paixão da gula; se você tratar seu corpo com
delicadeza e lhe conceder tudo o que ele lhe pedir, você
estará violando a promessa que fez ao divino Salvador. Mas
ouça as palavras que ele lhe dirige: “O caminho que leva à
perdição é largo e espaçoso, e muitos seguem por ele[5]”.
Ora, esta via larga é a intemperança, e esta perdição é a
impureza. Mas o caminho que conduz à vida, disse ainda
Cristo, é estreito e difícil, e poucos são capazes de seguilo.
33. Se Lúcifer, que se fez precipitar do céu aos infernos, se
tornou o chefe dos demônios, não podemos também dizer que a
gula está à frente dos vícios que tiranizam o coração humano?
Vida
34. Então, quando vocês se sentarem à mesa para tomar a
refeição, representem para si próprios a imagem da morte e do
juízo, a fim de poder resistir a esta cruel paixão; e ainda
assim vocês farão pouco progresso e este lhes custará muitas
penas. Quando estiverem a ponto de beber, lembrem-se do
vinagre e do fel que deram de beber ao Senhor no Calvário, e
este pensamento os tornará sóbrios, ou os fará gemer, ou
ainda, lhes inspirará sentimentos mais nobres e moderados.
35. Não se enganem, vocês jamais poderão se libertar da dura
servidão ao Faraó, nem merecerão celebrar a Páscoa celeste,
se durante sua não comerem alfaces amargas e pão sem
fermento. Ora, estas alfaces selvagens são a imagem dos
esforços e das mortificações que devemos praticar; e o pão
sem fermento é a figura da humildade sincera de nossa alma,
que não conhece senão as regras da mais perfeita modéstia.
36. Não deixem passar um só instante sem que esta sentença do
Espírito Santo esteja presente em sua memória: “Para mim,
enquanto os demônios meus inimigos me oprimiam com suas
tentações, eu me revesti de cilício, humilhei minha alma por
meio do jejum e dirigi a Deus minha prece no secreto de meu
coração[6]”.
37. O jejum é uma violência que fazemos contra a natureza. É
ele que nos faz renunciar às delícias da sensualidade, que
extingue as chamas da concupiscência, que nos liberta dos
maus pensamentos, nos preserva dos sonhos inoportunos e torna
nossas preces santas, fervorosas e agradáveis aos olhos do
Senhor; é ele que ilumina nossa alma, cura nosso espírito,
dissipa as trevas de nossa inteligência, vela por nosso
coração, lhe abre as portas da compunção, lhe faz soltar
gemidos salutares, o consola e encoraja nas obras e nas dores
da penitência, impede nossa língua de cair na incontinência
de falar, nos inspira o amor ao retiro e à solidão, conserva
em nós o espírito de obediência, adoça os rigores de nossa
vigília, obtém e mantém a saúde de nosso corpo, nos dá a paz
e a tranquilidade da alma, apaga nossos pecados, nos abre a
porta do céu e nos conduz à posse dos prazeres, das alegrias
e das delícias eternas.
38. Interroguemos a intemperança: não é ela nossa inimiga
declarada? Não à vemos à frente de todos os nossos inimigos?
Não é ela o mais furioso e mais perigoso dentre todos os
nossos inimigos espirituais? Não é ela a autora de todos os
males que nos acontecem? Não foi ela que fez Adão cair do
Paraíso terrestre, e que fez Esaú perder seu direito de
progenitura? Não foi ela que atraiu os maiores males sobre os
Israelitas, que cobriu Noé de confusão, fez desaparecer
Gomorra, manchou a Ló e matou os infelizes filhos de Eli?
Enfim, não é a intemperança a causa e o princípio de toda
espécie de corrupção e de pecado? Mas perguntemos a ela mesma
de quem ela extrai sua existência, a quem ela a entrega, quem
é seu inimigo que a pisoteia e destrói? Diga-nos, infame e
cruel dominadora do gênero humano, você que, para nos tornar
seus escravos, nos adquiriu a peso de ouro, pelo desejo
insaciável de comer, diga-nos por que caminhos conseguiu
chegar até nós; diga-nos o que nos deu e fez, desde que fixou
sua cruel morada em nós; ensine-nos quais são os meios
eficazes que devemos empregar para expulsá-la e nos livrarmos
da
servidão.
Irritada
com
estas
questões
fatigantes,
inflamada de furor e tremendo de raiva, ela nos fará ouvir,
muito contra sua vontade, as seguintes respostas: “Por que me
enchem de injúrias e reprovações? Esquecem-se de que são meus
escravos? Como podem sequer pensar que podem se separa de
mim? Ignoram que foi a própria natureza que os acorrentou e
os mantêm meus escravos? Querem saber como me tornei sua
senhora? Eu lhes direi: foi pela quantidade de comida mais ou
menos deliciosa que vocês costumam tomar como alimento, que
eu produzi em vocês esta insaciável avidez; e este costume,
acompanhado do endurecimento do coração e do esquecimento da
morte, me conserva e me mantém residindo no meio de vocês.
Querem saber o nome e o número de filhos que tive? Se eu
disser o nome de todos, os grãos de areia que existem sobre a
terra não seriam suficientes para contá-los. Escutem apenas
quais foram os que eu primeiro coloquei no mundo e pelos
quais eu conservo uma afeição especial: o aguilhão da carne é
meu primogênito e meu primeiro-ministro; o segundo, é o
endurecimento do coração; o terceiro, o amor ao repouso.
Depois destes vêm o dilúvio de pensamentos impuros, o
princípio de todas as corrupções e de todas as sujeiras
espirituais, e um abismo de infâmias secretas e execráveis.
Minhas filhas são a preguiça, a incontinência no falar, a
presunção
audaciosa,
a
galanteria,
os
gracejos,
a
contradição, a opinião obstinada, o estupor do coração, a
escravidão do espírito, a ostentação insolente e a inclinação
por agradar ao mundo. São estas que perturbam o fervor e
mancham a santidade da prece, que ocasionam o turbilhão de
pensamentos, que ferem com acidentes súbitos e infelicidades
inesperadas; enfim, são elas que produzem o desespero, o mais
temível e o maior de todos os males. A lembrança dos pecados
me combate verdadeiramente, mas não me derrota; a meditação
da morte me dá golpes terríveis, mas ainda não é capaz de me
vencer, e eu declaro que nada neste mundo é capaz de derrubar
inteiramente meu império; que as únicas vitórias que podem
ter sobre mim os que, sob a condução do Espírito Santo (a
quem se dirigem com humildes súplicas), me combatem de modo
constante e vigoroso, consistem em me impedir de lhes causar
os males cruéis, funestos e incalculáveis que eu causo a
outros; pois aqueles que não experimentaram os dons e as
doçuras do Espírito Santo, este poderoso auxiliar e este
inefável Consolador, se deixam prender nos meus anzóis, e
acabam miseravelmente por não mais suspirar senão pelas
delícias brutais da boa mesa”. É preciso coragem para
triunfar
sobre
a
intemperança!
Mas
aquele
que,
com
felicidade, conseguir o objetivo de vencê-la, abrirá para si
um caminho de tranquilidade da alma e de suprema castidade.
DÉCIMO QUINTO DEGRAU
Da Castidade incorruptível, que os homens corruptíveis por
natureza adquirem com seus trabalhos e suores.
1. Acabamos de ouvir a gula, esta fúria, nos dizer que a
guerra contra [a castidade do] corpo é um de seus filhos.
Isto não surpreende: nosso primeiro pai Adão no-lo ensinou.
Pois se ele não tivesse se deixado dominar pelo ventre, ele
jamais teria sabido o que é uma companheira. É por isso que
os que observam o primeiro mandamento jamais caem na segunda
transgressão: eles permanecem como filhos de Adão, ao mesmo
tempo em que desconhecem o estado de Adão (depois da queda),
e são um pouco inferiores aos anjos, a fim de impedir o mal
de se tornar imortal, como disse aquele que foi chamado o
Teólogo.
2. A castidade, ao nos liberar das misérias da natureza dos
corpos, nos faz participar da natureza dos puros espíritos. É
esta virtude angélica que prepara em nossos corações uma
morada agradável a Jesus Cristo, e que serve de escudo para
nossa alma; ela faz de nossa natureza corruptível uma
natureza incorruptível, e estabelece uma admirável emulação
entre os fracos mortais e os espíritos imortais. Quem pratica
esta bela virtude repousa e extingue em si o amor pelas
criaturas em troca do amor a Deus, e as chamas e os ardores
de seu corpo pelos ardores e as chamas do Espírito Santo.
3. A temperança é uma virtude que se mistura e se identifica
com todas as demais virtudes, e delas toma seu nome. O homem
que pratica a temperança, mesmo durante o sono, não
experimenta nem sensações nem movimentos capazes de perturbar
sua paz e a calma de seu estado.
[4[7]]. O homem casto é aquele sobre quem a agradável
variedade dos corpos, sua beleza, sua meiguice e sexo não
causam nenhuma impressão inoportuna ou vergonhosa. O caráter
distintivo, a prova específica e as leis especiais de uma
santa e angélica castidade consistem em não ser mais tocado
nem movido pela presença de corpos vivos, não mais do que
pelos corpos mortos, seja pela visão de homens como pela de
animais.
[5].
Mas
prestemos
seriamente
atenção
a
esta
verdade:
a
castidade é um dom de Deus. Aquele que trabalhou muito e
penosamente para obter o tesouro precioso da castidade, deve
se abster de pensar ou crer que a felicidade de possuí-la se
deve aos seus próprios suores e trabalhos; pois à nossa
natureza não é dado vencer a si mesma com suas próprias
forças. Assim, se obtivermos a vitória sobre a natureza,
reconheçamos que foi pelo próprio Autor da natureza que a
obtivemos – com efeito, não devemos reconhecer que, para
vencer, corrigir e curar, é preciso ser superior ao que é
vencido, corrigido e curado?
6.
O
começo
da
castidade
consiste
em
recusar
todo
consentimento aos pensamentos impuros e aos movimentos
desregrados da concupiscência; o progresso nesta virtude, que
são como a perfeição média, consiste em experimentar, seja no
sono, seja em outras ocasiões, mas sem maus efeitos ou maus
pensamentos, certos movimentos de nossa carne, composta de
terra e lama; enfim, a perfeição desta virtude celeste
consiste na extinção de todo mau pensamento, de toda imagem
desonesta e de tudo se (...)[8]
7. Feliz, solidamente feliz, é quem não é tocado nem ferido
pela beleza, o colorido e as graças elegantes das pessoas que
encontra.
8. Não são bem os que preservaram seus corpos da sujeira,
aqueles de quem podemos dizer que praticaram uma castidade
perfeita; mas são os que submeteram com perfeição ao espírito
os diferentes membros de seus corpos.
9. Sem dúvida, devemos ver como um homem casto aquele que, na
presença dos corpos dos outros, domina os movimentos do seu
próprio; mas diremos que é de uma castidade mais perfeita
aquele que é invulnerável à visão dos corpos dos demais, e
que, pela meditação das belezas do céu, extinguiu em si todos
os ardores que as belezas da terra excitam naturalmente.
10. Quem combate o espírito da luxúria com as armas da oração
se assemelha a alguém que combate um leão. Aquele que, pela
continuidade e o vigor dos combates que sustenta contra este
terrível demônio, o derruba e abate, é semelhante a um homem
que é no mínimo igual ao seu inimigo; mas quem reprimiu e
deteve inteiramente todos os esforços impetuosos da luxúria,
mesmo que esteja ainda vivendo num corpo mortal, desfrutará
dos benefícios e das prerrogativas que esperamos apenas para
depois da ressurreição gloriosa.
11. Mas, se não ser mais fatigado durante o sono por sonhos
humilhantes nem por movimentos da concupiscência, é uma marca
indubitável de castidade, não será uma prova certa de
luxúria, se durante o dia os pensamentos nos fazem cair
voluntariamente nas sujeiras corporais?
12. Combater o inimigo impuro por meio de trabalhos e suores
equivale a tentar amarrar um inimigo com cordas de junco e de
vime; combatê-los com vigílias e jejuns é como colocar um
colar de ferro ao pescoço de um cão a quem submetemos; mas se
acrescentarmos a estas armas, para o combate, a doçura, a
humildade e o desejo vivo e ardente de obter a vitória,
seremos capazes de abater e destruir o inimigo, e enterrá-lo
na areia; digo na areia, porque a humildade na qual devemos
enterrar todas as paixões, principalmente a luxúria, não lhes
fornece substância nem alimento: ela é para as paixões como
uma areia seca e estéril.
13. Muitas pessoas se batem contra a luxúria, mas de
diferentes maneiras: algumas guerreiam por si mesmas e com
suas próprias forças; outras, com as armas da humildade;
outras enfim, auxiliadas pela força do Espírito Santo, cujo
auxílio elas pedem humildemente, a combatem de tal modo que a
vencem e escravizam. Ora, me parece que podemos comparar as
primeiras à estrela da manhã; as segundas à Lua cheia; as
terceiras, ao Sol, que ilumina o mundo com seus raios. Estes
três tipos de pessoas têm um diálogo com o céu: pois a aurora
anuncia a chegada do dia, e logo o nascer do sol nos traz o
esplendor de sua luz; e é assim que se dão as coisas com as
pessoas de que falamos.
14. Semelhante a uma raposa que quer caçar galinhas, o
demônio finge dormir a fim de roubar nossa castidade e nos
por a perder.
15. Vigiem para nunca confiar em seus corpos de barro;
desconfiem sempre de sua fraqueza, até que finalmente Cristo
os chame para que se apresentem diante dele.
16. Não imaginem que o rigor e a austeridade dos seus jejuns
lhes tenham dado tamanha perfeição de virtude, que vocês não
estejam mais expostos a quedas deploráveis. Não percam jamais
de vista que uma criatura que jamais comeu, tomba de um só
golpe, do céu ao abismo do inferno.
17. Os escritores ascéticos definem a renúncia ao século: uma
aversão que se tem pelo próprio corpo, e uma guerra contínua
travada contra o ventre.
18. O que mais comumente causa a queda dos monges jovens em
faltas contrárias à castidade, é uma certa afeição pelas
doçuras e comodidades da vida. O inchaço do coração costuma
balançar e às vezes derrubar os que estão mais avançados nos
caminhos da vida religiosa. Quanto aos que estão mais
próximos da perfeição, a pedra de tropeço consiste nos
julgamentos temerários que eles fazem, e nas condenações
injustas que levantam contra seus irmãos.
19. Existem pessoas que acham uma felicidade terem nascido
eunucos porque, segundo sua opinião, estão isentos do
aguilhão da concupiscência; mas não vamos nos iludir: só são
verdadeiramente felizes aqueles que, por meio de pensamentos
puros e desejos castos, combatem, reprimem e vencem a
concupiscência.
20. Eu vi pessoas que, contra sua vontade, caíram em
movimentos desregrados; vi outras que, sem sucesso, tentavam
excitar-se para tanto. Estas infames seriam infinitamente
mais culpadas do que as que, cruelmente puxadas e agitadas
pelas paixões, tiveram a infelicidade de cair frequentemente;
porque elas não apenas teriam pecado, se pudessem, como ainda
fizeram
todos
os
esforços
para
conseguir
se
sujar
vergonhosamente.
21. Bem míseros são os que caem; mas
estigmatizar os que tentam derrubar os
si, estes homens detestáveis, tanto o
terrível de suas próprias quedas, como
às quais arrastaram seus irmãos?
faltam palavras para
outros. Não trarão em
peso enorme e a pena
as penas pelas faltas
22. Evitem quere expulsar o demônio da impureza discutindo e
raciocinando com ele; pois, para fazê-los cair, ele sempre
terá motivos plausíveis a apresentar, e se servirá de vocês
mesmos para vencê-los na guerra.
23. Não se esqueçam jamais de que todos os que acreditaram
poder combater a paixão impura por si mesmos e triunfar, se
enganaram grosseiramente e nada conseguiram; pois, a menos
que o Senhor em pessoa se digne derrubar esta morada de carne
e de corrupção, e construir em nós esta morada de espírito e
castidade, será vão pretendermos, com jejuns e vigílias,
destruir a primeira e construir a segunda.
24. O que se deve fazer é manifestar humildemente a Deus a
fraqueza de nossa natureza, reconhecer diante dele a
impotência de nossas forças, e assim pouco a pouco
re3ceberemos de sua bondade, e sentiremos em nós a presença
do dom inestimável da castidade.
25. Dentre as infelizes vítimas dos prazeres carnais,
encontrei um homem que conseguiu se encontrar e voltar ao
domínio de si, e que, por meio de obras de conversão e de uma
penitência sincera, trabalhava por sua salvação. Eis o que
ele me contou: “As pessoas que se deixam levar pela
incontinência, são agitadas e atormentadas por um ardor
violento por objetos tão corporais, são possuídas por um
demônio furioso e cruel que se entroniza como um tirano em
seu próprio coração, e aí faz sentir seu império infame por
meio de sinais inequívocos: de sorte que, quando são tentadas
e tentam conter sua paixão brutal, sentem dentro de si as
dores de um fogo semelhante ao de uma fornalha abrasadora;
elas ficam tão horrivelmente fora de si, que perdem todo o
temor a Deus e aos suplícios eternos, que elas encaram como
sendo coisas de fábulas; elas têm horror à prece; a visão de
um cadáver não lhes causa mais emoção do que a imagem de uma
pedra; e elas estão tão absorvidas e devoradas pelo desejo de
satisfazer suas ações infames, que perdem inteiramente a
razão e se parecem antes com animais furiosos do que com
criaturas racionais. Se estes dias não fossem abreviados,
poderia haver sequer uma única alma, dentro desta prisão de
sangue e barro, que fosse capaz de obter a salvação? Pois,
ainda em que nos demos conta de que os horrores aos quais nos
atiramos convêm apenas a uma natureza corrompida, continuamos
a buscá-los com uma avidez insaciável. Se o sangue se delicia
no sangue, o verme entre os vermes, e o limão combina com
limão, não deve a carne amar as obras da carne?”. Nós todos
que queremos sinceramente agir contra a natureza com
violência a fim de obtermos o reino dos céus, não esqueçamos
que nossa carne não busca senão nos enganar e nos trair, que
devemos combatê-la, enfraquecê-la e submetê-la por todos os
meios e através de piedosos artifícios. Consideremos felizes
os que não experimentaram os malefícios temíveis que ferem as
pessoas dominadas pelo demônio da impureza; pois elas estão
bem longe daquela escada misteriosa pela qual o patriarca
Jacó viu subir e descer os anjos, estas pessoas que caíram
miseravelmente no abismo da impureza, e, para que possam se
aproximar e subir por ela, precisarão de muitos suores e
lágrimas, suportar penas e trabalhos e se dedicar a jejuns e
austeridades bem rigorosas.
26. Devemos frisar aqui que os inimigos de nossa salvação se
comportam na guerra que travam contra nós como soldados
organizados para uma batalha: eles têm ordem de nos atacar e
nos combater todas as vezes que nos encontrarem.
27. Uma coisa que não deve nos surpreender nem nos fazer
tremer, é que dentre os que sucumbem às tentações, existem
alguns que sofrem quedas muito mais funestas do que os
outros. Esta é outra observação que posso fazer; assim, eu
digo que quem tiver intelecto para compreender, compreenda o
que quero dizer aqui.
28. Normalmente o demônio tem o costume de empregar todos os
seus esforços, toda sua ocupação, todos os seus cuidados,
toda sua diligência, seus projetos e desígnios de maneira a
fazer com que os anacoretas caiam nos crimes que estão fora e
são contrários àquilo que a natureza parece pedir. É para que
ele consiga realizar seus desejos estes são deixados viver no
meio das mulheres, mas sem que ele, o demônio, lhes inspire
nem maus pensamentos nem maus desejos; e os infelizes se
deixam prender por meio deste artifício, e se creem felizes e
tranquilos neste estado de coisas, sem compreender que, onde
o perigo é suficientemente grande e funesto por si mesmo, não
há necessidade de outro meio ou de outra tentação para perder
um homem.
29. Creio que os demônios, estes impiedosos homicidas de
nossas almas, têm duas razões principais para nos conduzir
com tanto ardor e zelo a pecados que repugnam às leis da
natureza: primeiramente, porque temos sempre em nosso poder e
à nossa disposição da matéria do pecado; em segundo lugar,
porque assim eles nos fazem merecer penalidades mais severas.
Isto
foi
amargamente
experimentado
por
um
homem
extraordinário. Ele houvera um dia comandado com absoluto
controle seus animais selvagens; mas houve um momento em que
ele foi assaltado de modo tão horrível e atacado de modo tão
violento, que não apenas o privaram do alimento celestial
cujas doçuras ele saboreava, como o despojaram de tudo e o
atiraram a uma terrível miséria. É por isso que o bemaventurado Antônio, nosso mestre na vida religiosa, chorando
a infelicidade deste homem – que entretanto conseguiu reparála por meio dos rigores da penitência – dizia lançando longos
suspiros: “Tombou esta grande e sólida coluna de virtudes”.
Este santo Padre considerou em sua sabedoria que ele não
devia nos ensinar que espécie de pecado o infeliz cometera
contra a castidade; mas acreditamos que tenha sido um crime
que ele cometeu sobre seu próprio corpo. Assim, existe em nós
uma espécie de morte e um princípio de ruína bem funesto; e
esta infeliz morte reside em nós mesmos e nos acompanha por
toda parte; mas é sobretudo nos anos da juventude que ela
sobressai, e eu não ouso nem dizer nem escrever seu nome,
pois São Paulo mo proíbe com suas palavras: “Existem coisas
que são feitas em segredo, e que seria vergonhoso e indecente
nomear[9]”.
30. Esta carne, que é ao mesmo tempo nossa amiga e nossa
inimiga, o mesmo Apóstolo não hesita em chamar de morte:
“Infeliz sou eu!, escreve ele, quem me libertará deste corpo
de morte?[10]”; e um outro teólogo chama de “uma serva
viciosa e que só se diverte nas trevas da noite”. Eu lhes
confesso que eu gostaria muito de saber as razões pelas quais
estes dois grandes santos falaram assim de nosso corpo.
31. Se nossa carne é uma morte, então podemos dizer que não
morrerá aquele que souber vencê-la. Mas onde encontraremos um
homem que, preservando a si mesmo das sujeiras da carne,
mereça viver e jamais ver os horrores da morte?
32. Seria aqui a ocasião de conhecer quem seria a pessoa mais
recomendável, se aquela que, estando morta pelo pecado, tenha
ressuscitado pela graça, ou aquela que, não tendo morrido,
conservou sua inocência. Alguém já disse que seria a segunda
das duas; mas não concordo com esta opinião, a creio mesmo
que seja um engano: pois Jesus Cristo morreu e ressuscitou.
Por outro lado, quem der preferência à primeira pessoa, sem
dúvida será por crer que quem teve a infelicidade de morrer
por cair em pecado, não deve jamais desesperar de sua
salvação.
33. O demônio da impureza, este inimigo cruel e pérfido dos
homens, a fim de nos fazer cair mais facilmente em alguma
falta por incontinência, da qual ele mesmo é o autor, nos
sugere que Deus é cheio de comiseração por aqueles que têm a
infelicidade de se atirar à luxúria, e que ele perdoa com
tanto maior bondade e clemência na medida mesma em que esta
paixão é natural do homem. Mas não deixemos de reconhecer
suas mentiras e sua perfídia: pois mal acabamos de cometer um
pecado vergonhoso, e ele se apressa a nos mostrar a Deus como
um juiz severo, inexorável e que não perdoa nada. Mas vejam
que antes de consentirmos em seu pecado, e para consegui-lo,
ele nos apresentou a Deus como sendo infinitamente bom,
clemente e misericordioso, e que, depois de termos cumprido
seu desígnio maléfico, e nos termos precipitado no abismo,
ele não cessa de falar da severidade e do rigor dos
julgamentos do Senhor, a fim de nos atirar na raiva e nos
horrores do desespero, consumando assim nossa perda eterna.
Mas ele vai ainda mais longe: enquanto durar este sentimento
de tristeza desesperadora que ele nos provocou , ele não tem
necessidade de nos expor a novas tentações, pois nos tem como
escravos, e assim ele nos deixa tranquilos; mas perceba que,
mal se acalmam e se apaziguam estes remorsos dolorosos e
cortantes que ele nos inspirou, e este inimigo implacável
recomeça seus ataques como antes e nos expõe aos mesmos
perigos e às mesmas faltas.
34. Observamos que o Senhor se agrada e encontra de melhor
grado suas delícias num coração e num corpo puros e castos,
como é ele próprio a pureza em essência, e que ele está
infinitamente distante de toda sujeira produzida pelos
corpos; e que os demônios, estes monstros horrorosos do
inferno não se contentam, como muitos nos ensinam, senão com
os maus odores que as paixões exalam, e com as excreções de
um corpo esgotado e corrompido pelo vício vergonhoso.
35. A castidade nos une intimamente a Deus por uma santa
familiaridade, e, na medida em nossa fraca natureza é capaz,
ela nos torna semelhantes a ele.
36. Assim como o orvalho dá aos frutos da terra a doçura que
têm, também a vida religiosa e a exata obediência produzem os
doces e agradáveis perfumes da castidade; que, se a solidão é
capaz de acalmar e extinguir os ardores da concupiscência, a
frequentação dos mundanos e o espírito de dissipação depressa
os trazem de volta à existência e à vida; e devemos, em honra
da obediência, dizer-lhe que reprima sempre, em qualquer
lugar que estejamos, os movimentos desordenados de nossos
corpos, e impedi-los de reaparecer.
37. Algumas vezes observei que, por um feliz contragolpe, o
orgulho produz a virtude da humildade. Quando vi esta coisa
espantosa, lembrei-me das palavras: “Quem poderá penetrar nos
desígnios e nos pensamentos do Senhor?[11]”. Pois podemos ver
que a gula e o inchaço do coração, o fastio e o orgulho,
engendram faltas vergonhosas, e que estas faltas, às quais
nos atiramos voluntariamente, acabam se tornando ocasiões de
humildade.
38. Não se parece a um insensato que joga óleo das chamas
para apagar um incêndio, aquele que imagina que poderá
triunfar sobre o demônio da impureza vivendo nas delícias e
nos excessos da intemperança?
39. A quem podemos comparar aquele que pretende tolamente
terminar com sucesso a guerra que sustenta contra a luxúria,
apenas com as armas da temperança e da sobriedade? Diremos
sem hesitar que este se parece a alguém que, tendo caído no
mar, tenta salvar-se nadando com uma mão só. Assim, se
quisermos triunfar, devemos reunir a abstinência e a
humildade; pois nada poderemos fazer com a primeira destas
duas virtudes, se a segunda não estiver com ela.
40. Quando estamos inclinados a um vício qualquer, é contra
este vazio que devemos dirigir nossos esforços de modo
especial; é este vício que devemos atacar e vencer antes dos
demais; mas é sobretudo quando vemos que ele reina sobre nós
e que o trazemos conosco, que devemos combatê-lo com força e
constância; pois agir de outro modo equivale a não declarar a
guerra aos nossos defeitos, mas nutri-los e conservá-los.
Lembremo-nos de que não é exterminando o egípcio cruel que
mereceremos ver a Deus com Moisés numa nova sarça ardente,
vale dizer, na humildade.
41. Numa tentação eu próprio experimentei as astúcias do
demônio: este lobo cruel e enganador me procurou, com um
desígnio pérfido, uma alegria e felicidade irrazoáveis,
consolações sem fundamento e lágrimas cheias de falsas
delícias; e eu, simples, crédulo e sem experiência, acreditei
que todas essas coisas tão sedutoras e agradáveis eram dons
do céu, enquanto que tudo não passava de uma armadilha
colocada pelo demônio para me derrubar.
42. Uma vez que todos os demais pecados que o homem comete se
localizam fora do corpo, e que só o pecado da luxúria é
contra o corpo, coisa que acontece porque os movimentos da
concupiscência mancham e corrompem nossa carne, eu gostaria
de saber por que razão, nas diferentes faltas cometidas pelos
homens, dizemos normalmente que eles foram enganados, e
quando sabemos que uma pessoa caiu num pecado vergonhoso,
choramos com dor e tristeza. Ora, ela caiu.
43. Os peixes temem menos o anzol do que uma alma voluptuosa
a quietude.
44. Quando um demônio deseja unir duas pessoas pelos laços de
um amor profano e criminoso, ele começa por observar
atentamente quais são suas diferentes inclinações para saber
por qual delas começar o incêndio.
45. Não somos nós testemunhas diariamente e não temos
testemunhado que todos aqueles que são tristes escravos do
vício vergonhoso são também cheio de afeição pelos outros,
sensíveis às suas infelicidades, tocados de compaixão por
eles, juntando com facilidade suas lágrimas às deles, e
usando de palavras doces e cativantes com eles. Mas os que
desejam se tornar castos não se comportam com uma ternura tão
estudada.
46. Um homem cheio de prudência e sabedoria, além de uma
profunda erudição, me propôs um dia esta grave questão,
importante e difícil: “Qual é, disse-me ele, o pecado que, em
sua opinião, é o maior, depois do homicídio e da apostasia?”.
Eu lhe respondi que pensava ser a heresia. “Mas, replicou
ele, se a heresia é o maior pecado depois do homicídio e da
apostasia, como é possível que a Igreja católica admita à
participação do santos os heréticos, assim que eles abjuram e
anatematizam sinceramente seus erros, e que, conforme a
tradição apostólica, ela afasta da mesa eucarística, por anos
inteiros, os que têm a infelicidade de cair na fornicação,
ainda que confessem seus pecados, que se corrijam e que façam
uma
sincera
penitência?”.
Esta
réplica
inesperada
me
surpreendeu de tal maneira, que eu não pude responder; e a
questão permaneceu indecisa.
47. Prestemos atenção aqui de modo especial para examinar,
conhecer e pesar a diferença que existe entre os pensamentos
e afeições que o demônio da luxúria nos inspira durante a
recitação dos salmos, e aqueles que o Espírito Santo nos
sugere por meio das palavras divinas que pronunciamos;
veremos o quanto as do Espírito Santo nos dão uma força
abundante e uma enorme coragem para combatermos nosso
incansável inimigo.
48. Pobres jovens! É sobre vocês mesmos que seus olhos devem
estar continuamente fixados! Eu já observei um grande número
de pessoas jovens que, ao mesmo tempo em que dirigiam a Deus
preces fervorosas e sinceras por outras pessoas a quem amavam
e que lhes eram caras, se deixavam surpreender e dominar pelo
espírito imundo; e no entanto elas acreditavam que em suas
súplicas
estavam
apenas
cumprindo
com
um
dever
de
reconhecimento e de caridade.
49. As diferentes formas de contatos físicos são muito
apropriadas a sujar nossos corpos; fujamos delas com horror e
não esqueçamos jamais o quanto elas podem nos ser perigosas e
funestas. Lembremo-nos sem cessar do exemplo de um homem
jovem que possuía uma profunda sabedoria e uma grande
castidade. Sua mãe estava doente, e era preciso que ele a
carregasse em seus braços, para o que ele tomava precauções e
vigiava a ponto de cobrir suas mãos, a fim de não tocá-la.
Jamais deixem, eu lhes peço, de evitar toda espécie de
contatos físicos, sejam eles desonestos e criminosos, sejam
os honestos e indiferentes, tanto sobre si mesmos como em
relação aos outros.
50. Ninguém, penso eu, pode com razão e verdade chamar de
santo a alguém que não
tenha purificado de toda mancha o
barro do qual é composto seu corpo, e que não o tenha
santificado, e como que transformado, se é verdade que tal
transformação é possível neste mundo.
51. É principalmente quando nos colocamos no leito para o
repouso, que devemos nos conduzir com prudência e vigiar a
nós mesmos; pois durante o sono, nossa alma, por assim dizer,
fica sem o corpo: ela combate só contra o demônio. Ora, se
nosso espírito, por causa de maus pensamentos surgidos
enquanto dormimos, é levado a prazeres desonestos, (...[12]).
52. Não durmam nem se levantem sem a lembrança da morte, e
sem que a oração os mantenha sempre unidos a Jesus. Estas
duas práticas, fáceis e importantes, serão de um grande
auxílio durante o sono para preservá-los de qualquer acidente
vergonhoso.
53. Alguns pensam que estes combates inoportunos que somos
obrigados a sustentar contra o demônio impuro, bem como estes
acidentes humilhantes que nos acontecem durante o sono, são
produzidos no mais das vezes e causados pela grande
quantidade de alimentos que tomamos; mas posso assegurar com
verdade que já encontrei muitos que estavam doentes e
perigosamente enfermos, ou que haviam extenuado seus corpos
por meio de jejuns rigorosos, e que no entanto experimentavam
esses movimentos desregrados da carne. Ora, eis o que me
disse um dia sobre este tipo de misérias humanas um monge dos
mais sábios, mais refletidos e respeitados de sua comunidade:
“Esses acidentes noturnos, disse-me ele com uma claridade e
precisão que me encheram de espanto, acontecem algumas vezes
devido à abundância do alimento e das doçuras do repouso;
outras vezes, por causa do orgulho, justamente quando nos
regozijamos e nos aplaudimos por tê-los impedido durante um
longo tempo com nossos cuidados e precauções; finalmente,
eles acontecem em casos em que nos damos a liberdade de
julgar e condenar nossos irmãos. Ora, acrescentou ele, estas
duas últimas causas – e talvez as três – são comuns tanto nas
pessoas que estão doentes como nas sãs”. Assim, se alguém tem
a felicidade de não sofrer de nenhuma destas três coisas,
deve sentir uma grande consolação, porque percebe em seu
corpo uma pureza que nada pode perturbar. A única coisa que
pode lhe inspirar alguma inquietação é a suspeita temorosa de
que este estado possa provir de alguma perfídia do demônio;
mas então ele deve se reafirmar e se consolar, pensando que
Deus permite esta pena e esta inquietação que nada tem de
criminoso, a fim de que ele possa adquirir uma humildade mais
profunda.
54. Devemos evitar cuidadosamente durante o dia, repassar na
memória os sonhos e os fantasmas que perturbaram a imaginação
durante a noite; pois é para nos levar a qualquer ação
desonesta
noturnos.
que
os
demônios
excitam
em
nós
esses
acidentes
55. Mas observemos aqui com especial atenção um artifício
detestável do demônio para nos perder. Eis o modo como ele
age para nos fazer cair. Assim como alguns alimentos
insalubres não causam doenças senão um ano depois de serem
ingeridos, enquanto outros as produzem quase imediatamente,
também existem coisas que tendem a corromper nosso coração
pelo desfrutem que nos dão, mas que só obtêm este efeito
depois de um tempo considerável. É por esta razão que eu
encontrei pessoas que se sentavam familiarmente à mesa com
mulheres e conversavam com elas, sem que naquele momento
experimentassem qualquer pensamento mau; mas o que lhes
acontecia com o tempo? Estes infelizes confiavam em si
mesmos, e esta confiança os punha a perder; pois justo na
hora em que se acreditavam numa paz e segurança perfeitas em
suas celas, encontraram uma morte deplorável. Quem passou
pela triste experiência a que me refiro compreende muito bem
o tipo de morte de que falo, se ela se refere ao corpo ou à
alma. E que aquele que nunca experimentou nada semelhante,
viva por muitos anos numa feliz ignorância!
56. Os meios mais eficazes que podemos empregar contra os
perigos e os obstáculos aos quais nos expõem as tentações
impuras, consistem em nos vestir de cilício, nos cobrir de
cinzas, passar as noites em vigílias e trabalhos, sofrer a
fome e a sede, fixar nossa morada no meio de túmulos e
cadáveres, não comer mais do que pão, não beber senão água,
e, acima de tudo, viver numa humildade perfeita, e enfim, se
for possível, escolher um pai espiritual que nos dirija e nos
conserte, não tanto pelo peso e a autoridade de seus anos,
mas pela virtude de sua sabedoria e pela justeza de seu
julgamento; pois eu considero uma coisa maravilhosa se,
unicamente entregue a si próprio, você conseguir se preservar
do naufrágio em meio a uma tempestade tão furiosa.
57. Acontece com frequência que o mesmo pecado mereça um
julgamento mil vezes mais severo e uma punição muito mais
rigorosa numa pessoa do que em outra. Com efeito, as
circunstâncias podem aumentar ou diminuir sua enormidade;
tais são, por exemplo, o costume em cometer, ou lugar onde
nos tornamos culpados, o estado ou condição daquele que peca,
além de numerosas outras circunstâncias que podem tornar o
crime mais ou menos considerável.
58. Contaram-me uma vez um fato de rara pureza, e eu duvido
que se possa praticar esta virtude com maior perfeição. Uma
pessoa
percebeu
por
acaso
um
corpo
de
uma
beleza
extraordinária. Ora, esta visão levou-a imediatamente a
glorificar com louvores a soberana Beleza de Deus, da qual
aquela que estava diante de seus olhos não passava de uma
imagem bem imperfeita, mas que lhe inspirou um sentimento de
amor a Deus tão vivo e tão ardente, que ele inundou com uma
torrente de lágrimas o lugar onde estava. Eu lhes pergunto,
não é uma coisa admirável, que aquilo que poderia ser para
muitos uma ocasião de queda e de ruína espiritual, se tornou
para este santo homem um meio sobrenatural para a obtenção de
recompensas celestes? E, se ainda pudermos achar homens
semelhantes
a
este,
que,
nas
mesmas
circunstâncias,
experimentam os mesmos sentimentos, e que sejam assim tão
puros e tão unidos a Deus pela caridade, não devemos dizer
que estes, mesmo numa carne corruptível, já vivem do mesmo
modo como viveremos depois da ressurreição geral?
59. Assim deveriam ser os nossos sentimentos, quando ouvimos
cantar os santos cânticos e outras melodias: pois as pessoas
que amam a Deus com ardor são movidas por uma alegria
totalmente celeste, por uma afeição divina e uma ternura que
chega às lágrimas, quando escutam uma bela harmonia, seja
sacra, seja mesmo profana. Ao contrário, os que são escravos
dos
prazeres
dos
sentidos
experimentam
sentimentos
e
movimentos opostos a estes.
60. Dentre os que se retiraram para o deserto para levar a
vida eremítica, existem alguns que estão muito mais expostos
à fúria dos demônios, como já dissemos. Isto não deve nos
espantar, porque se trata de lugares solitários onde estes
habitam desde que nosso Senhor, para nossa salvação, lhes
proibiu fixar morada em nossos corpos, expulsando-os dos
lugares habitados e encerrando-os em prisões eternas.
61. É notório que o demônio da luxúria ataque sobretudo os
solitários, a fim de que, consternados e abatidos por
tentações humilhantes, eles pensem que não extraem nenhum
benefício de sua solidão, tomando assim a funesta resolução
de retornar para o tumulto e as agitações do século. Também
podemos observar que, uma vez no meio do mundo, o demônio nos
deixa tranquilos; mas é apenas para que pensemos que estamos
livres das tentações, de modo a que ele possa nos persuadir
que já podemos viver sem perigo no meio do século e dos
mundanos.
62. É onde somos tentados com mais frequência, é daí que o
demônio não quer que fujamos, e é aí, por conseguinte, onde
deveremos sustentar seus assaltos com mais força e coragem,
zelo e perseverança; enfim, aquele a quem o demônio não ataca
deste modo, parece ter se tornado seu amigo.
63. Se a obediência nos obriga a permanecer algum tempo no
mundo para aí tratar de algum assunto importante e
necessário, a mão e a graça de Deus nos protegerão; as
orações e os votos de nosso superior são também capazes de
obter para nós este favor, a fim de que o Nome do Senhor não
seja blasfemado por nossa causa. Também podemos permanecer
sem tentações no meio dos obstáculos do século, devido à
nossa indiferença e insensibilidade quanto às coisas do
mundo, que adquirimos com o desgosto que estas coisas
mundanas nos causaram pelo uso desgastante que delas fizemos;
mas também pode acontecer que todos os outros demônios tenham
se retirado de perto de nós, tendo permanecido apenas os da
vanglória e do orgulho, que tomam o lugar de todos os outros.
64. Todos vocês que decidiram guardar a castidade e ser fieis
a esta virtude celeste, escutem-me, eu lhes peço, e observem
comigo um novo tipo de malícia de parte do cruel e impiedoso
sedutor de nossas almas: vigiem com grande cuidado para não
se tornar suas tristes vítimas. Um servidor de Deus, que foi
instruído a respeito por sua própria experiência, contou-me
que muitas vezes o demônio da impureza se afasta de nós até o
momento que ele considera o mais apropriado e conveniente
para a tentação na qual ele quer nos derrubar; durante este
intervalo ele excita no infeliz que pretende precipitar no
pecado os mais belos e piedosos sentimentos de devoção,
abrindo-lhe uma fonte abundante de lágrimas ao mesmo tempo em
que ele se encontra entre pessoas do sexo (sic), e inspira ao
imprudente que fale com zelo da morte e do julgamento, da
temperança e da castidade, exortando-os a fazer frequentes
meditações sobre as verdades importantes da salvação e a
praticar com inviolável fidelidade as virtudes tão belas e
necessárias que nos ensina a religião. Iludidos por estes
discursos e por suas aparências de piedade, essas pobres
pessoas correm atrás do monge, como se fosse ele um
verdadeiro pastor; mas, pelos artifícios do demônio e sem que
ele próprio se dê conta, ele logo se torna um lobo
sanguinário
e
devorador.
O
que
acontece
então?
Pela
familiaridade que tomam pouco a pouco, e pela liberdade que
adquirem de conversar com ele, elas acabam por despencar – e,
com elas, o infeliz – no abismo profundo do pecado,
consumando assim sua perda.
65. Evitemos assim, na medida do possível, não apenas ver e
considerar este fruto da morte, mas até de ouvir falar nele,
porque em nossa profissão religiosa fizemos a promessa solene
de jamais provar dele. Não devemos então ser tomados de uma
santa indignação, se encontrarmos entre nós alguém tão
insensato a ponto de se crer tão forte como Davi? É possível
uma coisa dessas?
66. A castidade é uma virtude tão bela, tão nobre, tão digna
de nossas honras e de nossos louvores! Ela é isenta da menor
mácula, ela é capaz de trazer à alma e ao corpo uma paz e uma
tranquilidade perfeitas.
67. Alguns ensinaram que não podemos jamais chamar de casta a
uma pessoa que caiu em qualquer falta vergonhosa. Eu não
posso admitir semelhante opinião. É porque me parece que para
reduzi-la ao seu justo valor, devo dizer que é fácil para
Deus, se ele quiser, implantar uma oliveira selvagem numa
oliveira de casta, e fazer com que esta dê frutos excelentes.
De resto, se as chaves do reino dos céus tivessem sido
confiadas a um homem que tivesse podido conservar seu corpo
numa inviolável castidade, seu sentimento poderia até parecer
mais provável; mas todo mundo sabe que são Pedro possuía uma
sogra e uma esposa[13]. O príncipe dos apóstolos deveria
calar a boca àqueles a lhes ensinar que a qualquer momento de
nossas vidas podemos adquirir a castidade.
68. O demônio da impureza sugere mil pensamentos e toma mil
formas para tentar e fazer cair os homens. Assim ele não
cessa de excitar, de conduzir e de empurrar os que tiveram a
felicidade de conservar sua inocência sem mácula, para que
provem nem que seja um pouco dos prazeres sensuais a fim de
examinar
e
verificar
se
lhes
convêm.
Ele
lhes
diz
interiormente que eles não se atirarão a eles por muito
tempo, e que renunciarão logo em seguida. Quanto aos que ele
conquistou, ele não para de colocar diante de seus olhos a
imagem atraente das volúpias de que já desfrutaram, a fim de
levá-los a se abandonar a elas mais e mais. Ora, eis o que
acontece normalmente nessas diferentes tentações: aqueles
que, por qualquer funesta experiência, não conheceram ainda
estes prazeres criminosos, não sucumbem facilmente e de um só
golpe; outros, dentre os que tiveram a infelicidade de se
deixar seduzir e saborearam vergonhosamente o prazer que o
demônio lhes prometeu, se desgostam, colocam dificuldades e
opõem uma vigorosa resistência; e enfim, assistimos o
contrário em muitos outros: eles contraem o infame hábito
dessas volúpias carnais e não podem mais passar sem elas.
69. Quando ao acordarmos encontramos nossa alma e nosso corpo
na pureza e na calma, devemos pensar que os anjos conseguiram
para nós este favor em virtude das preces que fizemos e da
sobriedade que observamos durante nosso repouso. Mas se
acontece o contrário, e os maus sonhos nos mergulham na
tristeza e no desgosto, e os fantasmas nos perseguem e nos
perturbam com sua vergonhosa importunação, lembremo-nos
destas palavras:
70. “Eu vi o ímpio, o demônio da impureza, extremamente
elevado; ele igualava em altura os cedros do Líbano,
perturbando meu coração com seu furor e com a agitação que
lhe
comunicava;
mas
eu
passei
pelas
austeridades
da
abstinência e do jejum e ele já não estava mais lá; sua raiva
contra mim cessou”. E também: “Na humildade de meus
pensamentos eu o procurei e não pude encontrá-lo, nem onde
morava, nem mesmo os vestígios de sua violência[14]”.
71. Aquele que triunfa sobre sua própria carne triunfa sobre
a própria natureza; quem triunfa sobre a natureza se coloca
acima da natureza; e quem se coloca acima da natureza,
tornou-se quase tão perfeito quanto os anjos.
72. Com efeito, não vejo nada de surpreendente se espíritos
isentos de matéria, como os anjos bons e maus, combatem
outros espíritos imateriais como eles; o que me surpreende e
me espanta é ver homens modelados com uma carne de terra e
barro, fraca e instável, infiel e corrompida – que dizer
mais? – de uma carne inimiga, perseguir os demônios que são
espíritos livres do peso e do embaraço do corpo, vencê-los e
colocá-los em fuga.
73. O Senhor, por um traço todo particular de sua providência
em favor do gênero humano, inspirou às mulheres o espírito da
modéstia, da vergonha e do pudor. Se as mulheres tivessem a
mesma liberdade e temeridade que os homens, poderíamos dizer
que a castidade conduziria uma só alma que fosse, ao Paraíso?
74. Nossos padres mais instruídos nos caminhos da vida
espiritual, e com cuja sabedoria podemos seguramente contar,
nos ensinam que é preciso conhecer a diferença essencial
entre o primeiro movimento da alma, a simpatia de nosso
espírito por uma pensamento impuro e o consentimento que
damos ao pecado, e a derrota e o cativeiro que sofremos, o
combate que sustentamos e a paixão que atua. Eles dizem que o
primeiro movimento da alma consiste numa espécie de discurso
simples e nu, e a representação de um objeto são coisas que
se passam na imaginação; que a simpatia que do espírito pelo
objeto
que
ele
figurou
pelo
pensamento
é
um
certo
entretenimento, uma conversa de nossa alma com o objeto que
ela considera, seja porque ela age assim por uma má intenção,
seja porque o faz sem maus desígnios; que o consentimento que
damos ao pecado é um amor e uma afeição que levam a alma a
querer e possuir o objeto que ela se representou; que o
cativeiro é a violência feita ao nosso coração, que o arrasta
contra a sua vontade e o acorrenta, ou então uma ligação
forte e constante que o fixa e o liga ao objeto que o move e
o faz perder a feliz estado de graça e de inocência; que o
combate consiste numa equiparação de forças que empregamos
para combater o inimigo, de modo que a alma que se vê exposta
ao combate pode, segundo sua vontade, vencer ou ser vencida;
enfim, que a paixão completamente formada é um vazio que
depois de muito tempo se cristalizou em nossa alma,
enraizando-se nela, e levando-a pouco a pouco a um mau
hábito, que a alma segue com prazer e executa com ardor
aquilo que esta lhe ordena. Dito isto, observem sem dúvida
que o primeiro movimento de nossa alma, que, sem que o
queira, recebe a impressão de um objeto, certamente não é
criminoso, e que a representação desse objeto em nosso
espírito não é totalmente inocente; mas que o consentimento
que damos a esta representação já constitui um pecado mais ou
menos grave, conforme a alma, para resistir a ele, faça
esforços maiores ou menores e generosos; que o combate traz
consigo castigos e recompensas; que o cativeiro nem sempre é
o mesmo e depende das circunstâncias; porque se ele acontece
durante a prece ele não é o mesmo que seria em outro momento,
e se acontece em relação a coisas indiferentes não é o mesmo
que aconteceria em relação a coisas ruins; enfim, quanto à
paixão consolidada, é indubitável que se ela não for punida
neste mundo por uma conversão sólida e sincera, e por uma
penitência proporcional às faltas que ela nos fez cometer,
ela o será no outro mundo por meio de suplícios eternos. De
todas estas observações tiremos esta importante consequência:
que quem não o recebe, nem permite que o primeiro movimento
cause uma impressão em si, detém no seu princípio todas as
tentações que estaria por experimentar, cortando assim as
raízes do mal.
75. Aqueles dentre os Padre que obtiveram mais luz e
discernimento observam ainda outra espécie de pensamento
ainda mais sutil. Eles o nomeiam como uma insinuação
adocicada e sub-reptícia. Este pensamento penetra na alma de
uma maneira doce, tão insinuante e súbita, que a alma não
tem, por assim dizer, nem o tempo nem os meios de se
aperceber.
Não
conseguimos
ver
nada
mais
súbito
nos
movimentos mais ágeis do corpo, nada mais instantâneo e mais
sutil na agitação dos espíritos; trata-se de uma ação quase
imperceptível da qual a alma mal consegue reter uma
lembrança, que existe sem duração no tempo, que não permite
fazer nenhuma reflexão e que algumas vezes experimentamos sem
sequer nos darmos conta. Se alguém for feliz o bastante para
receber de Deus a penetração e a compreensão desta espécie de
mistério, ele poderá nos dizer como ele acontece, como, por
meio de um simples olhar, num piscar de olhos, num inocente
toque de mãos, em umas poucas palavras cantadas, sem mesmo
nos deixarmos deter pela imaginação ou pelo pensamento, a
alma se vê arrebatada, e a paixão impura se assenhora dela e
a corrompe instantaneamente.
76. Alguns dizem que são os pensamentos que nascem no coração
os que levam o corpo a ações de impureza. Outros, ao
contrário, sustentam que é por meio dos órgãos e dos sentidos
do corpo que os pensamentos são excitados no espírito. Outros
asseguram que o corpo não faz mais do que obedecer ao
espírito, e que o segue; enfim, encontramos alguns que, para
provar que o espírito é menos culpado do que o corpo, ou
antes que o corpo é o único culpado, demonstram, tanto quanto
podem, que muitas vezes os maus pensamento não escorregam
para o espírito senão pela visão de um objeto agradável, de
uma beleza que nos toca e ofusca, ou por um simples toque de
mãos, pelo bom odor dos perfumes que aspiramos, e pela
suavidade dos sons que escutamos. Quanto a mim, peço
humildemente ao Senhor, que conhece onde as coisas realmente
acontecem, que nos ensine; pois este conhecimento é muito
útil e mesmo necessário aos que pretendem agir e só se
determinar por princípio e com segurança; mas ele é inútil
aos que só desejam servir a Deus na simplicidade de seus
corações. A ciência e os talentos do espírito não estão ao
alcance de todo mundo, bem o sei; mas também não ignoro que a
bem-aventurada simplicidade, que é uma couraça forte e
poderosa contra as ameaças dos inimigos da salvação, não
reina em todos os corações.
77. Existem paixões que, depois que nascem no espírito, levam
sua raiva e seu furor a todo o corpo; outras, ao contrário,
ocasionadas pelo corpo, exercem sua devastação no espírito.
Estas últimas ocorrem normalmente nas pessoas que vivem no
mundo; e as primeiras nos que vivem nos mosteiros, porque
estes não veem os objetos que tentam os que vivem no meio do
século. Quanto a mim, a punica coisa que posso ainda afirmar,
é que se você quiser encontrar a prudência e a sabedoria nas
pessoas que são escravas da paixão, jamais alcançará seu
objetivo.
78. Quando, tendo por um longo tempo e com muitos esforços
guerreado contra o demônio da luxúria – que é, por assim
dizer, o aliado de nossa carne de barro – e que por meio de
jejuns rigorosos como golpes de pedra, pela humildade como
uma espada, conseguimos expulsá-lo de nosso coração, então
este miserável se agarra como um verme ao nosso corpo, e se
esforça para manchar nossa alma, excitando em nós movimentos
inoportunos e contrários à razão.
79. Aos que obedecem ao espírito do orgulho sobrevém acima de
tudo a infelicidade, nas medida em que não cessam de aplaudir
a si mesmos por se haver libertado dos maus pensamentos, e
que acabam caindo nas armadilhas que lhes coloca a vaidade;
para nos convencermos desta triste verdade, vejamos e
examinemos atentamente, mas com simplicidade de coração, por
quais razões estas pessoas se acham isentas de pensamentos
desonestos. Não será exatamente por que o demônio, cheio de
malícia e artifícios, se esconde nas dobras mais secretas de
seu coração, para de lá sugerir que é por causas dos seus
cuidados, sua prudência e seus trabalhos, que eles praticaram
a castidade e adquirido esta bela e perfeita pureza que agora
possuem? Infelizes! Esqueceram-se destas palavras: “O que
vocês possuem, que não tenham recebido?[15]”. Que as pessoas
em cujo coração o demônio se tenha escondido assim, se
dediquem com força a combater e ferir esta serpente perigosa;
que a expulsem para longe de seu coração por meio de uma
profunda humildade, a fim de que, libertos de suas mordidas
cruéis e envenenadas, e despojados das túnicas de pele com
que se cobriam, possam cantar em louvor ao Senhor um cântico
de triunfo e vitória, e, reunidos aos filhos que jamais se
sujaram com as coisas contrárias à castidade, repetir o hino
da pureza. Mas elas serão incapazes de fazê-lo, repetimos, se
se contentarem em se desfazer das túnicas que mencionamos,
mas sem se revestir das vestes da inocência e do hábito de
uma profunda humildade.
80. O demônio de que tratamos aqui é muito mais ardiloso do
que os demais: ele sabe observar e conhecer as circunstâncias
em que poderá nos estender suas armadilhas com maior sucesso.
É assim que, para nos tentar, ele escolhe de preferência os
momentos nos quais nos é impossível servirmo-nos do corpo
para nos dirigir a Deus com preces fervorosas.
81. Assim, aconselhemos aos que ainda não sabem orar
mentalmente, a que mortifiquem seus corpos durante suas
orações vocais, seja estendendo os braços, seja batendo no
peito, se elevando afetuosamente e com frequência seus olhos
para o céu, seja soltando suspiros e gemidos, seja ficando de
joelhos: todas essas mortificações e esses meios piedosos
lhes trarão grandes vantagens. Mas se acontecer de, pela
presença de qualquer pessoa, não seja possível executar essas
práticas de piedade, o demônio aproveitará esta ocasião para
atacar, e não é raro que não estejamos firmes contra a
tentação, de sorte que, por falta de coragem ou de fervor na
prece, podemos vir a falhar e sucumbir. Quanto a vocês, se se
encontrarem numa situação exposta a uma provação semelhante,
retirem-se prontamente, saiam da multidão, escondam-se em
qualquer lugar secreto, voltem aos céus os votos ardentes de
seu coração; e, se vocês se sentirem frios, congelados,
elevem os olhos do corpo para olhar o céu, estendam os braços
em forma de cruz, a fim de que, por meio deste sinal salutar,
possam confundir e derrubar por terra este novo Amalec;
chamem com grandes gritos aquele que é o único que poderá
lhes salvar; para tanto, não se sirvam de palavras elegantes
e estudadas, mas de palavras que transpirem de humildade do
coração e de confiança da alma; sobretudo, digam: “Tenha
piedade de mim, Senhor, porque sou fraco e desfaleço[16]”.
Logo vocês sentirão a presença do socorro do Altíssimo e,
fortificados
por
este
auxílio
celeste,
afastarão
vitoriosamente seus inimigos. Ora, eu posso dizer que todos
os que se acostumaram a combater o demônio desta maneira e
com essas armas, obtiveram contra ele prontas e gloriosas
vitórias. Apenas a prece do coração é capaz de nos fazer
triunfar. É assim que Deus torna invencíveis os que combatem
corajosamente por seu amor; é assim que ele recompensa seus
esforços e coroa sua boa vontade.
82. Numa reunião em que me encontrava, vi um monge que se
aplicava muito nos assuntos de sua salvação, e que trabalhava
com grande ardor. Um dia observei que este fervoroso servidor
de Deus era violentamente atacado por pensamentos impuros, e
que, não se encontrando num lugar apropriado para a oração
que costumava fazer durante essas tentações, ele pretextou
suas necessidades naturais, com o objetivo de se retirar. Ele
se colocou no lugar que era destinado a essas necessidades e,
com uma oração das mais ferventes ele travou uma batalha com
o demônio e o derrubou. Porém, eu lhe fiz algumas
admoestações, quanto à sua conduta: “O local, disse-lhe eu,
que você escolheu para orar, não é absolutamente correto para
o santo exercício da prece”. “Mas, respondeu-me ele com
humildade, você não vê, meu pai, que ao escolher este local
para orar, num momento em que eu era tentado por pensamentos
imundos, eu mereci ser purificado de minhas próprias
manchas?”.
83. Os demônios procuram envolver nosso espírito em trevas
espessas, e depois levar nosso coração a gostar daquilo que
eles mesmos amam. Assim, a menos que um religioso feche os
olhos de sua alma para a luz, o demônio será incapaz de
arrebatar-lhe o tesouro de sua inocência. Mas é sobretudo
desta maneira que o demônio nos ataca e nos tenta: às vezes
ele espalha tantas trevas no espírito do pobre monge, e com
esta escuridão opera tamanha confusão e uma desordem tão
terrível em sua razão, que consegue que ele cometa, na
própria presença de seus irmãos, ações e crimes dos quais só
um insensato seria capaz. Mas o que acontece a seguir? Nossa
alma retorna de sua funesta embriaguez, a paixão se acalma,
voltamos a nós e não podemos senão enrubescer de nossa
cegueira vergonhosa, e gemer por nossos deploráveis excessos,
pelas palavras que dissemos, pelos gestos que fizemos, pelas
ações cometidas, e pelo estado humilhante a que fomos
reduzidos em presença de tantas testemunhas. Mas muitas vezes
de um mal procede um bem: pois acontece que esta vergonha de
pecadores, considerando a conduta infame que mostraram, os
pode converter e levá-los a se corrigir de sua paixão.
84. Afaste o inimigo que, depois de nos ter feito cair em
pecado, nos desvia da oração, dos outros exercícios da
piedade e da vigilância sobre nós mesmos. Lembremo-nos da
máxima que diz: “É porque eu vi que minha alma estava
oprimida pelo conhecimento dos pecados que cometi, como por
uma cruel tirania, que resolvi fortemente me vingar dos
inimigos que me encheram de males”.
85. Sabem vocês quem pode assegurar ter vencido sua carne e
triunfado sobre seu próprio corpo? É aquele que partiu e
dilacerou seu coração. E quem é que partiu seu coração? Vocês
o encontrarão em alguém que realizou uma renúncia completa de
si mesmo; pois como alguém que deu morte à própria vontade
poderá proteger seu coração?
86. Existe um tipo de homem dominado pela paixão que, a todos
os crimes com que se cobriu, acrescenta o de contar com
brutal
complacência
as
execráveis
impudicícias
e
as
vergonhosas intemperanças a que se entregou.
87. O demônio costuma excitar pensamentos impuros em nosso
espírito para corromper nosso coração. Podemos combatê-lo
vantajosamente expulsando-o com a temperança, o desdém e por
uma dedicação a outra coisa.
88. Aqui se apresenta uma grande dificuldade. Fizemos a
guerra ao nosso corpo? Mas este corpo, que me é tão caro, que
eu amor ternamente, como poderei acorrentá-lo, julgá-lo e
condená-lo, tal como julgarei e condenarei os vícios mais
vergonhosos? Pois ele escapa no mesmo instante em que estou
prestes a lhe colocar as cadeias; mal acabei de me resolver a
julgá-lo e já me reconcilio com ele, e se chego a condená-lo
me apresso logo a perdoá-lo. Como odiar a quem a natureza me
ordena amar? Como será possível separar-me daquilo a que devo
estar eternamente unido? Poderei eu fazer morrer a quem
deverá ressuscitar um dia para viver comigo pelos séculos
infinitos? Por quais meios conseguirei tornar incorruptível
aquilo que é corruptível por sua própria natureza? Quais boas
razões posso dar àquele que, para me convencer, me apresenta
razões que estão fundadas na própria essência das coisas? Se
eu tento amarrar meu corpo por meio de jejuns, me entrego a
ele, condenando-o se não os observar; se, preservando-me de
julgamentos temerários, liberto-me de sua escravidão, a
vanglória me faz recair em sua servidão. Meu corpo é ao mesmo
tempo meu amigo e meu inimigo, meu adversário e meu auxiliar,
meu perseguidos e meu defensor. Se cuido dele, estou mimandoo? Ele se torna insolente e se volta contra mim: devo
mortificá-lo? Ele me faz cair em desfalecimento: restabeleçoo? Ele não me dá repouso e não quer receber nenhuma
reprimenda? Devo afligi-lo, a ele que me expõe à última das
infelicidades? Arruíno-o com austeridades, e já não tenho os
meios com que adquirir e praticar as virtudes: meu corpo é um
ser que eu odeio e amos. Mas então, o que é esta maravilha
extraordinária que encontro em mim? Qual pode ser a razão
desta mistura singular de meu corpo com minha alma, dessas
afeições corporais com essas afeições espirituais? Expliqueme como é possível que eu me ame e me deteste ao mesmo tempo.
Mas é a você que me dirijo, meu pobre corpo, minha pobre
carne, minha companhia inseparável, você que é parte
essencial de mim mesmo! Diga-me, eu lhe peço: ensine-me, eu
lhe conjuro, este grande mistério que me espanta e me
confunde; pois só você pode me dar o conhecimento que eu
desejo. Conte-me, por favor, por que meios poderei eu viver
sem ser ferido, permanecendo com você; digne-se a me ensinar
como eu poderei evitar os numerosos perigos a que me vejo
exposto a cada dia, por causa da união necessária e
inseparável que tenho com você; pois você não pode me
ignorar, e eu prometi a Cristo lhe fazer guerra. Ensine-me
então de que maneira poderei triunfar sobre sua tirânica
dominação: pois ele me ordenou usar de todas as minhas forças
para vencê-lo e subjugá-lo. E eis que a concupiscência, que o
corpo representa, nos dá as seguintes respostas: “Eu não lhe
direi coisas desconhecidas; mas lhe contarei, minha alma,
aquilo que nós dois sabemos. Eu me glorifico de possuir por
mãe a afeição interior que tenho por mim. Eu sou bem prático
em aproveitar e desfrutar da delicadeza com que sou tratado,
e da negligência com que cumprimos nossos deveres e
praticamos a virtude, a fim de produzir exteriormente as
chamas de um grande abrasamento. Para provocar interiormente
os ardores e os fogos criminosos eu me sirvo do relaxamento
da piedade e da lembrança abrasadora das coisas passadas.
Depois de meditar bem sobre os pecados e os crimes nos quais
quero fazê-lo cair, consigo facilmente meu objetivo; e depois
de fazê-lo cair no abismo, eu o precipito em outro, que é a
morte eterna causada pelo abatimento e pelo desespero. O
conhecimento de minha fraqueza e da sua me prende as mãos, e
a temperança amarra meus pés, de modo que não posso nem agir
nem caminhar. A obediência perfeita o liberta absolutamente
de minha tirania, e uma profunda humildade me mata. Qualquer
um que receba o dom da castidade como prêmio por suas obras,
este que é o décimo quinto degrau da perfeição, ainda que
numa carne corruptível, está morto e ressuscitado ao mesmo
tempo, e começa ainda neste mundo a usufruir de uma bemaventurada incorruptibilidade.
DÉCIMO SEXTO DEGRAU
Da Avareza e da Pobreza
1. A maior parte dos autores recomendados por sua ciência,
depois de haver falado, como fizemos, da carne como um
furioso tirano, nos expõe a avareza, que é um demônio
monstruoso cheio de cabeças. Assim, para não perturbar a
ordem que estes homens cheios de sabedoria estabeleceram,
seguiremos a regra traçada. Diremos, assim, mas em poucas
palavras, o que concerne a esta cruel paixão, e trataremos
dos remédios capazes de nos curar e de nos preservar dela.
2. A avareza é uma verdadeira idolatria; é a filha
incredulidade. Para contentar sua avidez, ela se serve
pretexto especial das enfermidades e das necessidades
corpo; é por isso que ela não cessa de ameaçar com
velhice de mil necessidades diferentes, que ela anuncia e
temer as secas e que ela prediz as fomes.
da
do
do
uma
faz
3. Um avaro envergonha e viola os preceitos do Evangelho.
Quem é possuído pelo amor a Deus não é devorado pelo desejo
passional das riquezas, ao contrário, serve-se delas para
distribuir esmolas a granel. Quem ousa dizer que ama a Deus e
os bens da terra engana a si próprio e quer enganar os
outros: pois ele não ama a Deus. No mesmo erro cai aquele que
pretende possuir a Deus e o dinheiro: não possuirá nem um nem
outro.
4. Quem chora seus pecados, também renuncia a seu próprio
corpo e não o agrada, a partir do momento em que considera
necessário fazê-lo.
5. Não diga que você só ama e busca as riquezas para depois
socorrer os indigentes. Lembre-se de que uma pobre viúva
conquistou o Reino dos céus com duas pequenas moedinhas.
6. Dois homens se encontram um dia: um é avaro, outro
generoso. Logo o avaro se põe a repreender ao outro, que
reparte com largueza aos pobres que o cercam; ele o acusa de
não possuir nem sabedoria, nem discrição.
7. Mas aquele que triunfou generosamente sobre a cupidez, não
poderá ele responder que qualquer um que tenha vencido esta
paixão, por isso mesmo cortou pela raiz todas as inquietações
da vida, e que aquele que é escravo da cupidez jamais pode se
apresentar a Deus com as mãos puras e inocentes, nem lhe
oferecer o perfume odorífico da oração?
8. A avareza começa com a desculpa da esmola; mas assim que
você acumula e constrói um tesouro de ouro e prata, a cupidez
o faz detestar os pobres. Vejam como são grandes a
sensibilidade e a compaixão pelos indigentes no coração do
avaro enquanto ele trabalha para se tornar rico; e vejam como
ele se torna duro e insensível em relação a eles, depois que
se vê na abundância.
9. Conheci pobres de bens de fortuna, mas que eram ricos em
bens da graça, esquecer completamente sua pobreza temporal
vivendo em meio a gente igualmente pobre, apenas pela afeição
e a vontade.
10. O monge que tem a infelicidade de amar o dinheiro jamais
é preguiçoso; pois sua paixão lhe recorda sem cessar estas
palavras, das quais ele abusa: “Quem não quer trabalhar,
também não coma[17]”; e estas: “Minhas mãos bastam para que
eu obtenha para mim e para os que vivem comigo as coisas que
nos são necessárias[18]”.
11. A pobreza religiosa é uma desobrigação formal de todos os
cuidados da vida e uma libertação de todas as inquietudes
temporais; é uma viagem desembaraçada de toda carga, uma
observação escrupulosa dos preceitos do Senhor; uma feliz
libertação de toda espécie de incômodos e penas.
12. O monge pobre é mestre de todo o universo, porque ele
coloca todos os seus cuidados e todas as suas inquietudes no
seio da Providência, e, pela confiança firme e inteira que
ele tem no Senhor, torna todos os homens sujeitos a si, seus
servidores. Não será aos homens que ele irá se dirigirem suas
necessidades e nos suas carências, e o socorro que receber
ele saberá que provém da mão do Senhor.
13. trata-se de um feliz filho da
coração; pois ele é livre de toda
retiro ele não dá maior atenção às
ausentes, às que existem e às que
paz e da tranquilidade do
afeição desregrada. Em seu
coisas presentes do que às
não existem, e tudo neste
mundo lhe parece pantanoso e imundo. Quem se entristece e se
aflige nas dificuldades não é pobre desta pobreza, que é a
única verdadeira.
14. O verdadeiro pobre oferece a Deus preces puras e
sinceras, e o avaro mancha as suas com o pensamento e o
desejo de bens temporais, que ele enxerga como ídolos.
15. Os que têm a felicidade de viver num mosteiro devem ser
isentos de toda e qualquer cupidez; pois como ousariam eles
possuir qualquer coisa sua, uma vez que, em função de sua
profissão de obediência, sequer seus corpos estão à sua
própria disposição? O único prejuízo que poderia lhes causar
esta pobreza tão perfeita, seria de tornar muito fácil mudar
de lugar e de moradia sem nenhuma dificuldade; pois já vi
acontecer das coisas que alguém possuía num lugar fizessem
com que a pessoa se fixasse e se ligasse àquele lugar.
16. Aqueles que se tornam peregrinos por amor a Deus estão
mais avançados nos caminhos da perfeição do que os que se
fixam num lugar, por afeição a coisas que possuem.
17. Quando temos a felicidade de saborear as doçuras e as
delícias que nos trazem os bens celestes, nos desgostamos
rápida e facilmente das falsas doçuras dos bens terrestres;
e, por um princípio contrário, entregamos prontamente as
afeições do coração às riquezas temporais e as possuímos com
prazer, quando jamais saboreamos das santas volúpias das
riquezas celestes.
18. Quem é pobre contra sua vontade é duplamente infeliz:
pois não desfruta dos bens da vida presente e, pelo mau uso
que faz de sua pobreza, se priva dos bens da vida futura.
19. Tenhamos cuidado, todos os que fazemos profissão de vida
religiosa, para que nos tornemos inferiores aos passarinhos,
estes animais que não pensam no amanhã e nada ajuntam para os
tempos que poderão vir[19].
20. Grande é aos olhos do Senhor aquele que, por seu amor,
renuncia generosamente a tudo o que possui, e também o que,
nestas santas disposições, se despoja inclusive de sua
própria vontade! Um, como prêmio por sua generosidade,
receberá o cêntuplo, seja neste mundo, com bens temporais,
seja no outro, pelos dons e as graças celestes; e o outro
possuirá a vida eterna.
21. As ondas e as tempestades não cessam de agitar e
atormentar o mar, e a tristeza e a cólera perturbam e oprimem
o avaro sem interrupção.
22. Quem só sente desprezo e indiferença pelos bens da terra,
não estará expostos aos processos, nem às angústias que estes
trazem consigo; enquanto que quem é escravo da cupidez,
penará toda a vida por uma mísera agulha.
23. Uma fé inquebrantável preserva de toda espécie
inquietações; o pensamento da morte conduz à renúncia
próprio corpo.
de
do
24. Jó, em sua extrema pobreza, jamais demonstrou por sinal
ou marca alguma ter sido possuído por qualquer afeição de
cupidez; ainda que reduzido à última indigência, ele
conservou sua alma numa paz e tranquilidade perfeitas.
25. É com razão que se diz que a avareza é a raiz de todos os
males. Pois é esta maldita paixão que engendra as aversões,
os furtos, as invejas, as cisões, as inimizades, as raivas,
as disputas, os ressentimentos, os atos de crueldade e
barbárie, e até os assassinatos.
26. Assim como uma pequena fagulha é capaz de produzir um
imenso incêndio numa floresta, também uma virtude, pequena na
aparência, é capaz de fazer desaparecer todos os crimes de
que falamos; esta pequena virtude é a pobreza, que suprime e
extingue todos os maus pendores da cupidez. Aquilo que produz
em nós esta interessante virtude é, em primeiro lugar, o
hábito de pensar em Deus, depois o prazer que sentimos em
caminhar em sua presença e enfim a lembrança da temível conta
que teremos que lhe prestar.
27. Todos os que leram com atenção o que dissemos no décimo
quarto degrau, o da gula, mãe de todos os males imagináveis,
terão sem dúvida observado que esta infame paixão, ao
fornecer a genealogia e o número de seus filhos, colocou em
segundo lugar a insensibilidade, que torna o coração duro
como um rochedo. Se ainda não falamos deste vício foi porque
a avareza, que é um dragão e um culto idólatra do dinheiro,
nos forçou a nos ocuparmos dela. Eu não sei por que nossos
pais colocaram a avareza em terceiro lugar dentre os pecados
capitais. Então falarei agora da insensibilidade, que ocupa o
terceiro lugar na lista dos pecados, mas que está em segundo
na genealogia que a intemperança nos forneceu de seus filhos.
Depois disso, uma vez que já falamos da avareza, passaremos
ao sono, às vigílias e aos temores pueris: estas enfermidades
espirituais atacam sobretudo os noviços. Terminaremos este
degrau dizendo que aquele que obtém esta décima sexta vitória
possuirá o amor, se libertará dos cuidados da vida presente,
terá merecido uma grande recompensa no céu e caminhará sem
nenhum embaraço temporal para a pátria celeste.
DÉCIMO SÉTIMO DEGRAU
Da Insensibilidade da alma, ou do endurecimento do coração,
que consiste na morte da alma antes da do corpo.
1. A insensibilidade, seja do corpo ou do coração, consiste
num amortecimento letárgico que, por uma longa duração de
enfermidade grave e pela negligência com que a tratamos,
termina normalmente numa paralisia universal.
2. A alma cai na funesta insensibilidade da seguinte maneira.
Ela começa com uma negligência culpada dos deveres, que
termina por produzir um hábito inveterado de fugir deles.
Trata-se de uma paralisação mortal do coração, produzida por
uma tola presunção; uma corrente grossa e pesada que nos
impede de correr com alegria pelos caminhos de Deus; uma
bebida funesta que nos faz perder a compunção; a porta para o
temível desespero, a mãe do esquecimento de Deus, o qual,
depois de ser gerado por ela, traz por si mesma a existência
e a capacidade de apagar em nós todo sentimento de temor a
Deus.
3. A insensibilidade se parece com um filósofo insensato que,
dando lições aos outros, pronuncia sua própria condenação;
com um advogado que disserta contra sua própria causa; como
um médico cego que, enquanto faz longas e sábias dissertações
sobre os modos de curar um doente, não cessa de aumentar e
envenenar suas chagas e fazer crescer sua doença. Com efeito,
vemo-lo falar com zelo e ciência da doença de sua alma, mas
jamais ovemos abster-se das coisas que a mantêm; ele pede a
Deus que o livre delas, mas, por seus maus hábitos, nos quais
não cessa de tombar, afunda e mergulha cada vez mais no
abismo; indigna-se contra si mesmo, mas, infeliz!, não
enrubesce diante das amargas admoestações que recebe; sabe
que faz mala si mesmo, ele próprio o diz, mas jamais aciona
os meios de se corrigir; fala da morte, e vive como se jamais
fosse morrer; solta longo gemidos sobre os passos terríveis e
inevitáveis após a morte, mas permanece tranquilo, como se
nada tivesse a temer, como se fosse imortal aqui em baixo;
fala dos benefícios preciosos e dos frutos salutares da
mortificação, mas não hesita em se atirar sem escrúpulos aos
excessos e às delícias da boa mesa; lê com frequência coisas
relativas ao Juízo final, mas é insensato o bastante para não
lhes dar importância alguma, e chega mesmo a brincar com
elas; lê de passagem o que foi escrito sobre a vanglória, e
esta mesma leitura aumenta o próprio vício em seu coração
miserável; louva a vigília, mas mergulha nas doçuras do sono;
destaca com eloquência a virtude e a excelência da oração,
mas tem horror a ela e só se dedica a este santo exercício à
força e com grande repugnância; assim, ele mesmo cria seu
suplício e seu tormento. O insensível louva e exalta a
obediência, mas é o primeiro a desobedecer; prodiga os
elogios mais pomposos aos que não têm nenhum apego aos bens
frágeis e perecíveis deste mundo, mas não se envergonha de
discutir e disputar por um vil e mísero linho; encoleriza-se
por disputar, irrita-se e se indigna por ficar de mau humor;
e ainda que caia e caia outra vez sem cessar, insensato!, não
se apercebe de suas quedas. Ele se arrepende de se entregar
aos excessos da intemperança, e um instante depois acrescenta
um novo excesso aos primeiros; beatifica o silêncio, mas,
para não ter que conservá-lo, entrega-se a longos discursos
em seu louvor; faz excelentes exortações aos demais para
levá-los a praticar a mansidão, mas ele mesmo se indigna e se
irrita com sua própria indignação e impaciência; quando cai
em si, vemo-lo gemer por seu estado deplorável, mas, ao
primeiro movimento que faz para sair dele, recai numa
letargia
ainda
mais
profunda.
Ele
censura
e
condena
severamente o riso e a alegria, e ao mesmo tempo em que fala
de penitência se põe a rir de tal modo que desperta piedade e
anuncia o desequilíbrio; acusa a si mesmo diante dos demais
por ser culpado de vanglória e, nesta mesma acusação, procura
contentar seu orgulho e sua vaidade; não cessa de recomendar
aos irmãos para guardar modéstia no olhar e praticar a
castidade com escrupulosa atenção, mas o miserável coloca sem
cessar, e com intenções perversas, os olhos sobre os objetos
agradáveis e perigosos! Encontramo-lo no meio das pessoas do
século? Ele faz os maiores elogios da vida religiosa e
solitária,
mas,
na
sua
estúpida
insensibilidade,
não
compreende que seus louvores condenam sua conduta; ele cumula
de honras e elogios os que cuidam dos pobres e que distribuem
esmolas entre os indigentes e os miseráveis, mas ele mesmo
cobre os indigentes e os pobres de injúrias, afrontas e
ultrajes. E é assim que este pobre infeliz se acusa e se
condena em tudo e por tudo, sem pensar em se corrigir, em
enrubescer por seu triste e funesto estado, em se arrepender
por sua conduta e se converter. Ora, direi eu: será isto
possível a ele?
4. Já vi infelizes como estes que, ouvindo falar da morte e
do julgamento terrível que se seguirá, banhavam-se em
lágrimas, e que no entanto, neste mesmo estado, se apressavam
a se sentar à mesa; surpreso e espantado, eu não conseguia
compreender de que modo a intemperança, mesmo fortalecida por
um longo hábito de vida na preguiça e na insensibilidade,
fosse tão forte e potente para resistir assim a uma dor tão
viva e à virtude de lágrimas tão salutares.
5. Entretanto, malgrado a fraqueza de meu espírito e de meu
julgamento, eis em poucas palavras o que eu penso haver
descoberto sobre as astúcias infernais e sobre as chagas
profundas que caracterizam esta paixão dura, furiosa,
tirânica, perigosa e impertinente; pois eu não posso aqui me
estender em dissertações longas e raciocínios complexos, e
conjuro aos que, com o socorro do céu e sua própria
experiência , tenham encontrado o remédio para a cura desta
enfermidade mortal, que não deixem de no-lo ensinar e
aplicar. Quanto a mim, tudo o que posso fazer é confessar
francamente e sem rodeios que, diante de minha impotência e
do estado de servidão a que fui reduzido por esta cruel
dominadora, acho-me na impossibilidade de conhecer todos seus
artifícios e armadilhas; o que eu pude foi agarrá-la à força
e usar de violência, amarrá-la com as cordas do temor a Deus
e os laços da perseverança na oração, forçando-a, contra sua
vontade, a fazer a confissão a seguir. E esta enganadora e
tirânica senhora me falou assim: “Quando os que se aliam a
mim veem cadáveres diante de seus olhos, eles não deixam de
rir; durante a prece são duros como rochedos, e seu espírito
permanece envolto em trevas espessas que os impedem de
enxergar.
Quando
eles
se
apresentam
diante
da
mas
eucarística, o fazem sem nenhum sentimento de piedade, e
recebem e comem o pão divino como se fosse um pão comum e
ordinário. Se eu vejo pessoas tomadas de compunção, rio
delas. Aprendi com meu pai a fazer perecer todas as boas
obras produzidas pela coragem e os esforços de um coração
generoso e bom. Eu sou a mãe da inconsequência e das risadas,
a nutriz do sono, a amiga das associações e das companhias, a
companheira fiel da falsa piedade; e, por esta última
qualidade, eu desdenho da reprovação que me é feita”.
6. Estas respostas me encheram de espanto e surpresa, e me
inspiraram o desejo violento de perguntar ainda a esta
furiosa paixão o nome de seu infame pai. Ela me respondeu:
“Eu não nasci de uma única raiz; minha origem é uma mistura
incerta, e o estado de minha geração é variado; o excesso no
comer me dá forças, o tempo me faz crescer e aumentar; os
maus hábitos me afirmam de tal maneira que aquele que se
deixar levar por mim jamais escapará da escravidão. Se você
perseverar nas vigílias e no pensamento dos julgamentos de
Deus, eu lhe darei algum descanso. Descubram a causa que me
gerou em cada um; pois ela não é a mesma para todos, e
ataquem-na rudemente. Rezem sobre os túmulos, e levem consigo
sempre a imagem da morte e dos que já não existem; mas não se
esqueçam de que se vocês não se servirem do jejum como pincel
para pintar estas coisas no seu espírito, jamais conseguirão
triunfar sobre mim”.
DÉCIMO OITAVO DEGRAU
Do sono, da prece e do canto público dos salmos
1. O sono consiste num certo estado, uma certa paixão da
natureza que é produzida pela paralisação dos sentidos; é a
imagem da morte. O sono em si é algo único; mas, assim como a
cupidez, as causas que o produzem são numerosas; pois tanto
ele pode advir da própria natureza, como do trabalho
realizado pelo estômago que digere com dificuldade os
alimentos recebidos, ou ainda de parte dos demônios; algumas
vezes tem seu princípio e sua causa no excesso de severidade
das austeridades; neste último caso, é a própria natureza
que, sentindo-se enfraquecida, tenta se aliviar e recuperar
suas forças.
2. Bebendo muito e frequentemente, adquirimos facilmente o
hábito de beber; o mesmo se pode dizer do costume de dormir.
É por isso que os jovens iniciantes devem se precaver contra
esta paixão e esta necessidade corporais; pois, na medida em
que o pudermos ignorar, um hábito inveterado se corrige
facilmente.
3. Se quisermos prestar bem atenção, observaremos que,
enquanto nossos irmãos se reúnem ao toque da trombeta, nossos
inimigos correm invisivelmente para nossos leitos, a fim de
que, ao acordarmos, nos obriguem a permanecer nas doçuras do
repouso: “Fiquem, nos dizem eles interiormente, esperem
terminar os hinos que precedem a salmodia; é cedo ainda para
ir à igreja”. Outras vezes eles nos fazem sentar durante a
prece e nos conduzem ao sono. Ora eles nos incitam a violenta
necessidade de sair; ora nos pedem para sustentar discursos
vãos e inúteis. Alguns dentre eles têm como ocupação fatigar
nosso espírito com maus pensamentos; outros, de fazer com que
nos apoiemos sobre qualquer objeto, como um muro, por
exemplo, persuadindo-nos de que estamos demasiado fracos e
fatigados; outros nos carregam com bocejos inoportunos;
outros nos levam a rir, a fim de que, em nossas próprias
orações, atraiamos a ira do Senhor. Encontramos alguns que
nos tentam a correr com a leitura dos versículos para que,
terminando logo, tenhamos algum tempo para preguiçar;
encontramos outros que, ao contrário, fazem com que vamos
lentamente, para desfrutarmos de um certo prazer natural.
Enfim, existem os que se colocam sobre nossa língua e nossos
lábios para nos fechar a boca, ou para nos impedir de
pronunciar com facilidade as palavras que compõem os salmos.
4. Quem, durante a oração, pensar seriamente que está na
presença de Deus, será como uma coluna inamovível, e não se
deixará surpreender por estas múltiplas tentações. De resto,
o lutador sincero e obediente, quando se trata de orar, se vê
iluminado por uma luz divina e se enche de alegria celestial;
pois este bom monge, semelhante a um soldado valente, se
preparou para a prece longamente, por meio de um fiel
cumprimento de seus deveres e por uma obediência estrita.
5. Se todos podem se dedicar à prece pública, devemos não
obstante confessar que existem alguns para quem é mais útil
orar com alguém que não esteja unido a ele pelo mesmo
espírito e as mesmas inclinações. A prece solitária só convém
a poucos.
6. Ao salmodiar na companhia de muitos, não lhes será muito
fácil entregar-se à meditação sem numerosas distrações;
então, para amarrar e aplicar seu espírito pesem e meditem as
sagradas palavras que recitam, a fim de que esta meditação
seja para vocês como que uma prece, enquanto a parte do coro
à qual vocês não pertencem pronuncia seus versículos.
7. Não é conveniente para ninguém se dedicar a outras coisas
durante a oração, mesmo que seja algo necessário. Santo
Antônio nos assegura que foi um anjo que lhe recomendou
evitar esta falta.
8. O fogo testa o ouro; mas a prece o faz em relação ao amor
e à ligação que os monges têm por Deus. Aquele a quem agrada
o santo exercício da prece se une a Deus com grande
felicidade e coloca em fuga os demônios.
DÉCIMO NONO DEGRAU
Das vigílias do corpo, do modo como elas produzem as vigílias
do espírito, e da maneira como devem ser praticadas
1. Dentre as pessoas que acompanham os reis da terra, existem
aquelas que não possuem armas, outras que trazem feixes,
outras escudos, outras espadas. Nada disso é por acaso, mas
calculado: pois aqueles que não estão decorados senão com as
marcas de sua dignidade são comumente os parentes, os aliados
ou no mínimo os amigos íntimos e confidentes do príncipe;
quanto aos demais, são seus oficiais ou seus empregados
domésticos: tal é a ordem que encontramos na corte dos
soberanos.
2. Vejamos no presente qual é o lugar que ocupamos na casa de
Deus, que é nosso rei supremo, quando nos apresentamos a ele
para nos dedicarmos aos exercícios da oração do dia, do
entardecer e da noite: pois existem alguns que, nas preces do
entardecer e da noite se apresentam diante de Deus livres de
toda
inquietação
em
relação
aos
objetos
visíveis,
e
revestidos apenas com os ornamentos espirituais; outros se
mostram assim com o canto dos salmos e dos cânticos; alguns
passam o santo tempo da prece na leitura das divinas
Escrituras; outros, mais fracos e menos avançados, trabalham
com as mãos; enfim, existem os que, pela meditação contínua
da morte, incitam e entretêm em seus corações sentimentos da
mais viva e ardente compunção. Ora, é evidente que de todas
essas pessoas religiosas que passam assim as vigílias, são as
primeiras e as últimas que se comportam da maneira mais
agradável a Deus; as que colocamos em segundo lugar seguem os
exercícios ordinários da vida religiosa; as terceiras e as
demais estão no último grau. Não obstante, Deus recebe e
aprecia todas essas maneiras de lhe oferecer homenagens,
segundo o grau de boa vontade, de fervor e de coragem das
pessoas que lhe apresentam.
3.
As vigílias do corpo purificam a alma de suas manchas
bestializa e cega o espírito.
4. As vigílias combatem forte e vigorosamente os ardores da
carne, expulsam os maus pensamentos, produzem lágrimas em
abundância, enternecem o coração, extinguem as chamas da
paixão,
dão
delicadeza
à
consciência,
conservam
os
pensamentos sob controle, consumem os alimentos que poderiam
ser nocivos, submetem a carne ao espírito, triunfam sobre os
esforços e desarmam as armadilhas do demônio, detêm a
liberdade indiscreta da língua e dissipam inteiramente as
imagens e os fantasmas capazes de perturbar e consternar a
alma.
5. Um monge que pratica as vigílias se parece a um pescador:
pois no silêncio da noite ele observa sem distração e
compreende o alcance e o valor dos pensamentos.
6. Este ama sinceramente a Deus e, quando escuta soar o
ofício, cheio de alegria e contentamento grita: “Muito bem!
Muito bem!”, enquanto que o monge preguiçoso diz suspirando:
“Bem, lá vamos nós outra vez...”.
7. Não é difícil reconhecer o guloso à mesa carregada de
finos pratos; e é fácil reconhecer aqueles que amam a Deus,
por seu zelo e seu amor pela prece. As pessoas escravas da
intemperança tremem de alegria à vista de uma mesa coberta de
pratos bem preparados; e ao contrário, ficam tristes e
aborrecidas quando chega o momento de se dedicar à oração,
aquelas que não amam este santo exercício.
8. O excesso de sono faz esquecer as verdades salutares e
inspira o desgosto pelas coisas espirituais; as vigílias
purificam nosso espírito e nosso coração.
9. Os trabalhadores ajuntam suas colheitas nos celeiros, os
vinhateiros nos lagares; os religiosos ajuntam suas riquezas
espirituais
nos
exercícios
da
oração,
que
acontecem
principalmente ao entardecer e à noite.
10. Um sono muito considerável é um mau companheiro que
adotamos: ele faz com que o preguiçoso perca metade, senão
mais, do tempo que tem para viver.
11. O mau monge está acordadíssimo quando se trata de se
entregar a conversas e de entreter-se juntos aos seus irmãos,
mas quando se aproxima a hora da oração o sono logo se apossa
dele.
12. O religioso relapso está sempre pronto e ativo para as
palavras vãs, mas fica lento e relapso ao ler os livros
sagrados.
13. Assim como os mortos se levantarão prontamente da poeira
de suas tumbas ao som das trombetas, também os religiosos
dorminhocos se levantam celeremente de seus túmulos de
preguiça quando se anuncia a hora das recreações.
14. O sono, sob as aparências enganadoras da amizade, exerce
sobre nós uma tirania bem funesta – às vezes ele se retira
quando estamos saciados, outras vezes, quando jejuamos e
somos pressionados pelas dores da fome e os ardores da sede,
ele nos persegue exageradamente.
15. Ele nos leva a nos ocuparmos de algum trabalho manual, a
fim de que, por este meio, se outros não funcionarem, ele
possa nos perturbar e nos fazer abandonar a prece. Para
desencorajar os que entram para a vida religiosa, e impedilos de nela progredirem com felicidade, ele não cessa de
persegui-los e de atormentá-los.
16. É também assim que ele age, em relação àqueles para os
quais deseja abrir a porta do coração à paixão da luxúria.
17. Assim, até que estejamos inteiramente livres das fadigas
e da importunação do sono, não devemos ser encarregados de
cantar o ofício com nossos irmãos; pois sua companhia e o
temor de nos cobrirmos de vergonha e confusão nos impedirão
de dormir: com efeito, assim como o cão é inimigo da lebre, o
demônio da vanglória o é daquele do sono.
18. Assim como o comerciante conta os ganhos do dia ao
entardecer, também o religioso deve, depois da salmodia,
verificar os benefícios espirituais que retirou daí.
19. Vigiem a si mesmos atentamente depois da oração, e verão
com espanto que numerosos demônios, irritados por não terem
podido nos vencer enquanto orávamos, começam a seguir a fazer
todos os esforços para nos fazer cair em maus pensamentos.
Sentem-se, mantenham-se atentos, e verão aqueles que costumam
vir para arrasar a colheita da alma.
20. Acontece às vezes que, pelo costume que temos de recitar
os salmos, nos ocorre alguma lembrança, e que os divinos
oráculos se tornem a própria matéria e o objeto de nossos
pensamentos durante o sono; mas também acontece de os
demônios, nossos inimigos, provocarem estas coisas em nós, a
fim de nos inspirar sentimentos de orgulho. Existe ainda uma
coisa sobre a qual pretendia silenciar, mas que uma pessoa me
ordenou publicar: é que se uma alma que todos os dias se
alimenta da palavra de Deus por meio de uma meditação
contínua e profunda, começa costumeiramente, durante o sono,
a recordar os santos pensamentos tidos durante o dia, esta
será uma recompensa preciosa concedida por Deus; pois é desta
forma que nos libertamos das ilusões do demônio. Aquele que
chegou até este décimo nono degrau recebeu em seu coração o
tesouro de uma luz celeste.
VIGÉSIMO DEGRAU
Da covardia pueril
1. Aqueles que, nos mosteiros ou comunidades, se dedicam a
adquirir a perfeição, não costumam estar muito expostos a
este temor; mas vocês que abraçaram a vida eremítica e que
habitam nos confins dos desertos, devem combater esta paixão
com todas as forças e jamais se deixar dominar por ela, pois
ela é filha da vanglória e da infidelidade.
2. A covardia é uma paixão pueril que muitas vezes consiste
na parte que cabe à velhice ou a uma alma escrava da vaidade.
Trata-se de uma falta de fé e de confiança em Deus; ela se
produz em nós pelas desgraças que imaginamos prever que irão
nos surpreender inopinadamente.
3. Este medo consiste na previsão
uma aflição penosa de um coração
ideia de acidentes incertos. Numa
apreensão é a ausência completa de
de perigos imaginários; é
perturbado e agitado pela
palavra, diremos que esta
confiança.
4. É assim que vemos que uma alma orgulhosa e que só conta
com suas próprias forças teme e treme à vista de sua própria
sombra.
5. Penitentes que, num tempo, choraram sinceramente suas
faltas, mas que em outro tempo, por motivos de orgulho e de
impenitência, deixaram de chorar suas iniquidades, são
completamente isentos de temor em certas ocasiões, enquanto
que em outras circunstâncias são atingidos e ficam tão
apavorados que caem numa desorientação e numa alienação
extraordinárias. A razão dessas espantosas vicissitudes é que
o Senhor, soberanamente santo e justo, abandona a si próprios
estes miseráveis soberbos, a fim de que sua própria
infelicidade os torne sábios e os leve a renunciar a todo
sentimento de orgulho.
6. Se todos os escravos do amor próprio estão sob o jugo da
covardia, nem todos os que estão isentos dela são por isso
pessoas doces e humildes de coração. Com efeito, ladrões e
violadores de tumbas, que certamente não são pessoas
devotadas à doçura e à humildade, estão bem longe de ser
tímidos.
7. Existem para você lugares que lhe inspiram medo? Não
hesitem em escolher o meio da noite para ir visitá-los; pois
se vocês recuarem o mínimo que seja diante dos objetos que
lhes causam sentimentos de medo de uma maneira tanto vã como
ridícula, este medo se fortalecerá em vocês, e vocês o
carregarão por toda a vida. Assim, se puserem em prática a
recomendação que lhes faço, armem-se corajosamente com a
oração e, nestes lugares assustadores voltem para os céus
suas mãos suplicantes, invoquem o doce nome de Jesus com uma
fé viva e ardente, e farão seus inimigos em pedaços. Eis as
armas mais poderosas que vocês podem encontrar sobre a terra
e nos céus, para guerrear contra a covardia. Tiveram vocês a
felicidade de curar sua alma desta doença e obter uma alegre
vitória sobre si mesmos? Não deixem de dar testemunho de seu
reconhecimento, por meio de humildes cânticos e louvores,
àquele que, com sua graça, os fez vencer e triunfar. Esta
conduta atrairá sobre vocês novos favores, e vocês serão
merecedores de uma proteção constante.
8. Assim como um instante não basta para contentar e saciar o
estômago, também não será de um só golpe que vocês se
libertarão de todo sentimento de medo e terror. Mas podemos
observar que, quanto mais avançamos no caminho da penitência,
mais a covardia nos abandona e nos deixa, e quanto mais nos
tornamos impenitentes, mais ela aumenta em nós e nos
atormenta.
9. “Meus cabelos, disse Elifaz, se eriçaram sobre minha
cabeça e meus membros tremeram de horror[20]”, ao ver as
armadilhas do demônio. Ora, às vezes é o corpo, às vezes é a
alma que cria esses sentimento de pavor, e às vezes os dois
se juntam. Quando é apenas o corpo que experimenta estes
sentimentos, podemos acreditar que temos uma cura certa, e
veremos que estamos próximos de nos vermos livres desta
funesta paixão.
10. Nem a solidão dos lugares e as trevas da noite fornecem
armas aos nossos inimigos, tanto quanto a esterilidade da
alma. Por outro lado, Deus dispõe as coisas assim para nos
instruir.
11. O servidor de Deus não teme senão a Deus; mas aquele que
jamais sentiu o temor ao Senhor tem medo de si próprio e de
sua própria sombra.
12. O corpo se arrepia e treme na presença de um espírito;
mas os que vivem na prática da humildade são inundados de
alegria e contentamento na presença de um anjo. É por isso
que quando nos sentimos na presença dos anjos por causa
desses sentimentos interiores de alegria, devemos logo
recorrer à prece; pois estamos autorizados a pensar e crer
que estes espíritos celeste que nos são enviados para cuidar
de nós, vieram unir suas preces às nossas. Aquele que venceu
a pusilanimidade, evidentemente consagrou sua vida e sua alma
a Deus.
VIGÉSIMO PRIMEIRO DEGRAU
Da vanglória, tão variada em suas formas
1. Alguns separam, em seus tratados sobre o assunto, a
vanglória do orgulho; isto é porque, em lugar dos sete
pecados capitais, fontes originais de todos os outros, eles
contam oito[1]. Mas são Gregório, com justiça denominado O
Teólogo, e alguns outros doutores, não marcaram senão sete;
eu partilho desta opinião. Com efeito, quem é aquele que,
tendo com felicidade triunfado sobre a vanglória, permanece
ainda sob o jugo do orgulho? É preciso confessar, no entanto,
que entre esses dois vícios existe a diferença que notamos
entre uma criança e um homem feito, entre o fermento e o pão;
pois a vanglória pode ser vista como o princípio do orgulho,
e o orgulho como a temível perfeição da vanglória. Ora, como
aqui se apresenta a ocasião para falar deste vício, diremos
algumas coisas sobre esta paixão ímpia que de tal modo infla
o coração de que é possuído por ela. Trataremos em poucas
palavras do seu início e dos seus últimos graus; pois quem
quisesse esgotar a matéria a este respeito se assemelharia a
um homem que pretendesse conhecer exatamente o peso do vento.
2. A vanglória, considerada em sua espécie e sua forma, é uma
paixão da alma que busca mudar a natureza das coisas, a
corromper a virtude e afastar as censuras e as reprimendas;
e, considerada nas suas propriedades e em seus efeitos, é um
vício que não tende senão a dissipar os frutos de nossos
trabalhos, suores e penas, a nos lançar armadilhas para nos
arrebatar o tesouro de nossas boas obras, a nos fazer cair na
infidelidade e no orgulho, a nos fazer experimentar um triste
naufrágio no porto mesmo da salvação, a morder e consumir
nosso coração e, semelhantemente à formiga, que não passa de
um mísero inseto, a devastar a colheita preciosa de nossas
virtudes. A formiga espera que a colheita seja ajuntada, e a
vanglória, que as virtudes sejam adquiridas; a formiga ataca
os grãos, e a vanglória as boas obras.
3. O demônio mal consegue conter sua alegria quando percebe
que os homens multiplicaram suas iniquidades; mas – creiamme! – o demônio da vanglória triunfa quando vê um tesouro de
virtudes em alguém: pois ele não ignora que, se um grande
número de feridas espirituais é capaz de precipitar uma alma
nos horrores do desespero, um grande número de boas obras é
igualmente capaz de atirar outra alma à servidão da
vanglória.
4. Prestem atenção, e descobrirão que, mesmo no
as cinzas, esta miserável dominadora ainda quer
a magnificência dos hábitos e das vestes, com o
essências e dos perfumes, com a pompa das
louvores e de outras coisas do gênero.
túmulo e
se ornar
bom odor
honras,
sob
com
das
dos
5. Se o sol distribui seus raios benfazejos sobre todas as
criaturas, a vanglória derrama seu veneno sobre todas as boas
obras. Jejuo? Encho-me de vaidade; rompo meu jejum para
subtraí-lo ao conhecimento dos irmãos? Gabo-me interiormente
por minha rara prudência. Apareço em público com trajes
apropriados e belos? Sou vão e orgulhoso; troco-os por
outros, vis e miseráveis? Glorifico a mim mesmo. Tanto minhas
palavras como meu silêncio me fazem igualmente cair nas
armadilhas do amor próprio. É assim que podemos comparar a
vanglória a um “pé de corvo[2]” que, de qualquer lado que
caia ao ser jogado, apresenta sempre uma ponta para perfurar
o pé dos inimigos.
6. O vaidoso é um crente idólatra; pois, de um lado, ele
parece adorar a Deus, mas, de outro, é à criatura que ele
dirige suas homenagens.
7. Todo amigo que persegue a vaidade, não
divulgar a si próprio vantajosamente perante o
observa o jejum, se se dedica aos exercícios da
é sempre para atrair os elogios dos homens; e é
seus jejuns não merecem nenhuma recompensa.
busca senão
exterior. Se
santa prece,
por isso que
8. O homem escravo da vaidade é duplamente infeliz: pois ele
aflige seu corpo com austeridades rigorosas, e não extrai daí
nenhum benefício.
9. Ora, quem poderia não se rir daquele que busca a
vanglória? Não o vemos durante a oração se atirar à alegria,
de maneira a fazer crer que seu coração está inundado de
prazeres celestes? Ou em prantos, para dar a entender que ele
está vivamente tocado pelos sentimentos de uma grande dor e
por afetos de uma ardente compunção?
10. Por uma bondade todas especial, Deus tem o cuidado de nos
esconder a visão de nossas boas obras; mas um adulador que
nos engana, nos abre os olhos para que as vejamos; e
infelizmente elas desaparecem assim que as vemos.
11. Um adulador é assim um ministro dos demônios, um mestre
do orgulho, um exterminador da compunção, um assassino de
virtudes, um guia no caminho do erro, conforme a palavra do
Profeta: “Meu povo, diz o Senhor, aqueles que o chama de
feliz não fazem mais do que enganá-lo[3]”.
12.[4]
13. Não é necessário nada menos do que uma virtude perfeita,
uma grande generosidade e uma coragem heroica para ser capaz
de suportar e digerir com paciência as injúrias e os ultrajes
com
que
nos
oprimem;
mas
é
preciso
uma
santidade
extraordinária para não se deixar prender pelas doçuras
envenenadas dos elogios. Eu vi pessoas que choravam seus
pecados, e que, vendo-se elogiadas por alguns irmãos, se
enfureciam contra eles; mas assim eles caíam de uma falta que
tentavam evitar, numa outra na qual não haviam pensado.
14. “Ninguém, disse o Espírito Santo, conhece o que existe
dentro do homem, se não for o espírito do homem[5]”. Esta
sentença deveria cobrir de vergonha e calar todos os que são
imprudentes o bastante e ousados para nos elogiar na nossa
cara dizendo-nos como somos felizes.
15. Dentre seus próximos e seus amigos, algum levantou alguma
calúnia contra você, na sua presença ou na sua ausência? Não
deixe de desculpá-lo com uma afeição sincera.
16. Certamente não é de pouca coragem que se necessita para
rejeitar para longe de si o veneno encantador dos elogios que
às vezes os homens prodigalizam, mas é preciso muito mais
para detestar e maldizer as que nos fazem os demônios; pois
estas são muito mais sutis.
17. Dificilmente eu acredito na humildade de quem se rebaixa
e despreza a si próprio na presença dos outros. Com efeito,
será penoso ou difícil suportar por algum tempo uma situação
em que nos colocamos por nossa própria vontade? Mas creio que
pratica realmente a virtude alguém que, oprimido por ultrajes
e injúrias, conserva pelo ofensor a mesma afeição que tinha
antes deste péssimo tratamento.
18. Observei um dia que o demônio da vanglória inspirara
certos pensamentos a um irmão, os quais foram revelados a
outro irmão, e que o mesmo demônio levou este último a
descobrir o primeiro segredo de seu coração, a fim de se
glorificar e se mostrar como um homem extraordinário, por um
profeta, numa palavra. Mas não é apenas nosso coração que o
cruel demônio da vanglória ataca diretamente: ele se serve
dos próprios membros de nosso corpo para envenenar nossa
alma. É por isso que ele lhe comunica movimentos leves e
fáceis.
19. Expulsem para bem longe de vocês e não se deixem tentar
pelo desejo que o demônio lhes inspira, de se tornarem
bispos, higoumenos, doutores, ou qualquer outra coisa
semelhante. Lembrem-se de que é difícil expulsar um cão
faminto da casa de um açougueiro.
20. Vê o demônio um monge penetrar na alegre paz da alma por
causa de sua vitória sobre as paixões? Logo ele tenta acabar
com sua feliz solidão para lançá-lo ao mundo. “Saia daqui,
ele lhe diz interiormente; o que faz você? Vá trabalhar pela
salvação das almas que perecem”.
21. Um é o aspecto do Etíope e outro o de uma estátua; é
assim que a vanglória que tenta os cenobitas não se parece
nem um pouco com aquela que trabalha contra os eremitas.
22. Os primeiros, quando o demônio percebe que chegam
estrangeiros à sua casa, os leva a correr a eles para recebêlos, atirando-se aos seus pés para os honrar e para humilhar
a si mesmos; mas interiormente eles estão cheios de orgulho,
e sua humildade é meramente exterior; seus modos são
hipócritas, suas palavras falsas e enganadoras e sua modéstia
é cheia de artifícios e traições. Com efeito, se eles chamam
a estes estrangeiros de seus senhores, seus protetores e
salvadores depois de Deus, é apenas porque observaram quem
eles são e o que carregam, e pensam que podem esperar deles
alguma coisa. Depois dessa primeira cerimônia, você os verá
exortando os irmãos que estão à mesa ao lado dos estrangeiros
para que mantenham a mais estrita temperança, enquanto tratam
os inferiores com rigor impiedoso. Então, embora em outros
tempos eles sejam frouxos e negligentes na oração, você os
verá fervorosos e cheios de ardor durante este santo
exercício; eles, que antes estavam sem voz para salmodiar,
agora se fazem ouvir com sons harmoniosos e bem articulados;
quem se deixava cair em letargia durante o ofício, agora está
longe de se entregar ao sono. Se nestes dias um deles preside
o coro, cuidará para que seu canto seja melodioso e
agradável; ele escolherá os trechos principais da salmodia, e
quer ser chamado de pai ou superior pelos irmãos, até que os
estrangeiros se retirem do mosteiro.
23. É também a vanglória que incha de modo exagerado o
coração dos religiosos que se veem elevados acima dos outros,
e que arranha com a inveja e consome em cólera o coração dos
que são inferiores e que estão obrigados a obedecer.
24. Muitas vezes a vanglória, em lugar das honrarias que se
deseja e se busca, não dá senão objetos de ignomínia e
confusão, pois ela costuma também cobrir com uma tola
vergonha aqueles que levou à cólera e às discussões.
25. Às vezes ela torna doces e pacientes diante dos demais
aqueles que normalmente são irascíveis e irritadiços.
26. Ela enche de alegria as pessoas que desfrutam dos dons e
dos favores da natureza, e se serve destes mesmos dons para
torná-las infelizes.
27. Já me aconteceu de ver este cruel demônio da vaidade
vexar e atormentar extraordinariamente um infeliz que era seu
escravo, e eis como: um pobre religioso tinha uma disputa com
outros religiosos; veio um estranho, e tentou caridosamente
restabelecer a paz e a união fraternal entre eles. Mas este
miserável religioso passou de um golpe das cadeias da ira
para as da vanglória, não podendo servir dois mestres ao
mesmo tempo, ou seja, a cólera e a vaidade.
28. Assim, que é escravo deste demônio cruel, e vive num
mosteiro, leva duas formas de vida; pois exteriormente ele
deve seguir os exercícios da comunidade, enquanto seu
espírito e seus pensamentos, seu coração e seus afetos
pertencem inteiramente aos costumes do século.
29. Dediquemo-nos unicamente a agradar a Deus, e provaremos
as doçuras puras e plenas da glória celeste, e não sentiremos
senão desgosto pelas falsas delícias da glória mundana; pois
eu não posso crer que seja capaz sequer de pressentir as
doces fruições que traz a glória do céu, alguém que não tenha
pisoteado a glória do mundo.
30. Mas acontece às vezes que, tendo permitido que nos
despojassem por causa da vanglória de todas as riquezas
espirituais que havíamos adquirido, por meio das boas obras,
caindo em nós e sinceramente retornados a Deus, sejamos
capazes, por nosso lado, de nos livrarmos e destroçarmos por
completo a vanglória. Assim é que vi muitos que, tendo
começado os exercícios da vida religiosa apenas por um
movimento de vaidade, mas que, tendo renunciado a este mau
começo, mudaram de inclinação e, por sua própria vontade,
tornaram o fim de suas vidas tão boas e santas quanto o
início fora mau e repreensível.
31. Jamais adquirirá ou possuirá os bens sobrenaturais e
celestes, quem só se glorifica nos bens naturais, tais como a
vivacidade, a agilidade, a ligeireza do espírito, uma
pronúncia fácil e agradável, um caráter excelente e outras
boas qualidades que nasceram consigo, sem que a pessoa as
tenha buscado com suas obras, industriosamente; pois “quem é
infiel
nas
pequenas
coisas,
será
infiel
também
nas
grandes[6]”.
32. Mas o que nos deve causar espanto é que encontramos
orgulhosos como esses que chegam a crer que mortificando sua
carne com jejuns e austeridades extraordinárias eles obterão
o resultado de encontrar a calma perfeita da alma, um tesouro
de bens celestes, a virtude de fazer milagres e o favor
especial de conhecer as coisas futuras. Mas, não sabem os
insensatos? Ignoram eles que tudo isto não se obtém nem com
trabalhos nem com suores, mas que é tudo fruto e recompensa
de uma profunda humildade?
33. Aquele que conta com os esforços que fez e os trabalhos
que suportou, para obter dons e favores, se apoia sobre um
fundamento bem fraco e ruim. Ao contrário, quem se considera
um devedor perpétuo junto a Deus logo se verá, mesmo contra
sua expectativa, enriquecido pelos dons celestes mais raros e
preciosos.
34. Cuidem, portanto, de acrescentar não dar fé às
insinuações pérfidas do demônio; pois ele é um enganador
ardiloso, e um insigne prestidigitador. Ele não deixará de
persuadi-los de que vocês devem dar a conhecer aos outros as
excelentes qualidades e as boas disposições de seus corações
para a virtude, e alardeá-las a fim de edificar e buscar por
este meio a salvação de muitos. Nesta tentação tão sutil, não
percam de vista as palavras do Evangelho: “De que servirá a
um homem ganhar o universo inteiro, se vier a perder sua
alma?[7]”. Nada traz a piedade mais depressa e eficazmente do
que a humildade e a simplicidade de nossas ações; pois estas
próprias virtudes consistem numa lição sólida e contundente,
suficiente para fazer os demais compreenderem o quão funesto
é se deixar levar pelo orgulho; não sei se seria possível
encontrar algo tão vantajoso e salutar.
35. Um homem, dos mais esclarecidos e mais capazes de
penetrar na obscuridade dos mistérios, confiou-me aquilo que
ele próprio uma vez observou: “Um dia, disse-me ele, quando
estava no meio dos meus irmãos, dois demônios terríveis, um
da vanglória e outro do orgulho, vieram se colocar entre nós.
O primeiro me tocou com o dedo e me incitou a contar aos que
estavam ali certas visões extraordinárias que eu tinha
presenciado, e algumas coisas que eu fizera no deserto; mas
ei afastei vigorosamente este espírito maligno, dirigindo-lhe
estas palavras: ‘Que aqueles que desejam me oprimir com o mal
sejam obrigados a recuar e fiquem cobertos de confusão[8]’. O
outro, que estava sentado à minha direita, me disse em
seguida ao ouvido: ‘Coragem! Coragem! Que bela ação você
acabou de fazer! Que demonstração de prudência e coragem, que
vitória você obteve contra minha mãe, que ousou ataca-lo!’.
Mas eu respondi a este com as palavras que se seguem àquelas
que eu dissera ao primeiro: ‘Aqueles que dizem: Coragem!
Coragem! Cubram-se da confusão que merecem![9]’”. Eu tomei a
liberdade de perguntar a este padre como era possível que o
orgulho tivesse origem na vanglória. Eis o que ele me
respondeu: “Os elogios que nos fazem inflam e elevam nossa
alma, e, quando ela se vê assim elevada, o orgulho se apodera
dela e a faz, por assim dizer, subir até o céu, para em
seguida precipitá-la no abismo”.
36. Existe uma glória que vem de Deus, segundo estas
palavras: “Eu próprio glorificarei, diz o Senhor, a todos os
que ,me glorificam[10]”. Mas também existe outra espécie de
glória que não chega senão por meio dos artifícios do
demônio, conforme aprendemos por esta sentença do santo
Evangelho: “Infelizes de vocês, quando os homens os louvarem
e disserem belas coisas a seu respeito[11]”. E observem que
mesmo a glória que vem de Deus pode se transformar em
vanglória, por causa das más disposições do coração. Vocês
conhecerão que é Deus quem os glorifica quando se convencerem
de que toda glorificação lhes será prejudicial, quando
tomarem todas as precauções razoáveis e prudentes para não se
entregar, e, em qualquer lugar em que estiverem, cuidarem
para ocultar suas boas obras e suas virtudes.
37. Vocês compreenderão que a glória que lhes fazem provém do
demônio do orgulho quando fizerem todas as suas ações com a
intenção e o desejo de serem vistos e admirados pelos homens;
pois esta paixão enganadora e impura nos sugere aparecer
ornados das virtudes que estamos longe de praticar, de modo a
representarmos falsamente aquilo que Jesus Cristo falou: “Que
sua luz brilhe diante dos homens, a fim de que eles conheçam
as boas obras que fizeram[12]”.
38. Muitas vezes Deus permite que tombem na ignomínia aqueles
que buscam com ardente desejo as honrarias e louvores, a fim
de lhes ensinar a renunciar à vanglória.
39. Se nós conseguirmos obter alguma vantagem sobre esta
paixão, será por termos castigado nossa língua, e porque
começamos a gostar das humilhações; e se banirmos do espírito
todos os pensamentos capazes de nos expor aos laços
envenenados deste vício, nossa vitória será bem mais
completa; enfim, se tivermos abnegação bastante para fazermos
na presença de todo mundo, e sem experimentar o menor
sentimento de vergonha ou pena, coisas capazes de nos
humilhar e nos cobrir de confusão aos olhos dos homens,
teremos chegado a triunfar perfeitamente sobre nosso inimigo.
Mas será este triunfo possível, considerando os inúmeros e
difíceis combates que teremos que sustentar?
40. Quando, por infelicidade, nos acontece de perseguirmos a
vanglória, ou de recebê-la sem a termos buscado, ou que, para
merecê-la, somos tentados a fazer certas exibições e certas
coisas, recordemos prontamente ao espírito o pensamento da
penitência que teremos que fazer e, no secreto de nossa
prece, representemo-nos fortemente o temor e o medo que
sentiremos se estivermos diante do temível tribunal do
Senhor: esta arma será de grande valia para resistirmos à
tentação. Nessas circunstâncias, seja nossa prece sincera e
poderosa! Mas se estes meios não forem suficientes, devemos
recorrer ao pensamento da morte e de nosso fim último. Enfim,
se todos estes meios sucessivamente empregados ainda forem
insuficientes, representemo-nos vivamente a ignomínia eterna
e imensa que será o justo castigo da vanglória, e tracemos
sobre nosso coração em caracteres inapagáveis estas palavras
de
eterna
Verdade:
“Aquele
que
se
exaltar
será
humilhado[13]”. Estejamos convencidos de que esta humilhação
que nos ameaça nos punirá por nossa vaidade, não apenas na
vida futura, mas também na presente.
42. Se as pessoas começarem a nos elogiar, ou melhor, a nos
enganar com sua adulação, lembremo-nos logo da multitude de
nossos pecado, e esta lembrança salutar fará com que nos
consideremos indignos de tudo o que está sendo dito e feito
para nos glorificar.
43. Acontece às vezes que, por uma bondade toda especial de
Deus, tendo resolvido conceder alguns favores a pessoas
ávidas de vanglória, ele as previne e lhes concede antes
mesmo que peçam. Ora, este terno e bom Pai agem assim para
que, não crendo haver recebido essas coisas em virtude de
suas orações, elas não fiquem vaidosas e não se tornem
orgulhosas.
44. Aqueles que possuem maior simplicidade no espírito e no
coração estão bem menos expostos do que os outros a este
vício pestilento; pois a vanglória é o inimigo mortal da
nobre simplicidade, e a mestra da hipocrisia.
45. Como uma lagarta, a vanglória engorda, toma asas e se
eleva nos ares; quando chega enfim ao último grau ela gera o
orgulho, que é o autor e o consumador de todos os vícios.
Quem sabe se preservar dessas coisas e se livrar da vanglória
está bem próximo da salvação; mas está longe da glória e da
sociedade dos santos, aquele que ainda permanece escravo
desta maldita paixão. Assim, aquele que subiu mais este
degrau, renunciando a todo sentimento de vanglória, já não
cairá no orgulho, vício abominável aos olhos do Senhor.
VIGÉSIMO SEGUNDO DEGRAU
Do tolo orgulho
1. O orgulho constitui uma renúncia a Deus, a descoberta por
excelência dos demônios, o desprezo pelos homens, a causa e o
princípio dos juízos temerários e das condenações injustas, o
filho impuro dos elogios, a marca de uma funesta esterilidade
das almas, o obstáculos à efusão dos dons celestes, o abrealas do endurecimento do coração, a causa fecunda das maiores
faltas, o forno ou a matéria da epilepsia espiritual, a fonte
inesgotável das cóleras, a porta da dissimulação e da
hipocrisia, a maior trincheira dos demônios, o fiel guardião
e o conservador irredutível de nossos pecados; a causa
funesta da desumanidade e da inflexibilidade do coração, a
extinção de todo sentimento de piedade e de compaixão e o
autor das leis duras e severas. O orgulho é um juiz
impiedoso, um inimigo mortal de Deus, e a raiz infame de
todas as blasfêmias.
2. O último degrau que atinge a vanglória dá existência ao
orgulho; o desprezo pelos outros, a insolente ostentação dos
trabalhos executados, o amor aos elogios e a aversão às
reprimendas, são estes os alimentos que o faz crescer; enfim,
a renúncia às graças e ao socorro de Deus, uma presunçosa
confiança
em
suas
próprias
forças,
estas
inclinações
diabólicas formam a temível perfeição do orgulho.
3. Queremos evitar cair no abismo cavado pelo demônio do
orgulho? Primeiramente, estejamos atentos para o fato de que
é por meio das ações de graças que damos a Deus que ele
costuma deslizar e estabelecer sua morada em nossos corações;
pois ele é bastante ardiloso e sabido pra tentar nos fazer
renunciar a Deus de um só golpe. Já vi muitas pessoas que,
enquanto rendem graças a Deus com a boca, erguem-se
interiormente contra ele com pensamentos de vaidade. Temos um
exemplo claro deste tipo de gente no fariseu do Evangelho.
Pois não era apenas com a boca, e não do fundo do seu
coração, que ele dizia a Deus: “Senhor, eu lhe dou
graças[14].”?
4. Ao vermos uma alma cometer qualquer falta que seja,
podemos dizer ousadamente que o orgulho morava em seu
coração,
vício.
e
que
esta
falta
é
a
triste
consequência
deste
5. Costumamos contar doze vícios que cobre nossa alma de
vergonha e de ignomínia. Ora, um grande homem me disse que o
orgulho, que é o décimo segundo, poderia sozinho ocupar o
lugar dos outros onze.
6. Um monge orgulhoso está sempre em oposição e em
contradição com os irmãos; mas que pratica a humildade
permanece na disposição contrária.
7. Os ciprestes fazem crescer seus galhos para o alto, e
jamais os abaixam para a terra; assim são as pessoas
dominadas pelo orgulho: elas ignoram o que é dobrar-se sob o
jugo da obediência.
8. O homem soberbo pretende dominar absolutamente seus
semelhantes; e ainda que saiba que esta dominação o conduzirá
à perda certa, ele prefere morrer a não dominar.
9. Uma vez que está escrito que “Deus resiste aos
soberbos[15]”, quem poderá sentir piedade e compaixão por
esses miseráveis? Se são abomináveis aos olhos do Senhor
aqueles a quem o orgulho mancha e profana, quem ousaria
pretender poder purificá-los?
10. As reprimendas e correções que lhes são feitas não passam
para eles de ocasiões para novas quedas, pois as tentações do
demônio os empurram sem cessar em novos pecados, e o abandono
de Deus acaba por endurecer seu coração. Os homens muitas
vezes conseguem a cura para os dois primeiros desses males
espirituais, ou seja, para a resistência ante as correções e
as tentações do demônio; mas não podemos dizer o mesmo do
endurecimento do coração, que é humanamente incurável.
11. Quem sente aversão por reprimendas e não as suporta,
prova que o orgulho lhe arranhou o coração. Ao contrário,
quem as busca por amor, mostra que está alegremente isento
desse vício.
12. Se o orgulho sozinho foi capaz de derrubar Lúcifer dos
mais altos céus para o abismo do inferno, não poderá a
humildade, sozinha também, nos elevar até os esplendores
celestes?
13. O orgulho nos mergulha na mais terrível miséria; pois ele
nos despoja vergonhosamente do mérito e dos frutos de nossos
trabalhos e de nossa penitência. “Eles gritaram pedindo
ajuda; mas ninguém se apresentou para salvá-los[16]”. E
também: “Eles se dirigiram diretamente ao Senhor, mas o
Senhor não os atendeu[17]”. Ora, esta infelicidade sem dúvida
não lhes aconteceu senão porque não trabalharam com humildade
para afastar de si a causa funesta dos males cuja libertação
pediam.
14. Um ancião muito versado na ciência das coisas espirituais
exortava um dia, cheio de caridade, a um irmão dominado pelo
orgulho a combater corajosamente este vício e a praticar a
santa humildade. Mas eis a resposta que o insensato lhe deu:
“Você se engana, meu pai; eu não sou aquilo que você crê: eu
lhe asseguro, eu não sou orgulhoso”. E o sábio ancião lhe
replicou: “Meu filho, você não poderia me dar uma prova mais
evidente de que você o é, do que afirmando que não o é”.
15. Assim sendo, é de grande importância para os que estão
sujeitos ao orgulho, que tenham um sábio e prudente diretor,
que escolham o modo de vida mais comum e mais desprezível,
que leiam assiduamente e meditem sempre sobre os belos
exemplos dos santos, e que tenham sem cessar sob os olhos as
ações que estes fizeram, ainda que lhes pareça estarem acima
das forças da natureza humana; estes meios consistem no
mínimo que os infelizes escravos do orgulho necessitam para
ter qualquer esperança de se verem livres desse vício.
16. É uma vergonha para todos nos glorificarmos de coisas que
não são nossas; e haverá menor vergonha em nos orgulharmos
dos dons que recebemos de Deus? Não é esta uma ação que
denuncia o último grau da loucura? Se você quiser se
glorificar, faça-o; mas que seja das ações que você fez antes
de nascer; porque tudo o que você fez depois de nascer são
dons de Deus, tanto quanto sua própria existência. Se você
quiser considerar como obra sua as virtudes que você
praticou, que sejam aquelas anteriores à união de sua alma
com seu corpo; as que você praticou depois são favores da
bondade do Senhor, tanto quanto a sua alma; e se você
sustentou alguns combates e fez alguns esforços, sem que seu
corpo tenha minimamente participado destes esforços e destes
combates,
ainda
consinto
que
você
possa
atribuir
exclusivamente a si próprio o mérito e a glória; mas não foi
seu corpo o instrumento por meio do qual você praticou tal ou
tal virtude, ou fez tal ou tal obra? Ora, certamente seu
corpo não lhe pertence; ele é de Deus, e foi ele que o deu a
você. Seus trabalhos, seus esforços e os efeitos que eles
produzem, tudo em você deve ser atribuído a Deus, como coisas
que a ele pertencem essencialmente.
17. Não cessem de desconfiar de vocês mesmos e de suas
próprias forças até que o soberano Juiz tenha pronunciado a
sua sentença; pois vocês viram no Evangelho que mesmo aquele
que já estava sentado à mesa da festa de bodas, foi expulso
da sala, e foi dada a ordem para que, atado de pés e mãos,
ele fosse atirado às trevas exteriores[18].
18. Não se elevem em seus corações, vocês que não passam de
barro e corrupção; lembrem-se de que uma infinidade de
espíritos
celestes,
criados
em
santidade,
foram
impiedosamente expulsos do céu por causa do orgulho.
19. Uma vez que o demônio conseguiu se estabelecer no coração
de quem se submeteu à sua vontade, ele começa a lhe aparecer
durante o sono, e mesmo quando acorda, seja sob o aspecto de
um anjo, seja na figura de um mártir, e revela a ele algum
segredo misterioso, fingindo lhe conceder algumas graças
preciosas. É assim que, enganando esses miseráveis e lhes
roubando o resto da fé e da razão, ele acaba por pô-los a
perder.
20. Não esqueçamos jamais que ainda que morramos mil mortes
por amor a Cristo, estaríamos ainda longe de quitar o que lhe
devemos, pois existe uma diferença infinita entre o sangue de
um Deus e aquele dos servidores deste Deus; é a dignidade,
não a substância desse sangue, que é preciso considerar.
21. De resto, se nos dermos ao trabalho de examinar
atentamente, e se compararmos somente a vida que levamos com
a vida de nossos pais que viveram antes de nós, os quais nos
apresentaram, em suas pessoas, modelos tão excelentes das
mais raras virtudes, e que brilharam, em seu século, como
astros radiosos, seremos forçados a confessar que realmente
não demos sequer um passo para caminhar sobre suas pegadas;
que somos bem pouco fieis no engajamento à nossa santa
vocação, e que continuamos a levar uma vida mundana e
profana. Um bem e verdadeiro monge é aquele cujo espírito e
cujo coração não se levantam na presença de objetos
sensíveis. Olhem-nos com o mesmo olhar que alguém que, ao ver
seus inimigos, os provoca para o combate e, quando os vê em
fuga, persegue-os como a animais selvagens. Assim é quem está
continuamente arrebatado por Deus e sente o desejo de se unir
intimamente a ele; este vê seus dias se prolongarem. Assim é
aquele para quem a prática da virtude se tornou tão natural e
familiar, quanto são para os mundanos a fruição corruptora
dos prazeres do sentidos. Assim é aquele que não cessa de ter
o olho de sua alma aberto para os movimentos de seu coração e
sobre toda a sua conduta. Assim é, enfim, aquele que desceu
ao abismo da humildade, e que sufocou e exterminou todos os
maus pensamentos que o demônio lhe inspirou um dia.
22. O orgulho nos faz esquecer os pecados que cometemos,
enquanto que a lembrança dos pecados produz em nós a
humildade.
23. O orgulho precipita uma alma na extrema miséria; pois nas
perdições dessa paixão insensata, ela imagina possuir grandes
riquezas, mas sua parte consiste apenas nas trevas; de modo
que esse vício execrável não apenas se opõe ao progresso que
a alma faria nas virtudes, como ainda, caso ela se eleve,
pouco ou muito, nos degraus da perfeição, ele a derruba com
espantosa rapidez.
24. O orgulho se parece com um pêssego cujo interior está
estragado e apodrecido, mas cuja pele é bela e agradável.
25. Um monge orgulhoso não necessita de outro demônio para
pô-lo a perder; pois ele mesmo é seu próprio demônio, seu
tentador e inimigo.
26. Assim como as trevas são diretamente contrárias à luz,
também o orgulho se opõe diretamente às virtudes.
27. Não é raro que um coração orgulhoso chegue a inventar
palavras blasfemas contra Deus, na mesma medida em que o
coração humilde é iluminado pela luz do céu.
28. Um ladrão detesta a luz; um orgulhoso despreza os mansos.
29. A maior parte dos orgulhosos, não sei como, por não
conhecerem a si próprios durante suas vidas, acreditam haver
obtido a paz perfeita da alma, e só chegam a perceber a
temível indigência em que se encontram na sua derradeira
hora.
30. Quem é escravo do orgulho precisa tanto do socorro de
Deus para se libertar desta escravidão, que nem todos os
homens juntos seriam capazes de romper suas cadeias e lhe
conceder a liberdade.
31. Tendo um dia descoberto que este sedutor penetrara no meu
coração por meio da vanglória, e que aí se encontrava
aninhado, eu amarrei a ambos com as correntes da obediência e
lhes bati com o açoite da humildade, para que confessassem
como e por quais vias haviam penetrado em minha alma. Muito
contra a sua vontade, eles o disseram nestes termos: “Nós não
sabemos qual a causa que nos faz nascer, porque estamos à
frente de todos os vícios; somos nós que produzimos todos
eles, e que estamos em primeiro lugar. O quebrantamento do
coração, que nasce da obediência, nos contraria muito e se
opõe fortemente aos nossos projetos, de modo que não
costumamos obedecer a ninguém. É por este motivo que um dia
nos revoltamos contra o próprio Deus: porque queríamos reinar
sobre os céus. Para dizê-lo em uma palavra, somos as mães de
todas as paixões e de todos os vícios que fazem a guerra
contra a humildade, e os inimigos irreconciliáveis de tudo o
que pode favorecer esta virtude; se, como vocês sabem,
chegamos a ter tanto poder no céu, como serão vocês capazes
de se subtrair ao nosso domínio sobre a terra? Jamais
deixamos de tentar os homens, quer tenham sofrido com
paciência e resignação as afrontas e os ultrajes, quer jamais
tenham transgredido as regras e os deveres da obediência,
quer tenham reprimido os movimentos da cólera e da
impaciência, quer tenham esquecido por completo as injúrias
recebidas, quer, enfim, que, tenham cumprido todas as suas
obrigações com uma ardente caridade, e prestado todos os
serviços possíveis aos seus irmãos. Nossos filhos são a
cólera, a inveja, a maledicência, o azedume, a animosidade,
as disputas, as injúrias, a hipocrisia, a aversão, o amor
pela própria conduta e a resistência aos conselhos e às
ordens dos superiores. Não existe senão uma única coisa capaz
de paralisar nossas forças e tornar nossos esforços inúteis,
e esta coisa só lhe diremos o que é porque não temos
alternativa: consiste em se acusarem perante o Senhor,
reconhecendo-se continuamente culpados e criminosos a seus
olhos. Este recurso nos tornará tão míseros e frágeis como um
teia de aranha. Não percebem vocês, disse o orgulho, que a
vanglória é como que um cavalo sobre o qual venho montado?
Mas a santa humildade e a confissão sincera dos pecados rirse-ão do cavalo e do cavaleiro, e cantarão um maravilhoso
cântico de ação de graças, dizendo com Moisés: ‘Cantemos um
hino em louvor ao Senhor; pois ele fez ver a magnificência e
o brilho de sua glória, precipitando no mar o cavalo e aquele
que o montava[19]’”. O homem que logrou subir a este vigésimo
segundo degrau é cheio de força; mas quantos existem, capazes
de chegar até aqui?
VIGÉSIMO TERCEIRO DEGRAU
Dos inexplicáveis pensamentos de blasfêmia
1. Observamos no degrau precedente que a blasfêmia é a filha
criminosa de um pai criminoso, o execrável orgulho; por esta
razão, julgamos ser cabível falar dela aqui; pois a blasfêmia
não é um dos nossos menores inimigos, mas um dos mais
perigosos e mais funestos, pela dificuldade e o trabalho que
temos em expô-lo ao nosso médico espiritual numa confissão
sincera e verdadeira. Semelhante ao verme que rói a madeira,
este vício rói e destrói a esperança, que acaba por
precipitar a alma no desespero.
2. Assim é que ao mesmo tempo em que estamos celebrando os
divinos mistérios, no momento em que se realiza o mais santo
e temível de todos os nossos mistérios sagrados, que o mostro
do orgulho, este demônio abominável, chega para nos inspirar
pensamentos de blasfêmia para insultar nosso Senhor e nos
fazer
profanar
o
augusto
sacrifício;
por
causa
das
circunstâncias do momento sabemos que esses pensamentos
blasfemos não provêm de nossa alma, mas do demônio, este
inimigo irreconciliável de Deus, que mereceu ser expulso do
céu por ter pretendido, com suas blasfêmias, profanar a
terrível majestade do Senhor: pois se esses pensamentos de
blasfêmia que nos fazem tremer de horror viessem de nós, como
poderíamos adorar este dom celeste que recebemos? Poderíamos
nós bendizê-lo e amaldiçoá-lo ao mesmo tempo?
3. E no entanto o demônio, este insigne enganador, este cruel
assassino de almas, levou muitos à loucura e à extravagância
por meio desta temível tentação. Com efeito, e lembrem-se bem
disto, não há pensamento que possamos descobrir com mais dor
e repugnância do que esses pensamentos blasfemos. É assim que
um grande número de pessoas se deixa degradar no coração. E
no entanto não existe nada que possa dar ao demônio maior
domínio e força a esses maus pensamentos para prejudicar
nossa alma, do que sofrê-los e mantê-los guardados em nós.
4. Mas que ninguém pense que somos sempre culpados por ter
estes assustadores pensamentos! Deus enxerga o fundo dos
corações. Ele sabe quando eles não são obra nossa, mas dos
nossos inimigos. Mas devemos observar que, assim como a
embriaguez é a causa dos embriagados sofrerem quedas, também
o orgulho é frequentemente a causa funesta desses pensamentos
ímpios; e que, se caímos de bêbados, isto não é um pecado em
si, mas algo que cometemos por nos termos embriagado; e o
mesmo pode ser dito do orgulho e dos pensamentos de
blasfêmia, dos quais ele costuma ser a causa e o princípio.
5.[20]
6. Estes pensamentos vêm nos atacar principalmente durante
nossas orações; e logo se vão e desaparecem, depois destes
santos exercícios. Se não quisermos nos cansar, não percamos
tempo tentando combatê-los; o melhor meio de se livrar deles
é ignorando-os.
7. Este inimigo não se contenta com apenas produzir em nós
pensamentos de blasfêmia contra Deus e as coisas santas. Ele
nos inspira ainda os pensamentos mais vergonhosos e mais
obscenos, a fim de abandonarmos a oração e nos entregarmos ao
desespero. É assim que ele conseguiu desviar muitas pessoas
da participação na divina Eucaristia, em diversas ocasiões.
8. Este cruel tirano conseguir fazer sucumbir a muitos,
fazendo-os praticar excessivos jejuns e não lhes dando trégua
nem repouso. E o demônio da blasfêmia se conduz assim não
apenas em relação às pessoas do mundo, mas também para com os
religiosos e os solitários. Ele os faz acreditar que não
existe mais esperança de salvação para eles, e que são mais
infelizes do que os infiéis e os pagãos.
9. Quem se sente perturbado e fatigado pelo demônio da
blasfêmia e que deseja se livrar dele, comece por se
convencer de que não é de seu coração que nascem e se
levantam esses pensamentos tenebrosos, mas do próprio demônio
que, ao mostrar um dia a Jesus Cristo todos os reinos do
mundo, teve a insolência de dizer ao divino Salvador: “Eu lhe
darei todas essas coisas, se você, prosternando-se, me
adorar[21]”. Assim, devemos desprezar seus ataques, pisoteálo, não lhe dar nenhuma atenção e nos contentar com a
resposta que lhe nosso Senhor: “Retire-se, Satanás! Porque
está escrito: Você adorará apenas ao Senhor seu Deus, e só a
ele servirá[22]”. E complete, dizendo: “E quanto às palavras
e aos esforços que você faz para me desequilibrar, tudo
recairá sobre você mesmo; sim, infame, é sobre sua cabeça que
cairão, no tempo presente e por toda a
blasfêmias que você pretende me inspirar”.
eternidade,
as
10. Quem quiser empregar outras palavras se parecerá a alguém
que pretende capturar um raio com suas mãos. Com efeito, como
agarrar, combater e expulsar um inimigo que atravessa nosso
coração num piscar de olhos, que corre como o vento e que
desaparece mal acaba de nos falar. Os outros inimigos
permanecem firmes diante de nós, resistem aos nossos
esforços, defendem-se longamente e nos deixam reconhecer o
campo de batalha; mas este tem outra conduta e segue outro
perfil: ele se retira assim que se apresenta e desaparece
quase no mesmo momento em que nos ataca.
11. Eles têm inclusive o costume de fazer esta guerra aos
corações mais cheios de simplicidade e os mais ornados da
virtude da inocência, porque sabem que estes são, mais do que
os outros, capazes de se perturbar e se desconcertar com
esses pensamentos detestáveis. Eu devo dizer a este tipo de
pessoas que os pensamentos de blasfêmia não lhes ocorrem por
causa do orgulho que poderia reinar em seus corações, mas por
causa do ciúme e da inveja dos demônios, que tentam
prejudicá-las.
12. Para nós, a quem o espírito do orgulho leva a
condenar nossos irmãos, deixemos de concluir de
este espírito, e logo não precisaremos mais
tentações e os pensamentos de blasfêmia; pois, não
sua verdadeira causa se encontra nos julgamentos
que o orgulho nos leva a fazer sobre os demais.
julgar e a
acordo com
temer as
duvidemos,
temerários
13. Assim como uma pessoa fechada em sua casa ouve as
palavras daqueles que passam, mas não as pronuncia, também
uma alma fechada em si mesma escuta as blasfêmias do demônio,
mas não as articula; ao contrário, fica espantada.
14. Para se libertar disso e não mais ser perturbada, a alma
não tem mais do que as desprezar; pois, como dissemos, quem
buscar outra conduta tentará combater com força este demônio
e acabará por sucumbir e se tornar seu escravo. Pretender
vencê-lo e triunfar sobre ele por meio da razão e de
raciocínios equivale a querer deter o vento.
15.
Um
monge
virtuoso,
tendo
sido
atormentado
por
este
demônio pelo espaço de vinte e cinco anos, não deixara jamais
de mortificar seu corpo com vigílias longas e contínuas e com
jejuns
muito
rigorosos;
mas,
vendo
que
todas
essas
austeridades não tinham efeito contra essa cruel tentação,
ele escreveu num papel todas as perturbações que lhe eram
causadas, e o confiou a um santo religioso que ele conhecia.
Chegando até ele, prosternou-se com o rosto no chão, sem
ousar erguer os olhos. Depois que este santo religioso leu o
que ele havia escrito, sorriu docemente, e levantando seu
caro irmão, lhe disse: “Filho meu, coloque sua mão no meu
pescoço”, coisa que o outro fez prontamente. Depois ele
acrescentou: “Meu irmão, tomo sobre mim seu pecado, tanto no
passado como no futuro; a única coisa que eu exijo de você, é
de não mais pensar nem se penalizar por isso”. Ora, foi este
mesmo bom religioso que me contou o que lhe acontecera, e ele
me assegurou que mal havia saído da cela do ancião e toda a
tentação desparecera, e que todos os pensamentos de blasfêmia
que por tanto tempo e tão cruelmente o fatigaram haviam
desaparecido como fumaça. Assim eu o repito, para a instrução
dos que se encontram no mesmo estado: e foi ele próprio, a
quem sucedeu este fato, que me contou o ocorrido, com grandes
sentimentos de reconhecimento a Deus. Quem tiver conseguido
triunfar sobre esta tentação, conseguiu também vencer o
orgulho e expulsá-lo para bem longe do seu coração.
VIGÉSIMO QUARTO DEGRAU
Da mansidão, da simplicidade e da inocência, virtudes que não
provêm da natureza,
mas que são adquiridas com obras; e da maldade, que é a
inimiga irreconciliável das virtudes
1. A aurora precede o sol; o mesmo se pode dizer da mansidão
em relação à humildade. Escutemos a luz que nos ensina com as
palavras: “Aprendam comigo que sou manso e humilde de
coração[23]”. Convém assim, antes de falarmos de humildade,
que é um sol verdadeiro, dizermos alguma coisa sobre a
mansidão, que é como a aurora desta virtude, a fim de que,
esclarecidos por esta luz que possui menos brilho, possamos
pouco a pouco nos acostumar a fixar os olhos sobre o belo sol
da humildade; pois uma pessoa não é capaz de fixar este sol,
se não puder primeiro sustentar os raios da aurora. Tal é a
ordem que devemos estabelecer entre essas duas virtudes.
2. A mansidão consiste numa constante imobilidade de nossa
alma, que faz com que não sejamos agitados nem por honrarias,
nem perturbados com humilhações.
3. Ela consiste em orar sinceramente e sem perturbação, por
todos os que buscam fazê-lo por seus procedimentos injustos.
4. Ela é semelhante a um rochedo majestoso no meio do mar
agitado; as ondas espumantes se quebram e expiram contra seus
flancos inquebrantáveis.
5. Ela é a guardiã da paciência, a porta do amor, ou antes
sua mãe, o princípio da prudência e do discernimento, segundo
as palavras do Profeta: “Sobre quem reterei meu olhar, diz o
Senhor, senão sobre aqueles que são doces e amáveis, sobre os
que possuem um coração contrito e aflito?[24]”.
6. A mansidão forma e aperfeiçoa a obediência, conduz e
dirige as comunidades religiosas, detém e corrige a cólera,
expulsa e faz morrer a impaciência, nos faz caminhar sob os
estandartes de Cristo, nos concede a semelhança com os
habitantes dos céus, acorrenta os demônios, faz recuar os
traços de aversão e animosidade.
7. O Senhor estabelece sua morada numa alma que pratica a
mansidão, enquanto que o demônio fixa a sua naquela que é
agitada.
8. “Os mansos possuirão a terra[25]”, vale dizer, eles serão
os mestres e dominadores, enquanto que as pessoas coléricas e
furiosas serão exterminadas.
9. Uma alma cheia de doçura é o leito nupcial da
simplicidade; mas um espírito de cólera e violento engendra
toda sorte de maldades.
10. Uma alma amiga da mansidão compreende e saboreia as
palavras de sabedoria; pois “o Senhor, que é cheio de
mansidão, dirigirá os corações doces e benevolentes na
ciência do julgamento, e lhes ensinará seus caminhos[26]”.
Ora, estes são os caminhos da prudência e da discrição.
11. Uma alma reta é companheira da humildade; mas uma alma
falsa e enganadora é a triste escrava do orgulho.
12. Uma alma que pratica a mansidão, possui a verdadeira
ciência; mas um coração impaciente desfalece nas trevas da
ignorância.
13. Dois homens se encontraram um dia: um era escravo da
cólera, e o outro, da mentira. Ora, estes dois não puderam
estabelecer uma conversa conjunta: pois no colérico só havia
loucura e demência, e só malícia no dissimulado.
14. A simplicidade é um costume feliz que torna a alma
incapaz de duplicidade e de todo pensamento mau e pernicioso.
A malícia é a ciência, ou melhor, a parte dos demônios, que
torna a pessoa inimiga de toda verdade, a ponto de que ela
poderia não apenas mascarar a si mesma, como ocultá-la dos
demais.
15. A inocência é o estado de uma alma tranquila e distante
de todo pensamento artificioso e malfeitor.
16. A retidão é uma intenção sincera e isenta de inutilidades
e de curiosidade; é uma inclinação franca e sem mistura; é
uma linguagem natural, ingênua e inimiga de toda fraude e de
toda simulação.
17. Não pode ser um enganador, o homem que sincera,
francamente e sem desvios vive, age e fala com todo mundo.
18. A malícia é uma ausência de verdade e de retidão; é uma
inclinação à perversidade, aos pensamentos enganadores, às
palavras mentirosas, às ações dissimuladas, aos juramentos
falsos, aos equívocos e às ambiguidades.
19. um coração mentiroso é escondido e cheio de cavidades
profundas e impenetráveis; ele está dedicado ao hábito de
mentir, de se elevar acima dos outros, de fazer a guerra
contra a humildade, de imitar a penitência, de expulsar o
pranto de arrependimento, de ter horror a sentir-se confuso
pelas faltas cometidas, de defender obstinadamente seu
sentimento,
de produzir a ruína e a perda das almas, de
impedir que elas saiam do abismo da infelicidade por meio da
penitência, de ironizar aqueles que, por amor a Deus, sofrem
com paciência e mansidão as injúrias e os ultrajes.
20. Um coração desonesto não possui senão uma modéstia
afetada e extravagante, uma piedade falsa e enganadora;
resumindo, a vida do coração desonesto é a vida de um
demônio; pois o demônio e o homem desonesto não são apenas
unidos pela conformidade de suas vontades, eles o são ainda
pela identidade de um mesmo nome.
21. Com efeito, não é verdade o que nos ensinou Cristo na
admirável oração que nos legou? Não nos ordena ele pedirmos a
Deus que nos livre dos desonestos, ao pedir que nos livre do
mal?
22. Fujamos com horror do precipício da hipocrisia e do
abismo da dissimulação e da duplicidade, e prestemos especial
atenção
a
estas
palavras
de
Davi:
“Os
maus
serão
exterminados, eles secarão como a relva[27]”. Pois eles se
tornarão pasto dos demônios.
23. Mas Deus, que, nas divinas Escrituras, é chamado de amor,
é também denominado de equidade. É assim que diz o sábio à
alma pura, no Cântico dos Cânticos: “O Deus de equidade a
amou[28]”; e Davi, pai de Salomão, havia dito: “O Senhor é
doce e direito[29]”; e para nos fazer compreender que serão
salvos os que trazem o mesmo nome por causa da mansidão, está
escrito: “Eu esperei o socorro do Senhor que salva os que
possuem o coração reto[30]”; e também: “Seus olhos estão
atentos para olhar o pobre cujo coração é reto, e seu rosto
se volta para aquele em quem reina a equidade[31]”.
24. A primeira virtude, ou melhor, a primeira qualidade que
observamos numa criança, é a simplicidade. Enquanto Adão se
manteve na prática desta preciosa virtude, ele não viu sua
alma despojada dos dons que Deus lhe concedera, nem
enrubesceu por causa da nudez de seu corpo. Boa e vantajosa,
sem dúvida, é a simplicidade que algumas pessoas receberam da
natureza; mas ela ainda é inferior àquela que adquirimos com
nossos cuidados e com um trabalho obstinado, trinfando sobre
nossa própria malícia: pois, se a primeira nos preserva de
toda dissimulação, de toda fraude e de toda afetação, a outra
nos traz uma profunda humildade, uma doçura perfeita e todas
as virtudes. É por isso mesmo que a simplicidade que nos vem
da natureza não receberá senão uma pequena recompensa, e
aquela que nos vem da graça e de nossos esforços receberá um
prêmio que não se pode conceber nem expressar.
25. Assim, quem quer que sejamos, se quisermos nos unir
fortemente a nosso Senhor, devemos nos apresentar diante dele
como de um mestre excelente de quem iremos receber as
instruções de que necessitamos. Aproximemo-nos dele com
simplicidade e candura, sem artifício nem dissimulação, sem
curiosidade nem malícia; pois, como sua natureza é toda
santa, toda pura e perfeitamente simples, ele pede que as
almas que dele se aproximam que sejam puras, santas e cheias
de simplicidade. Vocês alguma vez já viram a simplicidade
separada da humildade?
26. O homem em cujo coração reina a malícia, se ocupa
indevidamente em fazer conjecturas sobre os outros, e em
pretender poder descobrir em suas palavras os pensamentos de
seu espírito, e na posição e movimentos de seu corpo os
segredos do seu coração.
27. Vi muitas pessoas cheias de inocência e de simplicidade
que, pelas relações funestas com pessoas maliciosas, se
tornaram semelhantes a estas; e sempre me espantei que estas
pudessem por a perder em tão pouco tempo pessoas tão
virtuosas, esta bela qualidade que haviam recebido da
natureza, e que era uma prerrogativa de sua inocência, vale
dizer, sua simplicidade feliz.
28. É tão fácil às pessoas de bem se perverter e se perder,
quanto é difícil aos maus se converter e se corrigir;
entretanto, a fuga real do mundo, uma retirada salutar, o
amor e a prática do silêncio e da obediência, puderam muitas
vezes,
mesmo
contra
toda
esperança,
curar,
e
curar
perfeitamente, as almas de certas enfermidades que pareciam
incuráveis.
29. Se é verdade que a ciência infla o coração da maior parte
dos homens, é igualmente verdadeiro que uma alegre ignorância
e a inexperiência servem para torná-los doces, tímidos e
humildes. São Paulo, denominado o Simples, pode nos servir de
exemplo e nos dar uma ideia exata e um modelo perfeito da
santa e bem-aventurada simplicidade; pois alguém já viu, ou
ouviu falar que se tenha visto, ou mesmo que seja possível
ver um homem se tornar em tão pouco tempo perfeito na
simplicidade do coração?
30. Podemos comparar um monge que vive na simplicidade a um
animal de carga que, possuindo a razão e partilhando da
obediência, mas que, por obediência, se confiasse ao seu
condutor. Ora, assim como este animal não resiste ao seu
mestre a partir do momento em que se liga a ele, também o
religioso que possui um coração reto não resiste às ordens de
seu superior: ele o segue por onde este quiser conduzi-lo;
ela sequer é capaz de raciocinar nem repugnar-se: ele obedece
até a morte.
31. Se “dificilmente os ricos entrarão no Reino dos
céus[32]”, podemos dizer o mesmo dos homens sábios dessa
sabedoria mundana, que não é outra coisa que uma verdadeira
loucura; também eles dificilmente entrarão no sagrado palácio
da simplicidade.
32. Muitas vezes uma grande queda corrigiu homens maus, os
fez observar as regras da modéstia, de sorte que, mesmo
contra sua vontade, ela lhes trouxe a salvação, fazendo-os
adquirir a inocência e a simplicidade.
33. Portanto, combatam corajosamente, e tomem todos os
cuidados para se despojarem da falsa sabedoria do século;
assim se conduzindo, vocês encontrarão em nosso Senhor Jesus
Cristo a salvação e a retidão do coração. Quem tiver a força
para subir este degrau, que se encha de coragem; com efeito,
tendo imitado a Cristo, ele obteve a salvação.
VIGÉSIMO QUINTO DEGRAU
Da Humildade, que traz a morte a todas as paixões
1. Quem pretender explicar os sentimentos que dá a caridade,
e os efeitos que ela produz, segundo toda a intensidade e o
ardor que lhe são próprios – a saber, os da humildade,
segundo seus profundos rebaixamentos; os da castidade,
segundo sua excelência celeste; os da iluminação divina,
segundo todo o brilho de seus raios e de sua luz; os do temor
a Deus, segundo os movimento que ele traz; os de uma firme
confiança em Deus, segundo a ternura e a imobilidade de seus
olhares – e fazer compreender por meio de palavras claras e
precisas, a quem jamais teve nem o sentimento nem o gosto das
doçuras inexprimíveis desses dons e dessas virtudes, no que
consistem uns e outros: esta pessoa se parecerá sem dúvida a
alguém que, apenas por meio de palavras e de comparações,
tentasse fazer conceber a doçura do mel a quem jamais tenha
provado dele. Não é evidente que todo esse trabalho e todas
essas palavras terão sido em vão? Não diremos outra coisa do
segundo, mas acrescentaremos que o primeiro, ou ignora o que
deve dizer e é um insensato, ou sabe do que está falando, e
então é um temerário e um orgulhoso.
2. É por isso que aqui não quero mais do que mostrar este
tesouro oculto e encerrado em vasos frágeis, ou antes na
fragilidade dos homens, a fim de reconhecer as demais
virtudes que ele contém, pois não tenho a temerária pretensão
de fazê-los compreender do que se trata; nenhuma palavra
seria capaz de lhes dar uma verdadeira ideia do que é, nem
sua excelência e suas qualidades. Já seu título e sua
inscrição são incompreensíveis ao espírito humano, pois são
inteiramente celestes; e aqueles que tentaram compreendê-los
se meteram em penas e pesquisas infinitas e vãs. Pois “santa
humildade” são as duas palavras que resumem a expressão deste
tesouro espantoso.
3. Que todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus
venham conosco e entre na prática desta virtude, como um
conselho espiritual e cheio de sabedoria; que tragam não
apenas as mãos do corpo, mas também as do intelecto, as
tábuas dos conhecimentos que o próprio Deus gravou em seus
corações; e, assim reunidos, examinaremos juntos qual é o
sentido e a virtude desta inscrição tão venerável. Um dirá,
sem dúvida, que a humildade é o esquecimento constante e
perfeito das boas obras; outro, que ela consiste em se ver
como o último dos homens e o maior dos pecadores; outro
afirmará que ela é o conhecimento exato que temos de nossa
fraqueza e de nossa fragilidade; outro ainda, que ela nos
conduz a que nos antecipemos aos nossos irmãos, a fim de nos
reconciliarmos
perfeitamente
com
eles
e
resistirmos
vitoriosamente a uma cólera nascente, por meio da paciência e
da submissão; este sustentará que a humildade é uma confissão
sincera e um reconhecimento público que fazemos das graças
que recebemos de Deus, e das misericórdias infinitas que ele
demonstra a nosso respeito; aquele, que ela consiste no
sentimento de um coração arrependido e contrito e na recusa
inteira da própria vontade. Quanto a mim, sou forçado a
confessar que depois de ter ouvido todas essas definições da
humildade e de ter meditado atentamente a respeito delas,
ainda me é impossível entender toda a extensão desta virtude.
Assim, tudo o que posso fazer aqui é, sendo o último e o
menor de todos, juntar como um cachorrinho as migalhas da
mesa,
vale
dizer,
da
boca
desses
homens
sábios
e
esclarecidos, e dizer que a humildade é uma graça preciosa
que Deus concede a uma alma, e que não pode ser expressa em
palavras, e que só é conhecida daqueles que dela tiveram uma
feliz
experiência;
que
se
trata
de
um
tesouro
incompreensível, que extrai seu nome do próprio Deus; que ela
é um dom divino, pois foi dito: “Aprendam, não de um anjo,
não dos homens, não de um livro, mas de mim, ou seja, da
presença, das luzes e da operação de meu Espírito em vocês,
eu que sou manso e humilde de coração, de espírito e de
vontade; e vocês encontrarão o repouso de suas almas[33]”,
pela cessação e pelo fim de todos os seus combates.
4. A humildade é uma vinha toda santa e toda espiritual; mas
ela
se
apresenta
sob
formas
diferentes,
segundo
as
circunstâncias e as estações. Assim é que ela não aparece no
inverno, vale dizer, no tempo em que as paixões agitam e
atormentam o coração, da mesma forma como na primavera,
quando a alma está mergulhada no perfume das virtudes; e não
na primavera como no verão, quando as virtudes alcançam uma
bem sucedida e perfeita maturidade. Estes diferentes pontos
de vista que podemos considerar na humildade tendem todos a
nos fazer ver e compreender que, nesta admirável virtude,
tudo é próprio para trazer à nossa alma as marcas e as provas
dos frutos preciosos e salutares que ela produz em nós. Com
efeito, quando as uvas desta vinha espiritual começam a
florescer em nosso coração, nós mesmos começamos, não sem
alguma pena, a detestar os elogios e a glória que nos vem das
criaturas, a rejeitar e expulsar para longe todo movimento de
cólera e de agressividade; mas quando esta rainha das
virtudes lança fortes e profundas raízes em nossa alma e aí
cresce e se fortifica, fazendo aí progressos estimáveis, não
apenas já não sentimos senão desdém por nossas próprias boas
obras, como ainda elas nos parecem tão vis e desprezíveis que
tomamos horror a elas; estamos persuadidos de que pela
dissipação dos dons de Deus aumentamos em nós a cada dia o
peso e o número de nossas prevaricações, e que esta
superabundância de graças, da qual nos sentimos indignos,
talvez só nos sirva, pelo mau uso que dela fazemos, para nos
condenar a castigos ainda mais severos. É por isso que nossa
alma permanece invulnerável sob os golpes dos inimigos, e
que, retirada na trincheira inexpugnável da fraqueza, ela
permanece tranquila e em paz, e escuta, sem se perturbar, os
gritos furiosos e ameaçadores dos ladrões, vê seus esforços e
suas tentações como jogos impotentes, e sabe que eles não a
podem atingir nem destruir; pois esse humilde sentimento de
nós mesmos é um cofre-forte onde estão encerradas todas as
virtudes, e que é defendido por cidadelas inexpugnáveis.
5. Essas são as coisas que eu ouso dizer sobre as primeiras
flores da humildade e dos primeiros frutos que ela produz
prontamente nomeio de suas flores perenes. Mas, quanto à
abundância e à qualidade dos seus frutos, não é possível
expressar em palavras, principalmente sua qualidade. Tentarei
apenas, e na medida em que puder, dizer-lhes alguma coisa das
propriedades admiráveis da humildade.
6. A penitência exata e verdadeira, as lágrimas derramadas
que lavam a consciência de toda mancha e a humildade daqueles
que começam a servir a Deus, são três coisas diferentes entre
si, como a farinha, a massa e o pão. Com efeito, a penitência
mói e reduz a pó uma alma contrita e arrependida; a água
salutar das lágrimas da unidade à massa e, se podemos dizer
assim, a modela com Deus; então, abrasada pelos ardores da
caridade, ela forma o pão sólido da humildade, e atira para
longe de si tudo o que é vão e todo inchaço do orgulho: o que
faz esta cadeia, composta por três anéis, é dar à alma uma
força sobrenatural e invencível, ou , para falarmos mais
claramente, esta íris celeste em três cores tem suas próprias
maneiras de agir e proceder, e propriedades que lhes são
essenciais e que lhe pertencem propriamente; de sorte que
tudo o que dissermos de uma destas cores ou de um desses
anéis valerá para todos. É por isso que aquilo que até agora
eu apenas indiquei, vou tentar explicar a seguir.
7. A primeira e excelente qualidade desta admirável trindade
consiste em suportar com um coração tranquilo, com alegria e
entusiasmo os desprezos e as humilhações, recebendo-as e
amando-as como um remédio adequado para curar nossa alma de
todas as suas enfermidades espirituais, e como um meio eficaz
para apagar e fazer desaparecer por completo todos os nossos
pecados. A segunda propriedade da humildade consiste em
triunfar perfeitamente sobre a cólera, e em não se servir
senão da moderação e da modéstia para derrubar e sufocar essa
paixão. A terceira propriedade, que é a mais perfeita,
consiste em crer interiormente e em estar convencido e
persuadido de que nada temos de bom, e em desejar com ardor
receber as instruções e as reprimendas capazes de nos fazer
adquirir algum bem.
8. Cristo, como sabemos, é a perfeição da lei e dos profetas
para a justificação daqueles que nele creem, enquanto que a
vanglória e o orgulho são a perfeição de todas as paixões
impuras para a perda dos que negligenciam combatê-las
corrigindo-se; assim como o cervo é inimigo mortal das
serpentes, a humildade é inimiga mortal das paixões e dos
vícios. É ela que preserva ou liberta de seu veneno funesto
todos os que a tomam como companheira fiel e constante. Com
efeito, quem jamais viu em sua companhia a hipocrisia e a
mentira? Poderia a serpente infernal habitar um coração no
qual reina a humildade? Não é justamente esta virtude
admirável que a arranca de nosso coração, a mata e destrói?
Os que a possuem não demonstram nenhum sinal de aversão, de
contradição, de arrogância nem de tergiversação; e, se os
vemos se exaltar eventualmente, será apenas porque perceberam
que a fé está em perigo.
9. Assim é que vemos aquele que se uniu à humildade pelos
laços de um casamento espiritual, manso e pacífico, levado à
compunção e à misericórdia, sobretudo calmo e tranquilo,
alegre e contente, pleno de condescendência e benevolência
para com os demais, cheio de fervor e de vigilância; numa
palavra, ele é vitorioso sobre todas as suas paixões,
conforme as palavras de Davi: “O Senhor lembrou-se de nós em
nossa humilhação e nos libertou das mãos dos inimigos[34]”,
ou seja, das nossas paixões e das sujeiras feitas à nossa
alma.
10. Um monge humilde está longe de pretender penetrar como um
curioso nos segredos de Deus; mas aquele cujo coração está
inflado de orgulho deseja até sondar a profundeza de seus
julgamentos incompreensíveis.
11. Um dia em que os demônios observavam de modo especial a
um dos mais sábios religiosos, e que lhe ofereciam
interiormente grandes louvores pela bondade de sua alma, ele
lhes respondeu com uma sabedoria admirável: “Se vocês
cessarem de me louvar a respeito do feliz estado de minha
alma, talvez eu possa crer que sou qualquer coisa de grande e
de bom; mas, fazendo-o do modo como fazem, os elogios que me
dirigem não servem senão para me fazer conhecer e sentir a
sujeira e a corrupção de meu coração; pois eu sei que é
imundo aos olhos do Senhor, o coração que se infla e se eleva
por sentimentos de vaidade. Assim, se vocês desejam que eu me
torne orgulhoso, calem-se e se retirem; e se quiserem que eu
me encha de humildade, continuem a me elogiar”. Batidos e
consternados com esta apóstrofe contraditória, os demônios
rapidamente fugiram e desapareceram.
12. Que suas almas, semelhantes a uma cisterna, não seja ora
cheia das águas vivificantes da santa humildade, ora
dessecada pelos ardores da vanglória e do orgulho, mas que
ela seja uma fonte inesgotável da qual a humildade produza a
calma das paixões e faça correr um riacho de pobreza
voluntária.
13. Saibam então, meus amigos, que é nos santos vales da
humildade que colhemos em abundância o trigo e os outros
frutos espirituais. Sim, as almas humildes são como vales
que, localizados no meio das montanhas dos trabalhos, das
penas e das virtudes, permanecem sempre baixos pelos
sentimentos que neles são alimentados pela visão de sua
baixeza e sua insignificância.
14. Observem que o salmista não diz: eu jejuei, eu passei as
noites em vigílias, eu repousei sobre a terra nua; mas ele
diz: “Eu me
salvou[35]”.
humilhei,
e
o
Senhor
me
libertou
e
me
15. Se a penitência e as lágrimas que ela nos faz derramar
têm o poder de nos elevar até o céu, é a humildade que nos
abre as portas desta morada feliz. É por isso que a
penitência, as lágrimas e a humildade formam uma respeitável
trindade na unidade da humildade que contém a todas elas, e
uma admirável unidade nesta espantosa trindade.
16. Assim como o sol ilumina todas as criaturas visíveis,
também a humildade afirma e aperfeiçoa tudo o que a piedade
nos inspira, e do mesmo modo como tudo está mergulhado em
trevas na ausência do sol, também sem a humildade nossas boas
obras fenecem e morrem.
17. Não existe lugar sobre a terra que jamais tenha visto o
sol, e muitas vezes um único bom pensamento basta para
produzir a humildade num coração. Assim como só haverá um dia
em toda a duração dos séculos no qual todo o gênero humano
será entregue à felicidade, também apenas a humildade será
sempre uma virtude inimitável pelos demônios.
18. Elevar-se, não se elevar e se humilhar são três coisas
bem diferentes. Com efeito, aquele que se eleva, imagina
julgar a tudo; quem não se eleva, não julga ninguém e condena
a si próprio; e quem se humilha, ainda que seja inocente,
considera a si mesmo culpado de tudo.
19. Existe ainda um diferença entre ser humilde, trabalhar
para se tornar humilde e louvar aqueles que se dedicam à
prática dessa virtude. A primeira dessas três coisas diz
respeito aos que atingiram a perfeição; a segunda, aos que se
submeteram sinceramente ao jugo da obediência; e a terceira é
característica de todos os cristãos.
20. Quando praticamos a humildade de todo coração, temos que
ter o cuidado de não perdê-la por causa da indiscrição das
palavras; pois a humildade não tem língua nem porta.
21. Quando um cavalo está sozinho num campo, ele parece
correr bem depressa; mas quando ele corre com outros cavalos
ele não parece o mesmo.
22. Pensem numa alma da seguinte maneira. Quando ela começa a
não se gabar dos dons e não se glorificar dos ornamentos que
recebeu da natureza, quando ela cessa de se comprazer com
essas coisas, isso é um sintoma feliz de cura e de humildade;
mas se ela ama respirar o vapor infecto do orgulho, então ela
não será de sentir os doces e suaves perfumes da humildade.
23. Aquele que me ama, diz a santa humildade, não deve fazer
reprimendas a ninguém, nem julgar a ninguém, nem dominar
pessoa alguma; e jamais ser fútil. Quem se une intimamente a
mim não terá outras leis senão aquelas que eu lhe ordenar.
24. Havia um religioso que fazia todos os esforços para
adquirir a humildade; um dia os demônios lhe inspiraram um
violento pensamento de vanglória; mas este santo e generoso
atleta repeliu violentamente essa tentação, servindo-se de um
piedoso estratagema que Deus lhe sugeriu. Ele se levantou de
repente e se pôs a escrever nas paredes de sua cela os nomes
das principais e mais eminentes virtudes, tais como a
perfeita caridade, a humildade angélica, a oração pura e
fervorosa, a castidade íntegra e sem mácula e outras
semelhantes. Toda vez que os pensamentos de orgulho voltavam
à carga para levá-lo ao vício, ele lhe dizia: “Vejamos nossos
juízes”. E, colocando-se diante dos nomes que havia, falava
alto para si mesmo: “Enquanto você não receber a sua parte de
cada uma dessas virtudes, você deve reconhecer que ainda está
bem longe de Deus”.
25. Ninguém jamais conseguiu conhecer nem explicar a natureza
e as qualidades constitutivas do sol, e nós só o conhecemos
pelos efeitos que ele produz.
26. Não devemos dizer o mesmo da humildade? Pois esta virtude
é um socorro divino; é um véu admirável que esconde de nós a
visão e o conhecimento de nossas boas obras; é uma
inteligência profunda e perfeita de nossa baixeza, que impede
que os ladrões se acerquem de nossa alma; é uma torre forte e
poderosa, da qual Davi falou, e que nos defende dos esforços
dos inimigos; enfim, é uma muralha que faz com que os filhos
da iniquidade não sejam capazes de nos prejudicar, e que
dissipa e coloca em fuga todos os que nos odeiam.
27. Mas, além dessas propriedades, ela possui outras que não
são menos admiráveis, e que a alma que tem a felicidade de
possuir essa virtude sabe distinguir muito bem. Ora, todas
essas qualidades, com uma única exceção, são sinais de sua
presença num coração. Assim, vocês poderão saber com uma
espécie de certeza que possuem a humildade, quando se virem
interiormente cheios de uma luz inexprimível, de uma amor
inenarrável pela oração e, sobretudo, quando esta virtude
purificar seus corações, ela os tornará incapazes de julgar e
de condenar seus irmãos, mesmo assistindo suas quedas e suas
faltas. O precursor de tudo isto é a aversão à vanglória.
28. O conhecimento de nós mesmos e das afeições mais secretas
de nosso coração semeiam e produzem em nós a santa humildade;
de tal maneira que, se não for por meio deste conhecimento
que a semeia em nossa alma, será impossível que ela aí cresça
e chegue a dar flor.
29. Com efeito, este conhecimento salutar nos traz o temor ao
Senhor, e este temor salutar nos conduzirá depressa à porta
da caridade.
30. Por isso podemos dizer aqui que a humildade é a porta do
Reino dos céus, que nele ela nos introduz e que é aos que
praticam esta virtude que o Senhor se referiu quando disse:
“Eles entrarão no céu e sairão da vida presente sem nenhum
temor, e encontrarão amplas pastagens e lugares cheios de
frescor[36]”. Os que pretendem entrar nos céus por outra
porta renunciam à sua salvação e se tornam assassinos de suas
almas.
31. Mas, para chegarmos a nos conhecer, tenhamos sem cessar
os olhos fixos em nós. E se, quando nos conhecermos,
estivermos bem convencidos de que os outros são melhores do
que nós, teremos algo em que pensar e crer que estamos bem
distantes ainda das misericórdias.
32. É impossível extrair fogo da neve; mas, será menos
difícil encontrar a humildade no coração de um heterodoxo, de
um obstinado filho do erro? Com efeito, não é a humildade um
bem próprio às pessoas piedosas e que levam uma vida pura e
irrepreensível?
33. Com facilidade dizemos que somos grandes pecadores, e
talvez até acreditemos nisso sinceramente; mas não será esta
confissão que nos fará saber e experimentar se nosso coração
é verdadeiramente humilde ou soberbo. São as humilhações e o
desprezo que nos darão uma ideia real de nossas disposições.
34. Quem desejar com santo ardor chegar com sucesso ao porto
tranquilo e seguro da humildade, deve procurar e empregar
todos os meios de se conduzir para aí e de aí chegar: as
firmes resoluções, os raciocínios salutares, os pensamentos
racionais, as preces fervorosas, as meditações profundas, as
súplicas assíduas, numa palavra, tudo o que puder imaginar
ser útil para o objetivo a que se propõe, até que, enfim,
ajudado pela graça de Deus, ele esteja experimentado nas
ações mais vis e humilhantes, e que tenha retirado o vaso que
encerra sua alma do mar bravio do orgulho e que o
tenha
introduzido no porto da humildade; pois devemos observar que
quem se liberta do orgulho imediatamente satisfaz a justiça
de Deus em relação aos pecados. O publicano do Evangelho nos
demonstra esta verdade consoladora.
35. Sabemos nós por que certas pessoas conservaram até a
última hora a lembrança de suas faltas, que no entanto já
haviam sido perdoadas? Foi a fim de nutrir e aumentar nelas o
espírito de humildade e destruir cada vez mais o orgulho e a
vanglória. Outros, vemos meditar continuamente sobre a Paixão
de Cristo, a fim de se reconhecer sempre como um dos
infortunados devedores da Justiça de Deus; outros não perdem
de vista as faltas cotidianas nas quais caem, a fim de se
humilharem sem cessar, vendo-se como os mais desprezíveis dos
homens; outros ainda vemos servirem-se das tentações que lhes
acontecem, das suas quedas e pecados, a fim de buscar a
humildade, esta admirável mãe das virtudes; outros enfim,
vemos considerar e crer que, se ainda existem, só pode ser
por que se humilham primeiro diante de Deus, e este
pensamento não os abandona jamais: eles repetem para si
continuamente que, tendo recebido de Deus dons os mais
abundantes,
devem
se
considerar
indignos
de
tamanha
liberalidade, e por não ver nos novos favores com que Deus os
beneficia senão novas dívidas acrescentadas às primeiras.
Ora, é em condutas semelhantes que consiste a verdadeira
felicidade, e é aí que se encontra a verdadeira recompensa
dos esforços e das violências que nos fazemos.
36. Então, se nos acontece de ver ou de ouvir falar de
pessoas que em pouco tempo alcançaram a paz soberana da alma,
saibam que elas não chegaram a esta perfeição senão seguindo
essa conduta, que é a via mais segura, mais feliz e mais
curta.
37. A caridade e a humildade são duas companheiras fiéis: a
primeira nos eleva ao céu e a segunda nos sustém nele e nos
impede de cair.
38. A contrição, o autoconhecimento e a humildade são três
coisas diferentes. O conhecimento e o pensamento de nossos
pecados e de nossas quedas nos incitam ao arrependimento, e
derramam uma santa tristeza em nossa alma. Com efeito, aquele
que tem a infelicidade de cair, se machuca e se quebra; então
aprende a desconfiar de si mesmo e a recorrer à oração, a
depositar uma humilde confiança em Deus, a se apoiar, para se
sustentar, no bastão da esperança, e a servir-se dele para
expulsar o desespero que, como um cachorro raivoso, tenta
devorá-lo. O conhecimento de nós mesmos é a inteligência que
adquirimos a respeito de nossa capacidade real e de nossos
meios; é ainda um sentimento vivo e profundo de nossas
fraquezas e de nossos pecados. A humildade é uma santa
doutrina que Cristo ensina aos que dela se tornam dignos pela
graça, que ele coloca no interior da alma como se fosse sobre
um leito nupcial, a respeito da qual toda a eloquência dos
homens é incapaz de expressar nem dar a compreender o poder e
a virtude.
39. Dizer que temos a felicidade de sentir em nós mesmos os
doces perfumes da humildade, e não obstante ainda nos
comovermos com os elogios dos homens, ainda que por um mero
instante, equivale a enganar a si próprio grosseiramente e
ainda desconhecer este fato sobre si próprio.
40. Ouvi um dia um homem santo dizer, no fervor que lhe
inspirava sua profunda humildade: “Não nos conceda, Senhor,
de modo algum nos conceda a glória, mas remeta-a inteira ao
seu santo Nome[37]”. Ele sabia por sua própria experiência
que nossa natureza é fraca a tal ponto, e incapaz de se
preservar, por suas próprias forças, das feridas que os
inimigos da salvação querem fazer-lhe. “Só você será, meu
Deus, o objeto de meus louvores numa grande assembleia[38]”,
ou seja, nos séculos infinitos da eternidade; pois quanto a
nós, devemos acrescentar, não podemos receber a glória antes
da vida futura, sem que estejamos miseravelmente expostos a
nos perder pela vaidade que isto nos inspiraria.
41. Se o fim, a horrível perfeição e o último grau do orgulho
consistem, para atrair elogios, louvores e glória, em fingir
ser ornado de virtudes que na realidade não possuímos, o
cúmulo e a perfeição da humildade consistem em fazer crer, a
fim de parecer mais vil e desprezível, que somos culpados de
certas faltas nas quais não caímos. Foi sem dúvida com esta
finalidade que um santo religioso tomou, em presença dos seus
irmãos, pão e queijo e comeu de ambos, para que eles
pensassem que ele não se mortificava tanto quanto se
acreditava. Foi também com este mesmo fim e para ser visto
como um insensato, que um outro deixou seus hábitos para
entrar numa cidade; mas ele estava longe de se conduzir assim
por causa de maus pensamentos, pois a modéstia e a castidade
faziam parte dele. Os que são humildes não temem as ofensas
dos outros, pois eles receberam de Deus, por meio da prece,
todas as graças e todos os dotes necessários para satisfazer
todo mundo. De resto, como toda a sua inclinação está voltada
para a prática da humildade, eles pouco se importam com os
gracejos ou a condenação que lhes fazem os homens. Somos
todo-poderosos em Deus, quando ele atende os votos que lhe
dirigimos.
42. Tenham assim o desejo sincero de desagradarem antes aos
homens do que a Deus; pois este tem prazer em nos ver buscar
o desprezo e a humilhação, a fim de atormentarmos,
perseguirmos e exterminarmos em nós a verdadeira estima que
temos por nós mesmos, e a vanglória que recebemos dos
aplausos dos homens.
43. É certo que a fuga do mundo e o retiro nos trazem um
grande benefício para entrarmos nos exercícios da humildade,
e que não é possível senão às almas fortes se expor assim à
zombaria e ao desprezo de seus próximos e de seus amigos. Não
se surpreendam com o que eu disse, pois ninguém jamais pode
com um único passo subir a escada divina.
44. Lembrem-se de que saberemos ao final que somos discípulos
de Cristo, não porque nos obedecem os demônios, mas porque,
conforme ele próprio nos ensina, nossos nomes estarão
inscritos no céu da humildade[39].
45. A natureza dos limoeiros é tal que se seus galhos se
voltam para o alto isto mostra uma esterilidade absoluta, mas
se eles se deixam cair é um sinal de frutos em abundância.
Quem souber refletir compreenderá o que queremos dizer aqui.
46. A humildade é uma escada pela qual subimos até Deus; mas
alguns sobem até o trigésimo degraus, outros até o
sexagésimo, outros até o centésimo. Aqueles que, por uma
vitória total sobre as más inclinações de seus coração,
conseguiram desfrutar da paz perfeita, sobem até o mais
elevado, que é o centésimo; o segundo convém aos que caminham
corajosamente pelos caminhos da salvação; quanto ao primeiro,
que é o mais baixo, todos podem esperar chegar até aí.
47. Quem se conhece, evitará empreender coisas que
acima de suas forças, e caminhará com constância
caminhos da humildade.
estão
pelos
48. Os pequenos pássaros tremem à vista de um gavião, e as
almas que são solidamente humildes temem e se assustam com o
barulho das discussões.
49. Muitas pessoas alcançaram a salvação sem ter sido nem
profetas nem taumaturgos, e sem ter recebido revelações
extraordinárias; mas jamais alguém chegou até aí, nem chegará
jamais, sem a humildade. Não é esta a virtude guardiã dos
dons extraordinários? E não foram estes bens celestes que se
tornaram a infeliz causa ou a ocasião para que corações que
não
eram
sinceramente
virtuosos
tenham
expulsado
vergonhosamente a humildade para longe de si?
50. Devemos aqui admirar o modo como Deus, a fim de nos fazer
praticar, ainda que contra a nossa vontade, a santa virtude
da humildade, faz, por uma providência especial, com que
outros vejam e conheçam nossas faltas melhor do que nós
mesmos. Assim ele nos coloca na necessidade de reconhecer e
confessar que não é a nós que podemos atribuir a salvação e a
cura de nossa alma, mas à assistência de nossos irmãos e ao
socorro de Deus.
51. Quem é verdadeiramente humilde detesta sua própria
vontade, e só a vê como enganadora; e, pela confiança que
coloca em Deus nas suas preces, aprende o que deve saber e
fazer. Para cumprir com os deveres de obediência, ele não
considera nem a vida nem os costumes das pessoas que o
dirigem, mas se abandona inteiramente aos cuidados paternais
de Deus, e se lembra de que um dia o Senhor se serviu da voz
de um asno para dar instruções a Balaam. E ainda que este
humilde e fiel servidor de Deus não agisse, pensasse ou
falasse em todas as coisas senão de um modo conforme à sua
santa vontade, ele evitaria ainda de confiar em seu próprio
julgamento; pois, é preciso dizê-lo, uma alma verdadeiramente
humilde não tem menos incômodo nem sofre menos tormento em
confiar no próprio discernimento, do que um coração soberbo
em se submeter ao julgamento dos outros.
52. Parece-me que somente os anjos são incapazes de cair em
certas fraquezas; pois um dia eu ouvi um anjo terrestre me
dizer: “É verdade que não me sinto culpado por nada, mas nem
por isso me sinto justificado; pois não cabe a mim julgar-me,
mas ao Senhor[40]”. É por isso que devemos nos repreender e
nos condenar severamente, a fim de que, por meio desse
desprezo e dessa humilhação voluntários, possamos apagar as
faltas nas quais caímos sem nos darmos conta. Devemos agir
assim, por que de outro modo teremos uma conta terrível para
prestar na hora da morte.
53. Quem pede ao Senhor graças das quais se considera indigno
por causa do pouco mérito de suas boas obras, receberá, em
virtude do sentimento de sua indignidade, dons e favores que
superarão infalivelmente o valor real das virtudes que
praticou. É o que nos ensina o exemplo do publicano que,
mesmo só ousando pedir a remissão de seus pecados, recebeu
uma plena e inteira justificação. É também o que nos ensina o
bom ladrão: ele se contentou, por humildade, em pedir ao
Senhor que se lembrasse dele em seu Reino, e recebeu o
Paraíso inteiro em herança[41].
54. Assim como, de acordo com a ordem que Deus dispôs, não
vemos neste mundo nenhuma criatura do fogo, nem grande nem
pequena, também na ordem da graça não encontramos a presença
do fogo da concupiscência num coração sólida e sinceramente
humilde; ora, esta concupiscência é a matéria e a causa de
todos os vícios nos quais temos a infelicidade de cair. Com
efeito, na medida em que caímos voluntariamente no pecado,
não somos ainda verdadeiramente humildes, e continuamos
sentindo a presença da concupiscência.
55. O Senhor, sabendo que hábitos corporais contribuem
decisivamente para conduzir a alma ao caminho da humildade, e
querendo servir ele próprio de exemplo, cingiu-se de uma
toalha para lavar os pés de seus apóstolos e para nos ensinar
o caminho que nos conduz à humildade. Com efeito as afeições
de nossa alma se formam frequentemente pelas ações do corpo,
e ela se acostuma facilmente ao que este corpo faz
exteriormente.
56. A autoridade que Deus concedeu a um dos anjos, não para
ele abusasse dela para se orgulhar, acabou sendo a causa e a
ocasião de seu orgulho.
57. Quem se senta sobre um trono tem uma conduta diferente
daquele que se senta sobre o estrume. É por essa razão que
Jó, este homem santo e justo, permanecendo sobre a estrumeira
e fora da aldeia, pode adquirir uma humildade perfeita, e
dizer a Deus do fundo de seu coração: “Eu me humilho e me
rebaixo diante de você, meu Deus, e reconheço minha baixeza,
e me penitencio com pó e cinzas[42]”.
58. Vejo ainda Ramassés, rei de Judá, que era um dos maiores
pecadores do mundo; pois, além da infinidade de crimes de que
era culpado, havia profanado o templo de Deus e substituído o
culto que se deveria prestar à sua Majestade soberana pelo
culto ímpio e sacrílego que ele prestava e obrigava a que se
prestasse aos ídolos; de sorte que, ainda que todo o universo
fizesse jejuns rigorosos em intenção desse rei criminoso,
essa penitência não seria bastante para obter-lhe o perdão
por suas execráveis
Impiedades. E no entanto a humildade teve a virtude de curar
as chagas desesperadas e incuráveis desse indigno monarca.
59. Também Davi, falando com Deus, não hesitou em dizer: “Se
lhe agradasse um sacrifício, meu Deus, eu não deixaria de lhe
oferecer; mas você não se agradaria dos holocaustos que eu
lhe posso oferecer – os jejuns que afligem o corpo – mas o
sacrifício que devo oferecer é o de um coração quebrantado de
dor; pois você não desprezará um coração contrito e
humilhado[43]”. Da mesma forma, quando o profeta, em nome do
Senhor, lhe reprovou o homicídio e o adultério que ele havia
cometido, a humildade fez com este príncipe pronunciasse
estas palavras: “Eu pequei contra o Senhor[44]”; e, no mesmo
momento, Deus lhe enviou esta resposta pelo mesmo profeta: “O
Senhor perdoou o seu pecado[45]”.
61. Nossos pais, estes homens tão respeitáveis, nos ensinaram
que os trabalhos e os penosos exercícios do corpo são como
que o caminho que nos conduz à prática da humildade, e que
eles são o fundamento sobre o qual repousa esta virtude.
Quanto a mim, não penso o mesmo: pois eu creio que é a
obediência que nos conduz à humildade, e que são a retidão e
a sinceridade do coração que lhe servem de base e fundamento.
De fato, a retidão do coração detesta a vanglória.
62. Se o orgulho foi capaz de transformar anjos em demônios,
a humildade, se pudesse ser partilhada por eles, seria capaz
de transformar os demônios em anjos. Que os homens que
tiveram a infelicidade de pecar reergam sua vontade abatida!
63. Apressemo-nos em trabalhar com todas as forças para
chegar à posse da humildade. E se não pudermos atingir a
perfeição dessa virtude, esforcemo-nos por nos apoiarmos em
suas espáduas; e se por infelicidade nos acontecer alguma
queda ou se sucumbirmos à tentação, guardemo-nos de nos
separarmos da humildade, mantendo-nos fortemente abraçados a
ela; pois eu ficaria espantado de ver que alguém que se
separou da humildade seja capaz de receber qualquer graça que
possa conduzi-lo à salvação eterna.
64. Os nervos que fortalecem a humildade e os meios para
adquiri-la são as seguintes virtudes: a pobreza, a fuga do
mundo, o cuidado em não parecer sábio, a simplicidade nas
palavras, a sinceridade, o pedido de esmola, o silêncio sobre
a nobreza do nascimento, a renúncia à liberdade de palavra e
de movimentos, o afastamento do falatório. Todas essas coisas
são marcas simples que anunciam a felicidade de se possuir
esta virtude incomparável.
65. Nada contribui mais e mais eficazmente para nos humilhar
do que uma extrema pobreza e um estado no qual não podemos
viver senão das esmolas que pedimos e recebemos. Quando somos
capazes de nos elevar, e, não obstante, fazemos todos os
esforços para nos abaixar e para afastar de nós todo inchaço
do coração, é então que, sim, é então que mostramos e damos
as provas de que possuímos a verdadeira sabedoria, e que
somos verdadeiramente os servidores e os amigos de Deus.
66. Assim, quando vocês se armarem para combater qualquer
vício, não deixem de chamar a humildade em seu auxílio; com
ela vocês marcharão ousadamente sobre a áspide e o basilisco,
e pisotearão o leão e o dragão[46], sem que nenhum deles
possa lhes prejudicar, ou seja, nem o pecado, nem o
desespero, nem o dragão do corpo.
67. A humildade é um canal celeste que possui a virtude de
retirar de nossa alma o abismo do pecado e de elevá-la até os
céus.
68. Alguém que tenha um dia percebido no fundo de sua alma a
beleza arrebatadora dessa virtude, independente de si mesmo
se permitirá perguntar de quem terá ela vindo à luz e
recebido a existência. E ela lhe responderá com um sorriso:
“Como você quer saber o nome do meu pai? Ele não tem nome,
assim como eu; eu não lhe explicarei essa maravilha a menos
que você esteja sob a posse de Deus, a quem seja dada toda
honra e toda glória pelos séculos dos séculos. Amém”.
Terminarei este degrau dizendo que, assim como o mar é a
causa e quem alimenta todas as fontes, também a humildade é a
fonte de discrição.
VIGÉSIMO SEXTO DEGRAU
Do Discernimento dos pensamentos, vícios e virtudes
1. O discernimento, nas pessoas que começam a servir a Deus,
consiste num conhecimento exato que elas possuem do estado de
suas almas; em relação às que já fizeram algum progresso no
serviço do Senhor, é um sentimento interior que as faz
distinguir com certeza o bem propriamente dito daquele que é
apenas
natural
e
que,
muitas
vezes,
combate
o
bem
sobrenatural; nos que atingiram com sucesso a perfeição, é um
conhecimento de que receberam as luzes que Deus derramou
abundantemente em suas almas, por maio da qual, não apenas
eles sondam os recantos mais fundos de seus corações, mas
ainda podem penetrar até no interior dos seus irmãos. Mas se
quisermos definir o discernimento de uma maneira geral e que
possa abarcar e convir a tudo, diremos que é e deve ser uma
luz interior que nos permite conhecer com certeza, a todo
tempo, em todo lugar e em todas as nossas ações, que ela é
santa e agradável à vontade de Deus, e que só a recebem os
que são puros nas suas afeições, em suas ações e em suas
palavras.
2. Aquele que por meio do espírito de Deus venceu três
inimigos de sua salvação, consegue facilmente derrubar os
outros cinco; mas quem negligencia atacar e vencer esses três
inimigos não pode contar com mais nenhuma vitória. O
discernimento é assim uma consciência sem mácula, e não
habita senão naqueles cujos sentidos são puros e castos.
3. Ninguém, quer tenha visto por si mesmo, quer tenha
escutado de outros que no estado religioso acontecem coisas
extraordinárias e sobrenaturais, pode, porque não conhece a
natureza disso, negar sua existência e pô-las em dúvida; pois
onde Deus habita, que é acima da natureza, podem acontecer
coisas que estão acima da natureza e das leis naturais.
4. A preguiça, o orgulho, a inveja dos demônios, são as três
principais armas das quais se servem os espíritos infernais
para nos combater. A primeira dessas armas deve nos cobrir de
confusão, a segunda nos precipita na miséria derradeira;
quanto à terceira, é uma verdadeira felicidade e uma
felicidade perfeita.
5. Depois de Deus, é à nossa consciência que devemos
recorrer, como a uma regra a ser seguida: é ela que está
encarregada de nos fazer conhecer de que lado se erguem os
ventos impetuosos das tentações, de nos advertir quando
convém recolher as velas, e de nos dirigir de modo a que
possamos evitar um triste naufrágio.
6. Os demônios, em nossos exercícios de piedade, nos estendem
armadilhas para nos fazer cair nas três fossas que eles
mesmos cavaram. Primeiro eles se esforçam para nos desviar de
fazer bem feito; depois, se são vencidos nesse primeiro
combate, procuram corromper nosso coração por meio das más
intenções que nos insiram, para nos impedir de colocarmos
nosso objetivo na Glória de Deus; enfim, se seus esforços
nesse segundo ataque não resultam em nada, eles se escondem
no interior de nossa alma, que está tranquila, a fim de lhe
inspirar que somos felizes por não fazermos nada que não seja
pela Vontade de Deus e para sua maior glória. Resistiremos à
primeira tentação por meio de uma grande diligência e uma
exatidão escrupulosa quanto aos nossos deveres, bem como por
meio do pensamento e da lembrança da morte; ao segundo, por
meio da obediência e do desprezo por nós mesmos; e à
terceira, pelo conhecimento de nossa imperfeição e da
inutilidade de nossas obras. Este é um grande trabalho que
temos que fazer continuamente até que o fogo do amor de Deus
nos faça entrar em seu santuário. Porque então já não
estaremos inquietos, nem seremos levados ao pecados por causa
de nossos antigos hábitos. Deus, que é um fogo purificador,
consumirá todos os ardores da concupiscência, deterá nossos
movimentos desregrados, nos preservará da presunção e nos
impedirá de cair, seja na cegueira interior, seja na cegueira
exterior.
7. Mas os demônios fazem exatamente o contrário: logo que
conseguem tornar escrava nossa alma, eles extinguem toda a
espécie de luzes e nos reduzem a uma tal pobreza que já não
nos resta nem prudência, nem discernimento, nem conhecimento,
nem respeito por nada, e só recebemos em troca a indolência,
o estupor, o enrijecimento, a indiscrição e a cegueira.
8. Conhecem por sua própria experiência tudo o que dissemos,
aqueles que tiveram a felicidade de sair do abismo da
impureza por meio de jejuns e de outras austeridades da
penitência, renunciando a uma confiança insensata em suas
próprias forças, para seguir as regras da modéstia, e
abandonar uma imprudência vergonhosa para observar as leis do
pudor. Eles sabem que tão logo suas almas foram libertas e
curadas dessas doenças mortais, que seu espírito se encontrou
fora dessas trevas espessas nas quais havia sido enterrado, e
que seu coração foi purificado da corrupção do pecado, eles
sentiram vergonha de si mesmos, das ações que praticaram e
das palavras que disseram durante seu deplorável cativeiro.
9. Com efeito, a menos que a luz divina se obscureça na alma,
e que esta caia nas trevas de uma noite funesta, os demônios
permanecerão impotentes para roubar-lhe a santidade e a
inocência, para imolá-la em seu furor e pô-la a perder. Sim,
eu repito, enquanto uma alma nesta vida for iluminada pelos
raios do sol de justiça, os demônios estarão privados de
poder lhe fazer mal. Ora, os demônios arrebatam o tesouro
precioso da inocência a uma alma, submetendo-a, sem que ela
perceba, à sua escravidão: eles a imolam ao seu furor, quando
apagam nela todas as luzes da consciência, de modo a
precipitarem-na em crimes vergonhosos e detestáveis; enfim,
eles acabam de pô-la a perder quando conseguem fazê-la cair
em pecado, e então a atiram aos horrores do desespero.
10. Que ninguém aqui tente alegar sua fraqueza como desculpa,
e não diga que os mandamentos de Deus são impossíveis; pois
existe gente que, em muitas coisas, vai mesmo além do que
ordena o Evangelho; para estarem certos disso, observem a
quem ama ao próximo mais do que a si mesmo.
11. Que os humildes se armem de coragem, ainda que seja
perturbados por suas paixões! Pois ainda que por um tempo
tenham a infelicidade de cair em toda espécie de pecados, de
se deixar prender nas armadilhas dos demônios e de
experimentar as enfermidades espirituais, se Deus lhes
conceder enfim a cura, eles poderão ainda servir aos demais
médicos como faróis, lâmpadas e pilotos, dando-lhes a
conhecer os diferentes sintomas das doenças da alma, e, pela
experiência vivida, preservá-los dos perigos aos quais
estariam eles expostos.
12. Se existem pessoas que, mesmo tiranizadas por suas
paixões, são capazes de dar ao seus irmãos lições úteis e
simples, eu estou bem longe de proibi-las – que o façam; pois
pode muito bem acontecer que, por causa das exortações que
fazem, cheguem a se envergonhar e comecem a dar o melhor de
si e a levar uma vida melhor. Mas essas pessoas não podem se
ocupar no governo e na condução dos irmãos. Já vi homens que,
tendo caído no pântano do vícios, e nele afundando cada vez
mais, não deixavam de contar aos que viam expostos ao mesmo
perigo, como e porque eles próprios haviam sido vítimas de
sua temeridade. Assim talvez eles pudessem preservar os
demais da queda que lhes ocorrera, impedindo-os de cair no
abismo em que encontravam. Mas o que aconteceu? Deus, que é
infinito em misericórdia como o é em potência, voltou os
olhos para as intenções caridosas dessas pessoas e as
libertou das odiosas cadeias de seus pecados. Quantos aos
que, com sangue frio, se submetem voluntariamente ao jugo
tirânico das paixões, tudo o que têm a fazer é manter o
silêncio, como único meio de dar alguma lição aos outros. E
eles devem se lembrar dessas palavras: primeiro Jesus começou
a fazer, para depois ensinar[47].
13. O mar que temos para a travessar, ó humildes religiosos,
é terrível e furioso: ele está constantemente agitado por
ventos impetuosos, e revolto por tempestades assustadoras;
ele é cheio de rochedos ameaçadores, de abismos profundos, de
piratas impiedosos, de golfos perigosos, de bancos de areia;
ele é povoado por monstros assustadores, coberto de ondas e
de vagas espumantes. Os rochedos desse mar são a cólera, que
causa subitamente um abrasamento terrível na alma; os abismos
são essas vertigens que tomam conta de nós e nos lançam no
desespero, que é um abismo sem fundo; os baixios e bancos de
areia são as trevas de nosso espírito, que nos fazem tantas
vezes tomar o mal pelo bem; os monstros representam nosso
próprio corpo pesado, grosseiro e perigoso por causa das
paixões cruéis que ele alimenta e fomenta; os piratas
devastadores são os ministros e os autores da vanglória, que
nos roubam impiedosamente toda a bagagem e o tesouro de
nossas boas obras, frutos de nossos trabalhos e de nossos
suores;
entendemos
as
ondas
como
os
excessos
e
os
desregramentos da intemperança, que nos precipita bruscamente
na goela e nos dentes dos monstros do inferno; como
turbilhões entendemos o orgulho que, expulso do céu onde o
demônio o fez nascer, quer agora nos elevar até o céu apenas
para nos atirar no abismo mais profundo.
14. Os homens escolados nas ciências conhecem muito bem três
coisas que são convenientes para quem começa seus estudos; as
que convêm aos que já fizeram algum progresso; e enfim as que
são próprias aos que se tornaram capazes de ministrar lições
aos outros. Tomemos cuidado para que, depois de muito tempo
de estudos, não nos encontremos nos primeiros elementos da
ciência espiritual e religiosa. Nada é mais vergonhoso para
um ancião do que se ver numa escola para crianças. Ora, eis
aqui o verdadeiro alfabeto dos que pretendem aprender a
ciência religiosa[48]. A) obediência; B) jejum; C) cilício;
D) cinzas; E) lágrimas; F) confissão; G) silêncio; H)
humildade; I) vigílias; K) generosidade; L) frio; M)
trabalho; N) aflições; O) desprezo; P) contrição; Q)
esquecimento
das
injúrias;
R)
caridade
fraternal;
S)
mansidão; T) fé santa e isenta de curiosidade; V) indiferença
pelo mundo; X) santa aversão pelos parentes; Y) desligamento
perfeito de todas as coisas; Z) simplicidade unida a uma
grande inocência e uma abdicação voluntária. Quanto aos que
já fizeram algum progresso na ciência religiosa, seu estudo e
sua aplicação específicos devem consistir em se esforçar para
obter uma vitória completa sobre a vanglória e sobre a
cólera, em nutrir e aumentar e si a esperança nos bens
futuros, em tornar mais perfeita a paz de sua alma e maior a
circunspecção de seu espírito, em gravar cada vez mais na
memória a lembrança e o pensamento dos juízos de Deus, em
aperfeiçoar seus sentimentos de ternura e comiseração pelos
irmãos, em exercer para com eles os deveres de hospitalidade
com afeição e prudência, em ser mais doces e moderados nas
correções, mais fervorosos e recolhidos na oração e, enfim,
em desdenhar inteiramente as riquezas. No que diz respeito
aos perfeitos, que, por meio de uma prece fervorosa,
consagraram a Deus todos os pensamentos de seu espírito,
todos os sentimentos de seu coração e todas as ações de seu
corpo, eis o alfabeto que lhes convém, segundo devem: A)
conservar seu coração livre de toda paixão; B) nutrir em si
uma caridade perfeita; C) praticar uma humildade profunda; D)
manter um distanciamento absoluto de todas as vaidades do
século; E) ser devorados por um zelo ardente no sentido de
conservar a presença de Jesus Cristo; F) cuidar em especial
para defender o tesouro de suas orações e das luzes
recebidas, dos embustes e armadilhas dos demônios que os
querem roubar; G) enriquecer-se cada vez mais com os dons e
as iluminações celestes; H) desejar ardentemente o fim de
suas vidas; I) não sentir senão aversão pela vida presente;
K) evitar tudo o que possa agradar à carne; L) merecer se
tornar junto a Deus os advogados e intercessores para todo o
mundo; M) fazer o possível para obter de Deus a misericórdia
para os homens; N) participar do ministério dos anjos; O)
tornar-se um tesouro das ciências; P) tornar-se dignos de ser
os intérpretes das verdades sobrenaturais e dos mistérios; Q)
merecer ser os depositários dos segredos dos céus; R) salvar
os homens; S) submeter os demônios; T) triunfar sobre as
paixões e os vícios; V) vencer a carne; X) governar a
natureza inteira; Y) guerrear obstinadamente contra o pecado;
Z) ser os templos vivos da paz soberana do coração, e, por
meio da graça, os imitadores perfeitos de nosso Senhor Jesus
Cristo.
15. Quando nos sentimos atingidos por uma enfermidade grave,
devemos redobrar os cuidados e a vigilância. De fato, é
nesses momentos que os demônios, vendo-nos abatidos pela
doença e incapacitados, pela fraqueza do corpo, de nos servir
de nossos santos exercícios – as lágrimas com que os púnhamos
em fuga – costumam fazer os últimos esforços para nos vencer.
Durante as enfermidades as pessoas do mundo ficam expostas a
explosões de cólera, e algumas vezes à impiedade das
blasfêmias, mas os monges e os que vivem longe do século, se
têm em abundância as coisas que lhes são necessárias, ficam
expostos às tentações da intemperança, e mesmo da luxúria.
Quanto aos que se veem privados de socorro quando doentes,
como os solitários, estes são terrivelmente tentados a se
entregar à negligência, ao desânimo e à tristeza.
16. Cheguei a ver algumas vezes o demônio da incontinência
aumentar as dores de certos doentes, a ponto de lhes causar
movimentos por meio dos quais sua consciência pudesse ser
perturbada. Nunca pude compreender como, em meio a tão
grandes sofrimentos, a carne ainda fosse capaz de se revoltar
contra o espírito; mas, tendo retornado depois para visitálos, eu os encontrei sobre seu leito de dor tão consolados
pelos socorros espirituais que Deus lhes concedera e pelos
sentimentos de compunção que ele lhes inspirara, que o
consolo assim recebido lhes retirou o sentimento de seus
sofrimentos, e os fez desejar que não fossem curados; então
observei que suas dores e sofrimentos haviam sido os remédios
salutares e eficazes para curá-los de suas enfermidades
espirituais. Eu adorei a Deus e agradeci pela graça que
fizera aos homens, servindo-se de seus corpos de barro para
purificá-los e santificá-los.
17. Existe no fundo de nossas almas um sentimento totalmente
espiritual que nos leva incessantemente a buscá-lo em nós,
ainda que ele aí não se encontre; mas assim que temos a
felicidade de encontrá-lo, não tardamos a ver as trevas
produzidas
pelas
paixões
desregradas
se
dissiparem
e
desaparecerem de nosso espírito. É o que fez com que um homem
sábio dissesse estas palavras: “Vocês encontrarão em si um
sentimento totalmente divino”.
18. A vida monástica deve preencher todos os sentimentos do
coração, regrar todas as nossas ações, vigiar nossas
palavras, formar nossos pensamentos e presidir a todos os
nossos movimentos; de outro modo, não seria a vida monástica,
e, menos ainda, uma vida angélica.
19. Entendam a diferença que existe entre a providência de
Deus, o socorro da graça, a proteção que ela concede, a
misericórdia que utiliza a nosso respeito e as consolações
que nos permite desfrutar. Sua providência brilha de modo
evidente em todas as obras do universo, mas não vemos o
socorro de sua graça senão entre os fieis; sua proteção,
apenas nos que são verdadeiramente fieis; observamos sua
misericórdia
nos
servidores
mais
devotados,
e
suas
consolações dentre os que o amam sinceramente.
20. Às vezes,
certas pessoas
este
mesmo
circunstâncias
outro.
aquilo que costuma ser um bom remédio para
se torna um verdadeiro veneno para outras; e
remédio
ministrado
à
mesma
pessoa,
em
diferentes, é salutar num momento e funesto em
21. Vi uma vez um médico espiritual, tão ignorante quanto
indiscreto, que tanto oprimiu com suas reprimendas a um pobre
enfermo que desfalecia sob o peso de seus pecados, que o
empurrou aos horrores do desespero. E vi um outro, cheio de
ciência
e
sabedoria,
que,
por
meio
de
reprimendas
humilhantes, fez como que uma incisão num coração inchado de
orgulho,
e conseguiu com sucesso arrancar toda a corrupção
infecta que o sujava e deteriorava.
22. Vi também um mesmo enfermo espiritual que, tanto para se
curar das paixões que corrompiam seu coração, aceitava como
uma bebida salutar todo o amargor da obediência, quanto para
devolver a visão ao olho de sua alma, se mantinha numa
imobilidade e num silêncio perfeitos, não vendo a ninguém e
não falando com ninguém. Quem tiver ouvidos para ouvir,
escute e compreenda o que quero dizer aqui.
23. Existem alguns – e eu confesso que não sei como, porque
não procurei saber por mim mesmo e por meu próprio julgamento
como acontecem esses dons e esses favores preciosos – mas
enfim, existem pessoas que são naturalmente levadas à
continência, ao repouso da alma, à modéstia, à mansidão e à
compunção
do
coração.
E
existem
outras
que
possuem
inclinações opostas a essas virtudes, e que têm que combater
com todas as forças esta natureza má. Ora, ainda que nem
sempre estes últimos triunfem sobre suas tendências, eu os
considero preferíveis aos primeiros, pois eles triunfam sobre
a própria natureza.
24. Então, não venham glorificar-se diante de mim, vocês que,
sem trabalho e sem penas, desfrutam desses dons e desses
favores da natureza; ao contrário, confessem com humildade
que o soberano Dispensador dos dons só os favoreceu assim por
conhecer sua extrema fraqueza, prevendo que, sem essas graças
inteiramente gratuitas, vocês estariam perdidos, e ainda
porque, em sua infinita bondade, ele os quis salvar. Devemos
ainda observar que uma boa educação, as instruções salutares
recebidas em nossa infância, os exercícios espirituais a que
nos dedicamos na adolescência, podem mais adiante em nossa
vida nos levar a praticar a virtude e a fazer nossa profissão
de vida monástica; mas que todas essas coisas podem também
nos desviar, se não forem boas e cristãs.
25. Os anos são uma luz para os monges, e os monges devem ser
uma luz para os outros homens. É por isso que eles são
particularmente obrigados a fazer todos os esforços para se
tornar homens exemplares, e para jamais, seja por palavras,
seja por ações, dar lugar a que alguém se escandalize; pois
se a luz se transmuta em trevas, o que acontecerá com as
próprias trevas, ou seja, com aqueles que vivem nomeio do
mundo[49]?
26. Assim, se vocês me escutarem e quiserem seguir meu
conselho, não se esqueçam de que é importante não sermos
fúteis nem inconstantes, e não dividirmos as forças de nossas
almas, já tão pobres e fracas, se quisermos combater com
vantagem os milhares de inimigos que nos atacam; pois de
outro modo nos seria impossível conhecer e evitar as
armadilhas infinitas das quais eles se servem para nos
capturar.
27. Armemo-nos assim do socorro que nos oferece a Santíssima
Trindade, e empreguemos três virtudes para fazer a guerra a
três vícios diferentes. Se não o fizermos, estaremos expostos
a males e inquietudes inumeráveis.
28. Com efeito, se Deus, que um dia transformou o mar em
terra firme, está conosco, não seremos nós semelhantes aos
israelitas? Iluminados e protegidos por sua Presença,
passaremos sem perigo pelas ondas bramantes, e veremos os
egípcios engolidos pelas águas; mas, ao contrário, se Deus
não nos assiste, quem poderá sequer escutar sem tremer o
ruído confuso das vagas e das ondas? Quem será capaz de se
sustentar diante dos esforços furiosos de sua própria carne?
29. Se Deus, por causa das boas obras que sua graça nos faz
praticar, se mostra em nosso coração, logo os nossos
inimigos, que são seus também, se dissipam e fogem; e se,
pela santidade e o fervor de nossas preces, O chamamos em
nosso socorro, todos os que, segundo a expressão de Davi,
odeiam o Senhor, fugirão de sua presença[50] – e, podemos
acrescentar, da nossa.
30. Não nos esqueçamos de que não será com palavras vãs e
estéreis que aprenderemos as coisas celestes, mas por meio de
nossos trabalhos, nossos esforços e suores. Não se trata, ao
fim de nossa vida presente, de apresentar diante do soberano
Juiz palavras, mas sim obras.
31. Quando alguém descobre um tesouro escondido em algum
lugar, apressa-se em cavar para encontrá-lo; se o encontrar,
guardá-lo-á com grande cuidado. Os que são ricos sem ter
trabalhado para o ser, normalmente dissipam sua fortuna.
32. Os hábitos viciosos e inveterados não são corrigidos sem
grandes dificuldades e grandes esforços; os monges que ainda
os fortalecem com más ações continuamente repetidas, ou caem
miseravelmente no desespero, ou, por sua cegueira, não
extraem nenhum benefício de sua profissão religiosas nem de
sua
consagração
à
obediência.
Mas
devemos
desesperar
inteiramente dessas pessoas? Não, porque eu sei que Deus é
todo-poderoso e pode facilmente retirá-las do abismo.
33. Algumas pessoas me propuseram um dia uma questão muito
difícil de resolver, a qual, em minha opinião, ultrapasse o
alcance dos espíritos daqueles que são como eu, e que não se
encontra em nenhuma obra conhecida: quais são, indagaram-me,
os vícios que geram os oito pecados capitais, e quais são os
três pecados destes oito que produzem os outros cinco? Ora,
como eu não pude responder a esta questão tão ousada, fui
obrigado a lhes confessar minha incapacidade. Mas eis o que
esses padres me disseram. A intemperança é a mãe da luxúria;
a vanglória, da preguiça; a tristeza e a cólera são mães do
orgulho, da inveja e da avareza, e a vanglória é também mãe
do orgulho. Quando eles me explicaram este primeiro ponto, eu
me permiti perguntar a esses homens veneráveis para que
satisfizessem meu desejo, ensinando-me quais seriam os
pecados produzidos pelos pecados capitais, e de qual pecado
cada um extrairia sua origem; e eis aqui a resposta que me
deram com uma bondade e um afeto admiráveis. Não se deve
buscar ordem e razão entre paixões tolas e impetuosas, pois
aí só existe desordem e confusão. E isto eles me demonstraram
com exemplos justos e adequados e por meio de numerosas
razões, muito convincentes; direi aqui alguma coisa a
respeito para facilitar julgar o resto. Assim, segundo esses
padres, o riso dissoluto e inconveniente provém, seja da
incontinência, seja da intemperança, seja da vanglória,
principalmente quando nos glorificamos sem vergonha nem
pudor; o excesso de sono é produzido às vezes pelo excesso de
boa mesa, outras vezes pelos jejuns executados sob um
espírito
de
orgulho,
aqui
pela
preguiça,
ali
pelas
necessidades reais da natureza; as palavras inúteis procedem
frequentemente tanto da intemperança como da vanglória; somos
escravos da preguiça ou porque nos tratamos com mimos ou
porque nos falta o temor a Deus; as blasfêmias são
normalmente filhas do orgulho; mas elas podem ser também
ocasionadas por nossa tendência a crer que nossos irmãos são
culpa dos delas; outras vezes seu autor é um demônio, por
causa da inveja que sente por nós. O endurecimento do coração
nasce, seja da boa mesa, seja de uma certa indiferença pelas
coisas santas, e pelo afeto que temos pelas criaturas; essa
afeição mundana e sensual pode ainda se tornar o espírito de
impureza, de avareza, de intemperança, de vanglória e de
muitas outras coisas. A cólera e a malícia extraem comumente
sua origem do inchaço do coração e da estima que temos por
nós mesmos; a hipocrisia é fruto da complacência que temos
por nós, da confiança que depositamos em nossa conduta, que
nos incita a pensar e crer que somos capazes de nos bastar,
de que podemos ser os mestres e os árbitros de nossas ações.
As virtudes opostas a esses vícios nascem também das causas
contrárias. Mas como me falta o tempo, não poderei tratar de
cada uma em particular, e por isso me contentarei em dizer
que é a humildade que expulsa todos os vícios de nosso
coração, e os mata, e que aqueles que tem a felicidade de
possuir essa virtude triunfam sobre todos os vícios e todas
as paixões. A volúpia e a maldade são as mães fecundas de
toda espécie de males; e os que são escravos desses dois
vícios temíveis, jamais verão o Senhor. Derrubar a primeira
sem abater a segunda dessas duas paixões, é o mesmo que não
fazer nada.
34. Aprendamos a temer ao Senhor pelo temor que nos inspiram
a autoridade e o poder dos príncipes e dos magistrados, e a
presença de animais ferozes; aprendamos a amá-lo e a desejar
possuí-lo a partir do exemplo dos mundanos: vejam como eles
se atiram ao amor pelas criaturas e pelas belezas que veem
nelas. Saibamos aqui que nada nos proíbe de aproveitar os
exemplos das paixões que tentam estabelecer os vícios nos
corações, para nos formar nas virtudes que lhes são
contrárias.
35. O século em que vivemos é terrivelmente corrompido. Por
toda parte não vemos senão orgulho e dissimulação. Às vezes
observamos a prática de algumas virtudes contrárias; mas são
elas reais e verdadeiras? Onde vemos hoje aqueles dons e
aqueles favores extraordinários com os quais um dia Deus quis
recompensar o fervor e a sinceridade da devoção? E no entanto
o mundo nunca teve tanta necessidade dessas graças. Mas não
nos espantemos com essa ausência e essa privação: pois não
são exatamente os trabalhos exteriores que nos fazem
encontrar e possuir a Deus, mas sim a simplicidade e a
humildade do coração, conforme estas palavras de são Paulo:
“O poder do Senhor se faz notar sobretudo na fraqueza do
homem[51]”; e é certo que Deus jamais rejeitará um coração
humilde e dócil.
36. Quando virmos algum de nossos irmãos que servem a Deus
cair nalguma enfermidade corporal, não sejamos maus a ponto
de crer que este incidente desagradável lhe tenha acontecido
por um julgamento secreto de Deus, que com isso está punido
qualquer falta que ele tenha cometido; na simplicidade de
nosso coração, e sem maus pensamentos, cuidemos dele: pois
cada irmão é um membro do corpo ao qual pertencemos todos;
são os companheiros de armas com os quais guerreamos o
inimigo comum.
37. Algumas vezes Deus envia enfermidades para purificar
nossa alma das manchas dos pecados cometidos, e outras vezes
para expulsar a vaidade de nosso espírito.
38. Também não é raro que Deus, cuja bondade e misericórdia
são infinitas, ao nos ver negligentes e preguiçosos nos
santos exercícios da piedade, se sirva da doença como de uma
salutar e fácil mortificação para humilhar e enfraquecer
nosso corpo rebelde, para purificar nosso espírito dos maus
pensamentos e para libertar nosso coração das paixões
desregradas.
39. Mas observemos aqui que todas as coisas que nos
acontecem, sejam visíveis ou invisíveis, são recebidas por
nós de três maneiras diferentes: uma, com um espírito de
doçura e humildade; outra, com sentimentos de cólera e
repugnância; enfim, com uma fria indiferença. É o que eu
mesmo presenciei em três irmãos que haviam sido corrigidos e
punidos ao mesmo tempo. O primeiro não sofreu a correção e
não aceitou a penitência senão com cólera e indignação; o
segundo suportou uma e outra sem perturbação nem tristeza; e
o terceiro, recebeu a ambas com alegria e contentamento.
40. Eu vi cultivadores semear os mesmos grãos com propósitos
diferentes: pois alguns se propunham a pagar seus credores
com a colheita, enquanto outros pretendiam aumentar suas
riquezas; estes tinham intenção de presentear seus senhores,
aqueles queriam merecer de parte dos passantes elogios sobre
a excelente maneira de cultivar seus campos; outros só
desejavam ter uma colheita abundante para contentar a inveja
que lhes roía o coração e vexar a seus rivais; outros queiram
uma boa colheita para afastar a vergonha de serem vistos como
negligentes e preguiçosos. Mas eis aqui a semente de que se
serviam estes trabalhadores: trata-se dos jejuns, das
vigílias, das esmolas, dos serviços prestados aos irmãos, da
obediência e outras coisas semelhantes. Quanto aos objetivos
e às intenções a que se propunham, sugiro
examinados e observados cuidadosa e seriamente.
que
sejam
41. Seja diante do Senhor e com as mesmas precauções que
tomam os que vão buscar água numa fonte; pois pode acontecer
de que, junto com a água venham também rãs. Da mesma forma
nós, querendo praticar a virtude, misturamos a ela os
defeitos: por exemplo, a intemperança se mistura facilmente à
hospitalidade, o amor sensual à caridade, a dissimulação à
discrição, a malícia à prudência; a perfídia, a preguiça, a
lentidão, a contradição, a má vontade em viver a seu modo e
segundo seus gostos, a desobediência, todas essas se misturam
com a mansidão; a arrogância, a satisfação do amor próprio,
com o silêncio; a vaidade com a alegria espiritual, a
preguiça com a esperança, o julgamento temerário com a
caridade; o torpor, a paralisia, com a solidão e o retiro; o
azedume com a castidade; o excesso de confiança em si mesmo
com a humildade; quanto à vanglória, podemos vê-la como um pó
embelezador, uma maquilagem, um colírio, ou melhor, como um
veneno sutil que busca se insinuar em todas as virtudes.
42. Não fiquemos aflitos se Deus não atender às nossas preces
e súplicas tão depressa como gostaríamos; pois ele próprio
deseja ardentemente que todos os homens sejam logo libertos
das paixões que os perturbam e tiranizam.
43. Nem todos os que pedem a Deus alguma graça são escutados,
creio eu, por alguma das seguintes razões: porque, ou não
solicitam esse favor no tempo conveniente, ou não o pedem com
a
disposição
requerida,
ou
estão
possuídos
de
algum
sentimento de vanglória ou de orgulho; enfim, porque, se
fossem atendidos, cairiam na indiferença ou na negligência.
44. Ninguém, penso eu, duvida que os demônios e as paixões se
retirem de nossa alma, seja por um tempo, seja para sempre;
mas pouquíssimas pessoas abem porque uns e outros nos
abandonam dessa maneira.
45. Pode acontecer de as paixões deixarem não apenas as
pessoas que têm fé, mas as que não têm; existe apenas uma
exceção, e que permanece nas pessoas, para ocupar, sozinha, o
lugar de todos as outras: esta paixão tão funesta e terrível
a ponto de ter expulsado os anjos do céu, é o orgulho.
46. O fogo celeste e divino da caridade consome inteiramente
a matéria de nossos pecados. Então os demônios, resignados,
se retiram de nós e já não nos tentam por meio das paixões.
47. Normalmente os demônios se afastam apenas para nos
enganar com a falsa segurança inspirada por essa calma e essa
segurança, para depois se apossar de nosso coração mais
facilmente e de um só golpe, envenenando-o com tantos vícios
que ele quase cai nas suas próprias armadilhas como se
guerreasse contra si mesmo.
48. Conheço outro artifício dos demônios, quando eles cessam
de nos fatigar e nos atacar quando chegamos a nos habituar
com os vícios, pois então eles já não precisam nos tentar,
pois se o fizessem poderiam despertar nossa consciência que
está adormecida por eles. Podemos dizer que a imagem dos
pecadores que os demônios acostumaram ao vício é a das
crianças em idade de mamar: quando a mãe lhes retira o seio,
elas começam a chupar os dedos.
49. Saibamos que são a simplicidade, a inocência e a
integridade da vida que são, mais do que tudo, capazes de
libertar nossa alma das perturbações e da agitação das
paixões, e de lhe trazer uma paz deliciosa, segundo as
palavras de Davi: “É com justiça que eu espero minha salvação
no Senhor, pois é ele quem salva os que têm um coração
reto[52]”, e assim ele nos livra de nossos males, de maneira
que já quase não sentimos a nós mesmos e nos tornamos
semelhantes às criancinhas a quem tiramos a roupa sem que
elas tenham o sentimento de sua nudez.
50. Os vícios e a maldade não estão originalmente na natureza
do homem, pois Deus não é o autor das paixões. Mas o homem
possui dentro de si muitas boas inclinações naturais que Deus
lhe concedeu: tais são, por exemplo, a ternura e a compaixão
pelos infelizes; pois não vemos nós mesmo os pagãos sentirem
comiseração pelos que sofrem? Tais são ainda a afeição e a
benevolência: os próprios animais dão testemunho da tristeza,
quando são separados uns dos outros; a fé, porque sentimos em
nós uma forte inclinação para crermos no que nos é contado; a
esperança, porque não emprestamos nem pedimos emprestado, nem
fazemos viagens por terra ou mar, sem a esperança de algum
benefício ou proveito; e se o amor que sentimos pelos irmãos
está fundamentado na natureza, e se a caridade é o que liga e
mostra a perfeição da lei, segue-se que essa virtude, assim
como as demais, não está fora de nossa natureza, e que quem
alega fraqueza para não praticar o bem deve se cobrir de
vergonha e confusão.
51. Quanto à castidade, à mansidão, à humildade, à oração, às
vigílias, aos jejuns e à compunção, diremos que não são
virtudes que podem ser praticadas apenas com as forças da
natureza. Ora, algumas dessas virtudes nos foram ensinadas
pelos homens; outras, pelos anjos; e outras, pelo Verbo
eterno de Deus, que com sua graça nos facilita praticá-las.
52. Nós nos achamos numa condição em que é indispensável
sofrer alguns males. A prudência manda que devemos, sempre
que possível, escolher o menor e o mais leve. Assim, por
exemplo, quando nos dedicamos à oração, se chegarem alguns
irmãos, devemos interromper nosso santo exercício, ou, sem os
saudar nem dirigir-lhes a palavra, deixa-los partir aflitos
por não terem podido conversar conosco por um momento? Eu
respondo aqui que a caridade é mais excelente do que a
oração; pois esta é uma virtude específica, enquanto a
primeira encerra todas as virtudes.
53. Na minha juventude aconteceu-me estar numa cidade,
bastante grande, e não tendo ido à mesa cedo, me senti
furiosamente tentado pela intemperança e a vanglória; mas
como eu temi os efeitos desonrosos da gula, preferi sucumbir
à tentação da vaidade; pois eu sabia que nos jovens o demônio
da vanglória cede facilmente o passo ao demônio da
intemperança, o que não é de espantar. Mas se para as pessoas
do mundo a avareza consiste na fonte funesta e principal de
toda espécie de males, o mesmo podemos dizer da intemperança
em relação aos monges.
54. Não podemos deixar de observar que Deus permite algumas
vezes que pessoas espirituais permaneçam sujeitas a pequenos
defeitos, que não chegam a ser capazes de manchá-las nem de
ofender o Senhor, a fim de que, forçadas a fazer a si mesmas
reprimendas contínuas, elas possam adquirir um grande tesouro
de humildade sólida que se torna impossível de ser roubada
pelos inimigos.
55. Os que não viveram sob o jugo salutar da obediência não
são capazes de alcançar uma humildade sincera e verdadeira.
Podemos avaliar o quanto, por aqueles que aprendem alguma
arte ou algum ofício: se só tiverem a si próprios como
mestres, farão algo além de seguir os jogos de sua
imaginação? Conhecerão eles as regras de sua arte?
56. Não é sem razão que nossos pais identificam a santidade
da vida com a prática constante da humildade e da temperança,
virtudes que, aos olhos dos homens, parecem ser bem
ordinárias e bem comuns. Com efeito, a temperança nos priva
dos prazeres dos sentidos, e a humildade nos conserva nesta
privação e impede as volúpias carnais de fazer brotar em nós
novos botões de vícios. É com a mesma finalidade que a
penitência tem dois efeitos salutares: ela apaga nossos
pecados e nos faz adquirir a humildade.
57. Em geral, os homens piedosos se sentem levados a dar a
quem lhes pedem e lhes expõe suas necessidades; mas as
pessoas quem possuem essa preciosa qualidade num grau mais
perfeito não perguntam pelas necessidades de seus irmãos e,
para fazer benemerência, não aguardam que se lhes peça. Não
retomar nem exigir a restituição do que nos tomaram, é
próprio dos homens que renunciaram a toda afeição pelos bens
perecíveis.
58. Jamais deixemos de nos lembrar dos vícios e das virtudes,
a fim de que possamos saber onde estamos em relação à
piedade. Estamos no começo? Avançamos? Aperfeiçoamo-nos?
59. Os combates que nos fazem os demônios provêm de três
causas diferentes: nosso amor aos prazeres, nosso orgulho e a
inveja que sentem por nós. Felizes são os que são objeto da
inveja dos demônios; mas são infelizes, e bastante, os que se
entregam ao orgulho; e inúteis e vãos , os que são escravos
dos sentidos e ligados aos prazeres da carne.
60. Existe um sentimento, ou antes um hábito, ao qual podemos
chamar de força e paciência, por meio do qual não tememos nem
recusamos nenhum trabalho ou pena: é este espírito de força,
de generosidade e de paciência que inflamava de tal modo o
coração dos mártires, que estes chegavam a desdenhar dos
tormentos mais temíveis.
61. Devemos estabelecer uma grande diferença entre vigiar os
pensamentos de nosso espírito e vigiar as afeições de nosso
coração; pois assim como o oriente está distante do ocidente,
está a vigilância sobre as afeições de nosso coração, em
termos de dignidade e excelência, acima da vigilância que
exercemos sobre os pensamentos de nosso espírito, ainda que
um dê mais trabalho e penas do que o outro.
62. Servir-se da oração para combater os maus pensamentos,
afastá-los com horror, desprezá-los e triunfar inteiramente,
não são coisas indistintas entre si. Aquele que disse a Deus:
“Venha
em
meu
auxílio,
meu
Deus,
apresse-se
em
me
socorrer[53]”, e outras coisas semelhantes, nos dá um exemplo
dessas três coisas; o mesmo, nos ensinou sobre a segunda,
dizendo: “Eu responderei às injustas acusações dos que me
carregam de reprovações[54]”, e também: “Você nos colocou em
disputa com todos os nossos vizinhos[55]”; enfim, ele nos
ensinou a terceira, quando proferiu estas palavras: “Eu
coloquei uma guarda na minha boca; quando o pecador se
levantou contra mim, eu me calei e mantive o silêncio[56]”. E
ainda: “Os orgulhosos agiram com enorme injustiça a meu
respeito, mas eu não me desviei de sua santa lei[57]”. Ora,
quem possui a segunda dessas disposições, muitas vezes deve
recorrer à oração, pois ainda não está suficientemente
preparado nem forte para resistir aos demônios; quem se
utiliza da prece sem querer incitar em si o horror aos maus
pensamentos não poderá jamais os expulsar nem afastar de seu
espírito; enfim, que possui a terceira, rejeita com desdém e
desencoraja inteiramente os demônios.
63. Não podemos, falando naturalmente, captar nem limitar o
que é simples e espiritual. Somente Deus, que criou a tudo, é
capaz disso.
64. Como quem tem um excelente olfato sente facilmente o
perfume de uma pessoa que se aproxima, ainda que esta o
oculte, também uma alma pura sente facilmente, por um dom
especial de Deus, o bom odor da virtude recebida. Eu vou mais
longe ainda, e não temo dizer que algumas vezes ela o sente
nos outros, sem que eles se apercebam disso, o mau odor dos
vícios dos quais conseguiu se libertar com sucesso.
65. Se é verdade que nem todos poderão desfrutar da
impassibilidade,
que
liberta
de
todas
as
paixões,
é
igualmente verdade que todos podem se reconciliar com Deus e
obter a salvação eterna.
66. Evitem estimar e querer imitar certas pessoas que devem
ser estranhas a vocês, ou seja, pessoas curiosas que
pretendem temerariamente penetrar nos segredos da divina
Providência, aprofundar as iluminações que Deus distribui
para algumas almas privilegiadas e pronunciar para si
próprias que Deus faz acepção de pessoas. Todo esse tipo de
gente nos fazem ver realmente o quanto são os tristes filhos
e infelizes escravos do orgulho.
67. A avareza, para se ocultar, se cobre às vezes com o manto
da humildade; a vanglória, ao contrário, bem como a
incontinência, fazem grandes esmolas. Quanto a nós, façamos
todos os esforços para nos libertar dessas duas paixões
detestáveis,
e
não
cessemos
de
ter
sentimentos
de
benevolência para com os pobres, e de fazer-lhes o bem.
68. Alguns já disseram que existem demônios inimigos de
outros demônios, e que eles guerreiam uns contra os outros.
Quanto a mim, tudo o que eu sei é que todos desejam a perda
de nossas almas.
69. Nossos exercícios espirituais, sejam exteriores e
visíveis
ou
interiores
e
invisíveis,
são
normalmente
precedidos de uma boa resolução e de um bom propósito, de uma
santa afeição e de um piedoso desejo; mas todas essas
disposições felizes, nós as devemos à graça de Deus, que age
em nós e conosco.
70. Sem um bom propósito, nós não faríamos boas obras; pois
se, como nos ensina o Eclesiastes, “tudo o que se passa sob o
céu deve ser feito em um tempo conveniente”, nós estamos
essencialmente obrigados em nosso santo estado, que é uma
república celeste, a considerar com a maior atenção quais são
as coisas que convêm às circunstâncias nas quais nos
encontramos, e de que maneira elas convêm; pois é certo que,
para os que combatem na carreira da vida religiosa, existe um
tempo em que se desfruta de uma grande tranquilidade de alma
e no qual se está livre de toda perturbação e de toda
agitação. Falo aqui aos que acabam de ingressar dessa santa
carreira. Também é certo que existe um tempo de lágrimas e um
tempo de aridez e de dureza do coração, um tempo para
obedecer e um tempo para comandar, um tempo para jejuar e um
tempo para comer, um tempo de guerra no qual nosso corpo é o
inimigo a combater, e um tempo de paz em que triunfamos com
sucesso sobre os ardores da concupiscência, um tempo de
tempestade e um de serenidade, um tempo de tristeza e um de
alegria, um para ensinar e um para aprender, um tempo em que
o inchaço do coração mancha a consciência e um tempo em que a
humildade a purifica; um tempo de combate e um tempo de
repouso, um tempo de tranquilidade e um de trabalho, um tempo
para orar longamente e com assiduidade e um tempo para
exercer as funções de estado dou de seu emprego. É por isso
que, longe de nos deixarmos arrastar por um ardor cheio de
orgulho, não façamos cada coisa senão no tempo assinalado e
conveniente. Evitemos buscar no inverno os frutos que só
encontraremos no verão, e tentar colher quando se trata de
semear; pois existe um tempo destinado a semear os grãos
preciosos do trabalho, dos suores e das austeridades, e um
outro tempo para recolher seus frutos inestimáveis e
incompreensíveis.
71. Existem pessoas que, por uma disposição secreta e
impenetrável da divina providência, recebem a recompensa do
trabalho antes mesmo de iniciá-lo; outros, enquanto o fazem;
outros, depois de havê-los terminado; outros ainda só a
recebem após a morte. Devemos tentar entender aqui quais são
as mais humildes dentre esses diferentes tipos de pessoas.
72. Lembraremos aqui que existe uma espécie de desespero que
provém da multitude de pecados que cometemos, das censuras
que nos sacodem a consciência e da tristeza cruel e
insuportável que a visão de sua enormidade inspira à alma.
Esse desespero acontece normalmente aos que são oprimidos
pela quantidade impressionante de feridas que suas paixões
lhes causaram, e que sucumbem sob o peso imenso de suas
iniquidades. Observaremos também que existe outro tipo de
desespero que nasce do orgulho e da tola estima que sentimos
por nós mesmos. Esta nova espécie de desespero é típico das
pessoas que, depois de haverem tombado em algumas faltas
consideráveis, não querem reconhecer serem culpadas por elas.
Mas se refletirmos um pouco, veremos que quem tem a
infelicidade de se entregar ao primeiro tipo de desespero
está exposto a cair em toda espécie de crimes, e que quem se
entrega ao segundo tipo poderá ainda continuar a ser fiel
exteriormente aos santos exercícios da vida religiosa, ainda
que seus sentimentos sejam contrários à sua conduta. No
entanto, estes dois tipos de pecadores podem encontrar a
cura: o primeiro, corrigindo-se em colocando-se em fiel
confiança; o segundo, praticando a humildade e deixando de
fazer julgamentos temerários.
73. Existe uma coisa extraordinária e surpreendente, mas que
não deveria espantar ninguém, que é escutar as pessoas que
fazem os discursos mais edificantes e em seguida vê-las cair
nas faltas mais temíveis. De fato, o orgulho nos céus
desnaturou e pôs a perder os anjos.
74. Que em todas as suas ações e em todos os seus exercícios
sua regra consista em examinar suas poses e suas operações
corporais, bem como as que são puramente espirituais, e ver
se estão em conformidade com a lei de Deus; e esta regra diz
respeito tanto aos que estão submetidos ao jugo da obediência
como os que não reconhecem superior. Assim, por exemplo, se
desde o começo de nossa carreira religiosa nos dedicamos a
algum exercícios, pouco ou muito importante, e se depois de
nos havermos dedicado a eles, não nos tornamos mais humildes,
devemos temer que esses exercícios não foram feitos de modo a
agradar a Deus e segundo sua santa Vontade. Com efeito, sendo
tão noviços nos caminhos da vida religiosa, será certamente a
humildade que nos fará conhecer se nossas ações estão
conformes a Deus; nos que estão bastante avançados na
perfeição, são o repouso da alma e a libertação das paixões
que lhes dão este saber; e nos que alcançaram essa perfeição,
é a superabundância da luz celestial.
75. Algumas vezes as almas elevadas avaliam mal as coisas que
de fato têm bem pouca importância; mas frequentemente os
espíritos superficiais e inconsequentes veem como sendo de
grande importância algo que não é nem bom nem perfeito de
modo algum.
76. Quando o ar é puro, vemos brilhar os raios do sol; do
mesmo modo uma alma que Deus purificou com sua graça vê
brilhar nela mesma os raios da luz celeste.
77. Diremos aqui que cometer uma falta, levar uma vida
ociosa, se entregar à negligência, sentir inclinações
desregradas e contentá-las, são coisas distintas umas das
outras. Que aquele que recebeu as luzes necessárias para
encontrar esta diferença a procure com sinceridade.
78. Muitos elevam até o céu e veem como a felicidade da vida,
a graça e o poder de fazer milagres e de ser grande perante
os homens pelos favores e as graças extraordinárias e
sobrenaturais; mas estes se enganam, eles ignoram que os dons
do céu que menos nos expõem a quedas são na verdade os mais
preciosos favores que podemos receber de Deus.
79. Um homem perfeitamente purificado de seus pecados conhece
o estado e as disposições interiores de seu próximo, ao menos
de uma maneira imperfeita. Progredindo, ele julga o estado de
alma a partir do corpo.
80. Um fogo insignificante pode incendiar uma floresta
inteira, e uma pequena falta é capaz de nos fazer perder todo
o fruto de nossos trabalhos espirituais.
81. Existe um pequeno alívio que podemos conceder a carne
rebelde e inimiga, que dá forças à alma sem excitar os
ardores da concupiscência; mas existem também grandes fadigas
que a fazem se revoltar contra o espírito. Deus permite que
seja assim a fim de que, não depositando nossa confiança em
nós mesmos, a depositemos somente em Deus, o qual, por meios
ocultos, pode mortificar em nós os fogos mais ardentes da
concupiscência.
82. Quando vemos pessoas que nos amam segundo Deus e por
Deus, conservemos em relação a elas uma reserva conveniente e
evitemos abusar de certas familiaridades; pois nada é tão
capaz de prejudicar a amizade e transformar as afeições
ternas em sentimentos de raiva e aversão, do que uma
liberdade exagerada.
83. O olho de nossa alma é sutil e penetrante; pois, à
exceção dos anjos, ele ultrapassa em luz e sutileza a todas
as outras criaturas. É assim que vemos que mesmo as pessoas
ainda agitadas por suas paixões – desde que ainda não tenham
sido enterradas na lama de seus pecados – em virtude do
grande afeto que sentem por seus irmãos, conhecem os
pensamentos e os sentimentos que existem em suas almas.
84. Nada é mais oposto a um ser simples e espiritual do que a
matéria e o corpo; quem ler estas palavras, compreenda-as.
85. As observações que as pessoas do mundo com seu espírito
mundano e carnal fazem sobre o curso da divina Providência,
não podem produzir neles, e entre os monges, são trevas
espessas e funestas.
86. As pessoas pouco firmes e pouco constantes na prática da
virtude não devem ignorar que é, pelo fato de Deus tomar um
cuidado especial com sua salvação que ele permite que elas
fiquem expostas a indisposições corporais, a perigos e
acidentes lamentáveis; quanto aos perfeitos, devem ver nas
calamidades sensíveis uma prova consoladora da presença do
Espírito Santo e uma marca segura do aumento dos dons
celestes em suas almas.
87. Devemos nos precaver contra o demônio que, quando estamos
a ponto de dormir, procura encher nosso espírito com maus
pensamentos. Ele espera que, com nossa negligência em
expulsá-los e em nos armarmos com a oração, nos entreguemos
ao sono junto com esses pensamentos, os quais nos causarão
sonhos maus durante a noite.
88. Existe um espírito que podemos chamar de precursor, que
se apresenta a nós em nosso despertar, a fim de nos tentar e
corromper a pureza de nossa alma com os pensamentos infames
que ele tenta nos inspirar. É por isso que devemos tomar o
maior cuidado em consagrarmos a Deus as primícias de cada
dia; pois o dia pertencerá àquele que dele tomar posse
primeiro. Um grande servidor de Deus me disse um dia estas
palavras memoráveis: “Eu prevejo e conheço o que serei
durante o dia pelo estado em que me encontro quando ele
começa”.
89. Existem muitos caminhos que levam as almas à piedade, mas
também muitos que as podem conduzir à infelicidade eterna.
Dentre as vias que levam à salvação, existem algumas que
convêm a certas pessoas, mas não a outras, mesmo que a
conduta de umas e outras seja agradável e Deus.
90. Em todas as tentações às quais estamos expostos, os
demônios fazem todos os esforços para nos fazer dizer e
cometer coisas inconvenientes. Se eles não conseguem obter o
que desejam, eles tentam habilmente nos fazer dar graças a
Deus pela vitória que obtivemos, com espírito e sentimento de
orgulho.
91. Aqueles que sentem gosto pelas coisas celestes, seja por
terem renunciado voluntariamente às coisas da terra, seja por
terem sido libertos pela morte, sobem gloriosamente ao céu,
enquanto que, ao contrário, os que não amam senão as coisas
da terra, descem para o fundo após a morte. Não existe meiotermo.
92. Mas não é uma coisa surpreendente que a alma, que foi
criada em nosso corpo e que nele recebeu sua natureza e sua
existência, e não em si mesma, possa, não obstante existir
fora de nosso corpo, quando a morte a separa dele?
93. As mães piedosas fazem nascer filhos piedosos, e foi o
Senhor que criou suas mães. Ora. Seria absurdo aplicar esta
regra em sentido contrário.
94. Quem não sente em si a coragem necessária, não deve ir à
guerra; é o que Moisés, ou antes o Senhor, proibiu aos
israelitas; pois devemos temer que a última perdição de uma
alma seja ainda pior do que sua primeira queda.
Do discernimento judicioso
95. Assim como são os olhos que iluminam todos os membros de
nosso corpo, podemos assegurar que é a discrição que é a luz
de todas as virtudes que devemos praticar. É por isso que um
cervo pressionado pela sede busca com mais ardor as águas
refrescantes de uma fonte, e é por isso que as almas
verdadeiramente
religiosas
não
buscam
conhecer
nem
compreender qual é a vontade do Senhor a seu respeito, e
menos ainda discernir, não apenas as coisas que lhes seriam
diretamente contrárias ou diretamente conformes, mas ainda
aquelas que lhes seriam contrárias sob um aspecto e conformes
segundo outro. Teríamos muito que dizer a respeito, mas a
matéria não é fácil. Com efeito, seria preciso examinar
aquilo que devemos fazer sem delongas e prontamente, segundo
as palavras da Escritura: “Não esperem de um dia para outro,
nem de um momento para outro[58]”, e aquilo que devemos fazer
com vagar, sabedoria e reflexão, como nos advertiu Salomão:
“Não devemos fazer a guerra senão depois de tomar todas as
precauções necessárias e depois que tudo esteja pronto[59]”,
e também são Paulo, dizendo-nos que tudo deve ser feito com
decência e segundo a ordem[60]. Mas isto não serve para
todos; não, não é a todos que é possível discernir de
imediato e com clareza coisas cujo discernimento é bastante
difícil; pois Davi, que estava cheio do Espírito de Deus, e
que, com sua inspiração, nos legou tantas e tão belas coisas,
não cessava de lhe pedir o dom precioso do discernimento em
suas orações fervorosas: “Ensine-me, Senhor, a fazer sua
santa vontade, pois você é o meu Deus”; e: “Conduza-me, meu
Deus, pelo caminho de sua verdade, e instrua-me, porque você
é meu Deus e meu Salvador[61]”; e também: “Faça-me conhecer a
via pela qual devo marchar, porque elevei minha alma até
você[62]”.
96. Todos os que são animados pelo desejo sincero de conhecer
a vontade de Deus a seu respeito devem, em primeiro lugar,
imolar sua própria vontade, renunciar generosamente a si
próprios e orar com uma fé viva e ardente e uma grande
simplicidade; em seguida, devem consultar com humildade e
confiança seu superior e mesmo seus irmãos, receber suas
opiniões e seus conselhos, como se viessem da boca do próprio
Deus, mesmo que sejam contrários ao objetivo desejado, e
mesmo que os autores desses conselhos e opiniões não sejam
tão versados nas coisas espirituais; pois Deus é bastante
justo e bom para jamais permitir que almas que, com um
espírito de fé, humildade e simplicidade, sejam enganadas e
se percam por se submeterem aos conselhos e à direção de
outros. Com efeito, por desprovidas de luz e de prudência que
possam ser as pessoas consultadas com tão boas disposições e
com uma visão tão pura e santa, será Deus a falar por suas
bocas. Confesso que, para seguir essa regra, é preciso estar
cheio de humildade; mas depois de tudo, se Davi com sua harpa
pode descobrir e conhecer as coisas que desejava, quanto mais
uma alma dotada de razão e inteligência deve superar as
cordas de um instrumento!
97. Existem muitos que se recusam a utilizar esse meio tão
seguro e fácil, porque têm uma complacência secreta e uma
confiança presunçosa em suas próprias luzes. E assim os
vemos, para conhecer a vontade de Deus, empregar mil meios
diferentes que não passam de puras invenções e de vãs
opiniões.
98. Mas existem outros que, desejando sinceramente saber qual
a vontade de Deus a seu respeito, renunciam a toda afeição
por si próprios, voltam-se humildemente para o Senhor por
meio de preces ardentes, lhe oferecem e sacrificam seus
pensamentos e seus projetos, submetem a ele inteiramente seu
espírito e suas luzes, se despojam perfeitamente da própria
vontade, a qual tanto os poderia levar a tomar um partido,
como os engajaria em outro; tendo assim perseverado por algum
tempo nestas felizes disposições, eles conseguem enfim saber
o que Deus lhes pede e exige, seja porque aprenderam pelo
ministério de um espírito enviado de parte de Deus, seja por
conhecerem por si mesmos, porque o próprio Deus apagou de seu
espírito as razões que apoiariam ou destruiriam o partido que
pensavam tomar.
99. Existem outros ainda que, a partir das perturbações e das
agitações às quais estavam expostos, tomaram sua decisão e
julgaram em seguida que ela seriam conforme a vontade de
Deus, fundados sobre as palavras do Apóstolo: “Muitas vezes
quisemos visitá-lo, mas Satanás nos impediu[63]”.
100. Outros, ao contrário, concluíram que o que haviam
resolvido fazer seria agradável a Deus, por terem sido
socorridos por sua graça para executá-lo; e, para se
tranquilizar, eles pensaram nesta sentença: “Deus vem em
auxílio daquele que se propõe a fazer o bem[64]”.
101. Assim, quem tem a felicidade de possuir a Deus em seu
coração, recebe dele e sem demora as luzes abundantes que ele
lhe comunica e a certeza de que o que faz está de acordo com
a Sua vontade, seja por colocar sua determinação sobre coisas
que era urgentes, seja sobre coisas que podiam ser adiadas.
102. Permanecer um longo tempo indeciso e irresoluto sobre o
partido a tomar, normalmente não é um sinal de que nos falta
o esclarecimento de Deus, mas sim de que somos escravos da
vanglória.
103. Deus não é injusto, e os que batem com humildade à porta
de suas misericórdias não são despedidos nem rejeitados.
104. É essência para nós considerar essas coisas diante de
Deus a fim de nos propormos a fazer o que deve ser feito logo
e fazê-lo, e o que pode ser adiado, adiá-lo; pois tudo o q1ue
fazemos com uma intenção reta e pura, desde que seja algo bom
em si mesmo, se o fizermos verdadeira e unicamente por Deus,
e jamais com outra finalidade, mesmo que não seja de uma
santidade perfeita, Deus o levará em conta, não tenhamos
dúvida. Mas estaremos correndo riscos, se tivermos a
imprudência de tentarmos fazer o que está acima de nossas
forças;
105.
Os
julgamentos
de
Deus
a
nosso
respeito
são
inexplicáveis e incompreensíveis; e muitas vezes, por uma
disposição especial de sua Providência, ele não nos deixa
conhecer aquilo que ele gostaria que fizéssemos, porque ele
prevê com certeza que, se o soubéssemos, não o faríamos, e
que este conhecimento seria para nós um funesto motivo para
castigos mais severos.
106. Um coração reto na diversidade das coisas que deve fazer
se preserva de toda curiosidade e caminha com segurança pelas
vias da inocência.
107. Existem almas generosas que, pelo amor ardente com que
queimam por Deus, vivem sempre na prática de uma humildade
profunda e fazem esforços extraordinários para praticar
coisas que estão acima de suas forças; mas também existem
almas orgulhosas que fazem o mesmo. Reparem que o objetivo e
a
finalidade
a
que
os
demônios
se
propõem
nessas
circunstância, estes cruéis e impiedosos inimigos nossos, é o
de nos engajar a fazer aquilo que não podemos, a fim de
omitir o que podemos, de nos fazer perder o mérito e a
recompensa e de nos expor à sua própria irrisão.
108. Já vi gente que, por causa da fraqueza de sua alma e de
seu corpo, haviam tentado praticar austeridades acima de suas
forças, com o fito de expiar as numerosas faltas que
reprovavam em si; mas fui obrigado a lhes fazer compreender
que Deus não julga tanto o valor de nossos trabalhos e de
nossa penitência pela grandeza de nossas austeridades, mas
pela medida e a sinceridade de nossa humildade.
109. Às vezes é a má educação recebida, às vezes a
frequentação com pecadores, que nos precipita no abismo; mas
o mais comum é ser apenas a perversidade do coração a nos
fazer perder. Quem vive na solidão normalmente está ao abrigo
das duas primeiras causas que fazem cair no pecado, e talvez
até da terceira; mas quem é perverso em si mesmo e cujo
coração é como um fruto estragado, será sempre e em toda
parte vicioso; o próprio céu não conseguiria pô-lo a salvo.
110. Depois de havermos respondido uma ou duas vezes com
doçura e caridade aos que nos atacam, abandonemo-los, sejam
essas pessoas heréticas ou pagãs. Mas se percebermos que não
existem neles más intenções, mas um desejo sincero de
instrução, não deixemos de lhes dar as instruções santas e
salutares que nos pedem; não entremos em disputa com eles e
não os instruamos senão para fortalecermos a nós mesmos na fé
e na piedade.
111. Aquele que, ao ouvir contar as belas ações que os Santos
praticaram, e, vendo que elas ultrapassavam as forças da
natureza, se deixa abater e desesperar, é um homem sem juízo
nem razão; pois essas ações nos são úteis, e muito, sob dois
aspectos: elas nos incitam a fazer todos os esforços para
caminhar sobre as pegadas dessas almas santas e generosas, e
nos conduzem por meio da humildade a conhecermos a nós mesmos
e a sentirmos nossa miserável fraqueza.
112. Dentre os demônios, alguns são piores do que os outros;
mas os piores de todos são os que nos encorajam não apenas a
pecar, mas a buscarmos cúmplices para nossas prevaricações, a
fim de atrairmos castigos ainda mais temíveis. Eu encontrei
em minha vida um homem que, por seus exemplos e lições
funestos havia arrastado outro para um mau hábito. Ora, o
primeiro, que causou a ruína espiritual de seu irmão, caiu em
si, deixou de pecar e começou uma severa penitência; mas esta
penitência foi inútil e não frutificou, por causa dos pecados
que continuou a cometer o outro, a quem ele havia seduzido.
113. A malícia do demônio varia quase até o infinito; ela é
grande e muito difícil de conhecer, e poucas pessoas são
capazes de penetrá-la; ouso dizer que ela jamais foi
inteiramente conhecida. Com efeito, como poderíamos, vivendo
em meio às delícias e nos entregando aos excessos da
intemperança, observarmos ainda as necessárias vigílias, como
se seguíssemos as leis da mais estrita sobriedade e da mais
rigorosa abstinência? Donde nos vem que, enquanto jejuamos e
praticamos as maiores austeridades, nos vemos oprimidos pelo
sono? Como acontece que, enquanto guardamos o silêncio
perfeito
da
solidão,
sentimos
nosso
coração
duro
e
insensível, e que, quando nos entregamos à dissipação na
companhia de alguns irmãos, experimentamos sentimentos da
mais ardente compunção? É possível compreender porque sonhos
inoportunos nos fadigam à noite, mesmo quando sofremos fome e
sede, ou que dormimos livres dessas sonhos, quando estamos
plenamente saciados? Como é possível explicar que, em pleno
seio da pobreza e da temperança, seja nosso espírito envolto
em trevas e nosso coração ferido pela insensibilidade,
enquanto que no meio da abundância e mesmo dos excessos do
vício, nos sintamos espirituais e sejamos levados às lágrimas
e à penitência? Ora, de todas essas coisas tão diferentes, se
alguém recebeu do Senhor as luzes capazes de conhecer suas
razões secretas, que partilhe conosco; pois eu confesso
francamente minha ignorância. Mas devo dizer no entanto que
essas vicissitudes e essas mudanças tão extraordinárias nem
sempre provêm da malícia dos demônios, mas às vezes vêm de
uma mistura e de uma aliança entre a carne e o sangue, que
formam ao nosso redor um bem estar perigoso e enganador que,
não sei de que maneira, atira nosso espírito nas mais
espessas trevas.
114. Para saber através de quais princípios acontecem esses
efeitos contrários, coisa que é dificílima de saber, não
temos outro meio senão nos dirigirmos a Deus com preces
sinceras e feitas com grande humildade; e se, depois de
nossas humildes súplicas, ainda experimentarmos as mesmas
perturbações e a mesma agitação, deixemos de atribuir essas
coisas aos demônios e consideremo-las como simples efeitos da
natureza. Mas não deixemos de observar que muitas vezes a
divina Providência arranja as coisas de tal modo a que aquilo
que nos parece contrário aos nossos interesses eternos seja
na verdade favorável, e que o que Deus quer é abater nosso
orgulho e nossa vaidade por todos os meios.
115. Os julgamentos de Deus são um abismo impenetrável. Quem
tentou sondá-los só o fez por causa de uma curiosidade e
orgulho insuportáveis.
116. Alguém um dia indagou a um homem experiente nos caminhos
de Deus, por que o Senhor, que prevê com uma ciência
infalível as faltas de certas pessoas, nem por isso deixa de
favorecer essas pessoas com os dons mais raros e preciosos, e
mesmo com a virtude de fazer milagres; “É, respondeu ele,
para tornar os outros homens mais sábios e mais vigilantes,
para nos fazer conhecer a liberdade de que desfruta nossa
vontade, e para tornar indesculpáveis perante o Juízo final
aqueles que tenham caído em pecado depois de haver recebido
favores tão extraordinários”.
117. Por causa de suas imperfeições, a Lei se contentava em
dizer aos homens: “Vigie e a si mesmo[65]”; mas nosso Senhor,
o autor e consumador da Lei, não nos encarregou simplesmente
de vigiar a nós mesmos, mas ainda de corrigir os irmãos,
segundo estas palavras: “Se seu irmão cair em falta, vá e
mostre o erro dele, etc.[66]”. Ora, se sua corrigenda for
temperada com sinceridade e modéstia, se seu conselho for
caridoso, mais do que uma amarga reprimenda, vocês estarão
cumprindo com precisão a vontade do Senhor, ao realizar este
dever
de
caridade,
sobretudo
diante
dos
que
recebam
positivamente suas advertências e admoestações; e se você não
se considerar perfeito – coisa que de fato não é – para dar
lições aos outros, faça ao menos o que a lei manda.
118. Se você vir seus melhores amigos se tornarem seus mais
cruéis inimigos, não se espantem, mas lembrem-se de que os
demônios se servem da perfídia e da inconstância desse tipo
de gente, como instrumentos necessários para fazer guerra aos
homens, em especial contra aqueles a quem eles odeiam de modo
particular.
119.
A
coisa
que
deve
tocá-los
com
extraordinária
estupefação, é ver a Deus, que tudo pode, nos ajudar com sua
graça, os anjos e os santos nos socorrerem com sua proteção
na prática da virtude, enquanto que o demônio, que nada pode,
ser o único a nos levar ao vício e nos arrastar com mais
facilidade ao mal do que todo o resto ao bem; mas não posso e
nem quero aprofundar este tema aqui.
120. Assim, se todas as criaturas estão dispostas e
arranjadas conforme às suas naturezas, como é possível,
perguntava-se o santo Gregório, que eu, que sou a imagem de
Deus, não passe de uma mistura de barro, e seja formado, de
certa forma, desta ignóbil matéria? Se é certo que um ser que
não se encontre num estado que convenha à sua natureza faça
todos os esforços para chegar a ela, quais cuidados devemos
tomar e que violências nos fazer para nos elevarmos até Deus,
que é o nosso centro, de modo a merecer nos sentarmos no
trono eterno que sua Ternura nos preparou? Que ninguém use a
dificuldade como desculpa para subir ao alto! Pois o caminho
que nos leva até lá e a porta pela qual nos introduziremos
são iguais para todo o mundo.
121. O exemplo e os relatos das ações admiráveis que nos pais
fizeram para chegar até lá devem nos tocar e nos animar com
generosa emulação.
122. A doutrina celeste com a qual alimentamos nossas almas é
uma luz capaz de dissipar as trevas que poderiam nos tirar a
vista do caminho que leva para lá, de nos conduzir de volta,
quando temos a infelicidade de abandoná-lo, e de nos iluminar
constantemente mesmo em meio à maior escuridão. Quem possui o
dom do discernimento saberá encontrar a saúde necessária, e
curar sua alma de todas as enfermidades.
123. Costumamos admirar as pequenas coisas nos outros, por
duas razões principais: ou por uma grande ignorância, ou por
uma profunda humildade que nos faz buscar conhecer e
salientar suas belas ações.
124. Empreguemos todas as nossas forças, não digo para
simplesmente nos defendermos de nossos inimigos espirituais,
mas para atacá-los e lhes fazer uma guerra declarada; pois
quem se contenta em resistir aos demônios tanto os fere como
é por eles ferido; mas o que lhes faz uma guerra aberta os
persegue até o final.
125. Não esqueçamos de que quanto mais ferimentos causamos
aos demônios, mais vitórias obtemos sobre nossos maus
pendores, e que, agindo sempre como se estivéssemos expostos
à sua violência, usamos de um piedoso artifício que
desconcerta nosso inimigo e nos torna invencíveis. Um dia um
irmão temente a Deus havia sido tratado de forma ignominiosa;
porém ele não sentiu nem perturbação nem emoção, e se
ofereceu inteiro ao Senhor no secreto de seu coração. Não
obstante, ele se pôs a chorar e a se lamentar os ultrajes
recebidos, e com essa demonstração ocultou a perfeita
tranquilidade que sentia no fundo de sua alma. Outro monge,
que se considerava realmente indigno de ter um dos primeiros
lugares na comunidade, fingia desejá-lo ardentemente. Ousarei
ainda acrescentar outro, cuja castidade e pureza estavam
acima de qualquer suspeita, e que entrou num lugar mal
afamado, como se tivesse a intenção de ofender a Deus, e de
lá retirou uma miserável criatura, a quem fez abraçar a vida
religiosa. Um solitário, a quem outro solitário trouxera pela
manhã deliciosas uvas, comeu com grande avidez, embora não
sentisse gosto nem apetite; ele agiu assim para fazer crer
aos demônios que era um homem empedernido. Outro, que perdera
algumas tâmaras, passou o dia com cara de quem sofrera uma
grande perda. Mas os que quiserem empregar esses meios para
fazer a guerra ao demônio devem usar de uma grande prudência
e circunspecção: pois correm o perigo de se tornarem seus
próprios joguetes ao agir assim, e essas pessoas certamente
devem se contar entre aquelas de quem o Apóstolo falou: “São
considerados como sedutores e enganadores, mas são amigos
sinceros da verdade[67]”.
126. Se alguém pensa e deseja oferecer a Deus um corpo casto
e lhe apresentar um coração puro, que se dedique a praticar a
paciência e a doçura, a temperança e a mortificação; pois sem
essas virtudes, suas penas e trabalhos não lhe serão de
grande valia.
127. O sol da inteligência derrama em nossa alma luz que são
mais ou menos abundantes e mais ou menos vivas, a fim de que
ela distinga os objetos espirituais, do mesmo modo como os
olhos distinguem os objetos materiais. De fato, tanto ele nos
ilumina por meio das lágrimas da penitência que ele derrama
pelos olhos do corpo, quanto por meio dos gemidos interiores
que ele faz pulsar em nosso coração; aqui é por meio de uma
santa alegria que a palavra de Deus incita em nossa alma, ali
é pelo repouso e a obediência que ele derrama sua luz
benfazeja. Mas além dessas maneiras, existe uma outra em
especial, secreta e inexplicável: é quando a alma, por um
celeste arrebatamento, é colocada na presença de Cristo.
128. Devemos considerar as virtudes sob dois aspectos, seja
como filhas, seja como mães. Todos os que são dotados de
sabedoria e prudência fazem seus esforços para adquirir e
conservar as virtudes-mãe, e é o próprio Deus, pela
onipotência de seu Espírito, quem nos faz conhecer essas
virtudes. Quanto às virtudes-filhas, não faltam mestres para
no-las ensinar.
129. Devemos ainda cuidar para não substituir pelas doçuras
do sono as delícias das quais nos privamos jejuando e nos
mortificando. Agindo assim, estaremos sendo insensatos; a
conduta oposta sim é prova de sabedoria.
130.
Encontrei
alguns
servidores
de
Deus
que,
por
certas
razões, haviam relaxado um pouco sua mortificação às
refeições; mas eles haviam tomado a generosa resolução de
passar as noites em vigílias, sem sequer sentar-se para
repousar. Por este meio eles se puniram tão bem de sua
intemperança, que em seguida puderam se abster de todo
excesso no comer, não apenas com facilidade mas ainda com uma
alegria e contentamento deliciosos.
131. O demônio da avareza muitas vezes faz a guerra contra
pessoas que nada possuem. Ele não cessa de persegui-las. Se
ele não consegue fazê-las abandonar a pobreza por si mesmas,
ele
procura
desviá-las,
inspirando-lhes
sentimentos
de
comiseração em favor dos indigentes. É por meio dessa
tentação sutil e por esse pretexto especial que muitas
pessoas que haviam se libertado com sucesso da afeição pelas
coisas da terra às quais haviam renunciado, retornam
miseravelmente aos negócios tumultuosos do século.
132. Se a visão de nossas faltas nos inspira o pensamento do
desespero, apressemo-nos a considerar a ordem que um dia o
Senhor deu Pedro, quando o ordenou perdoar setenta e sete
vezes a quem o houvesse ofendido[68]. Ora, aquele que indicou
este preceito a seu apóstolo, nos perdoou e nos perdoará
certamente muitas vezes. Se, ao contrário, é a lembrança e o
pensamento de nossas boas obras que incham nosso coração e
nos sugerem sentimentos de orgulho, devemos opor a esta
tentação as palavras: “Aquele que tiver cumprido com toda a
lei espiritual, mas que faltar em um único ponto, como por
exemplo se deixando levar pela vaidade, será punido como se
houvesse faltado com toda a lei[69]”.
133. Pode acontecer de os demônios, tão maus como invejosos,
não se retire de perto das almas santas senão para que,
deixando estes de lhes fazer guerra, fiquem privados de obter
sobre eles novas vitórias e de aumentar seus méritos e seus
tesouros.
134. Ninguém duvida que as pessoas pacíficas mereçam ser
chamadas de felizes; e no entanto já vi pessoas consideradas
felizes, embora só levassem a discórdia e a desunião aos seus
irmãos! Com efeito, havia dois homens que se amavam com um
amor criminoso; um padre, dos mais virtuosos e mais
esclarecidos, tentou separá-los, inspirando neles uma aversão
mútua. Ele o conseguiu, dizendo a um que seu amigo havia
falado mal dele, e fez o mesmo ao outro. Foi assim que a
sabedoria e a prudência deste bom padre desmanchou a malícia
e os triques do demônio, e que, por uma espécie de aversão
que ele lhes sugeriu, acabou por expulsar o amor impuro do
coração daqueles infelizes.
135. Existem pessoas que, para serem fiéis a determinados
pontos da lei, parecem violar outros; assim é que já observei
jovens que se amavam muito, mas com uma afeição pura e casta,
os quais, para não causar escândalo entre os irmãos e não
ferir sua consciência, interromperam as relações de sua santa
amizade.
136. Assim como um casamento difere de um funeral, o orgulho
é contrário ao desespero, embora esses dois vícios, pela
malícia dos demônios, se achem algumas vezes reunidos numa
mesma pessoa.
137. Existem espíritos impuros que, quando nos iniciamos na
religião, se apressam em interpretar por si mesmos as santas
Escrituras; eles o fazem sobretudo aos que são escravos da
vanglória, e mais ainda, aos que, no mundo, estudavam as
ciências humanas e viviam segundo a prudência do século. O
objetivo desses demônios em se conduzir assim perante essas
pessoas consiste em fazê-las cair em alguma heresia, ou fazêlas proferir blasfêmias. Nessas circunstâncias, a perturbação
interior da alma, uma alegria indiscreta e imoderada do
coração nos farão saber que essas interpretações provêm do
demônio, e que elas não poderão nos explicar as palavras
sagradas, mas obscurecê-las e profaná-las.
138. Existem criaturas a quem Deus determinou a ordem e o
princípio;
outras,
a
quem
Deus
igualmente
ordenou
e
determinou o termo e o fim; mas a virtude possui um fim que é
sem fim, segundo o salmista: “Eu vi as coisas mais perfeitas;
mas seu mandamento, ó Deus, é de uma extensão infinita[70]”.
Ora, se existem pessoas capazes de passar dos exercícios da
vida ativa às virtudes e ao santo repouso da vida
contemplativa, se existem corações nos quais age a caridade,
e dos quais o Senhor, segundo o pensamento do rei dos
profetas, guarda a entrada – que é o temor de seus
julgamentos – e a saída – que é o amor por sua bondade – não
fica evidente que esse amor de Deus é sem limites e sem fim,
porque sempre é possível progredir mais e mais nele, seja
neste mundo, seja no outro, onde nossas luzes receberão sem
cessar novos esplendores? E ainda que aquilo que vou dizer
possa parecer um paradoxo a muitos, não hesitarei, bemaventurado pai, em extrair esta consequência de tudo o que eu
disse, e direi então que os espírito celestes não permanecem
no mesmo estado e que sua glória e seus conhecimentos
aumentam sempre.
139.
Não
se
espantem
se
os
demônios
nos
inspiram
primeiramente alguns bons pensamentos, e a seguir os combatem
em nós de certa maneira: pois com isso eles pretendem nos
fazer crer que conhecem perfeitamente o que existe de mais
oculto em nosso coração.
140. Sejam prudentes e discretos nas censuras e nos
julgamentos que fizerem sobre as pessoas que dão aos outros
numerosas, belas e sublimes lições, mas que pouco as colocam
em prática para si mesmas; pois pode acontecer que os
benefícios que elas trazem aos seus irmãos substituam as boas
obras que elas deixam de fazer. Com efeito, não é no mesmo
grau nem da mesma maneira que iremos adquirir e possuir os
bens da alma, pois existem os que são melhores nas palavras
do que nas ações, enquanto que com outros acontece o
contrário
141. Deus não é nem o autor nem o criador do mal; enganam-se
os que pretendem que certas paixões sejam naturais da alma,
ignorando que nós é que transformamos em paixões as
qualidades constitutivas de nossa natureza. Por exemplo, a
natureza nos fornece o esperma para nossa procriação; mas nós
o pervertemos, utilizando-o para a luxúria. A natureza nos
deu a cólera contra a serpente, mas nós nos servimos dela
contra o nosso próximo. A natureza nos anima de zelo para a
emulação da virtude, mas nós o usamos para o mal. Existe na
alma, por causa da natureza, o desejo de glória, mas da
glória do alto. É natural sermos arrogantes, mas contra o
demônio. A alegria também é natural, mas por causa do Senhor
e do bem que chega ao nosso próximo. A natureza também nos
deu o ressentimento, mas contra os inimigos da alma. Nós
recebemos o desejo de uma alimentação agradável, mas não
pelos excessos da mesa.
142. Uma alma generosa excita os demônios contra si. Mas
quando os combates aumentam, as coroas se multiplicam. Quem
jamais foi ferido pelo inimigo, também jamais será coroado.
Ao contrário, quem não se deixa abater apesar das quedas,
será glorificado pelos anjos como um bom combatente.
143. Aquele que permaneceu por três dias no túmulo e
ressuscitou para não mais morrer; pelo mesmo motivo, aquele
que, em três ocasiões diferentes, venceu as tentações, já não
estará exposto a morrer.
144. Se Deus, a fim de nos instruir e nos corrigir, permite
que o Sol de Justiça, segundo a expressão de Davi, depois de
se ter elevado em nossa alma, alcance o momento de se por e
desaparecer, causando à alma com sua ausência trevas
profundas e uma noite escura, e se, durante esta noite
desoladora, os leões furiosos e outros animais ferozes, vale
dizer: nossas paixões, se retornam sobre nós, ainda que os
tivéssemos antes derrubado e vencido, e fazem novos esforços
para nos roubar a bela esperança que tínhamos na vitória, e
também
para
nos
sujar
fazendo-nos
consentir
em
maus
pensamentos e assim cometer ações criminosas; se, enfim,
nossa humildade profunda faz com que mais uma vez nasça sobre
nós o sol de luz, e que todas as bestas selvagens se reúnam
para se retirar para seus covis, ou para os corações desses
miseráveis que se deliciam com as volúpias sensuais, para não
mais nos inquietarem, então os demônios são obrigados a
confessar que, para sua vergonha, o Senhor fez grandes coisas
em nosso favor[71], e que ele nos deu uma prova sensível de
sua bondade e de sua benevolência; quanto a nós, podemos lhes
responder: “Certamente o Senhor fez grandes coisas, e estamos
inundados de alegria[72]”. Quanto a vocês, que sofreram essa
terrível provação da parte dos demônios, poderão dizer: “Eis
que o Senhor subirá numa nuvem rápida, ou seja, sobre suas
almas acima de todas as afeições terrestres, e entrará no
Egito, vale dizer no coração que antes se achava repleto de
trevas espessas, cumulado com os ventos impetuosos das
paixões, e todos os ídolos do Egito tombaram diante de sua
Face,
ou
seja,
todos
os
maus
pensamentos
foram
dissipados[73]”.
145. Se Cristo não hesitou em fugir da presença de Herodes,
não foi para nos ensinar que os temerários e os imprudentes
não devem se atirar no meio dos perigos? Com efeito, ao se
expor temerariamente, eles se tornam indignos de que o Senhor
vele por eles para impedir que seus pés sejam embaraçados
pelos esforços de seus inimigos, e mereçam que aquele que
está encarregado de cuidar deles cochile e adormeça[74].
146. O orgulho se mistura à magnanimidade, mais ou menos como
a trepadeira, que se parece com a hera, se entrelaça no
cipreste.
Vigiemo-nos
com
grande
cuidado,
e
não
negligenciemos nada para não deixar entrar em nosso espírito
pensamento algum, por mais inocente que nos pareça, e que
seja capaz de nos fazer crer que possuímos a menor virtude, e
que tenhamos feito sequer uma boa obra de qualquer valor.
Quando
sentirmos
essa
tentação,
examinemos
séria
e
atentamente as propriedades e as marcas do bem e da boa obra
que acreditamos ter feito: este exame não deixará, sem
dúvida, de nos convencer que somos inteiramente desprovidos
de todo bem e de toda virtude. Procurem exatamente e
descubram quais são as paixões que mais tiranizam seus
corações; pois esta descoberta os fará conhecer um grande
número de outras que vocês ignoram.
147. Nós os ignoramos precisamente porque estamos debaixo de
seu funesto domínio, porque eles já nos reduziram a uma
deplorável fraqueza e porque já lançaram em nosso coração
raízes muito profundas.
148. Nas coisas que ultrapassam absolutamente nossas forças
Deus se contenta com a boa vontade com a qual as realizamos;
mas o mesmo não acontece com aquelas que nos são possíveis:
sua
bondade
exige
imperiosamente
que
as
façamos.
Verdadeiramente grande diante de Deus é que faz todo o bem
que pode; mas é ainda maior aos seus olhos quem, com
sentimentos de uma humildade sincera, se esforça por fazer
mais do que pode.
149. Mas ainda aqui devemos desconfiar dos demônios, pois
muitas vezes eles nos desviam das coisas fáceis que somos
obrigados a fazer, para nos levar a tentar coisa maiores e
mais difíceis.
150. Vi na santa Escritura que Deus louvou o santo patriarca
José, não por ter ele preservado seu coração de toda afeição
desregrada, mas por ter fugido da oportunidade de pecar. Ora,
cabe a nós ver em quais circunstância e quanto fé possuímos
para que mereçamos a recompensa reservada àqueles que fogem
da ocasião do pecado. Existe uma grande diferença entre
evitar, mesmo a sombra do pecado, e correr para junto do Sol
de Justiça.
151. Quem vive no meio das trevas de suas paixões, está
terrivelmente exposto a tropeçar. E estes tropeços e quedas
que elas lhe proporcionam acabarão por lhe trazer a morte.
Normalmente é bebendo muita água que as pessoas que tomaram
vinho em excesso recobram o uso da razão que haviam perdido
por causa da bebida; e é por meio das lágrimas sinceras da
penitência que aqueles a quem os vapores envenenados das
paixões fizeram perder as luzes preciosas da graça, podem
recuperá-las e sair desses estado deplorável.
152. Se deixar levar às faltas contra a continência, se
atirar à dissipação e se deliciar nas trevas são três coisas
muito diferentes entre si. A abstinência, a mortificação e os
jejuns podem nos purificar dos pecados que cometemos contra a
castidade; a solidão e o retiro são capazes de nos curar da
dissipação; uma estrita obediência e uma humilde submissão
são próprias para nos fazer sentir aversão às trevas e para
nos tirar delas; mas acima de tudo, será a graça daquele que
se tornou obediente por nossa causa, que poderá nos libertar
de todos esses males.
153. Podemos ainda aqui nos servir do exemplo de dois tipos
de operários que trabalham para limpar e preparar os tecidos
necessários para fazer roupas, para compreendermos que
existem duas maneiras das quais devem se servir os que
desejam ardentemente se preparar para merecer e receber os
dons celestes. É por isso que chamaremos os mosteiros de
prensas, porque é nessas casas que as almas são de certo modo
prensadas e purificadas de suas manchas, se desembaraçam da
ferrugem das paixões e abandonam suas deformações; chamaremos
de lugares onde são tingidas as lãs lavadas e purificadas a
solidão dos anacoretas e as celas dos religiosos, porque é lá
que as pessoas que foram lavadas das nódoas que a
incontinência, a lembrança das injúrias e os movimentos de
cólera haviam imprimido em suas almas, levam à perfeição
última sua santificação.
154. Existem os que dizem que as recaídas no pecado costumam
acontecer porque não fizemos uma penitência adequada dos
pecados, proporcional à grandeza e ao número de faltas
cometidas. Mas poderemos afirmar que fizeram uma penitência
verdadeira, todos os que não tiveram mais recaídas?
155. Ouso dizer aqui: as pessoas que recaíram no pecado, foi
porque, de um lado, esqueceram cedo demais das faltas
cometidas; de outro, porque sua preguiça e negligência as
levaram a crer que Deus é demasiado bom e misericordioso;
enfim, é porque elas desesperaram de vencer suas paixões e de
resistir aos seus maus pendores; e não sei se não me
condenarão por acrescentar que alguns que recaem no pecado o
fazem porque não conseguem mais vencer seus inimigos, porque
estão submetidos ao jugo de sua tirania e se veem
acorrentados por ligações com os maus hábitos que contraíram.
156. Podemos examinar aqui o porquê de nossa alma, que é um
puro espírito, não ser capaz de ver os espíritos que possuem
a mesma natureza que ela, nem conhecer de que maneira eles
recebem as impressões dos objetos. Mas não podemos imaginar
que ela não vê os outros espíritos por causa de sua união com
o corpo, que lhe serve de véu? De resto, o único que conhece
este mistério é Aquele que criou a alma e o corpo e que uniu
um ao outro.
157. Um homem dos mais esclarecidos me fez um dia esta
questão: “Diga-me, pois desejo ardentemente aprender, quais
são os demônios que, fazendo-nos cair em pecado, abatem a
coragem das pessoas seduzidas por eles; e quais são os
demônios que, depois de levar a cometer faltas, inflam o
coração dos que corromperam”. Mas como ele me viu embaraçado
com essa questão difícil de responder, e que de resto eu lhe
confessei sob juramento que não seria capaz de lhe responder,
ele próprio respondeu ao que perguntara, e me disse com
bondade: “Vou lhe dar alguns exemplos que o farão conhecer
alguns desses espíritos malignos, e que reunidos às suas
próprias luzes servirão para fazê-lo discernir os demais. Os
demônios que levam à luxúria, à cólera, à intemperança, à
preguiça e ao desânimo não costumam levar orgulho às pessoas
que se entregam a esses vícios desonrosos; mas os demônios
que conduzem à avareza, à dominação, às honrarias, à
loquacidade,
costumam
acrescentar
pecado
sobre
pecado,
enchendo o coração de orgulho e de vaidade: é por essa razão
que o demônio que nos incita a fazer julgamentos temerários
se reúne a esses últimos”.
158. Um monge que visita estrangeiros ou que os recebe em sua
cela, e que, depois de estar entretido por horas inteiras
talvez por todo o dia com eles, sente tristeza porque deve
separar, ao invés de experimentar um sentimento interior
alegria por se ter livrado de uma companhia que o impedia
cumprir seus deveres, demonstra ser um triste joguete
demônio da vaidade ou do demônio da incontinência.
ou
se
de
de
do
159. Devemos antes que todas as coisas prestar atenção de que
lado vem o vento da tentação, a fim de não inflar as velas do
barco espiritual de nossa alma de um modo prejudicial e
contrário.
160. Não há dúvida de que a caridade deve nos levar a buscar
algum consolo e suavidade aos anciãos verdadeiros que
passaram longos anos nos exercícios da vida religiosa e que
desgastaram seus corpos com jejuns e austeridades; mas essa
mesma caridade deve nos engajar fortemente a conduzir à
prática da continência por todos os meios possíveis, e acima
de tudo por meio do pensamento dos juízos de Deus, da
eternidade e dos suplícios do infernos, aos jovens que, por
causa dos inúmeros pecados de sua jovem vida, têm a
infelicidade de tanto maltratar suas pobres almas.
161. É impossível, conforme já dissemos, que logo depois de
nossa conversão e de nossa entrada na religião nos vejamos
perfeitamente liberados dos movimentos da intemperança e dos
sentimentos de vanglória. Evitemos querer combater a vaidade
com o luxo e as delícias; pois a própria vitória que as
pessoas recém convertidas obtêm sobre a gula lhes inspira
sentimentos de vanglória. Antes sirvamo-nos da abstinência
para combater e vencer a vaidade; pois chegará a hora, para
os que têm boa vontade, em que o Senhor nos concederá enfim a
graça de submeter essa funesta paixão.
162. Mas observemos aqui que não são as mesmas paixões que
fazem a guerra aos jovens e aos velhos que acabam de se
converter e se consagrar ao Senhor na religião. Com efeito,
são muitas vezes paixões contrárias que atacam a uns e
outros. É por isso que chamamos feliz e duplamente feliz a
santa humildade por meio da qual os velhos e os jovens
encontram sua salvação e a vitória sobre suas tentações, e
que eles podem facilmente encontrar e praticar, tanto uns
como outros.
163. Não se perturbem com o que vou dizer: encontramos
dificilmente e raramente almas direitas e puras que sejma
isentas de toda malícia, de toda dissimulação e de toda
hipocrisia, que tenham verdadeiro horror pela sociedade e
pelas conversações mundanas, que sigam com constância e
estrita fidelidade as opiniões e conselhos de um bom diretor,
que mereçam passar da paz e tranquilidade da vida solitária e
religiosa – que é um porto – à felicidade celeste, e que
possam se preservar das sujeiras, das agitações e dos
escândalos que se encontram em toda parte, inclusive nas
comunidades religiosas.
164. Deus, para converter os homens voluptuosos, serve-se
normalmente de outros homens: ele emprega o ministério dos
anjos para a conversão das pessoas cheias de artifícios e
malícia; mas somente ele pode operar a conversão dos
orgulhosos.
165. Em favor das pessoas que se aproximam retiradamente de
vocês, empreguem essa espécie de caridade que consiste em
deixa-las agir; permitam que façam o que quiserem, e durante
esse tempo mostrem-lhes sempre a benevolência e um rosto
simpático e jovial.
166. Não obstante, é preciso examinar e conhecer de que
maneira vocês devem usar dessa indulgência, até quanto tempo
e em que circunstâncias devem e podem utilizá-la; enfim,
saber e poder contar que a penitência feita desta maneira,
que não foi estabelecida senão para destruir e eliminar o
pecado, não será capaz de destruir também as virtudes e a
disciplina religiosas.
167. Precisamos de um grande discernimento e de uma rara
prudência para distinguir o bem e para sabermos quando
podemos cessar ou continuar os diferentes combates que
sustentamos contra a matéria e o cadinho do pecado; pois pode
acontecer que, devido à nossa miserável fraqueza, nos seja
necessário evitar o combate, empreendendo uma sábia fuga, a
fim de evitar o encontro com os inimigos para não estarmos
expostos a sermos vencidos e perecer miseravelmente.
168. É preciso ter para com essas ocasiões críticas um
cuidado e uma atenção particulares; pois às vezes a amargura
faz o fel parecer suave: examinemos seriamente quais são os
demônios que nos inflam o orgulho, que nos abatem e nos
desencorajam, que nos endurecem e nos tornam insensíveis, que
nos consolam e acariciam, que nos precipitam nas trevas e que
depois fingem nos iluminar, que nos tornam estúpidos e
bestiais, espiritualmente iludidos, que nos atiram num humor
sombrio e triste e que nos restabelecem no contentamento e na
alegria.
169. Se, no início de nossa retirada e de nossa carreira na
vida
religiosa,
nos
sentimos
mais
agitados
e
mais
atormentados por nossas paixões, do que quando estávamos em
pleno século, não nos perturbemos e não fiquemos espantados;
pois é necessária uma grande comoção nos humores que nos
ocasionaram as enfermidades para podermos chegar a uma cura
perfeita. De resto, quando estávamos no mundo, as paixões
semelhantes a animais selvagens buscavam a obscuridade, a fim
de que, não as vendo, não nos inspirasse horror.
170. Os demônios podem provocar uma falta, uma fraqueza nas
pessoas que não estavam afastadas da perfeição; estas devem
relevar corajosamente e com grande vantagem por meio da
paciência, e, pela prática das boas obras, reparar ao
cêntuplo a perda.
171. Vemos algumas vezes que os ventos fazem apenas ondular o
mar, e que outras vezes eles o agitam até em seus abismos;
ora, observamos os mesmos efeitos nas paixões em relação a
nós mesmos: pois existem aqueles que ficam expostos ao seu
furor, e que às vezes são perturbados e agitados até o fundo
de sua alma; e há os que, por uma vitória obtida sobre elas e
pelo progresso feito na virtude, geralmente não se perturbam
mais do que na superfície de sua alma. É por isso que estes
últimos, conservando seu coração puro e inocente, logo entram
na paz e na calma de uma boa consciência.
172. Somente aos que alcançaram a perfeição é dado conhecer e
discernir sempre quais são os pensamentos que vêm de sua
própria consciência, quais os que provêm de Deus e quais
provêm dos demônios; pois esses espíritos malignos e
traiçoeiros nem sempre nos inspiram pensamentos contrários à
piedade. É por isso que o discernimento que devemos ter a
respeito dos pensamentos que são obra sua não é fácil obter.
173.
Concluamos
dizendo
que,
assim
como
nosso
corpo
é
iluminado pelos olhos, também nossa alma é iluminada pelos
olhos sutis e penetrantes da discrição.
Breve recapitulação de tudo o que precede.
1. Uma fé firme nos conduz eficazmente a renunciar ao mundo,
mas a falta de fé ocasiona o contrário em nós.
2. A esperança inquebrantável é a porta pela qual expulsamos
de nosso coração todas as afeições pelas coisas da terra; mas
a ausência desta virtude opera o efeito oposto.
3. O amor a Deus nos faz abandonar generosamente o século,
mas a indiferença ao Senhor nos retém nele.
4.
A
obediência
é
produzida
pelos
julgamentos
que
pronunciamos contra nós mesmos e pelo desejo de recuperar a
saúde de nossa alma.
5. A conservação desta preciosa saúde é obtida por meio de
uma severa abstinência. É o pensamento da morte, a lembrança
do fel e do vinagre que foram apresentados ao Senhor no
Calvário, que engendram em nós a santa e salutar abstinência.
6. A solidão e o repouso dão e conservam a temperança e a
castidade. O jejum extingue os fogos da concupiscência. A
contrição e a compunção são inimigas irreconciliáveis dos
maus pensamentos.
7. A fé, assim como a fuga do mundo, causa a morte da
avareza. A comiseração e a caridade são capazes de nos fazer
expor nossa própria vida para aliviar nossos irmãos.
8. A preguiça encontra seu túmulo no exercício contínuo e
fervoroso da prece. A lembrança dos julgamentos de Deus
enchem o coração de fervor e devoção.
9. O amor às humilhações extermina a cólera.
10. A salmodia, a bondade do coração e o amor à pobreza
enchem a alma de uma alegria totalmente celeste.
11. A insensibilidade em relação às coisas sensíveis
corporais nos faz sentir e saborear as coisas espirituais.
e
12. O silêncio e o retiro são os carrascos felizes da
vanglória; e, se você estiver numa comunidade religiosa, será
o amor ao desprezo.
13. O rebaixamento e o aviltamento exteriores podem nos curar
do orgulho, exteriormente; mas somente Deus, que existe desde
antes dos séculos, pode nos curar interiormente.
14. O cervo, diz-se, despreza o veneno de todos os animais
peçonhentos, e a humildade consome e faz desaparecer o veneno
de todos os maus pensamentos.
15. As coisas criadas e sensíveis que vemos
conhecermos as coisas espirituais que não vemos.
servem
para
16. Como é impossível à serpente se desfazer de sua pele
velha se não passar por alguma pequena abertura bem estreita;
da mesma forma nos é impossível corrigir nossos maus hábitos,
renovar a juventude de nossa alma, desembaraçarmo-nos da
túnica do homem velho, se não passarmos pelo caminho estreito
e difícil do jejum, do despreza e da humilhação.
17. Assim como os pássaros cheios de carne e de gordura não
podem se elevar muito nos ares, também não o pode aquele que
nutre e agrada à sua carne.
18. Assim como a lama ressecada não pode mais servir aos
porcos para se espojar, também nossa carne seca e ressequida
pelos jejuns e as austeridades já não é própria para servir
de retiro e de repasto aos demônios.
19. Assim como muita lenha verde afoga as chamas e produz
muita fumaça, também uma tristeza levada ao excesso enche a
alma, por assim dizer, de fumaça e trevas, e faz secar a
fonte das lágrimas.
20. Como um cego não será bem sucedido fazendo tiro ao alvo,
também um discípulo que resiste ao seu superior e o reprova,
não poderá senão perecer de modo deplorável.
21. Como
outra que
é capaz
religioso
uma peça de ferro em bom estado é capaz de afiar
não está igualmente boa, também um monge fervoroso
muitas vezes de proteger da danação eterna um
desleixado e preguiçoso.
22. Assim como os ovos deixados num lugar quente e fechado
dão pintinhos, também os pensamentos de bem, cuidadosamente
escondidos, acabam normalmente por produzir ações e se
manifestando através delas.
23. Assim como os cavalos de corrida animam-se mutuamente na
carreira, também os religiosos que vivem juntos sob a mesma
regra se incitam uns aos outros à prática das virtudes e da
disciplina.
24. Assim como as nuvens escondem o sol e obscurecem o brilho
de sua luz, também os maus pensamentos obscurecem as luzes de
nossa alma e a expõem a se desviar e se perder.
25. Assim como um criminoso condenado à pena capital não se
diverte, ao partir para o local da execução, falando de
divertimentos
e
de
espetáculos,
também
uma
pessoa
verdadeiramente aflita por suas faltas não se ocupa na terra
em contentar suas inclinações pela intemperança e a boa mesa.
26. Assim como os pobres, ao verem os grandes tesouros de um
rei, conhecem e sentem mais vivamente sua miséria, também uma
alma que contempla as admiráveis virtudes dos santos se torna
mais humilde e se confunde, daí por diante, com a visão de
sua indigência espiritual.
27. Como o ímã, por força de sua natureza, atrai o ferro para
si, também os homens que se deixam corromper e dominar pelos
maus hábitos são violentamente atraídos pelo pecado.
28. Assim como o azeite acalma o mar, por mais furioso que
esteja, também, por violentos que sejam os ardores da
concupiscência, eles serão incapazes de resistir à virtude do
jejum e da mortificação.
29. Como as águas comprimidas em canais estreitos se elevam
no ar com ímpeto, também uma alma cercada e pressionada por
perigos se lança com força para Deus por meio das santas
lágrimas da penitência e assim obtém sua salvação.
30. Como alguém perfumado, mesmo que não queira, se anuncia
fazendo sentir seu suave odor por todos, também uma pessoa
que possui o espírito de Deus, mesmo que não queira, dá a
conhecer aos outros, por suas ações e sua humildade.
31. Assim como o sol torna o ouro visível fazendo-o cintilar,
também a virtude faz brilhar quem a possui.
32.
Como
os
ventos
impetuosos
suscitam
tempestades
amedrontadoras no mar, também a paixão da cólera, mais do que
as outras paixões, excita furiosas tempestades numa alma e a
perturba.
33. Assim como as coisas que não vemos nos dão pouco desejo
por possuí-las, ainda que tenhamos ouvido falar delas, também
aquele que conservou seu corpo puro e casto não pensa nos
prazeres dos sentidos e vive em grande contentamento.
34. Assim como os ladrões não frequentam os lugares onde
ficam guardadas as armas do Estado, também os demônios se
previnem de visitar as pessoas que sabem estar continuamente
armadas com a oração.
35. Assim como não é possível ao fogo produzir neve, também
não é possível que um homem que não tenha ardor senão pelas
coisas da terra possa merecer a glória celeste.
36. Como uma pequena fagulha pode colocar fogo numa imensa
floresta e reduzi-la a cinzas, também uma única boa ação pode
apagar e eliminar um grande número de faltas consideráveis.
37. Assim como sem boas armas não se pode exterminar animais
ferozes, também é impossível vencer e exterminar a cólera sem
as armas da humildade.
38. Como não há meio natural de conservar a vida senão
comendo e bebendo, também não se pode conservar a vida da
alma senão por maio da vigilância e da perseverança na
virtude.
39. Assim como os raios do sol, ao penetrar num cômodo, o
iluminam e permitem distinguir os menores objetos, também o
temor a Deus no coração, iluminando-o, lhe permite ver as
nódoas produzidas ali pelo pecado.
40. Assim como é fácil agarrar os caranguejos, por causa dos
seus movimentos, às vezes para trás, às vezes para frente,
também uma alma que se atira a uma alegria imoderada e logo
ao pranto, à penitência por seus pecados e logo às doçuras de
uma vida folgada e afeminada, se deixa agarrar pelo demônio,
perde os frutos de seu trabalho e perece.
41. Assim como é fácil roubar tudo das pessoas mergulhadas no
sono, também os que se tornam paralisados pelos vapores do
século cujas máximas seguem, abrem todas as avenidas de seu
coração aos ladrões de almas e aos assassinos de boas obras.
42. Assim como um homem que combate contra um leão furioso
não pode desviar os olhos deste inimigo perigoso sem se
arriscar a ser devorado, também aquele que combate contra sua
própria carne não pode desviar os olhos de sua atenção e de
sua vigilância sem se colocar num perigo iminente de se
perder por toda a eternidade.
43. Como as pessoas que sobem numa escada podre colocam sua
vida em perigo, também as dignidades, a glória, o poder e a
autoridade, que são todos inimigos da humildade e consistem
em degraus verdadeiramente podres, colocam aqueles que os
possuem em risco de se perder por toda a eternidade.
44.
Como
alguém
que
é
devorado
pela
fome
pensa
necessariamente em pão, também as pessoas que desejam com
verdadeiro ardor alcançar a salvação, pensam necessariamente
na morte e nos julgamentos do Senhor.
45. Como a água serve para apagar as letras, também as
lágrimas da penitência servem para nos purificar de nossos
pecados.
46. Se não tivermos água para apagar as letras, podemos
empregar outros meios; o mesmo acontece em relação aos nossos
pecados: em lugar das lágrimas, podemos nos servir dos
suspiros, dos gemidos e de uma viva contrição.
47. Como uma grande quantidade de estrume produz uma
quantidade prodigiosa de vermes de toda espécie, também uma
grande quantidade de comida produz em nós uma multidão
inumerável de iniquidades, de maus pensamentos e de sonhos
desonestos.
48. Como um cego não enxerga para caminhar, um preguiçoso não
pode ver o bem, nem fazer o bem.
49. Como alguém que tem os pés acorrentados não pode caminhar
sem grandes dificuldades, também os que acumulam tesouros
sobre tesouros se colocam em posição de não conseguir chegar
ao Reino dos Céus.
50. Como uma ferida recente pode facilmente ser curada,
também , por um princípio contrário, as feridas inveteradas
da alma são difíceis de curar, mesmo que sejam suscetíveis de
cura.
51. Como um pessoa a quem a morte feriu já não pode mais
caminhar, também é impossível que aquele que desespera de sua
salvação possa, enquanto estiver neste miserável estado,
salvar sua alma.
52. Um homem que afirma professar a verdadeira fé, mas que
cai sem cessar no pecado, se parece com uma pessoa que não
tem olhos.
53. Um homem que não tem fé, mas que realiza boas obras, se
parece com um insensato que retira água de um poço para
colocá-la num odre furado.
54.Assim como um barco dirigido por um piloto experiente e
protegido do céu chega com sucesso ao porto, também uma alma,
ainda que tenha a infelicidade de cair por um tempo num
grande número de pecados, se for dirigida e conduzida por um
diretor cheio de sabedoria, de luzes e de prudência,
alcançará facilmente o porto da salvação e obterá o céu.
55. Como um viajante sem guia, por mais prudente que seja,
perderá muitas vezes o caminho e se perderá, também o
religioso que vive e se conduz por si próprio se desviará do
caminho e se perderá, por mais perfeita que seja a sabedoria
mundana com que for dotado.
56. Que aquele que cometeu faltas enormes, e que não pode
suportar os rigores da penitência por causa de enfermidades
corporais, caminhe estritamente sobre a via da humildade; que
siga em tudo o espírito e os sentimentos que são próprios
desta virtude, pois para ele não existe outro modo capaz de
levá-lo à salvação.
57. Como alguém que sofreu uma moléstia longa e grave não
pode recuperar num instante sua saúde perfeita, também o
pecador que, durante longo tempo esteve sob a servidão das
paixões, ou mesmo de uma única paixão, não é capaz de se
livrar disso de um golpe só.
58. Considerem atentamente o vício e a virtude, e descobrirão
os progressos que fizeram para se corrigir do primeiro para
adquirir a segunda.
59. Como alguém que troca ouro por barro não faz uma troca,
mas incorre apenas numa perda real, também as pessoas que
falam das coisas espirituais da mesma maneira que das coisas
mundanas, a fim de satisfazer sua vaidade, sofrem uma perda
essencial
60. Se podemos dizer que existem pecadores que receberam logo
o perdão de seus pecados, não podemos afirmar que haja
pessoas que deste modo tenham alcançado a impassibilidade:
pois este é um favor que não pode ser obtido senão depois de
muito tempo e trabalhos, e por uma graça particular de Deus.
61. Observemos com toda atenção quais são os animais
selvagens e quais as aves que procuram roubar de nosso
coração a semente da graça, seja antes de germinar, seja
enquanto ainda é muda, seja quando os frutos alcançaram a
maturidade, e tratemos de lhes estender exatamente as mesmas
armadilhas que nos põem, e de fazê-los cair em nossas redes,
ao invés de nos deixarmos prender nas suas.
62. Se é ímpio e injusto que um doente coloque fim a seus
dias para terminar com as dores cruéis que lhe faz sofrer uma
febre ardente, é igualmente ímpio e injusto para um pecador,
enquanto tiver ainda um sopro de vida, se precipitar nos
horrores do desespero.
63. É vergonhoso para um homem que acabou de cumprir com seus
últimos deveres para com seu pai, passar da beira de seu
túmulo para uma animada festa de bodas; é também vergonhoso
para um pecador que geme e chora por suas numerosas
prevaricações, buscar as honras, os prazeres e a glória da
vida presente.
64. As casas que hospedam os cidadãos não são construídas da
mesma maneira que aquelas onde se encerram os prisioneiros e
os criminosos; assim, é preciso que vivam de modo diferente
as pessoas que fazem penitencia por seus pecados, em relação
àquelas que, durante sua vida, jamais tiveram a infelicidade
de sujar sua consciência com uma falta mortal.
65. Um grande general evita dispensar um soldado que traz
ferimentos honoráveis; ele eleva sua dignidade, a fim de se
servir beneficamente de coragem e sua bravura contra os
inimigos do Estado. Ora, é assim que age o Rei dos reis em
relação a um religioso que sustentou com grande valor os
combates contra os demônios.
66. A sensibilidade é algo próprio de nossa alma; mas o
pecado fere esse sentimento com redobrados golpes e o cobre
de vergonhosos tapas. É este sentimento precioso que em nossa
consciência alimenta ou diminui a paz e os remorsos; é ela
mesma que dá nascimento aos remorsos, e é ela que dirige ou
reprime o anjo guardião que Deus nos concedeu pelo batismo. É
por essa razão que vemos que as pessoas que não receberam
este sacramento não sentem tanto remorso quando cometem más
ações.
67. À medida que deixamos de cair em pecado, perdemos o
hábito de cometê-los. Ora, essa desistência do pecado se
torna o começo da penitência; o começo da penitência se torna
o começo da salvação; o começo da salvação, a resolução de
bem viver; a resolução de bem viver, o começo dos trabalhos;
o começo dos trabalhos, o começo das virtudes; o começo das
virtudes, o começo da flor das virtudes; o começo da flor das
virtudes, o começo da boa vontade; o começo da boa vontade, o
começo do costume da virtude; o começo do costume da virtude,
o começo do temor a Deus; o começo do temor a Deus, o começo
da fidelidade em observar os mandamentos do Senhor; o começo
da fidelidade em observar os mandamentos do Senhor, o começo
do amor ao Senhor; o começo do amor ao Senhor, o começo de
uma profunda humildade; o começo de uma profunda humildade, o
começo da paz soberana do coração; e o começo da paz soberana
da alma se torna a perfeição da caridade. Ora, esta perfeição
da caridade é ela própria esta santa e perfeita amizade com a
qual Deus honrará todos os que, tendo se libertado das
afeições desregradas, possuem a pureza em seus corações. Pois
eles verão a Deus[75]. A ele, honra e glória por todos os
séculos dos séculos. Amém.
VIGÉSIMO SÉTIMO DEGRAU
Do repouso sagrado do corpo e da alma, ou da vida eremítica e
solitária
1. Foram sem dúvida a vergonhosa escravidão de minhas paixões
tirânicas e os males que elas me fazem sofrer, que me
ensinaram as artimanhas maldosas, a conduta maliciosa, a
dominação cruel e as mentiras desoladoras dos demônios. Mas
felizmente
nem
todos
os
homens
experimentam
a
mesma
infelicidade;
pois
existem
aqueles
que
possuem
uma
consciência plena e inteira dos artifícios desses espíritos
das trevas, pela presença interior do Espírito Santo, que os
ilumina com suas divinas luzes, depois de tê-los preservado
de suas armadilhas e embustes; existe uma grande diferença
entre uma pessoa que julga a alegria e o contentamento que
traz a saúde após uma longa e dolorosa enfermidade, e a que
julga as dores que devemos sofrer durante a moléstia pela
alegria que experimenta na saúde. Como nos encontramos entre
aqueles a quem a doença rouba as forças, receamos com razão
falar a vocês do porto tranquilo e feliz da solidão. De
resto, sabemos bem que não existe comunidade, por santa e
regular que seja, na qual, semelhante a um cão faminto junto
à mesa de seu dono, o demônio não se encontre e não esteja
continuamente emboscado para surpreender uma alma e carregála para um local secreto e escondido, a fim de devorá-la a
seu gosto. Assim, para não favorecer o demônio e não dar
ocasião aos temerários de ser devorados por este cão raivoso,
devo declarar aqui que não falarei nem da paz nem do repouso
da solidão às pessoas que, nos combates que sustentam sob o
estandarte de nosso Rei, mostram tanta força, coragem e
constância; eu me contentarei em dizer-lhes que suas coroas e
suas recompensas não serão inferiores às que serão concedidas
aos que, por amor a Deus, vivem na solidão dos desertos. Não
obstante, para que ninguém se ponha a murmurar por não termos
dito nada a respeito da vida eremítica e de seus benefícios,
diremos alguma coisa, mas com reserva.
2. O repouso do corpo, de que se trata aqui, consiste no
conhecimento e na arrumação de todos os movimentos e de todos
os sentidos segundo a razão iluminada e dirigida pela fé. O
repouso da alma é o conhecimento de suas operações
espirituais e uma dedicação calma e inviolável ao santo
exercício da oração.
3. O verdadeiro amigo da vida eremítica toma resoluções
inquebrantáveis e fortes, vigia sem cessar à porta de seu
coração para interditar a entrada a todos os maus pensamentos
ou para sufocá-los. Aquele que alcançou esse precioso repouso
do coração deve certamente me compreender; mas ainda está bem
longe de saber em que consistem a paz e a tranquilidade da
alma, aquele que acabou de entrar no caminho da piedade, e
que ainda não provou de suas maravilhosas doçuras. O
solitário prudente e experiente não precisa que lhe dirijam
longos discursos e é suficientemente iluminado pelas boas
ações de sua vida.
4. O primeiro degrau da vida eremítica consiste em afastar
tudo o que pode causar distrações à alma e perturbar a paz do
coração; e a perfeição dessa vida consiste em não temer mais
nada e em permanecer imóvel e insensível no meio dos maiores
objetos de confusão e distração.
5. Quem pretende avançar nos caminhos desta vida bemaventurada, gosta especialmente de guardar silêncio, de
praticar a mansidão e de fazer constantemente de seu coração
o santuário da caridade.
6. Quem não gosta de falar se entrega dificilmente à cólera,
enquanto que um grande falador será frequentemente e
facilmente escravo dessa paixão incendiária.
7. O verdadeiro solitário se esforça em manter encerrado como
numa prisão em seu próprio corpo a substância incorpórea da
alma – supremo paradoxo.
8. O gato, para agarrar alguns ratos, utiliza mil artifícios
e uma grande atenção; o solitário deve empregar todos os
recursos de seu espírito e a maior vigilância para agarrar o
demônio, que é um rato muito ruim. Que esta comparação, eu
lhes peço, não lhes pareça desprezível, ou eu serei obrigado
a lhes dizer que vocês ignoram completamente em que consiste
a vida eremítica.
9. O religioso que vive na solidão é bem diferente do
religioso que vive em comunidade. O solitário deve jejuar
muito, ter muita força de espírito e uma grande coragem para
perseverar, pois tudo o que ele possui é seu anjo guardião
para socorrê-lo e protege-lo, enquanto que o cenobita pode
sempre receber o auxílio de seus irmãos.
10. Os espírito celestes têm prazer em permanecer ao lado e
agir com um bom anacoreta; mas podemos dizer o mesmo de um
mau solitário?
11. É imensa a profundidade dos mistérios da fé; é um abismo
sem fundo. Quem quiser penetrar aí não poderá fazê-lo sem se
expor evidentemente a se perder.
12. A cela de um solitário encerra seu corpo, e seu corpo
encerra o princípio de seus pensamentos.
13.
Qualquer
um
que,
achando-se
agitado
por
paixões
insolentes, ouse abraçar a vida eremítica, é comparável a um
insensato que, viajando por mar, salta no meio das ondas na
esperança de que uma simples prancha seja capaz de levá-lo
com sucesso ao porto.
14. Aqueles que precisam combater uma carne rebelde não podem
ainda se retirar para a solidão. É preciso que aguardem um
tempo favorável; e mesmo com a chegada deste tempo, ainda
precisarão encontrar um condutor prudente, sábio e piedoso.
Com efeito, para abraçar uma vida tão perfeita, é preciso ter
a virtude e a força dos anjos; entenda-se bem, quando falo
assim, que me refiro apenas à vida solitária, que se refere
tanto ao corpo como ao espírito, e que separa o homem
completamente da sociedade humana.
15. O solitário negligente não temerá empregar a mentira para
fazer crer aos outros, por meio de palavras obscuras e de
duplo sentido, que eles devem fazê-lo deixar a solidão; mas
assim que abandona a cela, ele se agarra ao demônio. Infeliz!
Não sabe que ele mesmo é seu próprio demônio?
16.
Já
vi
anacoretas
que,
no
deserto,
satisfaziam
admiravelmente bem seu desejo ardente de agradar a Deus por
meios extraordinários, constantes e mil vezes repetidos;
ademais, eles acrescentam sem cessar novas chamas ao seu amor
por Deus, novos ardores à sua piedade e ao seu fervor, e uma
nova vivacidade de desejo piedoso.
17. Um verdadeiro anacoreta é um anjo terrestre que, por sua
vigilância e seu fervor, bane de suas preces e de suas
comunicações amorosas com Deus toda espécie de negligência e
tibieza.
18. Este pode com sucesso dizer sempre a Deus: “Meu coração
está pronto, meu Deus, meu coração está pronto[76]”; ou
então: “Eu durmo, mas meu coração vigia[77]”.
19. Fechem estritamente a porte de sua cela ao seu corpo, a
porta de sua língua às palavras e a porta de seu interior ao
demônio.
20. A serenidade e os ardores do sol do meio dia permitem
conhecer a paciência do marinheiro; a privação das coisas
necessárias à vida demonstra a constância do anacoreta em
sofrer, pois o marinheiro fatigado pelos raios do sol que o
queimam pode se atirar à água para se refrescar, enquanto que
o solitário abatido pelo desgosto que lhe causa a solidão se
precipita no meio da multidão para aí encontrar a dissipação.
21. Não tema, veja como se fossem jogos as tempestades que os
demônios suscitam ao nosso redor. A verdadeira penitência não
teme nem treme.
22. Todos os que costumam fazer suas orações com a disposição
requerida falam a Deus da mesma maneira como um favorito fala
a seu soberano; mas as pessoas que só falam com a boca se
assemelham à gente que, quando o rei comunica seu conselho,
se atiram aos seus pés; e as que oram estando ainda no século
parecem homens que apresentam petições ao seu príncipe no
meio do tumulto de todo o povo. Entendam o alcance dessas
comparações, se tiverem a felicidade de conhecer o verdadeiro
modo de orar.
23. Cuidado para se manterem na parte mais elevada de vocês
mesmos para ver como, quando e de onde vêm os ladrões que
desejam devastar a vinha espiritual de sua alma, e para saber
o quanto eles são numerosos.
24. Uma alma fatigada pelos exercícios de piedade poderá se
restabelecer e assistir à oração, e depois retomar seus
exercícios espirituais com ardor renovado.
25. Um homem que havia provado pessoalmente tudo o que
mencionei, tomara a decisão de só falar disso com cuidado e
exatidão; mas ele temia que, se o fizesse, diminuiria o ardor
das pessoas que se apresentavam para o combate cheias de zelo
e de coragem, e que, pelo ruído de suas palavras ele poderia
assustar
os
que
marcham
generosamente
no
caminho
da
perfeição.
26. Quem quer que fale da vida solitária com exatidão e
conhecimento atrairá sobre si a fúria dos demônios, pois ele
ensinará
a
discernir
os
meios
artificiais
que
esses
miseráveis utilizam para fazer com as almas se percam.
27. O anacoreta cheio de fervor penetra nos julgamentos
secretos do Senhor; mas ele não recebe este favor eminente
senão depois de haver combatido e vencido mil tentações,
triunfado sobre os demônios num grande número de combates,
expulsado para longe de si toda perturbação e toda agitação
e, podemos acrescentar, depois de ter sido amassado e moldado
sob o peso dessas provas terríveis. Se não me engano, é o que
o próprio apóstolo Paulo nos mostra com seu exemplo. Com
efeito, teria ele conhecido os segredos inefáveis que lhe
foram revelados, se antes não tivesse sido transportado ao
céu, como a um lugar de repouso perfeito[78]?
28. Deus permitirá escutar grandes coisas, a quem levar uma
vida angélica na solidão. É por isso que vemos no livro de Jó
este homem sábio que, falando em nome desse repouso sagrado e
sábio da solidão, pronuncia esta sentença: “Não fará o Senhor
que escutem meus ouvidos coisas extraordinárias?[79]”.
29. É realmente um bom
eremítica, aquele que, sem
encontrar as pessoas que
para conservar as doçuras
experimentar.
praticante dos deveres da vida
aversão, evita com todo o cuidado
tentam vê-lo. Pois ele age assim
celestes que teve a felicidade de
30. Se vocês quiserem deixar o mundo para viver na solidão,
desfaçam-se prontamente de tudo o que ainda os pode ligar ao
século; distribuam todos os seus bens aos pobres, pois, para
vendê-los, seria preciso tempo; deem-nos sobretudo aos monges
pobres, a fim de que eles unam suas preces às de vocês, e que
vocês se tornem dignos de abraçar a vida solitária. Em
seguida tomem sua cruz e carreguem-na cumprindo fielmente
todos os deveres impostos pela santa obediência. Sustentem
corajosamente o fardo que lhes for imposto ao renunciar de
modo perfeito à própria vontade: “Venham e me sigam, e eu os
conduzirei a este repouso bem-aventurado”, a esta santa
familiaridade e a esta inefável união com Deus, e lhes
ensinarei os exercícios e a maneira de viver das potências
celestes. Ora, assim como os anjos jamais deixarão, durante
os séculos eternos, de catar louvores a Deus, também uma
pessoa que penetrou no paraíso da solidão não cessará de
celebrar a glória de seu criador e benfeitor. As puras
inteligências não sofrem as penas das necessidades corporais,
porque não possuem corpos; e os homens que, por assim dizer,
mesmo tendo corpos não têm corpos, não mantêm nenhuma
inquietação com relação às suas necessidades corporais. Os
anjos não precisam se alimentar, e os religiosos solitários
se alimentam sem sentimentos de prazer. Os anjos desprezam o
ouro e as riquezas, e os solitários acrescentam a esse
desprezo o desdém pelas perseguições que lhes fazem os
demônios. Os espíritos celestes não são tocados nem movidos
pelo amor às coisas visíveis, e os anacoretas, cujo corpo
está sobre a terra, mas o coração está no céu, são igualmente
insensíveis a todas essas coisas: toda sua estima e afeição
estão voltadas para os bens celestes. Os anjos sempre irão
progredir no amor a Deus, e os solitários nunca deixarão de
caminhar sobre suas pegadas. As beatitudes celestes não
ignoram que seu progresso no amor a Deus aumenta suas
riquezas e seus tesouros, e os anacoretas sabem bem que eles
crescem na graça de Deus na medida em que crescem em seu amor
e seu fervor por Ele. Enfim, estes fervorosos religiosos não
se deterão jamais, mas farão todos os esforços para chegar o
mais próximo possível da perfeição dos Serafins, e não terão
repouso enquanto não se tiverem tornado novos anjos. Feliz
aquele que espera usufruir de tamanha felicidade! E três
vezes feliz aquele que, tornando-se um anjo no céu, possui aí
a alegria pela qual suspirou com tanto ardor sobre a terra!
Diferentes aspectos da vida eremítica
31. Ninguém ignora que em todas as artes e todas as ciências
existem opiniões diversas e sentimentos diferentes; pois os
homens não são igualmente perfeitos em todas as coisas, tanto
pela falta de trabalho e de diligência como pela falta de
inteligência e de luzes. É assim que vemos gente se
apressando em correr para a solidão, na esperança de aí
encontrar um porto seguro de salvação; mas, infelizmente, o
que encontram é um abismo sem fundo que os engole: onde
pretendiam curar a língua da intemperança nas palavras e os
vergonhosos hábitos do corpo, tudo o que conseguiram foi
aumentar seus males. Vemos a outros voando para os desertos,
porque, não conseguindo triunfar sobre seu humor irascível
enquanto viviam entre os irmãos, esperam vencê-lo mais
eficazmente na solidão; mas este é um erro miserável. Vemos
outros abraçarem a vida eremítica porque, cheios de orgulho,
preferem viver segundo sua própria vontade a se deixar
conduzir por um superior ou um diretor; outros seguem para a
solidão porque, vivendo em meio a situações perigosas, não
têm em si a força para resistir a elas; outros desejam a vida
solitária a fim de cumprir mais estritamente com seus
deveres; outros escolhem esse gênero de vida a fim de poder
punir mais severamente as próprias faltas; outros não buscam
a solidão senão para fazer nome diante dos homens; outros,
enfim, supondo que o Filho do homem, voltando à terra para
julgar o mundo, aqui encontrasse semelhantes pessoas,
unicamente inflamadas pelo amor a Deus e encontrando neste
amor as delícias inefáveis, se entregam à vida eremítica como
a uma esposa unicamente amada. E eles não tomam este caminho
sem antes fazer um divórcio absoluto em relação à negligência
e à tibieza. Com efeito, a união da vida eremítica com um
espírito
de
preguiça
gera
uma
espécie
de
fornicação
espiritual.
32. Tais são as diferentes disposições que levam os homens à
vida eremítica: é o que pude expressar segundo minhas poucas
luzes; cabe a cada um encontrar quais lhe fazem desejar viver
na solidão. Será por ser a opção mais fácil, não seguindo
senão a própria vontade, ou será para buscar a estima dos
homens? Será para mortificar a incontinência da língua, ou
para triunfar sobre a cólera? Será para fugir das ocasiões de
pecado, ou para expiar mais facilmente as faltas cometidas?
Será para se tornar mais rígido e mais fervoroso nos
exercícios da piedade, ou para aumentar em si mesmo o fogo
sagrado do amor a Deus? Os primeiros serão os últimos, e os
últimos serão os primeiros. Ora, desses oito tipos de vida
solitária existem sete que representam os sete dias da
semana, e esta semana é a imagem da vida presente; mas
algumas agradam a Deus, outras lhe são odiosas. Quanto à
última, podemos dizer ousadamente: ela é a imagem da
felicidade eterna.
33. Vocês que vivem na solidão, observem atentamente o tempo
em que os animais ferozes que fazem a guerra às suas almas
costumam atacar; de outro modo será impossível a vocês
estenderem as armadilhas capazes de as prender e encarcerar.
Se a preguiça, à qual vocês renunciaram inteiramente, não
lhes faz mais companhia, vocês combaterão e vencerão sem
dificuldade todos os inimigos; mas se, ao contrário, ela
ainda reina em vocês, eu não vejo como nem por que louvar o
gênero de vida que vocês abraçaram.
34. De onde vem que não haja tantos homens extraordinários em
luzes e em santidade no mosteiro de Tabene do que em Sceta?
Poderia haver. Não posso falar a respeito, ou melhor: não
desejo fazê-lo.
35. Dentre aqueles que passam sua vida em profundas solidões,
alguns trabalham especialmente no sentido de mortificar suas
paixões; outros se entregam ao conto dos salmos ou empregam a
maior parte de seu tempo no santo exercício da oração;
outros, enfim, se dedicam à meditação e à contemplação das
coisas do céu. Quem quiser saber quais são as pessoas mais
avançadas na virtude e na perfeição da vida eremítica, poderá
fazê-lo se servindo da comparação com os degraus de uma
escada. Mas quem desejar dar uma solução a este problema não
se dedique a tanto senão na medida das luzes que recebeu do
Senhor.
36. É preciso confessar aqui que existem nos mosteiros
cenobíticos almas relaxadas e preguiçosas que, encontrando
objeto e ocasião de alimentar sua vergonhosa e criminosa
indolência, não caminham, mas correm para a perda eterna; mas
existem outras que aproveitam o ardor e o zelo das pessoas
com as quais vivem para se corrigir de sua tibieza e de sua
negligência. Mas não são só os homens formados e dominados
pela preguiça que se perdem nos mosteiros: acontece ainda de
os mais fervorosos relaxarem pelo mau exemplo dos negligentes
e preguiçosos.
37. Ora, o mesmo que dizemos da vida cenobítica, somos
obrigados a dizer da vida eremítica: pois muitas pessoas que
a abraçaram, antes de fazê-lo pareciam ser fervorosos e
próprios à prática das virtudes mais belas e mais raras; mas
essa vida os estragou e corrompeu, porque eles só entraram
nela para viver e se conduzir com mais liberdade e segundo
seus gostos. É por isso que eles deveriam perceber e se
reprovar por não ser senão pessoas amigas dos prazeres e das
comodidades da vida. Outros, ao contrário, que desde o
princípio não haviam escolhido a solidão senão por um
espírito de preguiça e desleixo, tocados e apavorados com o
pensamento daquilo que os espera no tribunal de Deus, quando
terão que responder pela ações de sua vida, fizeram prodígios
no caminho da virtude e adquiriram um grande fervor nos
exercícios da piedade.
38. Que aquele que é escravo da cólera, do orgulho, da
dissimulação, da hipocrisia e da lembrança das injúrias,
evite dar um só passo para entrar na solidão; pois é de se
temer para este homem, que o único fruto que ele obterá com
sua temeridade, será cair num funesto enrijecimento. Quanto
aos que se libertaram com sucesso de seus vícios, talvez
possam compreender o partido que devem tomar; mas não creio
que o possam fazer sozinhos ou por si próprios.
39. As qualidades, as ocupações e os raciocínios das pessoas
que, por razões suficientes, abraçaram a vida solitária,
consistem na calma perfeita da alma que se colocou ao abrigo
de todas as tempestades excitadas pelo vento das paixões, nos
pensamentos santos e puros, numa união íntima com Deus, na
lembrança constante dos suplícios eternos, no pensamento da
morte que nos ameaça de perto, num amor insaciável pela
oração, na vigilância constante sobre os sentidos, na total
ruína das afeições desonestas, na libertação dos apetites
carnais, na morte do espírito e das máximas do mundo, na
indiferença quanto ao que comer, na meditação das verdades
sobrenaturais, nas luzes de um discernimento sábio e
prudente, no dom das lágrimas de uma penitência sincera, na
recusa absoluta aos discursos vãos e inúteis, e em tudo o que
não é agradável às pessoas que vivem sem regra nem ordem.
40. E eis aqui, de outro lado, as marcas pelas quais podemos
reconhecer que não abraçamos a vida eremítica por motivos
bons e louváveis: a privação dos dons, das graças e das
riquezas do céu, o aumento do mau humor, os acessos de
cólera, a lembrança das injúrias, o esfriamento da caridade,
o aumento do orgulho, e muitos outros defeitos sobre os quais
me calarei.
41. Mas, uma vez que chegamos até aqui, me parece que convém
dizer alguma coisa das pessoas que vivem sob a obediência e a
direção de um superior, ainda mais porque é a estes que
dedicamos este pequeno tratado. Diremos então quais os sinais
que distinguem aqueles que realmente, sinceramente e com
grande pureza de intenção, abraçaram esta santa e honrada
virtude da obediência. Ora, foram nosso pais, este homens
virtuosos e cheios do espírito de Deus, que no-la ensinaram;
e ainda que as qualidades dos felizes filhos da obediência
não devem receber sua perfeição senão no tempo que o Senhor
fixou para tanto, elas não deixaram de aumentar e crescer a
cada dia entre eles. Esses sinais e essas qualidades da
verdadeira obediência consistem assim num aumento contínuo da
humildade, numa diminuição progressiva da cólera, na extinção
do fel e da bílis, na dissipação sensível das trevas do
espírito, no crescimento da caridade, na libertação das
paixões e dos pendores viciosos, numa renúncia generosa a
toda aversão e a toda raiva, na mortificação da carne segundo
os conselhos recebidos, na fuga de toda preguiça e de toda
negligência, numa diligência estrita no cumprimento dos
deveres, numa terna e eficaz compaixão para com os irmãos e
na destruição perfeita do orgulho. Mas esta última qualidade
da obediência devemos buscar com o maior cuidado para obtêla; e no entanto muito poucos a possuem: pois, a uma fonte
sem água, podemos chamá-la de fonte? Quem for manso e
inteligente me compreenderá facilmente.
42. Uma jovem esposa que viola o juramento feito a seu esposo
profana seu corpo e se desonra; uma alma que viola a
confiança que dera a Deus, suja e amesquinha sua consciência.
A aversão pública, a fraqueza de caráter, os castigos e,
acima de tudo, um deplorável divórcio são os males que atrai
sobre si uma esposa infiel. A infidelidade sacrílega de uma
alma é seguida de mil máculas, do esquecimento da morte, de
uma insaciável intemperança, da insolência e o despudor dos
olhos, do amor à vanglória, da necessidade contínua de
dormir, do endurecimento do coração, da cegueira do espírito,
de uma horrível confusão de pensamentos, de uma vontade cada
vez mais dirigida ao pecado, da escravidão às paixões mais
vis, de um tumulto e uma desordem assustadores, do espírito
obstinado e da contradição, de uma abominável afeição pelas
criaturas, da infidelidade na fé, de uma desconfiança indigna
em relação a Deus, de uma insuportável loquacidade, de uma
licenciosidade horrorosa, de uma vã confiança em si próprio –
que pode com justiça ser vista como o maior dos males – e, o
que é o cúmulo da miséria, da secura do coração, que o torna
incapaz do menor gesto de penitência e de compunção, e que,
quando
é
negligenciada,
se
transforma
numa
estúpida
insensibilidade, que abre as portas a todos os vícios e a
todos os crimes.
43. Podemos afirmar aqui que dentre os oito pecados capitais,
existem cinco que fazem guerra aos anacoretas e três aos
cenobitas.
44. Um solitário que se diverte combatendo a preguiça de
forma direta perde um tempo que poderia ser melhor empregado
na prece e na meditação.
45. Eis o que me aconteceu no tempo em que eu vivia
solitário: um dia fui assaltado em minha cela por uma
desencorajamento tão grande, que estava a ponto de abandonála; mas ao mesmo tempo chegaram alguns visitantes que me
fizeram tantos louvores sobre a vida que eu levava, que os
pensamentos de vanglória logo expulsaram de mim o desânimo e
outros pensamentos que me abatiam. A este respeito eu nunca
pude admirar suficientemente a maneira com que o demônio da
vanglória derrubou os outros demônios; para eles, foi uma
verdadeira ratoeira.
46. Não deixem, a toda hora, de observar os movimentos, as
idas e vindas, bem como a força das inclinações que vocês
sentirem pela tibieza que se une intimamente à alma, e
conheçam bem de onde vêm essas coisas funestas, e para onde
elas podem conduzi-los; mas não se esqueçam de que somente
são capazes de discernir essas coisas com sucesso as pessoas
que, com o socorro do Espírito Santo, alcançaram a
tranquilidade do coração.
47. A primeira e principal coisa à qual um solitário deve se
dedicar é expulsar de seu espírito todos os cuidados e
inquietações causados pelos diferentes assuntos, bons e maus.
Com efeito, quem se ocupar com paixão dos assuntos bons,
acabará pouco a pouco se ocupando também dos maus. E assim
sofrerá uma funesta queda. A segunda coisa que lhe será
necessária é uma prece contínua e fervorosa; a terceira, uma
vigilância estrita de seu coração, capaz de torna-lo
invulnerável. É possível a uma pessoa que não conhece sequer
as letras, ler um livro? Mas isto será mais fácil do que, ao
solitário que não possua estas três coisas de que falamos,
adquirir as duas seguintes.
48. Tendo tido a felicidade de obter a segunda, eu me vi em
meio aos seres que sustentam o estado intermediário, e um
deles me ensinou as coisas que eu desejava saber. Ainda
estando em meio a eles, eu me permiti perguntar-lhes qual era
o estado no qual eles contemplavam o Filho de Deus antes de
sua encarnação; e o mesmo anjo me respondeu, dizendo que ele
não poderia satisfazer minha questão, porque o Filho de Deus,
príncipe e rei dos anjos, não lhe permitia. “Diga-me ao
menos, respondi-lhe eu, em que estado ele se encontra
presentemente”. Eis a resposta que ele me deu: “Ele está no
estado que lhe é próprio, e não em outro”. “Mas, indaguei
ainda, de que maneira está ele sentado à direita de Deus
Pai?”.
“Trata-se
de
um
mistério,
respondeu
ele,
incompreensível ao espírito humano”. Por fim eu implorei
receber aquilo que eu desejava com tanto ardor. “A hora,
disse-me ele, ainda não chegou; você não possui a chama do
fogo celeste”. Ora, eu não sei nem posso afirmar se esta
visão se passou no meu corpo ou fora do meu corpo.
49. É raro que ao meio dia, sobretudo durante o calor do
verão, não sintamos necessidade de dormir. Neste momento, e
somente nele, convém se ocupar de algum trabalho manual.
50. Minha própria experiência me fez conhecer que é o demônio
da acídia que se apresenta primeiro a nós, a fim de preparar
o caminho para o demônio da luxúria. É por isso que ele
agarra fortemente os músculos e os nervos de nossos corpos
para paralisá-los e nos mergulhar no sono, a fim de que,
neste estado, ele possa nos fazer cair em alguma falta.
Assim, se você resistir fortemente e com coragem a esses dois
demônios, eles lhe farão uma guerra extrema e, para
desencorajá-lo e fazê-lo abandonar o campo de batalha, farão
todos os esforços e se utilizarão de todos os meios pra fazêlo acreditar que você não obterá nenhum benefício espiritual
pela vida solitária que você abraçou; mas nada demonstra
melhor que os vencemos, do que quando eles nos atacam com
mais furor.
51. Você é obrigado a sair de sua cela e aparecer em público?
Cuidado para não perder o pouco de virtude que adquiriu. De
fato, se você deixar a porta de uma gaiola aberta, os
pássaros não demorarão a fugir dali. O mesmo podemos dizer
das boas obras de um solitário, se deixar a porta de seu
coração aberta à dissipação.
52. O menos objeto nos olhos fadiga e perturba a visão, e o
menor cuidado inquietante perturba a paz e o repouso da
solidão; pois a vida eremítica consiste essencialmente em
deixar de lado todos os pensamentos e todas as inquietações
da vida presente, mesmo as que parecem justas e permitidas, a
fim de não se ocupar senão dos assuntos da eternidade.
53. As pessoas que abraçaram essa vida com todo coração não
se preocupam sequer com os cuidados e necessidades do corpo;
pois eles sabem que Aquele que prometeu cuidar de seus filhos
não será capaz de faltar com sua palavra.
54. Quem pretende oferecer a Deus uma alma pura e digna de
lhe ser agradável, mas que ao mesmo tempo é agitado por mil
cuidados com as mais diversas coisas, se parece com alguém
que,
tentando
correr
mais
depressa
e
caminhar
mais
facilmente, amarrasse pesos aos seus pés.
55. Poucos são os homens que fizeram nome das ciências e na
sabedoria da filosofia; mas mais raros ainda são os que
mostraram excelência na ciência e na filosofia essenciais à
vida eremítica.
56. O homem que não conhece a Deus nem se comunica com ele
com uma santa familiaridade, está longe de poder levar essa
vida, e, se a abraçar, se expõe a uma infinidade de perigos;
pois a solidão sufoca os que não possuem nenhuma experiência
nos caminhos do Senhor, e que, não tendo jamais experimentado
as doçuras do Senhor, passam seu tempo em meio a trevas
fatigantes, contínuas distrações, desânimos dilacerantes, uma
tibieza delirante e preguiças insuportáveis.
57. Quem possuir com sucesso o dom da oração, evite
cuidadosamente a borbulhante sociedade dos homens; fuja com
tanto horror como o asno[80]; pois não é a própria oração que
o torna, de certa forma, selvagem, retirando-o totalmente da
companhia dos seus semelhantes?
58. Quem ainda é refém dos pendores desregrados do coração
devem empregar todo seu tempo na solidão, para reprimir seus
movimentos e resistir a eles. É o que me ensonou este santo
ancião George Arsilaita, cujo nome e virtudes, meu reverendo
Pai, não lhe são desconhecidos. Eis o que ele me disse,
quando, sem sucesso, ele tentava e se ocupava em me formar
nos exercícios da vida eremítica: “Eu observei, dizia-me ele,
que os demônios da vanglória e da luxúria nos atacam
sobretudo pela manhã, e que ao meio dia nos tentam o demônio
da preguiça, da cólera e da tristeza, e à tarde é o demônio
da intemperança que nos faz a guerra”.
59. Um cenobita pobre vale infinitamente mais
anacoreta continuamente agitado por distrações.
que
um
60. Quem entra na solidão por motivos justos e razoáveis, e
que não observa a cada dia algum progresso na virtude, ou
qualquer outro benefício espiritual, deve se perguntar se
está se conduzindo de acordo com o espírito de Deus, ou se
está se deixando enganar pelo demônio do orgulho.
61. A vida solitária consiste numa união contínua com Deus
por meio de um amor ardente e de uma adoração perpétua.
62. Que a lembrança de Jesus reine sempre no seu espírito e
no seu coração! Assim você começará a conhecer qual é o fruto
de sua solidão.
63. Observem que, como a ligação com sua própria vontade faz
tombar o religioso que vive sob a orientação e a autoridade
de um superior, também a omissão ou a interrupção da prece
ocasiona quedas ao religioso solitário.
64. Saiba que não significa agradar a Deus, mas sim contentar
a própria preguiça e desleixo, sentir alegria e prazer quando
um grande número de visitantes vem perturbar o repouso de sua
cela.
65. A oração de pobre viúva que era achacada pelo cobrador
impiedoso deve ser o modelo da prece. O grande Arsênio, este
digno êmulo dos anjos, é o exemplo que todo cenobita deve
seguir; procurem imitar em sua solidão o modo de vida que ele
levava, e não percam jamais de vista que esse anjo da terra,
a fim de não faltar com as ordens da Providência e não se
privar das comunicações que mantinha com Deus, não temia
jamais despachar as pessoas que vinham visitá-lo para
consultas.
66. Observei mais de uma vez que os demônios costumam levar
os solitários volúveis e inconstantes e que entraram para a
solidão por um espírito de vertigem, a visitar muitas vezes
os anacoretas cheios de fervor e de recolhimento; mas isto é
para que esses solitários vagabundos impeçam os verdadeiros
servidores de Jesus Cristo de se aplicarem aos seus
exercícios de piedade. Preste atenção, caro irmão; eu lhe
suplico, preste atenção a esses levianos, e não hesite em
lhes fazer com caridade reprimendas capazes de fazê-lo
enrubescer por sua funesta dissipação, mais do que pela
humilhação a que você os submeteu, e de levá-los a abandonar
a vida errante e vagabunda, fixando-se em suas celas. Porém,
se você colocar em prática esse conselho, cuidado para não
entristecer demasiado alguma alma que, devorada por uma sede
ardente de graça, venha a você para buscar a água de que
necessita e que deseja, e para obter o socorro pelo qual
suspira. De resto, em diferentes circunstâncias é preciso ser
dotado de grande sabedoria e de um discernimento especial.
67. A vida dos anacoretas, ou para melhor dizê-lo, dos
religiosos, deve ser dirigida pelas luzes de uma consciência
reta e pura, e por sentimentos e afeições de um coração
sólida e sinceramente piedoso e devoto. Ora, quem caminha
assim nessa ilustre carreira, não se propõe outra coisa que o
cumprimento da vontade do Senhor em todos os seus exercícios,
em todos os seus pensamentos, em todos os seus modos e em
todos os seus movimentos. Não há nada nele que não faça com
um grande sentimento de zelo e de fervor pela glória de Deus,
com o desejo de lhe agradar e sempre em sua santa Presença; e
quem não se encontra nestas felizes disposições, ou que as
abandona, é porque ainda não adquiriu a virtude necessária.
68. Alguém já disse: “Eu descobrirei, tocando minha harpa, ou
que terei a lhe propor”, ou seja, deste modo eu darei a
conhecer meu sentimento, por causa da fraqueza de meu
julgamento; quanto a mim, eu oferecerei a Deus toda a minha
vontade num prece fervorosa e estou certo de que ele me
atenderá e me fará compreender quais são seus adoráveis
desígnios a meu respeito.
69. A fé é uma das asas sobre a qual repousam nossas preces
para subir até o trono de Deus; mas se aquelas que eu lhe
dirigi não forem dignas de chegar até ele, com a cabeça
curvada sobre meu peito eu as repetirei com mais fé e
insistência.
70. A fé ensina à alma um certeza tão firme que ela se torna
inquebrantável em meio às maiores adversidades.
71. O homem que tem fá não é exatamente aquele que acredita
que Deus tudo pode, mas o que está persuadido que obterá do
Senhor todos os pedidos a ele endereçados.
72. A fé coloca ao nosso alcance mesmo aquilo que não
ousaríamos esperar; o próprio bom ladrão nos dá a prova
disso.
73. O que abre a porta de nossa alma à fé são a adversidade e
a retidão do coração; a adversidade, por nos tornar firmes e
constantes; e a retidão, por nos aperfeiçoar na constância e
na firmeza.
74. A fé é a mãe da vida eremítica; é possível conceber como
os solitários poderiam amar a solidão, se não cressem?
75. Um criminoso na prisão treme todo o tempo ao simples
pensamento dos magistrados que deverão julgá-lo e condená-lo;
ora, um cenobita em sua cela, não deveria temer o Senhor? O
criminoso não tem tantas razões para temer o lugar onde
deverá ser julgado, quanto o solitário tem pelo tribunal de
Deus ao qual deverá comparecer. Meu caro irmão, em sua
solidão este temor salutar é absolutamente necessário, a fim
de que você possa expulsar e rejeitar para longe de si a
tibieza e a negligência; este é o meio mais seguro e eficaz
para ter sucesso.
76. Quando um criminoso foi condenado, ele tem constantemente
no espírito o instante em que virão buscá-lo para conduzi-lo
ao suplício, mas um verdadeiro servidor de Deus não perde de
vista o momento em que o Senhor se agradará em tirá-lo da
prisão de seu corpo. Um criminoso é diariamente presa da mais
aguda dor, e um solitário chora todo o tempo por seus desvios
e suas faltas.
77. Se você tomar o bastão da paciência, ele servirá pata
afastar de você os cães, e para impedi-los de ficar latindo
ao seu redor.
78. A paciência coloca a alma num estado feliz, e com ela
esta pode, sem se abater, trabalhar por sua salvação e seu
aperfeiçoamento em meio aos rigores e às dificuldades
fatigantes e obstinadas desses trabalhos.
79. A paciência é um limite colocado à tribulação, porque ela
acolhe cada dia após dia.
80.Um homem paciente é incapaz de cair, e mesmo que lhe
aconteça cair, a própria queda lhe fornecerá os meios para se
reerguer com vantagens e derrubar o inimigo que o fez tombar.
81. A paciência é uma forte e generosa determinação em sofrer
todos os motivos de aflição que podem ocorrer diariamente; é
uma detenção severa de todas as ocasiões capazes de nos
desviar do cumprimento de nossos deveres; é uma vigilância
cerrada sobre tudo que se refere à salvação.
82. O religioso tem menos necessidade do pão que conserva a
vida do corpo do que da paciência que conserva a vida da
alma; com efeito, é pela paciência que ele merece a vida
eterna; e basta um pouco mais de alimento do corpo para
contribuir para a perda dessa vida eterna.
83. O homem que pratica a paciência está morto antes de
morrer, e sua cela é seu túmulo.
84. A esperança e a dor pelos pecados produzem a paciência no
coração; pois quem não possui essas duas virtudes costuma ser
escravo da preguiça.
85. O atleta de Cristo deve saber quais, dentre os seu
inimigos, ele deve combater de longe e quais os que é melhor
atacar de perto. Às vezes os combates nos fazem merecer as
coroas e outras vezes a fuga do combate faz de nós pessoas
más e corruptas, mas aqui não podemos entrar em todos os
detalhes para fazer entender melhor essas coisas. De fato,
nem todos temos as mesmas inclinações, nem somos afetados da
mesma maneira, nem temos os mesmos hábitos e as mesmas
disposições.
86. Tudo o que podemos dizer é que é de suma importância para
nós observarmos e conhecermos quem é o chefe dos inimigos que
nos fazem a guerra, pois é ele quem não nos dá trégua nem
repouso; é ele quem nos persegue sem cessar; nós o
encontramos em toda parte, quer nos detenhamos, quer
caminhemos, quer repousemos, ou nos movimentemos, quer
estejamos à mesa, quer não, quer oremos, quer durmamos.
87. Alguns dos que abraçaram a vida solitária não cessam de
meditar
sobre
as
palavras
do
salmista:
“Eu
mirei
continuamente o Senhor, e o tive sempre diante de meus
olhos[81]”. Mas, como os pães feitos com o fermento celeste
para alimentar as almas não são todos feitos da mesma
maneira,
outros
encontram
seu
alimento
espiritual
na
meditação do preceito de Jesus Cristo: “Vocês possuirão sua
alma na paciência[82]”, e outros neste preceito: “Vigiem e
orem sem cessar[83]”; outros: “Organize seus negócios na
cidade e preparem o campo com cuidado, para que possam
construir sua casa[84]”; outros mantêm continuamente no
espírito estas palavras: “Por que fui humilde, o Senhor
cuidou de mim e me libertou[85]”; outros repassam todo o
tempo em sua memória esta bela sentença: “Os sofrimentos da
vida presente não são nada comparados com a glória futura que
esperamos[86]”; e outros pensam nesta sentença: “Vocês que
caíram no esquecimento de Deus compreendam essas coisas, e
temam que ele os possa levar de um só golpe, e que ninguém os
poderá libertar de suas mãos[87]”. Todos correm na mesma
corrida; mas somente um arrebatará o prêmio.
88. Quem progrediu nos caminhos da vida eremítica pratica a
virtude com grande facilidade, não apenas acordado, mas até
dormindo. É assim que certas pessoas conseguem expulsar, em
seu sonhos, os demônios que tentam levá-las ao pecado, e
exortar à prática da castidade às pessoas que, em seus
sonhos, observam levadas a violar essa virtude celeste.
89. Mas não esperem por esse tipo de tentações, como se elas
devessem chegar até vocês, e não se preparem para fazer
sermões às pessoas que vocês supõem que poderiam vir a
colocar armadilhas à sua consciência; pois a vida de um
solitário deve ser simples, livre e isenta de embaraços.
90. Aquele que pretende construir a torre celeste desta vida,
não deve se por à obra antes de ter passado um bom tempo
observando e pesando diante de Deus os materiais necessários
e outras coisas indispensáveis para terminar sua obra, e só
depois de ter encomendado ao Senhor, por meio de preces
fervorosas, o sucesso de sua empreitada; deve temer ainda,
antes de lançar as fundações desse edifício espiritual, se
terá condições de terminá-lo, para não se tornar motivo de
riso e dos joguetes dos inimigos, e uma pedra de tropeço e um
escândalo para as pessoas que tivessem o desejo de empreender
uma obra semelhante.
91. Deem especial atenção à suavidade e às delícias
interiores que provarem; pois é preciso temer que talvez
sejam médicos cruéis e perigosos inimigos aqueles que os
fazem sentir essas doçura em sua alma, enganando-os com essa
suavidade imaginária.
92. Durante a noite vocês devem se consagrar à oração e à
meditação por todo o tempo que dispuserem. Quanto à salmodia,
só a empreguem em alguns momentos. Em seguida, preparem-se
para bem cumprir todos os seus exercícios diurnos.
93. Nada contribui mais para iluminar e recolher o espírito
do que as santas leituras: elas são as próprias palavras do
Espírito Santo, e dão inteligência e sabedoria às pessoas que
as leem e meditam.
94. No estado que abraçaram, é preciso que suas leituras
sejam apropriadas para encorajá-los a cumprir exatamente suas
obrigações; pois a resolução firme e generosa de cumprir faz
com que não tenhamos mais necessidade de outros auxílios para
sermos fiéis a essa resolução.
95. Vocês encontrarão certamente mais salvação nas prática
das boas obras do que na leitura dos livros.
96. Vocês devem evitar ler livros estrangeiros e sobretudo
aqueles opostos ao gênero de vida que escolheram, mas não
percam jamais de vista que acima de tudo vocês devem ser
instruídos na ciência e fortalecidos pela virtude do Espírito
Santo. As palavras sempre obscuras dos homens não são
próprias senão para obscurecer cada vez mais as fracas luzes
de nossa inteligência.
97. Para conhecer a qualidade do vinho, basta provar um
pouco; da mesma forma, uma única conversação pode fazer
compreender aos que possuem discernimento, qual o estado e
quais as disposições de um anacoreta.
98. Evitem deixar de desconfiar do demônio do orgulho, e
nunca deixem de se precaver contra suas artimanhas; pois ele
é o mais hábil e mais sutil inimigo de sua virtude.
99. Ao sair de suas celas, vigiem atentamente sua língua,
pois ela é capaz de fazê-los perder em um instante todo o
fruto das boas obras que vocês praticaram com tantas penas e
trabalhos.
100. Abstenham-se escrupulosamente de toda ocupação que lhes
possa sugerir uma vã curiosidade; no mínimo ela lhes será
inútil; pois a curiosidade por muitas coisas é o que existe
de mais capaz para perturbar e manchar o santo repouso do
solitário.
101. Seja para a alma, seja para o corpo, deem às pessoas que
vêm visitá-los todas as coisas que possuírem. Se forem
religiosos poderosos em virtudes e sabedoria, contentemo-nos
em fazê-los conhecer quem somos, e escutemo-los em silêncio;
se, ao contrário, forem simples religiosos, conversemos com
eles com um espírito de modéstia e moderação, sem nos
esquecermos de pensar e crer que os outros valem mais do que
nós.
102. Queria aqui aconselhar as pessoas recém-entradas num
mosteiro, que se dediquem a trabalhos que não as desviem da
oração; mas o exemplo desse religioso que durante a noite
portava uma espada sob seu manto me impediu de fazê-lo.
103. Assim como aquilo que a fé nos ensina da santíssima,
eterna e adorável Trindade, é diferente do que ela nos propõe
crer sobre a encarnação do Filho de Deus, que é uma das três
pessoas da gloriosa Trindade – pois aquilo que é plural na
santa Trindade é singular no Filho de Deus feito homem, e o
que é singular na santa Trindade é plural em Cristo – da
mesma forma, existem exercícios que convêm à vida eremítica,
e outros que convêm à vida cenobítica.
104. O divino Apóstolo disse: “Quem é o homem que conhece os
pensamentos e os conselhos do Senhor?[88]”. Quanto a mim, eu
digo: quem pode compreender os pensamentos de um homem que,
em corpo e espírito, passa a vida na solidão?
105. O poder de um rei consiste na abundância e na riqueza de
seus tesouros e no número de seus súditos; mas o poder de um
solitário consiste na abundância de suas orações.
VIGÉSIMO OITAVO DEGRAU
Da prece, santa e fecunda fonte das virtudes; do recolhimento
do espírito e do repouso do corpo que lhe são necessários.
1. Se você considerar a prece em si mesma, pense que ela é
uma santa conversação, uma doce união com Deus; mas se você
considerar sua virtude e seu poder, é preciso dizer que ela
converte o mundo, reconcilia a terra com o céu, produz as
lágrimas sinceras do arrependimento – e às vezes, dele nasce
–, apaga os pecados, triunfa sobre as tentações, nos consola
e protege nos tempos duros das aflições, coloca fim e termo
às guerras cruéis que nos fazem os inimigos, exerce em nós a
função dos anjos, se torna o alimento dos espíritos, atrai as
alegrias futuras, entretém o coração numa ação contínua, faz
adquirir virtudes, obter dons celestes e avançar a grandes
passos nas vias da perfeição; e podemos acrescentar que ela é
o fermento da alma, a luz do espírito, a ruína do desespero,
a mestra da esperança, o flagelo da tristeza, a fortuna dos
religiosos, o tesouro dos solitários, a extinção da cólera, o
espelho do progresso na virtude, a demonstração certa das
regras a seguir, a manifestação do estado de nossa alma, a
noção clara dos bens futuros e o índice da glória eterna;
finalmente, ela é, para a pessoa que ora, uma espécie de
palácio e tribunal onde o soberano Juiz, sem esperar pelo
último dia, proclama a todo momento suas sentenças de justiça
e de misericórdia.
2. Levantemo-nos e ouçamos com atenção esta rainha das
virtudes que nos chama e nos dirige suas palavras em alta
voz: “Venham a mim, vocês que penam e se curvam sob o peso do
fardo, e eu os aliviarei; tomem meu jugo, e encontrarão o
repouso de suas almas e a cura de suas feridas. Pois meu jugo
é doce[89], e eu tenho poder para apagar as maiores faltas”.
3. Quando nos apresentamos diante de nosso Rei e nosso Deus
para lhe dirigir nossos votos e nossas súplicas, tenhamos o
cuidado de nos havermos preparado para essa importante ação,
e temamos que, vendo-nos vir de tão longe sem as armas
espirituais e sem outros ornamentos que ele exige de nós, não
ordene ele aos executores de sua justiça que nos expulsem
vergonhosamente de sua presença, e que nos conduzam ao exílio
acorrentados, depois de haver destroçado ante nossos olhos e
nos atirado no rosto nossos pedidos e nossas orações.
4. Se vocês forem orar a Deus, vistam com cuidado sua alma
com os hábitos convenientes, despojem seu espírito e seu
coração de toda lembrança e de todo sentimento pelas injúrias
recebidas dos irmãos; pois essa lembrança e esse sentimento
paralisariam absolutamente o efeito de sua súplica.
5. Faça com que sua oração seja simples, sincera e sem
afetação – outrora bastou uma palavra para reconciliar com
Deus o publicano e o filho pródigo.
6. As pessoas que se apresentam diante de Deus para orar se
colocam quase todas na mesma posição; mas elas não oram todas
da mesma maneira, pois as formas e as variedades da oração
são inumeráveis. Com efeito, algumas falam e agem com Deus
como o fariam com um amigo ou um mestre cheio de
benevolência; e, oferecendo a Ele o incenso de seus votos e
de seus louvores, não pensam apenas em si mesmas, mas se
ocupam das necessidades e dos assuntos de seus irmãos; outras
conjuram com ardor o Senhor, para que este lhes conceda
graças, favores espirituais, a glória celeste, e que aumente
nelas a confiança que têm em sua bondade; outras lhe pedem
todo o auxílio de que precisam para triunfar e se libertar
inteiramente dos esforços de seus inimigos; outras solicitam
com insistência algum benefício espiritual que desejam com
muito ardor; outros exprimem a Deus o quanto desejam ser
aliviados das inquietudes cruéis que lhes causa a lembrança
das dívidas que tiveram a infelicidade de contrair diante de
Sua justiça; outros anunciam o quanto eles suspiram por sair
da prisão de seus corpos; outros, enfim, se contentam em
pedir o perdão pelas faltas que cometeram.
7. Testemunhar a Deus um vivo e sincero reconhecimento das
benesses que dele recebemos é a primeira coisa que devemos
fazer, e que nunca podemos deixar faltar no começo de nossas
orações; uma humilde e humilhante confissão de nossos pecados
é a segunda; expressar a Deus de todo nosso coração o horror
e a dor que sentimos por nossos pecados é a terceira. Depois
que tivermos cumprido essas três primeiras qualidades da
oração, continuaremos este santo exercício pedindo ao Rei do
universo todas as graças que desejamos e as que temos
necessidade. Esta é certamente a melhor maneira de fazermos
nossas orações; assim o revelou um anjo a um monge fervoroso.
8. Vocês já compareceram perante um juiz da terra? Lembram-se
de que maneira agiram para ganhar seu processo, e conduzam-se
do mesmo modo diante de Deus. Se ao contrário, jamais
estiveram diante de um juiz mortal ou se não tiveram ocasião
de ver a outros em seu tribunal, pensem nos doentes que serão
operados com ferro e fogo, e aprenderão a orar a Deus. Vejam
com que ardor e com que palavras eles pedem ao médico que
cuide deles e não os façam sofrer em demasia.
9. Evitem colocar em suas orações palavras elegantes e bem
arrumadas;
pois
muitas
vezes
as
palavras
simples
e
entrecortadas dos filhos atraíram a amizade e as boas graças
de seu Pai que está nos céus.
10. Também não empreguem longos discursos ao orar; pois o
cuidado e o trabalho que terão em encontrar palavras capazes
de expressar seus pensamentos e sentimentos dissiparão seu
espírito e os farão perder o recolhimento necessário. Não foi
uma única palavra do publicano que mereceu a plenitude das
Misericórdias do Senhor? Não foi uma única palavra que trouxe
a salvação ao bom ladrão na cruz, no momento de expirar? As
grandes palavras e as belas frases não são apropriadas senão
para encher o espírito de ilusão e de dissipação; enquanto q
eu algumas poucas palavras ditas por um coração cheio de fé
forçam o espírito a entrar em recolhimento e atenção.
11. Se você se sentir emocionado ou tocado por algum
pensamento ou sentimento expresso a Deus, não passe para
outro: permaneça aí, detenha-se aí; pois esta é uma prova de
que o seu anjo guardião ora com você.
12. Se você tem sólidas razões para crer que seu coração é
puro e inocente, nem por isso fale a Deus com muita
familiaridade, mas sim com profunda humildade, e esta
humildade fortalecerá sua confiança em Sua misericórdia.
13. Ainda que você tenha adquirido todas as virtudes, não
cesse de pedir perdão a Deus pelos seus pecados. Não dizia
são Paulo ser ele o primeiro de todos os pecadores[90]?
14. Temperamos as carnes
temperança e lágrimas de
orações.
com azeite e sal; mas é com
penitência que se temperam as
15. Quando você tiver adquirido uma perfeita mansidão, e
tiver triunfado por completo sobre o azedume e a cólera, você
não precisará usar de muita violência para se sentir livre de
toda perturbação e agitação durante suas orações.
16. Enquanto não houvermos adquirido a prece verdadeira,
somos semelhantes a criancinhas que aprendem a andar.
17. Trabalhem para elevar seu espírito até o céu, ou antes,
para fixá-lo na meditação de certas palavras que se acham nas
suas orações; e, embora devido à fraqueza de sua infância
espiritual,
lhes
aconteçam
algumas
quedas,
levantem-se
prontamente e retomem corajosamente seu caminho. Infelizmente
a inconstância é um funesto apanágio do espírito humano! Mas
o
Todo-poderoso
pode
mudar
essa
inconstância
em
uma
constância e uma firmeza inquebrantáveis. Ora, se vocês não
deixarem de lutar contra a instabilidade de seu espírito,
Deus, que fixou as margens às ondas agitadas do mar, fará o
mesmo com as agitações de seu espírito, e lhes dirá: “Vocês
podem chegar até aí, mas não podem ir mais longe[91]”. É
impossível ao homem amarrar a desatenção do espírito; mas
tudo é possível a Deus, pois foi ele quem criou o espírito.
18. Se você algum dia contemplou a Deus, que é o sol de
justiça, você poderá conversar com ele segundo o respeito que
lhe é devido; mas se você jamais teve a felicidade de O ver e
conhece-Lo, como poderá fazer para tratar diretamente com
ele?
19. Para merecer este grande bem, cuide para jamais começar
suas orações senão depois de haver se desembaraçado e
rejeitado com grande coragem todas as distrações que lhe
acorrerem; prossiga a seguir aplicando com todas as forças
seu espírito à meditação das palavras que compõem essas
orações; enfim, tente terminá-las com um santo arrebatamento
em Deus.
20. As doçuras e a alegria que os religiosos que vivem com
seus irmãos experimentam durante o santo exercício da oração,
são diferentes das doçuras e da alegria que provam os
religiosos que vivem na solidão. Os primeiros se encontram
expostos
às ilusões da vaidade, enquanto que os solitários
não estão expostos a isso, porque ele não têm senão a Deus
como testemunho de suas orações, e a santa humildade se torna
a alma de suas comunicações com o Senhor.
21. Você estará sempre recolhido, mesmo à mesa, se, por meio
de esforços constantes e uma atenção permanente, você se
mantiver em recolhimento, e se conseguir reunir prontamente
seu espírito quando ele se perde. Se, ao contrário, você
deixar à sua imaginação a liberdade de divagar e se dissipar,
você será incapaz de se dominar, ainda que seja para cumprir
um dever com seriedade e atenção.
22. É por isso que são Paulo, este homem que possuía uma
prece tão santa e perfeita, não hesitou em nos assegurar que
ele preferia uma prece dita com cinco palavras do fundo do
coração, do que uma dita com dez mil palavras de boca[92].
Mas essa perfeição não pode ser partilhada pelos jovens
religiosos, nem por aqueles que começam a servir a Deus.
Assim, convém a nós, enquanto nos contarmos entre os
imperfeitos, servirmo-nos em nossas orações de um certo
número de palavras; este modo de orar irá nos conduzir pouco
a pouco a outro mais aperfeiçoado. Com efeito, vendo Deus
nossos esforços por tornar nossas orações dignas dele, ainda
que elas sejam realmente imperfeitas, nos concederá o auxílio
de que precisamos para orar corretamente.
23. Mas tenhamos presente que existe uma grande diferença
entre o que mancha nossas preces, os que as destrói, o que as
rouba de nós e o que as dissipa. Com efeito, nós manchamos
nossas preces nos deixando levar por pensamentos vãos e
ridículos; nós as destruímos quando nos tornamos escravos e
joguetes de cuidados inúteis e supérfluos; deixamos que nolas roubem quando entregamos nosso espírito, sem perceber, a
pensamentos vagos e indiferentes; enfim, nos iludimos em
nossas preces quando, ao orar, nos deixamos levar por algum
movimento impetuoso.
24. Quando fizermos nossas orações na presença de muitas
pessoas, esforcemo-nos interiormente para humilhar nossa alma
da mesma maneira como os que dirigem e apresentam suas
demandas diante dos príncipes, humilhando exteriormente seus
corpos. Se estivermos a sós, quando oramos sem diretor,
também não dispensemos as disposições corporais e exteriores
que convêm à oração; pois o espírito se conforma bastante com
o corpo nas pessoas que ainda não estão muito avançadas nos
caminhos de Deus.
25. Todos os que se apresentam diante do Rei eterno, mas
sobretudo as pessoas que desejam obter o perdão de seus
pecados, devem, entre seus interesses espirituais, lhe
oferecer os sentimentos sinceros de um coração contrito e
humilhado. Enquanto habitarmos estes nossos corpos, estamos
obrigados a observar a ordem e o conselho que outrora o anjo
deu a são Pedro[93].
26.
Cinjam-se
da
cintura
da
obediência;
despojem-se
inteiramente de sua própria vontade, e, mortos para si
mesmos, apresentem-se diante de Deus para lhe oferecer o
incenso de suas orações. Pois se nós não nos estudamos senão
para conhecer a vontade do Senhor, sentiremos que ele virá
visitar nossa alma e conduzi-la sem perigo até a vida eterna.
27. Se vocês se elevarem acima do amor ao século e dos
prazeres da terra, vocês rejeitarão para longe de si todas as
inquietações da vida presente, desembaraçarão seu espírito de
todos os pensamentos vãos e inúteis e renunciarão ao próprio
corpo. Com efeito, a prece não é outra coisa do que um
renúncia perfeita a tudo o que pertence a este mundo
presente; é um esquecimento de todas as coisas que vemos
nele, ou que não vemos, vale dizer, das coisas corporais e
das que são incorpóreas. Digamos então a Deus: o que existe
no céu para mim, ó Deus? Nada! Mas o que posso eu desejar
sobre a terra, senão você, ó Deus de meu coração e meu único
parceiro para a eternidade? O que eu desejo é unicamente é
estar tão solidamente unido a você pela oração que eu jamais
possa ser separado. Que uns suspirem e busquem riquezas e
grandes posses; outros, a glória e as honras; quanto a mim,
não tenho outro bem nem outro benefício a desejar do que
estar unido e ligado ao meu Deus e de colocar nele apenas
todas as minhas esperanças e a impassibilidade de minha
alma[94].
28. É a fé que dá asas à oração; pois sem ela, esta não
poderia penetrar até o céu.
29. Quem quer que sejamos, ao experimentarmos os problemas e
agitações trazidos pelas paixões e pelas más tendências, não
nos desencorajemos, mas peçamos a Deus uma fé firme e, com
insistência, para sermos libertos, e não percamos de vista
que todas as pessoas que conseguiram alcançar a tranquilidade
do coração só chegaram aí passando por esse mar de
perturbações e agitações.
30. Ainda que um juiz possa não temer ao Senhor, ele não
obstante fará justiça por causa das constantes importunações
que o cansam; assim age o Senhor a nosso respeito: vendo
nossa alma, que lhe expomos, despojada de sua graça pelo
pecado, ele permitirá a ela que triunfe sobre o corpo, que é
seu adversário irredutível, e que se vingue dos demônios,
seus cruéis inimigos.
31. Este bom e caridoso dispensador de dons e de favores
atende, sem diferenciar, as almas fervorosas e reconhecidas,
e em seguida as faz entrar no sagrado palácio de seu amor;
mas ele deixa as almas frias e sem reconhecimento sofrer
longo tempo a fome e a sede, a fim que de essas dores as
forcem, por assim dizer, a perseverar na prece. Estas almas
infelizes se parecem com cães que, não tendo recebido desde
cedo um pedaço de pão, se afastam da pessoa que poderia lhes
dar.
32. Não diga que apesar de ter feito longas orações você não
fez progresso algum: você não percebe que esta simples
constância, mesmo que só ela, já é para você um enorme
benefício? De fato, poderá haver para você algo mais precioso
do que essa união que você estabelece com Deus e esta
perseverança no santo exercício da prece?
33. Um criminoso e um condenado ao suplício tremem menos com
a lembrança da sentença que foi ou será pronunciada pelos
juízes, do que um cristão que possui o desejo de fazer boas
preces treme com o pensamento de fazê-las de uma maneira
indigna do Senhor. O simples pensamento da oração numa pessoa
sábia e fervorosa por sua salvação basta para afogar nela
todo ressentimento e toda lembrança das injúrias recebidas,
reprimir
os
movimentos
da
cólera,
banir
os
cuidados
supérfluos, negligenciar os assuntos puramente temporais, não
dar nenhuma atenção às aflições e às penas da vida, guardar
uma estrita temperança, triunfas sobre as tentações e se
preservar dos maus pensamentos.
34. É por meio de uma prece contínua do coração que vocês
deve se preparar para a prece interior e exterior por meio da
qual vocês pretendem, apresentando-se diante de Deus, lhe
oferecer seus votos e suas súplicas. Conduzindo-se dessa
maneira, não duvidem, vocês farão muito progresso em pouco
tempo. Já vi pessoas eminentes na virtude da obediência que,
conforme as forças e a atenção que possuíam, se conservavam
fielmente na presença de Deus, e que quando se apresentavam
junto com os irmãos para orar conseguiam num instante
recolher o espírito e o coração, e derramavam torrentes de
lágrimas. O que as preparava assim para a oração era a
obediência que praticavam com total perfeição.
35. A salmodia que acontece junto com a comunidade pode, é
verdade, expor a distrações e pensamentos confusos, enquanto
que a salmodia dos solitários não sujeita aos mesmos
inconvenientes; mas a presença de nossos irmãos recolhidos e
fervorosos pode nos trazer o fervor e nos tirar da
negligência, enquanto que a preguiça e o desleixo dos
solitários não possuem estes mesmos remédios.
36. A guerra que um rei sustenta contra seus inimigos o faz
conhecer o amor e a ligação que seus soldados têm para
consigo; a prece manifesta o amor e a ternura que temos por
Deus.
37. Ela mostra a nós mesmos o estado de nossa alma. Não é sem
razão que os teólogos a chamam de espelho da alma do monge.
38. Qualquer um que comece uma obra e a prossiga quando a
obediência o chama para a prece, se engana grosseiramente: o
que ele segue é a inspiração dos demônios; pois estes infames
ladrões nos roubam, uma a uma, as horas de nossa vida.
39. Ainda que vocês não possuam o dom da prece, se alguém se
recomenda a vocês enquanto vocês oram a Deus, não recusem
essa recomendação; pois muitas vezes a fé viva da pessoa que
pede auxílio em nossas orações obtém para aquele por quem foi
feita a recomendação a graça de uma sincera contrição que
justifica e salva.
40. Quando Deus, vendo que você ora por seus irmãos, atende
suas preces, cuidem-se para não cair na vanglória; pensem que
foi a fé deles que trouxe à oração essa virtude e essa
eficácia.
41. A cada dia os preceptores obrigam seus alunos a prestar
conta exata das lições ministradas; da mesma forma Deus nos
pedirá conta da força e da virtude que ele nos deu em nossas
orações. É por isso que, quando rezamos com mais fervor,
devemos nos vigiar com uma atenção especial; pois é então que
os demônios nos atacam com mais violência por meio de
movimentos de impaciência, a fim de nos fazer perder o fruto
de nossas orações.
42. Devemos, sem dúvida, praticar todas as boas obras com uma
grande afeição no coração; mas é sobretudo na prece que
devemos colocar essa disposição de nossa alma; e podemos
dizer que uma alma ora com santa afeição no coração quando
ela triunfou perfeitamente sobre a cólera.
43. Ah, como são sólidos e duráveis os bens espirituais que
adquirimos com muitas orações e longos anos de provações,
trabalhos e penas!
44. Quando temos a felicidade de nos unirmos a Deus, já não
nos inquietamos com as palavras que iremos usar para falarLhe em oração; pois o Espírito Santo ora por Si mesmo, com
gemidos inefáveis, na pessoa que se encontra neste feliz
estado[95].
45. Quando você orar, expulse de seu espírito todas as
representações e imagens que aí se apresentarem, a fim de não
cair na cegueira e na insensibilidade.
46. A própria prece o fará conhecer e lhe dará a certeza de
que suas orações estão sendo atendidas. Esta certeza é uma
graça concedida pelo Espírito Santo, por meio da qual ele nos
retira toda dúvida e hesitação.
47. Tem você um desejo verdadeiro que suas preces sejam
atendidas? Seja bom e cheio de comiseração para com seus
irmãos; pois a misericórdia que você exercer em relação ao
próximo o fará obter o cêntuplo neste mundo e a vida eterna
no outro[96].
48. O fogo celeste inflama com seus benfazejos ardores as
preces que fazemos com a amor e reverência; e, uma vez que
elas estão assim aquecidas, elas sobem até o céu e dele fazem
descer sobre a alma que ora nessas disposições felizes as
novas chamas que a purificarão e a santificarão cada vez
mais.
49. Existem pessoas que pensam que
a meditação da morte e daquilo que
eu louvo essas duas práticas de
igualmente salutares. Creio mesmo
natureza.
a prece é mais útil do que
se seguirá a ela; por mim,
piedade, e as vejo como
que ambas possuem a mesma
50. Observemos que quanto mais um cavalo forte e ardente
avança para o objetivo ao qual se dirige, mais ele se anima,
se lança e, pela rapidez de sua corrida, se esforça para
chegar. Esta deve ser a conduta de uma alma no sagrado
exercício da oração. Eu entendo a corrida desta alma orante
como sendo os louvores que ela presta a Deus. Assim, quando
essa alma generosa e ardente vê chegar a hora do combate, ela
se anima, se encoraja, toma de suas armas, voa para o campo
de batalha e se mostra invencível.
51. É muito penoso para uma pessoa ser devorada pelos ardores
de uma sede que queima, ou ter roubada a água com que
pretendia dessedentar-se; mas bem mais cruel para uma alma
que ora com grandes sentimentos de compunção é ser obrigada a
interromper sua união e sua conversação com Deus, que lhe
permitem experimentar tantas doçuras e consolações, que ela
havia desejado com tanto ardor.
52. Não encerre sua oração enquanto você experimentar os
ardores do fogo que Deus colocou nela, e que não deixará
secar a fonte das lágrimas que sua graça derrama; pois talvez
em toda a sua vida você não reencontre uma ocasião tão
favorável para merecer e obter o perdão de suas faltas.
53. É muito comum que pessoas, depois de haver recebido de
Deus o dom da oração perfeita, depois mesmo de haver provado
por algum tempo das delícias e das consolações celestes,
manchem
miseravelmente
sua
consciência
com
palavras
inconsideradas e temerárias, e depois busquem sem sucesso
aquilo que estavam acostumadas a encontrar em suas preces.
54. Existe uma grande diferença entre meditar interiormente
conversando com seu próprio coração, e conduzir este mesmo
coração seguindo as luzes da parte superior da alma que,
iluminada pela fé, se torna rainha e capaz de oferecer a
Cristo as hóstias agradáveis a ele. É, assim, com razão, que
um de nossos padres que, por sua ciência, mereceu o título de
teólogo, disse que um fogo santo e celeste desce nas pessoas
que se entregam à meditação para inflamá-las e purificá-las
das impurezas e das nódoas que ainda lhe restam, e que este
mesmo fogo desce também nas almas daqueles que regraram seu
coração segundo as luzes da fé, para iluminá-los mais e mais
e fazê-los avançar nos caminhos da perfeição. É por isso que
esse fogo salutar é com justiça chamado de luz que consome e
ilumina. E às vezes vemos também pessoas saírem do santo
exercício da prece como de uma fornalha ardente, e sentiremse purificadas de suas manchas e de suas imperfeições, e
livres da concupiscência, este terrível e funesto cadinho de
pecados; outros saem cheios de luzes, revestidos de ricos
hábitos de humildade e inundados de alegria celeste. E oraram
mais com o corpo do que com o coração, aqueles que durante a
prece não sentiram nem um nem outros desses dois efeitos; sua
prece foi uma prece judaica.
55. Se os corpos são capazes de se transformar ao tocarem
outros corpos, como poderia permanecer no mesmo estado o
homem que, com a alma e as mãos puras, tocasse a Deus na sua
oração?
56. Encontramos na conduta dos reis da terra uma imagem da
conduta de nosso Rei supremo e eterno. Com efeito, muitas
vezes eles distribui recompensas que ele concede aos seus
servidores; outras vezes, ele os distribui alguns favores por
intermédio de algum ministério; outras vezes ele não emprega,
para fazer essa distribuição, mais do que o ministério de
alguns oficiais inferiores; enfim, algumas vezes ele os
concede de uma maneira secreta e escondida. Mas lembremo-nos
de que todas essas distribuições de recompensas são feitas
conforme a humildade que reina em cada coração.
57. Um rei da terra não deixaria de ter horror a um homem
que, estando diante de si, virasse o rosto para conversar com
seu inimigo; ora, quanto horror não deve sentir o Rei do céu
por uma pessoa que durante a prece desvia o rosto de Si para
se entreter com maus pensamentos e louvá-los?
58. Se o demônio vem distraí-los durante suas orações,
expulsem-no para longe, como expulsariam a um cão, e não
cedam jamais à sua importunação.
59. Peçam a Deus seus dons e suas graças com lágrimas de
arrependimento e de penitência; mas lembrem-se de que será
por meio da obediência que os receberão, e que é com uma
paciência cheia de perseverança que vocês devem bater à porta
de suas misericórdia; ora, esta porta se abre logo a quem
bate dessa maneira; e cedo ou tarde a pessoa obterá o objeto
de seus desejos e de seus votos, orando a Deus nessas
disposições.
60. Eu os aconselho fortemente a não se encarregarem de
impudentemente orar por uma mulher; pois devemos temer que o
demônio se sirva dessa ocasião para penetrar no coração e
roubar no tesouro precioso das graças com as quais Deus o
dotou e enfeitou.
61. Outra precaução que vocês devem tomar é de não considerar
em especial e não examinar escrupulosamente as faltas
corporais que cometeram; pois vocês devem temer que seu
inimigo lhes estenda novas armadilhas e se sirva de vocês
mesmos para fazê-los cair numa emboscada.
62. O tempo necessário
aos exercícios e aos assuntos
espirituais não deve ser usado para se consagrar à oração;
isto seria uma artimanha do demônio por meio da qual ele
pretende impedi-los de obter o que existe de mais benéfico e
salutar na vida religiosa.
63. Quem tiver o cuidado de caminhar apoiando-se sempre no
bastão forte e poderoso da oração, não cairá, ou, se tiver o
azar de falsear o passo, sua queda não será total. De resto,
a oração é uma doce e santa violência que fazemos por Deus.
64. Ora, as vitórias e os triunfos que obtivermos contra eles
[os demônios], nos permitirão conhecer e sentir quais são o
poder e a virtude da oração. É por isso que Davi escreveu:
“Eu conheci, meu Deus, o seu amor por mim, porque você me
assegurou que, na guerra que sustento, meus inimigos não
terão ocasião de aplaudir as vantagens que poderiam obter
sobre mim[97]”. É ainda por essa razão que o salmista disse:
“Atenda-me, Senhor, e eu buscarei a justiça de seus
mandamentos[98]”. Enfim, foi para nos fazer compreender essa
importante verdade que Cristo nos fez ouvir esta sentença:
“Quando dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu me
encontrarei no meio deles[99]”.
65. Todas as pessoas, tanto em relação ao corpo quanto em
relação à alma, não estão nas mesmas disposições para cantar
louvores a Deus; pois umas preferem cantar os salmos mais
depressa, outras mais lentamente; as primeiras o fazem, dizem
elas, para evitar as distrações e delas se livrarem, enquanto
as últimas, porque têm dificuldade na pronúncia ou na
compreensão das palavras que cantam.
66. Se você implorar assiduamente o socorro do Rei do céu
contra seus inimigos, esteja certo de que eles não mais o
fatigarão; pois eles se retirarão rapidamente por si mesmos,
uma vez que nada temem tanto quanto lhe dar ocasião de obter
novos triunfos e novos troféus nos combates que você vencerá,
servindo-se contra eles de arma tão poderosa como a prece. A
prece, como um fogo devorador, os afastará e os fará fugir
para longe.
67. Tenham sempre uma firme confiança em Deus, e ele próprio
será o mestre que os ensinará a salutar arte de bem orar. Nós
não podemos nos dar a faculdade de ver; foi Deus quem no-la
Deus quando nos criou. Seriam então, todos os homens juntos,
capazes de nos permitir discernir e conhecer a excelência da
oração? Ah! Somente Deus pode, durante o próprio exercício da
prece, nos fazer compreender sua excelência e os benefícios
que ela nos traz; sim, é Deus quem dá ao homem toda a ciência
de que este é dotado, que concede a quem ora a graça de bem
orar, e que derrama as bênçãos de sua ternura sobre as almas
justas e santas.
VIGÉSIMO NONO DEGRAU
Do céu terrestre, vale dizer, da paz da alma, que a torna
semelhante a Deus,
aperfeiçoando-a e lhe concedendo a ressurreição antes da
ressurreição geral.
1. Eis que, malgrado minha ignorância profunda, malgrado as
espessas trevas que minhas paixões derramam sobre meu
espírito, malgrado enfim as sombras da morte de meu corpo,
cheguei ao momento de ter a ousadia e a temeridade de falar
do céu terrestre. Ora, se as estrelas são o soberbo ornamento
do firmamento, as virtudes o são em relação à tranquilidade
do coração. É por esta razão que eu penso e digo que a paz ou
a tranquilidade da alma não são outra coisa sobre a terra do
que um verdadeiro céu no qual a alma que as possui já não
considera as artimanhas e maldades dos demônios senão como
joguinhos e verdadeiras diversões.
2. Verdadeiramente livre e mestre de todas as perturbações e
agitações da alma é o homem que purificou sua carne de toda
espécie de cargas e de nódoas, e que, por este meio, a tornou
de certo modo incorruptível; que soube elevar suas afeições e
seus sentimentos acima das coisas criadas, e submeter todos
os seus sentidos ao império da razão e da fé; que, enfim, por
uma força sobrenatural, pode colocar sua alma face a face
diante de Deus, consagrando-a a Ele com deliciosa confiança.
3. Alguns sustentam que este estado feliz da alma é um
ressurreição, ou seja, um retorno da alma ao seu verdadeiro
estado, antes da ressurreição do corpo que ela anima. Outros
chegam a dizer que a paz e a tranquilidade da alma propiciam
um conhecimento de Deus semelhante ao que têm os anjos.
4. Este feliz estado de alma, embora consista na perfeição
dos corações perfeitos, é apesar disto susceptível de
aumentar sem cessar, e quase até o infinito. É essa
tranquilidade, conforme me assegurou um grande servidor de
Deus que teve pessoalmente essa deliciosa experiência, que
santifica e purifica de tal maneira uma alma, que a desliga e
liberta tão vitoriosamente de todas as afeições pelas coisas
da terra, que, por um arrebatamento divino, a eleva até os
céus e, depois de havê-la conduzido ao porto da salvação, a
faz contemplar o próprio Deus. Não é deste arrebatamento que
experimentou Davi, e do qual ele disse “que os deuses
poderosos da terra foram extraordinariamente elevados”. É
também aquilo que experimentou este santo religioso do Egito
que, nomeio dos irmãos, orava quase que o dia inteiro com os
braços estendidos para o céu.
5. E no entanto essa admirável paz da alma não é a mesma em
todos que a possuem: pois ela pode ser mais ou menos eminente
em perfeita em uns do que em outros. Alguns, por exemplo, são
tomados por um horror extremo ao pecado, enquanto outros são
devorados pelo desejo de se enriquecerem de virtudes.
6. Com razão chamamos a castidade de paz da alma, pois esta
virtude angélica é o princípio da ressurreição geral, da
incorruptibilidade e da imortalidade das criaturas que o
pecado
tornou
corruptíveis
e
mortais.
Não
é
dessa
tranquilidade de alma que quis se referir são Paulo, quando
disse: “Quem é o homem que conheceu o Espírito do Senhor?
[100]”.
7. Não foi ainda esta virtude que quis assinalar um solitário
do Egito, ao dizer que já não temia o Senhor? Pretendia ele
especificar outra coisa que não a paz da alma, este religioso
que pedia a Deus que lhe permitisse ser ainda provado pelo
fogo das tentações? Quem é então a pessoa que, antes da
glória futura, pode ser considerada mais digna dessa
tranquilidade do coração do que este Sírio que, enquanto
Davi, tão ilustre entre os profetas, dizia a Deus: “Concedame, Senhor, no curso de minha peregrinação, algum refresco e
algum repouso, a fim de receber algum alívio antes que eu
parta para o mundo[101]”, dizia [este Sírio]: “Modere,
Senhor, as efusões transbordantes de graças e as consolações
com que você inunda minha alma”?
8. Uma alma possui realmente essa preciosa paz, quando é
levada ao bem e se identifica com a virtude, como os maus são
levados ao mal e absorvidos pelos prazeres dos sentidos.
9. Se o último degrau da intemperança consiste em se auto
violentar para comer e beber depois que se está perfeitamente
saciado, a perfeição da temperança e da sobriedade consiste
em se privar de alimento e bebida, mesmo quando se tem muita
necessidade disso; ora, uma alma não chega a esse grau de
virtude senão pelo poder e a autoridade que ela adquire sobre
os apetites e as inclinações do corpo. Se o mais execrável
dos excessos a que a luxúria pode levar um homem a quem
possui como escravo, é o de buscar contentar sua paixão com
animais e objetos inanimados, o mais alto grau da castidade
é não ser tocado nem movido, seja por criaturas animadas,
seja pelas que não o são. Se o fim da avareza consiste em
nunca parar de trabalhar para aumentar as riquezas que já se
possui e não se contentar jamais, certamente a prova mais
tocante de que alguém ama e pratica a pobreza deve ser não
dar atenção alguma ao próprio corpo. Crer-se num estado doce
e tranquilo no meio das mais cruéis aflições é prova da mais
heroica paciência. O cúmulo da fúria e da cólera é certamente
se entregar a ataques de furor quando se está só; o cúmulo da
doçura e da moderação deve ser permanecer com calma, seja na
ausência, seja na presença de caluniadores. Se o último
degrau do delírio ao qual pode conduzir a vanglória consiste
em pensar e crer que merecemos ser louvados e receber
louvores que ninguém dá nem pode dar, a marca mais segura de
que pisoteamos todo sentimento de vaidade é não sentir o
menor movimento mesmo no meio dos elogios que nos fazem pelas
boas obras que tivemos a felicidade de praticar. Se o
verdadeiro caráter do orgulho, esta maldita peste das almas,
é de nos elevar acima dos outros, por vis e desprezíveis que
sejamos, não devemos concordar que o caráter essencial da
humildade, esta mãe fecunda das virtudes, consiste em
conservar sentimentos de rejeição e desdém por si mesmo no
meio das maiores empreitadas e das ações mais honradas e mais
espantosas? Se existe um testemunho irrefutável que somos
escravos de todas as paixões quando, sem nenhuma resistência,
sucumbimos a todas as tentações do demônio, é, na minha
opinião, uma marca certa de que alcançamos a paz da alma,
quando podemos dizer abertamente com Davi: “Eu não reconheci
o mal que se afastou de mim[102]”, e acrescentar: “Eu não sei
como nem por que ele veio, nem como se retirou; pois, estando
unido ao meu Deus por laços tão fortes que não me permitiram
separar-me Dele, fiquei insensível a todas essas coisas e a
outras semelhantes”.
10. Ora, as pessoas a quem Deus se dignou conceder essa graça
tão sublime, ainda que revestidas de uma carne frágil, se
tornam templos vivos da Divindade, que as dirige e conduz
suas palavras, ações e pensamentos, e que, por meio das luzes
abundantes com que iluminam seu espírito, as fazem conhecer
exatamente qual é a sua adorável Vontade; superiores a todas
as instruções dos homens, essas almas afortunadas clamam com
sentimentos de um arrebatamento celeste: “Minha alma queima
de sede por meu Deus, que é um Deus poderoso e vivo; quando
irei e quando estarei diante da face de meu Deus?[103]”; e
elas acrescentam: “eu não posso suportar a violência do
desejo que me apressa; ó meu Deus, eu desejo, busco e peço
essa beleza imortal que você me dera antes desta carne de
barro”.
11. E o que podemos dizer mais? Quem quer que possua esta
tranquilidade da alma mais do que eminente, não estará este
autorizado a dizer com são Paulo: “Eu vivo, mas não sou eu
quem vive, mas é Jesus Cristo que vive em mim[104]”? Ou
então, com o mesmo apóstolo: “Eu combati o bom combate,
terminei a corrida, guardei minha fé[105]”?
12. Há mais de uma pedra preciosa a ornar o diadema dos reis,
e a paz da alma não é formada por uma única virtude, mas pela
reunião de todas as virtudes – ela não poderia existir ainda
que na ausência de uma só.
13. Estejam convencidos de que essa paz é, de certo modo, a
corte e o palácio do Rei dos céus; ora, neste palácio
comparável a uma cidade, existem diferentes moradas para as
almas justas; e o muro que contorna esta nova Jerusalém é a
remissão de nossos pecados. Corramos, portanto, irmãos, e
cheguemos até o leito que nos foi preparado nesse palácio
celeste: aí encontraremos o repouso perfeito. E se por uma
infelicidade deplorável ainda nos encontrarmos carregados com
o peso de nossos maus hábitos, ou se estivermos embaraçados
pelos assuntos da vida que é tão curta, apliquemo-nos no
mínimo a buscar um lugar ao redor do leito nupcial do esposo
celeste. Se nossa tibieza e nossa negligência ainda nos
provarem dessa honra e dessa benefício, façamos ao menos de
tal modo a que possamos penetrar no recinto desse palácio;
pois
será
condenado
a
viver
eternamente
num
solidão
desesperadora junto com os demônios, o homem que, antes de
sua morte, não tenha entrado nesse recinto, ou melhor, que
não tenha escalado as muralhas da cidade celeste para
penetrar
no
seu
recinto.
É
absolutamente
necessário,
portanto, que com determinação forte e sincera possamos dizer
com Davi: “Com o socorro de Deus atravessarei o muro[106]”; e
este muro, ensina-nos o Profeta, são os nossos pecados: “Suas
iniquidades, disse ele, estabeleceram um muro de separação
entre vocês e o seu Deus[107]”. Trabalhemos com coragem, meus
amigos, para derrubar esse muro de separação que com tanta
infelicidade erguemos com nossa desobediências. Busquemos a
todo custo a remissão dos pecados; pois no inferno ninguém
poderá nos fornecer os meios de pagar as dívidas que
contraímos quando os cometemos. Sejamos cheios de zelo, caros
irmãos, pelos interesses de nossa salvação; pois foi com esta
finalidade que Deus concedeu a graça de nos engajar em sua
milícia santa. Estejamos convencidos de que não podemos nos
escusar de sermos animados por esse ardor, nem pelas quedas
que sofremos, nem pelas circunstâncias difíceis dos tempos,
nem pela dificuldade em carregar o jugo do Senhor; pois todos
aqueles que, como nós, se revestiram de Jesus Cristo no
sacramento da regeneração, receberam de Deus o poder de se
tornar seus filhos[108], e foi a estes que Ele dirigiu estas
palavras:
“Deixem
de
lado
suas
empresas
temerárias,
considerem e reconheçam que eu sou o seu Deus[109]”, e
também: “Eu sou a paz sólida e verdadeira dos corações”. Ora,
é a este Deus da paz a quem devemos glória e honra pelos
séculos
dos
séculos.
Amém.
Essa
santa
tranquilidade
transporta da terra ao céu uma alma que conhece e sente sua
miséria, e desperta a coragem do pecador cheio de humildade
para fazê-lo sair do âmbito de suas paixões. Mas o amor, que
está acima de todo louvor, concede às pessoas que dele se
ornam o poder de ser colocadas dente os anjos, que são os
príncipes do povo de Deus.
TRIGÉSIMO DEGRAU
Da reunião das três virtudes teologais, a fé, a esperança e a
caridade
1. Depois de havermos falado de todas as coisas que nos
ocuparam até o momento, podemos dizer com o Apóstolo que nos
resta a considerar a fé, a esperança e a caridade, virtudes
que são o fundamento e a ligação de todas as virtudes cristãs
e religiosas. Ora, a maior e mais bela destas três virtudes é
a caridade, pois o próprio Deus é chamado de Amor.
2. Nós enxergamos a fé como um raio de sol que nos ilumina; a
esperança, como a luz deste raio que nos dirige e nos
encoraja; e a caridade, como o próprio sol que nos inflama e
fecunda em nós todo o bem que fazemos. Entretanto devemos
dizer que essas três virtudes concorrem para formar a mesma
luz e o mesmo esplendor.
3. A fé nos torna capazes de executar tudo o que ele nos faz
empreender. A misericórdia de Deus afirma e fortalece a
esperança, e não permite que esta virtude seja perturbada nem
confundida. A caridade não cai jamais, nem se detém em seu
curso, nem permite, a quem foi ferido pelas flechas divinas,
descansar ou deixar de se entregar a ações que o espírito do
mundo encara como irrazoáveis e insensatas; aqui, porém, elas
constituem uma sábia e feliz loucura.
4. Todas as vezes que quisermos falar em caridade, é de Deus
que estaremos falando. Veja-se por isto o quanto é grande,
difícil e perigoso aquilo que desejam empreender as pessoas
que não dão atenção à grandeza daquilo que estão por começar,
quando pretendem falar de Deus.
5. Os anjos conhecem a excelência da caridade segundo o grau
de luz que o Senhor lhes comunicou.
6. Deus é amor[110], e aquele que pretender explicar com suas
palavras o que é Deus, será mais insensato e mais cego do que
uma pessoa que pretendesse contar os grãos de areia que
existem nas margens e nos abismos do mar.
7. A caridade é assim uma coisa semelhante a Deus, e por sua
potência ela torna os homens que a possuem semelhantes a ele,
na medida em que sua natureza o permita. Os efeitos que ela
produz numa alma ornada com ela consistem em entregá-la a uma
santa e deliciosas embriaguez, em ser para ela uma fonte
inesgotável de fé, um abismo de justiça e paciência, e um
oceano de humildade.
8.
A
caridade
expulsa
do
espírito
todo
pensamento
desvantajoso ao próximo; ela não pensa mal de ninguém[111].
9. A caridade, a paz do coração e a adoção que Deus nos
concede no batismo, para que sejamos seus filhos queridos,
são três coisas que só diferem entre si pelo nome, mais ou
menos como o fogo, a luz e a chama. As três possuem a mesma
natureza, a mesma ação e os mesmos efeitos; esta é a ideia
que vocês devem guardar.
10. Temos maior ou menor temor segundo nossa seja nossa
caridade mais ou menos perfeita. O cristão que nada teme, ou
está cheio dessa virtude, ou ela se encontra inteiramente
extinta nele.
11. Creio não fazer algo inútil ao me servir aqui de
comparações extraídas das ações humanas, a fim de ajudar a
compreender no que consiste o temor, o ardor, o zelo, os
cuidados, a pressa, o respeito, a obediência e o amor que
devemos sentir por Deus. Feliz, portanto, o homem que ama a
Deus com uma afeição tão ardente quanto um amante insensato
ama a beldade que arrebatou miseravelmente seu coração! Feliz
também aquele que não sente por Deus menos temos do que um
criminoso tem pelos juízes que o julgarão e condenarão! Feliz
ainda o cristão cujo zelo e ardor nas vias do Senhor inflamam
seu coração tanto quanto o ardor e o zelo inflamam o dos
servidores fiéis e devotados a seus mestres temporais! Feliz
ainda aquele que não sente pela prática das virtudes uma
afeição menos pronunciada nem menos ardente do que sentem os
maridos ciumentos pelas esposas a quem adoram! Felizes ainda
as pessoas que, em suas orações, se apresentam a Deus com o
mesmo respeito que os oficiais se apresentam diante de seu
soberano! Felizes enfim as almas que se dedicam a agradar a
Deus com a mesma atenção que os próprios homens estudam
agradar aos outros homens!
12.
Uma
mãe
cujo
coração
é
todo
ternura,
não
ama
tanto
abraçar e apertar contra seu seio materno a criança a quem
deu à luz e nutriu, quanto um verdadeiro filho da caridade
ama se unir a Deus.
13. Uma pessoa que ama ardentemente a outra espera sempre ver
o objeto de seu amor, o cobre dos beijos mais ternos e
afetuosos, e mesmo o sono não é capaz de desviar seu espírito
ou seu coração do objeto amado: o amor que sente por essa
pessoa a apresenta a ela em sonhos. Ora, aquilo que
normalmente acontece na ordem natural, acontece também nas
coisas de ordem sobrenatural. É isso que foi maravilhosamente
bem descrito por uma alma que foi ferida pela flecha do amor
a Deus: “Eu durmo, disse ela, porque sou obrigado a ceder às
necessidades do corpo; mas meu coração vela sempre, por causa
da grandeza de meu amor[112]”.
14. Mas observem vocês que são de confiança, que a alma,
semelhante a um cervo, depois de ter dado morte a todos os
animais ferozes que pretendiam devorá-la, queima com uma sede
ardente pelo Senhor; e, ferida pela flecha de seu amor,
suspira sem cessar junto a ele como se estivesse junto a uma
fonte de água refrescante, cai desfalecida e parece querer se
perder e se extinguir em Deus.
15. Nem sempre é fácil reconhecer a causa e o princípio da
fome que sentimos; mas o mesmo não se pode dizer da sede: ela
aparece abertamente, e permite ver de fora os ardores com que
atormenta internamente a pessoa sedenta. É por isso que um
grande servidor de Deus disse: “Minha alma queima inteira de
sede por Deus, que é o Deus vivo e poderoso[113]”.
16. Se a presença de um amigo a quem queremos ternamente
produz em nós uma transformação notável, se ela nos torna
alegres e contentes, capaz de afastar de nosso coração toda
pena e amargura, quão grande transformação, eu lhes pergunto,
não deve operar a presença de Deus numa alma pura, santa e
inflamada por amor a Ele, quando se apresenta a ela de
maneira invisível, é verdade, mas nem por isso menos sensível
e deliciosa?
17. O temor a Deus que provém de um sentimento profundo do
coração costuma lavar e purificar a alma de todas as suas
manchas. É por isso que o salmista dirigiu ao Senhor esta
prece admirável: “Trespassa, ó meu Deus, minha carne com seu
temor, como se a perfurasse[114]”. Mas existem pessoas a quem
o santo amor a Deus devora e consome, segundo estas palavras
de
Salomão:
“Você
trespassou
meu
coração,
sim,
você
trespassou meu coração[115]”. Encontramos outras a quem o
amor a Deus iluminou de tal forma, que elas se sentem
transportadas de alegria e contentamento, e clamam: “Meu
coração colocou no Senhor toda a sua esperança e eu fui
socorrido, e minha carne como que refloresceu[116]”. Mas não
fiquemos espantados: não derrama no rosto a alegria do
coração um frescor semelhante ao deu uma flor? Quando uma
pessoa tem a felicidade de ser inflamada pelos ardores da
caridade, e se vê, de certa forma, identificada com esta
virtude celeste, podemos ver nela, como num espelho, a beleza
de sua alma. Não é o que aconteceu ao condutor do povo de
Deus? Moisés, este homem extraordinário, que já havia muitas
vezes contemplado a Face de Deus, não foi então publicamente
rodeado de sua Glória?
18.Os que alcançaram o grau da caridade, que é próprio dos
anjos, esquecem-se até mesmo do alimento que seu corpo
reclama, e não pensam nisso. Mas não vemos também que no
decurso das coisas naturais uma paixão violenta é capaz de
fazer perder o pensamento de comer? Assim, o que falamos da
caridade não tem nada de espantoso.
19. Penso mesmo que os corpos daqueles que a caridade tornou
incorruptíveis de certo modo, estão menos expostos às
enfermidades; pois a chama puríssima da caridade que os
purificou, depois de haver neles extinguido o fogo da
concupiscência, faz com que não mais estejam expostos à
corrupção.
20. Por isso eu ouso assegurar, porque estou intimamente
convencido disso, que essas pessoas tomam seu alimento sem
gosto e sem prazer; pois, se a umidade da terra nutre e
conserva as plantas, o fogo sagrado do amor de Deus nutre e
conserva as almas.
21. O crescimento do temor a Deus é o começo da caridade; mas
a perfeição da castidade é o começo dos verdadeiros
conhecimentos teológicos.
22. Deus, por meio de uma palavra misteriosa e secreta,
instrui ele próprio as pessoas que estão perfeitamente unidas
a ele com todas as potências de suas almas e de seus corpos;
mas aquelas que não estão unidas a Deus dessa maneira, é
difícil poder falar dele.
23. O Verbo de Deus dá uma castidade perfeita, e por sua
presença no coração, leva a morte à própria morte. Ora, a
destruição da morte dá aos que aspiram ao conhecimento dos
mistérios as luzes necessárias para chegar até aí.
24. Assim, quando falamos a Deus pelo Espírito de Deus,
nossas palavras são, de certo modo, as próprias palavras de
Deus, que são todas santas e que subsistem eternamente.
25.
A
castidade
eleva
verdadeiramente
um
homem
ao
conhecimento dos mistérios celestes, de modo que ele consegue
conceber a doutrina que nos ensina o mistério de um só Deus
em três pessoas.
26.Quem ama a Deus sinceramente não deixa nunca de amar a seu
próximo, pois é o amor que temos por nossos irmãos que
manifesta e demonstra aquele que temos por Deus.
27. Este amor ao próximo não nos permite admitir que em nossa
presença se fale mal de outrem, como se nós mesmos nos
entregássemos à maledicência; este vício nos causa horror e
temos mais medo de nos tornar culpados dele, mais do que de
cairmos no fogo.
28. Podemos comparar uma pessoa que nos assegura amar a Deus
e que não obstante nutre em seu coração sentimentos de cólera
e animosidade, a um homem que durante o sono imagine que
viaja e corre.
29. A caridade se fortalece pela esperança; pois é esta
última virtude que nos faz esperar o prêmio e a recompensa de
nossa caridade.
30. Ora, a esperança é um dom do céu que nos enriquece com
bens espirituais e invisíveis.
31. A esperança é um tesouro seguro que possuímos neste
mundo, e que deve nos colocar na posse do tesouro imenso e
eterno que esperamos no outro.
32. Esta virtude divina nos consola e nos sustenta em nossas
penas e trabalhos, nos abre a porta da caridade, expulsa de
nosso coração todo sentimento de desespero; e, ainda que os
bens eternos ainda não estejam à nossa disposição, ela nos
permite, de certa forma, possuí-los e usufruir deles sobre a
terra.
33. A caridade perece se a esperança se retira e falta. É a
esperança que nos encoraja a suportar com heroica paciência
as penas e as amarguras da vida presente; é ela que nos faz
amar nossos trabalhos e suores; é ela que nos cerca com as
misericórdias do Senhor.
34. É por sua poderosa proteção que o religioso sufoca a
tibieza e triunfa perfeitamente sobre a preguiça e o
desânimo.
35. O gosto que sentimos pelos favores e os dons celestes faz
nascer em nós os sentimentos de esperança. A pessoa que não
provou, no fundo de sua alma, esses dons celestes, corre o
grande risco de não perseverar.
36. A esperança e a cólera são inimigas irreconciliáveis. Com
efeito, a esperança jamais nos cobre de confusão, e a cólera
nos cobre de vergonha.
37. A caridade traz o dom da profecia e dos milagres; ela é
uma fonte inesgotável de luzes divinas, um cadinho de chamas
celestes que, quanto mais se derramam em abundância em nosso
coração, mais o inflamam e consomem; ela é a alegria dos
anjos, e nos faz avançar em glória para a eternidade.
38. Ó bela virtude! Ó mais bela de todas as virtudes! Diganos, nós suplicamos, diga-nos: aonde você conduz a pastar
seus caros rebanhos, onde você repousa durante os ardores do
meio dia[117]? Ilumina-nos! Derrama sobre nós seu divino
orvalho, dirige-nos, conduza-nos e nos atraia a você; pois
desejamos ardentemente subir até o palácio onde você habita.
Você comanda todas as coisas e reina sobre tudo; e você feriu
meu coração; eu já não posso conter os ardores com que você
me abrasou, e queimo de vontade de louvá-la; então eu lhe
direi: “Você domina as potências do mar, e, quando lhe
agrada, amansa e acalma o movimento e a violência das ondas;
você humilha e destrói os soberbos em seu orgulho, como
homens trespassados por flechas; e, com a força de seu braço,
você dispersou os inimigos[118]”, e tornou invencíveis todos
os que a amam. Que me seja dado contemplá-la, como o santo
patriarca Jacó pode fazê-lo, quando você se apoiou naquela
escada maravilhosa que ele viu! Ah, amável caridade, digne-se
ser favorável à minha oração – ensine-me, se lhe agradar, em
que estado deverei eu estar para poder subir por essa escada
e chegar até você. Que meios devo empregar para tanto, qual o
prêmio e qual a recompensa que merece a pessoa que a ama, e
que, para subir por essa escada cujos degraus são todos
virtudes, as arranja e dispõe em seu coração com intensa
atividade? Eu desejaria ainda saber o número de seus degraus,
e quanto tempo é preciso para se alcançar o último. Jacó, que
outrora lutou contra um anjo e que mereceu ver esta escada,
nos ensinou quem são aqueles que devem nos conduzir para
subir por ela; mas ele não quis, ou, para melhor dizê-lo, não
pode nos ensinar nada mais a respeito desse mistério. Agora
que eu já falei a respeito, parece-me que a caridade se
mostrou a mim do alto dos céus e me fez ouvir estas palavras
em minha alma: enquanto você não se libertar da prisão de seu
corpo não lhe será possível, apesar de seu amor por Deus, ver
e contemplar os traços de minha beleza: contente-se em saber
que essa escada, no cimo da qual você me viu apoiada, marca
com seus degraus a ordem e o encadeamento das virtudes,
conforme disse esse grande homem que, ainda quando vivo, foi
iniciado nos mistérios de Deus; pois foi ele quem ensinou que
no presente estas três virtudes, a fé, a esperança e a
caridade, permanecem e são necessárias; mas que a caridade é
a mais excelente das três[119].
São João Clímaco - A escada santa - Degraus 1 a 10
[1] Romanos II, 11.
[2] Salmo XIII, 1.
[3] Êxodo XIV, 15-22; XVII, 8-13.
[4] Salmo CXL, 4.
[5] Provérbios IV, 27.
[6] Eclesiástico IV, 10.
[7] Mateus XVIII, 20.
[8] Salmo LXII.
[9] Jeremias XVII, 16.
[10] Mateus VIII, 22.
[11] Marcos X, 21.
[12] Mateus VIII, 22.
[13] Mateus V, 9-12.
[14] II Coríntios VI, 17.
[15] Cf. Mateus XIV, 15.
[16] João IV, 44.
[17] Romanos XIV, 12.
[18] Romanos XIV, 21.
[19] Mateus XII, 49.
[20] Cf. Salmo XXIII, 6.
[21] Mateus VI, 24.
[22] Gênesis XII, 1.
[23] Cf. I Coríntios XV, 33.
[24] Cf. Salmo LIV, 7.
[25] Romanos VIX, 23.
[26] Salmo XXXI, 5.
[27] Salmo XXXIX.
[28] I Coríntios XIII.
[29] II Timóteo IV, 2.
[30] Romanos VIII, 38-39.
[31] Filipenses IV, 13.
[32] João XIII, 35.
[33] Salmo CXXXII, 1.
[34] Orações iniciais do ofício, cf. Salmo XCIV, 1.
[35] Salmo XCIII.
[36] Salmo LXX.
[37] Eclesiástico XXIV, 23.
[38] Salmo CXXXV, 23-24.
[39] Eclesiastes IV, 9.
[40] Lucas XVII, 10.
[41] Mateus X, 22.
[42] Sabedoria III, 6.
[43]
[44]
[45]
[46]
[47]
[48]
[49]
[50]
[51]
[52]
[53]
[54]
[55]
[56]
[57]
[58]
[59]
[60]
[61]
[62]
[63]
[64]
[65]
[66]
[67]
[68]
[69]
[70]
[71]
[72]
[73]
[74]
[75]
[76]
[77]
[78]
[79]
[80]
[81]
[82]
[83]
[84]
[85]
[86]
Cf. João XX, 4.
Cf. Salmo 6: 2.
Cf. Salmo 37: 6-7.
Cf. Salmo 101: 4-12.
Salmo 79: 4.
Cf. Lucas 1: 79.
Cf. Salmo 78: 8.
Salmo 66: 2.
Isaías 49: 9.
Cf. Romanos 8: 21.
João 14.
Mateus 8.
Marcos 5.
Salmo 9.
Mateus 22.
Isaías 22.
Salmo 45.
Salmo 123.
Salmo 123.
Salmo 88: 49.
Jó 29: 2-3.
Mateus 9: 22.
Cf. Lucas 7: 47.
Mateus 25: 29.
Cf. Salmo 38: 14.
Salmo 15: 8.
Eclesiastes 7: 36.
Salmo 101: 5.
Mateus 25: 41.
Jó 14: 11.
Salmo 136: 4.
2 Coríntios 6: 14.
Salmo 141.
Cf. Mateus 8? 9.
Apocalipse 21: 4.
Salmo 145: 8.
Ezequiel 33: 13.
Lucas 14: 35.
Salmo 101: 5.
Eclesiastes 1: 22.
Salmo 6: 8.
Cf. Mateus 6: 14-15.
Salmo 100: 5.
Lucas 6: 37.
[87] Mateus 7: 2.
[88] Cf. Lucas 18: 14.
[89] Cf. Salmo 63: 7.
São João Clímaco - A Escada Santa - Capítulos de 11 a 20
[1] Salmo 38: 2.
[2] Eclesiastes 20: 18.
[3] Salmo 5: 7.
[4] Mateus 25: 36.
[5] Mateus 7: 13-13.
[6] Salmo 34: 13.
[7] As numerações entre colchetes não constam do original que
passa do item 3 diretamente ao item 6.
[8] Este parágrafo termina abruptamente no original.
[9] Efésios 5: 12.
[10] Romanos 7: 24.
[11] Romanos 11: 34.
[12] O texto original encontra-se interrompido neste ponto.
No entanto, a frase admite uma continuidade no parágrafo
seguinte: “Ora, se nosso espírito, por causa de maus
pensamentos surgidos enquanto dormimos, é levado a prazeres
desonestos, não durmam nem se levantem sem a lembrança da
morte, e sem que a oração os mantenha sempre unidos a Jesus”.
[13] Cf. Mateus 1: 30.
[14] Cf. Salmo 36: 35-36.
[15] I Coríntios 4: 7.
[16] Salmo 6: 3)
[17] II Timóteo 3: 10.
[18] Atos 20: 34.
[19] Cf. Mateus 6: 26.
[20] Jó 4: 15.
São João Clímaco - A Escada Santa - Capítulos de 21 a 30 –
Final
[1] Na realidade, foi Evagro o Pôntico quem primeiro
estabeleceu uma lista dos “pecados” fundamentais, aos quais
ele chamou de pensamentos, em número de oito: vanglória, ira,
acídia, tristeza, luxúria, avareza, orgulho e gula. Seu amigo
e discípulo Cassiano o Romano simplificou esta lista, unindo
em um só os pensamentos da acídia e da tristeza, que se
tornaram a “preguiça”. Posteriormente, o papa Gregório Magno,
no século VI, organizou a lista que é aceita atualmente pela
Igreja de Roma: gula, luxúria, avareza, ira, soberba, inveja
e preguiça.
[2] Espécie de armadilha que se coloca na terra, com pontas
metálicas dispostas de tal maneira que sempre uma está
apontada para cima para ferir a quem pisar.
[3] Isaías 3: 12.
[4] Este parágrafo não existe no original consultado.
[5] I Coríntios 2: 11.
[6] Lucas 16: 10.
[7] Mateus 16: 26.
[8] Salmo 39: 15.
[9] Salmo 39: 16.
[10] I Reis 2: 30.
[11] Lucas 6: 26.
[12] Mateus 5: 16.
[13] Lucas 14: 11.
[14] Lucas 18: 11.
[15] Tiago 4: 6.
[16] Salmo 17: 42.
[17] Ibid.
[18] Cf. Mateus 22: 13.
[19] Êxodo 15: 1.
[20] Este parágrafo não existe no original consultado.
[21] Mateus 4: 9.
[22] Mateus 4: 10.
[23] Mateus 11: 29.
[24] Isaías 66: 2.
[25] Mateus 5: 4.
[26] Salmo 24: 9.
[27] Salmo 36: 2.
[28] Cânticos 1: 4.
[29] Salmo 24: 8.
[30] Salmo 7: 11.
[31] Salmo 11: 7.
[32] Mateus 19: 23.
[33] Mateus 11: 29.
[34] Salmo 135: 23-24.
[35] Salmo 114: 6.
[36] Cf. João 10: 8-9.
[37] Salmo 113: 9.
[38] Salmo 21: 26.
[39] Cf. João 13:35 e Lucas 10: 20.
[40] I Coríntios 4: 4.
[41] Cf. Lucas 22: 43.
[42] Jó 42: 6.
[43] CF. Salmo 51: 18.
[44] Cf. II Samuel 12: 13.
[45] Ibid.
[46] Salmo 90: 13.
[47] Cf. Atos 1: 1.
[48]
A
lista
apresentada
por
correspondência em português.
[49] Cf. Mateus 6: 23.
[50] Cf. Salmo 67: 2.
[51] Cf. II Coríntios 12: 9.
[52] Cf. Salmo 7: 12.
[53] Salmo 69: 2.
[54] Salmo 118: 42.
[55] Salmo 79: 7.
[56] Salmo 38: 2.
[57] Salmo 118: 51.
[58] Eclesiastes 5: 7-8.
[59] Provérbios 24: 6.
[60] I Coríntios 14: 40.
[61] Salmo 142: 10.
[62] Salmo 142: 8.
[63] I Tessalonicenses 2: 18.
[64] Cf. Romanos 8: 28.
[65] Deuteronômio 4: 9.
[66] Mateus 18: 15.
[67] Cf. II Coríntios 6: 8.
[68] Cf. Mateus 18: 22.
[69] Cf. Tiago 2: 10.
[70] Salmo 118: 96.
[71] Salmo 102: 20-23.
[72] Salmo 122: 2-3.
[73] Cf. Isaías 19: 1.
João
Clímaco
não
tem
[74] Cf. Salmo120: 3.
[75] Cf. Mateus 5: 8.
[76] Salmo 56: 8.
[77] Cânticos 5: 2.
[78] Cf. II Coríntios 12: 4.
[79] Jó 4: 12-18.
[80] Cf. Jó 39: 5-8.
[81] Salmo 15: 8.
[82] Lucas 21: 19.
[83] Mateus 26: 41.
[84] Provérbios 24: 17.
[85] Salmo 114: 6.
[86] Romanos 8: 18.
[87] Salmo 49: 22.
[88] Romanos 11: 34.
[89] Mateus 11: 28-30.
[90] Cf. I Timóteo 1: 15.
[91] Jó 38: 11.
[92] I Coríntios 14: 19.
[93] Cf. Atos 12: 8.
[94] Cf. Salmo 72: 25-28.
[95] Cf. Romanos 8: 26.
[96] Cf. Mateus 19: 29.
[97] Cf. Salmo 40: 12.
[98] Salmo 118: 145.
[99] Mateus 18: 20.
[100] I Coríntios 2: 16.
[101] Cf. Salmo 38.
[102] Cf. Salmo 100: 4.
[103] Salmo 41: 3.
[104] Gálatas 2: 20.
[105] II Timóteo 4: 7.
[106] Salmo 17: 30.
[107] Isaías 59: 2.
[108] Cf. João 1: 12.
[109] Cf. Salmo 45: 11.
[110] João 1: 4.
[111] I Coríntios 13: 5.
[112] Cânticos 5: 2.
[113] Cf. Salmo 118.
[114] Cf. Salmo 118.
[115] Cânticos 4: 9.
[116] Cf. Salmo 27.
[117] Cf. Cânticos 1: 7.
[118] Salmo 88: 9-10.
[119] Cf. I Coríntios 13: 13.
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