2016
1
GLAUCIA DAVINO
FERNANDA BELLICIERI
(ORG.)
Histórias de Roteiristas
Entre Encanto e Conhecimento
SÃO PAULO - SP
2
Editora Corpo Texto
2016
© 2016. Núcleo Audiovisual (CNPq), da Universidade Presbiteriana Mackenzie e Editora Corpo
Texto
A responsabilidade pelos artigos, imagens, opiniões, dados, fontes, citações, referências e
demais direitos legais são de inteira responsabilidade de seus autores, em todas as sessões..
É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte.
Capa e Projeto Gráfico
Maria Lúcia Nardy Bellicieri
Glaucia Davino
Editoração Eletronica
Fernanda Bellicieri
Glaucia Davino
Ficha Catalográfica
3
Comissão de Honra
Prof. Dr. Benedito Guimarães Aguiar Neto
Reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie
Prof. Dr. Marco Tullio de Castro Vasconcelos
Vice Reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie
Prof. Dr. Cleverson Pereira de Almeida
Pró-Reitor Acadêmico da Universidade Presbiteriana Mackenzie
Prof. Dr. Sérgio Lex
Pró-Reitor de Extensão da Universidade Presbiteriana Mackenzie
Profa. Dra. Helena Bonito Couto Pereira
Pró-Reitor de de Pesquisa e Pós Graduação da Universidade
Presbiteriana Mackenzie
Comissão Organizadora
Concepção do Evento
Dra. Glaucia Davino e Ms. Fernanda Bellicieri
Coordenação Geral
Dra. Glaucia Davino (presidente) e Ms. Fernanda Bellicieri (vice-presidente)
Realização
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Centro de Comunicação e Letras
Núcleo Audiovisual (Grupo de Pesquisa CNPq)
Artemídia Videoclipe (Grupo de Pesquisa CNPq - IA UNESP)
Apoio
Autores de Cinema
Realejo Filmes
Red Inav - Red Internacional de Narrativas Audiovisuales
Laboratório de Humanidades Digitais [Mackenzie}
NPDA [Mackenzie]
Organizadores
Dra. Angela Schaun Vice líder do Núcleo Audiovisual (CNPq), CCL
Mackenzie
Dra. Denise Paiero. Coord. curso Jornalismo CCL Mackenzie
Ms. Fernanda Bellicieri. Coordenação executiva deste evento e Doutoranda
Mackenzie
Dra. Isabel Orestes da Silveira. Coordenação de pesquisa e extensão - CCL
Dra. Letícia Passos Affini. Docente - UNESP/ PPG TV Digital
Dra. Selma Felerico Garrini (docente CCL, coord GTs)
Dr. Alexandre Huady Torres Guimarães. Diretor do CCL
Dr. André Cioli. Coord. estágios CCL - Mackenzie
Ms. Prof. Ms. Flávio Duarte Cavalcanti de Albuquerque - docente CCL, grupo
pesquisa NAv
Ms. Jose Estevão Favaro. Docente - CCL Mackenzie - Coord. TCC PP
Dr. José Maurício Conrado. Coord. Curso Publicidade e Propaganda - CCL
4
Dr. Marcos Nepomuceno Duarte. Comunicação e Ouvidoria Mackenzie
Dr. Pelópidas Cypriano de Oliveira. Livre Docente do PPG IA UNESP
Ms. Paulo Matias de Figueiredo Jr. - Doutorando Mackenzie e prof.
da UFCG, PB
Ms. Osvaldo Takaoki Hattori.Coordenação TCC - CCL
Comissão Técnico-Científica
Dra. Angela Schaun (CCL - Mackenzie)
Dra. Glaucia Davino (presidente do Seminário - CCL Mackenzie)
Dra. Helena Bonito do Couto Pereira (Pró-reitora de pós-graducação e pesquisa
Mackenzie)
Dra. Henny Favaro (FAU Mackenzie)
Dra. Isabel Orestes da Silveira ( CCL - Mackenzie)
Dra. Letícia Passos Affini (PPG TV Digital UNESP)
Dra. Maria de Fátima Ferreira Nunes (Universidade Aberta de Lisboa/ CEMRI)
Dra. Maria do Céu Marques (Universidade Aberta de Lisboa/ CEMRI)
Dra. Marília da Silva Franco (ECA USP)
Dra. Mariza Reis (CCL Mackenzie)
Dra. Monica Morais de Oliveira (Velame SP)
Dra. Regina Giora (PPG EAHC Mackenzie)
Dra. Rosana M. B. Schwarz (PUC SP e CCL Mackenzie)
Dra. Selma Peleias Felerico Garrini (ESPM e CCL Mackenzie)
Dr. Eneus Trindade (ECA - USP)
Dr. José da Silva Ribeiro (PPG Universidade Aberta de Lisboa/ CEMRI)
Dr. José Maurício Conrado Moreira da Silva (coordenador do curso de
Publicidade e Propaganda)
Dr. Marcos Nepomuceno Duarte (Comunicação e Ouvidoria Mackenzie)
Dr. Pelópidas Cypriano de Oliveira (PPG IA UNESP)
Dr. Adolpho Carlos Françoso Queiroz (CCL - Mackenzie)
Dr. Alckmar Santos (PPG UFSC e Lab. Humanidades Digital - Mackenzie)
Dr. Alexandre Huady Guimarães (diretor CCL Mackenzie)
Dr. Celso Figueiredo (CCL _ Mackenzie)
Dr. Edson Capoano (CCL - Mackenzie)
Dr. Paulo Roberto Araújo (PPG EAHC/ Lab. Humanidades Digital - Mackenzie)
Dr. Wilton Azevedo (PPG EAHC/ Lab. Humanidades Digital - Mackenzie)
5
Comissão Executiva
Dra. Glaucia Davino (presidente)
Dra. Ana Luisa Campos e Souza (docente CCL)
Dra. Angela Schaun (CCL Mackenzie)
Dra. Denise Paiero (coord. curso Jornalismo CCL Mackenzie)
Ms. Fernanda Bellicieri (Vice presidente)
Dra. Isabel Orestes da Silveira (Coordenação de pesquisa e extensão - CCL)
Dra. Letícia Passos Affini (Docente - UNESP/ PPG TV Digital)
Dra. Mariza de Fátima Reis (docente CCL)
Dra. Mirtes de Moraes (docente CCL)
Dra. Monica Moraes de Oliveira (Sócia proprietaria da produtora Velame)
Dra. Rosana M Barbato Schwartz (CCL/ PUC - GERE)
Dra. Selma Peleias Felerico Garrini (Coordenação dos Grupos de Trabalho
deste evento)
Dr. Alexandre Huady Guimarães (Diretor do CCL)
Ms. Jose Estevão Favaro (Docente - CCL Mackenzie)
Dr. José Maurício Conrado (coordenação do curso de Publicidade e
Propaganda - CCL)
Dr. Patrício Dugnani (docente CCL)
Dr. Pelópidas Cypriano de Oliveira (IA, UNESP/ Artemidia Videoclip)
Ms. Osvaldo Takaoki Hattori (coordenação TCC - CCL)
Ms. Paulo Matias de Figueiredo Jr. (Doutorando Mackenzie e prof. da UFCG, PB
- Coordenador Geral da Rodada de Projetos)
6
SUMÁRIO
PREFÁCIO
10
EM BUSCA DO ENCANTAMENTO E DA TRANSCENDÊNCIA
10
APRESENTAÇÃO
12
SESSÃO 1 - ARTIGOS ACADÊMICOS
16
CAPÍTULO 1 - PAPÉIS DO LIVRO NO CINEMA
16
LIVRO QUE ANDA FALA NA TELA: GUATAHA
16
CINEMA E EDUCAÇÃO: A PROFISSÃO DOCENTE NO FILME "ENTRE OS MUROS DA ESCOLA”
25
BATISMOS DE SANGUE
32
DORA PARA LER E ESCREVER
41
A FIGURAÇÃO DO LEITOR EM MEDIANEIRAS: POÉTICA DO DESENCONTRO
49
CAPÍTULO 2 ARTEMÍDIA AMBIENTE
56
A EXPERIÊNCIA AUTORAL TRANSMIDIÁTICA EM PUSSY JANE ALLSTEAM
56
A CRIAÇÃO DE UM VÍDEO-PERFORMANCE – O DEZENLEIO, A VIRTUDE DO PASSADO: UMA PRODUÇÃO DO
LABORATÓRIO DE HUMANIDADES DIGITAIS DO MACKENZIE – LHUDI.
63
A PRÓXIMA GERAÇÃO NA ELABORAÇÃO DE ROTEIROS: USO DE ESTÚDIOS VIRTUAIS COM REALIDADE AUMENTADA
77
CAPÍTULO 3 - PROCESSOS E PRÁTICAS DE ROTEIRIZAÇÃO
96
DO FILME À SÉRIE: ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS E NARRATIVAS NO PROCESSO DE ROTEIRIZAÇÃO DE “BATES
MOTEL”
96
DESENHO DA NOTÍCIA; UMA EXPERIÊNCIA JORNALÍSTICA EM QUADRINHOS.
104
A PROPAGANDA COMO FERRAMENTA DAS RELAÇÕES PÚBLICAS: ANÁLISE DO COMERCIAL “ADOÇÃO – COMER
JUNTOS ALIMENTA A FELICIDADE”
110
A RECEPÇÃO SOB DEMANDA DA TELENOVELA AVENIDA BRASIL
123
CAPÍTULO 4 ESPAÇOS DAS SONORIDADES
135
TUDO SE COMUNICA. MEMÓRIA, COMUNICAÇÃO E FORMAS DE SOCIABILIDADE EM MEU TIO – FILME DE
JACQUES TATI
135
O RUÍDO COMO PROPOSTA DE LINGUAGEM NO SÉCULO XX
145
ESCREVER O SOM: O ESPAÇO DO SONORO NOS MANUAIS DE ROTEIROS AUDIOVISUAIS
166
EDUARDO E MÔNICA - ADAPTAÇÃO DA MÚSICA DA BANDA LEGIÃO URBANA PARA O AUDIOVISUAL DA EMPRESA
VIVO NAS REDES SOCIAIS
177
CAPÍTULO 5 MÃO DUPLA E MÃOS DADAS: ADAPTAÇÕES
193
INTERSECÇÕES ENTRE O ESQUETE HUMORÍSTICO E A SUA ADAPTAÇÃO LITERÁRIA: É MENTIRA, TERTA?
193
CRITÉRIOS DE ADAPTABILIDADE: PROPOSTA DE CRIAÇÃO DE FATORES DE ANÁLISE PARA TRANSIÇÃO DO MEIO
ESCRITO PARA O AUDIOVISUAL
205
7
FORA DA ROTA: OS ACRÉSCIMOS DE TRAMA NA ADAPTAÇÃO DE “DIÁRIOS DE MOTOCICLETA”
220
ADAPTAÇÕES NO ROTEIRO: LITERATURA E QUADRINHOS
229
CAPÍTULO 6 PROEZAS LÚDICAS
250
APONTAMENTOS PARA COMPREENDER A NARRATIVA LÍQUIDA DA TV
250
REATUALIZAÇÕES DA HIPÓTESE DO VALE DO ESTRANHO FAMILIAR EM DIÁLOGO COM A PSICANÁLISE
259
PLAY THEMOVIE. O DIÁLOGO ENTRE AS ESTÉTICAS LÚDICA E CINEMATOGRÁFICA
268
THE GHOST WRITER: A CRÍTICA POLÍTICA DE POLANSKI
275
CAPÍTULO 7 NARRATIVA AUDIOVISUAL: LENDO PERMANÊNCIAS E INOVAÇÕES
283
GRAN TORINO, DE CLINT EASTWOOD: SUBVERSÃO (E SOBREVIVÊNCIA) DO MODELO NARRATIVO CLÁSSICO NO
CENÁRIO PÓS-INDUSTRIAL
283
O ESPECTADOR DECIFRADOR: REFLEXÕES ACERCA DA PRODUÇÃO DE SENTIDO DO FILME “MATOU A FAMÍLIA E
FOI AO CINEMA” (1969) DE JÚLIO BRESSANE.
291
VER E TOCAR: O DILEMA DE TOMÉ NO FILME TIME DE KIM-KI-DUK.
301
CAPÍTULO 8 DOCUMENTÁRIO: CONVENÇÃO E CONTRAVENÇÃO
309
DESIGN DE INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA: ENSAIO SOBRE O ESTADÃO LIGHT
309
METANARRATIVA ENTRE A REALIDADE E A FICÇÃO: EFEITOS DE SENTIDO PRESENTES NA CONSTRUÇÃO DE
NARRATIVAS EM MOCKUMENTARIES
320
AUTOBIOGRAFIAS DO PRESENTE - ENTRE-LUGARES DE PERFORMANCE E ENUNCIAÇÃO EM DOCUMENTÁRIOS
CONTEMPORÂNEOS
329
O CINE-OLHO E SUA PERTINÊNCIA CONTEMPORÂNEA
339
SESSÃO 2 - PAINEL DE GRUPOS DE PESQUISA
347
PAINEL1 - PESQUISADORES E GRUPOS DE PESQUISA DO GERE [NÚCLEO DE ESTUDOS DE GÊNERO, RAÇA E
ETNIA] NO VI SEMINÁRIO DE ROTEIRISTAS DA UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
347
QUESTIONAMENTOS PARA UM SISTEMA DE PODER: PERMANÊNCIAS E CONTINUIDADES
347
PAINEL 2 - "ARTEMÍDIA ATRAENTE"
352
PESQUISADORES E GRUPOS DE PESQUISA DO ARTEMÍDIA VIDEOCLIP NO VI SEMINÁRIO DE ROTEIRISTAS DA
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
352
TRILHO DO TREM 3D
352
ROTEIRO PARA TRANSMÍDIA ENTREFILMES
359
ROTEIRO PARA FLANAR NO BAIRRO DE PARADA INGLESA
366
SESSÃO 3 - ARTIGOS LIVRES TEMAS PROPOSTOS EM DEBATES
377
DEBATES "REFLEXÕES SOBRE AUDIOVISUAL CONTEMPORÂNEO"
377
ALICE AQUÉM DA FANTASIA: O PAÍS DAS MARAVILHAS NA VIDA REAL. POR LUCIANO VAZ FERREIRA RAMOS
377
CINEMA COMO PERSEGUIÇÃO. POR DIOGO VASCONCELOS BARROS CRONEMBERGER
380
CONSIDERAÇÕES ACERCA DE LIVROS SIMULTÂNEOS AO FILME: 2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO. POR CAMILA
LORICCHIO VEIGA
383
CÚMPLICES DE UMA ALEGORIA: ANÁLISE ESTILÍSTICA DO ROTEIRO DO PRIMEIRO CAPÍTULO DA TELENOVELA DO
SBT. POR JOÃO PAULO LOPES DE MEIRA HERGESEL
388
DA TELA PARA O LIVRO. POR GRACIENE SILVA DE SIQUEIRA
391
8
CINEMA, UMA ARTE (SÓ) DO DIRETOR? - EVIDÊNCIAS DE AUTORIA NO ROTEIRO CINEMATOGRÁFICO
DEBATE: "MEIOS E FRONTEIRAS DA CONCEPÇÃO AUDIOVISUAL"
PROJEÇÃO MAPEADA EM CENA - ESTUDO DE CASO. POR RICARDO BOTINI SALGADO
SESSÃO 4 - PALESTRAS
MITOLOGIA NO CINEMA CONTEMPORÂNEO: SUPERMAN, BATMAN E STAR WARS
SESSÃO 6 RODADA DE PROJETOS
REINO VAZIO
DESAPARECIDOS
NICOLAU, DEU PAU
OS RECÉM CHEGADOS
QUARTA PAREDE
4º DP
SEGUNDA PELE
O CORAÇÃO DE LÀZARO
VALENÇA E A NATUREZA MORTA
LÓTUS
UM AMOR IMPOSSÍVEL
O SEQUESTRO
EVENTOS INTRIGANTES DA ERA DA FERRUGEM
DERIVA
RAFA
EXQUISITA
TEORIA PARA O CAOS
SELVA DE PEDRA
DEZENLEIO, A VIRTUDE DO PASSADO
A VIDA REAL DO VLOGUER MAU MAU
9
395
399
399
401
401
412
412
412
413
414
415
416
417
418
419
419
422
427
428
428
430
430
431
431
432
433
PREFÁCIO
Em busca do encantamento e da transcendência
Por Alexandre Kieling
Preciso começar pela ausência. Não exatamente pela não presença, mas pela ponte possível
com o real. O acesso ao que está no mundo das ideias, ao que já se passou, que não está mais
aqui. O que me traz esse real é a simulação, como pensa Platão. Seja pelo relato diegético, seja
pela imitação mimética, o que tenho é um preenchimento da ausência. No primeiro narro, no
segundo represento, mas sempre desembarco e ofereço uma realidade mediada pela história
contada do que não é mais visível, salvo pelo imaginário que de todo o processo resulta.
A missão é ocupar um espaço, uma lacuna de um real que simplesmente partiu. Dele ficou
uma encantadora história, feitos e superações. Uma trajetória sem arquétipos, ou
estereótipos, porém de uma protagonista que percorreu seu arco narrativo superando toda
ordem de obstáculo e antagonismo, sobrevivendo a toda ordem de pontos de virada, até
sagrar triunfante seu objetivo, cumprindo sublime o paradigma de Field.
Cabe-me prefaciar a presente coletânea em lugar de Angela Schaun, que recentemente nos
deixou. Justo ela que sempre foi uma das maiores incentivadoras do Seminário de Roteiristas.
Figura que, nas vezes em que degustei sua sagacidade, me lembrou, com sua singeleza, que na
manipulação da linguagem precisamos mais que deleite estético ou estilístico, devemos
“encantar” o leitor, o ouvinte, o espectador.
Lanço-me assim, amparado por essa guia, para arriscar tratar dessa construção de fôlego que é
“Entre Encantamento e Conhecimento”. O esforço que reúne ideias de realizadores,
professores e pesquisadores do universo narrativo do audiovisual no qual as fronteiras entre
imagem e imaginário se embaralham. Ambiente pelo qual as noções de simulação de Platão,
Deleuze e Baudrillard se encontram, se atravessam e sugerem novos mundos para além
daquele de Demiurgo ou da imitação das ideias. Confronta realidade e virtualidade,
materialidade e imaterialidade.
O conjunto de sistemas de produção, circulação e consumo dos conteúdos audiovisuais insere
o roteiro num turbilhão de demandas que envolvem criação, desejo, necessidade e utilidade,
portanto, processos de mercantilização que reenviam às tensões da fase da reprodutividade
técnica da arte – ave Benjamin. A multioferta sugere uma relativa alforria do espectador que
experimentaria maior autonomia de escolha e consumo. Em paralelo, o que se vê é uma
pressão sobre o realizador para aderir a um fluxo de produção e distribuição em nome da
gestão de uma marca e seus seguidores e não da apreciação de uma obra pelo seu público.
Trata-se de um paradoxo onde se observa uma onda que se mostra avassaladora e que
restringe o espaço de respiração criativa e de experimentação, exatamente, em um momento
de infinitas possibilidades.
Nesse caudal, o encantamento não é a obra ou pela obra, é pelo fluxo e em razão do fluxo seja
pela oferta, seja pela circulação de ativos que disso tudo resulta. A essência das coisas,
faculdade acessível pela metáfora de Proust, seja pela sua busca pelo tempo perdido,
10
invocando a memória afetiva bem resgatada em Genette, se dilui ou desintegra. O que uma
obra pode dizer à atmosfera mais sensível do espectador sobre o mundo das coisas tende a se
perder no fluxo. E o encanto pode desencantar, ou enganar. Corre-se o risco de perder a
restituição da experiência mais pura do espectador que é se reintegrar com as essências das
coisas, passaporte para perenidade de uma obra, pensada por Proust e destacada por Genette.
Se concebermos, na perspectiva de Hjelmslev, o texto a partir do princípio de estrutura de
conteúdo e expressão, cada qual com sua forma e substância, vamos perceber que embora a
forma do conteúdo seja a história, o acontecimento, ação, personagens, a relação espaço e o
tempo vem se transformando num commodity – produto de extração natural semelhante em
qualquer parte com preços ditados pela oferta e procura internacional. A substância do
conteúdo, modo como esses componentes são conceitualizados e tratados de acordo com o
código particular do autor, obedecem a estruturas cada vez mais similares. Por sua vez, a
forma da expressão, sistema semiótico ao qual pertence o relato, cinema, rádio, televisão,
tendem o embaralhamento e a intercontaminação. Enquanto a substância da expressão, a
natureza material dos significantes que configuram o discurso narrativo – a voz, a música, os
sons (ruídos), a imagem gráfica, fotográfica, videográfica, infográfica, etc. – é cada vez mais
comum e igual em todos os textos audiovisuais empurrados pelo fluxo.
O mundo inteligível do bem, da beleza, do Ser e da Verdade, sublime e o mundo sensível, com
início e fim, de Platão, parecem se fundir. Mimese e diegese relativizam suas fronteiras em
nome do fluxo do conteúdo, da tecnologia, do acesso, do consumo. Imagina-se sobrar pouco
espaço para o encantamento sugerido por Angela.
A presente coletânea ousa mergulhar nesse processo reunindo texto que vasculham as
narrativas do cinema, da televisão e dos videojogos. Desconstroem e restauram estruturas
narrativas das franquias às series televisivas, da produção alternativa de ficção aos
documentários. Nada sobra que o olhar, a inquietação e a paixão dos autores não tenha
alcançado. Não há receitas, nem ilusões. Sobram pistas, desejos, possibilidades que nesse
esforço reflexivo não economizam encantamento e experimentam uma transcendência.
Brasília, abril 2016
11
APRESENTAÇÃO
O sexto seminário Histórias de Roteiristas trouxe como tema gerador de reflexões o Encanto e
o Conhecimento. O conhecimento existe porque o ser humano se encanta pelo saber, pela
sensação de domínio das questões humanas e naturais. Sim, sensação, pois o conhecimento é
momentâneo e sempre em transformação. Ao mesmo tempo, apenas o conhecimento, mesmo
que passageiro é que pode gerar o encanto. Entrando no campo do lúdico, do criativo, do
processo, o roteiro audiovisual é extremamente encantador. Cada vez mais, vemos pessoas,
escritores ou não, buscando no roteiro a possibilidade da expressão artística, a autorização
para contar histórias em meios audiovisuais. O encanto passa a ser o vislumbre da passagem
para a tela. Ao mesmo tempo, vimos, nos seminários, testemunhando o aumento do interesse
pelo conhecimento científico desta área do conhecimento. Trabalhos acadêmicos abordando
variados vieses do roteiro, da concepção à prática.
Apresentamos aqui a programação das atividades realizadas no "6º Seminário Historias de
Roteiristas. Entre Encanto e Conhecimento", realizado em setembro de 2015, no Centro de
Comunicação e Letras, da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Este livro resulta dos
trabalhos elaborados pelos autores que assinam seus artigos ou projetos e da comunhão
desses conhecimentos que tanto nos encantam.
De caráter acadêmico-profissional, o evento proporcionou a aproximação e troca entre
acadêmicos (estudiosos/pesquisadores), profissionais, aspirantes, novos roteiristas e a
realização deste livro, através de programação variada, composta pelas Rodadas de Projetos,
onde os autores de projetos discutem os apresentam e discutem com um profissional
(roteirista experiente) e um professor (acadêmico) tais projetos, pelo Painel de Grupos de
Pesquisa (modalidade inaugurada neste evento), por Palestras de intelectuais vinculados às
universidades, pelos workshops "Vivências e Experiências" ministrados por profissionais do
mercado a apresentação de trabalhos acadêmicos em GTs e Debates entre os autores de
artigos livres.
Cabe ressaltar nosso orgulho em promover uma ruptura paradigmática, desde a primeira
edição, que vemos hoje ser questionada dentre os pesquisadores. Trata-se das limitações das
publicações acadêmicas na promovidas por um sistema de pontuação e qualificação dessas
publicações, o que acarreta a separação da produção de doutores, mestres e alunos de
graduação nas publicações e nas apresentações em congressos.
Nossa experiência mostrou que Doutores que participaram de GTs, por exemplo, muito se
encantaram com as novidades que alunos da graduação (orientados nas atividades de
Iniciação Científica) vêm trazendo. Ou seja, o Seminário Histórias de Roteiristas passou a ser,
na conjuntura acadêmica, um espaço verdadeiro de troca e produção de novos
conhecimentos. A questão formativa é outro aspecto que valorizamos neste evento.
Outro aspecto que cabe ressaltar é o vínculo permanente que mantemos com os profissionais
da área, profissionais emergentes e interessados em integrar o universo da criação audiovisual
no Brasil. Todos os anos, há a promoção desta aproximação. Não há como separar a academia
universitária da natureza da criação, se nós quisermos falar de roteiro e audiovisual.
12
Abaixo, apresentaremos a programação das atividades desenvolvidas nos dois dias de
seminário para que fique registrada esta dinâmica, como um legado a todos que continuarão a
pesquisar e produzir na área do roteiro audiovisual.
Rodadas de Projetos: De caráter profissional e formativo, e uma atividade que inicia com a
submissão de propostas de trabalhos audiovisuais, de qualquer formato e plataforma e em
qualquer fase de produção. Estes trabalhos são selecionados e enviados a, pelo menos, um
roteirista e um docente da área. Durante a rodada de projetos os autores têm que apresentálo e cada um dos trabalhos apresentados é discutido com este roteirista profissional e este
docente. [profissional e formativo]
Painel de Pesquisadores e Grupos de Pesquisa: De caráter acadêmico, introduzido em 2015,
tem como objetivo dar oportunidade para grupos de pesquisa e pesquisadores de
compartilharem e exporem suas produções no viés de grupos, ou seja, no viés de pesquisas
enredadas sob a coordenação de um docente, líder do grupo. [acadêmico e de troca de
conhecimentos]
Palestras: De caráter acadêmico e formativo, as palestras são proferidas por pesquisadores
especializados nos temas versados. Trazem suas experiências de uma forma ampla, em que
tanto pesquisadores mais experientes como estudantes possam descobrir ou esclarecer novos
temas, novas abordagens sobre o audiovisual e o roteiro. [acadêmico e formativo]
GTs: Os GTs, conhecidos Grupos de Trabalho, compõem as atividades mais tradicionais dos
congressos. Nos mesmos moldes tradicionais, é nos GTs que grupos de pesquisadores, com
temas afins, apresentam o desenvolvimento de suas pesquisas e discutem ou questionam
sobre os assuntos tratados. Neste espaço, de foro mais fechado (temático), é possível aos
participantes compararem, compartilharem e, principalmente, se atualizarem a respeito das
diversas abordagens e perspectivas da pesquisa na área de interesse. [acadêmico]
Debates Livres: Considerando que, além das pesquisas, há estudiosos, críticos e interessados
que refletem sobre o tema roteiro tão intensamente quanto os pesquisadores da área e,
muitas vezes, com um conhecimento e/ou experiência vastas a respeito dos temas que lhes
interessam, os debates livres foram criados para abrir espaço para discussão. Sem as
formalidades acadêmicas, pensadores, intelectuais, apaixonados, etc., nós temos a
oportunidade de tê-los no Seminário enriquecendo o espírito crítico. Esses artigos, no formato
livre, são publicados neste livro, em sessão própria. [diletante, reflexivo, profissional, crítico,
formativo]
Workshop Vivências e Experiências: De caráter profissional, é um dos momentos chave do
seminário. Estes workshops trazem roteiristas profissionais para abordarem assuntos
atualíssimos e fazem com que os Seminários sejam, efetivamente "contados pelos roteiristas,
suas histórias"
Abaixo a programação. Para ver detalhes da programação, navegue pelas informações do site:
https://sites.google.com/site/2015historiasroteiristas/
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______________
Programação 2015
17 de setembro de 2015
QUINTA
Credenciamento (a partir das 8h00)
__________________________________
Manhã 09h00 às 13h00 Rodadas de Projetos
Manhã 09h00 às 13h00 Painel de Pesquisadores e Grupos de Pesquisa: GERE [Núcleo de
Estudos de Gênero, Raça e Etnia]
______________________________________
Tarde 14h00 às 15h15 Palestra Mitologia no Cinema Contemporâneo: Superman, Batman e
Star Wars. Palestrante: Prof. Dr. Carlos Gonçalves [Belas Artes e PUC - SP); mediação:
Fernando de Oliveria Moraes (Mackenzie, SP)
Tarde 15h30 às 18h00 GTs Grupos de Trabalho
Tarde 15h30 às 18h00 Debate [Artigos e Temas Livres ]: "Reflexões sobre audiovisual
contemporâneo"
_______________________________________
Noite 19h00 às 22h00 Workshop Vivências e Experiências: "Por dentro de um núcleo
criativo", com roteiristas do NC-5
__________________________________
18 de setembro de 2015
SEXTA
Credenciamento (a partir das 8h00)
___________________________________
Manhã 09h00 às 13h00 Rodadas de Projetos
Manhã 09h00 às 13h00 Painel de Pesquisadores e Grupos de Pesquisa: Artemidia Videoclip
_____________________________________
Tarde 14h00 às 15h15 Palestra O processo de produção audiovisual e a experimentação
contemporânea. Palestrante: ProfaDra.Cecília Salles (PUC-SP); mediação: Dra. Mariza Reis
(Mackenzie, SP)
Tarde 15h30 às 18h00 GTs Grupos de Trabalho
14
Tarde 15h30 às 18h00 Debate [Artigos e Temas Livres ]: "Meios e fronteiras da concepção
audiovisual"
______________________________
Noite 19h00 às 22h00 Workshop Vivências e Experiências: "Criação de formatos: ficção e
não ficção", com roteirista Patrícia Oriolo
______________
15
SESSÃO 1 - ARTIGOS ACADÊMICOS
Capítulo 1 - Papéis do Livro no Cinema
Livro que anda fala na tela: Guataha
Alai Garcia Diniz(UNIOESTE e UNILA, Brasil), [email protected]
Resumo
Um país pluriétnico como o Brasil que foi permitindo o corte de árvores nativas; a extinção de
pássaros; ao longo dos séculos de colonização também foi perdendo línguas (mais de 700) ;
gestos e práticas culturais heterogêneas. Somos analfabetos? A indagação permite sair do
campo fechado do arquivo para o do repertório (Taylor, 2013). É quando reconhece que não
foi com o livro que aconteceu na América Latina a democratização dos bens culturais, mas com
a entrada do audiovisual (Jesus Martin Barbero) e o campo se amplia com os estudos
interartes e a criação de roteiros nada mais é que um estopim para a execução de um projeto
audiovisual. Com dois exemplos, um poema bilingue em comëntsa, lingua originaria da
Colombia e espanhol do oralitor Hugo Jamioy Juagibiov e o documentário Guataha é suficiente
para mostrar o que se entende por Poéticas Transterradas e como a descolonização do
conhecimento pode funcionar.
Palavras Chave: Interculturalidade; Poéticas Transterradas; Guataha
Abstract
A multiethnic country like Brazil which was allowed the cutting of native trees; extinction of
birds; along centuries of colonization lost many languages (over 700); heterogeneous cultural
gestures and practices. Are we illiterate? The question allows us to leave the closed
encampment of the archive to that of the repertoire (Taylor, 2013). When it is recognized that
it wasn't with the book the democratization of cultural assets occurred, but with the onset of
moving pictures (Jesus Martin Barbero) and the field is amplified with interart studies and the
creation of screenplays is nothing more that the spark for the exectuion of the audiovisual
project. With two examples, a bilingual poem in Comëntsa, a language originated in Colombia
and in Spanish of the oralitor Jamioy Juagibiov and the documentary Guataha is enough to
show what is understood byTransterrada Poetics and how the decolonization of knowledge
can occur.
Preâmbulo
16
Comigo falam outras vozes, aprendi com o xamã Ava Guarani a sermos múltiplos e a escutar o
silêncio. Um ser (de mim) que lhes fala se encontra nas terras baixas do hemisfério sul, meu
lugar de enunciação, um espaço secundário, onde ainda há uma das menores taxas de
distribuição de renda no mundo e lugar em que se desrespeitam direitos básicos de
sobrevivência a parte da população e isso, portanto, me faz duvidar da ciência moderna; de
uma única racionalidade universal, vinda da Europa (eurocêntrica): primeira diferença!
Quem lhes fala também parte de outras distâncias que minha imagem implica. A de um
sujeito feminino, e portanto, fora dos padrões políticos vigentes; o de uma avó (fora também
por questões estéticas) e que, por sua vez, é bisneta do português que vira marinheiro só para
atravessar o Atlântico e emigrar ao Brasil (fora, portanto, dos padrões da elite). De um lado
lusitana, do outro catalão com cabocla de sangue indígena e outras prováveis miscigenações.
De mente desassossegada que faz dos temas profissão. Caixeiro viajante, meu pai vendia
peças e eu... palavras?
Um corpo nômade, bilíngüe por profissão, semelhante à água de rio, migrante paulista, sem
mente predatória dos bandeirantes, mas um corpo de deslocamento, diaspórico e hoje
habitante de uma Foz, entre o Paraná e o Iguaçu na fronteira trinacional que não é a única.
Javyri1
Máquina de ler o mundo? Cria mundos? Ou levanta suspeitas? A literatura é mais do que é,
por isso implica complexidade, segundo Otmar Ette. A literatura como produto “torna
presente o que é ausente, guiado pelo conhecimento e pela memória”. (Iser, 1996) ou é uma
arte verbal, falada ou escrita. E no último século, a literatura passa a abranger também uma
área interdisciplinar como a do audiovisual, pois há roteiros que se fazem parte do cinema,
situam o texto no limiar entre o verbal, o sonoro e o visual, podendo ser apenas uma senda,
vereda que se abandona no set de filmagem e se recupera (ou não) na montagem, ponto final
da película e o ponto de partida de um caminho aberto ao mundo da imagem com som ou de
silêncio que chega a milhares de espectadores.
Tudo começou quando um morto virou vivo. Graças ao poder de uma fotografia do professor
Paulo Pontes (UNIOESTE), um antropólogo paraguaio, que participava de um concurso, em
Foz, reconheceu a imagem de um líder indígena que fora perseguido pelos latifundíarios em
1992 e que, no Paraguai, era considerado morto. Entretanto, Tupã Guilherme Ñevangaju
Rojas, como muitos outros indígenas deslocara-se para a aldeia de parentes Ava Guarani em
São Miguel do Iguaçu: Tekoha Ocoí, e vivinho da silva, era o xamã mais respeitado, também
pudera, com seus de um século de existência. Em uma região como a da Tríplice Fronteira
entre árabes, asiáticos, abrigam bem mais do que duas mil pessoas de diferentes etnias
indígenas. Não dá para esquecer.
Analfabetismo
E então vem a questão, será que somos analfabetos? Em um país que foi castrando ao longo
de séculos de colonização, mais de setecentas línguas e que exigia dos indígenas, não só o
1
Cumprimento em Ava Guarani à chegada.
17
abandono da língua nativa; das crenças e de modos de viver e fazer diferentes, ser analfabeto
cultural é chegar ao século XXI aceitando continuar sendo monocultural, entre as quase
duzentas línguas que sobreviveram ao jugo da colonialidade, muito mais dura do que o
machado que ceifou as árvores nativas.
Assim, aproveitando a experiência de ter elaborado uma oficina para professores de Educação
Básica sobre a questão indígena, comecei perguntando se eram analfabetos. Ao ouvir a
resposta negativa em uníssono, apresentei o poema abaixo:
Ndás cuantsabobuatm chë ndosertaná ca
Ndoñ mondoben jualiamëng
LibrëEangá o betiyëng
Canÿeng y inÿeng
BatEá y bëtscá mondëtatEëmb
Bëneten
AtEbe bëtstaitá tmojuantEabuaché
Canÿe librëEá
Tmonjauyan tonday condëtatEëmbo ca
Ibetn
Shinÿoc jotbeman
Chabe cucuatEiñ
Coca tsbuanach jtsebuertanayan
UayaEac jtsichamuan
Ndayá chiñ bnetsabinÿnan
Como ninguém entendia nada, nem os caracteres, nem ao menos podia localizar o idioma,
deduzi com eles que, em determinadas circunstâncias, todos nós éramos analfabetos. Tratavase da língua cömentza, língua nativa da Colômbia, falada por cerca de quatro a cinco mil
pessoas. Ser ou não analfabeto, depende do contexto em que se nasce; das políticas
lingüísticas que privilegiam uma língua em detrimento de outras, ou de que as universidades
de Letras, em geral, não têm sequer uma língua indígena em seu currículo. É a partir de uma
epistemologia da educação que se excluem populações inteiras de uma determinada região.
Algo que na Bolívia vem se implementando, justamente, o percurso inverso. O Estado
boliviano começa a ensinar em cada região a segunda língua indígena mais falada a todas as
crianças do ensino básico. Essa é um modo de incluir e equiparar o que elas trazem de casa. No
Brasil, as universidades públicas (salvo raríssimas exceções) não ensinam nem ao menos uma
língua indígena aos estudantes. Ao conhecerem uma língua diferente, estão de posse de uma
riqueza humana típica daquele local. Guardar esse patrimônio da humanidade é uma questão
ecológica e a língua não apenas é preservada como pode ser ensinada a quem não a aprendeu
em casa. Por que transformar as crianças indígenas em seres defasados, ao chegarem à
escola se, de fato, o que eles possuem é uma riqueza ecológica: são bilingües?
Analfabetas
18
Ndás cuantsabobuatm chë ndosertaná ca
A quién llaman analfabetas
Ndoñ mondoben jualiamëng
a los que no saben leer
LibrëEangá o betiyëng
los libros o la naturaleza;
Canÿeng y inÿeng
unos y otros
BatEá y bëtscá mondëtatEëmb
algo y mucho saben.
Bëneten
Durante el día
AtEbe bëtstaitá tmojuantEabuaché
a mi abuelo
Canÿe librë Eá
le entregaron un libro
Tmonjauyan tonday
le dijeron que no sabía nada;
condëtatEëmbo ca Ibetn
por las noches
Shinÿoc jotbeman
se sentaba junto al fogón
Chabe cucuat Eiñ Coca
en sus manos
tsbuanach jtsebuertanayan
giraba una hoja de coca
UayaEac jtsichamuan
y sus labios iban diciendo
Ndayá chiñ bnetsabinÿnan
lo que en ella miraba*.
Vocês hão de concordar que a construção do conhecimento humano depende do contexto e
das circunstâncias em que vivemos. Atualmente nos defrontamos com a globalização e as
tecnologias de comunicação e essa conexão entre sistema econômico e eletrônico trouxe um
desdobramento: a convivência e simultaneidade de mundos culturais com suas diferenças que
por estarem incluídas no cotidiano das pessoas de classes sociais e de diferentes etnias
reclamam atenção. Isto que parece uma obviedade, mas exige hoje uma reflexão e neste
âmbito que a discussão sobre a interculturalidade começa a surgir.
Interculturalidade
Se os intercâmbios entre povos, culturalmente diversos, sempre foi importante, fossem eles
viajantes, pesquisadores da Natureza (matérias primas), antropólogos ( tanto quem pretendia
assimilar os sujeitos de outras culturas...como aqueles que não aceitaram essa missão); os
comerciantes que desejavam enriquecer... No século XXI adquire outro viés, nome do
pluralismo cultural e em diferentes contextos e por agentes diversos, muitas vezes para
garantir a hegemonia de uma cultura sobre outras e também a manutenção da assimetria
entre os povos. O destaque para a necessidade de uma ordem social e a visão uniforme da
globalização tecnológica e da racionalidade universal impedem a abertura a outros modos de
19
ver/ler o mundo, de pensar e de se relacionar com outros seres, sejam eles animais, vegetais,
minerais ou cosmológicos.
O conceito de interculturalidade não se confunde com o de multiculturalismo. Muitas vezes
surge em nome da globalização e para apagar as culturas em confronto. A partir da fronteira
entre culturas locais move-se a ética e as relações de poder. Um grande tema em correlação
intrínseca com a interculturalidade. Do meu ponto de vista, é possível pensar sobre a
interculturalidade, a partir dos rios que passam pela minha aldeia como pelo lago da represa
de Itaipu que criou espectros arbóreos ou lama na aldeia Ava Guarani de Santa Rosa do Ocoí
em São Miguel do Iguaçu. Substituir a assimetria por formas de cooperação, a fim de discernir
e superar o universo monocultural. Como diz Catherine Walsh, a interculturalidade crítica não
existe, precisa ser construída a partir da escuta, tradução e negociação entre os sujeitos.
Antes de definir o conceito de interculturalidade, vale a pena explicitar que esta não é a única
globalização que se conhece. Walter Mignolo aponta pelo menos três. A primeira com as
navegações que, uniu a caravela, a pólvora e a cruz. No século XVI foi o foco religioso que
estabeleceu a hegemonia do cristianismo por sobre outras crenças no Ocidente.
A segunda globalização ocorrida entre os séculos XVIII e XIX teve como foco a razão cartesiana
(Penso, logo existo) que do embate com a religião impõe uma universidade laica, a
racionalidade e a ciência moderna. Os modelos de racionalidade afirmaram o positivismo que
se expandem pelas colônias ultramarinas. Com as independências latino-americanas e os
ideais da Revolução francesa alcançam o hemisfério sul. Os conflitos ideológicos (Revoluções)
e bélicos ( primeira e segunda guerras mundiais) contribuem para a descrença em um único
centro: a Europa. Então no século XXI estaríamos vivendo uma terceira globalização: a do
capital global que impõe a informática como configuração intrínseca da vida humana.
E pensando na América Latina esse movimento global faz ressurgir o local. Sob a emergência
de identidades étnicas, antes silenciadas pela unidade; a construção dos Estados Nação, hoje
surgem com destaque as culturas indígenas, quilombolas ou deslocadas por imigrantes árabes,
japoneses, chineses, coreanos; americanos ou latino-americanos deslocados de seus países de
origem que partem em busca de melhores condições de vida e trabalho. São os boricuas nos
EUA; os bolivianos em São Paulo, os guarangos (sinônimo de rude, grosseiro) e que, em
determinado momento, se confundiu com imigrantes paraguaios em Buenos Aires, segundo
registro literário do então também exilado, Augusto Roa Bastos na obra El trueno entre las
hojas (1953). Washington Cucurto, escritor argentino afro-descendente mostra a
interculturalidade urbana portenha com um texto literário carregado dessa temática dos
imigrantes que vieram em busca de trabalho da República Dominicana, da Bolivia, do
Paraguai, agora no início do século XXI e por isso apresenta-se de modo lúdico, provocador e
paródico em sua linguagem discursiva. Refiro-me a Cosa de negros; Máquina de hacer
paraguayitos e outros. Tal crítica que trabalha com o cânone e destaca na literatura o que há
de arquivo, de uma escritura publicada em formato de objeto culturalmente determinado
como universal/ocidental.
A literatura contemporânea, pós-autônoma traz estas referências incrustadas na realidade.
Entretanto, há outras formas de se verificar como a interculturalidade constitui um elemento
cultural atual que subsiste em outras práticas culturais (não ocidentais).
20
O cinema permite algum manuseio, pelo menos temporário da relação complexa com o outro
setor das práticas culturais, avessos ainda à eternidade do guardado: o de repertório. que são
as artes do fazer (De Certeau, 1996) que tem por sede o corpo.
Comentar esta trajetória nova pra alguém das letras, aos sessenta e quatro anos de idade,
permite aproveitar o arsenal das comunicações que pela voz de Jesus Martín Barbero (2001)
reconhece que não foi com o livro que a América Latina democratizou os bens culturais, mas
com a entrada do audiovisual e este campo se amplia quando de uma disciplina como a da
literatura se permite avançar para a interdisciplinaridade, com os estudos interartes, ou da
intermidialidade. A criação de roteiros nada mais é que um estopim para a execução de um
projeto audiovisual. As letras já não precisam ter a primazia da torre de Babel. Qualquer
abordagem para fixar a memória do que se pensa extinguir com o tempo, é um avanço,
embora saibamos que é a resistência veiculada pela voz de sujeitos como estes que ainda
guardam ayvu (a palavra) e que contestam e lutam pela resistência de uma cultura à onda
modernizadora que deseja homogeneizar e tornar igual para assimilar o sujeito e acabar com
ainda permanece de rico que é a diferença. Agora a arte verbal conquista um espaço e se torna
um colaborador na visão de equipe que o cinema oferece. E não é para atingir as massas, mas
para construir a relação com um leitor do século XXI que faz das imagens texto e com o texto
assegura o entrelaçamento das artes e das comunicações. Se bem que para isso será preciso
descolonizar a mente e não estabelecer hierarquias, mas aceitar o trabalho com a intenção de
ser apenas um sujeito a mais para emprestar um jeito de olhar, uma colaboração para tratar
um campo do real e do simbólico que se apresenta apenas como fragmento.
Genealogia do documentário Guataha – o desvio
E de onde saiu o argumento? Da história de vida de um sujeito deslocado como milhares de
outros e que foi obrigado a passear (guataha) e perambulou pela fronteira. De uma nesga de
história desse sujeito concreto, que estaria desaparecido nos anos 90 no Paraguai (acreditavase que pudesse estar morto pois havia sofrido ameaças dos latifundiários para quem o
conheceu no Paraguai como líder Ava Guarani). Guillerme Tupã Ñevangaju Rocha seguia vivo e
havia se tornado xamã no Tekoha Ocoí, em São Miguel do Iguaçu e segundo os parentes teria
119 anos de idade. É uma fatia dessa longevidade que se fez um roteiro a que já em contato e
colaboração com a diretora e produtora do filme, Clarissa Knoll, foi chamado de Guataha e se
transformou em documentário sobre as veredas da arte verbal e corporal dos Ava Guarani do
Tekoha Ocoí. Apenas uma ponta que uma equipe interdisciplinar pode oferecer para tratar
de um tipo de poética transterrada, além da terra, nesse movimento de deslocamento que se
constitui e, portanto, sai do ritmo costumeiro que domina outras culturas. A história da
literatura agrupa textos cronologicamente e segundo as premissas e interesses próprios dos
historiógrafos.
Como descolonizar a mente?
Em minha pesquisa a decisão foi a de romper as fronteiras entre artes e comunicações para
buscar produtos diversificados. Escritores tornam-se roteiristas e roteiristas escrevem obras
literárias. E quando um dos rios que passam pela minha aldeia vira lago da hidroelétrica; os
corpos migram; as culturas se deslocam daqui pra lá e a aldeia de Jacutinga submergida na
represa vira outra aldeia: Tekoha Ocoí. Quem vai, quem fica? Os animais mesmo quadrúpedes
21
no desespero subiram em árvores e alguns foram salvos. E pensar nessa história recente dos
deslocamentos interfronteiriços pode também propiciar um campo abrangente de pesquisa
que envolve reflexões sobre práticas culturais que passam pelas corporalidades. As poéticas
ameríndias armazenam no corpo “livros” (memorias) dos relatos ancestrais e no caso do canto
e do ritual, a leitura passa por escancarar as portas da pesquisa e da imaginação. Com
procedimentos não ortodoxos, (indisciplinados) o que combina com o que diz Walter Benjamin
de que o método é o desvio.
Reconquistar para o pensamento os territórios do indeterminado e do intermediário, da
suspensão e da hesitação. Assim como a literatura, diz Gagnebin ao ler Benjamin: “a infância é
grávida de futuro de uma temporalidade da
espera e da paciência - entre limiares”
(Gagnebin,2010,p.18) .
Na infância o presente é cheio de imprevisibilidade, de intensidade, da descoberta. Nas
Passagens há uma ciência dos limiares de múltiplas variações. A pobreza dos rituais de
passagem nos leva a comprimir-nos afetiva e sensorialmente.
O conceito de interculturalidade crítica de Catherine Walsh baseia-se na ideia de um sujeito
que aprende a ouvir, por isso a interculturalidade não existe, mas se revela como processo que
é preciso viver na relação com o outro. E o dinamismo é tentar escutar àqueles que estão
resistindo à cultura hegemônica. Assim o próprio documentário tenta propor uma poética com
um ritmo que não é o dominante para dar conta dos silêncios que não conseguimos captar. E o
passeio (Guataha) também é nosso, dos juruas>os não indígenas (alienígenas) ao tentarmos
traduzir em relatos os mitos, a partir de do que ouvimos. E por isso está implícita a
possibilidade do equívoco. Tekoha Ocoí abriga hoje os Ava Guarani em uma faixa minúscula de
terra (200 hectares) entre o lago e o agronegócio. Os mais de setecentos indígenas que ali
moram, até a década de 70, viviam em Jacutinga espaço de mais de 1500 hectares. A aldeia
simbólica que desapareceu com a modernização, a represa de Itaipu. Entre fatos históricos
como a submersão de Jacutinga e a fixação no Ocoí, ouvem-se o mito da destruição pelo xamã
Ava Guarani e se encena o mito da criação do mundo. São seqüências paralelas que ora se
fundem, ora se separam no tramado fílmico e a voz xamânica se transforma em “livro vivo”
que narra a novas gerações as oralidades do mundo Ava Guarani.
Livro que anda
Ñevangaju representa um líder que andou... Atravessou fronteiras, países, exatamente por
saber que era tudo terra deles. Algo que Casemiro, um dos personagens de Tekoha Ocoí, que
atuou no documentário afirmou espontaneamente que foi a Guerra ( contra o Paraguai) que
criou e definiu as fronteiras: a tríplice, mas, acrescenta ele: “ para nós não tem fronteira, é
tudo a mesma coisa, a América do Sul”. (Guataha, 2014.)
Ñevangaju no Paraguai foi cacique, líder político e passou ao campo espiritual em uma
trajetória que o seu povo reconhece a partir dos deslocamentos sofridos. A dança é o que se
concebe como o modo de seguir resistindo à ameaça do fim que viria em um dilúvio.
Ñevangaju narra o mito como há mais de um século foi traduzido por Curt Nimuendaju Unkel,
no livro publicado em 1914, em alemão e guarani. No documentário o mito traduz o dilúvio
22
com o toque da modernidade dado que a inundação veio com a represa e a demanda
globalizada das grandes plantações de soja.
Apesar de inicialmente o roteiro constar de uma viagem do xamã a suas velhas paragens de
Acaraymi, no Paraguai, devido à doença que lhe acometeu em janeiro foi impossível que ele
viajasse em fevereiro de 2014. Assim, o roteiro realizado com a diretora Clarissa Knoll se
transforma e adota a viagem do imaginário: a do mito de criação representada pela atuação da
neta do xamã, Delia que estava grávida na época. Reproduz-se o diálogo da mãe com os
gêmeos que em uma comunicação intra-uterina conduzem a mãe na busca do paradeiro de
Ñanderu.
Um roteiro se produz quando se sai do âmbito restrito da escrita (mesmo sem deixá-lo), para
alavancar as práticas de oralidade, uma vez que a assimetria existente entre as culturas, além
de esquecerem as demais línguas originarias, reúnem condições para alimentar-se de um
campo como o da performance, o de uma arte efêmera que abriga a presença e o encontro
intercultural, mas pode também atender ao desejo “juruá” de um método e de uma
epistemologia. Com a performance, fundar um campo inovador que possa sincronizar o aquie-agora, fecundando o encontro e a recepção a partir de permanente diálogo com diferentes
grupos de falantes, a fim de testar os usos da oralidade em guarani; a absorção de outras
pautas semânticas relativas ao pensamento dessa cultura em permanente resistência
histórica. E como? Assistir ao rito, conhecer a história dos cantos e sua genealogia, que no
caso dos Avá Guarani, tem no relato de Nimuendaju – Lendas da Criação... datada de 1914,
uma etnografia clássica e que, só em 1987 foi traduzida ao português pela Brasiliense e aqui
cabe a narraçao de uma experiência relatada no livro de Kurt Nimuendaju Unkel, o alemão que
virou “brasileiro” por ter sido adotado pelos Apapokuva.
A pesquisa pressupôs uma abordagem interdisciplinar (“antropología é traducción”- Viveiros
de Castro) e observava os detalhes do rito: o uso da voz, o aparato fonador, cordas que
vocalizam ( sem palavras) uma melodia, bem como ler o ritual a partir do espaço (opy) com
seus acessórios visíveis como o petengua (cachimbo) com as ervas; os colares); o cocar em
um corpo e o coro coletivo que responde na performance.
Ao ouvir o canto e o jogo intergeracional dos Ava Guarani do Ocoí tem-se a percepção de que
se aprende com eles uma corrente perdida e quem sabe, pensar não só um dia por ano, mas
na cotidianidade de uma ação intercultural que investigaria sobre o âmbito da tekoha para a
saúde integral de qualquer ser humano que aceite a atitude coletiva que marca o pensamento
guarani. Jeanne Marie Gagnebin relembra em seu artigo “Entre a vida e a morte” uma
passagem de Walter Benjamin sobre os ritos de passagem que na vida moderna vão ficando
irreconhecíveis e cada vez mais difíceis de vivenciar.
“ Tornamo-nos muito pobres em experiências liminares. ...Nao é apenas dos limiares destas
portas fantásticas ...O limiar é uma zona. Mudança, transição, fluxo...o contexto tectônico e
cerimonial imediato que deu a palavra seu significado. Morada do sonho!” (Apud Gagnebin,
2010:12)
Walter Benjamin foi um dos filósofos que há quase um século alertou sobre um dos problemas
da modernidade que é o da pobreza da experiência, a pobreza dos ritos de passagem.
23
O “xamã” humano, assim, não é um tipo sacerdotal — uma espécie ou função —, mas alguém
mais semelhante ao filósofo socrático — uma capacidade ou funcionamento. Pois se, como
sustentava Sócrates, todo indivíduo capaz de raciocinar é filósofo, amigo potencial do
conceito, então todo indivíduo capaz de sonhar é xamã, “amigo da imagem”.(6)
A indagação do livro que anda e fala na tela permite sair do campo fechado do arquivo para o
de repertório. Único meio provisório de guardar ainda a imagem do xamã Ava Guarani que
partiu treze meses após a filmagem. É este o viés dessa história de roteirista a que me permite
aprender durante o projeto de GUATAHA (2014).
Como ser múltiplo, o xamã é o mediador entre o cosmos, os animais, outros seres e o mundo
dos mortos e dos deuses. O xamã Guilherme Tupã Ñevangaju Rocha que, de morto virou vivo
durante o deslocamento indígena, hoje para o pensamento tradicional desapareceu no dia 24
de março de 2015, tem acesso a esses outros patamares da vida, desconhecida para o comum
dos mortais, um ser múltiplo carrega consigo o pensamento dos Ava Guarani: um Livro que
Anda; um livro que, de morto segue vivo e agora continua falando também nas telas, com
Guataha (2015).
Referências
JIMENEZ, A. – Orejada. Caracas: Casa Nacional de las Letras Andrés Bello, 2011.
GAGNEBIN, Jean Marie – “Entre a vida e a morte” em Limiares e passagens em Walter
Benjamin/ Georg Ette, Sabrina Sedlmayer, Elcio Cornelsen (organizadores). Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010, p. 12-26.
MARTIN BARBERO, Jesus – Dos meios às mediações.Comunicação, Cultura e hegemonia. Trad.
Ronaldo Polito e Sergio Alcides. RJ: UFRJ, 2001.
NIMUENDAJU UNKEL, Curt – A lenda da criação e destruição do mundo como fundamentos da
religião dos Apapocúva-Guarani.Trad. Charlotte Emmerich& E. Viveiros de Castro. São Paulo:
Hucitec, Edusp, 1987.
ROA BASTOS, A. (4ª. Ed) - Yo el supremo. Buenos Aires: Sudamericana, 1997.
24
Cinema e educação: a profissão docente no filme "Entre os muros da escola”
Diva Cleide Calles, FE-USP e Faculdade Sumaré, [email protected]
Resumo:
Examinando a obra cinematográfica Entre os muros da escola, este artigo analisa como o
roteiro elaborado a quatro mãos por Laurent Cantet e por François Bégadeau, autor da obra
literária homônima e autorreferenciada, põe em marcha um processo experimental de
atuação e de produção fílmica, que desafia a fronteira entre ficção e documentário, podendo
eventualmente ser considerada “ficção documentada”, dando conta autenticamente da
atividade performática da docência, na qual cabe ao professor lidar física e emocionalmente
com conflitos, frustrações, êxitos e alegrias inerentes à atuação profissional, bem como
enfrentar exclusão e conflitos sociais e étnicos dos discentes.
Palavras-chave: cinema; roteiro cinematográfico; profissão docente; conflitos sociais e étnicos
Abstract:
Examining the cinematographic work Between the walls, this article analyzes how a
fourhanded script by Laurent Cantet and François Bégadeau, author of the self-referential
novel by the same name, sets in motion an experimental performance and filmic production
process, which challenges the boundary between fiction and documentary, and may possibly
be considered “documented fiction”, authentically accomplishing the performative activity of
teaching, in which the teacher should physically and emotionally handle the inherent conflicts,
frustrations, successes, joys and challenges of the professional practice, as well as facing
students social exclusion and ethnic conflicts.
Keywords: cinema; movie script; teaching profession; social and ethnical conflicts
Nesse artigo, são examinadas questões relativas ao processo de laboração do roteiro e do
filme Entre os muros da escola (Entre les murs)2, de autoria de François Bégadeau e de
Laurent Cantet, também diretor da película. O referido filme se baseia no livro homônimo de
François Bégadeau, uma das obras autorreferenciadas analisadas na minha tese de doutorado
(CALLES, 2012)3.
2 Ficha técnica
Título original: Entre les murs
Título no Brasil: Entre os muros da escola
País de origem: França
Gênero: drama Duração: 128 minutos
Ano de lançamento (França): 2007
Direção: Laurent Cantet
Roteiro: Laurent Cantet, François Bégaudeau e Robin Campillo, baseado em livro de François Bégaudeau
Produção: Caroline Benjo, Carole Scotta, Barbara Letellier e Simon Arnal
Fotografia: Pierre Milon, Catherine Pujol e Georgi Lazarevski
Site oficial: http://www.entrelesmurs.ca/
Site oficial: www.sonyclassics.com/theclass
Distribuição: Sony Pictures Classics/ Imovision
3 Nesta tese, defendida em 2012 na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, são examinadas obras literárias e
cinematográficas que lidam com a figura do professor nas diversas identidades que ele possa assumir e representar em diferentes
25
Escritas e protagonizadas por professores, tais obras literárias autorreferenciadas – ego
documentos ou escritos sobre si – são consideradas como texto cultural, portadoras de
sentidos e representações culturais e sociais sobre o ser professor e o exercício da docência no
universo escolar (ALBERTI, 1991). Representam situações escolares e trazem à tona olhares
sobre a educação, bem como sobre os educadores, suas angústias e conflitos profissionais e
pessoais, ideais, expectativas, o papel que deles se espera na sociedade, o papel que
efetivamente realizam, e podem realizar, bem como os discursos socialmente circulantes
sobre questões envolvendo a complexa condição do ser professor.
Examinar uma obra cinematográfica baseada num livro deve pressupor alguns elementos
fundamentais para não se correr o risco de incidir num cotejo improdutivo e dicotômico. Ainda
que se valendo de recursos, regras e convenções peculiares, tanto a linguagem do cinema,
quanto a da literatura guardam proximidade pelo uso da palavra e por sua natureza
narratológica. Por sua vez, o cinema estabelece relações com a literatura, que tem fornecido
um universo de temas e de estruturas narrativas à cinematografia. Outro aspecto a ser
ressaltado é que a linguagem fílmica, servindo-se de diversos recursos, carrega indícios de
realidade possibilitadores da reconstrução desta na percepção ativa e responsiva do
espectador, com o qual estabelece um convencimento mais efetivo resultante do movimento
presente no filme. Para além de se configurar como entretenimento, diversão, deleite, prestase o cinema como manifestação social, artística, cultural e comportamental, cuja emergência é
possibilitada sob determinadas condições de produção e em determinados contextos
sociohistóricos. Constitui-se, dessa forma, o cinema como fonte documental histórica, como
registro de uma época em seus aspectos mais significativos, dando lugar como alvo de
pesquisa a outras fontes e a outros caminhos e discursos (METZ, 2010, p.19).
Assim como outros filmes, Entre os muros da escola pode se enquadrar, de acordo com Mary
Dalton, no gênero teacher movies (“filmes sobre professores”), obras que permitem verificar a
complexidade dos processos e mecanismos sociais nos quais se insere a representação do
profissional docente (DALTON, 2007). Em geral, a filmografia sobre escola, educação e
profissão docente comporta conceitos, valores, expectativas, comportamentos e
representações, pertencentes ao imaginário social, tanto quanto à perspectiva que o público
em geral nutre sobre a escola, correspondentes ao imaginário social, resultando, não raro, em
profusão de clichês, soluções simplistas às questões abordadas, além de expedientes
questionáveis para as complexas questões educacionais. Entre os muros da escola, no
entanto, foge sobremaneira a esse padrão pela abordagem distinta da estrutura comumente
adotada e formato diferente do predeterminado, ou seja, aquele em que, numa turma
problemática, violenta, um professor rigoroso, heroico, está disposto a “fazer a diferença” e
mudar o futuro daqueles jovens, e, de certa forma e em certa medida, consegue realizar tal
feito, como em obras cinematográficas lançadas em diferentes épocas: To Sir, with love (Ao
Mestre com carinho – 1967), Dangerous minds (Mentes perigosas – 1995), Freedom writers’
diary (Escritores da liberdade – 2007), para mencionar apenas alguns (BAUER, 1998).
instituições escolares: Blackboard jungle, de Evan Hunter; Sale Prof!, de Nicolas Revol; Entre les murs, de François Bégadeau;
Teacher man, de Frank McCourt; e os filmes: Entre les murs (Entre os muros da escola); e Blackboard jungle (Sementes da
violência).
26
Pode-se supor que muito das especificidades de Entre os muros da escola se deva ao
ecletismo do autor da obra literária, corroteirista e ator na obra cinematográfica em análise.
Nascido em Luçon, Vendée, França, em 2.3.1971, François Marie Bégaudeau é filho de
professores, formou-se em Artes Modernas da Universidade de Nantes. Polivalente, exerceu
diferentes atividades: jogador de futebol, cantor e compositor de rock, roteirista e ator,
escritor de ficção, drama e poesia, colunista, crítico literário e cinematográfico, Bégaudeau foi
professor de Francês por sete anos em um uma escola pública (lycée) em Dreux, e, em seguida,
em uma escola no 19eme arrondissement. Tal experiência serviu de base a Entre les murs (Entre
os muros da escola – 2007)4. Bégadeau participou também da elaboração do roteiro
cinematográfico de Entre os muros na escola.
Com grande liberdade no roteiro e orçamento restrito, a produção do filme, pelo qual o diretor
Laurent Cantet recebeu, em 2008, a Palma de Ouro da 61ª edição Festival de Cinema de
Cannes, desafiou a fronteira entre ficção e documentário, podendo, de acordo com o próprio
diretor e corroteirista, eventualmente ser considerada “ficção documentada”5.
Como uma espécie de “diário de bordo”, a narrativa literária, cuja sequência de episódios e
personagens não corresponde exatamente aos do filme, trata do cotidiano, numa escola
pública do subúrbio parisiense, de uma turma que corresponderia a uma sétima série em
nosso sistema escolar. Na obra literária, narrada em primeira pessoa, o autor reconstitui
ficcionalmente um ano letivo, computado em 33 semanas de aula, e 136 dias úteis, e esmiúça
as múltiplas inter-relações entre o ambiente da escola e os que ali convivem, alunos,
professores, pais de alunos e supervisores. A ação ocorre, sobretudo, na sala de aula, mas há
cenas na sala dos professores, além dos corredores e do pátio da escola.
Em Entre os muros da escola, a narrativa literária contempla mais detalhadamente as sutilezas
pretendidas pelo autor, pois cobre uma variedade maior de eventos, além de permitir ao leitor
a afluência ao que pensa e sente o narrador. A sequência de episódios do livro difere das cenas
da versão fílmica. A ação ocorre, sobretudo, na sala de aula, mas há cenas na sala dos
professores, além dos corredores e do pátio da escola. Na versão cinematográfica, incluem-se
cenas em outras salas: do diretor, do conselho de classe e do conselho de disciplina. Uma
única tomada fora da escola mostra o professor François Marin chegando para o primeiro dia
de aula.
Os personagens da obra literária não correspondem exatamente aos do filme, e mesmo os
nomes são diferentes. Nem todos os personagens faziam parte do roteiro, alguns já estavam
preestabelecidos, alguns foram adaptados em função da personalidade de cada um dos atores,
outros nasceram dos personagens reais que passaram a ser “encarnados” também
4 François Bégadeau apresenta uma considerável produção literária, além de ensaios, colaboração e organização de obras, seus
romances se caracterizam por refletirem elementos autobiográficos, e até preferências musicais, transmutados em ficção, tais
como: Jouer juste (“Jogar justo” – 2003); Un démocrate, Mick Jagger 1960-1969 (“Um democrata, Mick Jagger 1960-1969” – 2005);
Dans la diagonale (“Na diagonal” – 2006); Fin de l’histoire (“Fim da história” – 2007); Vers la douceur (“Rumo à doçura” – 2009).
Além de ensaios, colaborações em obras e organização de obras.
5 Da filmografia de Cantet fazem parte as seguintes obras: Tous à La Manif (1994) e Jeux de Plage (1995) (curtas); Les Sanguinaires
(Os sanguinários – 1997); Ressources humaines (Recursos humanos – 1999); L’emploi du temps (O emprego do tempo – 2001); Vers
le Sud (Em direção ao Sul – 2005); Entre les murs (Entre os muros da escola – 2008); 7 días en La Habana (Sete dias em Havana –
2012) e Retour à I’thaque (Retorno a Ítaca – 2014).
27
ficcionalmente e alguns foram integrados ao roteiro, como: Wei, o aluno chinês; Esmeralda e
Suleyname.
Outra particularidade da obra fílmica em análise está em que os papéis são desempenhados
por atores não profissionais, funcionários, professores, alunos e seus familiares e mesmo
François Bégadeau, assumindo o seu próprio papel de professor, no personagem François
Marin. Para tanto, no ano letivo de 2006-2007, cerca de quarenta adolescentes de uma turma
equivalente à nossa 7ª série foram selecionados a participar de ateliês ou oficinas de
improvisação. Durante 5 semanas, às quartas-feiras à tarde (quando não há atividades
discentes nas escolas francesas), as filmagens ocorreram na escola pública Françoise Dolto.
Integrada a uma Zona de Educação Prioritária (ZEP), a escola Françoise Dolto, fica na Rue des
Pyrenees, no 20ème Arrondissement, um dos bairros periféricos segregados, regiões que
formam a área central de Paris, nomeados de acordo com seu número. Os subúrbios são
chamados o banlieueus, área fora de Paris, que abrigam centenas de milhares de indivíduos de
descendência norte-africana (na maior parte, argelinos e marroquinos)6.
A atuação dos jovens alunos-atores se mostrou altamente convincente, conseguindo eles até
mesmo o feito de passar a impressão de desempenharem seus papéis ignorando a câmera que
os filmava. De acordo com Laurent Cantet, capazes de se concentrar e de se esforçar
efetivamente, parece terem encontrado sentido no que faziam. De fato, verifica-se que os
jovens atores dão conta de diversos arquétipos escolares: o durão, o palhaço, o vagabundo, o
engraçadinho, o respondão, o líder. Laurent Cantet acredita que tal naturalidade advém
sobretudo do fato de que ser aluno já é representar, no papel que lhes é atribuído ou no que
escolheram e pelo qual cada um se coloca em cena.
Para esse processo de configuração de ficção documentada, dos professores, que já haviam
lido o roteiro, buscaram-se obter propostas, pontos de vista e questionamentos para
eventualmente incorporar novos elementos ao roteiro e à direção do filme. A equipe se
familiarizava, aos poucos, com o projeto, improvisava, testava situações, recuperava falas reais
e trechos de diálogos para inserir no roteiro, e aprofundava os personagens que surgiam. Daí a
reelaboração do roteiro original, uma síntese de improviso e de roteiro escrito.
Foram utilizadas três câmeras digitais para filmar e iluminar os rostos, conferindo efeito de
maior autenticidade à produção. A primeira câmera focalizando François Marin, que organiza e
distribui as interações; a segunda, o aluno a quem Marin dirige a palavra; a terceira, tenta
captar, da melhor maneira, as reações de cada um, pois logo se percebeu que não há apenas
uma interlocução. Quando o professor se dirige a um aluno, outros também se manifestam ao
mesmo tempo, podendo as conversas surgir de qualquer lado da sala, cruzarem-se e
6
28
sobreporem-se com a vivacidade e o ruído característicos do ambiente escolar. A lente do
diretor Laurent Cantet se comporta como olhar documental, algumas vezes vindo de uma
carteira na fileira anterior àquela onde acontece uma discussão entre alunos, outras partindo
do corredor dois andares acima do pátio onde os garotos jogam bola no recreio. O efeito
obtido é o de apagamento da intervenção ficcional por meio de cenas passando a impressão
de captura de situações que poderiam ocorrer, ou ocorrem, sem a câmera, em aparente
ausência do artista, o que também é uma construção.
No cenário limitado da sala de aula, uma encenação cuidada e um acumular de emoções nos
conduzem ao clímax. O espectador é posto em contato próximo com os alunos, suas
personalidades, vozes e posturas, sem que nada de suas vidas fora do ambiente escolar nos
seja descerrado, mas sem tampouco os desvincular do seu meio social, o qual se faz presente
na linguagem e nas atitudes. A sala de aula condensa uma tensão generalizada entre os alunos,
os quais, pelo compartilhamento das mesmas condições na sociedade francesa, podem ser
encarados como grupo homogêneo, introjetados nos limites concretos de uma escola. Embora
num mesmo contexto social de filhos de imigrantes, ou imigrantes eles mesmos, por conta de
diferenças de origem, em dados momentos de confronto verbal, eles reproduzem a retórica
colonialista, estabelecendo diferenciações nacionais e culturais. Por vezes, em recusa
veemente a qualquer autoridade, o confronto com o professor os leva a uma união
circunstancial. Na sala de aula, constata-se o embate de forças internas da classe e dos alunos
com a instituição escolar, reiteradas por sequências em que os professores reclamam da perda
de autoridade ou reagem a essa perda com autoritarismo.
Desse universo, configura-se a complexa inter-relação professor-aluno, tendente muito mais à
persuasão, à atividade política ou social, não à coerção. Daí emerge o profissional docente que
deseja ser aceito, acatado, respeitado, temido ou apenas suportado, o qual, por esforços
constantes, tenta exercer a autoridade moral visando obter a participação efetiva dos
discentes. Na verdade, esse professor tenta estabelecer um pacto de interação que lhe
permita gerir conflitos, negociar, interagir com os alunos de forma firme, eficaz e cordial, gerir
a diversidade, a heterogeneidade social, étnica, cultural dos discentes, algo que não se
constrói num momento e assim permanece, uma inquietação constante, de todos os
envolvidos no universo escolar, algo que Entre os muros na escola consegue eficazmente
manifestar.
O filme também lida com a tênue fronteira entre autoridade e autoritarismo, revelando um
professor que busca não a autoridade imposta, mas a construída e negociada, ainda que
François Marin acabe por aplicar aos alunos sanções questionáveis e nas quais ele mesmo não
acredita, ou sobre as quais ele questiona. Professor desajeitado, que comete muitos erros e
representa um ser humano falível com suas fraquezas, Marin dá conta de que, talvez mais que
outros profissionais, o professor está constantemente sujeito ao erro, pela natureza de seu
ofício em constante reelaboração. Trata-se de um profissional diante do enfrentamento do
fracasso escolar (nem todos apresentam condições de aprender); dos próprios limites de
atuação (não ser eficaz em todas as situações); e das desigualdades sociais e violência, que
demandam novas inter-relações no ambiente escolar.
29
Em pleno processo de adaptação ao fenômeno da democratização – ou demografização – do
ensino e dos alunos atendidos pela escola, e de adaptação a novas demandas individuais e
sociais, este o professor pretende obter adesão a suas proposições, maior interesse pelos
conteúdos da disciplina ministrada, tanto quanto a manutenção de uma atmosfera favorável
ao aprendizado. Supõe-se que este professor consiga dar voz aos alunos diante da rebeldia
destes, ao mesmo tempo em que possa seguir normas e convenções, e exercer controle sobre
os alunos. Dentre os desafios inerentes à docência manifestos no filme, está um trabalho
emocional, exercido com, sobre e para seres humanos, e que demanda empatia e
engajamento afetivo, uma tentativa incessante de superar e contornar adversidades e crises, e
encontrar meios de crescer, amadurecer e realizar-se na profissão.
Cabe ainda ao professor superar contradições próprias de um sistema educacional dito
includente, mas fundamentado numa estrutura não propícia a isso, como conteúdos
curriculares inadequados a alunos pertencentes camadas populares, para os quais a
escolaridade e a aquisição de saberes é uma aventura singular. Esse professor se constitui
ainda com relação às expectativas de famílias de camadas populares, muitas vezes pouco ou
nada escolarizadas, ou de imigrantes, ou de outras etnias e culturas, que detêm concepções
sobre escola, saberes escolares e ensino ainda não naturalizadas (DUBET, 2003; CHARLOT,
1996 e 2002). Vinculada a esses aspectos, está a representação do bom professor que tem
amor à docência, algo, muitas vezes, mais discursiva que efetivamente incorporado à prática
profissional pelos próprios professores, que, direta ou indiretamente, tentam se constituir
dessa maneira idealizada e discursiva e socialmente construída.
Pela linguagem cinematográfica, através de recursos artificiais, tem-se a representação da
realidade por meio da imagem, que confere, desse modo, a impressão de pura narrativa, pura
história, destituída de indícios a atingir determinados fins, num pretenso “ocultamento” de
voz, autoria ou perspectiva. De fato, não há isenção; ao contrário, manifesta-se um campo de
luta constante para manter oculto o ponto de vista dessa “fala” cinematográfica, impregnada
de sentidos dos autores, dos roteiristas e da visão que o público detém sobre a escola, a
educação e o professor, bem como da classe social que produz esse ou aquele produto fílmico.
Neste universo do real sendo representado pelo cinema, com toques e elementos da própria
realidade, uma vez que a narrativa cinematográfica se consolida por imagens em movimento
que descrevem, narram e produzem significados, a escola como microcosmo da sociedade
francesa, incluindo questões de miscigenação, desigualdade social, racismo, intolerância e
choque cultural, em contraposição a ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Tem-se,
assim, um discurso cinematográfico, que se constitui num texto ideológico e cultural no qual
de inscrevem produções de sentidos, significados e representações socioculturais. Está
também subjacente a inquietação resultante da quase inexequibilidade de tentativas de
superação de contradições de um sistema educacional dito includente, mas fundamentado
numa estrutura não propícia a isso.
Referências Bibliográficas
ALBERTI, Verena. “Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na narrativa”. Estudos
históricos. Rio de Janeiro, vol. 4, n. 7, 1991. p.66-81.
30
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English. College English, vol. 60, n. 3 (Mar., 1998). p.301-317.
BÉGAUDEAU, François. Entre les murs. Paris: Gallimard, 2007.
BÉGAUDEAU, François. Entre os muros da escola (Trad. Marina Ribeiro Leite). São Paulo:
Martins Editora, 2009.
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema (Col. Primeiros Passos). São Paulo: Brasiliense,
2000.
CALLES, Diva C. O ser professor em obras literárias autorreferenciadas e em filmes:
dimensões profissionais e emocionais do trabalho docente. Tese de Doutorado, FEUSP, 2012.
CHARLOT, Bernard. A violência na escola: como os sociólogos franceses abordam essa questão.
Sociologias, v.4, n.8, jul./dez. 2002. p.432-443.
COSTA, Antonio. Compreender o cinema (Trad. Nilson Moulin Louzada). Rio de Janeiro: Globo,
1985.
DALTON, Mary M. Teachers in the movies. The Hollywood Curriculum. New York: Peter Lang,
2007.
DUBET, François. “A escola e a exclusão” (Trad. Neide Luiza de Rezende). Cadernos de
Pesquisa, n. 119, 2003, p.29-45.
Entre les murs (Entre os muros da escola) (The class). Roteiro: Laurent Cantet, Robin Campillo,
Direção: Laurent Cantet, 2008.
Entrevista com Laurent Cantet, Extras do filme Entre os muros da escola (Entre les murs),
DVD, 2008.
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Batismos de Sangue
Yuri Garcia
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, [email protected]
Resumo:
O presente trabalho busca relacionar o livro “Drácula” de Bram Stoker com duas de suas
transposições para o cinema e com o personagem histórico Vlad Tepes. Assim, escolhemos
“Dracula” (1992) de Francis Ford Coppola e “Dracula Untold” (2014) de Gary Shore devido ao
fato de ambas serem grandes produções com um grande alcance de público. Ainda, o primeiro
foi consagrado como uma grande obra cinematográfica enquanto o segundo foi uma das
incursões mais recentes do personagem no audiovisual direcionado para um âmbito mais
mainstream. Em ambos, o vampiro é referenciado como um personagem histórico real
conhecido como Vlad Tepes, ou Drácula. Mas até que ponto tal ligação é realmente explorada
no livro e nos filmes? E qual o resultado final de dois produtos que misturam uma obra
literária com fatos históricos e a própria criatividade de seus diretores? Aqui, tentaremos
esclarecer todas essas questões ao explorar melhor alguns aspectos apontados e analisar os
dois filmes em questão.
Palavras-chave: Drácula; cinema; transposições; vampiro.
Abstract:
This paper aims to relate Bram Stoker’s book “Dracula” with two of its transpositions to
cinema and the historical character Vlad Tepes. Therefore, we chose Francis Ford Coppola’s
“Dracula” (1992) and Gary Shore’s “Dracula Untold” due to the fact of both being great
productions with great public reach. Still, the first was considered a great cinematographic
piece, while the second was one of the most recent incursions of the character in audiovisual
directed to a more mainstream range. In both, the vampire is referenced as a true historical
character known as Vlad Tepes, or Dracula. But until which point is this connection really
explored in the book and in the movies? And which is the final result of two products that
mixture a literary piece with historical facts and the directors own creativity? Here, we will try
to enlighten these questions and explore a few of the pointed aspects and analyze the two
movies in question.
Key-words: Dracula; cinema; transpositions; vampire.
Introdução
Em 1897, o irlandês Bram Stoker publicou a obra “Drácula”. Com o passar dos anos, a obra
consegue fazer cada vez mais parte de nossa cultura, trazendo o personagem título como a
representação máxima do vampiro. O livro se destacou na literatura gótica na era vitoriana e
sua repercussão continua em progressão, podendo ser vista em seus diversos produtos
apropriados por diferentes mídias (videogames, séries, filmes, HQs etc) na cultura de massa.
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Bram Stoker faz uma pesquisa detalhada para o seu livro, que nos fornece uma ambientação
total da história. Além de características geográficas com uma precisão incrível para a época,
há também uma rica imersão histórica que nos apresenta dados específicos para que inseridos
na ficção desenvolvam uma trama bem descritiva. O personagem Drácula teria sido baseado
(embora sem nenhuma evidência concreta) em um príncipe de mesmo nome, cujas lendas são
famosas pela Europa Oriental. Entretanto, até que ponto a ligação entre o personagem
histórico e o personagem literário se configura?
Em 1992, Francis Ford Coppola se propôs a trazer para as telas uma adaptação “fiel” do livro
de Stoker. De certa forma, é considerado por muitos como uma das transposições mais
próximas da original. Todavia, devemos problematizar a “fidelidade” proposta por Coppola à
obra literária. Uma das premissas centrais deste filme é a de desenvolver abertamente o
personagem título como o personagem histórico e humanizar e romancear o vampiro. Por
outro lado, “Dracula Untold” (2014) de Gary Shore trabalha exatamente na ligação que o filme
de Coppola propõe, sem se relacionar diretamente em momento algum com a história de
Stoker. Para podermos compreender todas as ligações que aqui são destacadas, iremos
retornar a outras ligações que possam elucidar melhor a complexa relação entre as três obras.
“Drácula”, o livro
A obra “Drácula” começa com a história de um aristocrata romeno, cujo nome intitula a obra,
recebendo o jovem inglês Jonathan Harker em seu castelo para que consiga efetuar a compra
de uma propriedade na Inglaterra. Com o passar da trama, percebemos as reais intenções do
conde, que embora se mostre em um corpo um pouco mais velho, possui uma força
descomunal e diversos outros poderes que deixam o jovem apavorado. Ao longo da narrativa,
o hóspede percebe que, na realidade, seu destino será a morte (ou talvez se tornar um
vampiro, pois se encontra apenas implícito o que será feito dele) através de três mulheres
“demoníacas” residentes no castelo, que estariam apenas esperando que ele perdesse a
utilidade para seu anfitrião.
O jovem consegue fugir, mas adoece e começa a achar que sofreu delírios e torna-se um
personagem fraco e abatido por duvidar de suas próprias noções de realidade. Enquanto isso,
o conde chega à Inglaterra e começa a fazer algumas vítimas, entre elas, Lucy Westenra. O fato
de uma doença repentina começar a abatê-la desencadeia em uma união de três amigos (Dr.
Jack Seward, Quincy P. Morris e Arthur Holmwood, o noivo de Lucy) para tentar evitar sua
morte. Ao se agravar o estado da enferma, o doutor recorre ao seu antigo professor, Van
Helsing, que com sua experiência consegue ajudá-los e descobre que na realidade estavam
lidando com um vampiro.
Com a morte de Lucy, os três amigos unem-se à melhor amiga da falecida, Mina Harker. Em
pouco tempo, tomam conhecimento do passado de seu marido e percebem que ele havia sido
prisioneiro no castelo do inimigo, conseguindo fugir. Jonathan, ao conversar sobre sua
experiência e sobre as investigações envolvendo a morte de Lucy, percebe que não estava
delirando e se recupera. Os seis se unem em busca do conde, no entanto, este consegue
morder Mina e lhe obrigar a beber seu sangue, processo que fará com que ela se transforme
em uma vampira. Perseguindo Drácula de volta ao seu castelo, conseguem matá-lo antes que
ele retorne ao seu solo – ato que lhe fortaleceria – e evitar que Mina se transforme.
33
A narração não se dá através de uma pessoa, e sim diversas, abrindo espaço para diferentes
perspectivas, em alguns casos, de um mesmo fato. O texto denso e detalhista é formado por
diversas anotações de diários, cartas, gravações transcritas, telegramas e recortes de jornais
de personagens diferentes, colocados em ordem cronológica nos permitindo diferentes
ângulos de análise. “Estratégia que faz com que o leitor aja como detetive, juntando as
informações apresentadas e solucionando os mistérios da trama antes que suas personagens a
façam.” (RODRIGUES, 2008, p.17)
Em 1972, os pesquisadores Raymond McNally e Radu Florescu, ao procurarem um panfleto do
século XV para utilizar como material para seu livro “In Search of Dracula”, se depararam com
uma descoberta que iria ser objeto de extrema importância nas futuras pesquisas sobre a obra
de Stoker, as anotações do autor para o desenvolvimento de “Drácula”. Após uma organização
e sistematização das anotações, com indicações e notas de rodapé para facilitar o
entendimento feitas por Robert Eighteen-Bisang e Elizabeth Miller, surge “Bram Stoker’s notes
for Dracula: a facsimile edition” (2007).
O livro aponta para pesquisas de Bram Stoker sobre ventos, tempestades e coisas relacionadas
a navegar, para descrever a viagem de Drácula no navio Demeter e um estudo sobre
superstições europeias, vampiros e costumes romenos. Um estudo extremamente detalhado,
relatando a geografia presente no enredo de uma forma precisa, permitindo que o leitor possa
se situar com exatidão nos locais descritos. Entretanto, a ligação com o personagem histórico
do mesmo nome aparenta ser mais sutil do que se acredita. “No livro, ele é citado várias vezes,
ainda assim sem uma referência direta, apenas menção aos seus feitos e sua história.” (VIEIRA,
2011, p.3)
Drácula era de fato um dos nomes de um príncipe valaquiano do século XV, também
conhecido Vlad Tepes, Vlad III ou Vlad Berasab. Nascido em 1431 na Transilvânia, é
reconhecido por sua crueldade e sadismo, destacando-se como grande guerreiro e torturador
do corpo e da mente7 com muitas lendas envolvendo suas batalhas, punições e métodos de
tortura. Uma de suas mais célebres práticas consistia em empalar8 seus inimigos e colocá-los
expostos para que todos pudessem ver, o que o deixou conhecido como “O Empalador”.
O nome Drácula possui dois possíveis significados. O primeiro seria devido ao fato de seu pai,
Vlad II, ter pertencido à Ordem do Dragão9, ganhando o nome Dracul. A origem de tal nome
remete a palavra “draco” do latim que significa “dragão”. Dessa forma, com o acréscimo de
um “a” no final, com o sentido de “filho de”, o nome do famoso príncipe seria na verdade
“filho do dragão” ou “filho daquele que foi membro da Ordem do Dragão”. Outro possível
significado seria “diabo”, que poderia ter surgido de uma interpretação errônea de
camponeses ao verem seu pai portando a bandeira da ordem. Embora a notória fama de cruel,
7 Para mais detalhes históricos sobre o personagem, ver MCNALLY; FLORESCU, 1994.
8 A empalação consistia em inserir uma estaca no ânus, umbigo ou vagina da vítima. Neste método, a pessoa podia ser posta
"sentada" sobre a estaca ou com a cabeça para baixo, de modo que a estaca penetrasse nas entranhas da vítima e, com o peso do
próprio corpo, fosse lentamente perfurando os órgãos internos. Neste caso, dependendo da resistência física do condenado e do
comprimento da estaca, a agonizasse estendia por horas. Disponível em:
http://www.spectrumgothic.com.br/ocultismo/inquisicao/torturas.htm Acesso em 07/08/2012.
9 Para mais detalhes ver http://en.wikipedia.org/wiki/Order_of_the_Dragon
34
é considerado até os dias atuais como um grande herói da região por ter travado inúmeras
batalhas contra o império turco-otomano.
A obra não teria sido baseada nesse personagem. Na realidade, anotações de Stoker apontam
que durante o desenvolvimento do livro, o autor pretendia nomear seu personagem como
“conde Wampyr”. Entretanto, ao se deparar com “An Account of the Principalities of Wallachia
and Moldavia” de William Wilkinson na prateleira de número 0.1097 da biblioteca de Whitby,
se interessou pelo nome devido a sua ligação com a palavra demônio.
“Dracula” (1992) e “Dracula Untold” (2014)
Francis Ford Coppola traz sua concepção do personagem de Stoker no filme “Dracula” de
1992. Com uma tradução do título original para o português nos prometendo fidelidade à obra
original, “Drácula de Bram Stoker” é de fato considerado por alguns críticos como a adaptação
mais “fiel”. Entretanto, trata-se de uma transposição menos atrelada ao livro do que
pensamos.
Ao creditar mais importância ao personagem histórico Vlad Tepes para a construção do vilão
de Bram Stoker do que realmente deveria, Coppola aproxima seu vampiro totalmente da
imagem do “empalador” e se esquece da descrição provida por Stoker. Não podemos cometer
a injustiça e nos atermos tanto às diferenças que o diretor cria ao basear seu Drácula em outra
imagem. As mãos peludas, unhas compridas, aspecto mais velho vistas no encontro com
Jonathan Harker já no início do filme remetem diretamente ao livro.
Já no início da película, Coppola cria uma pequena história para explicar coisas que Bram
Stoker havia deixado sem explicação: Quem foi Drácula? E como se tornou um vampiro? Sua
pequena história inicial já aponta para as duas modificações principais que serão utilizadas ao
longo da película. A resposta do diretor: Drácula foi Vlad Tepes. Não somente apresentando o
personagem, como também recriando cenas de suas lendárias batalhas contra os turcos e seus
empalamentos. Ainda acrescenta ao lendário “empalador”, conhecido como um tirano por uns
e como um herói por outros, ser, na realidade, um homem apaixonado.
No filme, ao vencer uma batalha em nome da cruz, defendendo o cristianismo, Vlad recebe o
pior dos castigos. Os turcos se vingam de seu inimigo atacando o que ele mais ama, sua esposa
Elisabeta. Uma flecha atirada ao castelo contém a mensagem falsa de que Drácula havia sido
morto em batalha, e abalada com a notícia, sem poder viver sem seu amado, Elisabeta se atira
no rio, se suicidando.
Chegando vitorioso em seu castelo, Drácula se depara com o corpo morto de sua esposa e um
representante da igreja dizendo que ela não irá para o céu, pois se matou. Tomado por uma ira
colossal, Vlad renuncia a Deus e crava sua espada no centro da cruz que jorra sangue em uma
cena épica que termina com Drácula bebendo sangue de um cálice dourado repetindo a
célebre frase do livro de Stoker, “The blood is the life”.
A cena retratada por Coppola é brilhante, apresentando imagens fortes com uma trilha sonora
que ajuda a criar a ambiência necessária para logo em seguida inserir o título do filme.
Entretanto, o diretor peca ao tentar nomear sua obra como uma adaptação fiel do livro de
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Stoker. Na verdade, as modificações imprimidas são a essência e a grande originalidade de sua
transposição fílmica de um produto literário amplamente visto no cinema ao longo dos anos.
Podemos creditar a Coppola o mérito de trazer o estilo documental encontrado no livro em
diversas partes de seu filme (embora não seja exatamente igual à obra de Stoker que se trata
de relatos de diversas pessoas sobre um vilão em comum). Assim como de trazer um destaque
maior do que os outros filmes de Drácula haviam dado à visita de Harker ao castelo. É possível
fazer uma varredura detalhada dos momentos em que a transposição relata com mais
exatidão o conteúdo de sua obra inspiradora, entretanto, é nos momentos em que se distancia
que podemos perceber a originalidade encontrada nessa película.
Uma das mais importantes mudanças do livro é o retrato do conde Drácula
como Vlad Drácula e de Mina Harker como a reencarnação da esposa de
Vlad Dracula do século quinze. Não somente isso promove um falso link
entre os Dráculas históricos e ficcionais (e mancha a reputação de Vlad
Drácula no processo), mas oferece uma explicação específica para o
sentimento de Drácula por Mina. Embora, inicialmente, seja Lucy que ele
almeja, ataca e vampiriza, é secretamente (exceto para o leitor /
expectador) Mina que ele quer e seu ataque em Lucy parece odioso e cruel
por isso. No livro muito disso é deixado para a especulação do leitor, mas a
adaptação fílmica de Coppola tenta nos oferecer respostas específicas para
alguns enigmas de Stoker. (BERESFORD, 2008, p.153)10
Ao longo da narrativa, vemos um Drácula que não procura ser uma grande ameaça à paz dos
ingleses e às mulheres indefesas. Dessa vez, temos um vampiro apaixonado que vai até a
Inglaterra para encontrar o seu amor reencarnado na pele de Mina Harker. Mina vai de vítima
do livro de Stoker, à personagem central no filme de Coppola. Ela é a reencarnação da mulher
que motivou Vlad a se voltar para as trevas, assim como o motivo de sua viagem e no final, é
quem mata o vampiro e faz com que ele morra como um príncipe e não um monstro.
Ao abrir com essa narrativa – e se declarando como um épico romântico – o filme
inevitavelmente voltou atenção para o quão longe ele partiu do livro – embora, ao colocar
autor e texto juntos em seu título, parecia prometer (finalmente...) a verdadeira história. De
fato, para acompanhar o lançamento do filme, um livro intitulado “Drácula de Bram Stoker” foi
publicado – escrito não por Stoker, mas pelo experiente escritor de vampiros americano, Fred
Saberhagen. (GELDER, 2001, p.90)11
10 “One of the most important changes from the novel is the portrayal of Count Dracula as Vlad Dracula and Mina Harker as a
resurrection of Vlad Dracula’s wife from the fifteenth century. Not only does this promote the false link between the historical and
fictional Draculas (and taint Vlad Dracula’s reputation in the process), but it offers a specific explanation for Dracula’s longing for
Mina. Although it is initially Lucy that he targets, attacks and turns vampiric, it is secretly (except to the reader / viewer) Mina that
he longs for and his attack on Lucy appears hateful and cruel because of this. In the novel much of this is left to the reader’s own
speculation, but Coppola’s film adaptation attempts to offer us specific answers to some of Stoker’s conundrums.” (BERESFORD,
2008, p.153)
11 “By opening with this narrative – and by declaring itself as a romantic epic – the film inevitably drew attention to just how far it
had departed from the novel – even though, by putting author and text together into its title, it seemed to promise (finally...) the
real thing. In fact, to accompany the film’s release, a novel titled Bram Stoker’s ‘Dracula’ was published – written not by Stoker, but
by the experienced American vampire novelist, Fred Saberhagen.” (GELDER, 2001, p.90)
36
Outra novidade trazida pelo diretor é a inclusão do cinema entre as inúmeras tecnologias
citadas pelo livro de Stoker. No romance original, entre uma variedade de meios de
comunicação sendo enumerados para colher dados sobre o inimigo, o cinema é sequer
mencionado. Coppola, no entanto, mais do que mencioná-lo, o centra como fundamental na
trama.
Coppola deixa claro que o cinema ‘começou’ por volta da mesma época do
romance de Stoker – os irmãos Lumière, na realidade, abriram seu auditório
cinematográfico em Londres em 1896, o ano anterior à publicação de
“Drácula”. É como se o projeto de filmar o romance de Stoker sobre Drácula
também envolva filmar o início do próprio filme – como se o retorno para a
fonte vampírica ‘original’ seja meramente os meios pelos quais outra forma
de retorno possa ser alcançada, uma forma de representar (ou, reinventar)
12
o momento original do filme, sua formação. (GELDER, 2001, p.89)
Outro mérito trazido pelas alterações de “Drácula de Bram Stoker” é a adequação ao público
de sua época. Enquanto Stoker trata da sexualidade como algo relacionado à impureza dos
vampiros, Coppola imprime um teor sexual na relação entre Mina e Lucy, Lucy e seus
pretendentes e Mina e Jonathan e traz Drácula seduzindo Mina que se oferece ao vampiro por
vontade própria.
Diferente da visão de Stoker, Coppola permite que suas protagonistas
femininas se comportem em uma maneira altamente sexual, com seus
parceiros homens e ainda, de vez em quando, uma com a outra. As heroínas
no romance, portanto, são marcadas como menos “malvadas” que suas
equivalentes fílmicas. Significantemente, apesar do fato que ambas as
protagonistas de Stoker se tornam comprometidas, suas associações com
seus parceiros nunca se tornam sexualizadas (ao menos não enquanto ainda
são humanas). (NYSTROM In: BROWNING; PICART, 2009, p.69)13
Então, podemos perceber que o filme de Coppola possui seus méritos em relação à
“fidelidade” imprimida à obra original em alguns aspectos. Todavia é em suas diferenças com o
livro de Stoker que esse trabalho reconhece os aspectos mais relevantes e de mais importante
análise. Pois como diversos fatores estão presentes na composição do produto, vemos nas
modificações e em suas motivações a verdadeira originalidade de seu criador.
Seguindo a ligação entre Vlad Tepes e o vampiro em que Coppola baseia seu filme, a nossa
segunda obra em questão consegue não só evidenciar de forma mais visível, como desenvolve
toda sua história em torno de como o personagem histórico tornou-se o vampiro.
12 “Coppola makes it clear that cinema ‘began’ around the same time as Stoker’s novel – the Lumière brothers actually opened
their Cinematographic auditorium in London in 1896, the year before Dracula was published. It is as if the project of filming
Stoker’s novel about Dracula also involves filming the beginnings of film itself – as if the return to the ‘original’ vampire source is
merely the means by which another kind of return can be achieved, a way of representing (or, reinventing) film’s own original
moment, its coming-into-being.” (GELDER, 2001, p.89)
13 “Unlike Stoker’s vision, Coppola allows his female leads to behave in a highly sexual manner, both toward their male
counterparts and even, at times, each other. The heroines within the novel, therefore, are markedly less “wicked” than their filmic
equivalents. Significantly, despite the fact that both of Stoker’s female leads become engaged, their associations with their
significant others never become sexualized (at least not while they remain human).” (NYSTROM In: BROWNING; PICART, 2009,
p.69)
37
Uma das mais recentes incursões do vampiro no cinema é assinada por Gary Shore e traz Luke
Evans como protagonista. “Dracula Untold” (2014) mostra o personagem Vlad Tepish como um
herói que faz um pacto com o diabo para proteger sua família e seu povo do exército turco. O
filme aponta algumas inovações ao tentar, ao invés de justificar a vilania do personagem,
justificar a adoção de sua monstruosidade como um sacrifício heróico para um “bem maior”.
Além disso, vale apontar que o filme foi vendido como um grande Blockbuster e como um
filme de ação e aventura, o que parece ser uma nova tendência para os vampiros como vimos
em Blade (anteriormente), a saga “Underworld” (2003, 2006, 2009, 2012) e outros. O filme é
uma produção bem feita, mas peca ao transformar um grande vilão em um desinteressante
“bom moço”.
Aqui, Drácula deixa de ser o monstro criado por Stoker e sequer consegue ser o vampiro
apaixonado de Coppola. O filme de Gary Shore procura retratar o vampiro como não só um
herói épico nos campos de batalha, mas como um típico bom moço com grandes valores e
condutas exemplares disposto de qualquer sacrifício pela sua família e seu povo.
O amor que os vampiros de Stoker, Coppola e Shore trazem são amplamente diferentes.
Enquanto no livro vemos um personagem que ama ser um predador, ama sua vilania e fazer
suas maldades; temos amores mais simplificados nas obras seguintes. O Drácula do primeiro
filme analisado ama sua mulher Elisabeta e sua reencarnação Mina e é motivado por isso, no
entanto, o do segundo filme ama a integridade, ser correto e proteger os fracos. O novo
Drácula deixou de ser vilão ou um homem eternamente apaixonado, agora, ele se tornou um
herói clássico que protege o bem e zela pelos inocentes.
Conclusão
A palavra adaptação, tão comum quando falamos sobre filmes que são inspirados em histórias
provenientes de outras mídias, costuma vir acompanhada sempre pela cobrança de uma
“fidelidade ao original”. Para concluirmos, precisamos, antes de qualquer coisa, nos livrar de
tal palavra, que implica adaptarmos uma história em uma mídia diferente, e por isso, torna-se
tão ligada ao conceito de “fidelidade”. Para isso, utilizaremos a palavra “transposição” que
possui possibilidades semânticas mais interessantes e consegue traduzir com mais coerência a
passagem de um produto de uma mídia a outra.
McLuhan apontava ao longo de seu trabalho que todo meio “novo” utiliza algo de meio
anteriores. Jay David Bolter e Richard Grusin no livro “Remediation: Understanding New
Media14” (2000) retornam à questão indicada por McLuhan, utilizando o termo “remediação”
para descrever o processo indicado acima e em uma seção específica, adentram a idéia de
“contar uma história através de outra tecnologia”.
14 O livro possui o subtítulo “Understanding New Media” fazendo clara alusão ao mais famoso livro de McLuhan, “Understanding
Media” traduzido para o português como “Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem” (2007). No livro “Estendendo
McLuhan: da Aldeia à Teia Global” (2011) de Vinícius Andrade Pereira, o autor destaca “[...] um meio porta um outro meio no seu
interior, como maneira de se apresentar e se traduzir para um usuário” (p.142) e discute a relação entre ambas as obras no item
7.2 e 7.3.4 do capítulo 7. Pereira refere-se mais à questão gramatical mesmo, entretanto uma parte da obra de Bolter e Grusin é
destinada aos conteúdos, tomando como exemplo uma onda de transposições fílmicas de obras de Jane Austin já a partir da
década de 90.
38
Podemos perceber então que a transposição está relacionada a uma lógica de remodelação de
elementos de uma mídia à outra muito mais complexa, porém já previamente estudada e que
não é exclusiva da indústria cinematográfica. Outro ponto importante seria compreender a
subjetividade implicada em tal processo. Roger Chartier (1996) com sua ideia de apropriação
destaca a pluralidade interpretativa existente em cada indivíduo ao entrar em contato com
uma obra. Chartier é um estudioso da história da leitura, escrita e seus suportes textuais e
desenvolve esse conceito para nos apresentar a complexidade implicada no processo de
leitura e como nos apropriamos de um texto de uma forma singular influenciada por diversos
fatores que vão desde a criação e o contexto em que algo foi lido até a própria personalidade
do leitor. Ou seja, qualquer fator que possa influenciar, mesmo que de uma forma muito
imperceptível, ou ajudar a moldar ou agregar características a alguém, também determinam,
junto com a forma como um texto é lido, a interpretação que a obra terá.
Embora seu conceito seja aplicado a suportes textuais, o mesmo se faz válido para qualquer
outra obra. A importância da ideia de apropriação surge na transposição pela singular questão
de que uma obra transposta não é apenas uma versão da anterior, e sim uma versão da
perspectiva de alguém que se apropriou dessa obra. Assim podemos perceber que tais versões
não são necessariamente o que nós entendemos ou gostamos da obra original, e sim uma
leitura baseada no que o autor (diretor, roteirista) optou por mostrar baseado na sua relação
com a obra anterior. Dessa forma, atentamos para o fato de que o diretor ou roteirista de um
filme foram consumidores antes de se tornarem produtores do filme em questão.
Assim, em ambos os filmes percebemos uma complexa relação de apropriação de um livro,
uma lenda a respeito da ligação de tal livro com um personagem histórico real e diversos
filmes feitos posteriormente. Ainda apontamos para a necessidade de adequação da
linguagem do literário para o audiovisual como um fator que nos demonstra que não há uma
verdadeira “adaptação” em outra mídia, mas uma nova versão com uma linguagem própria.
A imortalidade do vampiro de Stoker o permite transitar em diversas mídias com sua história
recontada amplamente e suas características serem remodeladas com enorme freqüência.
Drácula permanece para sempre imortal em nosso imaginário e suas diferentes histórias
sempre surgem com surpreendentes (ou nem tanto) criações.
Referências Bibliográficas
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Reaktion Books Ltd, 2008.
BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: Understanding New Media. The MIT Press,
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39
McLUHAN, Herbert Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Cultrix,
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MCNALLY, Raymond T.; FLORESCU, Radu. In Search of Dracula: The History of Dracula and
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STOKER, Bram. Bram Stoker’s Notes for Dracula: a facsimile edition. Annotated and
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VIEIRA, Maytê Regina. Drácula de Bram Stoker (1992): Uma adaptação entre Literatura e
História. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 26., 2011, São Paulo. Anais...São Paulo:
ANPUH, julho 2011.
40
Dora para ler e escrever
João Adalberto Campato Jr15, Faculdade da Alta Paulista (FAP) e da UNIESP,
[email protected]
Resumo
Neste artigo, procura-se refletir, com base na atividade escritora e leitora da personagem
Dora, do filme Central do Brasil, sobre alguns aspectos da leitura e da escrita, sobretudo no
que diz respeito à produção de sentido, ao seu caráter de interação social e a seu papel
emancipador do ser humano.
Palavras-chave: Cinema. Central do Brasil. Leitura. Escrita.
Abstract
In this article, we try to reflect, based on the writer activity and reading the Dora character,
Central Station movie, about some aspects of reading and writing, especially with regard to the
production of meaning , its character of social interaction and its emancipatory role of the
human being.
Keywords: Cinema. Central Station . Reading. Writing.
Dora é, a um só tempo, a escrevedora e a leitora de cartas de Central do Brasil, produção
cinematográfica franco-brasileira de 1998, dirigida por Walter Salles. A personagem de
Fernanda Montenegro, por meio de sua atividade profissional, representa, no universo
diegético em questão, a escrita e a leitura como procedimentos de interação social, de criação
e de negociação de sentidos, de persuasão, de catarse, de recriação da realidade e de tessitura
da história de vida das personagens que povoam o drama.
Trata-se, para além disso, da representação de uma escrita e de uma língua vivas, que estão
em ação num contexto particular, situada num determinado tempo e num dado espaço,
funcionando espontaneamente, que vai muito além daquilo que a gramática prescritiva pode
oferecer a seus conhecedores. Todas esses aspectos terminam por conferir à leitura e à escrita
destacada e messiânica relevância, principalmente num ambiente inóspito e desprovido de
maiores esperança, de apostas no futuro.
Constitui sequência significativa do filme particularmente seu início, em que Dora, no território
um tanto aberto e um tanto fechado da estação ferroviária, no espaço de quase “entre-
15
41
Doutor em Letras. Professor da Faculdade da Alta Paulista (FAP) e da UNIESP. E-mail:
[email protected]
lugares” da Central do Brasil, exercita, ainda que distante de ditames rigidamente éticos e
fazendo concessões à marginalidade, o papel de escrever cartas, de mediar um processo de
comunicação entre sujeitos distanciados pelo espaço, pelo tempo, por vivências históricas e,
acima de tudo, por experiências afetivas.
A esta altura, é preciso deixar assente que Dora, antes de escrever as cartas, é,
obrigatoriamente, uma “leitora” das histórias dos clientes. E, em seguida, uma tradutora, uma
autora. Semelhantemente, o seu cliente de autor torna-se leitor, na medida em que tem de
considerar os reparos e as sugestões da mulher que escreve a seu mando. Em definitivo, já não
se trata, como facilmente se nota, de um modelo de comunicação mecanicista, monológico e
linear. Por conseguinte, vêm à tona o polifônico, o dialógico e o intertextual.
Na função de mediadora, Dora age tal qual um conector entre as pessoas; e, nessa esteira,
também, como elemento coesivo entre a própria história do cinema brasileiro. Walter Salles
(1988) afirma que, em Central do Brasil, há o desejo de homenagear os realizadores do Cinema
Novo, nunca perdendo, no entanto, a oportunidade de dialogar com o jovem cinema brasileiro
de então.
Ao lado dessa representação da leitura e da escrita como instrumento de interação social e de
negociação de subjetividades, também se pode abordar o filme como representação – na
totalidade ou em fragmentos - de concepção particular de discurso, de escrita, de leitura e de
produção de sentido, para a qual, doravante, vamos chamar a atenção do leitor, e que muito
se beneficia dos pressupostos da Análise do Discurso de extração francesa
.A contribuição que a Análise do Discurso (AD) – de linha francesa - tem oferecido aos estudos
sobre um melhor e mais eficaz entendimento da produção e leitura de textos – sobretudo na
questão da produção de sentidos e de sua compreensão - é de relevância pode-se dizer
irrecusável. Nesse aspecto particular, as palavras de Eni Orlandi (2001, p.58) devem ser
observadas com atenção e como ponto de partida para uma breve reflexão.
A reflexão sobre o funcionamento discursivo da compreensão tem[...] um
retorno que incide sobre uma questão crucial para a própria análise do
discurso: a constituição dos processos de significação. Não é só quem
escreve que significa; quem lê também produz sentidos. E o faz, não como
algo que se dá abstratamente, mas em condições determinadas, cuja
especificidade está em serem sócio-históricas.
Se, conforme explicitado acima, a leitura é abordada como produção de sentido, ou melhor, se
quem lê é considerado produtor de sentido como quem escreve, tal visão não foi aquela que
sempre imperou nessa área. Muito pelo contrário, senão vejamos.
Vale salientar, seguindo o percurso teórico de Ingedore Villaça Kock e Vanda Elias (2010, p.10),
as concepções de leitura que mantêm o foco ou na figura do autor do texto, ou no texto em si.
No primeiro caso, a leitura seria apenas captação passiva daquilo que está muito bem
resolvido e acabado na mente do escritor. Já no segundo caso, a leitura é vista como atividade
de captação passiva do que está dito no texto. Seja como for, ao leitor resta uma atividade
passiva, de meros reconhecimento e de reprodução, sem nunca se cogitar na possibilidade de
o leitor, ele também, contribuir para a significação final e global do textos.
42
Com relação à escrita, ainda permanecendo na visão tradicional que nos é relatada por Kock e
Elias (2009, p.31-36), o processo não se modifica substancialmente, porquanto há a escrita
com foco na língua (para produzir um texto, basta ter conhecimento do código, que o leitor,
igualmente, deve conhecer; ademais, não há espaços para implicaturas, já que a linguagem é
transparente), e existe escrita com foco no escritor (sem levar em conta a figura do leitor ou a
interação que envolve o processo de escrita).
A visão rapidamente esboçado nos dois últimos parágrafos guarda, sem espaço para dúvidas,
uma concepção problemática e incompleta de leitura e de escrita. Em virtude dessa
constatação, as atividades verbais não podem passar sem a consideração e sem a influência de
alguns aspectos trazidos à luz pelas ciências da linguagem, entre elas a Análise do Discurso.
Antes de tudo, faz-se necessário postular que, para elaborar e interpretar textos com bons
níveis de eficácia, devemos ter, além da natural competência linguística e da competência
enciclopédica, a “competência comunicativa”, tal como a entende Dominique Maingueneau
(2003, p.45), ou seja, carece possuir “aptidão para produzir e interpretar os enunciados de
maneira adequada às múltiplas situações de nossa existência”.
O domínio da competência comunicativa, por sua vez, passa necessariamente pelo domínio
das leis do discurso (leis de cooperação, das implicaturas, as leis de polidez, as leis de
preservação das faces, a lei da pertinência, a lei da informatividade e da exaustividade, as leis
da modalidade, entre outras) e dos gêneros do discurso (competência genérica).
Para fins de balanço, é lícito afirmar, então, que a competência linguística, a
competência enciclopédia e a competência comunicativa atuam na atividade verbal, “em sua
dupla dimensão de produção e de interpretação dos enunciados: domínio da língua,
conhecimento do mundo, aptidão para se inscrever no mundo por intermédio da língua”
(MAINGUENEAU, 2013, P.46).
Reportando as observações até aqui exaradas a um domínio mais concreto é prático,
torna-se fundamental levar em consideração os seguintes aspectos.
Importante fator que se coloca a quem queira abordar a escrita e a leitura à luz dos
contributos da Análise do Discurso é o da própria natureza do discurso em si. Nesse sentido, as
formulações de Helena Nagamine Brandão (2013, p..19-20) são essenciais e devem ser levadas
em conta:
•
O discurso vai além do patamar puramente gramatical, linguístico. O
nível discursivo de análise chega aos aspectos extralinguísticos que
condicionam sua produção;
•
O discurso diz respeito a enunciados concretos, a falas/escritas, que, de
fato, foram enunciadas (diferentemente das frases presentes nos livros de
gramática);
•
Os estudos do ângulo da Análise do Discurso procuram descrever o
funcionamento da língua no seu emprego concreto e efetivo, examinando como
ocorre a produção de sentidos entre sujeitos situados social e historicamente;
•
No âmbito do discurso, o falante/ouvinte, escritor/leitor devem ter
conhecimentos linguísticos, dominando as regras da língua, e também
conhecimentos extralinguísticos, indispensáveis para produzir discursos
condizentes aos variados contextos de comunicação.
43
É bom de salientar que as propostas acima caracterizam a análise do discurso de linha
francesa, mormente na direção de que dão extrema atenção aos aspectos externos à língua.
No juízo de Brandão (2013, p.21),
além do contexto imediato da situação de comunicação, compreendem os
elementos históricos, sociais, culturais, ideológicos, que cercam a produção
de um discurso e nele se refletem. Considera-se o espaço que esse discurso
ocupa em relação a outros discursos produzidos e que circulam na
comunidade.
Nesse quadro, não é custoso concluir que a produção de sentidos por meio de textos verbais,
bem com a extração de sentidos de textos, significa, por exemplo, para a escola, para os
alunos e para os professores, um conceito de ensino-aprendizagem bastante amplo, que vai
desde o conhecimento da língua portuguesa (gramática, estilística, pragmática, retórica,
análise da conversação), da capacidade de ler o mundo social, histórico e cultural; da
habilidade de delinear o perfil de quem nos lê e escuta; da capacidade de encontrar
intertextualidade; da ciência de saber que, dependendo dos objetivos e do local de recepção
do texto, este deverá possuir determinada configuração e, como não poderia deixar de faltar,
de saber produzir e interpretar o mais variado número de gêneros textuais ou discursivos.
Com base no que atrás ficou exposto até o presente instante, torna-se bastante funcional o
conceito de discurso fornecido por Elisa Guimarães (2009, p.89), que põe acento no caráter de
evento comunicativo do discurso, de efeito de sentido construído no processo de interlocução:
Entidade histórica (ideológica) que se elabora socialmente, através de sua
materialidade específica, que é a língua manifestada no texto. É próprio do
discurso privilegiar a natureza funcional e interativa e não o aspecto formal
e estrutural da língua.
Prosseguindo nessa direção, e capitaneados, ainda, por Brandão (2013), e por Maingueneau
(2013), a Análise do Discurso leciona alguns tópicos que são de consequência fulcral para as
atividades de produção e leitura de textos. Vejamos alguns deles.
•
Os sentidos se formam na interação entre autor, texto, leitor. O sentido, portanto, é
dialógico, resultante de uma interação. A importância do que o autor “quis dizer” deve ser
relativizada.
•
O sentido não preexiste à interação que foi mencionada acima. Isso é muito relevante
para atividades de interpretação de textos, em que o professor solicita ao aluno que
depreenda “o” sentido do texto. Os sentidos, na verdade, se fazem a cada leitura. Como
aponta Orlandi (2001, p.60), eles são produzidos, nunca surgem do nada.
•
As palavras são plurissignificativas.
•
O conceito de heterogeneidade
•
A linguagem não é transparente, mas opaca
•
A importância das condições de produção do discurso, quer dizer, do contexto sóciohistórico-ideológico que envolve os interlocutores;
44
•
A questão do ethos, isto é, da imagem construída pelo discurso. Por sinal, conforme
ressalta Elisa Guimarães (2009, p.90), há uma rica construção de imagens baseadas no
processo de interação: “o locutor não constrói o seu discurso divorciado da imagem que
convoca do seu alocutário. O locutor não apenas modela seus discurso, mas também dá corpo
à imagem do outro a quem o discurso se destina e, além disso, configura-se a si mesmo ao
plasmar sua própria imagem no interior do discurso que produz”.
•
O conceito de formulação ideológica e discursiva
•
Sujeito do discurso marcado pela historicidade
•
O discurso é uma forma de ação sobre o outro
•
O discurso precisa ser considerado no interior de outro discurso.
Para pôr término a essas reflexões teóricas panorâmicas e meramente introdutórias,
gostaríamos, tão somente, de tentar equacionar uma dúvida que deve ter se formado ao longo
destas páginas, qual seja, a da distinção – possível ou não - entre discurso e texto.
Há pesquisadores da área que não veem nenhuma necessidade em labutar em semelhante
distinção. Porém, não é isso que realmente se verifica com a maioria dos cientistas da
linguagem, entre os quais nos incluímos. Por conseguinte, com vistas a tentar uma distinção
nesse sentido, seguiremos o norte indicado por José Luiz Fiorin (2012).
Para o linguista paulista, ainda que os dois elementos sejam do domínio da enunciação e
embora sejam “todos organizados de sentido”, eles acabam por se diferenciar em seu modo
de existência semiótica. Isso porque o discurso é da ordem da imanência, ao passo que o texto
é do domínio da manifestação. Mais ainda: o discurso pertence ao plano do conteúdo; já o
texto é do plano da expressão.
Disso tudo resulta algo de inegável importância para as pesquisas que lidam como ambos os
conceitos e mesmo para os professores que trabalham com uma perspectiva discursiva em
suas aulas de produção e leitura de textos: “O mesmo discurso pode concretizar-se em textos
muito diversos” (FIORIN, 2012, p.148), ou, em outras palavras, um mesmo discurso pode ter
várias realizações textuais.
A título de lembrança, no princípio do filme, em meio à movimentação frenética da Central do
Brasil, o expectador se vê às voltas com numerosas cenas em que Dora, sentada a uma mesa
simples, atende a vários utilizadores da ferroviária, que, por serem analfabetos ou não serem
dotados ainda de competência comunicativa suficiente para escrever uma carta pessoal e,
posteriormente, enviá-la, recorrem aos serviços pagos da escrevedora. Trata-se de situação
em que é que a língua é flagrada em sua ação real, em seu funcionamento interativo, vivo e
dependente dos fatos contextuais.
As pessoas, então, ditam as histórias a Dora, que, por sua vez, as completa, reinventa, julga ou
mesmo as anula, dando-lhes, neste derradeiro caso, o destino da lata de lixo. Por vezes, Dora é
ditatorial nas decisões; por vezes, ela negocia o sentido das correspondências com seus donos
e donas, que, quase sempre, são vencidos pelo discurso persuasivo da escrevedora, que
45
transmite um ethos de pessoa honesta, séria e detentora da cultura letrada. Todo esse
conjunto de ações sinalizam para o fato de que a língua está longe de ser uma realidade
transparente; é, pelo contrário, um fenômeno opaco.
Dito isso, torna-se conveniente retornar à senda que gostaríamos de percorrer brevemente e
que sinaliza para a representação de uma concepção particular de escrita e de leitura, e, no
final das contas, de discurso, que se pode bem exemplificar tomando como parâmetro o
premiado filme Central do Brasil.
Tal concepção é aquela que aborda o sentido dos textos como fruto de processo de leitura,
que é originário da interação entre autor, texto e leitor. Nesse aspecto, o significado não está
previamente inscrito no texto, mas se constrói por meio de um programa interativo, de
negociação de subjetividades. Trata-se, pois, de abandonar o modelo psicolinguístico de leitura
em favor de um modelo de feição construtivista.
O sentido das leituras não seria, portanto, fixo nem estável, e tampouco seria independente
das condições temporais, históricas e sociais em que se processa a leitura, numa visão
nitidamente logocêntrica. Seria ele trazido à luz no momento da leitura mesma, de acordo com
as participações do autor e do leitor e com as pistas ou os rastros deixados pelos textos, como
a legitimar as várias possíveis isotopias.
Dora, ao escutar o relato dos clientes, recebe um texto verbal, na modalidade oral, que precisa
ser registrado graficamente no papel, com um mínimo de coerência possível. Num primeiro
estágio, na qualidade de leitora do texto, ela adota uma postura francamente ativa, que
permanece distante de procedimento de simples decodificação, que se acreditou, ao longo de
considerável tempo, ser típica ou mesmo ideal do leitor.
Dora, de acordo com as circunstâncias e com as variáveis, produz, da mesma forma, sentidos,
investindo suas subjetividades nos textos alheios, preenchendo-lhes as lacunas visíveis e
invisíveis, negociando significados, tornando-se, ao fim e ao cabo, real co-autora de tais textos,
dessas correspondências, cujo conteúdo reveste com vocábulos, que, na maior parte dos
casos, não pertencem ao repertório léxico dos clientes. Da mesma forma, ela adquire papel
fundamental na gestão do continuum que atravessa as relações entre a língua escrita e a
língua falada. Veja-se, para o caso das negociações semânticas, o diálogo instaurado entre
Dora e um rapaz que se valeu de seus serviços para escrever à mulher com quem tiveram um
noite de sexo, e a quem se refere como “meu tesão”:
Rapaz: Meu tesão.
Dora: Meu Tesão?
Rapaz: Sentir o seu corpo junto do meu, carnes se unindo naquela cama de
motel, nosso suor se misturando. Eu ainda me sinto, me sinto...
Dora: Embriagado.
Rapaz: Isso, Embriagado!
Dora tem a arguta sensibilidade de que, ao redigir as centenas de histórias de vida que elabora
na Central do Brasil, não escreve à luz de situações abstratas, como se respondesse a
exercícios de uma gramática normativa, mas que, pelo contrário, necessita adequar os relatos
verbais às condições de produção e de recepção dos textos escritos. Daí que, imaginando tanto
46
quanto possível, o perfil do destinatário dessa ou daquela missiva, sugere que um vocábulo
seja alterado ou que uma expressão seja acrescentada por amor a polidez, a lei de cooperação,
ou para evitar ambiguidades, polissemias e outros equívocos futuros. Nada é transparente,
nada é evidente e divorciado do contexto.
A despeito de flertar, aqui e ali, com a pequena marginalidade carioca e de momentos de falta
de caráter (ficava, por exemplo, com o dinheiro das muitas cartas que terminava por não
enviar aos destinatários), Dora, tanto quanto possível, se redime disso, em larga escala, como
profissional da linguagem e como ser humano, fazendo a “travessia” roseana do menino Josué
– representado pelo ator Vinícius de Oliveira -, conduzindo-o, tal qual numa telemaquia - à
família distante, restituindo-o às primeiras origens, que darão à criança – quase em pane
identitário - uma identidade, agora que já não tem mãe, atropelada que esta fora nas
imediações da Central do Brasil. Identidade tal, frise-se, que o menino poderá assimilar e
negar, ressemantizando-a a seu gosto, com base em novos contatos e em vivências humanas
recalibradas.
Dora teve - bem feitas as contas - hombridade o bastante para, depois de ler e depois de
escrever o texto/discurso da vida do pequeno, despossuído e desamparado Josué, representálo como numa imensa peça teatral, com laivos de tragédia, de comédia, de melodrama, e em
que de narradora passou a fazer as vezes de personagem protagonista, agindo e agindo mais
ainda, como justamente demanda o texto dramático, até mesmo na sua etimologia, em que se
demanda, no fundamental, por ação.
Referências
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47
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48
A figuração do leitor em Medianeiras: poética do desencontro
Jean Pierre Chauvin (USP), [email protected]
“Super-homem deve optar entre dois males: deter o tornado que ameaça
centrifugar uma cidade inteira ou impedir que um cego mendicante tropece
e caia na sarjeta” (Alan Pauls).16
Resumo: Medianeiras retrata a visão crítica de dois habitantes de Buenos Aires, acometidos
por sérias dúvidas quanto à cidade, o apartamento onde moram e a possibilidade de
reencontrar o amor. A despeito dos diálogos sensíveis e inteligentes, o filme retrata um
ambiente em que não parece haver espaço para livros e leitores.
Palavras-Chave: Medianeiras, Cinema Argentino, Leitura.
Abstract: Medianeiras movie portrays a critical view of two Buenos Aires's inhabitants which
are affected by serious doubts about their city, the apartment where they live and the
possibility of finding love. Despite the sensitive and intelligent dialogues, the film depicts an
environment on where is no space for books and readers.
Keywords: Medianeiras, Argentine Cinema, Lecture.
Recepção
É perfeitamente compreensível que o filme Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual
(2011)17 tenha caído da melhor forma no gosto de diferentes públicos, por ocasião de seu
lançamento. A história já havia conquistado diversos prêmios seis anos antes, quando Gustavo
Taretto divulgara seu curta-metragem homônimo, com duração de pouco mais de 28
minutos.18
Combinando a temática do amor a discussões pertinentes sobre o espaço urbano de Buenos
Aires, uma “cidade que dá as costas ao rio”, ambos os protagonistas (Martín e Mariana)
padecem com a paisagem, questionam as respectivas condições de moradia e enfrentam os
dias a driblar a melancolia, em meio a “edifícios que se sucedem sem nenhuma lógica, como
nossas vidas”.
Sintoma de sua qualidade fílmica e relevância temática, em quatro anos o longa-metragem
passou a integrar os acervos relacionados ao cinema das lojas de São Paulo, classificado como
16 A história do pranto, 2008, p. 7.
17 Intitulado simplesmente Medianeras, na versão argentina.
18 Na versão em longa-metragem (2011), o filme dura uma hora e meia. O curta (2005) foi
protagonizado por Moro Aghilleri e Javier Drolas.
49
um título do chamado gênero cult, disponibilizado em diferentes suportes físicos (DVD e BluRay).
Nesse caso, a disseminação em larga escala assegurou um lugar de destaque a essa comédia
romântica, dirigida pelo experiente Gustavo Taretto e protagonizada pelo argentino Javier
Drolas e a espanhola Pilar López de Ayala: dois jovens e talentosos atores.
À época de seu lançamento na versão estendida, em junho de 2011, diversas sinopses e
resenhas se sucederam, favorecidas pelos mecanismos do mundo ciber. No Brasil não foi
diferente: numerosos comentários chegavam ao público, por meio de matérias, entrevistas e
vídeos promocionais, em que diretor e atores eram ouvidos.
Dentre os artigos divulgados em jornais brasileiros, deve-se mencionar aquele de Neusa
Barbosa (julho de 2011), do site UOL Cinema, em que ela reproduziu breves comentários, do
ator que interpreta Martín, a respeito das similaridades entre Buenos Aires e São Paulo, ambas
percebidas como cidades “melancólicas”.
A opinião de Javier Drolas leva-nos a retomar as palavras iniciais com que sua personagem
descreve a capital argentina, tendo em vista as efetivas similaridades – tanto do ponto de vista
urbanístico, quanto sobre a vida isolada que os paulistanos levamos, dissolvidos em meio à
massa de indivíduos apressados, ciosos por imitar a arquitetura, a moda, o cinema e a música
de outras megalópoles.
A jornalista Fabiana Seragusa (setembro de 2011) trouxe uma entrevista reveladora com
Gustavo Taretto, na Folha de S. Paulo. Na opinião do diretor e roteirista argentino, Medianeras
retrataria a “Solidão urbana. A solidão que sentimos quando estamos rodeados de
desconhecidos. A das cidades em que as pessoas se sentem mais seguras entre quatro
paredes. A solidão do delivery. A solidão da mensagem de texto e do e-mail”.
Em artigo publicado no Jornal O Globo, Gisele Teixeira fez comentários pertinentes em relação
ao filme, com ênfase nos conflitos emocionais e na vida solitária que os protagonistas
enfrentam (outubro de 2011). Àquela altura, o filme também rendeu um encontro entre o
diretor e a filósofa brasileira Márcia Tiburi, durante evento organizado pela 2001 Vídeo –
conhecida e badalada locadora de filmes de São Paulo.
Roteiro
Em sua condução, Medianeras alterna cenas muito divertidas, especialmente aquelas em que
Martin relata as questionáveis conquistas esportivas (nos jogos de videogame, é claro) que foi
capaz de empreender sem deixar a kitchenete, ao abrigo das pessoas e das ruas. Tudo isso em
constante companhia do tédio e da síndrome de pânico: dois sintomas nada desprezíveis que
refletem sua dificuldade em fazer e manter contato com as pessoas, sem o amparo do
apartamento onde mora ou o anteparo dos meios eletrônicos de comunicação.
Comparativamente, os episódios mais dramáticos e tensos são aqueles vivenciados por
Mariana – a jovem que trabalha como vitrinista em lojas da cidade. Menos tímida e mais
exposta ao turbilhão das ruas, que o seu vizinho Martín, ela protagoniza as cenas mais densas
50
do filme: a fuga de um jantar em andamento; a conversa fiada de um homem que a aborda na
piscina; a sensibilidade aflorada enquanto escuta o novo vizinho tocar piano.
No que diz respeito à estrutura e argumento do filme, estamos diante de um curioso
paradoxo: o enredo se articula justamente em torno dos desencontros (consigo mesmos, mas
também coletivos) e das expectativas dos telespectadores a respeito do (futuro) casal.
Apesar de morarem bem perto – de uma medianeira a outra – e cruzarem seus caminhos em
diversas ocasiões, Mariana e Martín só vão se reunir nos instantes finais do filme: ocasião em
que ela enxergará nele (aquele sujeito de óculos, acompanhado do cão deixado pela exnamorada, vestido com indumentária peculiar, à espera do semáforo passar do vermelhointerdição ao verde-esperança) o amor que ela procurava, sem sucesso, nos homens com que
se relacionara.
Quando encontra o amor, a chance de felicidade transforma Mariana em uma mulher
radiante. A seu ver, Martín (cujo nome ainda ignora) seria a versão portenha e não ficcional do
personagem Wally – a célebre figura do livro de entrenimento publicado pelo ilustrador
britânico Martin Handford em 1987. Esse dado é particularmente relevante, mesmo porque
Mariana não parece ser uma leitora contumaz de palavra impressa.
Note-se que as coincidências entre Martín (um webdesigner e autêntico geek que se protege
do mundo em “quarenta e poucos metros quadrados”) e Wally (o personagem adulto
escondido no livro, em tese voltado para crianças) ultrapassam o âmbito da ficção juvenil,
ilustrada na forma de livro. Além de coincidirem na estereotipia física (uso de óculos, gorro e
blusa listrada), ambos se irmanam na identidade: Martin, vale relembrar, é o primeiro nome
do autor de Onde está Wally?.
Em termos mais amplos, o filme parece sugerir que a busca pelo amor envolve superar as
frustrações afetivas e persistir em seu encalço, ainda que a passagem implacável do tempo e a
incompatibilidade com determinadas pessoas tendam a nos desanimar e nos levem a supor
que o problema maior esteja em nós.
Poderíamos afirmar que Martín se encaixa no tipo nerd (ou em sua variação geek, de acordo
com as terminologias mais recentes): ele coleciona brinquedos, joga videogame e tira seu
sustento profissional como webdesigner.
Por sua vez, Mariana divide os dias entre o tédio sem fim de seu pseudo duplex (“separado por
cinco degraus”) com a rotina de vestir manequins e organizá-las em vitrines de lojas.
Como se vê, ambos tiram seu sustento da habilidade em cuidar e enfeitar a vida (sites e
vitrines) dos outros, o que evidencia o fato de estarem habituados a lidar com elementos
predominantemente estéticos. Não por acaso, o mundo virtual está nas mãos de um sujeito
que sofre de pânico; já o mundo das ruas está sob a atenção de uma mulher que trabalha
solitariamente nos bastidores de uma loja de roupas. Ambos se especializaram em dar trato
profissional à fachada de seus clientes, em suma.
A notória dificuldade de relacionamento, demonstrada tanto por Martín quanto por Mariana,
reflete-se em sua reduzida comunicação interpessoal e se confirma no emprego da linguagem
51
virtual. Em uma cena mais ou menos localizada na metade do filme, eles trocam uma série de
mensagens por intermédio de um programa de chat. Martín se autodemonima como um
usuário “mega-avaiable”, num dos momentos altos, em humor e drama, do filme. Coerente
com sua concepção, talvez mais infantil que a de Mariana, ele transmite seu número de
telefone, sugerindo um pacto a ser cumprido em um horário pré-determinado.
Por sua vez, Mariana vivencia mais as ruas que o seu vizinho. O fato de decorar vitrines obrigaa a percorrer diversos bairros da cidade, alternando suas tarefas em postos de trabalho. A
exemplo de Martín, ela é uma personagem decididamente ambígua, pois o fato de se mostrar
fechada para balanço, em termos afetivos, não a impede de conhecer e se relacionar com
algumas pessoas, como resultado de encontros espontâneos.
Mas, de maneira similar a Martín (que se envolve com uma mulher confusa que cuida de
cachorros), o resultado de seus breves enlaces costuma ser frustrante, se não desastroso.
Por outro lado, há importantes diferenças em sua forma de viver. Se Martín passa a maior
parte do tempo em sua kitchenete, escura e iluminada apenas pela tela de seu
microcomputador, Mariana convive com alguma luz que chega pelas esprimidas janelas de seu
apartamento: um lugar que beira o impessoal, praticamente sem quadros nas paredes, repleto
de espaços vazios devido à pequena quantidade de móveis e demais objetos.
A personalidade de ambos parece adequar-se ao ambiente em que sobrevivem: de coloração
melancólica e pouco favorável a receber visitas. Martín ocupou ao máximo seus quarenta e
poucos metros (substituir a cadeira de trabalho é seu primeiro grande feito), que funcionam
como seu refúgio. Mariana não investiu tudo o que poderia em seu pseudo “duplex”: lugar de
intervalo. É que, para ambos, a vida em potencial está do lado de fora. Quando falta luz na
quadra em que moram, ambos terão seu primeiro encontro, habilmente escondido pelo
diretor, pois à luz de velas.
Dentre os objetos que manuseiam, Mariana possui uma xícara – com o seu nome gravado.
Martín vive a refrear o desejo de abrir a embalagem de um boneco japonês. É emblemático
que, em dado momento, ela despedace a louça, atirando-a na parede (Fragmentação de sua
personalidade? Desejo de refazer a sua vida? Indignação com a existência que leva?). É
relevante que Martín rompa a embalagem que o separa de seu brinquedo, justamente depois
de abrir uma medianeira em sua apertada e lúgubre morada, a exemplo de sua vizinha.
A abertura de pequenas janelas nas paredes laterais – até certo ponto inúteis – dos prédios em
que habitam (prática bastante comum em Buenos Aires, para além do roteiro de Taretto)
revela não só a convergência de caminhos, mas em especial a necessidade de luz, arejamento,
sol. Falta novidade, falta coragem. Muito mais importante que o emprego sob demanda e
instável orçamento mensal, é o amor que trará as respostas, dará maior estabilidade e sentido
à existência vazia.
Sob esse aspecto, a medianeira passa a ser mais que uma janela de onde se vê as coisas sob
outra luz. Ela acumula, também, o papel de um portal em comunicação direta com a alma de
ambos os protagonistas. Em entrevista concedida durante o Festival de Gramado, Javier Drolas
52
observou que “as personagens são obrigadas a sair, a encontrar-se com a vida”
(TIEFENTHALER, 2011).
A seu turno, a atriz Pilar López de Ayala ressaltou, em certa ocasião, que o fato se a história se
passar em Buenos Aires não implica que não pudesse acontecer em Madri ou em qualquer
outra cidade do planeta, pois o filme envolve temáticas universais.
Livro
Martin e Mariana manifestam outro traço em comum: o hábito de não cultivarem a palavra
impressa. Para alguém habituado a enxergar no objeto livro uma das formas mais imperiosas
de se instruir ou divertir, a cena em que Mariana termina o relacionamento com seu exnamorado pode soar estranha, especialmente em razão de seu posicionamento crítico perante
o território em que vive.
Na cena, Mariana está na cozinha, observando o parceiro. Enquanto ela está em pé,
preparando algo para comer, ele lê concentradamente um livro, devidamente acomodado em
uma poltrona. Nesse momento, ela conclui que eles não tinham nada a ver.19
Eis um episódio que permitiria algum questionamento, tanto sobre Medianeras, quanto sobre
a representação do livro em demais filmes, seriados e novelas em nosso tempo.
De fato, apesar de sua inegável preponderância cultural, o objeto livro não costuma
protagonizar cenas de diversos títulos e suportes, afora quando cumpre o papel acessório de
sintetizar determinado período histórico, como símbolo de determinada mentalidade ou
hábito de outro tempo. É o que se vê, por exemplo, nos filmes baseados no romance epistolar
e Chordelos de Laclos (As ligações perigosas) e no romance doméstico de Jane Austen
(Orgulho e preconceito).
Somos tentados a perguntar: 1. Será possível que o fato de haver leitores (e não-leitores) em
uma relação afetiva potencialize incompatibilidades e precipite o término de um
relacionamento? 2. Por que razão o hábito de ler costuma ser representado, mormente em
nossos dias, como algo que só fazemos por motivos puramente pragmáticos (consulta a
manuais, dicionários, contratos e afins) ou acessórios (leitura contra o tédio ou como gesto
paliativo, quando não há mais nada para fazer)?
Alguns responderão que isso se deve às aceleradas voltas do mundo pós-moderno, que nos
distanciou das outras pessoas, blindou-nos emocionalmente e nos mostrou que a concepção
utilitária do mundo impede que nutramos cutivos de outra sorte, especialmente aqueles que
dizem respeito ao aprimoramento de nossas faculdades emocionais e mentais.
Outros poderão argumentar que o cinema apenas reproduz aquilo que a maior parte das
pessoas vivencia. Ou seja, substituímos a leitura linear e constante pelo acesso a micro-textos
(frequentemente lidos diagonalmente), vídeos, músicas convertidas para centenas de arquivos
19 Fruto de uma provável ironia do diretor e roteirista Gustavo Taretto, quem interpreta o exnamorado de Mariana é o talentoso romancista argentino Alan Pauls – autor do sensível
livro A história do pranto, publicado no Brasil em 2008.
53
mp3 e intermináveis imagens divulgadas por milhares de conhecidos nas redes sociais. Muitos
deles, incapaz(es) de dar a mínima atenção aos demais, mas sequiosos das máximas opiniões
alheias – expressas sob a forma de validação virtual.
Para alguém acostumado a ler, e que acredita nas várias potencialidades (e algumas
liberdades) propiciadas pelos livros – que estimula a memória, o conhecimento e a imaginação
– o fato de ler não deveria constituir em diferença incontornável ou razão irreconciliável para o
desentendimento entre uns e outros.
Sob a ótica de um professor que se defronta há muitos anos com a tarefa de despertar o gosto
pela leitura em seus alunos, a questão é ainda mais delicada e, portanto, demanda contínua
reflexão. Como negar a relevância do livro, como objeto cultural e veículo mediador das
muitas formas de entretenimento e aprendizado?
Reflexão
É oportuno levar em conta as palavras de Gustavo Taretto a respeito de seu filme, diversas
vezes premiado, nacional e internacionalmente: “Medianeras não é um filme trágico, porque é
contado pelo lado do humor. O ponto de vista é de esperança, porque os personagens se
negam a resignar-se ao mundo virtual” (Folha de S. Paulo, 2011).
Porventura haja uma saída positiva. Talvez o roteirista (que também dirigiu o filme) buscasse
mostrar que a falta de contato com a música e a literatura sejam razões para o tédio, a
melancolia e a solidão em que sobrevivem os personagens.
É sintomático que, além de não terem o hábito de ler, ambos costumem ouvir músicas
estrangeiras, cantadas em Inglês. Podem ser detalhes de somenos importância, mas sugerem
voltar ao filme ainda outra vez.
Medianeras também mostra o que acontece na existência miúda de muitos de nós,
telespectadores. Sob esse aspecto, Buenos Aires pode representar qualquer cidade urbanizada
e plena de indivíduos vazios de nosso planeta, tão só pragmático, padronizado culturalmente e
mega individualista.
Sob uma aparente historieta de amor com final feliz, mal se escondem algumas das principais
questões contemporâneas a que nem sempre prestamos a devida atenção – nem mesmo
quando apresentadas a nós mesmos, na grande tela do cinema.
Talvez o maior achado de Medianeras seja favorecer a abordagem de questões aparentemente
banais, comuns aos seres humanos em geral, de modo sublime e delicado. Sob esse aspecto, o
filme ultrapassa em muito a categoria de programa de entretenimento, pois nos coloca diante
de duas personagens cativantes que, a exemplo de nós, lutam por dar sentido à existência. Em
meio ao asfalto, a despeito das relações fugazes e impessoais e apesar de si mesmos.
Bibliografia
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55
Capítulo 2 Artemídia Ambiente
A experiência autoral transmidiática em Pussy Jane Allsteam
Fernanda Nardy Bellicieri, Universidade Presbiteriana Mackenzie, [email protected]
Resumo:
O presente artigo tem como objetivo analisar um trabalho autoral de construção de
personagem em seu processo de transcrição do texto literário para a cena hipermidiática em
formato websérie. Para além das questões estéticas e de linguagem próprias aos diferentes
meios, e que inevitavelmente gravitam quando da constituição das narrativas, o foco de
discussão está na análise de como o modo procedimental de pensar os diferentes meios
interfere diretamente na concepção da personagem e em sua evolução na narrativa,
sobretudo no caso do formato webserie. O intuito não é uma análise que seja extrapolada a
qualquer tipo de personagem ou autor, mas mostrar através de um estudo de caso, em todas
as suas variáveis reguladoras ,como a partir de uma experiência autoral, autor e personagem
fundem-se e se complementam-se na questão da autoria auxiliados pelo estriamento
transmidiático.
Palavras-chave: personagem; transmídia; autoria; narrativa.
Abstract:
This article aims to analyze an authorial character work construction on its transcription
process: from literary text to hypermedia format. In addition to the discussion about aesthetic
and specific media languages issues, that inevitably gravitate when concerning narrative
constitution, the focus is in the analysis of how the procedural way of thinking in different
medias affect the character's the design and its evolution in the narrative, especially in an
webserie format. The intent is not create an analysis that can be extrapolated as a rule to any
character or author, but to show through a specific case study, in all its regulatory variables,
such as from an authorial experience, author and character merge and complement
themselves in transmedia creation process.
Keywords: character; transmedia; authorship; narrative.
Pussy Jane Allsteam: uma experiência narrativa em processo
A personagem Pussy Jane teve seu início em formato literário seriado, surgiu-me em uma série
de contos e crônicas derivados da mesma temática central: o papel da mulher na atualidade,
seus dilemas em relação a posicionamento, questionamentos sobre sua função social e
expectativas, reais ou forjadas. Pussy Jane é uma personagem que, claro, empresta muito de
sua autora (creio que todos os personagens o façam) mas que, enquanto personagem, possui
56
sua autonomia, que lhe é conferida algoritmicamente: uma vez que um personagem possua
estrutura bem definida, por mais que tenha pedido emprestado da experiência do autor,
distancia-se dele em termos de lógica estrutural.
É aparentemente o mesmo processo que se tem na relação entre ator e fisicalidade e lógica de
um personagem, com a diferença de que, enquanto autor, tem-se uma cumplicidade autoral
de partida com a personagem; enquanto autores, acompanhamos e fomos cúmplices de seu
nascimento. O ator adota, o autor pari. Nesse sentido a experiência do autor-intérprete parece
ser única, contaminada de uma propriedade que é corpo, lógica, gênese; é poder criar o
algoritmo e tecer-lhe as variáveis, afinal o autor tem controle sobre história da personagem e
contextos a que este será exposto. Ainda que a autonomia do personagem seja conquistada, é
a autonomia através do autor.
Figura 1: imagem de capa do canal de youtube da personagem Pussy Jane Allsteam
Fonte: produção autoral de arquivo pessoal.
Uma relação: em princípio inofensiva, de descrever teses sobre o mundo e percepções que, de
repente, percebi, autora, já não eram mais parte ou assinadas por mim; eram de uma outra
personalidade que, sim, possuía pontos de intersecção, mas nascia-me de uma lógica
diferente, de uma pressa outra, um tempo atemporal. Uma companhia: que me trazia
lembranças da infância misturadas a uma infância que não tinha tido, lembranças de
circunstâncias não vividas, mas tão vívidas que eram (e não mais) minhas, me pertenciam e
não pertenciam, não me definiam mas me definiam por espaço cedido, por compaixão e
profundo respeito à alteridade. Meus impulsos autorais, percebia, eram correlatos e muito
parecidos à apropriação que fazia, enquanto corpo físico, do outro, do personagem; era
correlato a meu processo de construção de outros, enquanto atriz. A corporificação dada via
texto, enquanto autora de personagens, era a mesma corporificação dada enquanto corpo
físico e emocional, quando enquanto atriz. O personagem, enquanto autor de mim, autora, era
o mesmo que tomava-me no corpo próprio enquanto atriz.
Desse processo de escrita, nunca linear, surgiu a personagem Pussy Jane Allsteam sob formato
texto. Transitava Pussy Jane via diferentes contextos, sob formato de contos e crônicas. A não
linearidade era uma necessidade da personagem (a ela não bastaria uma só história) e
57
também uma necessidade da autora, de conhecer aquele outro que lhe conhecia tão bem, que
emprestava características de si. Era necessidade de ambas, Pussy Jane e Fernanda,
conviverem por muito mais do que um conto, ou dois.
Assim surgiu o livro "Contos de F... ", uma coletânea de histórias, ou de resultados das
diferentes variáveis narrativas a que expunha Pussy Jane Allsteam. Mas o livro, após concluído,
não foi suficiente para que me desvencilhasse da personagem; surgiu a necessidade de sua
presença física: Pussy Jane não deveria ser apenas papel. Meu algoritmo enquanto atriz,
achava o verbo insuficiente.
Acredito que caminhamos rumo a uma oralidade nova, de um tipo
diferente - mutação que será certamente muito difícil de assumir. Em
direção a uma oralidade que, graças ao audiovisual, aos meios eletrônicos,
não exige mais a presença física, mas permanece muito ligada à visualidade.
Não diria que a escrita, a literária em particular, tenha desde já perdido seu
estatuto. Mas pergunto-me que função ela ainda desempenhará em vinte
anos. Pode ser uma função puramente utilitária? A ideia da literatura como
algo venerável, contendo autoridadee valor estético, merecendo uma
atenção particular, vai se esmaecer, sem dúvida[...] (ZUMTHOR, Paul, 1995,
pg 111).
Foi dessa necessidade de tornar a personagem mais presente que apostei em sua versão
audiovisual seriada, formato websérie, por motivo de praticidade autoral e, invariavelmente,
maior tempo de exposição à autoria; além de o formato seriado ser adequado ao modo de
experimentar a personagem que havia desenvolvido enquanto texto, desenhando-a não
linearmente, através de diferentes crônicas literárias em "Contos de F…”.
Uma outra questão aqui, que se liga diretamente à motivação da criação da websérie, é o fator
financeiro e a possibilidade real e muito palpável de desenvolvimento da série na mídia
internet. O custo de produção é muito baixo se comparado a qualquer outra mídia e formato
e, em termos de alcance de público, as possibilidades nunca foram maiores. Sob os aspectos
viabilidade de produção, custo de veiculação e alcance de público, fatores que, dependendo
do formato em questão, tornam-se muitas vezes excludentes (por exemplo, teatro de rua
pode ser feito a baixo custo, mas em termos de público, não existe qualquer tratativa de
recorte de nicho e o alcance restringe-se ao tempo real da performance); sob diversos
aspectos de viabilidade, nunca houve modo mais interessante de se produzir ou possibilidade
de autoria encontrar eco, quanto quando do advento da internet como ferramenta de
produção, divulgação, exibição e interatividade entre autor e público; e entre autor-ator e
público, no caso da personagem desenvolvida. A websérie é hospedada em site próprio e está
em sua terceira temporada (treze episódios por temporada), contando tanto com episódios
audiovisuais quanto com crônicas.
O que mudou em relação à autoria quando do foco apenas no texto? Muita coisa: Pussy Jane
agora possui um corpo físico, o próprio corpo físico da autora que lhe havia emprestado a
estrutura dos sentidos necessária à percepção e a sua constituição algorítmica. A escrita
passou a ser muito mais fluida e o estilo do texto, muito mais autoral. O texto da personagem
tornou-se corpo próprio, com características mais delineadas de uma sua lógica, que descobri,
bem diferente da minha. Enquanto atriz, de mesmo modo, o texto improvisado passou a surgir
com mais frequência, inclusive durante as gravações. Frases e falas que talvez, enquanto
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somente autora, jamais surgiriam. O texto, muitas vezes se resolve quando da ação, em cena,
da personagem. A essa cumplicidade alia-se também o fator pós-produção: as edições de
imagem são feitas pela autora-atriz.
Existe, portanto, um controle do caos narrativo levado às últimas consequências: até o último
instante (que inexiste) existe a possibilidade de mudança ou alteração da história; o processo
autoral nunca termina e é reiterado a cada etapa de concepção do produto final. A repetição
do processo, a cada novo episódio (escrita do texto, produção, gravação, revisão de material,
edição, divulgação) nunca é, em si, uma repetição, mas uma reiteração do potencial narrativo
dos algoritmos de autor e personagem, dentro de uma narrativa muito maior: a construção de
personagens pelo autor e a construção do autor pelo personagem.
Sobre as questões de autoria e alteridade na concepção narrativa e consequentemente na
evolução e trajetória da personagem, algo interessante a pontuar: o colaborativo, apesar da
insistência narcísica do autoral, tem se tornado bastante forte. Desde as vozes polifônicas dos
outros em mim (autora) e minhas percepções sobre os outros, que logo mais se tornam não
mais minhas enquanto autora, mas enquanto performer, e logo mais nem isso (minhas
percepções contaminam-se integralmente de Pussy Jane, que já não mais se pode medir em
porcentagens de Fernanda, outros, outros na Fernanda e Fernanda sobre os outros); até a
influência da audiência de terceiros e suas opiniões e sugestões sobre temas (o que é parte
integrante da polifonia constante), bem como a intervenção direta de outros
artistas/produtores de linguagem no trabalho (desenho, música), reiteram o dado
performático da questão da autoria compartilhada, viva. Esse compartilhar, sob muitos
aspectos, é altamente desejável na performance, sobretudo pelo objetivo de
espelhamento/estranhamento que se propõe explícito em intencionalidade e intenção do
corpus ou instituição Performance enquanto arte ou não arte, de acordo com o sujeito de
linguagem exposto, disposto, ele também, compartilhado.
Dessa raiz autoral compartilhada, Pussy tornou-se também desenho e, a partir do desenho e
da possibilidade de, através da linguagem gráfica, acionar outros aspectos ficcionais que a falta
do domínio da técnica impunha-me, pude configurar novos personagens, mais lúdicos e
fantásticos, com que a linguagem audiovisual, registro videográfico, não seria capaz de arcar.
Assim, a partir de uma habilidade técnica que não tenho (escrita através do desenho)
mediante a colaboração autoral de Maria Lúcia Nardy Belicieri, foi-me aberto um novo leque
de possibilidades narrativas enquanto autora (novos contextos e personagens foram
adicionados) e também enquanto performer/personagem (ampliou-se o universo de
relacionamentos e ações da personagem e, consequentemente, a diversidade de
procedimentos narrativos à disposição autora), num processo de colaboração contínua e
constante atualização. Esse deve ser também um princípio da narrativa performática: a
atualização, o alcance da esfera potencial.
Não que isso fosse improvável no universo analógico; a literatura sempre foi espaço
incondicional de possibilidades, afinal o papel em branco é o melhor suporte da linguagem,
seja em sentido estrito ou figurado. No entanto, a questão analógica da mera possibilidade,
em ambiente digital, alcança nível paradigmático de potencialidade linguística operável,
acionada tecnicamente e algoritmicamente processual. A atualização é a regra. A página em
59
branco é absolutamente configurável enquanto suporte e não suporte, enquanto dado perene
e transitório. O "o que se queira" linguístico é o movimento do jogo. E isso, inevitavelmente
transforma o autor e o sentido da autoria, reforma o performer, inverte papéis, reverte visões,
transmuta sentidos; e, acima de tudo, corporifica, no sentido de trazer ao tempo atual, da
sempre potencialidade, a concepção criativa.
Da quarta parede ao algoritmo
Na experiência autoral, em Pussy Jane, inicialmente essa necessidade de corporificação e
exercício da dobra performática deu-se através da escrita de uma peça, idealizada e com
direção de Hânia Pilan_, parceira de muitos outros trabalhos, com papel fundamental no
desvelamento dessa relação corpo-texto que tenho estabelecido. Pussy Jane em sua versão
montagem teatral já nasce contaminada pela lógica não linear da montagem anterior "A via:
Passageiros” e menos ritualística do que estetizada em cena. O dado ritualístico havia sido
exaustivamente operado na concepção do corpo-texto; em se tratando de presença cênica, a
ação da personagem seria controlada.
A estrutura da montagem (ainda não relizada) baseava-se em, a exemplo do que ocorreu na
experiência de "A via: Passageiros", uma seleção de textos literários sobre a personagem
(questões-chave à sua concepção: infância, relacionamentos afetivos, lida com a feminilidade)
adaptados à cena tradicional (performer - público, sem interação direta), com utilização de
multimídia. A partir da experiência de "A via: Passageiros", e do contato com a não linearidade
enquanto estrutura narrativa e cênica_, tanto autora-personagem, quanto diretora, Hânia
Pilan, optamos pela escrita de um roteiro que assumisse a multimídia enquanto mais do que
cenário: personagem, memória, sensação, universo interno e externo de Pussy, que seria, por
sua vez, ”interpretada”_ por mim, autora, em tempo real. A escrita do roteiro da peça foi
baseada na relação direta entre Pussy e a projeção imagética de suas memórias, pensamentos,
seus universos dentro-fora. A linguagem projetiva constitui parte integrante e fundamental da
narrativa.
Assim, a peça seria um monólogo. Desta vez, por opção fundamentada já na escolha
consciente e assunção de que o trabalho era menos teatro do que performance,
diferentemente do que havia sido feito em "A via: passageiros", em que o monólogo foi uma
questão secundariamente estética e, sobretudo, uma resultante da dificuldade operacional
(não havia atores disponíveis para abraçar a ideia).
Talvez seja essa a mágica do exercício de linguagem e, sobretudo, da linguagem performática:
a operacionalização do ruído, do desvio. Ainda que à época da primeira performance teatral o
eu, autor, ainda não estivesse ciente de que estava enveredando para o universo
performático, as oportunidades, talvez trazidas de forma casual, acabaram operando a fim de
se tornarem método, mesmo que por alguns instantes, mesmo que dali a pouco outro algo se
descobrisse ou outro ruído transformasse-se em insight. "Practice-led-research, research-ledpractice" de forma muito clara e muito mais ancorada na percepção e no dado autoral do
presente - de usar o que e o como se tem disponíveis para produzir linguagem, agora.
E foi esse estágio de elaboração da montagem que, enquanto experiência de organização do
roteiro e subsequentes leituras (e apesar de ainda não ter sido realizada) acabou sendo
60
responsável pela, novamente, necessidade (mais que ideia) de uma nova dobra da relação
autor-personagem: transformar Pussy em audiovisual ancorado em ambiente hipermidiático,
um palco absolutamente perfeito ao dado da não linearidade e da atualização do sujeito de
ação (tanto de Pussy personagem, quanto da autora e das possíveis e prováveis
transubstanciações e transferências entre ambas e tantas) que o roteiro da montagem da
performance teatral mais que sugeria, apontava veementemente como único caminho
narrativo.
Nesse sentido, organizei, enquanto autora, um novo palco para Pussy Jane: a internet, com
seus modos procedimentais adequados à não-linearidade e à atemporalidade que já
caracterizavam-me a escrita da narrativa da personagem. A ideia não foi adaptar os textos
inicialmente escritos enquanto literários (como havia sido feito na proposta de montagem da
peça) mas produzir roteiros audiovisuais curtos, próprios à estética do ambiente digital:
enciclopédico, atemporal, não linear, ágil e participativo.
Para organizar o processo, tomei por base as questões-chave constituintes da gênese da
personagem e de minha própria, em certo sentido: o gênero feminino, problemas de
relacionamento afetivo, lida consigo e com os outros em si, auto-estima em infinito processo
de construção; iniciando a produção de roteiros que abordassem, em situações curtas e
cotidianas, tais questões. Aqui, no entanto, diferentemente de quando se pensa na liberdade
de elaboração em palco teatro, ou qualquer outra modalidade presencial (levando em conta é
claro, apenas os aspectos topológicos e midiáticos), o corpo-texto já estava contaminado, em
sua concepção, pelas implicações midiáticas, ou o palco utilizado; e os roteiros foram escritos
em função da compleição deste palco (a tela), sendo, em termos de autoria, muito menos
ritualístico e mais contaminados ou limitados pela estética do possível, em termos técnicos: o
audiovisual em ambiente digital. Assim, os roteiros dos vídeos eram curtos, não mais de cinco
minutos, especificamente pensados para adaptação à plataforma mobile, portanto, com uma
narrativa com foco na personagem e utilização de enquadramentos mais fechados, restritos a
plano médio e primeiro plano.
Os vídeos foram produzidos no sentido de reiterar, sintetizadamente, a personagem enquanto
corpo de suas (minhas) questões existenciais recorrentes, em uma narrativa constituída
episódica, em temporadas e, por questões operacionais, sempre em nível potencial, sem início
meio ou fim. Os episódios foram estruturados não linearmente, sendo sempre de arcos curtos,
com os conflitos-chave resolvidos dentro do tempo do próprio episódio.
O vídeo foi a ferramenta de linguagem de partida para configuração do trabalho. No entanto,
como não poderia deixar de ser e ainda que eu não suspeitasse quando do desenho inicial do
projeto de Pussy Jane em hipermídia (novamente a insistente alquimia desveladora do
trabalho performático guiado pela experimentação), retornou-me a necessidade de produzir
crônicas ilustradas da personagem. A ideia da produção textual para rede veio como forma de
aprofundamento do caráter existencial e onisciente que a personagem acumulava, tanto em
sua versão literária, quanto no projeto de montagem cênica. Os episódios audiovisuais, em seu
tempo restrito, limitados à técnica adaptada ao mobile e aos recursos disponíveis, diluíam, da
personagem, sua característica reflexiva, levando-lhe também a profundidade nas questões
abordadas (ainda que seu tom de introspecção fosse sempre satírico e irônico). Assim, a
61
websérie, em palco internet, passou a constituir-se enquanto seriado de vídeos e crônicas,
criados para reiteração do sujeito de expressão: tanto a autora quanto, inevitavelmente, Pussy
Jane, que se constituía, em seu percurso iniciado literário até seu endereço online, mais que
papel e verbo imaginário, dígito corporificado, imagem e voz polifônica, de personagem e
personificação, de persona e sujeito autoral. Pussy Jane se constituía enquanto narrativa
prismática.
O fator tecnologia operou explicitamente para a criação de um palco muito adequado à
característica polifônico-prismática da personagem em sua função tradutora da subjetividade
autoral de um sujeito de ação.
Referências Bibliográficas
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em Letras da Universidade de Passo Fundo - v.6 - n.1 - p. 102 -112. 2010
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Carmelita Pádua Dias; revisão técnica Paulo Vaz. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
GIANETTI. Cláudia. Estética digital: sintopia da arte, a ciência e a tecnologia. Trad. de Maria
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Cultural: Unesp, 2003.
ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo: entrevistas e ensaios: Ateliê editorial. São Paulo:
2005
62
A Criação de Um Vídeo-Performance – O DeZenLeio, A Virtude do Passado:
Uma Produção do Laboratório de Humanidades Digitais do Mackenzie –
LHUDI.
Doutoranda Maria Lúcia Wochler Pelaes, E-mail: [email protected]; Mestranda Liliane
Alfonso, E-mail: [email protected]; Realização: Laboratório de Humanidades DigitaisLHUDI, E-mail: [email protected]; Orientador do Projeto e Coord. do LHUDI:
Profº. Dr. Wilton Azevedo, E-mail: [email protected]; Outros colaboradores deste artigo
e integrantes do LHUDI20
Resumo: O vídeo-performance DeZenLeio configura-se como uma obra audiovisual e
performática, de características poéticas, criada em ambiência digital através do uso de
dispositivos tecnológicos, a partir de um roteiro de curta metragem que tem como referente
indicial os registros fotográficos capturados na Casa de Saúde Francisco Matarazzo, antiga
Maternidade São Paulo. Esse vídeo é uma realização do Laboratório de Humanidades Digitais LHUDI- da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o qual encontra a sua relevância na
utilização de infraestrutura tecnológica, na capacitação teórica-reflexiva e na produção em
equipe dentro do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação, Arte e História da
Cultura. O LHUDI consolida-se a partir de uma proposta interdisciplinar que objetiva a
ampliação de um código digital como um meio eficaz de produção de conhecimento pela
intermediação de dispositivos tecnológicos, criando um impacto social, enquanto incubador de
projetos e inovação de processos.
Palavras chave: Laboratório Digital, Poética Digital, Interdisciplinaridade; Humanidades, Vídeoperformance.
Abstract: The DeZenLeio video performance appears as an audio-visual and performative
work, poetic features, created in digital ambience through the use of technological devices,
from a short film script whose relative indexical photographic records taken from the house
Health Francisco Matarazzo, former Maternity São Paulo. This video is a realization of the
Digital Humanities Lab -LHUDI- Mackenzie University, which finds its relevance in the use of
technology infrastructure, the theoretical-reflective capacity and production team within the
Graduate Program in Stricto Sensu Education, Arts and History of Culture. The LHUDI is funded
from an interdisciplinary approach that aims at expanding a digital code as an effective means
of knowledge production for the intermediation of technological devices, creating a social
impact as incubator projects and innovation processes.
20 Wilton Luiz de Azevedo (São Paulo- SP 1958). Designer gráfico, ilustrador, desenhista, programador visual e professor. Graduado
em Comunicação pela Escola Superior de Propaganda e Marketing - ESPM em 1980. Mestre e doutor em Linguagem, Comunicação
e Semiótica pela PUC/SP. Pós- doutor pela Universidade de Paris, Laboratoire de Paragraphe, Paris – França. Autor dos livros O
Que É Design, pela Editora Brasiliense, e Os Signos do Design, pela Global Editora. Em 1998 organizou, editou e foi responsável pelo
design gráfico do CD-ROM Interpoesia: poesia hipermídia interativa, com poesias de sua autoria e Philadelfo Menezes (1960 2000). Atualmente é professor do programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Mestranda Renata Barboza Carvalho, E-mail: [email protected], Mestranda Simone Mina, E-mail:
[email protected], Mestrando William Jordão do Prado, E-mail: [email protected], Doutoranda Rita de Cassia
Castilho Varlesi de Azevedo, E-mail: [email protected], Doutoranda Fernanda Nardy Bellicieri, Email:[email protected], Profª Dra. Maria Amélia Eliseo, E-mail:[email protected], Profª Dra. Keller Duarte, Email:[email protected].
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Key words: Digital Laboratory, Digital Poetics, Interdisciplinary, Humanities, Videoperformance.
1 Introdução
O nosso projeto é baseado num conteúdo estético que tem como fundamento um vídeoperformance, onde o tempo é uma referência indicial. Um dos objetivos deste estudo consiste
na criação de uma escritura que para a história de um código pode ser interpretada como erro,
mas que para nós não o é. Esse ruído, essa ruptura produz poesia dentro da ambiência digital,
onde o espaço e o tempo são discursos literários e poéticos.
Esse ser em trânsito, errático e rizomático, encontra no ente a qualidade do seu ser: uma
identidade transitória que se comporta a partir de diferentes referências e que transita num
sistema de redes identificando imagens que se desdobram em outras, na articulação de
pensamentos em teias.
A semiótica de Peirce (1977, p. 220) propõe a ideia de uma tríade epistemológica, através da
qual o pensamento do ser humano é divido em: indução, dedução e abdução. Este último
desconsidera, segundo Azevedo (2009, p. 102-103), a cisão entre “[...] erro e acerto,
estranhamento e mesmice, abstrato e figurativo” (AZEVEDO, 2009, p. 103).
Desta forma, a cultura digital gera autonomia, através do pensamento abdutivo, enquanto um
processo caótico, errático e que insurge em um tempo e um espaço sígnicos.
O DeZenLeio: A Virtude do Passado, título do nosso estudo (cf. figura 01), pode ser
compreendido como o desmanche de um rolo num fio randômico; ‘desleiar’ é desaparecer de
forma rizomática, ao sabor do acaso.
Figura
01:
Imagem
do
Projeto
Fonte: Autor da imagem- Profº. Dr. Wilton Azevedo.
De
Zen
Leio
–
LHUDI.
Os elementos presentes nas imagens propostas geram uma narrativa estética não para que os
fatos aconteçam, mas para que sejam um índice criativo. Nessa trajetória de ruptura e
64
inovação há a constituição de signos caógicos, de tal forma que uma tela de computador
bidimensional produz imagens tridimensionais.
Cada linguagem tem uma gramatologia própria. Dois algarismos que fundamentam a
linguagem binária do computador possibilitam infinitas ressignificações. E cada significado
gera uma nova leitura, dentro dos sistemas que são códigos que fomentam a construção de
conteúdos não lineares e, portanto, interdisciplinares.
No campo do referente indicial deste estudo, as fotos da estrutura arquitetônica da
Maternidade São Paulo, “[...] as impressões visuais que restaram na memória coletiva da
instituição, provocaram a tentativa de recuperar descritivamente o real, o referente, pois o
signo não é neutro nem inocente [...]” (CHALHUB, 2001, p. 13), mas as digressões da
composição poética permitiram a invenção de um novo “estado da arte” onde as percepções
do fruidor criam uma nova representação do não-ser.
Essa “parataxe” é um sintaxe não linear dos códigos, tal que a linguagem poética presente na
ambiência digital torna-se um escritura expandida nesse espaço sígnico.
A poesia digital apresenta uma linguagem poética não-linear e que é capaz de produzir uma
nova noção de ritmo, de narrativa e de discurso, de tal forma que: “O pensamento por imagem
não é ilógico, mas alógico. Tem a forma de mosaico, sem relevo com vários níveis de uma
sintaxe” (DEBRAY, 1993, p. 319).
Há um processo de desmaterialização da imagem poética dentro da ambiência digital. Um “[...]
efeito de realidade que é a aptidão da imagem para não parecer como tal. [...] Uma entidade
virtual é efetivamente percebida por um sujeito, mas sem realidade física correspondente”
(DEBRAY, 1993, p. 274- 278).
Desta forma, a poesia digital, frente à diversidade que caracteriza a ambiência digital, torna-se
uma escritura expandida, pois marca um processo que se manifesta em diferentes direções e
que contempla um saber poético intersígnico, cujo o espaço torna-se cada vez mais interativo
e mutável, configurando-se como um fenômeno semiótico enquanto um instrumento de
produção da cultura digital.
2 O Laboratório: breves considerações
O Laboratório de Humanidades Digitais -LHUDI apresenta-se como uma plataforma de estudo
interdisciplinar que utiliza os meios digitais, a partir da aplicação de softwares de última
geração, que podem ser caracterizados como dispositivos que disponibilizam diferentes
recursos para a realização de projetos na área de formação Stricto sensu, composta pelos
cursos de mestrado e doutorado na área de Educação, Arte e História da Cultura. O laboratório
é uma metadisciplina que se faz através da intermediação de dispositivos tecnológicos, criando
um impacto social, enquanto incubador de projetos e inovação de processos, como apontado
na figura 02.
65
Figura
02:
De
Zen
Leio
no
LHUDI
Fonte: Foto da Doutoranda Maria Lúcia Wochler Pelaes.
Desenvolvimento
do
Projeto.
O Laboratório de Humanidades Digitais pode ser caracterizado segundo algumas de suas
funções:
Espaço: Exploração de dados georeferenciados nas humanidades;
Mundos Virtuais: Recriação e exploração de ambientes humanos presentes e passados;
Edição e Preservação Digital: Edições críticas eletrônicas e preservação do patrimônio;
Visualização: Construção de interpretações visuais de dados das humanidades;
Ferramentas: Apresentação e discussão de softwares aplicados às humanidades.
A importância das novas tecnologias se consolida pela possibilidade da digitalização estar a
serviço da manutenção dos acervos da história, produzindo uma nova cultura, a cultura digital.
O signo fundamental da computação baseia-se na linguagem binária e permite o
desenvolvimento de novas metodologias digitais, sendo capaz de gerar novas leituras e novas
literaturas.
A Web é um espaço coletivo e público. Envolve uma formulação comunitária. Acaba por se
constituir numa comunidade eletiva, mesmo que virtual. Para Deleuze (1985), somos deserto
e estamos povoados por tribos, por multidões... que se deslocam como nômades dentro de
nós. De algum modo, há uma poética dos afetos, do virtual que nos habita e nos consome,
numa inadequação da razão.
A escritura digital cria um modelo de alfabeto digital, através da criação de signos específicos
da ambiência. A linguagem, desta forma, acontece como um dispositivo ideológico, tal qual a
máquina fotográfica, enquanto possibilidade de articulação sígnica.
Quanto à linguagem digital, ela baseia-se numa relação que transcende à dualidade do sujeito
e objeto ou de um emissor e um suposto receptor. Mas caminha baseada numa alteridade de
signos e de sujeitos, em enunciados definidos por suas tonalidades dialógicas. “As tonalidades
dialógicas preenchem um enunciado e devemos levá-las em conta se quisermos compreender
até o fim o estilo do enunciado” (BAKHTIN, 2000, p. 317).
Para Bakhtin (2000, p. 333), o teor do objeto do sentido garante a expressividade do
enunciado, de tal forma que se diferenciam duas instâncias de comunicação, numa complexa
66
dependência entre dois autores: aquele que cria a obra e o sujeito que a recria na condição de
espectador, que pratica o ato de cognição e juízo. “O acontecimento na vida do texto, seu ser
autêntico, sempre sucede na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos” (BAKHTIN, 2000,
p. 333).
Para Bakhtin (2000, p. 333), o estenograma do pensamento humano, isto é, o discurso
realizado por códigos na composição de signos, é tecido na relação texto- contexto, de tal
forma que sua singularidade filia-se à subjetividade das consciências envolvidas com o ato de
seleção de cada signo. Desta forma, o signo é um fenômeno que encontra a sua origem
seminal na palavra grega sinie que significa sinal. Da mesma forma a imagem encontra a sua
origem nos códigos advindos da tecnologia, palavra que contém a techne e a logos, conceito e
matéria. A técnica que presume a apropriação do conceito e, desta forma, da matéria.
A técnica que fundamenta a linguagem digital é a tecnologia da informação e que tem como
um relevante objetivo a criação de um memorial humano, em ambiência digital. A urgência da
memória nos alude à questão da angústia do precário, relativa à condição humana, quanto a
sua finitude. Para Debray (1993) os aparatos tecnológicos surgem para eternizar o humano, na
angústia do precário.
O nascimento da imagem está envolvido com a morte. Mas se a imagem
arcaica jorra dos túmulos é por recusar o nada e para prolongar a vida. As
artes plásticas representam um terror domesticado. Por conseguinte, quanto
mais apagada da vida social estiver a morte, menos viva será a imagem e
menos vital nossa necessidade de imagem (DEBRAY, 1993, p. 20).
A imagem e o registro de eventos passados e atuais, funcionam como uma garantia para a
eternidade das memórias, das histórias e das culturas, de tal forma que a consciência sobre a
não eternidade é pré-histórica.
A própria memória é história e ao mesmo tempo cultura.
Le Golf (1999, p. 423), refere-se
à memória “como propriedade de conservar certas informações”, ligada às funções psíquicas,
através das quais o homem pode “atualizar impressões ou informações passadas”. Desta
forma, o acervo digital atua como aparato de memória, moderno, uma ciência auxiliar da
história, uma nova epigrafia (LE GOLF, 1999, p.431).
Le Golf (1999) comenta a grande importância da memória funerária, como as estelas
sacerdotais ou reais egípcias, nas quais existe a presença de uma “narrativa histórica” que
funciona como um arquivo mnemônico dos acontecimentos significativos da época, assim
como a importância dos documentos arquivados nos mais diferentes suportes (osso, estofo,
pele, papiro, pergaminho, papel, entre outros). E com isso a criação de “instituições de
memória”, como arquivos, bibliotecas e museus, permitindo registros da “memória real”, onde
estão narrados feitos que estabelecem “a fronteira onde a memória se torna história” (LE
GOLF, 1999, p.432-434).
A transformação ocorrida nos processos de “memória artificial”, para Le Golf, consiste na
passagem da oralidade à escrita e o aparecimento de “processos mnemotécnicos”, permitindo
a memorização palavra por palavra, que segundo Goody (apud LE GOLF, 1999), trata-se de
uma operação efetuada numa certa ordem e que permite “descontextualizar” e
67
“recontextualizar” um dado verbal, segundo uma “recodificação linguística” (LE GOLF, 1999,
p.435-436).
As relações digitais baseiam-se em códigos específicos, criando um outro nível de relação
conceitual, onde a relação emissor-receptor desaparece, gerando um indivíduo passivo,
reativo e interativo que estabelece-se através da comunicação digital, por meio da alteridade
nos veículos digitais.
Segundo Certeau ( 1994), o cotidiano, a partir do século XVIII, teve relevante mudança nos
hábitos de leitura como razão fundadora do conceito teleológico e, portanto, um discurso
baseado nessa unidade referencial. Em tais meios, a leitura das imagens e textos cria uma
relação de subversão.
Segundo Cavallo e Chartier (2002), a leitura silenciosa é a arqueologia fundadora da subversão,
do erotismo e da devoção dos atos cotidianos da leitura, feita num tempo interior, sob o
comando do pensamento que projeta as imagens livres e constrói seus cenários imaginéticos,
convertendo a escritura dos aparelhos escriturísticos da oralidade em fala interior. “Ainda mais
importante, a leitura privada oferecia meios para expressar pensamentos políticos
subversivos” (CAVALLO; CHARTIER, 2002, p. 169).
A leitura das escrituras digitais provoca igualmente esse silêncio, esse pensar particular num
tempo interior, mas que se projeta nas dimensões e correlações de rede. São negociações de
sentidos e trajetórias percorridas na ambiência, propondo um novo paradigma conceitual de
leitura e escritura poéticas.
Documentar o novo mudou a perspectiva através do share, do compartilhamento de
experiências e seus relatos como uma nova concepção análoga ao “avatar”, dentro de um
sistema mediador de realidades possíveis. Realidades que parecem imitar a vida. Simulacro ou
mímese?
Essa realidade virtual, frente às concepções de mímese e verossimilhança, dentro da poética
de Aristóteles, permitem crer que, segundo Aristóteles:
O poeta é definido mais como aquele que compõe histórias (mitos), do que
como versificador, já que se identifica como poeta pela representação de
ações, que podem até, verossimilmente, provir de eventos reais. Seu campo
de ação cobre todo o domínio do persuasivo, ou seja, daquilo que o
espectador aceita crer (COSTA, 2006, p. 23).
Temos uma nova identidade terrena, que a partir de um novo criptograma, comunica-se em
ambientes digitais como o Face e o WhatsApp. Há uma ambição cronotópica, dentro de um
tempo e de um espaço absolutamente virtuais, mas que são referentes de realidade.
A cultura digital permite a formação de estruturas metodológicas que ora são “[...]
multidisciplinares, ora possibilitam a interdisciplinaridade e, finalmente, encontram a
transdisciplinaridade em seus processos” (ALVARENGA et al., 2005). Desta forma, pode-se
afirmar que a produção no laboratório digital é por princípio interdisciplinar, pois a concepção
de disciplina desaparece.
68
As humanidades digitais apresentam um dado nível de relações humanas que presumem uma
representação, uma simulação e uma imersão nos códigos e demandas contemporâneas. O
labirinto digital muda o percurso do outro de passivo e reativo para interativo, possibilitando
uma nova identidade.
Esta questão é ainda mais contundente quando se leva em conta as novas
formas de subjetividade e identidade que são cultivadas pela cibercultura. O
cibernauta se apresenta como um ser multifacetado e rodeado por
ambiguidades criadas pelos seus vários modos de se deixar ver e construir
identidades nos diferentes ambientes da rede. São multiplicidades com as
quais a pessoa encena e brinca no palco ubíquo das subjetividades
(SANTAELLA, 2013, p. 85- 86, apud CAMARGO, 2015, p. 3).
O homem contemporâneo tem sua identidade digital a partir de uma plataforma de discussão
onde as relações de causa e efeito são questionadas, pois as características da vida de cada
indivíduo não são fatores determinantes da sua “poesis”.
O acervo, dentro do conceito de humanidades digitais, é um registro civilizatório que acontece
através da experiência coletiva da produção de textos digitais e poéticos, através de trabalhos
artísticos on line.
A concepção de site nos conduz à reflexão de que a credibilidade de um código está
diretamente ligada a sua perenidade e durabilidade dos seus conteúdos. Por esta razão,
indagamos se ainda não dispomos de meios para garantir a sua perenidade?
Os próprios códigos digitais revogam inúmeros paradigmas fundados numa forma de cognição
e de conhecimento lineares, transgredindo as formas e criando relações de pensamento e
linguagem que atuam numa dinâmica transversal e em rede, presumindo conexões e mais
conexões que apontam para um infinito de possibilidades.
Há uma integração e ao mesmo tempo uma polarização entre o público e o privado, o
cronológico e a flexibilidade dos tempos cronológico e biológico, de tal forma que as relações
do indivíduo com o mundo e consigo mesmo criaram um fenômeno contemporâneo e
interdisciplinar passível de estudos nas mais diferentes dimensões. Essas relações são
dinâmicas e constituem um telos, uma finalidade.
A digitalização de textos e arquivos baseia-se num código que apresenta uma nova sintaxe,
uma “parasintaxe”, baseada numa semântica pragmática e na ausência do sujeito. Propõe um
raciocínio semiótico sobre os códigos fundado num esquema diacrônico. A ideia central é a
alteridade resultante da inter-relação do eu e do outro, revendo os modelos paradigmáticos
de conhecimento: fragmentados, isolados, hierárquicos e piramidais (MORIN, 2001).
A ambiência digital tem uma grande potencialidade no processo educativo, pois pode colocar
em evidência a multidimensionalidade e a complexidade humanas, através da hominização
que considera a unidualidade, a complexidade cultural, a unidade (singularidade) e a
diversidade, dentro da complexidade dialógica humana (MORIN, 2001).
3 O fazer poético da poesia digital (Interpoesia – O início da escritura expandida – AZEVEDO,
2009- anotações)
69
A poética é subversiva, porque subverte o olhar, as formas, os sons, as imagens... ousando
criar algo novo, provocando uma estética interativa que objetiva mudar o percurso do outro.
O que é poético é a expansão dos signos. Fazer poesia digital é construir ambientes –
ambiência- que em mudança constante, subvertem as fórmulas e criam e se recriam a partir
de novas e inovadoras referências.
Deste conceito nasceu a Poesia Hipermídia Interativa, possibilitando uma produção poética
no meio digital, que provocou sucessivas mudanças que envolvem uma nova leitura cognitiva,
mudando a natureza de sua sintaxe, para uma parasintaxe.
Há, desta forma, uma salto na cognição comunicativa e interativa, de analógica para digital,
propondo narrativas e registros produzidos pela tecnologia, que podem ser verbais, sonoros,
imaginéticos e em forma de escritura expandida, permitindo a disseminação do conhecimento
poético.
Hoje usamos o termo navegar no sistema hipermidiático, pois podemos adentrar num
labirinto narrativo, para executar a ação do clicar. “Trata-se de uma nova etapa em que
códigos matriciais isolados (verbal, visual e sonoro), passem, a partir de softwares atuais, a
explorar novas formas de se fazer perceber como linguagem” (AZEVEDO, 2009, p. 13).
A miscigenação de linguagens, num processo de simbiose, tornou os meios digitais um lugar
possível para a manifestação de uma nova cultura de ambiência. Há uma possibilidade de
flutuação e um viajar num “espaço de sentido” que “[...] muda o referencial de arbitrariedade
deste ‘vir a ser’ histórico como forma de registro” (MANGUEL, 1997, apud AZEVEDO, 2009, p.
16- 34).
“Os acessos são paratáticos, não-lineares e temporalizados pelo movimento do nosso olhar,
dentro de uma nova relação matricial” (AZEVEDO, 2009, p. 42).
A poesia digital estabelece uma nova relação entre os códigos através de registros sonoros,
verbais, visuais e performáticos, proporcionando o desdobramento de imagens e palavras nãolineares e interdisciplinares, desmaterializando o fazer poético, que estabelece índices
semióticos resultantes da articulação da linguagem em meios de ambiência numa
interdependência mútua entre leitor, poeta e poesia.
A migração virtual por uma escritura em trânsito cria uma projeção histórica para as
linguagens dos suportes digitais através de conteúdos simbólicos em telas imaginéticas. “O
corpo-imagem não apenas lê, mas se apropria em forma de imersão, explorando estes
espaços” (LOFFER, 1994, apud AZEVEDO, 2009, p. 51).
4 O projeto da Maternidade São Paulo: a trajetória do trabalho.
4.1 Processo de criação dos registros fotográficos da Maternidade São Paulo.
Criada a partir de um ensaio fotográfico realizado pela mestranda Liliane Alfonso, a obra de
características poéticas, transita na história da Casa de Saúde Francisco Matarazzo, onde era a
sede da Maternidade São Paulo, para apresentar um conteúdo estético, baseado nas imagens
produzidas e na composição de uma obra artística, que tem como pano de fundo o registro de
70
um acervo histórico que foi extinto em sua função. Tal registro fotográfico foi desenvolvido no
segundo semestre de 2014, no período em que foi realizada uma exposição no antigo Hospital
Matarazzo, Made By Feita por Brasileiros, quando um numeroso público compareceu ao
espaço.
Segundo Alfonso (2015), em “Relatos de Experiência Vivida na Casa Matarazzo”: “Enquanto
andava pelo local entrei em um corredor escuro, levemente assustador e olhei para dentro de
uma pequena sala vazia, sem pessoas e sem obras, com uma janela quebrada que permitia a
entrada de luz”. Como podemos constatar nas figuras 03 e 04.
Figura 03: Foto da estrutura arquitetônica da antiga Maternidade São Paulo.
Fonte: Foto da Mestranda Liliane Alfonso.
E assim, Alfonso (2015) relata:
Fiquei tão encantada por aquela janela velha que levei algum tempo para
conseguir sair do espaço e senti a necessidade de fazer um registro
fotográfico. Após esta imagem, não foi possível concentrar-me na
exposição. A estrutura do antigo hospital consumiu toda a minha atenção,
admiração e curiosidade. Observando as marcas deixadas pelo tempo, era
inevitável imaginar as histórias que aquele lugar carregava. Enquanto
caminhava pelo antigo hospital Matarazzo não conclui o objetivo de
conhecer a exposição, porém surgiu um propósito maior em estar naquele
lugar (ALFONSO, 2015).
Figura 04: Foto da estrutura arquitetônica da antiga Maternidade São
Paulo.
Fonte: Foto da Mestranda Liliane Alfonso.
“Depois de alguns dias, escolhi umas das fotos e publiquei em uma
rede social. Era a foto de uma escadaria, que não podíamos transitar
71
por seus degraus, pois estava protegida por um delicado fio e cercada por água” (ALFONSO,
2015). Como pode ser verificado na figura 05.
Figura 05: Foto da estrutura
Maternidade
Fonte: Foto da Mestranda Liliane Alfonso.
arquitetônica
São
da
antiga
Paulo.
As fotos resultantes desse registro fotográfico (vide figura 06) permitiram a construção de um
vídeo de modo que fosse possível transitar entre as imagens.
Figura 06: Foto da estrutura arquitetônica da antiga Maternidade São Paulo.
Fonte: Foto da Mestranda Liliane Alfonso.
Em 2015 recebemos o apoio de novos integrantes ao Laboratório de Humanidades Digitais
(LHUDI), dando-se o início de um novo projeto, que tinha como objetivo a criação estética e
artística através da poética digital, realizada através da produção de um trabalho que tinha
como referência inicial os registros fotográficos e a arquitetura do espaço Matarazzo. Deste
modo, foi dada a continuidade na implantação e estruturação do laboratório de humanidade
digitais, surgindo assim a obra DeZenLeio.
4.2 Poesia digital: uma narrativa poética inspirada nas imagens da Maternidade São Paulo.
A obra DeZenLeio apresenta-se como um vídeo-performance, criado a partir dos registros
fotográficos da antiga Maternidade São Paulo, numa trama poética tecida com imagens
72
animadas em ambiência digital, acrescidas de uma prosa de autoria do Wilton Azevedo,
professor do Laboratório de Humanidades Digitais e coordenador do projeto.
Essa experiência poética nasceu das inquietações de Wilton Azevedo, como resultado de uma
das suas produções artísticas dentro de uma narrativa poética- digital, que é apresentada no
vídeo-performance, como segue na figura 07.
Figura
07:
Fonte: Foto Alan Azevedo -2015.
Imagem
do
DeZenLeio.
Para Azevedo (2009, p. 105): “A poesia digital [...] retoma a ritualização da linguagem [...]”. De
tal forma que “[...] a enunciação não está no discurso, a narrativa não conta histórias. O que é
poético é a expansão dos signos. Fazer poesia digital é construir ambientes- ambiência- em
mutação constante”. Para o autor, essa ação consolida-se como uma experiência que
transcende à rima verbal e à imagem, caracterizando-se como um objeto poético que
apresenta um ritmo sonoro e plástico, que poderá ser harmônico ou não, dentro da ambiência
digital.
Participação em Seminários, Congressos e Eventos Artísticos-acadêmicos
Obra no YouTube
O vídeo-performance é disponibilizado no YouTube através do endereço eletrônico
https://www.youtube.com/watch?v=aaXAd0zoodc&feature=share. O objetivo foi a
socialização da obra na Web para internautas extra-pares e interessados em produções de arte
digital.
Virada Cultural
No sábado, dia 20 de junho de 2015, às 18h, o LHUDI (Laboratório de Humanidades Digitais), a
convite da Visualfarm, apresentou no Anhangabaú durante a Virada Cultural de 2015, a
obra De Zen Leio, como é possível verificar nas figuras 08 e 09.
73
Figuras 08 e 09: Imagens do DeZenLeio projetadas nas paredes dos prédios do Anhangabaú.
Fonte: Fotos de Simone Mina.
Aula Magna Mackenzie 2015.2
No dia 18 de agosto de 2015 foi apresentada a obra DeZenLeio na Aula Inaugural do PPGEAHC,
às 14h, no auditório do Centro Histórico e Cultural do Mackenzie. No evento houve a
apresentação especial dos membros do Laboratório de Humanidades Digitais, coordenado
pelo Prof. Dr. Wilton de Azevedo (vide figura10).
Figura
10:
Wilton
Azevedo
Fonte: Foto de Rita Varlesi.
em
apresentação
da
obra
DeZenLeio.
VI Seminário dos Roteiristas 2015: “Entre Encanto e Conhecimento”.
Nos dias 17 e 18 de setembro de 2015 ocorrereu a participação do LHUDI e a apresentação da
obra DeZenLeio no Seminário dos Roteiristas de 2015, o qual é uma iniciativa do Centro de
Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Encontro Internacional de Arte e Tecnologia -14. Arte.
Nos dias de 07 a 11 de outubro, em Aveiro – Portugal, se dará a participação do LHUDI e
apresentação da obra DeZenLeio no 14. Art- Encontro Internacional de Arte e Tecnologia.
Entre outros eventos.
6 Considerações Finais
74
Verificou-se que a ambiência digital caracteriza um “onde”, no qual a fronteira é questionada
como tal, constituindo um espaço de tensão e flexibilidade que possibilita a criação de um
projeto que objetiva o apagamento da linha divisória entre os diversos arquivamentos e as
diversas línguas e culturas. Desta forma, através da linguagem digital, abrimos esse campo de
diálogo ilimitado entre pessoas, culturas e processos, viajando através dos diversos tempos e
espaços possíveis, em busca de linguagens poéticas que aparentemente ressurgem através de
códigos construídos na bidimensionalidade escultórica de nossas telas.
Desta forma, pode-se concluir que a poética digital é, em sua essência, poesia em trânsito,
porque subverte o olhar e o entorno espacial, imagético e sonoro, criando novas formas de
interação, resultantes das trajetórias dos sujeitos que as experimenta. Assim, construir
espaços na linguagem virtual, experimentando as narrativas da poesia digital, permite ao
poeta dialogar com o contemporâneo.
O processo de produção do laboratório digital proporciona uma imersão em diferentes áreas,
através de uma plataforma interdisciplinar, que visa a relação interativa dos pesquisadorescolaboradores que constituem uma equipe multidisciplinar , que atua num processo de
construção novas formas de conhecimento no ambiente virtual, através de uma abordagem
metodológica interdisciplinar e transdisciplinar consolidada a partir da criação e execução de
projetos.
Conclui-se, portanto, que esse estudo, atrelado às produções realizadas no LHUDI, propõe um
novo olhar sobre a ambiência digital no que tange a sua exploração, enquanto plataforma
tecnológica relevante para a criação digital poética, assim como para o registro de acervos
históricos e recriação de ambientes humanos presentes e passados, de tal forma que a sua
importância reside na compreensão e difusão da ambiência digital.
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75
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PIERCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1977.
76
A próxima geração na elaboração de roteiros: uso de estúdios virtuais com
Realidade Aumentada
Rafael Guimarães Pedroso, UNESP/Bauru, [email protected]
Ivan Abdo Aguilar, UNESP/Bauru, [email protected]
Antonio Carlos Sementille, UNESP/Bauru, [email protected]
Resumo
Atualmente, a Realidade Aumentada tem sido empregada na produção de filmes que utilizam,
em cena, objetos virtuais e efeitos especiais criados por meio de computação gráfica,
permitindo a visualização em tempo real desses elementos que não estão presentes
fisicamente, ao lado dos atores reais. Mas esta técnica pode ser utilizada também na fase de
pré-produção e elaboração de roteiros. O emprego da Realidade Aumentada apresenta
vantagens em diferentes etapas do processo de criação do roteiro como, por exemplo, na
estruturação de cenas. Os principais benefícios dessa técnica estão relacionados com a
possibilidade de visualização prévia dos elementos virtuais. Este trabalho apresenta
experimentos feitos com o ARSTUDIO, um sistema de estúdio virtual desenvolvido na
UNESP/Bauru que permite a criação de cenas com Realidade Aumentada, integrando
ambiente e atores reais com objetos virtuais tridimensionais.
Palavras-Chave: Roteiro; Estúdio Virtual; Realidade Aumentada; Produção Audiovisual
Abstract
Today, Augmented Reality has been employed in the production of films that use, on set,
virtual objects and special effects created by computer graphics, allowing for real-time
visualization of these elements that are not physically present, alongside real actors. But this
technique can also be used in the pre-production and script preparation phase. The use of
Augmented Reality has advantages in different stages of the script creation process, for
example, scene structuring. The main benefits of this technique are related to the ability to
preview the virtual elements. This paper presents experiments done with ARSTUDIO, a virtual
studio system developed at UNESP/Bauru that enables the creation of scenes with Augmented
Reality, integrating environment and live action with three-dimensional virtual objects.
Keywords: Script; Virtual Studio; Augmented Reality; Audiovisual Production
1 Introdução
Elementos gráficos virtuais gerados por computador são cada vez mais utilizados na produção
audiovisual tanto para o cinema, como para a televisão e também a web. As técnicas de
produção de imagens virtuais são largamente utilizadas na criação de conteúdos criativos, para
a obtenção de fotorrealismo e também para diminuição dos custos de produção.
77
A utilização dos elementos virtuais pode ainda flexibilizar a produção e tornar viável a
obtenção de imagens de objetos e seres difíceis de serem produzidos fisicamente e capturados
por uma câmera no mundo real.
A produção e inserção desses elementos virtuais envolve técnicas das áreas de Computação
Gráfica, Visão Computacional, Processamento de Imagens, Realidade Aumentada e Realidade
Virtual. Mesmo com grande potencial para viabilizar e tirar ideias do papel e ainda diminuir
custo das produções, essas técnicas envolvem o uso de tecnologias e conceitos ainda em
formação e, também, modificam a cadeia de produção audiovisual.
Tradicionalmente, essa cadeia é organizada de forma que os efeitos especiais e objetos virtuais
são inseridos somente na fase de pós-produção, depois da captação de imagens dentro e fora
do estúdio. Durante a fase on-set a equipe precisa se orientar por meio de sinais, marcações
no estúdio ou no cenário e por movimentos coreografados. Dessa forma, erros cometidos
durante o processo de produção podem comprometer o trabalho como, por exemplo, a
impossibilidade de integrar objetos e seres virtuais com atores reais, devido a problemas como
ângulo e posição da câmera, enquadramento, ou mesmo posição dos atores em cena.
Nesse contexto, a evolução das técnicas de Computação Gráfica e Realidade Aumentada tem
tornado possível que os elementos virtuais possam estar presentes nas fases anteriores à pósprodução, permitindo a renderização de imagens virtuais em tempo real, com retorno para a
equipe de produção. Assim essas técnicas podem estar presentes em todas as etapas da
produção, sendo empregadas na gravação e também na pré-produção.
A utilização dessas técnicas durante o planejamento do projeto é importante para evitar-se
erros nas gravações, além de oferecer possibilidades criativas para o autor da obra, na fase de
elaboração do roteiro. Como será discutido mais à frente, as técnicas de Realidade Aumentada
em estúdio virtual constituem também uma poderosa ferramenta para pré-visualização de
cena durante o planejamento.
Considerando este contexto, o presente trabalho apresenta os resultados do emprego
de um estúdio virtual com recursos de Realidade Aumentada durante a fase de
planejamento/pré-produção de conteúdos audio-visuais. Nesta fase, em que o roteiro e o
Storyboard estão sendo criados, é possível rapidamente ensaiar e visualizar idéias com atores,
cenários, objetos de cena e objetos interativos, tanto reais quanto virtuais. Nesta etapa, não
há a necessidade da definição ou utilização dos modelos de elevado nível de detalhe,
normalmente exigidos na produção final. Por ser a fase de criar, testar e analisar idéias,
objetos simples podem ser utilizados como uma ajuda visual do posicionamento e tamanho, o
qual poderá ser substituido em outras fases por outros objetos virtuais mais detalhados ou um
por um objeto real.
Neste trabalho foi utilizado o ARSTUDIO, um software de estúdio virtual em desenvolvimento
na Unesp-Bauru, o qual permite a produção de cenas com Realidade Aumentada.
2 Estúdios Virtuais e Realidade Aumentada
Os desafios da inserção de elementos virtuais estão relacionados com a síntese desses
elementos e com o fotorrealismo nos efeitos gerados. Assim, a forma como esta tecnologia
78
pode ser empregada evoluiu: o entusiasmo inicial de se substituir completamente o cenário
real pelo cenário virtual, tem cedido lugar à uma abordagem mais prática (e realista), de se
adicionar objetos virtuais ao ambiente real, permitindo que apenas aqueles elementos que
não são facilmente reproduzidos no mundo real sejam sintetizados virtualmente (THOMAS,
2006, p.5).
Normalmente, a inserção de elementos virtuais em uma cena é realizado por meio do
emprego da técnica do chroma-key, usando-se elementos cenográficos parcialmente ou
totalmente produzidos por computador. Essa técnica utiliza um fundo monocromático que é
trocado por meio da substituição da cor, normalmente azul ou verde, por uma nova imagem
(ou vídeos) de fundo. O controle rígido das condições de iluminação para o uso do chroma-key
tornaram necessário o aprimoramento desse sistema. Nesse contexto, os estúdios virtuais
surgiram como extensões do cenário virtual tradicional, utilizando muitas vezes equipamentos
complexos e de alto custo.
O emprego das tecnologias de Computação Gráfica e Realidade Aumentada pode dinamizar a
técnica de estúdio virtual ao permitir a combinação de elementos virtuais gerados por
computador com o ambiente real, em tempo real.
Realidade Aumentada, é um sistema que suplementa o mundo real com objetos virtuais
gerados por computador, parecendo coexistir no mesmo espaço e apresentando as seguintes
propriedades: combinar objetos reais e virtuais no ambiente real; executar interativamente
em tempo real; alinhar objetos reais e virtuais entre si; aplicar-se a todos os sentidos, incluindo
audição, tato e força e olfato (AZUMA, 2001, p.1).
Portanto, com as técnicas de Realidade Aumentada, é possível a renderização em tempo real
de cenas virtuais tridimensionais alinhadas corretamente com o ponto de vista de uma câmera
posicionada no mundo real.
O ARSTUDIO é um software de estúdio virtual que permite a geração de cenas com Realidade
Aumentada, técnicas de chroma-key, bem como a adição de som. O projeto é desenvolvido na
Unesp-Bauru e participam dele pesquisadores do Programa de Pós-graduação em Mídia e
Tecnologia (PPGMiT/FAAC) e do Programa de Pós-graduação em Ciência da Computação
(PPGCC/FC).
O software, também, faz uso de equipamentos convencionais e de baixo custo. Emprega
marcadores fiduciais (padrões impressos que servem de referência para o rastreamento
tridimensional) em cena para a inserção de elementos virtuais.
3 Produção Audiovisual
Existem três fases principais que precisam ser executadas no processo de filmagem
para a maioria de produções audiovisuais convencionais: as fases de pré-produção, produção e
pós-produção. Cada uma dessas etapas é responsável por aspectos distintos no processo de
produção, tendo equipes específicas para cada etapa (HUGHES, 2012, p.88; MILLERSON,
OWENS, 2009, p.51).
Essas etapas são:
79
A. Pré-produção: Uma fase dinâmica onde ocorre o planejamento, preparação e ensaio
de todo processo de produção. (HUGHES, 2012, p.89-91; BARNWELL, 2008, p.51; SCHENK,
LONG, 2011, p.13; MILLERSON, OWENS, 2009, p.51);
B. Produção: Fase onde a filmagem do conteúdo ocorre. Nesta etapa é necessário
haver a direção dos atores sobre suas atuações, realizar todas as filmagens descritas e
programadas na fase de pré-produção, bem como refilmar as cenas quando for necessário.
(HUGHES, 2012, p.91-92; MILLERSON, OWENS, 2009, p.51);
C. Pós-produção: Etapa final do processo de produção. Depois que todos os materiais
do programa (vídeo, áudio e gráficos) foram compilados, onde todo os trabalhos das fases
anteriores se juntam. (HUGHES, 2012, p.92-93; BARNWELL, 2008, p.169; SCHENK, LONG, 2011,
p.345; MILLERSON, OWENS, 2009, p.9).
Dependendo da natureza e escopo do projeto, precisa ser decidido o caminho e a
agenda, em detalhe, para que a produção siga desde a idéia inicial até o produto acabado
(VAUGHAN, 2012, p.22; HUGHES et al., 2013, p.16).
Previamente na indústria, nas produções convencionais, a visualização do conteúdo 3D
não era presente em toda cadeia de produção mas sim, somente, na fase de pós-produção
onde o conteúdo virtual era visível após todas as gravações das cenas estarem terminadas e
editadas. No cenário real, os atores, o diretor e os operadores de câmera só tinham indicações
visuais simples, como marcações no chão onde os personagens ou objetos virtuais deveriam
aparecer (GRAU, 2005, p.5).
No ambiente de animação e efeitos por computador, o usuário tem mais controle do
que cineastas tradicionais que estão constantemente lutando contra luz, equipamentos e
aspectos naturais durante a filmagem. (ABLAN, 2002, p.110).
Estúdios virtuais permitem uma técnica de composição em que as pessoas que
assistem à este "sinal composto" conseguem visualizar outros personagens e objetos físicos
combinados com um ambiente virtual (GIBBS et al. 1998, p.18). Esses sistemas atuam na
composição de vídeo real capturado através de filmagens de cenas reais com imagens
sintéticas de objetos 3D que são renderizados em tempo real e sincronizados com o
movimento da câmera através de um computador (GÜNSEL et al., 1997, p.769). Além disso,
um estúdio virtual torna possível a visualização de efeitos em tempo real ao invés de visualizálos somente na pós-produção.
Segundo Millerson e Owens (2009, p.219), embora no início o custo da criação desses sistemas
é significativo, a economia de não ter que mudar, fisicamente, entre tipos diferentes de
cenários pode compensar pelo custo. O estúdio virtual é uma ferramenta importante para
estúdios, proporcionando oportunidades criativas, bem como a redução de custos. (BLONDÉ et
al., 1996, p.18).
4 Etapas da produção do roteiro
A literatura especializada normalmente divide o processo de elaboração do roteiro em 5, 6 ou
7 fases. Segundo Comparato (2000, p.22-29), ele pode ser dividido em seis fases consecutivas:
80
A) Ideia, se refere ao acontecimento que provoca necessidade de relatar; B) Storyline, diz
respeito a concretização do conflito básico essencial; C) Sinopse, Criação dos Personagens e do
Argumento. A Sinopse apresenta personagens e local, ainda sem caracterizá-los. Na Criação
dos Personagens é criado um perfil com todas as informações físicas e psicológicas dos
principais personagens. O Argumento é a história na íntegra, construída a partir da sinopse e
do perfil dos personagens; D) Estrutura (ação dramática): Conhecida como escaleta, nessa
etapa é feita a divisão em cenas. Nesta fase os mecanismos de pré-visualização podem ser
usados largamente. E) Primeiro roteiro (tempo dramático): Nesta fase é elaborado o tempo
dramático, pensando a duração das cenas e ritmo da narrativa; F) Roteiro final (unidade
dramática): Nesta fase o roteiro deve estar concluído com a descrição dos ambientes,
descrição das ações, diálogos e indicações para os atores, e transição para próxima cena.
5 Estruturação de cena
A cena é uma unidade de conflito na história que envolve o personagem principal tentando
alcançar o seu objetivo, enfrentando obstáculos. Isto leva a conflitos de emoções e a
necessidade do personagem principal tomar decisões e ações. A ação leva a história para a
próxima cena (GLEBAS, 2009, p.72).
Na fase de estruturação da cena é realizada uma reescrita visual do roteiro, onde todas as
ações e todas as qualidades devem ser estruturadas para serem descritas em forma de
imagens. Ocorre uma ampliação da narrativa, até então verbal, acrescentando movimentos e
ações necessários para o entendimento ou para a descrição dos fatos e elementos e de suas
características.
Ao estruturar a cena, o autor, antes de determinar o conteúdo, deve criar o contexto,
reunindo o que acontece na cena, o propósito da cena e como ela move a história adiante. O
próximo passo é achar os componentes ou elementos e qual a forma visual para melhor
representá-los. Ao criar o contexto, o autor determina um propósito dramático e pode
construí-lo ação por ação, estabelendo o conteúdo (FIELD, 2001, p.119).
Além da ação dos atores, é necessário o planejamento quanto ao posicionamento e
movimentos de câmera, enquadramento, situação de iluminação, disposição e qualidade da
luz, além de cores, cenários e todos os elementos relacionados à arte (direção de arte).
No caso de filmes com efeitos especiais e objetos virtuais, deve ser pensada a interação dos
atores com esses elementos, além do posicionamento e enquadramento dos mesmos.
Quando a gravação ocorrer fora do estúdio, utilizando locações, a preocupação deve ser que
elas devem ser adaptadas para serem utilizadas como set de filmagens. Nem sempre a câmera
poderá ocupar a posição para o melhor quadro, nem sempre é possível fazer a composição no
quadro com todos os elementos desejados do cenário.
6 Pré-visualização de cena e Storyboard
Existe um ditado que diz que uma imagem vale mais do que mil palavras, portanto, é
importante escolher quais palavras a sua imagem irá dizer ao público. Na produção de
81
conteúdo essas imagens normalmente começam através do Storyboard na fase de préprodução e planejamento.
6.1 Storyboard
Filmes começam com o roteiro, uma história escrita. A ação e o diálogo do personagem é
descrita no roteiro como se estivesse acontecendo no presente. A partir dele o planejamento
pode começar visualmente, que é onde o storyboard começa. Storyboarding não é apenas
uma tradução do roteiro, o plano verbal, em uma série de imagens visuais, é abordagem para
interpretar e contar visualmente a história. Hitchcock sabia disso e há rumores dele ter falado
uma vez que quando o storyboard estivesse pronto, 95% do filme estava concluído, o resto era
a execução do plano (ABLAN, 2002, p.25; GLEBAS, 2009, p.47).
O Storyboard é uma ferramenta para visualmente apresentar, em uma sequência de desenhos,
o roteiro do projeto. Esses desenhos são conceituais, que podem variar desde ilustrações
profissionais ricas em detalhes até simples esboços de idéias. O importante é que a
comunicação, por meio desses desenhos, seja efetiva, que as equipes possam entender a idéia
sendo transmitida e o que fazer, tecnicamente, naquela cena a ser filmada. Permitindo assim
que a equipe organize e planeje toda a ação antes que as filmagens sejam realizadas na etapa
de produção (HART, 2007, p.1; BARNWELL, 2008, p.88).
Storyboards bem elaborados servem não só como um guia para o artista, mas também
permite que o diretor, atores, diretores de fotografia e efeitos especiais, editores, etc. se
preparem adequadamente. Dessa forma ajudando, por exemplo, o editor a reunir as
filmagens, organizando corretamente a continuidade da história e cenas na ordem planejada.
Auxilia à equipe de iluminação a determinar a iluminação mais adequada para cada filmagem,
os atores podem ensaiar suas atuações nas cenas e o diretor pode trabalhar no
posicionamento dos objetos em cenas e no enquadramento. Também servem para ajudar a
decidir quais serão as dimensões de cada quadro, composição de cena, tipo de câmera e lente
a ser usado, como a câmera pode se mover em uma cena específica, entre outras utilizações
(ABLAN, 2002, p.26-27; BARNWELL, 2008, p.88-89).
Existem diversos tipos de storyboards que são utilizados na hora de planejar a história e a
escolha de qual tipo aplicar depende das necessidades artísticas, financeiras e do meio a ser
transmitido a história final (GLEBAS, 2009, p.48).
Por exemplo, em audiovisuais de live action, onde existe uma mistura entre personagens ou
objetos reais e virtuais, não é preciso apresentar as emoções dos personagens, já que os
atores terão suas próprias interpretações na fase de produção. Storyboards também são
utilizados no planejamento de filmes com efeitos especiais. Muitas vezes, estas cenas serão
composições entre cenas de atores e objetos reais com os efeitos especiais gerados por
computador (GLEBAS, 2009, p.48).
6.2 Pré-visualização
A pré-visualização 3D posibilita uma visualização de objetos virtuais, no ato da filmagem, para
o diretor e os operadores de câmera. Um objeto 3D é inserido no cenário virtual para dar uma
82
prévia da composição final da cena. Esses objetos virtuais podem ser cenários, personagens,
objetos de cena, entre outros (GRAU et al., 2004, p.9).
A pré-visualização é uma ferramenta visual que ocorre antes da criação de objetos complexos,
traz economia e retorno rápido, posibilita a exploração de idéias, comunicação e coloaboração
e orienta as próximas etapas de produção (OKUN, ZWERMAN, 2010, p.54).
A pré-visualização tornou-se parte de muitas grandes produções na América do Norte e
Europa, principalmente aqueles com cenas de efeitos visuais pesados. A pré-visualização
auxilia na criação de seus filmes, desde o planejamento à produção (WONG, 2012, p.18).
Existem diversos sub-tipos de pré-visualizações como o Pitchvis, D-Vis, Technical Previs, On-Set
Previs e Postvis (OKUN, ZWERMAN, 2010, p.54-55):
A) Pitchvis ilustra o potencial de um projeto de aprovado. São sequências conceituais,
para serem refinadas ou substituídas durante a pré-produção. (OKUN, ZWERMAN, 2010, p.54)
B) D-Vis (Visualização do Design) utiliza uma estrutura virtual na pré-produção que
permite a colaboração inicial do projeto entre os cineastas. Antes das filmagens serem
desenvolvidas, D-Vis proporciona uma estrutura virtual precisa de design no âmbito do qual as
necessidades de produção podem ser testadas e as locações podem ser selecionados. (OKUN,
ZWERMAN, 2010, p.55)
C) A Pré-visualização Técnica (Technical Previs) gera informações precisas sobre a
câmera, iluminação, o design e o layout de cena para ajudar a definir os requisitos de
produção. (OKUN, ZWERMAN, 2010, p.54)
D) A Pré-visualização On-Set (On-Set Previs) cria em tempo real, visualizações, no local
de filmagem, para auxiliar o diretor, diretor de fotografia, supervisor de efeitos visuais, e a
equipe a rapidamente avaliar as imagens capturadas. Isso inclui o uso de técnicas de
composição de filmagem ao vivo com elementos virtuais para um retorno imediato de como
seria aquela cena na fase de pós-produção. (OKUN, ZWERMAN, 2010, p.55)
E) Postvis combina elementos digitais e filmagens da produção para validar a seleção
de metragem de filme e fornece marcadores de posição de frame para o editorial. Edições
incorporando sequências de Postvis são frequentemente mostradas para um público teste
para obter opiniões, e aos produtores e a equipe de efeitos visuais para o planejamento e
orçamento. (OKUN, ZWERMAN, 2010, p.55)
Vale ressaltar que a pré-visualização estudada e utilizada no presente trabalho é uma
combinação entre três tipos de pré-visualizações, o D-Vis, a Prévisualização Técnica e a Prévisualização On-Set. Essa combinação acontece pelo fato do ambiente oferecer uma área em
que possam ser testados, manipulados e alterados elementos reais e virtuais em cena que
após selecionados podem ser utilizados em outras fases da produção e pré-visualização como
no modo D-Vis. Proporcionar um ambiente para manipulação, coleta de dados e definição das
características referentes ao posicionamento da câmera, enquadramento, iluminação, etc.,
como no modo de pré-visualização técnica. E, finalmente, por possuir características de
83
composição de cenas filmadas com elementos virtuais em 2D ou 3D em tempo real como no
modo de pré-visualização On-Set.
7 Estruturação de cenas com ARSTUDIO
O objetivo dos experimentos relatados a seguir é demonstrar uma proposta de utilização do
ARSTUDIO no planejamento de cenas, como ferramenta de pré-visualização, analisando os
requisitos necessários e a eficiência da ferramenta para a obtenção de determinados efeitos.
Para a inserção dos objetos em cena, foram utilizados marcadores fiduciais planos, fixados em
paredes ou superficies, e marcador cúbico, para a manipulação pelo ator. A imagem do
marcador, quando capturada pela câmera, é reconhecida pelo sistema do ARSTUDIO que é
capaz de posicionar o objeto virtual alinhado correntamente com o ambiente. O marcador
cúbico tem como particularidade a capacidade exibir sempre uma de suas faces intependente
de seu posicionamento, permitindo o reconhecimento pelo sistema mesmo que o ator
rotacione o cubo. A figura 1 ilustra os marcadores.
Figura
1:
Marcador
Fonte: Elaborada pelos próprios autores
plano
e
marcador
cúbico
7.1 Ambiente de Filmagem
O ambiente utilizado para os experimentos é apresentado na figura 2. Nesta figura
também está demonstrada a visão do operador do estúdio virtual, ARSTUDIO, bem como o set
de filmagem e na televisão é oferecida um retorno ao ator para que o mesmo possa ter uma
referência visual do cenário e objetos virtuais.
84
Figura
2:
Ambiente
Fonte: Elaborada pelos próprios autores
de
Filmagem
7.2 Experimento 1
Nesse experimento (figuras 3 e 4) é apresentado uma proposta de cena com ator real e efeitos
especiais. O fundo verde é substituído pelo cenário virtual e o objeto virtual inserido por meio
de marcador.
85
Figura 3: Storyboard do Experimento
Fonte: Elaborada pelos próprios autores
86
1
-
Imagem
gerada
pelo
ARSTUDIO
Figura 4: Storyboard do Experimento 1 - Imagem original capturada pela câmera
Fonte: Elaborada pelos próprios autores
Nesse caso, foi utilizada, como cenário, uma imagem próxima da que será criada na pósprodução, servindo como ideia prévia da ambientação da cena.
O objeto virtual (dragão) tem geometria e acabamento simplificado (um menor número de
vertices e planos em sua malha polygonal) para o uso nesta fase de planejamento. Foi utilizado
um marcador fiducial na parede do estúdio para inserir o objeto na cena, utilizando o
ARSTUDIO para posicionar, rotacionar e definir a escala do objeto 3D. Foi utilizado também um
marcador cúbico para a manipulação do objeto virtual pelo ator em que toda movimentação e
rotação feita pelo ator sobre o marcador se reflete no objeto virtual inserido.
87
Os marcadores também serviram como referência visual para o ator quanto a posição do
objeto na cena, sabendo ele para onde olhar, como se movimentar e gesticular.
7.3 Experimento 2
No segundo experimento (figuras 5 e 6) é apresentado uma cena com ator real, objeto com
marcador tangível e efeitos especiais. O fundo verde é substituído pelo cenário virtual e o
objeto virtual inserido por meio de marcador associado a interface tangível, que nesse caso é
um objeto com dimensão próxima do objeto virtual a ser inserido.
Figura 5: Storyboard do Experimento
Fonte: Elaborada pelos próprios autores
88
2
-
Imagem
gerada
pelo
ARSTUDIO
Figura 6: Storyboard do Experimento 2 - Imagem original capturada pela câmera
Fonte: Elaborada pelos próprios autores
Nesse caso o ator é beneficiado por ter um retorno tátil do objeto que está manipulando. As
ações que o ator realiza sobre a interface tangível são processadas e exibidas em tempo real.
7.4 Experimento 3
No terceiro experimento (figuras 7 e 8) é apresentado uma cena com ator real, objetos de
cena reais e virtuais, utilizando um cenário real de uma locação.
89
Figura
Fonte:
90
7:
Storyboard do Experimento 3
Elaborada
pelos
-
Imagem gerada
próprios
pelo
ARSTUDIO
autores
Figura 8: Storyboard do Experimento 3 - Imagem original capturada pela câmera
Fonte: Elaborada pelos próprios autores
91
Os objetos virtuais foram posicionados sobre a mesa e na parede (objetos reais). O sistema do
ARSTUDIO pode ser utilizado também fora do estúdio para o planejamento da cena em uma
locação. O benefício para a produção é que durante a fase de pesquisa de locação, é possível
realizar ensaios e pré-visualização da cena mesmo sem a presença de todos os objetos reais ou
mesmo inserindo objetos virtuais no cenário da locação, que podem ser facilmente trocar por
outros objetos.
7.5 Experimento 4
O quarto experimento (figuras 9 e 10) ilustra o uso de atores reais com personagens virtuais,
bem como a realização de ensaios sem estar presente na locação, utilizando-se uma imagem
estática.
É possível ver nas imagens a mudança de posição e rotação do personagem virtual conforme
ocorre a progressão da história. Uma vantagem do uso de personagens virtuais é poder testar
as cenas sem a presença de todo elenco durante a fase de planejamento.
Com relação ao cenário, a equipe pode utilizar um conjunto de imagens da locação. Tendo
essas imagens prévias, é possível executar o planejamento da cena em estúdio.
Figura 9: Storyboard do
Experimento 4 - Imagem
gerada pelo ARSTUDIO
Fonte: Elaborada pelos
próprios autores
92
Figura 10: Storyboard
do Experimento 4 Imagem
original
capturada
pela
câmera.
Fonte:
Elaborada
pelos
próprios
autores
93
8 Conclusão
Estúdios virtuais com Realidade Aumentada permitem que objetos virtuais sejam inseridos em
fases anteriores à pós-produção onde tradicionalmente eles são colocados. Assim, com
ferramentas como o ARSTUDIO, é possível que esses elementos sejam renderizados em
tempo, estando eles presentes não na fase on-set, mas também durante a pré-produção.
A utilização dessas técnicas durante o planejamento da obra traz vantagens para a produção
como evitar erros durante as gravações, gerando assim economia de custos. Além disso, pode
ser aplicada como ferramenta de pré-visualização, dando flexibilidade para elaborar, alterar e
ajustar o Stotyboard. Dessa forma constitui-se como ferramenta prática para testes e
exploração de ideias criativas.
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95
Capítulo 3 - Processos e práticas de roteirização
Do filme à série: estratégias discursivas e narrativas no processo de
roteirização de “Bates Motel”
Bruno Jareta de Oliveira (UNESP) - [email protected]; Octavio Nascimento Neto
(UNESP) - [email protected]; Elissa Schpallir Silva (UNESP) – [email protected]
Resumo
Os seriados televisivos têm potencial de criar fortes vínculos com um público por permitir a
criação de paralelos dramáticos mais férteis, e estudar como estes universos ficcionais são
criados é essencial para roteiristas e pesquisadores de linguagem audiovisual. É meta desta
pesquisa entender de que maneira a série Bates Motel (que estreou em 2013) consegue,
através de estratégias discursivas e narrativas, funcionar como um prelúdio contemporâneo de
Psicose (consagrado suspense de Alfred Hitchcock de 1960) e derivar um seriado com mais de
três temporadas a partir de um filme com duração de 109 minutos. Será utilizado o percurso
gerativo de sentido da semiótica discursiva para compreender as estruturas de ambas e
identificar os recursos utilizados pelos roteiristas para atingir esses objetivos. O estudo
pretende trazer contribuições para pesquisadores e produtores deste tipo de narrativa
audiovisual.
Palavras Chave: série, televisão, adaptação, roteiro.
Abstract
Television series have the potential to create strong bonds with audiences by allowing the
creation of more fertile dramatic arches. The study of how these fictional universes are
created is essential for writers and researchers of audiovisual language. It is goal of this
research to understand how the TV series “Bates Motel” (which premiered in 2013), through
discursive and narrative strategies, can function as a contemporary prelude to Alfred
Hitchcock's “Psycho” (1960 movie), deriving three seasons from a 109 minutes movie. It will
use the generative trajectory of discursive semiotics to understand both structures and
identify the resources used by writers to achieve these goals. The study aims to bring
contributions for researchers and producers of this type of audiovisual narrative.
Key Words: series, television, adaptation, screenplay.
Introdução
Nos últimos anos, as ficções seriadas televisivas – um movimento que se inicia com as norteamericanas, mas que já se espalhou para outros mercados – têm adquirido novos aspectos,
adotando novas formas de storytelling e conquistando o interesse de público, crítica e
pesquisadores. Em oposição aos formatos episódico e seriado característicos das séries que
existiam até então, as produções das últimas duas décadas são marcadas por sua
96
complexidade narrativa (Mittel, 2012, p.30), em que se unem elementos desses dois formatos
e inserem-se recursos como multiprotagonismo, diversificação e prolongamento de arcos
narrativos, continuidade das histórias - sem que haja necessariamente um fechamento da
trama a cada episódio – e hibridismo de gêneros (ibidem, p. 36). Além da complexificação
narrativa, também se destacam transformações do ponto de vista estilístico e estético, sendo
cada vez mais frequentes séries com propostas que demandam grandes investimentos de
produção, principalmente nas áreas de direção de arte, direção de fotografia e pós produção.
Para Silva (2014), o lugar de destaque ocupado pelas séries nas últimas décadas se deve a três
condições centrais: sua forma – com desenvolvimento de novos modelos narrativos e
permanência e reconfiguração dos clássicos -; o contexto tecnológico que impulsiona a
circulação dos conteúdos, facilitando o acesso – com destaque para os serviços de streaming
como Netflix e HBO Go -; e o consumo desses programas, que envolve uma cultura de fãs
engajados.
Para Mario Carlón (2014), algumas séries de TV têm superado a oferta cinematográfica de
Hollywood em termos de valores criativos. Para o autor, elas são um dos principais produtos
da televisão mundial e, “nos últimos anos, alcançaram notável reconhecimento acadêmico.
São séries tão bem sucedidas que discutem, hoje, o lugar histórico do filme de Hollywood
como provedor de ficções globais” (CARLÓN, 2014, p. 21-22). Segundo Mittel (2012, p. 33),
muitos dos programas televisivos que seguem esse modelo são obras de produtores, diretores
e roteiristas de carreira cinematográfica, como David Lynch, Aaron Sorkin, J. J. Abrams, entre
outros. Para o autor, a televisão tem um apelo e possibilidades específicas, que permitem ao
realizador um aprofundamento de tramas e personagens mais amplo que no cinema:
O apelo da televisão vem em parte de sua fama como um meio repleto de
produtores e no qual escritores e realizadores têm mais controle sobre sua
obra do que no modelo do cinema centrado na figura do diretor. (…) Muitos
desses escritores aceitam os grandes desafios e possibilidades criativas nos
formatos seriados longos, já que o aprofundamento na caracterização das
personagens, a continuidade do enredo e as variações a cada episódio não
são possíveis num filme de duas horas de duração. Enquanto a inovação na
narração fílmica aparece como um modelo raro nos últimos anos,
encontrada em filmes na linha quebra-cabeça como Amnésia e Adaptação,
(...) muitos programas televisivos narrativamente complexos figuram entre
os mais bem-sucedidos do meio, dando a entender que o mercado
destinado à complexidade é mais valorizado na televisão do que no cinema.
(MITTEL, 2012, p. 33)
Essa possibilidade de complexificação e aprofundamento em relação às obras cinematográficas
pode ser verificada num fenômeno que tem se tornado cada vez mais frequente: a tendência
em aproveitar na televisão universos narrativos fílmicos. Exemplos recentes são as séries
Scream (MTV), baseada na franquia de filmes “Pânico”, de Wes Craven, Um Drink no Inferno
(El Rey Network e Netflix), adaptação do filme de mesmo nome, dirigido por Robert Rodriguez,
e Bates Motel (A&E), cuja narrativa foi criada como prelúdio do filme Psicose, de Alfred
Hitchcock.
Em consonância com as propostas e reflexões realizadas pelo Grupo de Estudos Audiovisuais
(GEA) da Universidade Estadual Paulista (UNESP) e com a finalidade de contribuir com
roteiristas e pesquisadores de narrativas seriadas, este trabalho pretende lançar um olhar
97
sobre a questão da transposição dos universos fílmicos para a televisão. Tomamos por objeto a
série Bates Motel, por trazer em sua proposta particularidades que suscitam problemas de
pesquisa instigantes: trata-se de uma série contemporânea, que se passa nos dias atuais, e que
ainda assim é prelúdio de um filme da década de 60. Este trabalho explora seu processo de
roteirização, buscando compreender como criar tramas que preencham os episódios a partir
do filme, mantendo com ele coesão apesar da inversão cronológica.
Serão apresentadas na próxima seção as duas obras relacionadas ao problema de pesquisa
deste trabalho, Psicose e Bates Motel, para, em seguida, analisar de acordo com o percurso
gerativo de sentido da semiótica de linha discursiva as estruturas narrativa e discursiva de
ambas, visando compreender as estratégias utilizadas pelos roteiristas para atingir os objetivos
anteriormente explicados.
O filme e a série
Adaptado das páginas do romance Psicose (com primeira edição em 1959) do escritor
estadunidense Robert Bloch, o filme Psicose - produzido e dirigido por Alfred Hitchcock, escrito
por Joseph Stefano e estrelado por Anthony Perkins, Vera Miles, John Gavin e Janet Leigh tornou-se um marco na história do cinema. A obra cinematográfica passou a ser a maior
articulação na tradução da obra literária de Bloch e foi indicado à cinco categorias do Oscar.
Sobre o sucesso do filme:
Não havia otimismo ou golpe publicitário cuidadosamente orquestrado que
tivesse preparado os envolvidos — e muito menos Hitchcock — para o
incêndio que o filme estava espalhando. Ninguém previra a intensidade com
que Psicose iria penetrar no subconsciente dos americanos. Desmaios.
Saídas no meio da sessão. Espectadores que voltavam várias vezes.
Boicotes. Cartas e telefonemas furiosos. Conversas sobre proibir sua
exibição aconteciam nos púlpitos das igrejas e nos consultórios dos
psiquiatras. Nunca um diretor havia tocado nas emoções do público como se
elas fossem os pedais de um órgão. Os espectadores americanos foram os
primeiros a reconhecer o monstro que Hitchcock tinha criado. (REBELLO,
2013, arquivo digital).
Através de artifícios específicos da linguagem audiovisual, como a câmera posicionada em
noventa graus e a estratégia da realização de ações fora da tela de exibição, o filme manteve o
mistério principal que se fundamenta a narrativa: Norma Bates está morta e é Norman quem
se realiza as ações fingindo ser a mãe. Para compor a obra literária Robert Bloch inspirou-se no
caso real do assassino de Wisconsin, Ed Gein. Do mesmo modo que Gein, Norman Bates é um
assassino solitário que vive em uma localidade rural isolada e tem um relacionamento
conturbado com sua mãe.
A história é iniciada com Marion Crane, uma jovem que rouba o dinheiro de seu patrão para
fugir, encontrar seu noivo e começar uma vida juntos. No caminho, não planejado graças a um
desvio da rodovia e uma forte chuva, acaba parando no Bates Motel, onde é atendida por
Norman. Nesse quarto de motel Marion é assassinada no chuveiro por uma figura que parece
ser Norma Bates, mãe de Norman, mas esse personagem nunca é mostrado nitidamente nas
cenas. Enquanto familiares e policiais buscam desvendar o sumiço de Marion, o público tenta
entender o mistério e motivos que rondam as ações de Norma Bates. Apenas na cena final é
mostrado que Norman se passava pela mãe. O rapaz possui um transtorno dissociativo de
98
identidade, revelando como sua segunda personalidade a mãe já falecida. Quando essa
segunda personalidade está no comando de suas ações ele age sendo protetor, controlador e
afastando as mulheres que se aproximam de Norman.
Desenvolvida por Carlton Cuse, Kerry Ehrin e Anthony Cipriano, produzida pela Universal
Television e exibida pela A&E, Bates Motel é uma série de televisão americana que estreou em
2013. A obra narra a vida de Norman Bates desde sua adolescência, e para isso os criadores se
basearam no personagem do filme Psicose. As três primeiras temporadas foram sucesso de
público e crítica, fatores que garantiram mais duas temporadas encomendadas pela emissora e
que posicionaram a série entre as com mais investimentos publicitários na TV a cabo
americana.21
Enquanto o filme se sustenta no mistério de que a mãe está morta e Norman que se passa por
ela, na série o público já sabe, graças à obra de Hitchcock, que Norma irá morrer e que
Norman será não somente um assassino serial, mas também o assassino de sua própria mãe. A
narrativa principal da série se torna o relacionamento entre mãe e filho, que resultará nas
condições apresentadas no filme. A trajetória de Bates Motel descreve os acontecimentos
anteriores aos do filme Psicose, e o produtores apostam em cativar os espectadores ao
apresentar cada avanço na doença de Norman e através das ações inescrupulosas que Norma
comete para conseguir encobrir essa condição do filho.
Apesar de se inspirar nos personagens de Psicose e trilhar os acontecimentos anteriores aos de
Marion chegando no motel, Bates Motel tem a história ambientada nos dias atuais e não na
década de 30 ou 40 - época na qual teria vivido o jovem Norman Bates do filme. A trama
apresenta ainda novas histórias conectadas a vida dos personagens centrais e que, apesar de
não estarem apontadas no filme, também não são negadas. São exemplos desses novos
elementos narrativos o tráfico de drogas na cidade e outros membros da família Bates.
Estratégias narrativas e discursivas
A linguagem audiovisual é uma manifestação textual organizada em um sistema de linguagem,
e, portanto, os seriados e filmes podem ser compreendidos e analisados a partir dos
arcabouço téorico-metodológico da semiótica de linha discursiva. Visando elucidar as questões
relacionadas ao problema de pesquisa proposto, serão explicados a seguir os pressupostos
teóricos relacionados à sintaxe narrativa e a semântica discursiva do percurso gerativo de
sentido.
Para compreender o plano do conteúdo de qualquer manifestação, a semiótica desenvolveu
um modelo de análise da significação: o percurso gerativo de sentido. Segundo Fiorin (2005, p.
20), ele “é uma sucessão de patamares, cada um dos quais suscetível de receber uma
descrição adequada, que mostra como se produz e se interpreta o sentido, num processo que
vai do mais simples ao mais complexo”. Segundo o autor, o percurso é composto por três
níveis, o fundamental, o narrativo e o discursivo, e em cada um há um componente sintáxico e
um componente semântico. Para compreender como os roteiristas de Bates Motel criam
21
Informação disponível em: <http://variety.com/2015/tv/news/bates-motel-renewed-season-4-ae-1201517941/>. Acesso em: 18
out. 2015.
99
tramas a partir de Psicose e de que maneira a inversão cronológica não afeta a coesão da
série, interessará para este estudo elucidar a sintaxe narrativa e a semântica discursiva.
Fiorin (2005, p. 27) explica que ocorre uma narrativa mínima quando há uma transformação de
estados, ou seja, quando há um estado inicial, uma transformação e um estado final. Há,
portanto, dois tipos de enunciados elementares na sintaxe discursiva: o enunciado de estado e
o enunciado de fazer. Para entedê-los é preciso estabelecer a relação entre sujeitos e objetos.
De acordo com Barros (2005), é a relação observada no próprio texto que define os actantes
sujeitos e objetos: “o sujeito é o actante que se relaciona transitivamente com o objeto, o
objeto aquele que mantém laços com o sujeito” (BARROS, 2005, p. 17). Para exemplificar,
pode-se aferir que em Psicose, a personagem Marion, ao desejar recomeçar a vida com mais
recursos, é um sujeito que busca o objeto “recomeçar a vida”. Há dois tipos de relações entre
sujeito e objeto: a junção e a transformação, e essas duas relações que estabelecem a
distinção entre enunciado de estado e enunciado fazer (BARROS, 2005). Quando há uma
transformação (enunciado de estado seguido por um de fazer que o modifica a outro de
estado, diferente do primeiro) é composto um programa narrativo, e a sucessão de programas
compõe um percurso narrativo, ou, quando esse percurso segue a trajetória de um sujeito, há
um percurso do sujeito (BARROS, 2005).
Ao retomar o primeiro componente do problema de pesquisa - de que maneira Bates Motel
cria tramas a partir de Psicose - é possível identificar, observando a sintaxe narrativa de ambas
as obras audiovisuais, que os roteiristas do série selecionaram elementos específicos do filme
para construir percursos narrativos que culminassem neste elemento, uma vez que os
acontecimentos do filme são posteriores ao da história acompanhada na TV.
O elemento “taxidermia” é um deles. O público sabe, pelo filme, o interesse que Norman Bates
tem pela técnica de encher de palha o corpo de um animar morto para preservar sua
aparência. Um dos cômodos do motel é enfeitado com diversos animais empalhados. Esta
questão não é explorada além disso no filme. Na primeira temporada da série, Norman, mais
jovem, tem o interesse pela taxidermia despertado ao conhecer o pai taxidermista de uma de
suas amigas. O público, dessa vez, acompanha o processo de aprendizado de Norman, e
conhece a relação que este hobbie passa a ter com as inquietações do personagem.
Outro exemplo que ilustra o recurso de roteirização é o “desvio da rodovia”. A série explora
um curto diálogo relacionado a esta questão no filme. Na obra cinematográfica, Norman
justifica a recém chegada hóspede Marion que o motel está com todos os quartos disponíveis
graças a um desvio na rodovia feito no passado, tirando o estabelecimento da rota principal
dos viajantes. Em Bates Motel, já no primeiro episódio da primeira temporada, tem início o
embate de Norma contra as instituições e figuras públicas da cidade que convocam a
população, através de um cartaz, para uma reunião na qual será discutida a intenção de
construir um desvio na rodovia. No decorrer das temporadas o público acompanha a evolução
desses acontecimentos, apesar de já saber que, no futuro, a rodovia será construída de
qualquer forma - informação verificada no filme.
Os dois exemplos citados, “taxidermia” e “desvio da rodovia”, são elementos simples na
narrativa acompanhada no filme de 1960, porém são fontes para que percursos narrativos
específicos sejam desenvolvidos. Esta estratégia não só conecta os universos ficcionais, como
100
permite que extensos acontecimentos sejam exibidos na série. Desta forma, os episódios
passam a ser preenchidos com extensas histórias adequadas à estrutura segmentada e
complexa de uma série pensada para ser exibida na televisão e que possuem vínculo com o
filme (um dos objetivos da proposta de Bates Motel). Este modo de conceber percursos
narrativos associado a outros percursos criados exclusivamente para a série e que não
possuem ligação direta com o filme compõe a estrutura narrativa criada pelos roteiristas e
pode
ser
representada
de
acordo
com
a
figura
1.
Figura 1: representação dos percursos narrativos da série que partem de elementos do filme.
Fonte: elaborado pelos autores.
Para responder à outra questão do problema de pesquisa - como manter a coesão invertendo
a cronologia dos fatos - serão retomadas as explicações relacionadas ao percurso gerativo de
sentido. Desta vez, o que auxiliará a análise é a compreensão da semântica discursiva.
É no nível discursivo que as formas mais abstratas estabelecidas no nível narrativo ganham
concretude (FIORIN, 2005). Para exemplificar, enquanto no nível narrativo há um sujeito em
disjunção do objeto, no discursivo é estabelecido que, no filme, Marlon não está satisfeita com
as conquistas de sua vida. A mesma disposição narrativa é verificada na série, quando Norma
não garante que o motel permaneça na rota dos viajantes que passam pela cidade. Em ambos
os casos é no nível discursivo que são dadas concretudes diferentes a uma mesma
configuração da sintaxe narrativa: sujeito em disjunção do objeto.
E nesta etapa da significação, portanto, que são estabelecidos os temas e figuras de um texto,
componentes da semântica discursiva: tematização consiste em formular valores de modo
abstrato e organizá-los em percursos; figurativização em estabelecer quais conteúdos mais
“concretos” recobrem os percursos temá cos (BARROS, 2005). Na observação das estruturas
discursivas das duas obras audiovisuais, é possível verificar que esses dois procedimentos
101
semânticos são responsáveis por fazer com que não fique incoerente um prelúdio que se passa
cronologicamente depois.
As figuras estabelecidas na série são contemporâneas e muitas seriam impossíveis na décadas
de 30 ou 40. Norman, por exemplo, possui um smartphone e o usa com frequência. Outro
exemplo é o cadastro de hóspedes na recepção do motel: na série ele é feito em um
computador, enquanto no filme é feito em um caderno de registros. É possível notar que,
apesar das muitas figuras da série pertencerem aos dias atuais, a coerência é mantida graças à
tematização, que permanece entre as duas obras. Temas como “psicopatia”, “ciúmes entre
mãe e filho”, “interesse pela morte”, “mistérios”, “roubos” e “crimes”, são recorrentes nas
duas obras, apesar de estarem concretizados num processo distinto de figurativização.
Outras estratégias também podem ser notadas em diversos recursos audiovisuais. A
arquitetura do motel e da casa ao lado, onde reside a família Bates, se assemelha nas duas
obras. Outro exemplo é o figurino designado aos personagens, que mantém traços visuais
entre uma representação e outra. A trilha sonora da série, apesar de não ser a mesma do
filme, explora arranjos e instrumentos semelhantes à clássica trilha composta para o filme de
Hitchcock, sobretudo nos momentos de suspense. Os enquadramentos e ângulos de câmera
escolhidos para a série também indicam uma inspiração no filme (figura 2). Os próprios
diálogos construídos no processo de roteirização buscam reforçar esse vínculo entre as duas
obras. No filme, por exemplo, Norman diz à Marion: “Todos nós enlouquecemos as vezes”; na
terceira temporada da série o público vê Norma dizendo exatamente a mesma frase ao filho,
após um momento de descontrole do jovem.
Figura 2: enquadramento e ângulo de câmera da série (à direita), inspirados nos do filme (à
esqueda).
Fonte: print screen do filme Psicose e da série Bates Motel
Todas estas estratégias garantem que, apesar de agora ter smartphone, o Norman da série é o
mesmo do filme, só que mais jovem. A potencial estranheza que algo que acontece antes e se
passa depois pode gerar é suprimida pela combinação dessas estratégias associadas a uma
estrutura e evolução dos percursos narrativos que, estes sim, possuem um ordenamento
linear. Enquanto a inspiração para o roteiro é do filme à série, e linearidade narrativa é da
série ao filme.
Considerações finais
102
A análise das obras Psicose e Bates Motel apontam que, ao explorar elementos pontuais do
filme, é dada aos roteiristas uma ampla gama de possibilidades narrativas para a série.
Aproveitar momentos ou aspectos objetivos da obra de Hitchcock na criação e
desdobramentos de novos e extensos percursos narrativos na série não só garante o vínculo
com a filme, como permite que a história seja contada de maneira segmentada, complexa e
com os mistérios e suspenses trabalhados de acordo com as condições da experiência e fruição
televisiva. Esta tática abre também a possibilidade para a inserção de novos gêneros e
personagens na trama.
A partir da observação do corpus também é possível compreender os procedimentos adotados
pelos roteiristas e produtores para desenvolver uma história ambientada nos dias atuais e que
tenha acontecido antes de outra história ambientada, dessa vez, há mais de meio século. As
estratégias discursivas de tematização - que permanece entre as duas obras - e a de
figurativização - que atualiza a ambientação -, associadas a outras estratégias audiovisuais como cenografia, figurino, trilha sonora e diálogos - sobrepõem a incoesão temporal da
proposta. A tematização permanecendo a mesma também aumenta as chances da série não
desagradar público e crítica, uma vez que respeita as ideias e atmosferas sustentadas pelo
filme.
Os procedimentos observados e analisados neste trabalho são potenciais técnicas de
roteirização para novas obras a partir de obras já existentes, e corroboram com a tendência
observada no mercado audiovisual em aproveitar universos ficcional com fãs já estabelecidos,
oferecendo a eles o que todo fã sempre buscará: mais conteúdo daquele universo ficcional.
Referências bibliogáficas
BARROS, D.L.P. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2005.
CARLÓN, M. Repensando os debates anglo-saxões e latino-americanos sobre o “fim da
televisão”. In: FECHINE, Y. CARLÓN, M. O fim da televisão. (Orgs.) Rio de Janeiro: Confraria dos
ventos, 2014.
FIORIN, J.L. Elementos de análise do discurso. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2005.
FECHINE, Y. Da minissérie ao filme: uma montagem orientada pela convergência de mídias. In:
FIGUEIRÔA, A.; FECHINE, Y. (eds.). Guel Arraes, um inventor no audiovisual brasileiro. Recife:
Companhia Editora de Pernambuco, 2008
MITTEL, J. Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea. In: Matrizes, São
Paulo, ano 5, n. 2, p. 29-52, jan./jun. 2012.
REBELLO, S. Alfred Hitchcock e os Bastidores de Psicose. Trad: Rogério Durst. Rio de Janeiro:
Intrínseca – Ed. Digital, 2013.
SILVA, M. V. B. Cultura das séries: forma, contexto e consumo de ficção seriada na
contemporaneidade. Galaxia (São Paulo, Online), n. 27, p. 241-252, jun. 2014. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/1982-25542014115810.>. Acesso em: 16. out. 2015.
103
Desenho da Notícia; Uma experiência jornalística em quadrinhos.
Prof. Dr. Ricardo Bruscagin Morelatto. Universidade Mackenzie. [email protected];
Carolina Lopes Rodrigues. Universidade Mackenzie. [email protected]
Resumo:
Partindo do pressuposto da possibilidade de tradução de uma notícia jornalística para a
linguagem dos quadrinhos, “Desenho da Notícia” é um blog que pretende realizar esta
comunicação intertextual entre duas formas distintas de comunicação. Desde 2011 realiza um
trabalho conjunto resultado do esforço da jornalista e roteirista Carolina Lopes e do designer
Ricardo Morelatto para a veiculação de quadrinhos em mídia digital com conteúdo jornalístico
educativo. Através da roteirização de algumas notícias e fatos históricos pontuais desenvolveu
até o ano de 2014 mais de uma dúzia de quadrinhos digitais utilizando como tema fatos
culturais e sociais como também notícias do cotidiano e efemérides. Recebeu no ano de 2012
o prêmio “Top Blog” na categoria jornalismo e forneceu conteúdo para importantes órgão de
comunicação como o jornal “Estado de São Paulo” e outros veículos digitais parceiros.
Atualmente realiza uma compilação dos conteúdos desenvolvidos para publicação em mídia
impressa e registro da produção realizada ao longo destes anos. Como esforço de pesquisa se
constitui em importante tentativa na consolidação de um discurso e na formatação de uma
metodologia para a criação de narrativas em quadrinhos com conteúdo informativo
educacional.
Palavras chave: Quadrinhos; Jornalismo; Intertextualidade.
Abstract:
From the assumption of the journalistic news translation into the comics language, “Desenho
da Notícia” is a blog which intends to accomplish such a intertextual communication between
these two forms of expression. Since 2011 develops a work that results from the effort of
journalist and screenwriter Carolina Lopes and designer Ricardo Morelatto for the publication
of journalistic content comics in digital media. Through the routing of some news and historical
events it has developed up to 2014 over a dozen digital comics using as themes, cultural and
social facts as well as daily news. It has received in 2012 the “Top Blog Award” in the
Journalism category and it has provided content to major medias such as “O Estado de São
Paulo” and other digital medias partners. Nowadays it compiles contents that are developed
for publication in press media and also registers its production over the years. As an effort in
research it constitutes an attempt in consolidating a speech as well as stablishing a
methodology towards the creation of a comics narrative with educational informative content.
Key words: Comics; Journalism; Intertextuality.
1-Introdução:
Pensando na possibilidade de tradução de uma notícia jornalística para a linguagem dos
quadrinhos, em 2010 foi criado o blog denominado “Desenho da Notícia”
(http://www.desenhodanoticia.com.br) que publicou alguns exercícios criativos neste sentido.
104
A princípio elencou uma série de tópicos temáticos que tinha por finalidade a publicação
periódica de assuntos cotidianos e pautas jornalísticas, bem como datas comemorativas e
algumas narrativas pontuais, sempre em quadrinhos.
Este esforço nasceu da uma parceria entre os autores do projeto, com algumas especialidades
distintas; O design gráfico e a ilustração em uma ponta e o jornalismo, desenvolvimento de
roteiros e análise do discurso em outra.
Utilizando como texto base a notícia em si, foi se desenvolvendo um método de roteirização,
para possibilitar a tradução em quadros ilustrados que se aproximavam muito das narrativas
sequenciais das fotonovelas e histórias em quadrinhos tradicionais. Assim foi tomando forma
um exercício de tradução intertextual que deu origem à ideia que norteou toda a produção
desenvolvida para o formato estabelecido, em uma publicação digital.
A seleção de notícias e textos propícios para este desenvolvimento narrativo se constituiu em
um esforço preliminar para a sucessão das etapas que serão descritas a seguir. A base textual
se constituiu em um elemento de grande importância para a posterior tradução visual
pretendida e a fidelidade da narrativa híbrida proposta.
2- Desenvolvimento; O texto.
Uma vez traduzida a notícia em tópicos sequenciais, que de certa forma, conduziram o
“timing” da narrativa proposta em um roteiro peculiar, foi obrigatório seguir este “tempo
narrativo” proposto pelo “roteiro da notícia”, para seguiu o caminho das histórias em
quadrinhos digitais, com as possibilidades de editoração digital conversando com as estruturas
narrativas criadas e projetadas.
A necessidade de um roteiro que sintetizasse a notícia e ao mesmo tempo propiciasse o
desenvolvimento narrativo visual, foi configurando uma metodologia de trabalho, que de certa
forma ajudou na agilização da publicação, uma vez que o ambiente virtual e as características
de um blog, obrigam postagem constantes e intermitentes.
Desta forma, o elenco de “pautas jornalísticas” foi sendo determinado pelas redes sociais e a
própria recorrência da notícia em si nas mídias sociais, como o jornal, revistas semanais,
televisão e redes virtuais. Uma atualização dos assuntos a serem explorados, foi tema
constante das reuniões criativas para o site e para o encaminhamento do trabalho produtivo
dos roteiros. Ao mesmo tempo a pesquisa e reunião de imagens representativas para as
histórias, exigiu a colaboração de outras pessoas simpáticas ao projeto, pautadas por uma
direção de arte que norteou um trabalho coletivo para a produção das narrativas.
O viés da pesquisa para a seleção de textos e sua reescrita em um formato determinado pelo
campo visual da tela, foi configurando um sistema de trabalho que permitiu a incorporação de
outras temáticas, sempre pautadas pela mídia jornalística e destacadas pela edição do blog. É
o caso de “Guerra ao Terror” que relembra os atentados de 11 de setembro de 2001, dez anos
depois. O roteiro incorpora dados e referências históricas que conferem um caráter mais
educacional à narrativa. Também possibilita o registro destas referências para outros estudos
e abordagens, pelos mais variados níveis e sistemas de ensino. O mesmo acontece em “Duelo
105
de Bambas” que reconta o duelo poético entre Noel Rosa e Wilson Batista, registrando trechos
das canções.
Figura 1: Fragmento de imagem. HTTP://desenhodanoticia.com.br
Em continuidade, as temáticas jornalísticas selecionadas foram dando lugar a uma espécie de
influência editorial que conduziria a uma abordagem mais ideológica, como os quadrinhos
chineses e as cartilhas educativas em quadrinhos, desenvolvidas por vários órgãos
governamentais que em certos momentos, orientam a opinião pública a conclusões
preliminares e “educam” na forma do “status quo” o direcionamento da mensagem. Em um
movimento de desconstrução deste processo, a criação das narrativas proposta permite uma
síntese de um conjunto de notícias em uma história aberta. A notícia se tornando visual e
propagando ideologias e novos discursos.
Assim, histórias como “A Luta Continua” foram produzidas a partir da associação de pequenas
notícias pontuais e totalmente descontextualizadas que resultaram em uma espécie de síntese
ideológica para uma abordagem jornalística. Outras narrativas como “Paixão pela lua”
surgiram da necessidade de um resgate histórico de fatos pontuais que influenciaram todo o
destino da humanidade e que de certa forma, permaneceram encobertos pela sucessão de
fatos e notícias, que proliferaram nas diversas mídias sociais e acobertaram as decorrências
destes atos. Desta forma o caráter educativo de tal iniciativa, se constituiu em um elemento
106
norteador do projeto e alimentou de forma significativa, a orientação ideológica da produção
desenvolvida.
2.1- A imagem:
Cada uma das imagens exigiu uma pesquisa iconográfica específica, relacionada aos cenários,
contextos temporais, personagens, enquadramentos e estudos de luz e sombra para o
ambiente virtual, entre outros aspectos. Para cada temática uma série de arquivos visuais e
pastas foram criados para uma espécie de referência visual para o desenho da história.
Em algumas delas, como “Guerra ao terror” e “Duelo de bambas” a fidelidade as referências
visuais pesquisadas, exigiram uma estilização ou “limpeza do desenho” dos referentes, para
uma leitura rápida no meio proposto (internet) e a perfeita compreensão do discurso
narrativo.
Também foi necessário um estudo para uma nova diagramação da história em um ambiente
virtual. A barra de rolagem exigiu uma composição vertical, diferente das páginas impressas. A
própria inclinação do texto deveria pender para baixo, declinando para o desfecho da história.
Figura 2: Fragmento de imagem. HTTP://desenhodanoticia.com.br
107
Vários exemplos criativos em “quadrinhos digitais” puderam ser absorvidos como referência.
Alguns deles verdadeiros desbravadores na exploração criativa desta linguagem. Os
infográficos e quadrinhos animados realizados pelo jornal “Folha de São Paulo” em mídia
online, são um exemplo claro disto. Outras fontes de inspiração vieram dos mais diversos
ambientes digitais. Desde produtores independentes de conteúdo, até os grandes portais que
possibilitaram uma visibilidade maior de produções de vanguarda com estas características,
foram essenciais.
A criação de conteúdo digital, seja pela sua forma mais simplória de inserções nas redes
sociais, até as mais elaboradas programações que configuram os sites, blogs, fotoblogs,
aplicativos, etc, se tornou relativamente acessível a uma grande parte da comunidade digital,
através de publicadores e construtores de sites e imagens disponíveis no mercado.
Estas facilidades tornaram possível tanto a publicação de conteúdos banais como receitas e
“dicas de moda”, como também experimentações com os códigos, sugeridas muito antes do
advento da revolução digital, pelos poetas concretistas, pela geração beat e pelos artistas do
underground virtual, sem espaço nas mídias de massa. Pode-se especular que hoje vivemos
um “boom” na proliferação e publicação de conteúdo digital na rede.
3- Conclusão:
O site “Desenho da notícia” pretende assim, se constituir em um ensaio para a ampliação dos
horizontes narrativos digitais, quando propõe um encadeamento original para as tramas, que
se organizam em uma espécie de construção peculiar, que altera os sentidos originais da
organização textual para uma nova exploração de seus significados (alguns exemplos como
“Guerra ao Terror” e “A Luta Continua” permitem a leitura da história de traz para frente).
108
A contribuição dos recursos visuais atuais, para uma possível retomada dos hábitos de leitura
de toda uma geração e um interesse maior pelos fatos cotidianos noticiados, se faz urgente
enquanto procura de novas alternativas as mídias de massa como a televisão, as revistas e a
própria internet, enquanto formadoras de opinião.
O “jornalismo em quadrinhos” proposto pelo projeto pretende se configurar como objeto
inovador enquanto prática editorial e também, ampliar seu alcance lançando a possibilidade
de aproximação entre discursos extremamente complexos (como a notícia e as histórias em
quadrinhos).
Pilares comunicantes, capazes de formular uma nova forma e fonte de informação para as
novas gerações, tão carentes de hábitos de leitura, compreensão e interpretação.
Extremamente ligadas aos novos meios digitais e capazes de visualizar fatos importantes de
seu cotidiano, em formatos híbridos.
Bibliografia:
COLLIER, John. Antropologia Visual: a fotografia como método de pesquisa. São Paulo: EPU,
Editora da Universidade de São Paulo, 1973.
EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. São Paulo. Martins Fontes. 2009. Trad. Luís Carlos
Borges
FERRARA, Lucrécia D’aléssio. A Estratégia dos Signos. São Paulo: Perspectiva, 1986.
IBRI, Ivo Assad. Kósmos Noëtós: a arquitetura metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo:
Perspectiva, 1992
JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo. Cultrix, 1991. Trad. Izidoro Blikstein
e José Paulo Paes.
MALTA, Márcio. Henfil: o humor subversivo. São Paulo: Expressão popular, 2008.
PIGNATARI, Décio. Semiótica e Literatura. São Paulo. Cultrix. 1987
PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987
PRIGOGINE. Ilya. STENGERS, Isabelle. A Nova Aliança: Metamorfose da Ciência. Brasília:
Universidade de Brasília. 1991. Trad. Miguel Faria e Maria Joaquina Machado Trincheira.
SCHELL, Jesse. A Arte de Game Design: o livro original. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1979.
109
A propaganda como ferramenta das relações públicas: Análise do comercial
“Adoção – comer juntos alimenta a felicidade”
Laís Maria Fermino de Souza – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp
[email protected]; Letícia Passos Affini – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho – Unesp [email protected].
Resumo
O presente estudo analisa a peça publicitária realizada pela Coca-Cola, “Adoção – Comer
Juntos Alimenta a Felicidade”. Busca-se responder à questão: como a proposta institucional da
marca, estabelecida na matriz verbal, é adaptada para o audiovisual, linguagem híbrida
(verbal, visual e sonora)? Selecionou-se, como método, o estudo de caso Robert K. Yin e, como
fundamentação teórica, as matrizes da linguagem-pensamento, por Lúcia Santaella. Os autores
Marcel Martin, Leighton Cage e Michael Rabinger foram os escolhidos para os elementos
específicos da linguagem audiovisual. Destacam-se no posicionamento institucional da marca
os valores de integridade, diversidade, modernidade, simplicidade e responsabilidade. O
comercial aborda o tema da adoção de uma criança negra por um casal heterossexual
branco; enquanto os pais tentam achar as palavras corretas para discutir a questão, a criança
faz um discurso assertivo à cerca da situação.
Palavras-chave: Audiovisual. Propaganda. Marca. Coca-Cola.
Abstract
This study analyses Coca-Cola’s advertising piece, "Adoption - Eating Together feeds
Happiness". It seeks to answer the question: how is the institutional proposal of the brand,
established in the verbal matrix, adapted to the audiovisual, hybrid language (verbal, visual
and sonorous)? Robert K. Yin’s case study was chosen as a method, and Lucia Santaella’s
matrices of language and of thought as theoretical ground. The authors Marcel Martin,
Leighton Cage and Michael Rabinger were selected to deepen the proposed study by offering
specific elements of the audiovisual language. Corporate values such as integrity, diversity,
modernity, simplicity and responsibility stand out in the institutional positioning of the brand.
The commercial addresses the issue of adoption of a black child by a white heterosexual
couple; whilst the parents try to search for the right words to discuss the matter, the child
delivers an assertive speech about the situation.
Keywords: Audiovisual. Advertising. Brand. Coca-Cola.
Introdução
As TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação) transformam o atual cenário
comunicacional. No ciberespaço, podemos encontrar pessoas com interesses em comum, nos
articularmos, produzirmos conhecimentos e estreitarmos caminhos. A comunicação tem um
110
papel fundamental na democratização da informação das comunidades eletrônicas que se
agrupam por afinidades (TERRA, 2005). As matrizes verbal, visual e sonora fundem-se e geram
diversas possibilidades ao comunicador, que detém canais interconectados para aperfeiçoar a
relação com os públicos alvos. Carolina Terra discute a importâncias das atividades das
relações públicas como gestora desse processo comunicacional integrado na web:
As relações públicas, por seu caráter estratégico, ajudam a organização a
construir relacionamentos de confiança e compreensão em longo prazo com
seus públicos. No caso de uma ação direcionada ao contexto virtual, a
possibilidade de interação é imediata, acarretando transformações
consideráveis nas relações organização-públicos. A comunidade-alvo é que
balizará todo o planejamento de comunicação do profissional de relações
públicas para este meio específico (TERRA, 2005, p. 5).
Observa-se a mudança de comportamento do consumidor, o qual deixa o seu estado passivo e
transforma-se em produtor de conteúdo e formador de opinião. Por consequência, o setor
mercadológico é afetado e precisa adaptar-se ao novo contexto. Essa nova atribuição dada aos
indivíduos tem total influência sobre a reputação dos serviços ou produtos consumidos. É
possível avaliar, trocar informações, opinar e criticar de forma rápida, em tempo real e fácil,
qualquer quesito que envolva a organização. Além disso, as manifestações na rede movem
cidadãos ativos e conscientes, pois dialogar e abrir canais de interação não é tido como um
privilégio, mas como um direito. Entretanto, no universo web, o usuário pode agir de forma
antiética e veicular conteúdos de caráter duvidoso ou falso. Desse modo, as empresas
necessitam monitorar constantemente seus canais de interação com o público.
O uso das TIC’s, assim como todas as ferramentas dela decorrentes, mudou o panorama das
organizações. “É um processo sustentado por um contexto que privilegia a
multidirecionalidade e desvincula a mensagem da forma e de sua relação com o tempo e o
espaço” (GUIMARÃES, 2011, p. 20 apud FERRARI, 2009). Portanto, as TIC’s se inseriram no
planejamento de comunicação e tornaram-se parte estratégica das empresas. Antes da
comunicação digital as organizações não viam necessidade de mostrarem-se abertas ou
transparentes ao público, mas hoje se veem encurraladas por um cenário competitivo,
pressionadas pelos profissionais de comunicação e mídia, pelas leis que regem suas atividades
e pelos próprios consumidores, que exigem dados transparentes, explicações e afirmações de
qualidade nos produtos e serviços que adquirem.
A Internet funciona, nos dias de hoje, como uma vitrine virtual de exposição
institucional. Em face disso, é quase impossível não encontrarmos as
grandes corporações na Web. A competitividade e a necessidade de
exposição e relacionamento com os públicos faz com que as organizações
criem seus websites ou os chamados sites institucionais, que podem se
expandir e ter unidades de e-commerce, relacionamento com o cliente,
ambientes de relacionamento com investidores, imprensa etc. (TERRA,
2005, p. 2).
Nesse sentido, as organizações que não se adequam a esse novo tipo de consumidor estão
mais propensas às crises institucionais, falta de credibilidade, queda nos investimentos ou, em
último caso, encerramento das atividades. Não é suficiente abrir espaço para o diálogo e
manter uma comunicação direta, é preciso alinhar os discursos. Cada público envolvido com a
organização preza por um tipo de informação e se identifica com uma linguagem, ou formato.
111
Primordialmente, a organização deve se portar como única, considerando que existe uma
identidade construída, uma imagem a ser mantida e uma reputação a ser zelada. Trilhando
este mesmo caminho, verifica-se que:
A globalização e a revolução tecnológica da informação e das comunicações
estão exigindo cada vez mais que as organizações concebam e planejem
estrategicamente o relacionamento com seus públicos e a opinião pública.
No âmbito de uma sociedade complexa como a de hoje, reserva-se à
comunicação um papel de crescente importância. Ela já atingiu um estágio
avançado nas organizações de ponta, que procuram trilhar o caminho da
pós-modernidade. Isto pode ser percebido nos investimentos feitos nessa
área, na produção sofisticada de peças institucionais e no desenvolvimento
de programas estratégicos tanto no âmbito interno quanto no externo
(KUNSCH, 2009, p.10).
As organizações buscam fortalecer sua imagem perante os seus públicos de interesse e investir
em Comunicação Institucional, especialmente as que atuam em setores vulneráveis, como a
Coca-Cola, empresa de grande porte e que está em 11º lugar no ranking das organizações mais
valiosas do mundo em 201522. A Coca-Cola possui alta visibilidade e percepção de suas ações
institucionais por parte da comunidade, investidores, colaboradores e mídia. Sendo assim,
campanhas publicitárias e outras ações devem ser planejadas e desenvolvidas de forma a
divulgar informações e conceitos que atendam e satisfaçam seus públicos, transmitindo de
forma única e constante a identidade da empresa.
Para que todas as produções, vídeos, notas e qualquer mensagem oriunda da Comunicação
Institucional sejam recebidos e identificados pelo público como pertencentes a uma
organização específica, existem elementos que devem ser característicos dessa mesma
organização e posicionados nas peças para que o consumidor seja capaz de associar o que está
vendo com a marca. Na Coca-Cola, por exemplo, a utilização de cores específicas (vermelho e
branco), uma fonte padrão (denominada Loki Cola e desenvolvida especialmente para a
marca) e a forma como o conteúdo das propagandas é elaborado (com trilha sonora
característica, imagem do produto Coca-Cola constantemente presente, enredo de conteúdo
arrojado e a transmissão de ideais positivos, que culminam na proposta de felicidade difundida
pela marca) são preocupações constantes. Desse modo, não apenas a Coca-Cola, mas diversas
outras organizações, empenham-se em construir estrategicamente um conjunto de elementos
gráficos e estéticos que se refletem no discurso que a empresa deseja transmitir aos indivíduos
para, assim, persuadi-los e conquistá-los de forma assertiva.
Metodologia
A presente pesquisa utiliza o método do Estudo de Caso. Segundo Yin (2005) este método
favorece uma visão sincrética sobre os acontecimentos contemporâneos, destacando-se seu
caráter de investigação empírica. Especificamente neste trabalho, o objeto de estudo é a peça
audiovisual “Adoção – Comer Juntos Alimenta a Felicidade”. Será realizada uma leitura
interpretativa da estrutura audiovisual da propaganda e se buscará responder a questão:
Como a proposta institucional da marca, estabelecida na matriz verbal, é adaptada para o
22 Pesquisa realizada pela consultoria Brand Finance (http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/as-50-marcas-mais-valiosasdo-mundo-em-2015-apple-e-1a)
112
audiovisual, linguagem híbrida (verbal, visual e sonora)? Para tanto, serão utilizados os estudos
das matrizes da linguagem e pensamento, desenvolvidos por Lúcia Santaella, que auxiliam o
entendimento da relação entre os valores e princípios da marca Coca-Cola para com os
mecanismos que permitem construir o enunciado – este último entendido como um todo
significante.
Para Santaella, linguagem e pensamento são dois termos indissociáveis e define o pensamento
como “Qualquer coisa que esteja à mente, seja ela de uma natureza similar a frases verbais, a
imagens, a diagramas de relações de quaisquer espécies, a reações ou a sentimentos, isso
deve ser considerado como pensamento” (SANTAELLA, 2005, p. 55). Já a linguagem manifestase nas criações humanas e estão em permanente crescimento e mutação.
As categorias de primeiridade, secundidade e terceiridade, de Charles S. Peirce, fundamentam
as matrizes da linguagem e pensamento elaboradas por Lúcia. A autora verificou em sua
pesquisa que as linguagens não se manifestam isoladamente, mas mesclam-se entre si. A
linguagem, portanto, pode ser denominada híbrida, por compor as chamadas matrizes
primordiais: a verbal está manifestada no discurso, a visual no que se vê e a sonora nos sons
que se ouvem. Por exemplo: a matriz verbal pode combinar com a sonora, a sonora com a
visual, ou todas trabalharem juntas. Essa mescla de matrizes expande os signos existentes e as
significações a eles atribuídas; o estudo das mesmas proporcionou uma correlação com as
categorias de signo de Pierce e verifica-se que a matriz sonora corresponde à primeiridade, a
visual à secundidade e a verbal à terceiridade.
De forma sintética, podemos definir que a semiótica na área da Comunicação Institucional tem
como intuito a utilização de elementos, mensagens e conteúdos que, juntos, criam e
desenvolvem um significado para o público ou, mais particularmente, uma representação
única para cada pessoa. O conceito de linguagem híbrida e a utilização das matrizes verbal,
visual e sonora tornam as peças de comunicações mais atraentes para os públicos. Além da
estética agradável, o conteúdo propagado por um comercial, por exemplo, permite que a
organização difunda seu posicionamento institucional de forma assertiva para o público. Ao
englobar signos e significações que são associados à integridade, modernidade e
responsabilidade, os indivíduos são conquistados pelas marcas e tornam-se difusores de suas
diretrizes.
História da empresa
Segundo o site da Coca-Cola (https://www.cocacolabrasil.com.br/coca-cola-brasil/historia-damarca/), a organização está presente em mais de 200 países. A empresa está comprometida
com mercados locais, prestando atenção ao que as pessoas de diferentes culturas e históricos
gostam de beber, e onde e como elas bebem. A organização acredita que exista para trazer
benefícios e refrescar todas as pessoas que toca e quer que as pessoas sempre escolham uma
das marcas da The Coca-Cola Company, e tenham uma experiência boa e satisfatória.Para
buscar identificação com o público e mostrar suas diretrizes, a empresa elencou em seu site os
princípios e valores que a regem. São eles:
Inovação:
113
Buscar, imaginar, criar, divertir: esse é o caminho para a inovação. Desejamos buscar o
inesperado, estimular um ambiente onde vale a pena correr os riscos de inovar e de
compartilhar ideias.
Liderança:
Como líderes, precisamos ter a coragem de construir um futuro melhor, meta que será
alcançada fazendo a diferença como empresa global, com decisões e inspiração certas e
influenciando aqueles com quem nos relacionamos.
Responsabilidade:
Devemos ter vocação para agir e honrar nossos compromissos.
Integridade:
Ser íntegro significa ser verdadeiro: dizer o que pensamos, fazer o que dizemos e agir
corretamente.
Paixão:
Comprometidos de corpo e alma, devemos criar oportunidades, ter sede de fazer sempre mais
e realizar.
Colaboração:
Acreditamos na força da participação e, por isso, promovemos o talento coletivo. Valorizamos
a diversidade, estamos conectados globalmente e dividimos os méritos pelos sucessos.
Diversidade:
Queremos ter uma força de trabalho tão diversa quanto os mercados que atendemos, e
criamos oportunidades para alcançar esse objetivo.
Qualidade:
Consideramos que não há limites para atingir a excelência nas nossas atividades. Devemos
deixar tudo sempre melhor do que estava e estabelecer os mais altos padrões para os nossos
produtos, nosso pessoal e nosso desempenho.
Dessa forma, esse estudo visa analisar o comercial “Adoção – Comer Juntos Alimenta a
Felicidade”, a partir da questão: como a proposta institucional da marca, estabelecida na
matriz verbal, é adaptada para o audiovisual, linguagem híbrida (verbal, visual e sonora)? Ou
seja, como o discurso e a postura institucional da Coca-Cola, que tem dentre seus princípios e
valores os ideais de responsabilidade, integridade, diversidade e paixão, são transmitidos para
uma peça audiovisual e se estes conceitos são manifestados de forma explícita aos
consumidores e públicos envoltos à organização?
A aplicação da semiótica na análise da publicidade
114
A publicidade atual carrega muito mais do que a simples funcionalidade do produto, partindo
para diferentes formas de atingir o público alvo da mensagem. Para Bastos (2012), na
sociedade do hiperconsumo, a marca cada vez mais estabelece uma relação emocional com a
sociedade; a partir dessa nova estrutura, a marca deixa de lado a chamada função indicial e
começa a estabelecer relações que instituem simpatia e afetividade.
Podemos dizer, então, que as marcas contemporâneas constroem sentidos. Segundo
Lipovetsky (2007), esses sentidos estão relacionados não mais a produtos ou serviços, mas, por
exemplo, à qualidade de vida e ao bem-estar, prazeres e sensações aos quais o indivíduo
hipermoderno se vê na busca constante. Assim, “(...) a marca hipermoderna se desvencilhou
de seu produto e sai da indicialidade, instância de segundidade semiótica e passa a operar no
nível da primeiridade, na ordem das sensações” (BASTOS, 2012, p. 3). O objetivo é estabelecer
uma relação de conivência, jogar com o público, fazê-lo compartilhar um sistema de valores,
criar uma proximidade emocional ou um laço de cumplicidade (LIPOVETSKY, 2007, p.182).
Esse contexto se adequa aos estudos de Semprini (2006) a respeito da natureza semiótica da
marca na medida em que o autor reconhece que essa natureza reside justamente na
capacidade da marca de construir e veicular sentidos. Esses sentidos, segundo Semprini
(2006), podem ser organizados em narrativas explícitas da publicidade tradicional, como
também podem ser percebidos em outras manifestações da marca, as quais funcionam como
atos discursivos. E é justamente neste ponto que se encontra seu caráter enunciativo e
semiótico.
É exatamente nestes atos discursivos que reside a verdadeira natureza da marca, aquela que
se constitui lenta e progressivamente ao longo do tempo, por uma acumulação coerente e
pertinente de escolhas e de ações. Uma campanha de comunicação que é repetida com
frequência em um espaço de tempo limitado e que utiliza recursos espetaculares, de forte
impacto, goza, inevitavelmente, de uma maior visibilidade, mas ela pode, também,
desaparecer sem nada construir, se ela não se articular de forma coerente com as
manifestações discursivas fundamentais de uma marca (SEMPRINI, 2006, p.106). Desse modo,
marca pode ser entendida como discurso, elaborado por uma organização a partir de uma
intencionalidade já estabelecida anteriormente. Porém, de acordo com Charaudeau (2007),
esse discurso depende não só da organização, mas também da capacidade interpretativa e de
aspectos cognitivos do sujeito receptor. O poder semiótico da marca baseia-se justamente na
capacidade da mesma de selecionar elementos no interior do fluxo de significados que
atravessa o espaço social. Para Semprini (2006) é essencial que uma organização saiba
organizar estes significados em uma narrativa pertinente e atraente e, ainda, saber propô-los a
seus interlocutores.
Resultados
Matriz Visual
Para desconstruir a propaganda e buscar seu significado enunciativo, utilizou-se
fundamentação teórica nos autores Marcel Martin, Leighton Cage e Michael Rabinger, o que
permitiu a criação de dez categorias para a realização da análise da peça audiovisual. Os
115
resultados da matriz visual foram divididos em duas partes: elementos fílmicos específicos e
não-específicos.
Elementos fílmicos específicos:
Enquadramento:
A primeira categoria analisada foi o enquadramento:
“É a maneira como o conteúdo é apresentado, é a composição visual como parte da forma,
não é um mero enfeite, é um elemento essencial na comunicação[...] É uma força
organizadora importante quando usada para dramatizar relatividade e relacionamento e para
projetar ideias” (RABIGER, 2007, p.51).
Na análise do enquadramento do comercial, constatou-se a presença de profundidade de
campo, a não tensão da cena, sendo esta fácil de acompanhar e visualizar. Também elencou-se
que o enquadramento é proporcional, equilibrado, e que a imagem é harmônica,
características que não confundem e não esforçam a vista e mente do telespectador.
Plano:
“O tamanho do plano (e consequentemente seu nome e seu lugar na
nomenclatura técnica) é determinado pela distância entre a câmera e o
objeto e pela duração focal da cena utilizada. [...] A maior parte dos tipos de
plano não tem outra finalidade senão a comodidade da percepção e a
clareza da narrativa” (MARTIN, 1990, p.37).
Na análise do comercial, constatou-se a utilização de dois planos, o plano próximo e o close. Os
mesmos são os únicos planos que aparecem nos oito cortes que existem na propaganda,
dando a ela efeito de simplicidade. Eles estão respectivamente representados nas imagens
abaixo:
Campo e contracampo:
Gage define o contracampo como uma tomada feita com a câmera orientada em direção
oposta à posição da tomada anterior, ou seja, o campo. Os contracampos feitos, por exemplo,
num ambiente com móveis, portas ou janelas de um lado e uma estante de livros no outro,
geralmente dão ao espectador uma noção exata da colocação de cada personagem em cena.
116
Na análise do comercial, constatou-se o eixo de ação triangular, com foco no diálogo dos pais e
da criança. O foco da filmagem foi a mesa do almoço em família; ora os pais apareciam, ora a
criança.
Ângulo:
Para Gage, são três os tipos de ângulos. O ângulo alto, no qual a câmera está acima da
personagem, o ângulo neutro, no qual a câmera está na altura da personagem, e o ângulo
baixo, a câmera está abaixo da personagemNa análise do comercial, constatou-se somente o
ângulo neutro. O uso do mesmo é utilizado para mostrar a igualdade existente entre as
personagens.
Movimento de câmera:
Para Rabiger, os movimentos de câmera simulam os movimentos humanos; estes nunca
acontecem sem um motivo. Nas pans a câmera movimenta-se horizontalmente e nos tilts a
câmera movimenta-se verticalmente, sempre sobre seu próprio eixo. No movimento de
traveling a câmera se move inteira. Na análise do comercial não é encontrado o movimento, a
câmera é estática, e nem tampouco o movimento de lente, zoom in ou out.
Formato:
São classificados em 4:3 (formato da televisão analógica) e 16:9 (formato da televisão digital).
Na análise do comercial, por se tratar de uma propaganda atual veiculada na televisão e na
Internet, constatou-se a formatação de 16:9.
Elementos fílmicos não específicos:
117
Iluminação:
“Constitui um fator decisivo para a criação da expressividade da imagem”. (MARTIN, 1990,
p.56). Na análise do comercial, constatou-se uma iluminação predominantemente difusa,
como exemplificada abaixo:
Cor:
“A cor pode ter um eminente valor psicológico e dramático” (MARTIN, 1990, p.71). Na análise
do comercial, há a predominância de tons pastel e alguns detalhes em vermelho, que são
vistos em destaque no rótulo da garrafa de Coca- Cola, na roupa da criança presente em cena
e em alguns utensílios domésticos, como abaixo:
Figurino:
“Assim como a iluminação ou os diálogos, o vestuário faz parte do arsenal dos meios
de expressão fílmicos” (MARTIN, 1990, p.60). Maton ainda define três tipos de vestuário:
Realista: ou seja, de acordo com a realidade histórica;
Para-realistas: o figurino é baseado na moda da época recorrente à filmagem, mas possui uma
estilização, prevalecendo a estética e a beleza;
Simbólicos: a exatidão histórica não importa e o vestuário tem antes de tudo a missão de
traduzir simbolicamente caracteres, tipos sociais ou estados de alma.
Na análise do comercial, constatou-se que o figurino é realista, já que está adequado a uma
situação do cotidiano.
118
Cenário:
“Os cenários, quer sejam de interiores ou exteriores, podem ser reais (isto é, preexistir à
rodagem do filme) ou construídos em estúdio (no interior de um estúdio ou em suas
dependências ao ar livre)” (MARTIN, 1990,p.63). Para ou autor, eles podem ser:
Realista: o cenário é o que representa, não significa senão aquilo que é;
Impressionista: o cenário é escolhido em função da dominante psicológica da ação; condiciona
e reflete ao mesmo tempo o drama dos personagens;
Expressionista: o cenário é quase sempre criado artificialmente, tendo em vista sugerir uma
impressão plástica que coincida com a dominante psicológica da ação.
Na análise do comercial, constatou-se um cenário realista, já que a intenção é representar
uma situação simples do cotidiano.
Matriz Sonora
Os resultados na matriz sonora estão na sequência de sons que aparecem no comercial:
primeiro é tocada a música tema da marca, depois ouve-se uma música de fundo baixa e, para
encerrar, volta a tocar a música do tema da marca.
Matriz verbal
Os últimos resultados são os da matriz verbal, verificados no diálogo que ocorre entre mãe, pai
e criança.
Diálogo:
- Mãe: “Meu amor, eu e o papai... nós não temos o cabelo tão cacheadinho e lindo como o
seu”.
119
- Pai: “É... E mesmo que a gente não seja assim, parecidos. Que você é muito mais bonita e
muito mais inteligente que nós dois...”.
- Mãe: “Nós somos os seus pais!”.
- Criança: “Eu já sei o que vocês estão querendo dizer. Mesmo que vocês gostem de beterraba
e eu não, o que importa são as coisas iguais que a gente sente! E é por isso que eu adotei
vocês, tá bom?!”.
Discussão
O contexto da propaganda “Adoção – Comer juntos alimenta a felicidade”, permite a
interpretação
de
que
a
Coca-Cola está atenta aos assuntos de evidência na mídia e na sociedade. A organização
preocupou-se em trazer ao público o tema da adoção e se posicionou positivamente perante o
mesmo, cativando o telespectador e provocando reflexões sobre os conceitos de família e
diversidade. Ao longo dos anos, toda empresa precisa renovar o modo de transmissão de suas
mensagens, as quais refletem o seu posicionamento perante os acontecimentos do mundo.
Ainda há a necessidade de se diferenciar das outras organizações, seja com ações criativas,
escolha de um tema polêmico para abordar ou, até mesmo, promoções e incentivos aos
clientes.
A bebida Coca-Cola, em si, sofre várias críticas por não ser saudável e pela grande quantidade
de calorias, portanto, a empresa precisou pensar alternativas de posicionamento sobre
qualidade de vida e bem-estar. O tema adoção foi uma dessas alternativas encontradas pela
empresa, que teve perspicácia e sensibilidade ao tratar um assunto importante e envolver em
seu comercial os conceitos de família, educação, amor ao próximo e aceitação do outro.
A Coca-Cola expõe no comercial os seus valores, estabelecidos na matriz verbal e descritos em
seu site institucional. Tal como neste discurso, é possível observar na propaganda os ideais de
inovação: a empresa inovou ao realizar um comercial de teor polêmico, inesperado e que
provoca o compartilhamento e a troca de opiniões sobre o assunto. A liderança aparece no
fato de a organização considerar-se líder e exemplo para os indivíduos; desse modo, busca,
através da atitude de adotar, inspirar seu público a tomar atitudes que construam um mundo
melhor. A responsabilidade e a integridade podem ser observadas pelo posicionamento da
empresa perante um assunto delicado e de alta visibilidade. Os valores de paixão e a
colaboração podem ser percebidos no próprio ato de amor que é a adoção de uma criança,
pois nele há o comprometimento de se buscar um futuro melhor para quem precisa de um lar,
sendo indispensável a participação e o engajamento de indivíduos que almejam melhores
condições de vida para si e para os outros. A diversidade pode ser vista nos personagens, que
representam etnias diferentes, fato que posiciona a Coca-Cola como uma organização que
estimula o relacionamento entre indivíduos diversos e que não exprime preconceitos. E o
último valor apresentado, a qualidade, é expresso no comercial em si, embora simplicista em
detalhes, pois possui recursos que fazem o espectador avaliar a Coca-Cola como uma empresa
moderna, íntegra e preocupada com seu público.
120
Os recursos da matriz visual, tais como o plano, o enquadramento, a iluminação e as cores, são
feitos de maneira articulada e dão ao comercial efeito de simplicidade. Assim, é dada ênfase
ao momento familiar, casual, destacando a importância do diálogo. É, no momento em que
está sentada à mesa, que uma família troca experiências e discute diversos assuntos, desde os
mais triviais aos mais importantes. A interação com entes queridos, o momento juntos,
representam a felicidade, valor propagado pela Coca-Cola; o termo “felicidade” está presente
no slogan atual da organização, “Abra a Felicidade”, e também no nome do comercial,
“Adoção – Comer juntos alimenta a felicidade”. Neste último caso, a palavra “alimenta” referese ao momento do provável almoço da família, e da felicidade conquistada pelos momentos de
união como este.
Reitera-se que a Coca-Cola, nesta peça audiovisual, enfatiza os seus valores e princípios e não
o seu produto, a bebida em si. O foco não está no produto, porém o mesmo aparece
sutilmente em todos os enquadramentos do comercial. Em um cenário de tons
predominantemente pastel, o vermelho do rótulo da garrafa de Coca-Cola e de poucos objetos
da mesma tonalidade, destaca-se nas cenas (liquidificador, roupa da criança). A partir dessas
observações, podemos entender que a Coca-Cola está presente nos momentos mais familiares
e comuns do dia a dia, como a reunião à mesa dessa família. O pai bebe um gole do copo de
Coca-Cola para descontrair, e se preparar para conversar com a filha. A beleza e a emoção do
comercial estão no discurso simples e objetivo da garotinha que, de maneira didática e rápida,
consegue transmitir que as diferenças entre ela e os pais são mínimas, se comparadas à
importância dos sentimentos compartilhados entre eles. A fala, breve e carregada de inocência
e de despreocupação da criança, é também o posicionamento da Coca-Cola: não importam as
situações adversas, o que importa são os momentos em que celebramos a felicidade.
Referências
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Congresso Brasileiro Científico de Comunicação Organizacional e de Relações Públicas Abrapcorp, VI, 2012, São Luís (MA), Anais. São Luís: 2012, p. 1-3.
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121
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SEMPRINI, A. A marca pós-moderna: poder e fragilidade da marca na sociedade
contemporânea. São Paulo: Estação das Letras Editora, 2006.
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YIN, R. K. Estudo de Caso: Planejamento e Métodos. Porto Alegre: Bookman, 2010.
Comercial: https://www.youtube.com/watch?v=sg5ODWmPxgg.
Site Coca-Cola: https://www.cocacolabrasil.com.br/coca-cola-brasil/.
122
A recepção sob demanda da telenovela Avenida Brasil
Luís Enrique Cazani Júnior ,UNESP , [email protected].
Resumo
Este trabalho, realizado com fomento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo, discute a recepção sob demanda do primeiro capítulo da telenovela Avenida Brasil
(2012), de João Emanuel Carneiro. O estudo foi centrado na distribuição para não-assinantes
no provedor oficial e no núcleo de Cadinho. Como métodos, foram aplicados a análise de cena
de Mckee (2006) e o exame morfológico de Propp (2010). De três blocos que constituem o
capítulo na fruição em fluxo chegou-se a vinte e três vídeos na disponibilização, dos quais cinco
pertencem ao núcleo selecionado. Neste trânsito, aponta-se a autonomização da cena e o
vídeo como unidade de visualização da telenovela. Na sua leitura hipertextual, cabe ao
espectador montar o capítulo a partir deles.
Palavras-chave: Audiovisual; Recepção; Fluxo; Sob Demanda; Avenida Brasil.
Abstract
This paper, realized with support of São Paulo Research Foundation, discusses the on demand
reception of the first chapter of the soap opera Avenida Brasil (2012), by João Emanuel
Carneiro. The study was focused on distribution to the official provider non-subscribers and
Cadinho character. The methods was the Mckee scene analysis (2006) and morphological
examination by Propp (2010). Of three blocks that make up the chapter on the flow fruition
originated twenty-three videos on demand, five of which belong to the core selected. It
indicated the autonomy of the scene and the video as the unit of soap opera viewing. In hyper
textual reading soap opera, it is up to the viewer to assemble the chapter from the videos.
Keywords: Audiovisual; Reception; Flow; On Demand; Avenida Brasil.
Introdução
A telenovela, como ficção seriada televisiva, caracteriza-se pela transmissão parcelada de sua
história em numerosos capítulos, que são fragmentados em blocos. Para o financiamento, são
inseridos anúncios publicitários entre estas unidades menores. Define-se, dessa forma, a
veiculação tradicional do capítulo em fluxo, sendo agendado e recepcionado por meio da
grade horária de programação.
Expoente na produção deste gênero do discurso, a Rede Globo de Televisão distribui além da
forma clássica de outro modo: via streaming para assinantes e não-assinantes do provedor
Globo.com, com acesso pelo GShow e aplicativo Globo Play. Define-se esta recepção como sob
demanda, fruição possibilitada pela disponibilização do conteúdo. A falta de regramento e
agendamento torna a experiência assincrônica.
Para assinantes, o capítulo é disponibilizado em arquivo único e com blocos justapostos
enquanto para não-assinantes o mesmo é desmembrado em inúmeros vídeos. Chama-se a
atenção para a utilização da divisão interna da obra audiovisual em cenas e sequências como
123
métrica para este processo. Na recepção sob demanda para não-assinantes, o vídeo torna-se a
unidade de visualização da telenovela e a cena autonomiza-se.
A plataforma oficial da Globo.com utiliza o termo cena como sinônimo de vídeo. Considerando
as definições de cena francesa e de inglesa, consagradas pela dramaturgia, destaca-se que
ambas podem ser consideradas. Existem vídeos com ações que ocorrem e completam-se em
diferentes localidades, ações que não completam-se e vídeos com ações em apenas uma
localidade.
Partindo desse pressuposto, este artigo discute a recepção sob demanda para não-assinantes
do provedor Globo.com do gênero telenovela, tendo como córpus o primeiro capítulo de
Avenida Brasil (2012), de João Emanuel Carneiro. Centrou-se na recepção do núcleo de
Cadinho, empregando como métodos a análise de cena de Mckee (2006) e o exame
morfológico de Propp (2010).
Ao adentrar a página do primeiro capítulo, encontrou-se manchete, descrição e vídeos com
títulos. Clicando sobre os vídeos, abre-se a página para exibição, conforme é demonstrado
pelas figuras a seguir.
Figuras 3 e 4: Página do primeiro capítulo de Avenida Brasil. FONTE: Gshow.
O título sintetiza o evento do vídeo e demonstra o que ocorreu. A descrição do capítulo é
realizada a partir deles, direcionando o espectador para o vídeo da ação por meio de hiperlink.
Há, também, manchete do capítulo que, na maioria das vezes23, é o título de um dos vídeos
elencados.
23 Este dado foi obtido a partir da análise dos sete primeiros capítulos do córpus que
compõem a primeira fase da telenovela.
124
Quadro 01: Manchetes dos capítulos da primeira fase de Avenida Brasil
Capítulo
Vídeo
Manchete do capítulo
1
23
Tufão atropela Genésio.
2
14
Max leva Rita para um depósito de lixo.
3
16
Carminha e Tufão se beijam.
4
5
Monalisa descobre que Tufão dormiu com Carminha.
5
19
Monalisa sofre um acidente de ônibus.
6
17
Tufão pede Carminha em casamento.
7
8e9
Rita é adotada por Martín e vai para a Argentina.
Ao analisar a primeira fase da telenovela Avenida Brasil, composta pelos sete primeiros
capítulos, o primeiro, o terceiro e o quinto possuem como manchete o título do último vídeo,
aquele que contém o gancho de encerramento. Já o sétimo possuí a junção dos títulos de dois
vídeos que são seguidos: Rita é adotada por Martín e Rita vai para a Argentina. Nota-se que
apenas a manchete do segundo capítulo não é idêntica a nenhum dos títulos, ainda que
aproxima-se de outro: Rita é abandonada no lixão. A manchete direciona o publico e revela
qual é o evento principal. A partir da leitura de Mckee (2006) destes vídeos, averiguou-se que
em todos eles existem alterações na condição da personagem e instauração de pontos de
virada, um chamariz para o público.
Para levantar sentidos produzidos nesta arquitetura de navegação é necessário recorrer aos
estudos acerca do ciberespaço. Leão (2005) associa a linguagem desta mídia ao hipertexto e à
multimídia, indicando o relacionamento entre fragmentos de informações de natureza diversa
(texto, imagens ou vídeos) através de hiperlinks. A linearidade, como caminho originado da
demarcação de dois ou mais pontos, é questionada.
O termo hipermídia designa um tipo de escritura complexa, na qual
diferentes blocos de informações estão interconectados. Devido a
características do meio digital, é possível realizar trabalhos com uma
quantidade enorme de informações vinculadas, criando uma rede
multidimensional de dados. Esta rede, que constitui o sistema
hipermidiático propriamente dito, possibilita ao leitor diferentes percursos
de leitura. (LEÃO, 2001, p.9)
De fato, a falta de estabelecimento de marcos ou hierarquizações possibilita múltiplas opções
a partir dos pontos existentes. A linearidade é estabelecida quando funda-se o percurso
125
escolhido. O documento hipertextual é modulado e os fragmentos são associados com links.
Ao analisar os relacionamentos, Leão (2001) vislumbra três experiências:
Existem três labirintos. Um labirinto é a arquitetura propriamente dita, pura
potencialidade gravada em disco, nos sistemas ou nas redes. Um segundo
labirinto é esse “espaço que se desdobra” e que se forma através do
percurso de leitura do viajante.” Esse segundo labirinto é uma atualização
do primeiro. O terceiro labirinto seria aquele que surge após a experiência
hipermidiática.” (LEÃO, 2001, p.46-47)
O arranjo dramático é modulado em cenas e a linearidade da telenovela é elaborada durante a
roteirização. Após registro audiovisual, monta-se o capítulo seguindo este planejamento
inicial. Quando o capítulo é desmembrado, as cenas carregam o sentido inicialmente
construído. Contudo, a vinculação dos é transferida para o internauta que pode não seguir
essa égide. O espectador pode fruir outras linearidades, como de núcleo. Segue-se, desta
forma, uma personagem específica. O exame de visualizações demonstra isso; a linha principal
tem mais acessos as secundárias.
Materiais e Método
Para ilustrar a leitura hipertextual e sob demanda da telenovela na atualidade, selecionou-se
Avenida Brasil, escrita por João Emanuel Carneiro e exibida pela Rede Globo de Televisão no
ano de 2012. O córpus é constituído do capítulo de estreia e a pesquisa é centrada no núcleo
secundário composto pelo empresário Cadinho e suas esposas.
O primeiro método empregado é a análise de cena proposta por Mckee (2006). Este protocolo
possibilita revelar os pontos de tensão que constroem a história, atentando para a sua
localização e significância na fruição em fluxo contínuo e sob demanda.
No primeiro momento, torna-se essencial compreender que é a cena para o autor: “é uma
ação através de conflito em tempo mais ou menos contínuo que transforma a condição da vida
de uma personagem em pelos menos um valor com um grau de significância perceptível”
(MCKEE, 2006, p.47). Assim, averiguar alterações na situação da personagem é o que objetivase com o método. Ao termo “valor” é atribuído a definição de: “qualidades universais da
experiência humana que podem mudar do positivo para o negativo ou do negativo para o
positivo” (MCKEE, 2006, p.46). Estabelece-se a análise nas modificações dos valores que
condizem com a experiência da personagem.
Para aferir a mudança, Mckee (2006) propõe lançar um olhar fragmentado sobre a cena,
considerando-a como um conjunto de beats. Esclarece o autor: “um BEAT é uma mudança de
comportamento que ocorre por ação e reação. Beat a Beat, esse comportamento em
transformação molda o ponto de virada da cena” (MCKEE, 2006, p.49). Neste ensejo de
estímulo e resposta, a tensão é construída.
Partindo desse pressuposto, beat, valor e cena estão diretamente relacionados. Parte-se da
fragmentação e da observância da cena em beats. Na leitura deste decurso, verifica-se a
manutenção ou transformação do valor da experiência da personagem comparando o estágio
inicial com o final da cena. Com a alteração é demarcado ponto de virada enquanto que a
126
manutenção caracteriza a cena como expositiva. Mckee (2006) faz uma ressalva sobre este
último caso.
Se a condição de vida de uma personagem é a mesma do começo ao fim da
cena, nada significativo acontece. A cena em atividade – conversando sobre
isso, fazendo aquilo – mas nada mais muda em valor. É um não-evento. Por
que então essa cena está na estória? A resposta é quase sempre a mesma:
exposição. Ela está lá para enviar informações a respeito dos personagens,
do mundo e da história ao público à espreita. (MCKEE, 2006, p.47)
São empregados sinais de positivo e negativo para representar as experiências da personagem.
A transformação é sinalizada com a passagem do positivo para o negativo e vice-versa. Há,
ainda, a possibilidade da intensificação das cargas, representada pela duplicação ou triplicação
dos sinais.
O estabelecimento da ação e sua reação correspondente frente a uma intensa retroatividade
nas cenas e a delimitação dos espaços no profundo recorte do texto audiovisual foram
dificuldades encontradas na aplicação do método.
Por fim, realizou-se o exame morfológico do núcleo selecionado considerando as 31 funções
das personagens estabelecidas por Propp (2010). Segundo ele, “por função compreende-se o
procedimento de um personagem, definido do ponto de vista de sua importância para o
desenrolar da ação” (PROPP, 2010, p.22). Embora seu material de estudo tenha sido os contos
de magia, a definição postulada é geralista possibilitando estender a análise para outros
gêneros do discurso.
Do ponto de vista morfológico podemos chamar de conto de magia todo desenvolvimento
narrativo que, partindo de um dano (A) ou uma carência (a) e passando por funções
intermediárias, termina com o casamento (Wo) ou outras funções utilizadas como desenlace.
A função final pode ser a recompensa (F), obtenção do objeto procurado ou, de modo geral, a
reparação do dano (K), o salvamento da perseguição (Rs) etc. A este desenvolvimento damos o
nome de sequência. A cada novo dano ou prejuízo, a cada nova carência, origina-se uma nova
sequência. (PROPP, 2010, p.90)
São funções proppianas: “afastamento, proibição, transgressão, interrogatório, informação,
ardil, cumplicidade, dano, mediação, início da reação, partida, primeira função do doador,
reação do herói, recepção do meio mágico, deslocamento entre dois espaços, combate, marca,
vitória, reparação do dano, regresso, perseguição, salvamento, chegada incógnita, pretensões
infundadas, tarefa difícil, realização, reconhecimento, desmascaramento, transfiguração,
castigo e casamento” (PROPP, 2010).
Resultados e Discussões
Na leitura hipertextual e sob demanda da telenovela Avenida Brasil, o núcleo de Cadinho
possui certa regularidade nas visualizações, com média é de 34 mil acessos. Contudo, o índice
é bem menor daquele conquistado pelo núcleo principal, composto por Rita Cármen e
Genésio, com média de 69 mil acessos. Nota-se, portanto, que o espectador constrói um
127
percurso de fruição seguindo determinada personagem. Por fim, indica-se que o núcleo de
Tufão obteve, em média, 55 mil acessos neste primeiro capítulo.
O sexto vídeo introduz o núcleo de Cadinho. É, portanto, o primeiro contato que o público tem
com a história e, consequentemente, o vídeo com maior número de visualizações: 49 mil
acessos. Há um decréscimo nos vídeos seguintes, com nova elevação no vídeo vigésimo
primeiro, gancho de final de capítulo do núcleo. Ao comparar com os acessos dos vídeos
anterior e posterior, são denotadas quedas recorrentes.
Nos vídeos 10, 13, 18 e 21 ocorrem mudanças na situação de personagens do núcleo, seguindo
as considerações de Mckee (2006) expostas a seguir, que alimentam o interesse pela história e
a continuidade da navegação na recepção sob demanda e a manutenção do interesse no fluxo.
Contudo, o impacto dos eventos é baixo em comparação com os demais. A história de Cadinho
é cômica e objetiva distender a narrativa.
Quadro 02: Síntese da análise de cena do núcleo de Cadinho
Cenas
Views do Views
Views do
Escala de tensão no início e fim da
vídeo
vídeo
24
cena
15/06/14
anterior
posterior
06
8
+ + + + + + + + + + + + + + + + 88.171
49.470
71.748
10
3
++ ++ ++
44.348
33.152
43.317
13
1
+
++
30.593
27.516
35.340
18
4
++ +-
++
++
37.031
30.470
49.962
21
4
+ + + + ++
+?
31.162
32.536
53.034
Vídeo
Com cerca de cinco minutos e trinta e cinco segundos de duração, o sexto vídeo do primeiro
capítulo é composto por oito cenas e é intitulado Cadinho engana suas duas esposas.
Introdutório e expositivo, contém elementos que serão desenvolvidos a posteriori, como a
venda da corretora e a possibilidade da revelação da bigamia do personagem.
No exame morfológico foram encontradas neste fragmento situação inicial e as funções
transgressão, carência e mediação. Segundo Propp (2010, p.28), "a situação inicial dá a
descrição de um bem-estar particular, por vezes sublinhado propositalmente" e "este bemestar serve, evidentemente, de fundo constratante para a adversidade que virá a seguir".
24
128
Data em que ocorreu a análise de visualizações.
Já transgressão é compreendida como ruptura da proibição ou proposta, função anterior.
Neste caso, Cadinho mantém secretamente dois casamentos. dano ou carência é a
adversidade ou necessidade a ser reparada: a venda da corretora. A medição é a constatação
do dano ou carência pela personagem.
Com a análise de Mckee (2006) é mensurado a manutenção da condição da personagem do
começo ao fim desta cena. Cadinho é apresentado com suas esposas na eminência de vender a
corretora e, dessa forma, permanece até o fim. Projeta-se a negociação da venda da corretora
e abre-se a possibilidade para o desmascaramento de Cadinho pelo casamento duplo. Cria-se,
dessa forma, o interesse para audiência.
Quadro 03: Análise formalista do vídeo (06) - capítulo (01)
Função
Explicação
Trechos
“Verônica: Acorda, Cadinho.
Chegou o grande dia.”
(AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo
06)
Situação Inicial
A situação inicial de Cadinho é
construída em torno da venda
de
sua
corretora.
São
apresentadas
suas
duas “Verônica: Hein, Cadinho?
Olha lá, hein? Pelo amor de
famílias.
Deus. Tem que pedir alto pela
corretora”
(AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo
06)
Afastamento (I)
Não há.
Não há.
Proibição / Proposta (II)
Não há.
Não há.
Transgressão (III)
“Cadinho: Toca para casa
Cadinho é bígamo e mantém número 2, Marrento. Não,
secretamente
dois espera. Antes, vamos passar
casamentos. Ele engana, num florista".
portanto, suas esposas.
(AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo
06)
Interrogatório (IV)
Não há.
Não há.
Informação (V)
Não há.
Não há.
129
Ardil (VI)
Não há.
Não há.
Cumplicidade (VII)
Não há.
Não há.
Dano ou Carência (VIII)
Cadinho: “Hoje o dia tá
demais. Além de ser o dia que
vou vender a minha corretora,
Cadinho necessita vender a é a decisão do Campeonato
corretora.
Carioca”.
(AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo
06)
Mediação (IX)
Revelação sobre a venda da
corretora.
Com cerca de um minuto e vinte e oito segundos de duração, o décimo vídeo do primeiro
capítulo é composto por cinco cenas25 e é intitulado Cadinho negocia a venda de sua corretora.
O trecho desenvolve a negociação sem a concretização. De acordo com Propp (2010), a
transação comercial pode ser considerada como a tarefa difícil, função aplicada para provas e
desafios, cuja resolução atinge diretamente a reparação do dano.
Já com Mckee (2006), denota-se que a condição da personagem permanece a mesma.
Avançou-se nas negociações, mas não houve a sua concretização. A situação de Cadinho com a
corretora e com o casamento duplo é mantida. Projeta-se a continuidade das negociações
sobre venda da corretora.
Quadro 04: Análise formalista do vídeo (10) - capítulo (01)
Função
Tarefa Difícil (XXV)
Explicação
Trechos
“Jimmy: Talvez seja bom
refrescar sua memória, mas
Cadinho assiste ao jogo ao aqui na firma também tem
mesmo tempo em que decisão de campeonato. Os
negocia a venda de sua executivos do banco espanhol
que nos quererem comprar já
corretora.
chegaram”
(AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo
25 Duas cenas não integram o núcleo analisado.
130
10)
Com cerca de um minuto e trinta e um segundos de duração, o décimo terceiro vídeo do
primeiro capítulo é composto por uma cena é intitulado Cadinho pede mais dinheiro pela
corretora. É demonstrado a oferta do valor desejado, Cadinho aumentando o valor da venda e
a concretização do negócio. Na leitura de Propp (2010), o trecho apresenta a realização que
relaciona-se com o cumprimento da tarefa difícil.
Com Mckee (2006), a qualidade da experiência de Cadinho é positivada por ter conseguido não
só atingir seu objetivo da venda, bem como, ter dobrado o valor. Jimmy mostra-se surpreso
com o resultado: “Eu não acredito que você pediu quarenta” (AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo
10) e Cadinho minimiza a atuação do assessor: “Eu sou eu, você é você, Jimmy. Eu sinto as
coisas no ar, entendeu? Isso é que difere um craque de um jogador comum como você,
entendeu?” (AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo 10).
Quadro 05: Análise formalista do vídeo (13) - capítulo (01)
Função
Explicação
Trechos
“Executivo: Usted pediu un
número. Llagamos a este
número.
Le
ofrecemos
veinticinco millones”.
Tarefa Difícil (XXV)
(AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo
Cadinho
pede
quarenta
13)
milhões pela corretora.
“Cadinho: Quarenta Milhões.
Nenhum centavo a menos.”
(AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo
13)
Realização (XXVI)
Reparação do dano (XIX)
“Executivo: É bem mais do
que vale. Mas pra nós
Cadinho vende a corretora interessa. Negócio fechado”.
por quarenta milhões.
(AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo
13)
Com cerca de um minuto e trinta e oito segundos de duração, o décimo oitavo vídeo do
primeiro capítulo é composto por quatro cenas é intitulado Jimmy se vinga de Cadinho. De
131
acordo com Propp (2010), o trecho apresenta a tentativa de instauração da adversidade na
situação inicial de Cadinho a partir da sua transgressão (bigamia). Cadinho faz uma proposta
para Jimmy. Ao afastar-se, Jimmy transgride a proposta. Projeta-se a possibilidade do dano na
situação de Jimmy pelo ato. Sabendo da transgressão de Cadinho, Jimmy é ardiloso e tenta
transformá-la em dano por não receber um aumento.
Já com Mckee (2006), abre-se a possibilidade da alteração da condição de Cadinho com a
descoberta do casamento duplo e a de Jimmy como penalização. Será que Cadinho será
desmascarado? Projeta-se o encontro das esposas com Cadinho.
Quadro 06: Análise formalista do vídeo (18) - capítulo (01)
Função
Explicação
Trechos
“Jimmy: Cê tá pensando em
me dar algum bônus especial
pela venda da empresa?
Situação Inicial
Cadinho: Pois seu bônus
especial é continuar o
excelente salário que você vai
Cadinho está feliz pela venda
ganhar na minha nova firma.
da corretora.
Eu podia te deixar para trás.
Jimmy não consegue sua Os espanhóis iam te botar no
lixo, mas eu como sou um
recompensa pela venda.
cara legal, eu vou levar você
comigo, Jimmy."
(AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo
18)
Afastamento (I)
Cadinho faz o pedido a Jimmy
e vai embora da corretora.
“Cadinho: Jimmy, Jimmy, vem
cá. Liga pra minha mulher e
fala que eu vou encontrar
com ela em meia hora no
Gino e Gino.
Proibição / Proposta (II)
Cadinho pede que Jimmy
confirme com Verônica o Jimmy: Me desculpa, mas qual
jantar no Gino e Gino.
das mulheres?
Cadinho: A Verônica, lógico.”
(AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo
18)
132
“Jimmy:
Rose,
Cadinho
mandou avisar a mulher pra
encontrar com ele no Gino e
Gino em vinte minutos, tá?
Rose: Tá! Qual das mulheres?
Transgressão (III)
Jimmy telefona para Verônica Jimmy: A Noêmia.
e pede que a secretária ligue
Jimmy: Oi, Verônica. Tudo
para Noêmia.
bem? Cadinho tá sem celular.
Ele pediu pra você encontrar
com ele no Gino e Gino em
meia hora tá?”
(AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo
18)
Interrogatório (IV)
Não há.
Não há.
Informação (V)
Jimmy já sabe que Cadinho é
bígamo, sua transgressão.
Ardil (VI)
Por saber da transgressão de
Cadinho, Jimmy tenta vingarse,
transformando
a
transgressão em dano.
Com cerca de cinquenta e oito segundos de duração, o vigésimo primeiro vídeo do primeiro
capítulo é composto por quatro cenas é intitulado Cadinho encontra as duas esposas no
restaurante. Verônica e Noêmia chegam no restaurante, seguidas por Cadinho. Ele vê suas
duas esposas no restaurante. Interrompe-se a cena sem demonstrar o que ele fará.
Segundo Propp (2010), o trecho apresenta a possibilidade da instauração da adversidade. Já
com Mckee (2006), abre-se a possibilidade da alteração ou não da condição. Será que Cadinho
será desmascarado? A ação dramática é fragmentada. Interrompe-se, dessa forma, a ação sem
demonstrar o que de fato ocorrerá.
Quadro 07: Análise formalista do vídeo (21) - capítulo (01)
133
Função
Explicação
Trechos
“Cadinho: Boa noite, Moreira.
Cumplicidade (VII)
Dano (VIII)
O plano de
concretizado.
Jimmy
é Moreira: Pelo jeito o senhor
está sendo esperado, seu
Cadinho encontra as duas Cadinho.”
mulheres no restaurante.
(AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo
21)
As análises dos fragmentos com Propp (2010) possibilitou levantar a evolução da narrativa e
apontar as projeções que alimentam o interesse do espectador.
Referências
AVENIDA BRASIL. Direção: José Luiz Villamarim e Amora Mautner. Núcleo: Ricardo
Waddington. Roteiro: João Emanuel Carneiro. Produção: Rede Globo de Televisão. Rio de
Janeiro,
2012.
Disponível
em:
<http://gshow.globo.com/novelas/avenidabrasil/capitulo/2012/3/26/tufao-atropela-genesio.html>Acesso. 03.04.16.
COSTA, Maria Cristina Castilho. O gancho – da mídia impressa às mídias eletrônicas. Revista
Olhares, nº 06, 2 de setembro de 2000.
MCKEE, Robert. Story: substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro.
Curitiba: Arte & Letra, 2006.
LEÃO, Lúcia. O labirinto da hipermídia: arquitetura e navegação no ciberespaço. São Paulo:
Editora Iluminuras, 2001.
PROPP, Vladimir. As raízes históricas do conto maravilhoso. Trad. Rosemary Costhek Abílio,
Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2002,
PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Trad. Jasna Paravich Sarhan. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.
134
Capítulo 4 Espaços das Sonoridades
Tudo se Comunica. Memória, Comunicação e Formas de Sociabilidade em
Meu Tio – filme de Jacques Tati
Mirtes de Moraes26 , Universidade Presbiteriana Mackenzie
Resumo
A partir da análise do roteiro e da sonoplastia do filme Meu Tio, de Jacques Tati (Mon Oncle,
França, 1958) esse trabalho pretende tecer relações entre as sonoridades emitidas dos objetos
e das pessoas num contexto demarcado pela modernidade. Para isso será usado como
instrumento de apoio o roteiro fílmico. De um lado será mostrada a família Pichard,
representada como símbolo da modernidade sendo sua casa construída nos moldes de uma
arquitetura moderna formada por blocos de concreto, onde o ponto referencial da casa dos
Pichard é um chafariz que tem um formato de peixe, toda vez que toca a campanha da casa,
seus moradores correm a acioná-lo, emitindo um barulho estranho, logo os visitantes são
apresentados a casa em que do design moderno ecoa o vazio e a todo momento a única voz
humana a ser ouvir é a da dona da casa dizendo a frase emblemática: “aqui tudo se
comunica”. Por outro lado, na periferia de Paris, mora o Monsieur Hulot, o "Tio" a que se
refere o título do filme. O bairro em que Hulot vive é marcado por construções velhas que
sobejam sons de pessoas nas ruas, lá elas se encontram, conversam vivem de forma
espontânea. O sobrinho Gérard admira o jeito desajeitado, descontraído e amável do tio,
completamente avesso à imagem do pai, convencional e padronizado. O filme venceu o Oscar
de Melhor Filme Estrangeiro no Festival de Cannes, em 1958. Apesar de mais cinquenta anos
de sua produção, sua crítica continua atual, e com ela, pretende-se refletir os sentidos
constituídos pela memória cultural e as formas de sociabilidade no espaço urbano no Brasil
repensando nos espaços “assépticos” dos supermercados e shoppings, e perceber como se
estabelecem as relações de sociabilidade nesses lugares do espaço urbano.
Palavras Chave: Comunicação, Sonoridade, Memória, Espaço Urbano
“Aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína”
O fragmento acima destacado, retirado da canção Fora de Ordem de Caetano Veloso reflete
um processo de construção e demolição no espaço urbano, com esse cenário, o filme de
Jacques Tati se articula com os valores advindos através de uma nova mentalidade construída
26
Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora
da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) Curso de Graduação do Curso de Jornalismo e do
curso de Publicidade ministrando disciplinas: História da Arte e da Cultura, Sociologia e
Antropologia.
[email protected]
135
pela modernidade. Nesse processo de construção percebe-se, no mesmo movimento, um
processo de demolição de antigos modos de ser e de estar socialmente.
Articulado a esse propósito de demolição e construção, o filme Meu Tio de Jacques Tati (Mon
Oncle, França, 1958) pode ser visto como um olhar crítico sobre a modernidade. O filme está
inscrito no auge da Guerra Fria, momento em que o mundo se divide politicamente,
economicamente e ideologicamente o mundo em dois blocos. De um lado, o bloco capitalista,
liderado pelos Estados Unidos, e de outro, pelo bloco socialista liderado pela União Soviética.
Enquanto os capitalistas disseminavam imagens associando o estilo de vida americano como
uma vida brilhante em que as pessoas possuíam carros e bens de consumo e defendia a
democracia como sistema de liberdade, os socialistas disseminavam imagens de alto poder de
elevação educacional nas escolas e nos esportes. (DEBORD, 2011).
Com o objetivo de tirar a França das ruínas do pós guerra, os Estados Unidos propõe
estabelecer uma cidade moderna em que pretende no seu projeto modernizante alterar não
apenas sua fisionomia, mas também os valores que a ela estavam atrelados. Deste modo, o
projeto americano visava não apenas inferir na organização espacial através de uma
arquitetura moderna e funcional, mas esquematizar novos gestos, formas de sociabilidade e
de comunicação social.
Dentro desse esquadrinhamento adjetivações se referiam aos modos de ser e de estar
relacionadas ao novo período, como moderno, e ao mesmo tempo, ao velho período, como
arcaico. Porém, o velho e o novo convivem. E, descaracterizando a visão de modernidade,
Jacques Tati coloca como crítica que nem tudo que é moderno é bom, como, nem tudo que é
velho é ruim.
Antes mesmo do filme de se iniciar, quando se anuncia o elenco e direção o som emitido é de
uma britadeira, o barulho é acompanhado por imagens de guindaste, trator, britadeira,
escavadeira, enfim um conjunto de equipamentos que sinalizam os novos tempos,
demarcados pela construção e demolição.
A primeira cena do filme é apresentada por alguns cães perambulando pela cidade entre
restos e latas eles vão andando até se direcionarem para espaços mais regulamentados que
são visualizados por sinalizações delimitando os sentidos das ruas ,até que um dos cães, o
único vestido com um roupa xadrez, entra numa casa de arquitetura moderna. O cachorro
pertence a raça basset hound e pelo seu porte consegue passar por um espaço delimitado para
o seu tamanho, excluindo desse modo, os outros cães que o acompanhavam. Ao entrar pela
residência o cão é virado de ponta cabeça pela dona da casa que a segura pelas pontas dos
dedos, como se fosse um objeto sujo que deveria ser levado às pressas para a máquina de
lavar.
Deste modo, a obsessão pela limpeza marca a trajetória inicial do filme atrelando-a a mulher,
que assume o papel de esposa, mãe e dona de casa. É a mulher que põe café na xícara do
marido, é a mulher que acende o cigarro para o marido, é a mulher que dá o chapéu, as luvas e
a pasta para que o marido pudesse trabalhar. Esse momento é acompanhado pelo ritmo
frenético da mulher com o seu pano que tudo limpa, sobressaindo nesses movimentos, o som
ecoado pelos seus sapatos. Não há diálogo entre eles, aparecendo no seu lugar o som dos
136
objetos. Que depois pode ser acompanhado pelo motor do carro que acelera e sai às ruas
numa cadência jazzística. Setas, semáforos, pisca-piscas sinalizam o fluxo correto do trânsito
dos carros que podem ser visualizados pelo encadeamento padronizado.
Deste modo, Jaques Tati inicia seu olhar à modernidade que define padrões de
comportamento regulados pela forma como o espaço passa a ser administrado na vida das
pessoas. O espaço das ruas que passa pelo crivo da racionalidade, determinando através das
sinalizações, caminhos trafegáveis e, num mesmo movimento, impossibilitando outras formas
adjacentes de trajetos. Possibilitando desde então uma única forma a ser seguida, porém, no
discurso da modernidade, a impossibilidade não cabe ser pensada, no seu lugar são exaltadas
as novas regras que acentuam o tom moderno da vida racionalizada e controlada.
A forma de controle é também percebida nos espaços domésticos, deste modo, o diretor
Jacques Tati sinaliza de forma irônica o número exato de passos que deve ser dado para
atravessar o portão e adentrar o domicílio. Para o caminho trilhado, milimetricamente
calculado, seria preciso acertar o passo. Dessa forma, Tati mostra como as pessoas se esforçam
para estarem inscritas em códigos que promovem o sentido de moderno.
A arquitetura da casa dialoga com a escola Bauhaus fundada na Alemanha em 1919 por Walter
Gropius sua proposta era estabelecer uma conexão entre arquitetura, artesanato, e arte
minimizando relações estabelecidas com a esfera das Belas Artes, ou seja, havia uma proposta
em democratizar a arte e uma das suas plataformas de apoio era a construção de casas
populares baratas na República de Weimar. Porém em 1933, após uma série de perseguições
por parte do governo nazista, a Bauhaus é fechada, considerada pelos nazistas como antigêrmanica pelo estilo moderno e por ser também observada como uma frente comunista.
Contudo, depois de fechada na Alemanha muitos artistas ligados ao movimento migraram
para os EUA transformando a Bauhaus em uma das maiores e mais importantes expressões do
que é chamado modernismo tanto no que se refere ao design como na arquitetura.
Se o seu projeto inicial da Bauhaus era o de democratizar arquitetura e design, nos anos 50
percebe-se um deslocamento dessa concepção inicial, em que o popular passa a ser elitizado.
A característica da funcionalidade do estilo de vida americano vai adotar como marca da sua
modernidade grandes espaços, formato de cubo, branco, envidraçado, concreto aparente
traduzindo numa arquitetura ousada, arrojada, moderna, mas com preço elevado. Esse tipo
de construção vai traduzir em outras palavras o que é ser moderno e ao mesmo tempo
sofisticado. Jacques Tati tenta desconstruir essa versão americana sobre o continente
europeu, ironizando a funcionalidade tanto no que se refere a arquitetura, como nos objetos e
também na relação das pessoas com tudo isso.
“Aqui tudo se comunica”
A residência da família Pichard é representada no filme como símbolo da modernidade, a casa
onde residem é construída nos moldes de uma arquitetura moderna formada por blocos de
concreto.
Assim que se chegava à casa da família Pichard, já do lado de fora do portão, o convidado
escutava um ruído irritante de dentro do estabelecimento, não era apenas o som que causava
137
um incômodo, mas também o objeto que enunciava tal ruído: um chafariz no formato de
peixe.
O chafariz pode ser considerado o ponto referencial da casa dos Pichard, e consequentemente
do filme de Jacques Tati, frequentemente encontrava-se desligado, mas, assim que a
campainha era tocada, os habitantes corriam para ligar o chafariz, porém muitas vezes seus
moradores ao perceberem que eram determinadas pessoas o desligavam no mesmo
momento.
Nesse sentido, Tati se apropriou de um objeto de design excêntrico que estaria ali
representado como referencial simbólico cultural, era como se chafariz ocupasse o lugar de
uma obra de arte, uma escultura, em que os moradores ao acioná-la pretendiam expor sua
peça e ao mesmo tempo mostrar seu bom gosto, mas, na ironia de Tati era um objeto um
tanto quanto estranho.
Assim que os visitantes entram na casa, o papel da esposa do Sr. Pichard como dona de casa é
apresentar com grande satisfação o design moderno dos móveis e aparelhos eletrônicos. Os
móveis com design arrojado podem ser pensados como objetos de decoração que possuem
uma vida independente do seu usuário, sua funcionalidade se atrela à disposição e não ao seu
modo em acomodar pessoas, na verdade, ocorre uma inversão de valores, as pessoas que
devem se adaptar aos objetos. Entre os poucos sofás e cadeiras ecoa o vazio dos ambientes e a
sonoridade “abafada” emitida através dos materiais sintéticos. A única voz humana a se ouvir
é a da dona da casa dizendo a frase emblemática: “aqui tudo se comunica”.
Jaques Tati demarca paradigmaticamente padrões de comportamento regulados pela forma
como o espaço passa a ser administrado. Pode-se perceber que ao direcionar a casa como
espaço simbólico do feminino o diretor pontua de modo bastante singular quais deveriam ser
os papeis sociais da mulher e do homem.
Cabe notar que a construção do comportamento feminino foi conduzida para a esfera do
recolhimento tendo como campo de referência, o espaço doméstico, o cuidado com os filhos e
o marido e as extensões desse mundo privado se atrelando as responsabilidades do lar como
lavar, cozinhar, passar e bordar. Deste modo, a casa, no filme de Tati deve ser vista como
espaço referencial que delimita o que significa ser uma mulher nos anos 50 idealizada nos
moldes da cultura norte-americana. Para isso, o diretor além de estabelecer a casa como lócus
de determinação comportamental, passa a observar o interior do domicílio sobressaindo um
endeusamento aos objetos, móveis e aparelhos eletrodomésticos.
O estilo de vida americano vai empregar o uso desses objetos como forma de um modelo de
conforto, e a mulher moderna inserida naquela década vai ouvir um discurso que com os
eletromésticos sua vida iria ser simplificada, assim ela teria tempo de cuidar da casa e dela
também. Observa-se então que não é mais apenas a casa, o marido e os filhos que devem ser
olhados com atenção, mas a própria mulher, por trás dessa nova responsabilidade feminina
pode-se perceber um deslizamento ideológico em que se associa a mulher a sua beleza e
cuidados pessoais.
138
Desse modo se constrói nesse repertório, uma valorização das aparências tanto físicas como
econômicas, Jacques Tati sobressai como característica da dona de casa, a vida pautada nas
relações de aparências, mostrando assim, de forma irônica e ao mesmo sutil, uma vida regada
pelo artificial, pelo formal e sem afeição humana.
Outro espaço que merece atenção é a cozinha da senhora Pichard , lá tudo é racionalizado,
automatização, regulamentado. Minutos são cronometrados para abrir e fechar a porta do
armário, o tempo exato calculado pela ciência em que regula o momento em que o usuário
gastaria para pegar um objeto do armário. A funcionalidade dos objetos é apresentada de
forma tão exagerada que Jacques Tati propõe com isso, deixar a cena engraçada para quem
assiste o filme. As tarefas são executadas por aparelhos, bastando a dona de casa apertar o
botão, mas, para tal execução todos os aparelhos manifestam um barulho ensurdecedor,
deixando assim, que as pessoas se calem para que no seu lugar os ruídos dos eletromésticos
ganhem vozes. Assim, mais uma vez Jacques Tati pontua a crítica na forma de humanizar os
objetos e desumanizar as pessoas.
Recolocando a frase da senhora Pichard de que “aqui tudo se comunica”, a comunicação se faz
entre os objetos, são eles que falam e comandam determinações sociais. Enquanto que as
relações famíliar e social são esvaziadas e frígidas, como a própria casa em que habitam.
Meu tio
Como contraponto da família dos Pichard aparece o irmão da senhora Pichard, o tio Hulot.
Monsieur Hulot é solteirão e desempregado, fora dos padrões impostos pela sociedade e é
um grande admirador do seu sobrinho Gérard. Observa-se que o título do filme (e aqui do
trabalho) tem como protagonista o próprio Jacques Tati, situando dessa forma o seu
posicionamento político e econômico frente a esse estilo de vida americano.
Hulot vive na periferia de Paris lugar em que a ordem é estabelecida pelos próprios
moradores, um espaço onde os barulhos são emanados por pessoas e animais. Entre as cenas
que demarcam o espaço de convivência, pode-se observar um varredor que não consegue
acabar sua tarefa pois sempre tem algo novo para acrescentar na sua conversa. É possível ver
também pessoas sentadas numa mesa na rua conversando. Assim, o espaço público das ruas é
visto como espaço de sociabilidades.
Jacques Tati destaca com grande força o espaço das feiras livres de onde se pode traduzir a
forma espontânea e descontraída. Por meio das feiras é possível perceber espaços de
sociabilidade demarcados por formas de comunicação oral. Enredadas numa diversidade de
produtos que se subdividem em frutas, hortaliças, vegetais, peixes, pasteis e caldo de cana,
esses produtos são expostos em barracas e suas qualidades são divulgadas pelos feirantes em
tom alto, muitas vezes cantam e assobiam, convidando o freguês a experimentar o produto como forma de garantir sua qualidade, estabelecendo muitas vezes, relações de fidelidade
entre o vendedor e o freguês. Deste modo, a feira livre, pode ser considerada como um espaço
dinâmico dentro do espaço urbano, lugar de trocas mercadológicas e sociais, em que fregueses
negociam o preço e a qualidade do produto. O feirante por sua vez, organiza em pacotes,
bacias e dúzias seu produto a ser comercializado, e dependendo da transação estabelecida,
uma dúzia, invés de doze unidades, pode ser combinada por quinze ou mais unidades. A
139
conversa nas barracas pode se desdobrar em outros assuntos do produto à política, ao futebol,
à novela.
Jacques Tati destaca como o espaço das ruas era um local de vida espontânea e é com esse
atrativo que seu sobrinho Gerard estabelece relações bem aproximas ao tio. Na periferia, as
crianças brincavam e traquinavam nas ruas e nos matagais. Gérard com o tio podia comer
‘porcarias’ com as mãos sujas, diferentemente de onde e como vivia. Tati demarca de forma
bastante acentuada que, embora na periferia as pessoas vivessem com menos recursos
monetários eram mais felizes. Essa felicidade é recuperada pela vivência entre pessoas, o
barulho que se escuta daí advêm de seres vivos.
Novas formas de sociabilidade na contemporaneidade
Apesar de mais cinquenta anos de sua produção, sua crítica continua atual, e com ela,
pretende-se refletir os sentidos constituídos pela memória cultural e as formas de
sociabilidade no espaço urbano, Tati coloca uma forte presença da oralidade, essa oralidade
que parte das ruas, do discurso informal, da criatividade, do improviso em tecer relações,
marcando assim uma articulação entre a subjetividade capturada pelo tempo vivido com a
forma assimilada pelo processo cultural.
A vida de uma rua densamente povoada é inesgotavelmente rica, se
registrarmos os seus sons e movimentos. Podemos gravar a trilha sonora de
uma rua durante 24 horas. Desde a primeira janela que se abre de manhã, a
vassoura na calçada, as portas das lojas que se erguem, os passos de quem
vai para o trabalho, conversa, cantigas...
Sob essa diversidade há uma ordem e um ritmo cuja seqüência é portadora
de um sentimento de identificação. A seqüência de movimentos na calçada
segue ritmos que se aceleram e se abrandam em horas certas e vão se
extinguindo devagar, quando as janelas se iluminam e as ruas se esvaziam.
Depois, as janelas vão-se apagando e fechando, menos alguma que resiste
ainda, da qual escapa um som que finalmente silencia.
Por que definir a cidade somente em termos visuais? Ela possui um mapa
sonoro compartilhado e vital para seus habitantes que, descodificando sons
familiares, alcançam equilíbrio e segurança (BOSI, 2003; 45)
Desta forma, esse artigo se objetivou a analisar como Jacques Tati valoriza a espontaneidade,
expressões orais marcadas pela sonoridade urbana, podendo estabelecer assim uma
preocupação sua com a memória social.
Hoje , podemos rever a crítica de Jacques Tati ao nosso universo, assim percebemos nos
discursos sobre às adversidades das feiras livres, pode-se exemplificar o caso da sua ocupação
geralmente em ruas, a céu aberto, que em dias chuvosos, ou então, em dias extremamente
frios ou quentes, muitas pessoas preferem lugares cobertos equipados com ar condicionado
preferindo conforto e comodidade.
Assim, Percebe-se com grande frequência no mundo contemporâneo o direcionamento das
pessoas para ambientes mais “seguros” onde existem seguranças, câmeras, onde não
existem pedintes... Se observa nesses lugares organizados pela tecnologia um distanciamento
140
das relações sociais, a negociação que se estabelece entre o consumidor e a mercadoria são
substituídas por relações burocráticas organizadas em espaços determinados para atender a
reclamação do cliente.
O horário do estabelecimento se estende comparado ao período do expediente do trabalhador
de uma empresa, abrindo inclusive nos finais de semana e feriados, conectando o consumidor
com a sua função social que passa a ter como centro de referência do homem moderno as
relações de consumo enredadas pelo capitalismo.
Invés de ‘baciadas’ o freguês passa a ser o consumidor por quilo, redimensionando o valor a
ser pago pelo cálculo da balança, oposto a forma de negociação que poderia ser estabelecida
quando o freguês não estivesse satisfeito com o valor da mercadoria. Observa-se que a palavra
freguês é definida como uma pessoa que compra com regularidade em uma loja ou que tem
uma relação continua e estável com determinado estabelecimento comercial. No que se refere
a palavra consumidor também é indicado à pessoa que consome um produto ou serviço,
porém sem vinculo pessoal com o vendedor ou com a loja. Quando se observa o serviço de
proteção e defesa do consumidor, o PROCON, nota-se que o consumidor reclama por uma
insatisfação do produto, loja ou serviço, quando a insatisfação ocorre com o freguês, ele pode
tentar resolver a situação num diálogo com o comerciante.
De acordo com o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2003) cada vez mais as pessoas na
sociedade contemporânea tornam-se mais isoladas por questões que se atrelam a segurança,
mesmo que para isso precisem ser controladas. Diante do avanço tecnológico, muitas pessoas
conversam, trocam informações, realizam compram mediadas pela tecnologia, distanciando
desta forma, as relações pessoais, tornando-as impessoais.
Ao mesmo tempo em que as sonoridades dos espaços abertos vêm sendo substituídas por
outras formas de representação de espaço social como supermercados e shoppings, os sons
emitidos já não são mais parte de um repertório criativo e humano, mas sim o som
padronizado de elevadores, escadas rolantes, quando nesses lugares aparece a voz de pessoas
emitindo o andar do recinto são gravadas por áudio padronizado, proporcionado uma
sensação apenas de informação ao transeunte. O mesmo se procede com o distanciamento
das relações afetivas e engraçadas entre vendedores e a clientela.
Se antes o centro da cidade era o lugar onde começavam a ser despertados os sentidos
atrelados às compras, nos anos 50 inaugura-se um centro de compras: o shopping center,
ampliando assim suas funções que passaram a serem acompanhadas por outras significações
do consumo: lanchonetes, restaurantes, cinema e parque de diversões. (SARLO,2000)
No que se refere à alimentação, pode-se notar a grande força desse modelo que se impôs
socialmente, em que, comer, passou a ser sinônimo de lazer, é notável o aparecimento de
várias lanchonetes que são criadas nos moldes americanos ditando uma imagem moderna e
prática da época: hambúrguer, batata frita, milk shake ou Coca Cola .
Nesse sentido, a praticidade trazida pelos enlatados vai ser a marca do sucesso da época, seja
nas prateleiras dos supermercados, nas dispensas das casas ou também na própria sociedade,
141
em que começam a divulgar formas de vida padronizadas, em série, colocando num bloco
homogêneo a sociedade em massa.
Todos os produtos passam a ganhar uma dimensão do consumo, o estilo de vida americano
passa a invadir várias áreas como o corpo, arte, cultura. E todas elas se tornam articuladas às
ideias do consumo e por consequência à espetacularização, pois para fazer sucesso, é
necessário um grande público. Desta forma espetacularizarida, podemos ler a divulgação da
estreia do primeiro shopping de São Paulo: o shopping Iguatemi. Inaugurado a 28 de
novembro de 1966 teve seu destaque (entre outras notícias) na capa do jornal Folha de São
Paulo com a manchete: o “shopping” abriu com festa. E a abertura dessa festa contou com
pessoas famosas. Além do novo conceito em compras, a atração ao público fora despertada
pelo show com show de Chico Buarque, Nara Leão, Eliana Pittman e Chico Anísio que
aconteceu no local. (FOLHA, 1966)
O shopping center - centro que irradia um novo conceito de vida se amalgamava ao consumo,
tornando-se assim, o lócus do espetáculo, um simulacro, onde se perde a noção do externo.
Um mundo que se faz a parte, se cristaliza, como uma nova forma de modernidade, tornandose por sua vez, o cenário padronizado de todas as cidades modernas. (MORAES, 2011)
O shopping center é uma espécie de simulacro da cidade em miniatura, em que todos os
extremos são anulados: o mal tempo, os ruídos, o claro-escuro, os monumentos, os espaços
vazios, os grafites, os monumentos, os pôsteres, assim como a diversidade social urbana
(SARLO, 2000)
Dessa mesma forma, o shopping cria um lugar asséptico divulgando a imagem de segurança,
porém, há ainda uma grande procura pelo espaço informal das ‘feirinhas’ em que a figura do
vendedor se assemelha a um conhecedor do produto a ser comercializado e não apenas um
comerciário inserido num processo de terceirização. Invés da padronização de espaços e
pessoas o lugar passa passa a ser povoado por relação mais ‘humana’ e menos tecnológica,
ganhando um representativo espaço de socialibilidade, preservando desta forma a relação
cultural, a construção e manutenção da memória social.
Assim esse trabalho procurou situar através da analise do filme Meu Tio de Jacques
Tati desdobramentos que se atrela a cultura de antes e do depois, da França e do Brasil sendo
permeados pelo modelo de vida norte americano.
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144
O Ruído como proposta de Linguagem no século XX
Doutorando: Thiago Mori-Leite – [email protected]; Prof. Dr. Marcos Rizolli [email protected];
Resumo
O desenvolvimento da arte pictórica no início do século XX ocorre de forma dinâmica até sua
ruptura com o urinol dadaísta de Marcel Duchamp. Com o cinema a arte visual tem sua
continuidade em uma nova linguagem híbrida, a linguagem audiovisual, que vai ser endeusada
pelos artistas do Futurismo Italiano, que nela vão reconhecer sua mimese de novo mundo. O
futurista Luigi Russolo é considerado artista pioneiro nas pesquisas, experimentações e
utilizações do ruído como elemento primordial em sua produção artística, que transcende o
movimento vanguardista do futurismo italiano e se apresenta resignificado ao longo das
diferentes linguagens artísticas do século XX. Antes de Russolo escrever A arte dos Ruídos em
1913, o ruído já estava presente de alguma forma nas artes pictóricas pós impressionistas do
final do século XIX e no início das vanguardas modernistas, como por exemplo nas colagens
cubistas de George Braques e claramente nas propostas de ressignificação da apreciação,
fruição e produção da arte elaboradas por Marcel Duchamp.Tanto conceitualmente como
formalmente a importância da utilização do ruído pode ser sintetizada nas propostas dos
futuristas italianos, que adotam o ruído como um forte elemento estético que pode ser
encontrado em toda interdisciplinaridade que a vanguarda propicia. Contudo, em Luigi Russolo
o ruído é estudado e utilizado além da estética ou da semiótica, o ruído se torna a práxis vital
do artista, sendo cada vez mais utilizado é encorporado nas pesquisas e obras de artistas
icônicos como o sul coreano Nan June Paik, pioneiro da videoarte e a banda nova-iorquina
Sonic Youth, que dentre toda produção fonográfica e videográfica controlada pela indústria
cultural do final da década de 90, se destaca por utilizar o ruído de forma intersemiótica,
explorando a próxima relação entre o áudio e o visual, buscando a criação de um fio condutor,
de uma estrutura que alinhe as diferentes produções artísticas que no início do século passado
aliaram arte à evolução tecnológica.
Palavras-chave: Ruído, Linguagem, Interdisciplinaridade
Abstract
The development of pictorial art in the early twentieth century is dynamic until its break
with the dadaist Marcel Duchamp urinol. With visual art film has its continuation in a
new hybrid language, the visual language will be deified by Futurism Italian artists who will
recognize in the new language mimesis of his new world. The futurist Luigi Russolo is regarded
as an artist pioneer in research, trials and uses noise as a major element in his artistic works
that transcends the avant-garde movement of Italian Futurism and presents resignificado
throughout the different art forms of the twentieth century. Before Russolo write The Art of
Noise In 1913, noise was already present in some way in the arts pictorial post Impressionists
of the late nineteenth century and the beginning of the modernist avant-garde, such as the
Cubist collages of George Braque and clearly in the draft redefinition of appreciation,
enjoyment and production of art designed by Marcel Duchamp. Both conceptually and
formally the importance of using the noise can be synthesized in the proposals of the Italian
Futurists, adopting noise like a strong aesthetic element that can be found throughout
145
interdisciplinarity that provides cutting edge. However, in Luigi Russolo noise is studied and
used beyond the aesthetic or semiotic, noise becomes a vital practice of the artist, increasingly
used and is embodied in the research and work of iconic artists such as the south korean Nan
June Paik, pioneer of video art and the new yorker band Sonic Youth, that among all recording
and video production controlled by the culture industry of the 90's, stands out for using the
noise intersemiotic form, exploring the close relationship between the audio and visual,
creating a common thread, a structure that aligns the different artistic productions that early
last century allied art technological developments.
Key- words: Noise, Language, Interdisciplinarity
Considerações Iniciais
Os artistas sempre representaram a camada mais sensível da sociedade e este elemento
estético, o ruído, já havia sido utilizado visualmente pelos artistas divisionistas do final do
século XIX, experimentado também nas obras cubistas do início do modernismo, e
fortemente adotado na esfera conceitual dos ready-mades de Marcel Duchamp; mas em
nenhum momento da história da humanidade o ruído teve a importância sígnica dada
pelos futuristas italianos.
O Futurismo Italiano foi um importante movimento artístico de vanguarda no início do século
XX que apresentava uma proposta de glorificar estéticamente o mundo moderno, com toda
mecanização, velocidade e dinamismo emergentes na época.
A Itália, país ainda semi rural no início do século, ansiava por mudanças que a incluiria no
circuito cosmopolita moderno que se formava na Europa e o futurismo italiano e suas práticas
ofereciam esta oportunidade.
As grandes cidades do norte italiano cresciam com suas indústrias, e a cidade de Milão se
tornava a cidade mais emblemática do progresso tecnológico, não por acaso sede da editora
futurista de F.T. Marinetti, fundador e mentor do futurismo.
Um poeta de personalidade forte e atitudes anárquicas, um líder nato que habilmente reuniu
artistas de diversas áreas na cidade de Milão, como o pintor e escultor Umberto Boccione; o
arquiteto Antonio Sant'Elia; o pintor, poeta, compositor e inventor Luigi Russolo; o pintor e
professor Gino Severini; e os pintores Carlo Carrá e Giacomo Balla entre outros nomes que se
juntariam ao grupo dos futuristas.
Um movimento que conseguiu atrair artistas de diversas áreas como poesia, pintura,
arquitetura, escultura, cinema, gastronomia, moda, teatro e música; o futurismo trazia em sua
gênese a interdisciplinaridade artística. Desta maneira o futurismo acabou se convertendo
muito além de sua proposta estética, não bastava fazer futurismo, mas principalmente ser
futurista. Essa proposta comportamental colocava a figura do artista em destaque, um herói
romântico que buscava através da estética um sentido, uma ética e uma lógica.
A utilização da interdisciplinaridade de linguagens como metodologia artística se torna a
coluna central que irá sustentar não somente os artistas do futurismo italiano, mas
principalmente as vanguardas modernistas que preservarão esta herança para os artistas
146
contemporâneos. Nesse panorama se destaca o pintor Luigi Russolo, que fiel a esta nova
estética narra as dialéticas da grande cidade moderna, desenvolvendo um elemento crucial
nas matrizes interdisciplinares do futurismo.
Por meio do ruído, que agora fazia parte da vida na grande cidade, Russolo desenvolveu o
trânsito sígnico entre as várias linguagens artísticas, colocando a interdisciplinaridade artística
como marca fundamental não somente do futurismo, como também das vanguardas que
surgiriam a partir dessa conversa entre várias linguagens artísticas.
A proposta desta pesquisa parte das relações entre som e imagem, na arte pictórica, na música
e inclusive na poesia, com ênfase no ruído como elemento primordial no cenário futurista,
principalmente no conjunto de obras do artista Luigi Russolo, pintor de formação clássica que
participa dos principais manifestos da vanguarda surgida em Milão no início do século XX.
Analisando a produção sonora e escrita do artista e compositor Luigi Russolo, esta pesquisa
busca delinear o ponto de encontro e a importância desse ponto de encontro da música, do
som, com a produção pictórica, gráfica e até mesmo poética, onde o ruído se torna práxis vital
no futurismo italiano, e consequentemente, o ruído é incorporado na arte como uma entidade
de linguagem do século XX.
Para Russolo, o ontem era silencioso, era orgânico; o hoje está acompanhado da eletricidade,
da máquina, da cidade, do ruído: o cotidiano está contaminado pelos avanços da
modernidade, e por isso em seu manifesto afirma a importância e a necessidade da utilização
do ruído além da poética artística.
RUÍDO
Ruído é uma palavra originária do Latim, rugitus, o mesmo que o rugido dos animais ferozes,
daí sua forte associação com a matriz sonora, com o barulho. De modo geral, a definição de
ruído está ligada ao som não desejado, aos distúrbios linguísticos e aos problemas de
comunicação.
Todo sinal considerado indesejável na transmissão de uma mensagem por um canal pode ser
considerado ruído, tudo o que dificulta a comunicação, interfere na transmissão e perturba a
recepção ou a compreensão da mensagem. Todo fenômeno que ocasiona perda de
informação durante o processo de comunicação entre fonte e o destinatário. Alguns exemplos
como perturbações atmosféricas na recepção radiofônica, transmissão errada de uma letramorta no envio de um telegrama, pontos brancos salpicados na tela de TV, letras miúdas em
um livro, linha cruzada numa ligação telefônica, erro tipográfico num jornal, rasgão numa
página de revista, mancha de cor num quadro, pronuncia incorreta, emprego de palavras de
difícil compreensão para o público a quem se destina a mensagem (signos que não constam do
repertório do destinatário) etc… sao comumente associados ao conceito de ruído.
Segundo Abraham Moles (1991), não existe nenhuma diferença de estrutura absoluta entre
ruído é sinal: ambos são da mesma natureza e a única diferença logicamente adequada que se
pode estabelecer entre eles deve basear-se exclusivamente no conceito de intenção por parte
do transmissor:
147
Na eletrônica o ruído tem sua definação associada à percepção acústica, por
exemplo de um "chiado" característico ou aos "chuviscos" na recepção fraca
de um sinal de televisão, semelhante a granulação de uma fotografia, que
em determinadas proporções, também tem o sentido de ruído na sintaxe da
linguagem visual. Na comunicação, de um modo geral, a presença do ruído é
vista como algo prejudicial, como perda de informação. (RABAÇA; BARBOSA,
1998, p.522-523).
Já para os pesquisadores da corrente teórica denominada Teoria da Informação o ruído pode
desempenhar a função de portador de informação.
A informação totalmente original cabe, em Teoria da Informação, a
designação de entropia máxima, apresentando a entropia como a medida
da desordem introduzida numa estrutura informacional.
A informação ideal tende para o máximo de originalidade, quanto mais
imprevisível for, menos será passível de apreensão por um receptor médio,
para o qual as mensagens surgem dependentes de uma ordem e para quem
o novo, o original, surge como desordem, confusão, complexidade. (COELHO
NETTO, 1996, p. 129).
A Teoria da Informação nasceu nas áreas da telefonia e da telegrafia, como uma teoria
estatística e matemática. Sua utilização na comunicação diz respeito à criação de mecanismos
para se pensar os aspectos sintáticos, formais e estruturais, para se compreender a
organização e transmissão das mensagens. Seu foco se restringe á codificação e decodificação
da mensagem, que será ou não significativa de acordo com a capacidade de mudanças
causadas no receptor, como bem define Teixeira Coelho Netto (1996), a Teoria da Informação
preocupa-se antes de mais nada com a eleboração de uma dada mensagem, capaz de
promover em seus receptores uma alteração do comportamento.
Sendo assim, o novo, o original, ou o próprio ruído, gera quebra de estruturas, propiciando
mais informação. Quanto mais originalidade, menos previsibilidade, consequentemente mais
informação.
A mensagem que tende para um grau máximo de originalidade [a
mensagem mais imprevisível] tende igualmente para um máximo de
informação e, inversamente, quanto mais previsível a mensagem, menor
sua informação […] a mensagem ideal - em oposição às mensagens reais pode ser descrita como sendo a que contem um máximo de informação ou
como a que se apresenta com uma tendência para a entropia. (IBIDEM, p.
133).
A mudança no comportamento do receptor de uma mensagem depende do caráter de novo
desta mesma mensagem. Quanto maior a taxa de novidade de uma mensagem maior o seu
valor informativo, sendo maior a mudança de comportamento provocada.
Segundo Décio Pignatari, o conceito de entropia em confronto com o conceito de informação
pode se relativizar de acordo com o valor de informação, conceito também comum para
Norbert Wiener, pesquisador pioneiro na área da cibernética:
As mensagens são em si uma forma de padrão e de organização. Com efeito,
é possível tratar conjuntos de mensagens como tendo uma entropia, tais
como conjuntos de estados do mundo exterior. Assim como a entropia é
uma medida da desorganização, a informação transmitida por um conjunto
de mensagem é uma medida de organização. De fato, é possível interpretar
148
a informação de uma mensagem essencialmente como o negativo de sua
entropia e o logarítmo de sua probabilidade. Isto é, quanto mais provável é
a mensagem, menor é a informação fornecida. Lugares-comuns, por
exemplo, são menos esclarecedores do que grandes poemas.(WEINER apud
PIGNATARI, 1993, p. 57).
Portanto, conforme os estudos elaborados por seus teóricos, na Teoria da Informação a
“entropia negativa pode ser considerada a própria informação”, pois os conceitos e o valor
significativo de informação estão ligados à “originalidade, novidade e ao inesperado”;
conceitos que podem ser aplicados na esfera da arte. Sendo assim, a noção de ruído identificase com a noção de entropia e pode ser entendida nas artes como a medida do original, do
inusitado que propõe uma ruptura com a noção de absoluto, seja em sua estética, forma ou
conceito.
O futurismo italiano
O futurismo italiano foi um importante movimento artístico de vanguarda no início do século
XX que apresentava uma proposta de glorificar esteticamente o mundo moderno utilizando
toda velocidade, mecanização e dinamismo que emergiam na sociedade.
O século XX se iniciava e inaugurava um novo tempo para as artes. Um tempo que buscava o
rompimento brutal com o passado, com a tradição das academias, valorizando e se utilizando
dos adventos da ciência e da tecnologia, muitas vezes por meio da transgressão, da força, do
ímpeto da paixão e da violência, meios que justificariam os fins.
O futurismo italiano é marcado por sua anarquia e irreverência, é na inquietação com o
passado, no rompimento com a tradição que se torna o berço fértil das artes modernas. Sua
importância como movimento artístico se confunde com a sua capacidade de gerar
vanguardas artísticas, devido à sua interdisciplinaridade de linguagens.
Um movimento que atraía artistas de diversas áreas, como poesia, pintura, arquitetura,
cinema, teatro e música; o futurismo trazia em sua gênese a convergência das novas
tecnologias e o rompimento com as regras acadêmicas.
O século começava com um alto desenvolvimento tecnológico incluindo o telégrafo, o
telefone, o raio-X, a bicicleta, o automóvel, o avião e o cinema foram o molde dessa nova
consciência cultural. A psicanálise e a teoria da relatividade resultaram em novos moldes e
dimensões do pensamento humano.
A visão de uma nova Itália se consolidava a partir da experiência física e cognitiva em conjunto.
Os artistas das principais regiões italianas se reuniam em apoio a uma ofensiva militar contra a
Áustria, que controlava territórios na península itálica. Formava-se um sentimento nacionalista
irrigado pelas recentes frustrações militares e dos incríveis adventos da ciência que
provocavam transformações na percepção do espaço-tempo. As mudanças produzidas nos
meios de comunicação tiveram resultados impressionantes. O dinamismo e a velocidade
modelavam todos os meios de transporte, comunicação e expressão.
A estética do futurismo italiano era decididamente anti-romântica e estava com os dois pés na
sociedade industrial do início do século XX. Foram temas centrais dos futuristas a
149
industrialização, as máquinas, a velocidade, o urbano, a juventude, vitalidade, força, o
heroísmo, a violência, a violência, o grotesco, e até mesmo uma glorificação da guerra.
O manifesto de 1909 reflete assim o programa de Marinetti para o futuro
mais do que sua própria prática poética. Como poeta lírico, ele era um
medíocre simbolista tardio; como pensador, era quase todo um derivado de
outros, suas declarações extravagantes sendo facilmente rastreáveis até
Nietzsche e Henri Bergson, Alfred Jarry e Georges Sorel. Mas, como o que
chamamos hoje de artisita conceitual, Marinetti era incomparável, tendo a
estratégia do seus manifetos, performances, recitações e ficções sido
concebida para transformar a política numa espécie de teatro lírico.
(PERLOFF,1993, p.157)
O ano de 1909 é normalmente tido como a data de início da vanguarda, porque o poeta
italiano e líder do movimento, Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) em 20 de fevereiro
daquele ano publica no jornal francês Le Figaro seu Manifesto Futurista. Pouco depois formase um movimento na ex-união soviética com os princípios dos italianos e posteriormente em
outros países grupos surgiram com propostas semelhantes. O futurismo apresenta-se como
um movimento artístico multidisciplinar extremamente avant-garde, inclusive no sentido
militar do termo.
1. Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e do
destemor.
2. A coragem, a audácia, a rebelião serão elementos essenciais de
nossa poesia.
3. A literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o êxtase, o
sono. Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia
febril, o passo de corrida, o salto mortal, o bofetão e o soco.
4. Nós afirmamos que a magnificência do mundo enriqueceu-se de
uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de
corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes
a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que
correr sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de
Samotrácia.
5. Nós queremos entoar hinos ao homem que segura o volante, cuja
haste ideal atravessa a Terra, lançada também numa corrida sobre
o circuito da sua órbita.
6. É preciso que o poeta prodigalize com ardor, fausto e
munificiência, para aumentar o entusiástico fervor dos elementos
primordiais.
7. Não há mais beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não
tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia
deve ser concebida como um violento assalto contra as forças
desconhecidas, para obrigá-las a prostrar-se diante do homem.
8. Nós estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que
haveríamos de olhar para trás, se queremos arrombar as
misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram
ontem. Nós já estamos vivendo no absoluto, pois já criamos a
eterna velocidade onipresente.
150
9. Nós queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo - o
militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as
belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher.
10. Nós queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de
toda natureza, e combater o moralismo, o feminismo e toda vileza
oportunista e utilitária.
11. Nós cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo
prazer ou pela sublevação; cantaremos as marés multicores e
polifônicas das revoluções nas capitais modernas; cantaremos o
vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados
por violentas luas elétricas; as estações esganadas, devoradoras
de serpentes que fumam; as oficinas penduradas às nuvens pelos
fios contorcidos de suas fumaças; as pontes, semelhantes a
ginastas gigantes que cavalgam os rios, faiscantes ao sol com um
luzir de facas; os piróscafos aventurosos que farejam o horizonte,
as locomotivas de largo peito, que pateiam sobre os trilhos, como
enormes cavalos de aço enleados de carros; e o voo rasante dos
aviões, cuja hélice freme ao vento, como uma bandeira, e parece
aplaudir como uma multidão entusiasta.
12. É da Itália, que nós lançamos pelo mundo este nosso manifesto de
violência arrebatadora e incendiária, com o qual fundamos hoje o
‘Futurismo’, porque queremos libertar este país de sua fétida
gangrena de professores, de arqueólogos, de cicerones e de
antiquários. Já é tempo de a Itália deixar de ser um mercado de
belchiores. Nós queremos libertá-la dos inúmeros museus que a
cobrem toda de inúmeros cemitérios. (MARINETTI apud
BERNARDINI, 2013, p.33-35)
É claramente a antítese da glorificação romântica da natureza, do rural, o pastoral clássico ou
passado imaculado. Artistas futuristas em diversas disciplinas (poesia, música, escultura,
pintura, gráficos, tipografia, arquitetura, fotografia, gastronomia ...), vão partilhar a sua visão
não apenas através de suas criações artísticas, mas também através de manifestos, uma
forma de comunicação que sintetiza os pontos de vista de um grupo de pessoas.
Em geral, os futuristas focavam na discrepância entre a forma e conteúdo das artes, na
realidade cotidiana e na visão do mundo no início do século XX. A vida agrária idealizada pelas
emoções românticas não era mais compatível com a realidade social, onde a indústria urbana
consolidava um papel vital na evolução da sociedade.
Em relação à sintaxe da linguagem visual nas artes plásticas, a forma estava ultrapassada,
morta. Os futuristas haviam concluído que a arte havia perdido sua ligação com o mundo.
No que diz respeito à forma, a percepção do mundo assim como as dimensões de tempo e
espaço passavam pela mais radical mudança de todos os tempos.
Todas as engrenagens, motores e eletricidade causaram um gigantesco estímulo para os
sentidos e tiveram um impacto muito particular sobre o indivíduo urbano do mundo préindustrial.
151
A percepção do tempo, do movimento, dos sons que se formavam nesse novo mundo foram
os desafios que os futuristas encontraram no desenvolvimento de multiplas linguagens de
expressão. A relação temática em que os futuristas trataram o mundo industrializado é
facilmente perceptível em sua própria materialidade. Em suas pinturas não são encontradas
paisagens ou naturezas mortas, e sim o vapor dos trens, fábricas e carros.
Nas artes plásticas procuram objetivar a criação de obras com o mesmo ritmo e espírito da
sociedade industrial. Para expresser a velocidade na pintura, os artistas recorrem à repetição
dos traços das figuras. Quando desejam retratar vários acontecimentos ao mesmo tempo
adaptam técnicas próximas do cubismo para um novo conceito de simultaneidade.
Na escultura, os futuristas fazem trabalhos experimentais utilizando a combinação de novos
materiais como elemento compositivo, como o vidro e o papel. A interdisciplinaridade inata do
movimento leva os artistas a se preocuparem com interação entre as artes, alguns pintores e
escultores se aproximam da música e do teatro. No teatro a proposta futurista introduz a
tecnologia nos espetáculos e cria um novo modelo de interação com o público.
Na música a proposta vai além da pesquisa das estruturas harmônicas, o som do novo mundo
é mais dinâmico, estridente e ruidoso, abrindo a possibilidade de uma nova maneira de
compreender a música, sua materialidade, seus objetivos, e até mesmo sua linguagem.
A nova sociedade industrial e tecnocrata impulsiona as pesquisas e o desenvolvimento de uma
nova sonoridade, capaz de ultrapassar os limites da formação da orquestra e dos instrumentos
clássicos. Novas maneiras de se utilizar os instrumentos clássicos eram propostas, bem como a
urgência de se pensar em novos instrumentos musicais.
Imagem 16: F.T.Marinetti, Antonio Russolo e Luigi
Russolo
com
os
intonarumores
Fonte: Biblioteca do Conservatório Santa Cecília di Roma
A nova vida exigia da música novos instrumentos, sons mecânicos, que reproduzissem uma
sociedade muito mais dinâmica e barulhenta. Exigia da arte não somente a expressão do
movimento e da força, mas novas propostas de se fruir, produzir e apreciar a arte.
O anatomia formal da arte futurista e de suas novas tecnologias, da estética da velocidade, do
dinamismo e da variedade de estímulos, gera um complexo fluxo criativo e interdisciplinar.
152
O apego ao novo propicia diversas experimentações em diversas matrizes de linguagens,
principalmente quando ocorre o cruzamento de uma ou mais linguagens, gerando uma nova
possibilidade artística.
O futurismo é o resultado de inúmeras experimentações da relação espaco-tempo, da
limitação bidimensional, da pesquisa em se expressar o movimento real, a velocidade, o
movimento no espaço.
O artista futurista não quer o simples registro de um objeto, situação ou fenômeno, ele busca
captar a forma plástica do movimento, do som, dos espaços urbanos que emolduram o novo
ritmo e espírito de uma sociedade tecnológica e industrial.
O texto em forma de manifesto se trata de um escrito comum às vanguardas artísticas do
século XX, uma espécie de declaração pública de princípios, e neste manifesto Russolo discute
precisamente sobre a necessidade de questionar o papel que os instrumentos
desempenhavam na música da época.
As capas dos manifestos, as poesias que exigem uma sinestesia que transcende o conteúdo
político e ou ideológico, refletem a necessidade de não apenas uma ruptura com a arte
vigente, mas uma nova maneira de se fazer e perceber a arte.
As colagens recebem uma importância notória, pois incorpora e resignifica fragmentos do
referente, cabendo ao receptor ou apreciador da arte levar em consideração o intercâmbio de
signos entre a mensagem, a materialidade da obra pré-existente e a nova composição
originada pela colagem.
A visualidade das poesias que não eram “nem completamente ‘verso’ nem ‘prosa’, um texto
cuja unidade não é nem o parágrafo nem a estrofe, mas a própria página impressa” (PERLOFF,
1993, p.21)
Assim como na produção pictórica da vanguarda, a sonoridade futurista deveria estar ciente
das mudanças que ocorreram na sociedade pós-revolução industrial, com o advento da
máquina e da eletricidade, e clama em seu escrito para que a música não se mantenha alheia
desta nova realidade, propondo assim, uma espécie de “morte do ontem” (RUSSOLO, 1916,
p.3), ou morte do passado na arte.
Traçando um paralelo entre a produção pictórica e musical do futurismo, podemos notar uma
comum vontade dos artistas de transpor essa nova realidade para dentro das obras. As
utilizações corriqueiras de onomatopéias nas poesias futuristas mostram uma clara
necessidade de aliar o som com a imagem, de trazer para dentro da imagem a mecanicidade, a
velocidade, o movimento. A composição gráfica do poema sonoro de Marinetti “Zang Tumb
Tuuum”, de 1912, demonstra a intenção de criar dinamismo na poesia, que busca imitar o
prolongamento do som através de palavras alongadas, distorcidas e assimétricas.
153
Imagem
17:
Capa
do
Fonte: Treccani, 2014, online.
poema
Zang
Tumb
Tuuum,
de
1912.
Esse mesmo dinamismo é encontrado na obra de Luigi Russolo, que em sua icônica pintura
“Dinamismo de um automóvel”, de 1912, investiga a entrada do movimento na produção
visual. Segundo Marinetti, em 1909, “O esplendor do mundo foi enriquecido por uma nova
forma de beleza, a beleza da velocidade”. (MARINETTI apud FABRIS, 1987, p.62).
Imagem
18:
Dinamismo
Fonte: Treccani, 2014, online.
de
um
Automóvel,
Luigi
Russolo.
Um movimento artístico interdisciplinar em sua gênese, que conseguiu atrair artistas de
diversas áreas como poesia, pintura, arquitetura, escultura, gastronomia, moda, teatro, música
e principalmente o cinema, que para os futuristas reunia todas as formas de arte e sintetizava
a proposta futurista.
154
O cinema era visto pelos futuristas como uma forma de expressão artística que atenderia às
necessidades da expressividade múltipla e pluralista do movimento, conforme o manifesto
Cinema Futurista de 1916: “Pintura + escultura + dinamismo plástico + palavras em liberdade +
intonarumori + arquitetura + teatro sintético = cinematografia futurista.”
Neste manifesto, a proposta de criação de um novo tipo de filme, diferente do cinema que
conta uma estória, o cinema futurista deveria cumprir a síntese interdisciplinar que
posteriormente seria fragmentada em diversas vanguardas artísticas ao longo do século XX. O
Manifesto da Cinematografia Futurista diz:
O cinema futurista que preparamos, alegre deformação do universo, síntese
alógica e fugaz da vida mundial torná-se-á a melhor escolar para os jovens:
escolar de alegria, de velocidade, de força, de temeridade e de heroismo. O
cinema futurista tornará mais aguda a sensibilidade, imprimirá velocidade à
imaginação criadora, dará à inteligência um prodigioso sentido de
simultaneidade e de onipresença. (MARINETTI et al apud BERNARDINI, 2013,
p.219)
Este primeiro manifesto futurista era uma ode às máquinas modernistas, de que o cinema foi
um excelente exemplo e influência direta para novas linguagens audiovisuais onde ecoam
nomes como Lev Kuleshov, Sergey Eisenstein e DzigaVertov, que por meio da decomposição
temporal e especial, mas principalmente pela proposta de liberdade criativa, abriu as portas
para as vanguardas européias de cinema como o Experimentalismo Soviético, o
Expressionismo Alemão, o Impressionismo e Surrealismo Francês.
É preciso libertar o cinema como meio de expressão para fazer dele o
instrumento ideal de uma nova arte muito mais vasta e mais ágil que todas
aquelas existentes. Estamos convencidos de que só por meio disto é que
poderá se alcançar aquela poliexpressividade para a qual tendem todas as
mais modernas pesquisas artísticas. (IBIDEM, p.220).
O Futurismo rejeitava o moralismo e o passado, e suas obras se baseavam na velocidade e nos
desenvolvimentos tecnológicos. Sua estética se articulava como uma visão de mundo
audiovisual.
A utilização da interdisciplinaridade de linguagens como metodologia artística se torna a
coluna central que irá sustentar não somente os artistas do futurismo italiano, mas
principalmente as vanguardas modernistas que preservarão esta herança para os artistas
contemporâneos.
Luigi Russolo
A carreira artística de Luigi Russolo demonstra os múltiplos interesses e linguagens de uma
arte expressiva e interdisciplinar, mas é o caminho percorrido pelo artista que reforça a
convicção de uma vida de pesquisas, a busca da universalidade da arte.
Da música à pintura, retornando à música, e da música à filosofia e esoterismo, passando pela
poesia e finalmente voltando à pintura. Foi este o percurso artístico que Russolo trilhou,
caminhando entre as diversas linguagens do futurismo sinestesicamente. Um artista que
demonstra um forte entendimento da importância da inovação e das possibilidades
155
expressivas da linguagem futurista. Uma arte capaz de abrigar todas as artes e produzir novos
signos que transitam entre todas essas linguagens artísticas.
Russolo redigiu seu próprio manifesto em 1913, ano que marcaria uma forte mudança em sua
vida artística. Neste ano apresenta sua grande invenção: Intonararumores, espécie de
máquinas de ruídos.
Uma família de instrumentos sonoros que permitem controlar a dinâmica, o volume e o
comprimento de ondas de diferentes tipos de som. Junto com o seu assistente técnico, o
também pintor Ugo Piati, construiu um verdadeiro e arsenal de ruídos que futuramente iriam
revolucionar os hábitos musicais para sempre.
[...] o barulho não é sempre
desagradável e chato como você pensa e
diz, e de fato para aqueles que sabem
compreendê-los, o ruído é uma fonte
inesgotável de deliciosas sensações de
tempos em tempos e profundo,
grandioso e excitante. (Tradução NossaRUSSOLO, 1916, p.3)
Imagem 20: Luigi Russolo com seus Intonarumores
Fonte: Biblioteca do Conservatório Santa Cecília di Roma
Entre 1913 e 1914, Russolo realiza concertos em Modena, Milão, Genova e Londres, mas
previsivelmente no momento em que as máquinas de ruídos intrigava a classe intelectual
européia, a imprensa tecia fortes ataques äs propostas do artista.
As apresentações eram cercadas de controversas, provocações e inúmeras brigas. O músico foi
vaiado em sua primeira audição, quando recebeu uma chuva de tomates e outros vegetais que
foram atirados no palco entre outras manifestações violentas.
Russolo não se deixou intimidar e continuou suas perfomaces em mais doze apresentações
pela Europa, incluindo uma no Coliseu de Londres, ocasião em que conheceu o compositor
russo Igor Stravinski.
Em 21 de abril de 1914, durante uma noite futurista, no Teatro Dal Verme, em Milão foram
realizados três peças: Despertar de uma cidade, Temos almoço no terraço do Congresso
Kursaal e Encontros de carros e aviões.
Em 1916 Russolo publica pela Editora Futurista de Poesia; com sede em Milão e pertencente a
F.T. Marinetti; o livro La arte dei rumori, uma versão mais completa e com novas abordagens
156
teóricas, principalmente com a aperfeiçoamento de novos instrumentos, como o
Rumorarmonio, por exemplo.
Na "Artedos Ruídos" (L'arte dei Rumori), Luigi Russolo apresentou não somente um manifesto
sobre a música futurista, mas definiu como seria a música do século XX.
Defendeu os princípios futuristas do manifesto inaugural de 1909, e após minusciosas
experimentações entre visualidade e sonoridade, sinestesia de um modo geral, como podemos
observar em seu quadro “Perfumo” (1910). E o resultado inevitável era fazer música nova e
com novos materiais, novos instrumentos e um novo elemento sígnico: o ruído.
Para essa nova concepção, ele descreveu a evolução ao longo da história do silêncio ao som,
do som ao ruído, do ruído à música.
O som musical é muito limitado na variedade qualitativa dos timbres. As
orquestras mais complexas se resumem a quatro ou cinco tipos de
instrumentos diferentes em timbre: instrumentos de cordas sem arco, vento
(metal e madeira), percussão. Assim que a música moderna é discutida
neste pequeno círculo, lutando em vão para criar novas variedades de anéis.
Temos de quebrar este círculo restrito de sons puros e conquistar a infinita
variedade de ruído-sons ... (RUSSOLO, 1916, p.6)
Ele propôs, portanto, uma nova maneira de compreender a música, seus materiais, seus
objetivos, e até mesmo seu idioma.
A arte musical procurou e conseguiu primeiro a pureza, a limpeza e a doçura
do som para depois unir sons diversos, preocupada, porém, em acariciar o
ouvido com suaves harmonias. Hoje, a arte musical tornando-se cada vez
mais complexa, pesquisa as combinações de sons mais dissonantes, mais
estranhas e mais ásperas ao ouvido. Aproximamo-nos assim cada vez mais
do som-ruído. Essa evolução da música é paralela à multiplicação das
máquinas, que colaboram por toda parte com o homem. Não somente na
atmosfera estrondosa das grandes cidades, mas também no campo, que até
ontem era normalmente silencioso; as máquinas hoje criaram tanta
variedade e concorrência de ruídos, que o som puro, na sua exiguidade e
monotonia, não suscita mais emoção.
Para excitar e exaltar nossa sensibilidade, a música se desenvolveu rumo à
mais complexa polifonia e rumo à maior variedade de timbres ou coloridos
instrumentais, pesquisando a mais intricada sucessão de acordes
dissonantes e preparando paulatinamente a criação do “ruído musical”. Essa
evolução rumo ao “som ruído” não era possível até então. O ouvido de um
homem do século XVIII não conseguiria suportar a intensidade desarmônica
de certos acordes produzidos por nossas orquestras (triplicadas no número
de executantes em relação àquelas de então). Nosso ouvido, no entanto, se
compraz, porque já foi educado pela vida moderna tão pródiga dos mais
variados ruídos. O nosso ouvido, porém, não se contenta e exige sempre
emoções acústicas mais amplas. (RUSSOLO, 1916, p.8)
O Intonarumori, assim como toda a família de instrumentos musicais inventados e
desenvolvidos a partir de 1913 por Russolo, eram produtores ou geradores de ruído, que são
no início puramente mecânicos, e mais tarde, por impulsos elétricos, permitem o controle
dinâmico e alturas sobre diferentes tipos de ruídos gerados.
157
Imagem
35:
Fonte: Biblioteca do Conservatório Santa Cecília di Roma
Intonarumore
Nenhum dos dispositivos originais sobreviveram, mas temos algumas fotos importantes
daquela época, mas recentemente foram reconstruídos alguns que são usados em
apresentações e expostos em museus.
Do ponto de vista musical, embora os instrumentos e obras de Russolo pareçam bastante
arcaico e rudimentar, sua teoria musical, suas tentativas de traçar um novo sistema, o projeto
de renovação "do zero", e "o início do caminho para um novo som "através da criação e
concepção de novos instrumentos de ruídos, de acordo com seus objetivos, eles acabaram
sendo uma semente de infinitas ramificações, da música concreta, eletrônica, performances
improvisadas com percussão exótica, ou mesmo a plena introdução de percussão no mundo
do clássico, e que quase imediatamente pode estar ligada aos avanços tecnológicos, mas
principalmente à inclusão do ruído como um importante elemento de linguagem, que por
meio da interdisciplinaridade futurista, vai permear as principais produções artísticas do século
XX.
Nan June Paik
Nan June Paik foi um grande artista contemporâneo e a figura mais importante da vídeo arte.
Desde suas performances com o grupo Fluxos, suas esculturas de vídeos com televisores
alterados, suas instalações aos seus vídeos inovadores e instalações multidisciplinares, Paik fez
uma enorme contribuição para a história e para o desenvolvimento do vídeo como uma forma
de arte que traduzisse sua época.
Na década de sessenta, participou da formação inicial do grupo de artistas conhecido como
“Fluxos”, Paik foi um dos primeiros artistas a ser convidado por Geoges Maciunas para incluir
suas obras no projeto do periódico fluxos, um editorial de Maciunas lançado em Nova Iorque.
Devido a formação musical de inúmeros participantes do grupo fluxos, suas pesquisas
possuíam um caráter interdisciplinar, propondo um intercâmbio sígnico entre as diversas
matrizes artísticas visuais e sonoras , como por exemplo suas músicas de ação, denominado
por eles como a nova música, que seria o audível e o visível se entrelaçando. (STILES, 2003, p.
71). A partir desses experimentos realiza diversos trabalhos de vanguarda como Exposição de
música/televisão eletrônica” de 1963, que apresenta doze monitores de tv modificados de
158
maneira inusitada, Paik utiliza distorções diferentes de uma mesma programação, através de
imãs que seriam sua grande ferramenta para utilização do ruído como linguagem.
Ao trabalhar com os televisores Paik se utiliza da tecnologia como uma conexão com a música
de maneira que no domínio das imagens eletrônicas a obra de Paik não será diferente de sua
experiência como compositor de música eletrônica. Em entrevista a Jean Yves Bosseur, Paik
cita esse intercâmbio sígnico no processo de criação de suas obras:
Eu comecei como compositor de música eletrônica. Eu dispunha então de
todos os sons, toda gama acima de dez mil kilociclos. Então, eu
simplesmente estendi esses dez mil kilociclos a quatro megaciclos no
domínio visual, em todo caso, trata-se ainda de números. Enquanto
músicos, nós temos o hábito de trabalhar com números, quer se trate das
regras do contraponto ou das relações harmônicas. (BOSSEUR,1992, p. 135136).
Junto com a violoncelista Charlotte Moorman realizou uma série de trabalhos performáticos
que se tornaram referência na arte contemporânea, entre eles se destacam Ópera Sextronic,
de 1967, obra em que Charlotte Moorman foi presa por praticar topless durante a
performance, e TV Cello de 1971, obra que combina vídeo, música e performance.
Em Tv Cello, Paik e Moorman empilham televisores um sobre o outro de maneira a criar o
formato de um violoncelo, quando Moorman passa o seu arco sobre as cordas do violoncelo as
imagens dela e de outros violoncelistas aparecem nas telas.
Na década de 70 Paik se torna uma referência que ultrapassa a vídeo arte quando utilizando
além de suas esculturas de aparelhos de tv, metais e componentes eletrônicos introduz
imagens em uma tv de circuito fechado, como no caso de Tv Buda de 1974. Arte como auto
referência. O Buda metálico é a arte enquanto escultura e arte enquanto imagem neste
circuito fechado de TV, que em última instância é a vídeo arte.
Imagem
49:
Fonte: Paikstudios, online, 2015
159
TV
Cello ,1971.
Imagem 50: TV Buda, 1974
Paikstudios, online, 2015.
Fonte:
A partir da década de 90 Paik sofre alguns problemas de saúde e o colocam em uma cadeira de
rodas mas sua perspicácia, inteligência e criatividade o colocam como o grande artista e
pensador de um novo milênio que ele já havia previsto décadas antes dele começar. Um
artista experimental, criativo e provocador cujas ideias tiveram profundo efeito sobre a arte
produzida no final do século XX. Nan June Paik morreu em 29 de janeiro de 2006 em Miame
Beach, Flórida EUA.
Sonic Youth
Sonic Youth é uma banda que se destacou no cenário do rock alternativo por utilizar o ruído
como uma forte característica em suas composições. Por meio de microfonias, afinações não
convencionais e guitarras distorcidas através de uma combinação de pedais analógicos que
interferem diretamente na harmonia, timbre e modulação das linhas de guitarras.
O grupo teve seu início em 1981 na cidade de Nova Iorque, em pleno auge do movimento
new age. No mesmo ano o guitarrista Thurston Moore organiza um festival de música e arte
chamado “Noisa Fest Festival” com duração de dez dias realizado na galeria White Columns,
onde o Sonic Youth realiza o seu primeiro show. Na década de 90 o grupo assina contrato com
uma grande gravadora, a Geffen Records, e finalmente resolve os problemas de distribuição e
direitos autorias que incomodavam o grupo há anos. Goo é considerado o primeiro álbum com
total liberdade artística lançado no mainstream e distribuído em escala internacional. Com um
contrato praticamente vitalício e controle artístico total de seus álbuns o Sonic Youth começa a
desenvolver o conceito artístico da banda em seus videoclipes, que serão exibidos
massivamente na MTV. Em 1992 lança Dirty, com Spike Jonze dirigindo o clipe inaugural 100%.
Em 1994 o grupo grava seu álbum mais experimental até o momento, desenvolvendo
minuciosas pesquisas sonoras com pedais que distorcem analogicamente os sons das
guitarras, produzindo ruídos até então desconhecidos no cenário musical.
Mesmo gozando de absoluta liberdade artística na Geffen, no final da década de 90 o grupo
cria sua própria gravadora , a SYR, e aposta em projetos cada vez mais experimentais, sem
letras e com melodias não harmônicas recheadas de diversos ruídos; como a série “Perspectiva
Musicais” , que reúne artistas convidados para cada volume, que tem o nome das músicas,
créditos e notas de produção em línguas diferentes, como francês, holandês, lituano, japonês e
até em esperanto.
160
O álbum SYR 3, em Esperanto, tem a participação do guiitarrista Jim O’Rourke, que se torna
membro definitivo da banda, compondo ora linhas de guitarras, ora linhas de contra baixo,
sempre com camadas de ruídos intercaladas com melodias tonais e atonais.
Imagem
65:
Guitarra
com
Fonte: SonicYouth, 2015, online
18
cordas
desenvolvida
por
Lee
Ranaldo
Com o desenvolvimento cada vez mais artístico e interdisciplinar dos projetos da SYR, a banda
grava em 1999 o quarto projeto da série “Perspectiva Musicais”, em inglês, emblematicamente
chamado “Goodbye 20th Century”.
Imagem
66:
SYR
Fonte: Sonic Youth, 2015, online
4:
Goodbye
20th
Century
Esse álbum duplo é uma homenagem aos grandes artistas avant-garde que desenvolviam a
arte em toda sua sinestesia e interdisciplinaridade. O álbum contem composições de John
Cage, George Maciunas, Pauline Oliveros, Christian Wolff, Takehisa Kosugi, Yoko Ono, Steve
Rich, entre outros; e conta também com uma performance gravada em vídeo homenageando
Nan June Paik, em que eles pregam as teclas de um piano aleatoriamente, produzindo não
somente um som não convencional como também uma visualidade extremamente ruidosa
referente às teclas com os pregos e ao gesto da performance, que é na verdade uma releitua
de uma composição de 1962 do mentor do grupo Fluxus, George Maciunas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
161
A música é uma linguagem em que seus elementos circulam livremente pelos fenômenos
semióticos e estéticos. Também na linguagem visual, o poder de comunicação se faz presente
passando por uma rede de interpretações subjetivas.
O som, a forma, a cor são elementos que, combinados com a paixão inerente dos artistas,
produzem as mais diversas e sublimes sensações.
O caráter estético dessas linguagens acompanha o ser humano desde os primórdios, e nos dias
de hoje o estudo da semiótica se faz vital nas relações significativas dos sentidos.
Toda relação estética se produz de fora para dentro, na relação semiótica, dá-se o oposto, de
dentro para fora. Esse fluxo contínuo de sensações, significações e interpretações, criam um
universo de transposições de linguagens.
O futurismo italiano foi um movimento que conseguiu atrair artistas de diversas áreas como
poesia, pintura, arquitetura, escultura, gastronomia, moda, teatro, música e principalmente o
cinema, que para os futuristas reunia todas as formas de arte e sintetizava a proposta
interdisciplinar futurista.
O cinema como proposta de uma nova linguagem híbrida criou grande fascínio nos futuristas,
que por meio dessa nova estética buscavam uma visão de mundo audiovisual, onde rejetavase o moralismo do passado e criava-se uma nova percepção, dinâmica e atemporal.
Como já foi dito acima, O Futurismo trazia a utilização da interdisciplinaridade de linguagens
como metodologia artística, tonando-a estrutura central que irá sustentar não somente os
artistas do futurismo italiano, mas principalmente as vanguardas modernistas que preservarão
esta herança para os artistas contemporâneos.
Luigi Russolo destacou a mudança de paradigma das artes no século XX em "Arte dos Ruídos",
apresentando um novo olhar para desenvolvimento da humanidade, uma percepção do
cotidiano moderno com seus novos adventos.
Por isso em seu manifesto afirma que o ruído não somente se faz presente na vida, como
também traduz uma estética, uma poética e também uma semiótica bem pertinente ao século
XX (RUSSOLO,1916). A vida de então já não era a mesma, e a arte, portanto, não poderia
estagnar.
Por meio do ruído, que agora fazia parte da vida na grande cidade, Russolo desenvolveu o
trânsito sígnico entre as várias linguagens artísticas, colocando a interdisciplinaridade artística
como marca fundamental não somente do futurismo, como também das vanguardas que
surgiriam a partir dessa conversa entre várias linguagens artísticas.
De acordo com a Teoria da Informação o ruído pode desempenhar a função da própria
informação, assim, o novo, o original, ou o próprio ruído, gera quebra de estruturas,
propiciando mais valor de informação, como já comentado.
Quanto mais originalidade, menos previsibilidade, consequentemente mais informação, assim
a mudança no comportamento do receptor de uma mensagem depende do caráter de novo
162
desta mesma mensagem. Quanto maior a taxa de novidade de uma mensagem maior o seu
valor informativo, sendo maior a mudança de comportamento provocada.
Lucia Santaella (2004, p.8) define comunicação como sendo o “processo através do qual um
indivíduo suscita uma resposta num outro indivíduo”, ou seja, dirige um estímulo que visa
favorecer uma alteração no receptor por forma a suscitar um resposta. Podemos entender
dessa maneira o ruído sendo o meio primordial para a práxis artística do século XX. A partir
desse conceito, Marshall Mcluhan (1964) entende que as relações sinestésicas entre o meio e
o sentido explorado pela extensão transformam esse meio em um conjunto de expressões
onde uma linguagem midiática pode decodificar ao ser apropriada por outro usuário. O meio
afeta a sociedade assumindo um papel de não ser apenas transmissor da mensagem, mas a
própria a mensagem.
Sendo assim, o ruído se torna práxis fundamental nas vanguardas artísticas do século XX,
desde as colagens cubistas, passando pelos ready-mades de Marcel Duchamp, se
desenvolvendo como linguagem nos filmes de Dziga Vertov e se consolidando como práxis
vital nas obras performáticas do grupo Fluxos, principalmente nas obras de Nam June Paik,
onde o desenvolvimentoda utilização do ruído segundo as lições de Duchamp tem sua clara
continuidade, abusando da possibilidade da múltiplas relações que a portabilidade do
audiovisual irá propiciar na produção, fruição e percepção da arte.
Sua síntese pode ser percebida no tributo em que o Sonic Youth lança no final do século XX,
chamado “Goodbye 20th Century”, do qual participam diversos artistas ligados ao grupo
fluxus, entre eles Yoko Ono e Steve Reich, realizando releituras de obras de renomados artistas
como George Maciunas, John Cage, Christian Wolff entre outros.
Nestas composições o ruído se apresenta como uma entidade de linguagem própria do século
XX, tendo como grande expoente uma releitura audiovisual de uma obra composta em 1962
por George Maciunas dedicada ao artista Nam June Paik, onde literalmente todas as teclas do
piano são pregadas uma a uma, em uma performance audiovisual que ilustra claramente a
presença do ruído como uma entidade de linguagem, presente não somente nas diversas
mímesis e práxis artísticas do século XX, mas principalmente na vida como sentido próprio de
existência.
“Todas as manifestações de nossa vida vem acompanhadas pelo ruído. O ruído é, portanto,
familiar ao nosso ouvido, e tem o poder de remeter a própria vida.” (RUSSOLO, 1916, p.11).
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Escrever o som: o espaço do sonoro nos manuais de roteiros audiovisuais
Iana Cossoy Paro, mestranda USP27, [email protected]; [email protected] , Eduardo Simões
Santos Mendes, doutor, USP
Resumo
Este artigo é um primeiro passo para responder à pergunta: como se escreve o som?. Trata-se
de uma análise de técnicas de escrita audiovisual, sistematizadas em 14 manuais de roteiro, e
suas consequências para a escrita do som. Até que ponto, nos manuais e guias para a
elaboração de roteiros, o som é previsto como elemento narrativo interdependente da
imagem? Começaremos estabelecendo como os manuais têm a imagem como ponto de
partida e como isso contribui para que os aspectos sonoros da narrativa fiquem em segundo
plano. Em seguida, daremos atenção a elementos específicos relacionados ao som
identificados nos manuais: o som como elemento formal do modelo de escrita de roteiros
audiovisuais e a ideia de som como fator técnico; o som e a música como metáforas para
descrever a estrutura e o ritmo do relato; o diálogo como "par" complementar da imagem; o
som fora de campo ou em off. Finalmente, avaliaremos como o conceito de trilha sonora é
abordado nesses manuais.
Palavras-chave: roteiro, som, manuais de roteiro
Abstract
This paper is a first step in answering the question: how can we write the sound?. It is an
analysis of audiovisual writing techniques, systematized in 14 script manuals, and its
consequences for the writing of the sound. To what extent, in manuals and guides for the
development of scripts, sound is considered as an interdependent narrative element of the
image? We begin by setting how manuals have the image as a starting point and how it
contributes to make the sound aspects of the narrative become just a background. Then we
will give attention to specific elements related to the sound identified in the manuals: the
sound as a formal element of the writing model of audiovisual scripts and the idea that sound
is a technical factor; sound and music as a metaphor to describe the structure and rhythm of
the story; dialogue as the complementary "pair" to the image; the sound offscreen and the
voice over. Finally, we will evaluate how the concept of soundtrack is addressed in these
manuals.
Keywords: script, sound, script manuals
27
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais - ECA USP, Linha de Pesquisa Poéticas e Técnicas,
sob orientação do Prof. Dr. Eduardo Simões dos Santos Mendes
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Como é possível escrever uma trilha sonora narrativa e dramaticamente significativa a partir
do desenvolvimento do roteiro audiovisual? Até que ponto a criação de uma trilha sonora
expressiva passa por técnicas e recursos de escrita do roteiro? O esforço para "pensar em
como soa a nossa história, no que escutam os personagens e em como o som influi em suas
ações e emoções, como na vida” (LABRADA, 2009; p.52)28 tem início necessariamente no
roteiro? Como o som pode ser um agente tão importante quanto a imagem, atuando junto a
ela, chegando à "dicotomia que não reside na oposição, mas na identidade som-imagem"
(BURCH, 1992; p.117 ). A intenção deste artigo é começar a investigar como é possível escrever
roteiros em que o som é um elemento narrativo e dramático, e não apenas um complemento
ou agente corroborador ou homogeneizador da imagem que ajuda a "estabelecer a 'relação
intersubjetiva' entre o filme e o espectador” (DOANE, 1991;p.467).
O primeiro passo para responder à pergunta “como se escreve o som?” é uma análise das
técnicas de escrita audiovisual, sistematizadas em manuais de roteiro (aqui entendidos como
os manuais em si, ou seja, os que se intitulam assim, e outros livros que se propõem a
estabelecer regras, conselhos e diretrizes para a escritura de obra audiovisual).
Os manuais e livros de roteiro não são a única fonte à qual os roteiristas recorrem para
escrever, mas de certa forma, ainda que generalizada, tais publicações sistematizam as
práticas de escrita audiovisual. Os manuais norte-americanos, principalmente os de Robert
McKee e Syd Field, têm bastante influência no Brasil: o Manual do Roteiro, de Syd Field, por
exemplo, teve 14 edições no país. Ambos autores ministraram palestras no país ao longo dos
anos 1990 e 2000 (McKee veio em 2010 e em 2014). Mais recentemente, o franco-argentino
Miguel Machalski tem participado de palestras e laboratórios de roteiro no Brasil, onde
também atua como consultor de roteiros. As obras escolhidas como material de estudo são
manuais de roteiro que tiveram ou ainda têm grande circulação:
Manual do Roteiro (1979), de Syd Field; Story (1986), de Robert McKee; Como aprimorar um
bom roteiro (1987), de Linda Seger; Save the cat! The last book on screenwriting you’ll ever
need, de Blake Snider (2005); Script columns (1997), de Terry Rossio; La narración en el cine de
ficción (1985), de David Bordwell; Como se escribe un guión, de Michel Chion (1986), Técnicas
de guión para cine y televisión; de Eugene Vale (1982); Práctica del guión cinematográfico
(1991), de Pascal Bonitzer e Jean-Claude Carrière; Guiones modelo y modelos de guión (1991),
de Francis Vanoye e El guión cinematográfico: un viaje azaroso (2006), de Miguel Machalski.
Além dos manuais estrangeiros internacionalmente conhecidos, analisamos, neste capítulo,
três manuais brasileiros: Roteiro (1983), de Doc Comparato, Manual de Roteiro (2004), de
Nilton Cannito e Leandro Saraiva e Roteiro de Cinema e Televisão: A arte e a técnica de
imaginar, perceber e narrar uma estória (2007), de Flavio de Campos.
Os manuais de roteiro, de forma geral, dão pouco ou nenhum espaço ao som como elemento
integrante da narrativa do relato. Podemos afirmar que estabelecem uma ideia muito mais
visual do que auditiva da narrativa audiovisual. O espaço dedicado ao sonoro, nos manuais,
28 “pensar en cómo suena nuestra historia, en lo que escuchan los personajes y en cómo el sonido influye en su acción y en sus
emociones, como en la vida”
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restringe-se, basicamente, ao diálogo e à música. Ao longo deste artigo analisaremos manuais
com o objetivo de encontrar as ocasiões em que fazem referência, direta ou indireta, ao som.
A imagem como ponto de partida
Syd Field a rma repe das vezes que o roteiro “é uma história contada com imagens” (FIELD,
2001, p.31). Tal definição de roteiro é compartilhada, com algumas variações, por diversos
autores. A imagem é o ponto de partida e o ponto de chegada; a partir dela se definem e se
desenvolvem os demais elementos narrativos. Esta abordagem não é equivocada, pois grande
parte do trabalho do roteirista é realmente a de descrever imagens com palavras e os manuais
têm a função pedagógica de convidar os roteiristas a expressar-se por meio de imagens e não
apenas do diálogo (heranças do teatro e da televisão). Apenas gostaríamos de chamar a
atenção para o fato de que uma abordagem apenas imagética pode ser um tanto incompleta,
uma vez que o som também é um recurso narrativo em potencial.
A autora de manuais e consultora norte-americana Linda Seger, por exemplo, enfatiza a
importância do fator imagético desde a cena inicial do relato, afirmando que “na maioria dos
filmes bons, a abordagem começa com uma imagem. Vemos algo que nos proporciona uma
ideia adequada do lugar, ambiente ou época em que se desenvolve a historia, e em algumas
ocasiões até do tema”29. (SEGER,1991, p.33). Blake Snider, considerado um dos mais populares
mentores na área de roteiro audiovisual, coincide com Seiger ao tomar a imagem como ponto
de partida do roteiro. Segundo ele “a primeiríssima impressão do que um filme é - seu tom,
seu humor, o tipo e o escopo do filme - pode ser toda encontrada na imagem de abertura”30
(SNIDER, 2005, p.72).
O roteirista de Hollywood Terry Rossio, ao enumerar uma série de regras de escrita, resume a
ordem de importância de elementos na narrativa: “Visual, Auditivo, Verbal - nessa ordem. A
expressão de alguém que acaba de levar um tiro é melhor; o som da bala o atingindo é o
segundo melhor; a pessoa dizendo: 'Eu levei um tiro’ é apenas o terceiro melhor”.31 (ROSSIO,
1997, p.8). Os manuais variam no que diz respeito à ordem de auditivo e verbal -muitas vezes
ignorando a possibilidade do auditivo- mas a ideia de filmes feitos predominantemente para os
olhos perpassa, ainda que de forma sutil, todos os manuais de roteiro.
A ênfase à imagem pode, assim, ser atribuída ao caráter visual do relato cinematográfico, a
natureza do filme como imagem em movimento, que remonta às origens do cinema e a sua
fase silenciosa. O escritor e roteirista norte-americano Eugène Vale ajuda a entender essa
primazia do imagético sobre o sonoro ao explicar a relação entre obra audiovisual e
espectador. Segundo Vale, "deve-se compreender que o realismo fotográfico da câmera afeta
o relato e portanto a escolha de seus materiais. A lente deduz o reino da fantasia e da
imaginação do espectador de maneira considerável: a câmera visualiza os fatos por ele"32.
29 en la mayoría de las buenas películas, el planteamiento comienza con una imagen. Vemos algo que nos proporciona una idea
adecuada del lugar, ambiente o época en que se desarrolla la historia, y en ocasiones hasta del tema
30 the very first impression of what a movie is - its tone, its mood, the type and scope of the film - are all found in the opening
image
31 Visual, Aural, Verbal -- in that order. The expression of someone who has just been shot is best; the sound of the bullet
slamming into him is second best; the person saying, 'I've been shot' is only third best
32 se debe comprender que el realismo fotográfico de la cámara afecta al relato y por lo tanto a la elección de sus materiales. La
lente reduce el reino de la fantasía y la imaginación del espectador de manera considerable: la cámara visualiza los hechos por él
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(VALE, 1982, p. 8). Ou seja, a atenção do roteirista deve estar em mediar aquilo que o
espectador verá na obra audiovisual. O que o espectador ouvirá fica, via de regra, em segundo
plano.
O roteirista e dramaturgo brasileiro Doc Comparato jus ca por meio de uma comparação com
a poesia o caráter fotográ co do relato audiovisual. Comparato faz referência às considerações
do poeta Stephen Spender sobre as qualidades básicas na construção de um poema,
destacando o fato de que o pensar poé co se dá em imagens. (COMPARATO, 1983, p.20)
Ao substituir a noção de “ponto de vista” por “ponto de foco” em seu manual, o roteirista
brasileiro Flavio de Campos dá espaço a outros elementos além da imagem na construção do
relato audiovisual, entre eles o som (CAMPOS, 2007, p.33). Mesmo valendo-se de uma
metáfora visual, fotográfica (foco), Campos amplia as possibilidades do que pode ser visto,
sentido ou ouvido pelo narrador que conduz o relato. O autor, no entanto, limita-se a citar o
som como possibilidade narrativa, sem desenvolver neste momento como o sonoro pode
narrar ou ajudar a contar uma história ou expressar uma informação ou sensação audiovisual.
Os roteiristas Newton Cannito e Leandro Saraiva, ao sugerirem que se deixe “de lado a ideia de
que roteiro é basicamente diálogo”, reforçam a ideia do roteiro audiovisual como instrumento
em que se deve valorizar a imagem (CANNITO e SARAIVA, 2004, p.18). Ao definirem o roteiro
como instrumento de comunicação, os autores complementam que ele “deve ser escrito de
modo a facilitar ao seu leitor a vizualização da história”. (CANNITO e SARAIVA, 2004, p.18,
grifos meus). Os mesmos autores descrevem, em seu manual, a necessidade da existência, na
escrita de roteiros, de uma “dramaturgia plástica”, na qual se apresentam e desenvolvem os
elementos visuais da cena (CANNITO e SARAIVA, 2004, p. 204). Tal definição nos faz pensar se
não seria o caso de buscar também uma dramaturgia sonora, na qual estariam desenvolvidos
os elementos sonoros na cena.
Apesar de enfatizar a imagem, McKee dá um pouco mais de espaço ao som ao definir os
componentes da obra audiovisual, como quando, por exemplo, define a ideia de "sistema de
imagens". Segundo o autor, tal sistema
é uma estratégia de motivos ornamentais, uma categoria de imagem
embebida no filme que se repete, em imagem e som, do começo ao fim com
grande variação, mas com igual sutileza, como uma combinação subliminar
que aumenta a profundidade e a complexidade da emoção estética. (McKEE,
2002, p 374)
Jean-Claude Carrière e Pascal Bonitzer, por sua vez, afirmam que “é a imagem que conta a
história”33 (BONITZER e CARRIÈRE, 1991, p. 108). Os autores, no entanto, aconselham o
roteirista a
imaginar imagens compactas, belas e ricas, imagens emblemáticas, que cada
uma pareça conter o filme inteiro. Buscar para cada cena a imagem central e
construir a cena ao redor dela. Deixar o diálogo intervir apenas em segundo
33 la imagen es la que cuenta la historia
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lugar, ao menos que o centro da cena seja uma palavra ou um efeito
34
sonoro. (BONITZER e CARRIÈRE, 1991, pp.46/47)
Apesar de também terem a imagem como ponto de partida, tais autores são uma exceção nos
manuais de roteiro ao aconselhar “não esquecer nunca o som, não considerá-lo nunca como
acessório. Se constrói a trilha sonora de um filme desde o roteiro”. 35(BONITZER e CARRIÈRE,
1991, p108). Carrière e Bonitzer afirmam que é possivel -e necessário- construir e escrever a
narrativa audiovisual pensando conjuntamente no som e na imagem. E, diferente de outros
manuais, fazem referência não apenas à música e ao diálogo, mas à trilha sonora como um
todo, ou seja, recursos sonoros que incluem vozes, ruídos e músicas (diegéticos ou
extradiegéticos) que afetam, segundo Bordwell e Thompson (BELTON e WEIS, 1985; p. 181199), volume, passo, ritmo, tempo (de projeção e do relato) e espaço fílmicos.
Forma do roteiro e o som como efeito técnico
Há, nos manuais de roteiro, consenso com relação ao fato de que um roteiro não é uma obra
literária. Machalski afirma que é fundamental distinguir o roteirista do escritor de obras
literárias, pois “se narra com a caneta de forma muito diferente que com a câmera, e cai sobre
o roteirista a tarefa especializada de criar a ponte entre a caneta e a câmera, entre o papel e a
tela.”36 (MACHALSKI, 2006, p.19 ). Em sua definição do que é um roteiro, o teórico francês
Francis Vanoye também o situa entre a literatura e o cinema, relacionando o que é escrito no
roteiro às etapas posteriores de produção de um filme, inclusive a captação, edição e mixagem
de som. Para ele. “(...) o roteiro constitui um conjunto de propostas para a elaboração de um
relato cinematográfico, propostas que interagem com as operações de filmagem, montagem,
mixagem, etc.”37 (VANOYE, 1996, p. 20) Vanoye relaciona, ainda, a atual forma do roteiro
audiovisual à chegada do cinema sonoro, que “modifica a apresentação do script, no qual
temos que integrar os diálogos, a menção aos ruídos e à música. Fica então comum o script
cena a cena (e já não plano a plano)”38 (VANOYE, 1996, p. 16). Assim como Vanoye, Bordwell
chama a atenção para a técnica sonora como elemento que interferiu nos padrões atuais de
escrita do roteiro cinematográ co: “o som criou novas técnicas, mas estas eram u lizadas
principalmente de maneira que repe am ou ampliavam as qualidades básicas e
procedimientos da narra va clássica.”39 (BORDWELL, 1985, p.186).
Os autores de manuais enfatizam a necessidade de objetividade na forma do roteiro
audiovisual como um todo. Observa-se, no entanto, que também ao tratar da forma como um
roteiro deve ser escrito as descrições de imagens, ações, personagens e diálogos são o foco
dos conselhos e sugestões de como escrever.
34 imaginar imágenes compactas, hermosas y ricas, imágenes emblemáticas, que cada una parezca contener la película entera.
Buscar para cada escena la imagen central y construir la escena alrededor de ella. No hacer intervenir el diálogo sino en segundo
lugar, al menos que el centro mismo de la escena sea una palabra o un efecto sonoro.
35 no olvidar nunca el sonido, no considerarlo nunca como accesorio”. Se construye la banda sonora de una película desde el
guión.
36 se narra con la pluma de manera muy diferente que con la cámara, y recae sobre el guionista la tarea especializada de crear el
puente entre la pluma y la cámara, entre el papel y la pantalla
37 el guión constituye un conjunto de propuestas para la elaboración de un relato cinematográfico, propuestas que entran en
interacción con las operaciones de rodaje, montaje, mezcla, etc
38 modifica la presentación del script, en el que hay que integrar los diálogos, la mención de los ruidos y de la música. Se convierte
entonces en corriente el script escena a escena (y ya no plano a plano)
39 el sonido creó nuevas técnicas, pero éstas se u lizaban principalmente de manera que repe an o ampliaban las cualidades
básicas y procedimientos de la narra va clásica.
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Ao definir a unidade estrutural básica do relato audiovisual (a cena), Field ainda prescinde do
áudio em detrimento do visual, ao a rmar que "a cena é onde tudo acontece — onde você
conta sua história com imagens em movimento". (FIELD, 2001, p. 118). Em suas considerações
sobre a forma do roteiro acabado, Cannito e Saraiva ressaltam que “não há indicações sobre
‘clímax’, ‘respiração’ etc., nem indicações sobre as intenções de uma sequência. Tudo o que há
são diálogos e rubricas indicativas de ações”. (CANNITO e SARAIVA, 2004, p. 166).
O teórico e compositor francês Michel Chion leva em conta a informação sonora ao escrever
sobre como deve ser a forma de um roteiro literário para uma obra audiovisual. Chion
expressa a possibilidade de um roteiro ser escrito em duas colunas, uma dedicada às
informações visuais e outra às informações sonoras (CHION, 1986, p 182).
Apesar de afirmar que o roteirista pode prescindir do formato em duas colunas, ao considerar
a forma do roteiro como elemento que influencia na disposição das informações sonoras e
visuais no papel Chion possibilita que nos perguntemos se a forma interfere no conteúdo no
momento de descrever o sonoro no roteiro audiovisual.
Seguindo com as regras técnicas sobre a forma como se deve escrever um roteiro, Field
aconselha o roteirista a assinalar, com moderação, os pontos do relato em que pode haver
efeitos sonoros, usando por exemplo maiúsculas. (FIELD, 2001, p.161) Rossio segue a mesma
linha de Field ao sugerir que se destaquem efeitos sonoros ao longo das frases escritas no
roteiro: “Efeitos sonoros e efeitos especiais podem ser escritos em maiúsculas, que têm o
efeito adicional de fazer o roteiro parecer mais ativo (ROSSIO, 1997, p.70) Field afirma ainda
que “o cinema lida com dois sistemas — o filme, que nós vemos, e o som, que ouvimos. A
parte de lme é completada antes de ir para a nalização de som, e depois as duas partes são
colocadas juntas em sincronismo. É um processo longo e complicado.” (FIELD, 2001, p. 61)
Em seu manual, Comparato recomenda a indicação de marcações ou temas musicais no
roteiro, assim como a descrição de efeitos ou ruídos. Acrescenta, contudo, que “uma vez dada
a indicação o técnico de som saberá o que fazer” (COMPARATO, 1983, p.77 ). McKee também
sugere que as indicações a músicas e efeitos sejam limitados ao longo do texto escrito no
formato de roteiro. (McKEE, 2002, p. 36) .
Observa-se, assim, que o espaço concedido ao som no texto do roteiro literário, ou seja, sua
participação na forma como o roteiro é escrito, é levado em conta em alguns dos manuais
analisados. Em parte dos materiais, o som aparece como uma faceta técnica a ser tratada em
uma etapa posterior, na pós-produção, portanto não deve ser escrita e não tem nada a ver
com o trabalho do roteirista.
A música como metáfora
Alguns dos autores de manuais recorrem ao universo sonoro, mais especificamente o da
música, para estabelecer metáforas entre conceitos como composição, partitura, estrutura,
beat e elementos da escrita do roteiro. Tais comparações, apesar de não chegarem a abordar
o som como elemento narrativo em si, podem indicar que existe uma natureza para além da
visual na composição da estrutura e do conteúdo do roteiro cinematográfico, como
observaremos em seguida.
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Cannito e Saraiva afirmam que, na leitura do roteiro, “é preciso ‘ouvir’ o arranjo que vai
formando a escaleta, sentindo quando uma cena está ‘uma oitava’ acima, ou quando a
passagem de um tom a outro está abrupta demais.” (CANNITO e SARAIVA, 2004, p.126) .
Machalski, por sua vez, afirma que o roteiro é “un pouco como uma melodia à que temos que
acrescentar a harmonia, a instrumentação, o ritmo, a atmosfera (...) A fluidez de um roteiro se
determina também com base em algo como um ‘ouvido’ roteirístico: o roteiro pode estar bem
‘afinado’ ou ‘desafinado’.” 40 (MACHALSKI, 2006, p.24-25).
É McKee quem dedica mais páginas de seu manual na aproximação entre a escrita do roteiro e
a música, partindo do princípio de que se deixarmos de lado o conteúdo de filmes de grandes
roteiristas, e estudarmos apenas a padronização pura dos acontecimentos,
veremos que, como uma melodia sem a letra, ou uma silhueta sem a matriz,
seus formatos de estória são fortemente carregados de significado. A
seleção e arranjo do contador de estória para os acontecimentos é sua
metáfora mestra para a interconectividade de todos os elementos da
realidade. (McKEE, 2002, p. 22)
O conceito de conceber uma história, para McKee, é como o conceito da composição da
música (McKEE, 2002, p. 31). Assim sendo, tal qual o estudante de música, o roteirista precisa
passar por uma etapa anterior à escrita, na qual estuda as ferramentas das quais dispõe para
compor o relato (McKEE, 2002, p. 41). Após esta etapa, a escrita em si é considerada como
análoga à composição, que “significa ordenar e ligar as cenas. Como um compositor escolhe
notas e acordes, nós moldamos as progressões selecionando o que incluir, excluir e colocar
antes e depois do que.” (McKEE, 2002, p.275).
Apesar de priorizar ações e imagens (além do diálogo) ao estabelecer seu método para a
escrita de roteiros, McKee busca distanciar o relato audiovisual da mídia espacial (pintura,
escultura, arquitetura ou fotografia), e aproximá-lo das formas temporais (música, dança,
poesia e canção). Segue suas comparações afirmando que o conflito está para a história assim
como o som está para a música, uma vez que tem a função de manter a atenção do espectador
ao longo do que chama de arte temporal. O autor chega a explicar sua comparação
demonstrando como o som é importante para a expressão musical, mas não chega a transferir
a importância do som para o roteiro. A metáfora musical, portanto, funciona como um apoio
para explicar estruturalmente como funciona o roteiro, não para caracterizar o som como
elemento narrativo e expressivo do cinema. McKee se vale de outros conceitos estruturais da
música a sua terminologia para explicar os componentes do roteiro, como por exemplo a ideia
de beat (batida), segundo ele “o nível de atividade dentro de uma cena, através de diálogo,
ação ou uma combinação”. (McKEE, 2002, p. 279). Seger, por sua vez, considera o beat um
incidente ou acontecimento dramático, e também utiliza a metáfora da composição musical
para explicá-lo (SEGER, 1991, p.44).
Em seu manual, Vanoye, como outros autores, usa exemplos de filmes já prontos para definir
regras ou sugestões de escrita de roteiros. Em sua aproximação entre estrutura musical e
estrutura do relato audiovisual ele cita a experiência do cineasta francês Eric Rohmer:
40 un poco como una melodía a la que hay que añadirle la armonía, la instrumentación, el ritmo, la atmósfer a(...) La fluidez de un
libreto se determina también en base a algo aí como un ‘oído’ guionístico: el libreto puede estar bien ‘afinado’ o ‘desafinado’.
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“Concebi meus Contos Morais na forma de seis variações sinfônicas. Como ele (o músico),
vario o motivo inicial, o faço mais lento ou o acelero, o longo ou o diminuo, lhe dou corpo o o
depuro”41 (VANOYE, 1996, p.115)
O diálogo como som da imagem
Há uma recorrência significativa de oposição entre "cenas de imagem" e "cenas de diálogo"
nos manuais de roteiro. Assim, o par da imagem nos manuais, por vezes, não é o som, mas o
diálogo, e ambos formam os pilares fundamentais da construção de um roteiro:
Geralmente, há dois pos de cenas: um, em que algo acontece visualmente,
como uma cena de ação — a perseguição que abre Star Wars (Guerra nas
Estrelas), ou as cenas de luta em Rocky (Rocky, um Lutador). O outro é a
cena de diálogo entre uma (monólogo) ou mais pessoas. A maioria das cenas
combina os dois tipos. (FIELD, 2001, p. 118)
Vanoye refere-se ao que chama de “princípio da alternância” para caracterizar os tipos de
função de uma cena, e um dos pares alternos é justamente a dupla visual x dialogado
(VANOYE, 1996, p.118). Seger também trata o diálogo como oposto à imagem para explicar
que costuma ser mais fácil para o espectador começar a absorver as informações do filme a
partir dos olhos e não dos ouvidos. (SEGER, 1991, pp.33-34). A autora incentiva ainda a
expressão do conflito por meio de imagens e ação junto ao diálogo: “Como se expressa o
conflito? Utilizo as imagens e a ação, ao mesmo tempo em que o diálogo, para mostrá-lo?”42
(SEGER, 1991, p.198)
Saraiva e Cannito também trabalham com a ideia de que as cenas são compostas por imagens
e/ou diálogo, lembrando que “a capacidade do cinema de narrar por imagens, muitas vezes
supera a necessidade do diálogo - e isso deve ser indicado já no roteiro”. (CANNITO e
SARAIVA, 2004, p.64). Comparato tende ao mesmo tipo de hierarquização entre visual e
verbal, considerando também imagem e diálogo como a dupla principal da composição de um
roteiro para obra audiovisual (COMPARATO, 1983, p.96). O autor chama a atenção para o peso
da imagem e o peso da palavra no cinema, concluindo que “a palavra perde
consideravelmente sua importância, substituída pelo maior peso da imagem.” (COMPARATO,
1983, p.14)
Chion, por sua vez, observa que ainda em um tipo de cinema mais “visual” o diálogo costuma
ter uma função importante, e até mesmo antes do advento do lme sonoro o diálogo já
ocupava um papel de destaque na narra va, composta pela dupla imagem e diálogo. O autor
a rma que “estes diálogos não se ouviam, mas seu sen do nos era comunicado mediante a
mímica dos atores e ‘inter tulos’ (letreiros)” 43 (CHION, 1986, p. 73).
Assim, os manuais de roteiro apontam para a predominância da voz como elemento sonoro de
destaque na construção de obras audiovisuais. Bordwell chama a atenção para esse aspecto
41 He concebido mis Cuentos morales en la forma de seis variaciones sinfónicas. Como él (el músico), vario el motivo inicial, lo
hago más lento o lo acelero, lo alargo o lo acorto, le doy cuerpo o lo depuro
42 ¿Cómo está expresado el conflicto? ¿Utilizo las imágenes y la acción, a la vez que el diálogo, para mostrarlo ?
43 estos diálogos no se oían, pero su sen do nos era comunicado mediante la mímica de los actores e inter tulos (letreros).
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ao analisar o papel do diálogo nos filmes, afirmando que “na maioria dos filmes, a fala parece
ocupar o primeiro plano, e o ruído, o fundo.”44 (BORDWELL, 1985, p.119).
O som invisível/off
Outro dos aspectos do destaque da voz como elemento sonoro principal nos manuais é a
atenção dada à voz off ou over como principal elemento sonoro fora de plano. Vanoye destaca
a composição de imagens com vozes em off, mais uma vez considerando o diálogo como par
complementar da imagem:
Os roteiros com narrador (es) e voz em off desenvolveram um modelo
contrapontístico de narração especificamente cinematográfico, uma vez que
têm como base a utilização conjunta da imagem e do som, modelo rico em
implicações reflexivas (...), emocionais ou musicais (...), vozes em off
45
flutuantes e imateriais, por não estar ‘associadas aos corpos’ (...)
(VANOYE, 1996, p. 81)
McKee também recomenda o uso da voz off como complemento, afirmando que “se a
narração pode ser removida e a estória continua em pé, então você provavelmente usou a
narração para seu único bom propósito - como contraponto.” (McKEE, 2001, p. 323).
Machalski, por sua vez, vê no recurso da voz fora de campo uma forma de amenizar diálogos
explícitos ou informativos, tornando-os mais sutis. (MACHALSKI, 2006, p.36).
Bordwell amplia a atenção para outros sons além do diálogo provenientes de fora de campo,
diegéticos ou não diegéticos, ao tecer observações sobre o espaço em off da narração
(BORDWELL, 1985, p.120) . Comparato também leva em consideração o universo criado fora
de campo, e chama a voz do narrador em off de “presença sonora”, citando como exemplo os
filmes de Woody Allen ou os desenhos animados de Walt Disney (COMPARATO, 1983, p.66) . A
denominação utilizada pelo autor nos faz pensar que muitas vezes os manuais só consideram
“presença sonora” aquela que está fora de campo, em off, deixando um pouco de lado as
presenças sonoras dentro de campo, ou mesmo itinerantes.
Trilha sonora e som
Apesar de não serem o foco dos manuais de roteiro, o som e a trilha sonora para além do
diálogo e da voz recebem diferentes tipos de considerações ao longo dos guias analisados.
Campos é o autor que dedica mais espaço em seu manual para tratar do som, definido pelo
autor como “toda emissão sonora” (CAMPOS, 2007, p.147 ). Segundo Campos, os sons épicos
passam informações sobre os personagens e suas ações. Já os líricos são expressões de
sentimentos dos personagens, enquanto os dramáticos têm como objetivo motivar a ação de
outros personagens. Tais sons, segundo o autor, pertencem ao mundo do roteiro se cumprem
uma função no relato (CAMPOS, 2007, p.149). Em alguns casos, apenas a música (e não todos
os elementos sonoros como explicamos anteriormente) é considerada como trilha sonora.
Saraiva e Cannito falam da música como recurso de comentário planejado: “uma trilha sonora
pode servir para isso - como a trilha de antigas bandas de rock de um só sucesso, como em
44 en la mayoría de las películas, el habla parece ocupar el primer plano, y el ruido, el fondo.
45 Los guiones con narrador (es) y voz en off han desarrollado un modelo contrapuntístico de narración específicamente
cinematográfico, puesto que se basa en la utilización conjunta de la imagen y del sonido, modelo rico en implicaciones reflexivas
(...), emocionales o musicales (...), voces en off flotantes e inmateriales, por no estar ‘asociadas a los cuerpos’ (...)
174
Houve uma vez dois verões (...) (SARAIVA e CANNITO, p. 7.). Chion, por sua vez, cita um
exemplo do engenheiro de som Lewis Herman para falar sobre sons que “coroam” ou
enfatizam determinadas ações, como é o caso dos trovões em melodramas, por exemplo
(CHION, 1990, p.160). O som é um complemento que enfatiza ou potencializa o significado ou
a intenção de determinada imagem.
Qual o som dos manuais?
A análise dos manuais de roteiro nos permite afirmar que o som não é um elemento narrativo
muito explorado por aqueles que se dedicam a dar conselhos e sugestões sobre como escrever
um roteiro. Nossas observações sobre os diferentes aspectos do som como elemento narrativo
nos levam a perguntar até que ponto o som pode ou deve ser escrito.
Segundo Bordwell,
a maioria das teorias fílmicas recentes se baseiam em pressupostos sobre a
narração que apresentam deficiências cruciais: muitas teorias se baseiam
em débeis analogias com as representações pictóricas ou verbais, enfatizam
certas técnicas fílmicas, concentram ou isolam os mecanismos narrativos às
custas da totalidade do filme, e imputam uma passividade fundamental ao
46
espectador. (BORDWELL 1985, pp. XIV-XV)
Esta afirmação nos faz indagar se os manuais de roteiro seriam fruto dessa base teórica. A
suposta passividade do espectador e a ênfase no pictórico e no verbal estariam relacionados à
forma de escrever ou não escrever o som para os filmes?
Bibliografia
BERGALA, Alain. Voyage en Italie de Roberto Rossellini. Virginia: Yellow Now, 1990.
BORDWELL, David , THOMPSON, Kristin. Fundamental Aesthetics of Sound in the Cinema in
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narrar uma estória. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
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CARRIERE, J-C, BONITZER, P. Práctica del Guión Cinematográfico. Buenos Aires: Paidós, 1998.
CHION, Michel. Como se escribe un guión. Madri: Cátedra, 2002.
46 la mayoría de las teorías fílmicas recientes se basan en asunciones sobre la narración que presentan deficiencias cruciales:
demasiadas teorías se basan en débiles analogías con las representaciones pictóricas o verbales, enfatizan ciertas técnicas fílmicas,
concentran o aíslan los mecanismos narrativos a expensas de la totalidad de la película, e inputan una pasividad fundamental al
espectador.
175
COMPARATO, Doc. Roteiro. Rio de Janeiro: Nórdica, 1983.
DOANE, Mary Ann. A voz no cinema: a articulação de corpo e espaço in XAVIER, Ismail. A
experiência do cinema. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1991
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MACHALSKI, Miguel. El guión cinematográfico: un viaje azaroso. Buenos Aires. Catálogo, 2006.
176
Eduardo e Mônica - Adaptação da música da banda Legião Urbana para o
audiovisual da empresa Vivo nas redes sociais
Natália Azevedo Coquemala (UNESP/Bauru) – [email protected]; João Cristiano
Pavan Araujo (UNESP/Bauru) – [email protected]
Resumo
O presente trabalho apresenta uma análise da adaptação audiovisual da música Eduardo e
Mônica, da banda Legião Urbana. A canção foi lançada em 1986, completava 25 anos em 2011
e ainda não possuía um videoclipe próprio. Tal produção foi feita para a internet e contemplou
a operadora de telefonia Vivo. A adaptação em questão pode ser considerada híbrida, por se
tratar de uma peça publicitária que aparece em outros meios como sendo o clipe oficial da
música. Tal produto publicitário ilustra o momento atual da comunicação midiática, que tem
assistido a um processo de hibridização de gêneros e formatos. O objetivo é contribuir com os
profissionais de publicidade e propaganda e produtores de conteúdos audiovisuais.
Palavras-chave: Eduardo e Mônica; Legião Urbana; videoclipe; adaptação; música.
Abstract
This paper presents an analysis of audiovisual adaptation of Eduardo e Mônica music, Legião
Urbana band. The song was released in 1986, completing 25 years in 2011 and without its own
videoclip. Such production was made for the Internet and elaborated by Vivo. The adaptation
in question can be considered hybrid, because it is an advertising piece that appears in other
media as the official music video. Such advertising product illustrates the current situation of
media communication, which has witnessed a process of hybridisation of genres and formats.
The goal is to contribute to the advertising professionals and producers of audiovisual content.
Keywords: Eduardo e Mônica; Legião Urbana; videoclip; adaptation; music.
Introdução
As campanhas publicitárias contam com diversas estratégias para transmitirem suas
mensagens e chegarem até o público desejado. As histórias estão presentes em anúncios
impressos, jingles e spots de rádio, comerciais televisivos e diversas outras peças e auxiliam na
propagação das marcas. Atualmente, novos produtos e formatos estão sendo criados,
inovando, assim, o mercado publicitário.
Criam-se novos formatos publicitários; multiplicam-se os apliques em
outdoors; proliferam as revistas segmentadas que passam a trazer encartes
e anúncios especiais; cresce a concorrência entre as redes de televisão;
surge a TV a cabo, um novo espaço para a veiculação de comerciais e
177
patrocínios, e a internet,
(CARRASCOZA, 1999, p. 124).
rede
internacional
de
computadores
As campanhas, para divulgar um produto, uma marca ou um serviço, muitas vezes empregam,
em seus anúncios, recursos narrativos, como afirma Carrascoza:
Os anúncios dessa variante vão buscar influenciar o público contando
histórias. É uma estratégia poderosa de persuasão, sobretudo quando o
neurologista Oliver Saks nos lembra que “cada um de nós tem uma história
de vida, uma narrativa íntima – cuja continuidade, cujo sentido é nossa vida.
Pode-se dizer que cada pessoa constrói e vive uma ‘narrativa’ e que a
narrativa é a sua identidade (CARRASCOZA, 2004, p. 87).
O emprego de músicas nas peças audiovisuais também constitui uma das estratégias utilizadas
na criação publicitária. Segundo Bullerjhan (2006), a música ganha novos significados quando
utilizada para influenciar os estados de espírito do consumidor e gerar impressões afetivas
para o produto.
Este trabalho apresenta uma análise da adaptação da música Eduardo e Mônica, da banda
Legião Urbana, para o audiovisual da empresa Vivo nas redes sociais. A canção, lançada em
1986, completava 25 anos em 2011 e não possuía um videoclipe. Tal produção foi feita para a
internet, pela agência África e contemplou a operadora de telefonia Vivo. De acordo com o
site47 da empresa, lançada em 2003, a Vivo é a marca líder no mercado de operações móveis no
Brasil. Seu papel é estimular diálogos, aproximar e ampliar possibilidades para as pessoas
estarem sempre conectadas. Ao criar o produto audiovisual, a marca anunciou o seu novo
posicionamento no mercado, “Amor, conexão e transformação”. Tal criação surgiu em um ano
de muitas comemorações. Renato Russo, compositor e vocalista da banda Legião Urbana,
completaria 50 anos em 2011. Também se completavam 15 anos de sua morte, além da
comemoração dos 25 anos da música.
O filme publicitário foi produzido pela O2 e estreou nas páginas da Vivo no YouTube e nas
redes sociais, como Facebook, Twitter e Orkut, na semana do Dia dos Namorados, em 2011. O
vídeo também foi veiculado nas salas de cinema das principais capitais brasileiras. A versão 2.0
da música contextualiza o cenário atual e como as pessoas utilizam a conexão para se
aproximar. No vídeo, o amor do casal Eduardo e Mônica é pontuado por celulares, tablets,
notbooks e outros serviços de telefonia e internet oferecidos pela empresa.
Em menos de três meses da criação do anúncio, o mesmo contava com nove milhões de
exibições no YouTube (o vídeo não está mais no canal). Um vídeo com o making off e os
bastidores das gravações também foi lançado pela operadora.
Assim sendo, pretende-se, a partir da apreciação dos enquadramentos, posicionamentos,
planos e ângulos de câmera, averiguar os efeitos instaurados na adaptação em questão. A
partir de expostos sobre a canção, o audiovisual e a adaptação, o objetivo é contribuir com os
profissionais de publicidade e propaganda e produtores de conteúdos audiovisuais.
A canção
47 Disponível em: http://www.vivo.com.br/portalweb/appmanager/env/web#. Acesso em: Outubro/2015
178
A música Eduardo e Mônica, que conta com aproximadamente 70 versos, foi composta em
1978, por Renato Russo e lançada em 1986, no álbum “Dois” da banda Legião Urbana, que
vendeu 1,4 milhões de cópias do disco. Sua letra possui riqueza de detalhes e pode ser
considerada um poema-canção. Com frases bem humoradas, a música mostra a evolução de
uma relação e é narrada, de forma linear, uma história de amor entre duas pessoas com
características diferentes entre si.
Quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?
Eduardo abriu os olhos, mas não quis se levantar
Ficou deitado e viu que horas eram
Enquanto Mônica tomava um conhaque
No outro canto da cidade, como eles disseram
Eduardo e Mônica um dia se encontraram sem querer
E conversaram muito mesmo pra tentar se conhecer
Um carinha do cursinho do Eduardo que disse
"Tem uma festa legal, e a gente quer se divertir"
Festa estranha, com gente esquisita
"Eu não tô legal, não aguento mais birita"
E a Mônica riu, e quis saber um pouco mais
Sobre o boyzinho que tentava impressionar
E o Eduardo, meio tonto, só pensava em ir pra casa
"É quase duas, eu vou me ferrar"
179
Eduardo e Mônica trocaram telefone
Depois telefonaram e decidiram se encontrar
O Eduardo sugeriu uma lanchonete
Mas a Mônica queria ver o filme do Godard
Se encontraram, então, no parque da cidade
A Mônica de moto e o Eduardo de camelo
O Eduardo achou estranho e melhor não comentar
Mas a menina tinha tinta no cabelo
Eduardo e Mônica eram nada parecidos
Ela era de Leão e ele tinha dezesseis
Ela fazia Medicina e falava alemão
E ele ainda nas aulinhas de inglês
Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus
Van Gogh e dos Mutantes, de Caetano e de Rimbaud
E o Eduardo gostava de novela
E jogava futebol-de-botão com seu avô
Ela falava coisas sobre o Planalto Central
Também magia e meditação
E o Eduardo ainda tava no esquema
Escola, cinema, clube, televisão
E mesmo com tudo diferente, veio mesmo, de repente
Uma vontade de se ver
180
E os dois se encontravam todo dia
E a vontade crescia, como tinha de ser
Eduardo e Mônica fizeram natação, fotografia
Teatro, artesanato, e foram viajar
A Mônica explicava pro Eduardo
Coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar
Ele aprendeu a beber, deixou o cabelo crescer
E decidiu trabalhar (não!)
E ela se formou no mesmo mês
Que ele passou no vestibular
E os dois comemoraram juntos
E também brigaram juntos muitas vezes depois
E todo mundo diz que ele completa ela
E vice-versa, que nem feijão com arroz
Construíram uma casa há uns dois anos atrás
Mais ou menos quando os gêmeos vieram
Batalharam grana, seguraram legal
A barra mais pesada que tiveram
Eduardo e Mônica voltaram pra Brasília
E a nossa amizade dá saudade no verão
Só que nessas férias, não vão viajar
Porque o filhinho do Eduardo tá de recuperação
181
E quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?
(RENATO RUSSO – LEGIÃO URBANA)
A intenção rítmica da canção direciona a atenção do ouvinte às “batidas” contínuas, aferidas
em cordas de violão, que conduzem ao conteúdo literário ao final de cada verso. Em seu
desenvolvimento, detalhes vão sendo revelados, os quais dão um ar de conto à canção, onde
cada verso mostra uma característica ou acontecimento, seja da vida de Eduardo ou de
Mônica.
A canção pode ser ainda caracterizada como música folk. Tal expressão é provinda do termo
“folk lore”, música gerada pelo saber popular. Com uma construção harmônica simples,
fórmula oriunda do estilo folk, a melodia se repete e constrói a harmonia, que se articula com
a origem literária e o caráter poético para se completarem. Por outro lado, a harmonia,
distanciada de virtuosismo técnico musical, a qual se apropria da miscigenação de poucos
acordes, contextualiza sonoridade marcante ao conteúdo literário narrativo. Este, por sua vez,
também é simples e de fácil absorção interpretativa pelo interlocutor. Assim, a canção não
possibilita grande diversidade interpretativa em seus versos. O desenrolar da história é, de
certa forma, direto, sem grandes metáforas e simbolismos.
O audiovisual
“Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer que
não existe razão?”. Este trecho da canção foi inspirado no filósofo francês Blaise Pascal (16231662), autor da conhecida frase "O coração tem razões que a própria razão desconhece". Tal
trecho abre e fecha o contexto, tanto na música, como no filme publicitário e, feita uma
analogia, se apresenta como um abrir e fechar das cortinas no teatro, como o “era uma vez” e
o “viveram felizes para sempre” nas histórias, delimitando o tempo, criando suspense e
seduzindo a plateia ou o leitor.
O vídeo inicia-se com um dia que começa (ou uma noite que termina) e as primeiras cenas
mostram um dia típico dos personagens Eduardo e Mônica, ressaltando seus contrastes em
um intercalar de suas pessoalidades. O ambiente do bar versus o ambiente do lar são
retratados, mostrando tais afrontes. Cenas da vida noturna de Mônica, por meio de figuras
como luzes neon e taças de bebida misturam-se com o jogo de botões e o material escolar de
Eduardo, juntamente com diversas fotos da sua infância em um mural no quarto do garoto. As
cenas iniciais são apresentadas em close extremamente fechados, fazendo com que os objetos
182
nem cheguem a aparecer completamente na tela. Com esse recurso, cria-se um clima de
intensa proximidade, os personagens vão aparecendo aos poucos, construindo-se, assim, a
narrativa.
Mônica, nos closes iniciais, aparece apenas por meio de uma ponta de cabelo, lábios e nariz e
Eduardo pelos dedos dos pés. No momento seguinte, ela aparece gargalhando no balcão de
um bar e ele, na cama, ainda dormindo. A mãe de Eduardo, no quarto do menino, abre a
cortina e enche o quarto de luz, tentando acordá-lo. Ele olha a hora na tela do celular e o
mesmo, que aparece em câmera subjetiva, mostra a mão de Mônica que está em outro
ambiente também checando as horas. Na tela do aparelho, lê-se “Vivo 6:07”, fazendo menção
à marca anunciada. Eduardo abre os olhos lentamente e Mônica também tem os olhos
ofuscados pela luz do dia ao deixar o bar. E, finalmente, os dois aparecem de corpo inteiro em
uma fusão de imagens que mostra os personagens caminhando em ambientes diferentes, mas
que vão ao encontro um do outro. Eles se esbarram e derrubam os celulares que carregam em
suas mãos. Neste momento, voltam os closes, plano e contraplano, a partir dos ombros dele e
depois dela. A câmera subjetiva foca o momento em que os personagens olham para os
aparelhos e trocam mensagens. Instantes depois, ela o envia uma mensagem: “Trocamos os
celulares. E agora?”. No alto da tela, é possível ver novamente a marca Vivo 3G.
Em seguida, aparece a fala do amigo do cursinho do Eduardo, que na música vira uma resposta
do rapaz em forma de mensagem de texto via celular: “Tem uma festa hj à noite”. A referência
ao fato de Eduardo só pensar em ir para casa e sua preocupação com a hora é também
representada por uma mensagem de texto, desta vez de sua mãe: “Filho, cadê você?”.
Para mostrar que os dois personagens “eram nada parecidos”, como é relatado em um trecho
da música, Mônica aparece com uma tatuagem nas costas e Eduardo espreme uma espinha;
ela acompanha a aula de Medicina e pesquisa sobre os mais diversos assuntos no tablet, ele
estuda inglês e lê os resumos dos capítulos da novela no celular. Acontecem, neste momento,
algumas passagens de cena, onde um personagem completa a ação do outro, o que sugere
uma simbiose entre os dois. Várias cenas de encontros do casal em ritmo acelerado
representam a passagem do tempo e a evolução do relacionamento entre os dois.
Cenas sobre brigas e reconciliações do casal humanizam ainda mais a história. Eles enfrentam
dificuldades, constroem uma casa, têm filhos e pagam contas. Em seguida, as crianças já
aparecem maiores no carro. A menina lê um livro e o menino usa o celular aparentemente
para jogar. Para representar a recuperação do filho mais novo na escola, que impede a família
de viajar, uma mensagem de texto do menino: “Pai corasão escreve com S ou Ç?”.
Vídeos e fotos do casal finalizam o filme e antes da assinatura da Vivo, com o slogan “Conexão
como nenhuma outra” (Figura 1), o casal mede a altura dos filhos com marcações na parede
em típica imagem familiar.
183
Figura 1: Logo da empresa Vivo no final do filme publicitário “Eduardo e Mônica”
A adaptação
A adaptação da música Eduardo e Mônica para o audiovisual da empresa Vivo conta com uma
estratégia publicitária chamada product placement (inserção de produtos). De acordo com
Farias (2015), esta é a “modalidade que cuida da inserção ou aparição de produtos em uma
cena de um programa de televisão ou filme”. Além de ser um produto criado por uma marca, a
peça em questão traz inserções dos serviços de internet e telefonia da Vivo no desenrolar da
narrativa.
A partir de uma análise técnica de tal adaptação audiovisual, é possível verificar os
posicionamentos de câmera que sugerem um narrador-personagem testemunha, que, em
vários momentos, toma o lugar de protagonista da narrativa. Em determinados trechos, tal
narrador adentra nos ambientes em que o enredo se desenvolve, dando mais veracidade ao
relato. A música, na adaptação, assume o papel do narrador off, porém, que conhece os
protagonistas e o desenrolar da história.
Planos detalhe e close dão efeitos de sentido de intimidade à narrativa, onde a imagem
adquire um caráter quase abstrato na cena. O raccord, que é a continuação da história que
pode ser certificada, entre outros aspectos, por ligações credíveis nas passagens de planos,
acontece no início do filme. Em seguida, o vídeo ganha um ritmo cada vez mais acelerado com
o uso de fusões e cortes secos em um total 200 planos, cenas curtas e poucas sequências.
Há sincronismo e simultaneidade entre o áudio e o visual, entre a letra da música e as cenas do
filme, resguardando os espectadores de interferência interpretativa diversas daquela já
conhecida pela canção em sua via original. A adaptação visual, uma montagem linear, se
mostra uma sequência fidedigna dos acontecimentos transcorridos na letra da música. A
própria canção impõe sua duração e métrica ao filme, ou seja, não houve corte ou adaptações,
conforme ocorre nas edições de videoclipes comerciais, cuja duração possui, em média, três
minutos.
As cenas são curtas e rápidas, característica dos videoclipes, cuja intenção é captar a atenção
do espectador como forma de oferecer um produto ao consumo, segundo Brandini (2006):
Os videoclipes tornaram-se um novo referencial para a apreciação estética
da música associada a uma forma de oferecer um produto ao consumo.
Inegavelmente, pela indústria fonográfica, vídeos musicais são formas de
184
exposição de um produto que está à venda, um apelo ao consumo. Sua
estética une técnicas apuradas do cinema e da publicidade, a liberdade de
criação de film makers e um universo simbólico que visa à expressão do
sentido da canção e da personalidade do artista (BRANDINI, 2006).
No conceito de videoclipe, o registro original da canção ganha diversos efeitos sonoros (gritos,
falas, barulhos) para enfatizar algumas cenas da narrativa. Logo no início da adaptação, a mãe
de Eduardo abre a janela e fala ao fundo da canção: “Eduardo, vamos lá, acorda. Acorda, vai.”.
Outros efeitos sonoros presentes na narrativa são o som dos celulares caindo ao chão no
momento em que os personagens se esbarram; o som do ônibus parando; as mensagens
recebidas e digitações nos celulares; o ronco do motor da lambreta; alguns pequenos diálogos;
barulho de mergulho na água na cena da piscina; som de ambulância e tantos outros ruídos
característicos.
A característica do videoclipe também é bastante evidente no encadeamento dos planos e
exploração de câmeras. Há várias focalizações que exploram planos próximos ou grande plano,
close-up ou simplesmente primeiro plano, onde é mostrado apenas o rosto do personagem
(Figuras 2 e 3), cujo enquadramento é mais fechado.
Figuras 2 e 3: Exemplos de primeiro plano e plano próximo
Outro enquadramento também explorado na adaptação é o plano detalhe, cuja preocupação é
mostrar uma parte do corpo de um personagem ou um objeto, como, por exemplo, o pé de
Eduardo ou a boca de Mônica (Figuras 4 e 5).
Figuras 4 e 5: exemplos de plano detalhe
Em vários trechos da adaptação faz-se uso de dois planos em sequência como forma de
representar a simultaneidade dos acontecimentos ocorridos com ambos os personagens. Nos
185
dois planos gerais (Figura 6), é possível constatar também a descentralização dos personagens,
de forma a se promover a compensação pelas massas.
Figura 6: exemplo de planos gerais
Mais de um plano em uma única cena (Figuras 7 e 8) também é um recurso utilizado diversas
vezes na adaptação em questão.
Figuras 7 e 8: exemplos de mais de um plano em cena
Outra técnica de câmera utilizada é o plano distanciado (Figura 9), o qual também é um
exemplo de plano em que a câmara permanece fixa, ainda que haja movimento interno de
personagens, objetos, veículos etc.
186
Figura 9: exemplo de plano distanciado
É possível observar que a câmara permanece fixa enquanto os personagens se movem (Figuras
10 e 11), bem como o efeito de filmagem de distanciamento, efetuado por uma câmera alta e
outra câmera baixa.
Figuras 10 e 11: exemplos de planos fixos
Observa-se ainda vários efeitos de raccords de movimento, em que a personagem Mônica sai
de um campo para aparecer em outro (Figuras 12 e 13). O raccord no movimento ou ação
pode ser construído relativamente ao ângulo de visão ou à escala (regras dos 30º), à direção,
ao gesto, ao olhar, ao campo/contra campo (regra dos 180º).
Figuras 12 e 13: exemplos de raccord de movimento
O efeito de raccord pode ser também encontrado no seguinte trecho da adaptação: “ela fazia
medicina e falava alemão e ele ainda nas aulinhas de inglês”. Nesse instante, enquanto a
canção verbaliza a constatação, a adaptação visual explora o efeito raccord que altera a tela do
tablet de Mônica para a tela do celular de Eduardo com a “aulinha” de inglês.
187
A adaptação se vale também do efeito de elipse, o qual geralmente serve para omitir
intencionalmente informações facilmente identificáveis pelo contexto, por significados
construídos por sucessões de imagens sequenciadas. Cria-se uma elipse de tempo nas cenas
das férias do casal (Figuras 14 e 15), sem que para isso seja necessário observar cada momento
deste processo temporal. Tudo acontece pelo modo como as imagens são organizadas, de
forma que, num primeiro momento, os protagonistas mergulham juntos em uma piscina e na
próxima cena aparecem submergindo da água, porém, já no mar, em referência ao trecho da
canção: “fizeram natação, fotografia, teatro, artesanato e foram viajar”.
Figuras 14 e 15: exemplos de elipse/raccord
O travelling lateral, técnica bastante usual no cinema, também pode ser verificado na
adaptação nas cenas em que o personagem de Eduardo passa de um aposento a outro,
deixando entrever a parede “furada” ou corrediça, para autorizar a câmera a transpô-la. Na
cena, Eduardo está trazendo as caixas de um aposento e no momento seguinte a câmera
mostra a transposição da parede que divide os ambientes para, em seguida, mostrar Eduardo
já no ambiente de destino calçando o sapato em sua cliente.
Ainda é possível verificar o uso de campo/contra campo (deslocamento da atenção). Isso
ocorre no momento em que a câmera foca primeiramente a tatuagem de Mônica, com ela de
costas, para, no momento seguinte, focalizar o rosto da personagem refletido no espelho
(Figuras 16 e 17).
Figuras 16 e 17: exemplos de campo/contra campo
188
Ainda é verificada, em vários trechos, a exploração de câmeras altas e baixas (Figuras 18 e 19),
totais ou não, estilo vigilância (Figuras 20 e 21), distância focal e profundidade de campo
(Figuras 22 e 23).
Figuras 18 e 19: exemplos de câmeras altas e baixas
Figuras 20 e 21: exemplos de câmera alta total e estilo vigilância
Figuras 22 e 23: exemplos de distância focal e profundidade de campo
Há trechos da adaptação em que a câmera insinua um narrador que possivelmente conhece os
protagonistas. As lentes da câmera tomam conceito de subjetividade (Figuras 24 e 25) no seu
ponto de vista, ora localizada no alto, atrás de fios de eletricidade, ora atrás de objetos dentro
do bar frequentado por Mônica. Nas referidas cenas é possível questionar que seria essa a
ótica do narrador que relata conhecer o casal e também a visão do testemunho do
relacionamento dos dois personagens.
189
Figuras 24 e 25: exemplos de subjetividade/olhar testemunho
Ainda é possível observar a utilização de sobreimpressões (Figuras 26 e 27), ou seja, impressão
de duas ou mais imagens distintas obtidas em uma única cena. O trecho: “Eduardo e Mônica
voltaram para Brasília”, é ilustrado com a sobreposição da imagem da placa da cidade de
Brasília refletida sobre o veículo em que Mônica dirige, delineando a viagem do casal com os
filhos. No mesmo trecho, aparecem, na imagem seguinte, as crianças dentro do carro e a
figura da Catedral de Brasília também refletida no vidro do automóvel.
Figuras 26 e 27: exemplos de sobreimpressões
A partir de tais analises, constata-se que a representação visual da canção, carregada de certa
redundância por espelhar em imagens cada trecho da canção, parece atender a uma
necessidade publicitária de facilitar o entendimento da mensagem transmitida no audiovisual
e enfatizá-lo. Observam-se mudanças e adaptações que a publicidade está experimentando
em suas estratégias, em seus meios e formatos, na confecção das mensagens e na própria
concepção de publicidade e de agência tradicional.
O objeto em questão se trata de um produto híbrido. O vídeo, que é uma peça publicitária,
aparece em sites48 de letras e cifras de música como clipe da canção. Ainda abordando a
questão do hibridismo, trata-se de um narrador-personagem, que é testemunha e participa da
história. A câmera também se encaixa como um narrador e traça o efeito mostrativo que tem
uma visão narrativa.
Considerações finais
48 Disponível em: http://www.vagalume.com.br/legiao-urbana/eduardo-e-monica.html, http://letras.mus.br/legiaourbana/22497/, http://www.cifraclub.com.br/legiao-urbana/eduardo-monica/ e https://ouvirmusica.com.br/legiao-urbana/22497/.
Acesso em: Outubro/2015
190
O momento atual da comunicação midiática tem assistido a um processo de hibridização de
gêneros e formatos, onde são necessários novos contextos, espaços e mídias. Neste processo,
diante ao impacto das novas tecnologias, a publicidade tem colaborado significativamente
com as experimentações na busca de uma linguagem adequada de se comunicar com o
usuário dos meios digitais. Para isso, tem-se recorrido à força das narrativas audiovisuais. O
contar histórias, recurso utilizado pelo homem desde os primórdios, ganha nova configuração
como storytelling, ferramenta carregada de intencionalidade, que cria uma relação de
proximidade entre marca e cliente.
A adaptação da música para o audiovisual mostrou-se eficiente por abordar uma temática
universal, o amor, em forma de narrativa. A releitura ou versão audiovisual de Eduardo e
Mônica atualizou a narrativa e a marca conseguiu introduzir seus serviços na trama, como a
telefonia e a internet. Os jovens personagens se conhecem a partir da troca de aparelhos
celulares em um esbarrar na correria da cidade. As tecnologias aparecem no dia-a-dia de
ambos, desde o despertar, na função de relógio. O casal se comunica o tempo todo por
dispositivos móveis e os aparelhos, incluindo notebooks e tablets, os acompanham até o
crescimento dos filhos, quando, no clímax, o garoto manda uma mensagem de texto fazendo
uma pergunta ao pai.
A situação atual é convulsiva, na qual cresce o número de indivíduos com possibilidade de
comunicação, no entanto, com menor disposição para ouvir. Para que isso seja proveitoso, a
história precisa provocar emoções e sensações (literatura-música x audiovisual). O audiovisual
em questão encanta e envolve o usuário das redes sociais por oferecer conteúdo que traz
sentido vital ao público, mostrando-se significativo por provocar tais sentimentos, uma das
funções do processo persuasivo publicitário. Vale ressaltar a não utilização do vermelho e do
azul na paleta de cores no vídeo por ter relação à concorrência mercadológica (TIM), o que
destaca ainda mais o papel do vídeo como um produto publicitário.
De acordo com Bulhões (2012), no fenômeno da adaptação audiovisual do universo literário, a
noção de “fidelidade” porta um equívoco de base. Sendo assim, tal noção deve obedecer a
origem de cada meio. Vale o conhecimento de que a adaptação é sempre um processo de
reelaboração de linguagens, devem ser respeitadas suas deliberações inventivas, as soluções e
licenças impressas em outro meio de expressão, observando que cada meio tem sua
característica. A adaptação passa a ser vista como um fenômeno intermidiático, amplo, uma
incessante troca de referências, um irreprimível intercâmbio de repertórios e linguagens.
Formatos, suportes, canais, plataformas estão fadados a interagir, contaminar-se, fundir-se,
complementar-se.
Referências
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vivo no mundo online. Revista Temática. Ano VIII, n. 01 – janeiro 2012. Disponível em:
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de 2014.
191
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NÚÑEZ, A. É melhor contar tudo. São Paulo: Nobel, 2009.
192
Capítulo 5 Mão dupla e mãos dadas: Adaptações
Intersecções entre o esquete humorístico e a sua adaptação literária: É
mentira, Terta?
Luis Octavio Rogens de MELO ALVES*, [email protected]
Resumo
Este artigo tem como objeto de estudo o personagem Pantaleão Pereira Peixoto criado por
Chico Anysio para o programa humorístico de televisão Chico City (1973). O personagem, neste
mesmo ano, foi desenvolvido, pelo humorista, no livro É mentira, terta?. Deste modo, este
artigo propõe observar possíveis intersecções desta obra com a narrativa dos esquetes
humorísticos, que constituem um gênero instituído na programação televisiva nos formatos
humorísticos brasileiros (MELO ALVES, 2014). Para tanto, a partir das especificidades das
conversações representadas nos dois objetos, fundamentar-se-á o trabalho em estudos
interacionais e nas Teorias do Humor.
Palavras-chave
Risível; Humor; Chico Anysio; Esquete Humorístico.
Considerações Iniciais
Este artigo abarcará um conto de uma obra com um protagonista tido como mentiroso: Seu
Pantaleão. O livro É mentira, Terta?, de Chico Anysio, traz este tipo como protagonista.
Digamos desde já que o narrador não lhe aplica este rótulo (mentiroso) em nenhum momento.
Tratamo-lo desta maneira, de antemão, porque o personagem foi interpretado e popularizado,
meses antes do livro ser publicado, pelo, mesmo, Chico Anysio no seu programa humorístico,
da Rede Globo de Televisão, Chico City, em 1973.
Nos esquetes deste programa, Pantaleão Pereira Peixoto é um fazendeiro aposentado,
alcunhado Coronel Pantaleão, e criado cenicamente com a voz do cantor Luiz Gonzaga e a
aparência do Imperador Pedro II. O personagem é o proprietário de uma fazenda e de um
conjunto de narrativas inverossímeis (ANYSIO, 2013), e é tido como uma das principais
atrações da sua cidade no sertão nordestino brasileiro, a pequena e imponente Chico City.
Com prefácio de José Cândido Carvalho e ilustração de Ziraldo, a obra conta algumas das
inúmeras façanhas deste personagem do humorístico em dezenove contos. Foi o sexto livro de
* Melo Alves, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa, Bolsista
de Mestrado do CNPq, São Paulo, São Paulo, Brasil, [email protected].
193
ficção mais vendido no ano de lançamento, 1973, e o décimo mais vendido no ano posterior
(REIMÃO, 2001).
Nota-se, aqui, que, a princípio, a mentira supõe presença desde o título da obra, “É mentira,
Terta?”, nome homônimo ao bordão do protagonista nos esquetes humorísticos do programa
televisivo. Ao contar suas narrativas surpreendentes a um popular de sua cidade, o
personagem perguntava à única testemunha que podia confirmar seus causos, sua esposa
Terta, que não o contradizia. A esposa dizia apenas “Verdade”, outro bordão do esquete.
Outro interlocutor, nos esquetes humorísticos, das narrativas de Pantaleão era Pedro Bó, um
abobalhado que acreditava no patrão e sempre o interrompia para interrogá-lo ingenuamente.
“Pedro Bó” tornou-se, na época, uma gíria que representava uma pessoa fácil de iludir.
Pantaleão diante dos questionamentos de Pedro Bó, sempre, impunha sua marca humorística
através de insultos em suas respostas.
Propõe-se aqui uma análise de um conto desta obra literária de Chico Anysio com o propósito
de observar possíveis intersecções desta “adaptação” com a narrativa dos esquetes
humorísticos, que constituem um gênero instituído na programação televisiva brasileira
dentro dos formatos humorísticos. Para tanto, nesta apresentação, a partir das especificidades
das interações representadas nos dois objetos, o trabalho fundamentar-se-á em estudos
interacionais e nas Teorias do Humor.
Chico Anysio
Chico Anysio foi um artista que transitou por quase todos os campos das artes. Além da
dedicação ao humorismo, atuou das artes plásticas à música. Dentre os seus diversos talentos
artísticos, Anysio tornou-se sucesso de vendas e crítica como escritor. Desenvolveu vinte e
uma obras: contos, literatura infanto-juvenil, policiais, bibliográfico, obras propriamente
humorísticas e romances, como Negro Léo, que foi adaptado em um Caso Especial, da Rede
Globo de Televisão, em 1980, rendendo diversos prêmios internacionais a emissora.
Um dos principais méritos de Chico Anysio, em sua carreira, é a criação de inúmeros tipos,
tanto na televisão quanto na literatura. Como humorista, Anysio desenvolveu mais de
duzentos personagens que ilustravam um panorama cultural, social e político brasileiro do
momento, como o jogador de futebol esquecido pela mídia esportiva, o Coalhada, o
aposentado que vivia a procurar um emprego para poder sobreviver, Nico Bondade, e o jovem
cantor tropicalista, o Baiano. A maioria deles apresentados em esquetes humorísticos em
diversas atrações, como Chico City (1973), Chico Total (1981 e 1996) e Chico Anysio Show
(1982).
Com uma carreira consolidada no rádio, Chico Anysio estreou na televisão em 1957 no
programa Aí vem dona Isaura, na TV Rio, estrelado pela humorista Ema D’Ávila, irmã do,
também humorista, Walter D’Ávila. A personagem Dona Isaura era sobrinha do Professor
Raimundo, um dos principais personagens da carreira de Chico, criado em um programa
radiofônico pelo radialista Haroldo Barbosa.
Protagonizou seu primeiro programa televisivo na década de 60, o Chico Anysio Show na
extinta TV Rio. O programa era composto por quadros como o do Coronel Limoeiro, o
194
poderoso nordestino que tinha ataques de ciúmes da sua esposa, e o garoto tímido e
conservador Valentino. Antes de ser estabelecer na Rede Globo em 1982, a atração teve uma
passagem pela TV Excelsior.
A cada ano, em seus programas, eram apresentados novos personagens ao telespectador,
alguns deles seriam os carros-chefes da atração por um período. Em 1973, o sucesso da estreia
de Pantaleão no programa Chico City fez com que o humorista escrevesse a obra É mentira,
Terta?.
Não era a primeira incursão de Chico Anysio na literatura. O humorista já havia publicado dois
livros: O Batizado da Vaca (1972) e O Enterro do Anão (1973). Dois sucessos editoriais
estruturados em coletâneas de contos humorísticos. Estas obras são marcadas por um enorme
registro de oralidade na escrita, característica também presente no livro do Seu Pantaleão. Em
É mentira, Terta?, Anysio incorpora a linguagem coloquial nordestina ao seu texto literário
trazendo os causos de Pantaleão ao texto escrito.
É a primeira obra literária protagonizada por um personagem de um programa humorístico de
televisão. Recurso que o autor retomará, na literatura, apenas, em 1993, na obra Jesuíno, o
Profeta. Vale lembrar que, além da literatura, Chico Anysio lançou long-playings temáticos dos
seus personagens: Azambuja (Azambuja & Cia, 1975), Linguinha (Linguinha, 1971), Coalhada
(Coalhada - O Craque que faltou na Seleção, 1978) e Roberval Taylor (Roberval Taylor, 1976).
O esquete humorístico
É dificultoso definir, exatamente, o que é o gênero esquete humorístico. O próprio estudo dos
gêneros, ao longo dos tempos, apresenta uma polêmica discussão entre os diferentes autores
nas suas classificações. Para Machado (2000), no campo dos estudos televisivos, “esse tipo de
discussão se tornou alguma coisa anacrônica, quando não irrelevante”.
A discussão genérica do esquete humorístico, proposta nesta seção, não se dará por uma
opção de categorização, no entanto, sabemos que caracterizar um gênero significa lê-lo do
ponto de vista de sua forma e de seu conteúdo.
Entendemos a natureza dos gêneros como entidades dinâmicas, não engessadas em estruturas
rígidas (MARCUSCHI, 2002). Ao analisar um gênero da esfera humorística, que pressupõe, na
maioria das vezes, uma quebra da expectativa e subversão a uma ordem, essa definição se
potencializa.
É bem provável que a maior parte das categorizações referentes ao gênero esquete
humorístico haverá algum exemplo que a desconstrua. Se formos aos estudos teatrais
encontramos a seguinte definição para o esquete:
“O esquete é uma cena curta que apresenta uma situação geralmente
cômica, interpretada por um pequeno número de atores sem caracterização
aprofundada ou de intriga, aos saltos e insistindo nos momentos engraçados
e subversivos. O esquete é, sobretudo, o número de atores do teatro ligeiro
que interpretam uma personagem ou uma cena com base em um texto
humorístico e satírico, no “music hall”, no cabaré, na televisão ou no “caféteatro”. Seu princípio motor é a sátira, às vezes literária (paródia de um
195
texto conhecido ou de uma pessoa famosa), às vezes grotesca e burlesca (no
cinema e na televisão), da vida contemporânea”. (PAVIS, 1999, p. 143).
Como afirmamos, é possível apresentar, para esta definição, contraexemplos da própria
produção humorística televisual brasileira. No que se refere à quantidade de atores, esquetes
como o Coral dos Bigodudos, de A Praça é Nossa, contava com a presença de muitos
humoristas. Quanto ao tempo, esquetes como o do Café Bola Branca de Chico Total (1996)
possuíam uma longa duração. No entanto, esta delimitação apresentada pela autora traz
contribuições ao nosso corpus quanto ao caráter humorístico do esquete: “insistindo nos
momentos engraçados e subversivos” e “com base em um texto humorístico e satírico”.
O Fantástico, a revista eletrônica de maior popularidade e longevidade da televisão brasileira,
na qual Chico Anysio apresentou, durante os dezesseis anos iniciais do programa, monólogos
de humor, apresenta um histórico de quadros humorísticos (MEMÓRIA GLOBO, 2015), como:
O quadro Cartão de Visitas em que Chico Anysio apresentou a história oficial
de seus próprios personagens em 32 esquetes;
Raul Solnado apresentou esquetes construídos a partir de uma conversa
telefônica;
Os esquetes dos integrantes do Casseta & Planeta que parodiaram figuras
públicas, como jogadores, políticos e artistas;
No Vida ao Vivo, Luiz Fernando Guimarães e Pedro Cardoso parodiavam os
telejornais em uma bancada com assuntos cotidianos.
Nestes quatro exemplos elencados podemos perceber, a priori, relativa dificuldade de definir
estabilidade neste gênero. No entanto, o podemos compreender por meio dos modelos de
contextos que são acionados durante o processo produção e de recepção deste gênero (VAN
DIJK, 2012). Assim, podemos considerar a presença de piadas como um dos elementos-chave
para o nosso estudo.
Na maior parte da história da produção televisiva brasileira, os programas humorísticos eram
compostos por um conjunto de esquetes com humoristas consagrados que interpretavam
piadas, prontas e conversacionais (GIL, 1991), por meio de tipos diversos. O humor na
televisão brasileira baseia-se em uma tradição radiofônica, circense e, também, do teatro de
revista (DURVAL, 2002). Exemplos disto estão nos humorísticos apresentados por Chico
Anysio, Jô Soares, Renato Aragão e Agildo Ribeiro.
A recorrência de esquetes em um programa humorístico com o mesmo personagem ou
situação é rotulada como quadro humorístico. A presença de esquetes humorísticos não é
necessária para compor um programa humorístico, o próprio Chico Anysio Show apresentava o
personagem Jesuíno, o Profeta, que encerrava a atração com poesias e sabedorias sem um
cunho risível.
Desde sua estreia, em 1973, no programa Chico City, o quadro do Pantaleão, objeto deste
estudo, era composto por histórias independentes entre si, baseadas, na maioria das vezes, na
seguinte estrutura: uma ou mais pessoas chegavam à casa do coronel para ouvir suas
narrativas inverossímeis sempre sob o atestado de veracidade de Terta e com as intervenções
de Pedro Bó.
196
Na próxima seção deste artigo, observaremos uma das dezenove histórias de Pantaleão
Pereira Peixoto e como se estrutura a relação entre os personagens deste quadro por meio de
uma análise de um conto do livro É mentira, Terta?.
O conto
O conto eleito, aqui, chama-se O Boi Bozó e o Alazão Brioso de cujas capacidades só duvida
quem é besta — coisa que não é o seu caso. O título já apresenta uma nova possibilidade de
interpretação para o causo que virá a ser narrado, o da dúvida, no entanto, a credibilidade do
produtor da narrativa é dada como certa em relação à opinião de quem é considerado “besta”,
segundo o título do capítulo.
O capítulo retrata a ida do personagem João Inácio à casa do Coronel Pantaleão para solicitar
ajuda na busca do seu melhor touro que se perdeu na caatinga, vegetação típica no nordeste
brasileiro.
O coronel, por conta da sua saúde, problema de reumatismo, diz ao solicitante não poder
ajudar. No entanto, no decorrer do diálogo um garoto anuncia que o touro retornou ao seu
local de origem. A volta do touro deu-se como motivo para comemoração e mote para
Pantaleão contar uma de suas inúmeras façanhas, a do Boi Bozó e o Alazão Brioso.
Segundo Pantaleão, o boi era um lendário valente que ninguém conseguia pegar, desta forma,
foi convidado a laçá-lo. Assim, pegou o seu alazão, um cavalo com o nome Brioso, cercou-o e
correu atrás do boi, em alta velocidade, até chegar à cidade do Rio de Janeiro, no entanto, no
primeiro sinal vermelho, o Boi, por obediência às normas de trânsito, parou.
Assim, Pantaleão amarrou uma corda no pescoço do bovino e percebeu que o cavalo que
montara estava frio, morrera há mais de cinquenta quilômetros antes de chegar à capital
carioca, chegou “por embalo”, uma forma de inércia. Esse cavalo, segundo Pantaleão, até hoje
está na frente do jóquei da capital carioca como estátua.
Pantaleão Pereira Peixoto é o herói da façanha narrada por ele próprio. Pode-se dizer que
mente para seu próprio benefício, manter seu prestígio na comunidade (GOFFMAN, 1993).
Através de sua exposição, tenta convencer o outro participante da interação, João Inácio, e o
leitor da existência de uma realidade ilusória.
O protagonista dá esperança, ao interlocutor, na sua figura de herói e de narrador de histórias
surpreendentes. A fórmula escolhida por Pantaleão em suas histórias é: da trágica situação
tem uma solução inesperada que só alguém com características distintivas de todos os
cidadãos da comunidade conseguirá solucionar (KOTHE, 1987.).
Não é possível notar insegurança do narrador criado por Anysio. Ao narrar as aventuras de
Peixoto descreve a ação com muitos detalhes e compartilha de informações que parecem ser
corriqueiras no ambiente que o protagonista convive. O narrador é consciente dessa
deslealdade com o leitor e com os outros personagens-interlocutores e acoberta o
protagonista sobre todas as questões e dúvidas que podem surgir.
197
“Amestrador de cavalhadas incontáveis, rei na rédea, um deus na sela, fazendo o cavalo trotar
ou galopar pelo lugar que deseje” (ANYSIO, 1973). Na esteira de um conjunto atributos à
Pantaleão, o narrador tenta ilustrar a ideia do protagonista cheio de virtudes, este herói é
como um ídolo da comunidade que consegue ultrapassar todas as leis da natureza.
Suas histórias se encontram como uma forma de rebelião contra o objetivo da ordem da
realidade do leitor e do seu repertório. Pode ser percebida, aos olhos do leitor, que um
homem sobre um cavalo morto não conseguiria em alta velocidade percorrer tal distância.
No entanto, se este leitor é também telespectador do humorístico de Anysio, Chico City, ativa
modelos mentais (VIN DIJK, 2012) referentes ao seu repertório, e a sua leitura partirá de
conhecimentos que já estão internalizados: Pantaleão é um personagem humorístico e
apresenta um desvio, no programa humorístico ele é um mentiroso. Assim o leitor participa do
acordo ficcional (ECO, 1994) proposto por Anysio.
As mentiras do coronel se transformam em algo risível para este leitor. Para Bergson (1991),
rimos de um desvio, no entanto, rimos mais ainda quando se tem o conhecimento da origem
desse desvio e ele se constrói diante, gradativamente e com maior intensidade.
A história revela mecanismos subjacentes à realidade dos habitantes de Chico City, uma cidade
cujas conquistas científicas são os feitos do seu mais célebre personagem, Pantaleão, e as suas
capacidades intelectuais contribuem para a promoção do personagem perante eles. O
entretenimento dos moradores é feito dentro de uma atmosfera informal, em narrativas orais
e conversas pessoais desse protagonista no alpendre da sua casa.
Partindo da concepção, formula por Gumperz (1999), de que os participantes da interação
produzem pistas de contextualização em que se posicionam de maneira estratégica e
delimitam as interpretações de seus enunciados de acordo com seus objetivos, Pantaleão e o
narrador constroem suas narrativas estabelecendo mecanismos em que se podem encontrar
pistas no mundo real, mesmo que, correndo contra as leis naturais, e se o leitor desconfiar é
“besta”.
Como na exposição do protagonista em que a estátua do cavalo na frente do Jóquei Clube do
Rio de Janeiro é o cavalo morto, pode-se: 1) dar esperança ao leitor que essa história pode não
ser percebida como falsa, já que o personagem deixa claro ao leitor que no mundo real ainda
existem pistas de contextualização para veracidade do causo e este acredita nele; 2) Rir, já
que, utilizando a conceituação de Bergson (1991), rimos dos ouvintes da prosa de Pantaleão
por estarmos cientes do arranjo mecânico cujo, estes são manipulados pelo coronel por meio
de suas mentiras.
Dentro do conto o único registro textual de dúvida sobre a veracidade de sua história está em
“confirmou João Inácio, titubeando”: o interlocutor titubeou, não discordou, mas, logo, a
mulher do protagonista atestou o fato. Deve-se dizer que as histórias de Pantaleão podem ser
verossímeis aos olhos dos interlocutores, esta interpretação é possível.
Como uma forma de expor suas histórias e não precisar prová-las, a sua idade avançada é um
mecanismo usado com astúcia na construção do personagem e evita a investigação dos
interlocutores na provação de sua narrativa oral. Uma das estratégias ativadas por Pantaleão.
198
Também utilizada na construção do risível por Anysio, já que o tipo é um estereótipo do idoso
que conta mentiras, causando o riso.
Pantaleão narra suas histórias, sempre após o pedido de algum habitante da sua cidade e,
desta forma, o personagem desenvolve seu causo retomando o tema relacionado ao diálogo já
iniciado.
Com o causo que conta põe a prova sua narrativa sob um julgamento da compreensão do
interlocutor-personagem que tem seu mecanismo de veracidade garantido sempre em um dos
participantes da interação, engajada no encontro e disposta a concordar com a lorota do
produtor e marido: Tertuliana, a Dona Terta.
“Foi Dona Terta quem lembrou, porque Pantaleão não é homem de dar importância às coisas
que lhe sucedem”, além de incentivá-lo, Terta não desmente seu marido e assume seu papel
na interação. Com o objetivo de prestar uma utilidade pública aos moradores que vivem no
alpendre da sua casa não atribuindo sentido negativo a imagem do marido. Ciente do papel
assumido, a personagem testemunha a favor do esposo.
O protagonista é submerso pelo juízo do leitor a fim de identificá-lo como um herói ou como
um exímio fazedor de lorotas. Apesar da respeitabilidade que há em Chico City em relação à
Pantaleão e a relação harmoniosa que o coronel estabelece com os outros cidadãos da
pequena cidade e com sua mulher, o personagem se relaciona insultuosamente apenas com
um personagem: Pedro Bó.
A relação entre Pedro Bó e Pantaleão destaca-se por uma diferença notável dos diálogos de
Peixoto com os moradores do município. Empurra-o, sempre, de escanteio após qualquer
intervenção do rapaz. Neste sentido, na próxima seção procuraremos entender, por meio do
modelo de análise proposto por Brown e Levinson (1987) em relação à cortesia verbal, como o
sentido humorístico é construído através da sua desconstrução.
Não, Pedro Bó
Selecionamos, então, as três interrupções feitas pelo personagem Pedro Bó enquanto o
personagem Pantaleão possuía o turno de fala no conto. Propomos ver, no contexto em
questão, como se dão estas respostas.
A interação no conto se constitui, assim como nos esquetes humorísticos, de um ajuntamento
parcialmente focado, conceito de Goffman (2010), ou seja, “ocorre quando dois ou mais
indivíduos estendem uma licença comunicativa especial mutuamente e sustentam um tipo
especial de atividade mútua que pode excluir outros presentes na situação” (p. 95).
Esta questão nos é cara neste estudo (o da exclusão) já que é permitido ao Pantaleão o
mecanismo da proteção, não somente de face, mas a proteção no sentido da “possibilidade de
proteger o conteúdo conversacional do ajuntamento como um todo” (Goffman, 2010, p. 192).
Apesar de descrições do narrador que indicam um comportamento de uma demência em
Pedro Bó, a interação analisada é efetivada entre pessoas conscientes da presença imediata do
outro.
199
Brown e Levinson (1987), em sua análise do campo da cortesia, afirmam que para a polidez
positiva podemos utilizar algumas estratégias, como a manifestação de atenção ao
interlocutor e a busca de acordo com o interlocutor, repetindo parte do que ele diz, para
mostrar que o entende e aprova. E é o que Pedro Bó faz, vejamos os diálogos:
(1)
— O touro voltou, né?
— Voltou não, Pedro Bó. Ele veio só dar um recado, mas já vai pra caatinga
de novo. Pedro Bó, se eu te batizar, eu quero ter o rabo do cão nascendo em
mim. Tu vai morrer pagão!
(2)
— Só ele pega esse boi.
— E vieram me buscar, Seu João.
— Pra pegar o boi?
— Não, Pedro Bó. Pra pegar um vapor e ir pra Alemanha. Mas será o
tinhoso? Faz meia hora que só se fala no boi e tu vem me perguntar uma
pergunta besta dessas? Hoje você dorme sem cear, pra aprender a não
perguntar leseira.
(3)
O boi Bozó na frente. . .
__ . . .e eu atrás, Seu João Inácio.
— A cavalo?
— Não, Pedro Bó. A cavalo, não. Eu ia montado em teu pai, que, pra mim,
não tem montaria melhor do que teu pai.
Podemos considerar que Pedro Bó, a priori, não falta com cortesia com Pantaleão. Ao
contrário, ele utilizou as regras de polidez corretamente. No entanto, devemos, como já foi
dito, considerar os papeis sociais que são atribuídos, o contexto e o objetivo da interação.
Pantaleão é hierarquicamente superior a Pedro Bó e a qualquer da cidade de Chico City, há um
grau alto de firmeza na relação. Goffman (2012), opõe os conceitos de firmeza e frouxidão, se
referem ao grau de descontração que o ator pode ter a depender do ambiente social em que
está inserido.
Apesar de ser uma conversa informal, mediado por meio de um causo, Pantaleão tem apenas
Terta como testemunha da sua mentira e precisa manter João Inácio engajado em sua
conversa.
Pedro Bó ao interromper Pantaleão nessa unidade de participação, não reconhece o contexto
e o seu papel. E as expectativas do Pantaleão em relação a ele são verbalizadas na ofensa.
Assim, marca sua agressividade quebrando a expectativa e, neste sentido, estabelece um ato
de não cortesia, ou seja, ameaça a face positiva de Pedro Bó o reprimindo.
Percebe-se a presença nos três diálogos do bordão “Não, Pedro Bó”, o consideramos como
uma ironia, que carrega uma carga risível, segundo Propp (1992, p.119). Além disso, ativa o
200
repertório daquele leitor que também é telespectador, causando um riso maior. E se constitui,
também, como um ato que ameaça a face positiva do Pedro Bó e reitera a condição de
autoridade de Pantaleão. Novamente, não é utilizado recursos de cortesia linguística por parte
do coronel.
Na sequência Pantaleão apresenta um ato voluntário de infração por meio de um ato
malicioso (GOFFMAN, 2012) por meio das palavras ofensivas ditas por ele de maneira
consciente. O ataque por meio da malícia, ou seja, uma clara intenção de provocar um insulto
se dá com o efeito risível.
Podemos afirmar que estes textos são estruturados por meio de piadas e adequam-se a
formulação de “linguagem da surpresa”, proposto por Gil (1991): estabelecem-se como
pequenas narrativas, dialogais, própria do gênero piada enlatada (em termos de adequação
enunciativa), e possuem um antecedente e um consequente. O antecedente prepara a piada e
o consequente conclui com uma informação que estava implícita no primeiro momento. A
revelação do risível se dá pelo mesmo gatilho (POSSENTI, 1998).
No caso dos diálogos acima, a surpresa leva ao consequente por relação de oposição ao
antecedente, mas não na oposição de frames, mas, sim, no grau de cortesia estabelecido nos
momentos. Há uma mudança abrupta para um discurso descortês por meio de um gatilho.
Considerações Finais
O texto literário desenvolvido por Chico Anysio apresenta interações semelhantes aos da
narrativa televisual, aproximada mais ainda por uma estrutura marcada por marcas de
oralidade e piadas conversacionais. Sendo assim, as interações presentes no conto analisado
assemelham-se às características apresentadas nos esquetes humorísticos da atração
televisiva.
A iniciativa de Chico Anysio em transformar o sucesso de um esquete humorístico em um livro
produziu um produto peculiar. Considerando a popularidade de Chico Anysio, na época do
lançamento, e a hegemonia da emissora criou-se um produto que ajudou manter o
personagem Pantaleão sob holofotes.
A forma de consumir os esquetes humorísticos naquele período é muito diferente do
momento atual, a repetição de modelos fixos de esquetes humorísticos e a presença de
bordões não eram refutadas pela crítica, mas visto como uma forma de fidelizar o público aos
tipos humorísticos.
Desta forma, o telespectador e o leitor sabiam como iria ser desenvolvida a história, no
entanto não saberia qual seria a mentira que seria contada pelo coronel, na televisão e no
livro, e quais seriam as ofensas que o Pantaleão faria ao Pedro Bó. A narrativa da surpresa se
mantem exatamente nestas lacunas transformando o esquete e o conto em textos risíveis.
Assim, podemos considerar o livro É mentira, Terta? uma estratégia transmídia (LOPES, 2013)
na produção humorística televisual, já que o livro reverbera, de certa forma, um interesse no
telespectador para a atração televisiva.
201
Anexo
ANYSIO, Chico. É mentira, Terta? 1ª ed. São Paulo: Rocco, 1973.
O BOI BOZÓ E O ALAZÃO BRIOSO DE CUJAS CAPACIDADES SÓ DUVIDA QUEM É BESTA — COISA QUE NÃO É O SEU CASO O
NORDESTE É TERRA DE MUITOS VAQUEIROS, mas nenhum deles com a competência e o talento de Pantaleão Pereira Peixoto,
montador escolado, cabra que conhece as manhas e os segredos de qualquer montaria. Amestrador de cavalhadas incontáveis, rei
na rédea, um deus na sela, fazendo o cavalo trotar ou galopar pelo lugar que deseje.
Por saber dessas virtudes foi a ele que João Inácio recorreu no dia em que seu touro melhor perdeu-se na caatinga. Quem, por
aquelas bandas, seria capaz de achar o animal?
— Não posso, não, seu João Inácio — desculpou-se Pantaleão, mordiscando o pé-de-moleque que Terta fizera para a merenda.
— Mas, Seu Pantaleão, se o senhor não for, quem é que pode me ajudar?
João Inácio lamentava a negativa de Pantaleão. Dependia exclusivamente dele
para ter de volta seu touro preferido, que cobria as vacas de modo perfeito, garantindo uma melhoria de raça que já lhe valera
alguns prêmios na capital.
— Se não fosse esse reumatismo nas costas, eu pegava essa empreitada, mas do jeito que eu estou, até a cama incomoda.
João Inácio sabia que nessas horas era inútil insistir. Teria que dar o touro por perdido ou esperar o milagre dele voltar sozinho.
Foi o que se deu. Um menino gritava, do alto da mula, lá na porteira.
— O touro voltou, Seu João Inácio, o touro voltou!
Voltou o sorriso à cara do dono do bicho. Voltou a tranqüilidade ao alpendre de Pantaleão. Seu João Inácio até aceitou o bolo de
milho que Dona Terta lhe estendia no prato pequeno de beirada quebrada.
— Esse touro ia-me fazer muita falta.
— Pra mim ele voltou só porque sentiu que o senhor vinha aqui — disse Dona Terta, pegando o bastidor e tomando seu lugar na
cadeira de sempre. — O touro não sabia que Pantaleão não ia e, com medo, resolveu se entregar, pensando que ele fosse.
— O touro voltou, né?
— Voltou não, Pedro Bó. Ele veio só dar um recado, mas já vai pra caatinga de novo. Pedro Bó, se eu te batizar, eu quero ter o rabo
do cão nascendo em mim. Tu vai morrer pagão!
A volta do touro era motivo para comemoração. E era ainda mais. Era tema para uma estória das mais incríveis. Foi Dona Terta
quem lembrou, porque Pantaleão não é homem de dar importância às coisas que lhe sucedem.
— O derradeiro boi que Pantaleão pegou foi o boi Bozó. Foi o que deu mais
trabalho. Conte o causo pra Seu João Inácio.
— O homem lá quer saber disso? Ele quer é ir ver o boi dele, saber se chegou bem, se tudo tá em ordem, não é, não, Seu João
Inácio?
Podia ser, seria lógico que fosse, mas quem pode resistir à tentação de escutar uma estória importante como a do boi Bozó? E era
estória verdadeira, contada por quem a viveu: Pantaleão Pereira Peixoto.
— Pois bom...
No sertão não havia quem já não tivesse escutado nesse boi Bozó. O bicho tinha parte com o cão, havia quem afirmasse. Nenhum
vaqueiro, nem mesmo os campeões nas vaquejadas de Salgueiro, tinha conseguido arrancar do mato o boi valente, tinhoso como o
capeta, sabido como fiscal. Era um boi que pertencia a um coronelão cearense e, além do medo do boi, havia o respeito ao animal
que fazia parte da estima maior do coronel.
— Meu boi Bozó é meu tesouro — o coronel sempre dizia.
O diabo é que vez por outra o boi se soltava e tomava o mato. Era o caos. Quem tinha coragem e tutano de o trazer de volta?
Fugindo dos cercos, cortando com os dentes a corda do laço, derrubando vaqueiros e escoiceando os atrevidos que dele se
aproximavam, o boi Bozó só saía do mato quando bem lhe apetecia, como a dizer "saio porque quero, não tou saindo a mando de
safado nenhum".
Mas naquele dia havia um homem da cidade que tinha ido ao sertão especialmente para conhecer o boi Bozó, tão comentado, tão
famoso, o boi preferido do coronel seu amigo.
— Dr. Faustino está aí, e eu quero o boi Bozó no curral, custe o que custar.
Durante oito horas os homens da fazenda cercaram o boi, prepararam-lhe
armadilhas, tentaram laçá-lo, encaminhá-lo para a fazenda, mas tudo restou inútil. Um deles, então, lembrou de Pantaleão.
— Só ele pega esse boi.
— E vieram me buscar, Seu João.
— Pra pegar o boi?
— Não, Pedro Bó. Pra pegar um vapor e ir pra Alemanha. Mas será o tinhoso? Faz meia hora que só se fala no boi e tu vem me
perguntar uma pergunta besta dessas? Hoje você dorme sem cear, pra aprender a não perguntar leseira.
— Conte, meu velho. Vieram lhe buscar pra pegar o boi Bozó.
— Pois bom.
Pantaleão montou no alazão de patas brancas e pescoço empinado, alazão arisco, que sabia de cor os caminhos do mato. Ganhou
o mundo. Andou um dia e uma noite.
Na manhã do outro dia, atrás de uma jurema, estava o bicho. Malhado de branco, baba no canto da boca, olhar acendido pelo ódio
que lhe dava a busca que sofria. Os olhares se encontraram. Pantaleão sabia que o boi Bozó não era igual os bois idiotas que se
deixavam pegar com facilidade. Sabia das suas manhas, da sua violência e, principalmente, não desconhecia o ódio que dava no
bicho essa conversa de o cercarem.
O alazão mal respirava, para não chamar a atenção. Pantaleão fez o cavalo
circundar a jurema, querendo pegar o boi pelas costas. Inútil. Como um saci, com leveza de um coelho, o boi Bozó deu um pinote e
sumiu de vista. Galopava como um potro.
Depois de o encontrar não seria Pantaleão o homem que o perderia. Na poeira do boi o alazão galopou. A distância não se
encurtava, mas também não crescia. E Pantaleão não perdia de vista o boi Bozó, pernas enlaçadas em Brioso, seu alazão de
confiança.
O boi subiu o Morro da Estrela com o alazão Brioso em galope farto atrás dele. E corta campina, corta catinga, dobra desvio, pega
202
caminho, atravessa rio, pula cerca, passa ponte, passa estrada. O boi Bozó não parava, mas a distância que o separava do alazão
Brioso já era a metade. Ninguém jamais poderá calcular a velocidade em que iam. O boi Bozó na frente. . .
__ . . .e eu atrás, Seu João Inácio.
— A cavalo?
— Não, Pedro Bó. A cavalo, não. Eu ia montado em teu pai, que, pra mim, não tem montaria melhor do que teu pai. Terta, arme
minha rede que eu vou me deitar. Não conto mais nada.
Ameaçou levantar-se, a mulher o conteve.
— Conte, meu velho. Pedro Bó perguntou sem querer.
— Conte — pediu João Inácio, muito interessado.
— Pois bom!
A distância entre o boi Bozó e o alazão Brioso já não chegava a vinte metros. Foi quando Pantaleão deu fé que estavam na cidade
do Rio de Janeiro. O povo corria para as casas e se escondia nas esquinas. Ninguém entendia aquela coisa inacreditável: um boi
malhado voando pelas ruas, seguido por um alazão com um cavaleiro em cima, em velocidade ainda maior.
— De mim você não escapa, seu boi cachorro!
Pantaleão tinha a honra posta em jogo. Os vaqueiros, no sertão, certamente
estariam apostando se ele traria ou não o boi Bozó, arreliado, bicho mateiro.
Numa esquina o sinal fechou. Boi Bozó era danado, mas era obediente —
palavras de Pantaleão. Parou no sinal e, cansado como estava, deixou que corda lhe fosse passada pelo pescoço.
— Pronto. Embarque no Lóide — orientou Pantaleão a um cidadão que se
prontificara a ajudá-lo. — Vai voltar de navio, que de pés ele não agüenta a viagem de volta.
O boi Bozó foi levado para ser devolvido ao dono. Pantaleão abraçou-se ao
cavalo. O alazão Brioso, mais brioso do que o nome, estava frio. Esquisitamente frio.
— Morreu naquela hora, Seu Pantaleão? — perguntou Seu João Inácio, já se preparando para ir embora.
— Nada. Tinha morrido há mais de cinqüenta quilômetros. O resto ele veio no embalo. Ah, Brioso, Brioso, que saudade eu tenho
do meu cavalinho.
— Esse cavalo, Seu Pantaleão. . .
— Não conhece ele não? Já viu, na frente do Jóquei Clube lá no Rio? Não tem um cavalo lá, em pé, todo ajeitado?
— Tem. . . tem — confirmou João Inácio, titubeando.
— Diga pra ele, Terta, que cavalo é aquele.
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Memória Globo http://memoriaglobo.globo.com/
204
Critérios de adaptabilidade: proposta de criação de fatores de análise para
transição do meio escrito para o audiovisual
Daniel De Thomaz, Universidade Presbiteriana Mackenzie, [email protected]
Resumo
Este artigo trata do estudo sobre o processo de adaptação de linguagens que tem como o
objetivo analisar a transição do texto escrito ao audiovisual por meio da tradução
intersemiótica (JAKOBSON, 1969). Enfocamos especificamente os contos da série de "A Vida
Como Ela É....", de Nelson Rodrigues, inicialmente publicados em jornal nos anos 50 e
posteriormente adaptados para a televisão nos 90. A escolha do tema justifica-se pelo
contínuo aumento no volume de produções literárias adaptadas para novos suportes
eletrônicos e diferentes públicos. Optando pela metodologia teórico-prática, esta pesquisa
consiste, sobretudo, numa análise dos conteúdos originais (escritos) e adaptados (televisivos)
buscando encontrar conjunções, disjunções e transmutações na transição de uma forma a
outra. Esta vem acompanhada de ampla pesquisa bibliográfica de modo a proporcionar uma
reflexão criteriosa sobre a potencialidade de autores e obras em se adaptarem a novas
linguagens e meios. Para isso, em nossos objetivos específicos, propusemos a criação de
categorias de análise, ou fatores de adaptabilidade, a saber, a criatividade receptiva, a
variabilidade de formatos, temática de ruptura e fenda narrativa.
Palavras-chave: adaptação; tradução; literário; audiovisual.
Abstact
This article deals with the study of the adaptation process languages that has as objective to
analyze the transition from written text to the audiovisual through intersemiotic translation
(Jakobson, 1969). Specifically we focus on the tales from the 'Life As It Is .... "by Nelson
Rodrigues, originally published in a newspaper in the 50s and later adapted for television in 90.
The choice of theme is justified by the continuing increase in volume of literary productions
adapted to different audiences and new electronic media. Opting for the theoretical and
practical methodology, this research is above all an analysis of original content (written) and
adapted (television) trying to find conjunctions, disjunctions and transmutations in the
transition from one form to another. This is accompanied by extensive literature review to
provide a thorough reflection on the potential of authors and works to adapt to new languages
and media. For this, in our specific objectives, we proposed the creation of categories of
analysis, or adaptability factors, namely the receptive creativity, variability of shapes, break of
thematic and narrative slot.
Keywords: adaptation; translation; literary; audiovisual.
Adaptador e adaptado
205
Antes da adaptação de A Vida Como Ela É..., nos anos 90, Nelson Rodrigues já era um nome
associado ao meio audiovisual. Por isso, é importante salientar a inserção de sua obra no
panorama cultural brasileiro, na nossa memória imagética coletiva. O jornalista sempre foi um
articulador de suas produções junto às grandes massas, enunciando diversos temas sobre o
comportamento da sociedade brasileira na medida em que trazia à tona as tensões morais de
suas criações. Primeiramente como jornalista, em suas colunas e crônicas, depois como
ficcionista, autor de contos, romances e de 17 peças de teatro. Em seguida, na
transcodificação de sua obra para TV e cinema. Como bom artesão das palavras, Nelson
Rodrigues também produziu para televisão, muitas vezes adaptando sua própria obra.
Escreveu diálogos e cenas de telenovelas, quase todas tendo como referências suas próprias
peças teatrais. A “auto-adaptação” de sua obra começou quase que junto com a própria
televisão.
Quando nos propusemos a pesquisar material bibliográfico sobre adaptação, em nosso caso
específico, houve uma certa dificuldade. Inicialmente, porque a maioria dos livros e artigos
objetivam discutir a adaptação de romances para o cinema. Foi prática comum, desde o início
do século passado (cinema), e a partir da metade dele (televisão), o empréstimo do status
cultural de grandes dramaturgos e escritores para a construção da linguagem desses suportes
manipuladores de imagens e sons em sincronia. Até que se constituíssem formas próprias de
expressão, consagradas junto ao público, essas constantes releituras por meio das tecnologias
audiovisuais, sempre recorreram aos cânones da literatura. Ainda é muito raro achar um
estudo específico que estabeleça comparativos entre o suporte impresso de uma curta história
(conto, por exemplo), publicado em jornal ou em livro (muito menos nos dois), e um formato
específico de um programa de televisão (magazine, minissérie, seriado, especial etc.). Raros
são os estudos que investigam essas especificidades. Destaca-se, no entanto, no Brasil, as
análises de Ana Maria Balogh, e, no Canadá, Linda Hutcheon, ambas da área de Letras, às quais
recorreremos constantemente quando mencionarmos os conceitos e os processos
adaptativos. Talvez por esse tipo de produção televisiva adaptada ser considerada “menor”49,
ou pelo fato de que adaptar um conto seja menos “desafiador” do que um romance. A
condensação narrativa, a rapidez de desenvolvimento, o alcance limitado de sua ambição
demonstrativa, evocadora ou satírica, são razões enumeradas por Mitterand50, para justificar
um menor risco de perda no caminho da adaptação. Não que adaptar um conto esteja ao
alcance de qualquer um, mas o risco do adaptador “picotar” o romance de partida, é muito
maior, conforme o especialista justifica abaixo:
Mas o romance, em suas manifestações mais rematadas, entra num jogo
completamente diferente de dimensões, combinações, significados e
valores [em relação ao conto]. E é nesse nível de dificuldade, na passagem
de uma arte para outra, que é temerário “meter a tesoura”. (2014, p.11)
A esses diversos motivos fomos obrigados a recorrer à linguagem que mais se aproximava do
nosso objeto, ou seja, a adaptação audiovisual cinematográfica. Considerando as condições
49
Geralmente, autores se referem ao meio colocando a palavra “televisão” depois de “cinema,
teatro” e antes de “etc.”
50
Miterand, Henri. 100 filmes: da literatura para o cinema. Tradução de Clóvis Marques. 1ª
Edição Rio de Janeiro: Best Seller, 2014. (p. 10-11)
206
especiais de produção da série A Vida Como ela É..., captada por câmeras de cinema, gravada
em filme de 35 mm, e não em fita eletromagnética (como a maioria dos programas de
televisão), acreditamos que, enquanto conteúdo nuclear, o produto final independente do
meio onde é distribuído. Isso porque é o uso da linguagem (audiovisual, no caso) o ponto em
comum. Já o aspecto da adaptação ser na forma de um conto seriado irá implicar, sim, no
meio (TV). Diferentemente do cinema, que trabalha com obras únicas e eventualmente uma a
quatro continuações, a televisão, por sua natureza instantânea, de retorno imediato a partir
de produção serializada, tem a capacidade de dilatar ao máximo as narrativas e multiplicar a
quantidade de filhotes da obra original ao longo de sua programação.
Também é notória a quantidade de material que analisa a originalidade da obra adaptada ou a
inviolabilidade da obra original. Sabemos que, na medida em que algo deixa de manter sua
forma original, a sua essência pode permanecer, mas seu duplo adaptado se modifica
profundamente. E é isso que nos interessa discutir daqui para frente, pelo menos em três
possibilidades: as aproximações, os distanciamentos e as transformações radicais que ocorrem
no processo de adaptação de linguagens e quanto esses elementos interferem nos fatores de
adaptabilidade de um suporte a outro. Antes, porém, vamos alinhavar algumas semelhanças e
diferenças nas características da palavra escrita do conto e do episódio audiovisual, a começar
pela concepção narrativa, compreendida aqui como o arranjo da disposição dos
acontecimentos e das ações das personagens. A narrativa pode ser considerada o eixo comum
da literatura, do drama e do cinema, do episódio de televisão ainda que muitos filmes,
programas, peças e romances apresentem exatamente a intenção de promover uma espécie
de desmanche do texto original. Como vimos, a teledramaturgia é a arte da ação e encenação,
espécie de ação vivificada, captada por câmeras, montada e distribuída à audiência massiva.
Ela reúne fragmentos desenvolvidos independentemente, embalando-os em um conteúdo
moldado em um determinado formato televisivo. Já a literatura é um meio onde a imaginação
do leitor constrói as imagens, já que é através do contato com as palavras que ele chegará até
elas, formulando assim o seu exclusivo universo visual da ficção. Há mais liberdade na
construção do mundo descrito, contado, pelo autor. Já o cinema, a TV, diferentemente,
constituem-se formas ficcionais onde a imagetização já está presente na própria construção
poética do autor ou, no nosso caso, os co-autores, ou autor coletivo da adaptação audiovisual.
Voltando ao cinema como linguagem, Umberto Eco defende que ele se serve de imagens,
enquanto a literatura se serve de “palavras-conceito”. O autor italiano elucida melhor a
questão ao explicar que “no primeiro caso (o da literatura) o fruidor é estimulado por um signo
lingüístico recebido de forma sensível, mas usufruído apenas por meio de uma operação mais
complexa, embora imediata, de exploração do ‘campo semântico’ conexo com aquele signo,
de modo que, acompanhado pelos dados contextuais, o signo deixará por evocar na acepção
apropriada da palavra, uma série de imagens capazes de estimular emotivamente o
receptor”51. As adaptações mais comumente consideradas são as que passam do modo contar
para o mostrar, geralmente do meio impresso para o performativo. A adaptação de um meio
51
ECO, Umberto. A Definição da Arte. Trad. de José Mendes Ferreira. Lisboa: Lisboa,
1972, p. 189.
207
ao outro terá o papel de capturar e orientar a interpretação da história proposta, orientandonos para a percepção direta, conforme explica Hutcheon:
No modo contar, na literatura narrativa, por exemplo, nosso engajamento
começa no campo da imaginação, que é simultaneamente controlado pelas
palavras que conduzem o texto, e liberado dos limites impostos pelo
auditivo e visual (...) Mas na travessia para o modo mostrar, como em filmes
e adaptações teatrais, somos capturados por uma história inexorável, que
segue adiante. Além disso, passamos da adaptação para o domínio da
percepção direta, com sua mistura tanto de detalhe quanto de foco mais
amplo. (2013, p.48).
Outra semelhança subjacente a essas duas produções é o foco narrativo. Comum entre texto
impresso e episódio de televisão, ele é o eixo central da narrativa, que estrutura a fábula e é
perseguida pelo autor. Sua forma poderá variar, mas o foco narrativo não. Veremos
posteriormente que esse elemento comum será mantido em ambas as produções (texto e
audiovisual) com objetivo de realizarmos nossa análise no próximo capítulo.
Em linhas gerais, a adaptação é a repetição sem replicação. As mais comuns, e objeto de nossa
análise, são as que partem de um texto escrito (publicado originalmente em mídia impressa,
como jornais, revistas e livros) para um modo performático, como um conteúdo audiovisual
eletrônico (veiculado em inúmeras mídias como cinema, televisão, DVD, Web e dispositivos
portáteis como tablets e smartphones), uma peça de teatro, jogos interativos eletrônicos e até
parques temáticos. Há sempre um “texto de partida” e um ou muitos duplos adaptados,
lançados isolados ou simultaneamente em diversos suportes midiáticos52, geralmente
atrelados a questões comerciais, como veremos no próximo capítulo. Como na mimese
clássica, a adaptação não é uma cópia, mas um processo de apropriação do material adaptado.
Nas palavras de Hutcheon53, uma adaptação pode ser descrita do seguinte modo: “uma
transposição declarada de uma ou mais obras reconhecíveis; um ato criativo e interpretativo
de apropriação/recuperação; um engajamento intertextual extensivo com a obra adaptada”
(2013, p. 30). Ou seja, uma nova obra, porém atrelada de forma particular a uma ou várias
obras originais. E essa particularidade implica na capacidade criativa do adaptador, na forma
de esculpir a nova obra a partir de um original bruto, conforme comparação de Linda Seger54:
The adaptor is much like the sculptor Michelangelo, who, when asked how
he was able to carve such a beautiful angel, replied, “The angel is caught
inside the stone. I simply carve out everything that isn’t the angel.” The
52
O conceito da narrativa transmidiática, discutido pelo pesquisador norte-americano Henry
Jenkins em seu livro Cultura da Convergência parte do princípio que uma mesma história
pode se desenrolar por meio de múltiplos canais de mídia contribuindo, conforme suas
especificidades, para a boa compreensão do universo narrativo. Esse recurso é muito
utilizado na indústria do entretenimento.
53
HUTCHEON, Linda. Uma Teoria da Adaptação. Tradução de André Cechinel. 2ª
Edição. Florianópolis: Editora da UFSC, 2013.
54
SEGER, Linda. The Art of Adaptation: Turning Fact And Fiction Into Film. Nova York: Owl Books,
2011. (eBook)
208
adaptor is sculpting out everything that isn’t drama, so the intrinsic drama
contained within another medium remains. (SEGER, 2011, pos.194-197)
A adaptação também não é uma paródia ou um plágio. Geralmente, sua identidade é
anunciada abertamente, com avisos como “baseada em” ou “adaptada de”, inclusive por
motivos legais relacionados aos direitos autorais do autor de origem. Esse fator faz dessa
produção algo já conhecido do público. Portanto, a escolha do material adaptado não ocorre
por acaso e sim fruto de uma série de escolhas, conforme enumera Hutcheon:
No ato de adaptar, as escolhas são feitas, com base em diversos fatores,
incluindo convenções de gênero ou mídia, engajamento político e história
pessoal e pública. As decisões são feitas num contexto criativo e
interpretativo que é ideológico, social, histórico, cultural, pessoal e estético.
(2013, p.153)
Todos esses fatores irão interferir no processo de adaptação. Uma adaptação, assim como a
obra adaptada, está sempre inserida em um contexto – um tempo e um espaço, uma
sociedade e uma cultura; ela não existe num vazio. Conforme citamos nos capítulos anteriores,
contextualizando o cenário dos anos 50 aos 90, havia uma série de questões envolvidas que de
certa forma pesaram na escolha de A Vida Como Ela É... para transformar-se em conteúdo
audiovisual televisionado, veiculado, de forma seriada, em programa semanal de televisão.
Tanto aspectos ideológicos quanto estéticos foram preponderantes na passagem de uma
mídia a outra, fazendo com que em seu processo ocorressem recodificações ocasionadas pela
transcodificação de signos convencionados, conforme relaciona Hutcheon:
Em vários casos, por envolver diferentes mídias, as adaptações são
recodificações, ou seja, traduções em forma de transposições
intersemióticas de um sistema de signos (palavras, por exemplo) para outro
(imagens, por exemplo). Isso é tradução, mas num sentido bem específico:
como transmutação ou transcodificação, ou seja, como necessariamente
uma recodificação num novo conjunto de convenções e signos. (2013, p. 40)
Esse caráter de transcodificação, passa necessariamente por um processo de ajuste. O
conhecido roteirista Syd Field55, com larga experiência em adaptar romances, peças de teatro,
artigos de jornais ou revistas para audiovisual (principalmente, cinema), inclui diversas vezes a
palavra “mudança” em seu manual ao afirmar que a adaptação é definida como a habilidade
de “fazer corresponder ou adequar por mudança ou ajuste – modificando alguma coisa para
criar uma mudança de estrutura, função e forma, que produz uma melhor adequação”. Em sua
visão, está descartada a superposição do roteiro sobre o livro, ou vice-versa. Está, sim, sendo
operada uma troca irreversível. Troca-se um suporte por outro, com todas as particularidades
que os caracterizam. Para ele, o roteiro é o primeiro meio para que essa alquimia se realize
posteriormente.
Do homogêneo ao sincrético (re)homogeneizado
Dentro dessa perspectiva da troca, da mudança formal, nos apoiaremos no conceito de Roman
Jakobson sobre tradução. Ele propõe, basicamente, três categorias, entre as quais
destacaremos a tradução intersemiótica:
55
FIELD, Syd. Manual do Roteiro – os fundamentos do texto cinematográfico. Tradução de
Álvaro Ramos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p 174.
209
A tradução intralingual ou reformulação ("rewording") consiste na
interpretação de signos verbais por meio de outros signos da mesma língua.
A tradução interlingual ou tradução propriamente dita consiste na
interpretação dos signos verbais por meio de outra língua. A tradução
intersemiótica ou transmutação consiste na interpretação dos signos verbais
por meio de sistemas de signos não-verbais. (JAKOBSON, 1969, p. 64-65,
grifos nossos)
Na passagem do texto literário ao fílmico, ao televisual, a tradução torna-se adaptação. O
processo de adaptação, ou tradução intersemiótica, pressupõe a passagem de um texto
caracterizado por uma substância da expressão homogênea - a palavra - para um texto na qual
convivem substâncias de expressão heterogêneas, tanto no que concerne ao visual quanto ao
sonoro. A tradução intersemiótica pressupõe a relação do verbal e do não-verbal. A matéria
visual pode ser dividida em imagem fixa, imagem em movimento e palavra escrita; e a matéria
sonora em música, ruído e palavra falada. Recorremos, novamente, a Linda Hutcheon:
Na passagem do contar para o mostrar, a adaptação performativa deve
dramatizar a descrição e a narração; além disso, os pensamentos
representados devem ser transcodificados para a fala, ações, sons e
imagens visuais. Conflitos e diferenças ideológicas entre os personagens
devem tornar-se visíveis e audíveis. (2013, p. 69)
Ver e ouvir o texto. Dar visibilidade e substância sonora à palavra escrita e depois reunir esses
elementos em um construto síncrono audiovisual é o papel da adaptação. Nesse sincretismo,
destaca-se o trabalho do roteirista, aquele profissional que, a partir do texto base, criará a
ação, os diálogos e as cenas que se desenvolverão no tempo-espaço da narrativa audiovisual
adaptada. Seu produto, o roteiro, também é um texto. Porém, essa materialidade de origem
desaparecerá para permitir sua realização. Seu esforço está na forma como o roteiro manterá
a essência da obra adaptada. Um dos fatores que poderá contribuir é a identificação entre
roteirista e autor. Para Euclydes Marinho, adaptador da série aqui pesquisada, é vital que haja
uma admiração pessoal do roteirista pelo autor a ser adaptado.
Outro consagrado roteirista, Doc Comparato, descreve os primeiros passos na construção de
um roteiro, a partir da construção dos diálogos no tempo dramático das cenas:
O tempo dramático é o quanto tempo terá cada cena. Isto é, colocamos os
diálogos nas cenas e por meio deles começamos a dar ao trabalho uma
forma de roteiro. Nessa etapa, completaremos a estrutura com o diálogo.
Então, cada cena terá seu tempo dramático e a sua função dramática. Esse
trabalho já se concretiza no chamado primeiro roteiro. (COMPARATO, 2009,
p. 32)
Portanto, no processo de adaptação, o roteirista é o primeiro tradutor. Um problema
particular da adaptação, e enfrentado no início pelos roteiristas, é comum a todas as mídias: a
dificuldade de representar ou tematizar o desenvolvimento do tempo – algo que pode ser feito
com facilidade na ficção e prosa. Como aponta Pellegrini:
Tratando-se do texto ficcional, é a observação das modificações nas noções
de tempo, espaço, personagem e narrador, estruturantes básicos da forma
210
narrativa, que ajuda a entender um pouco melhor a qualidade e a espessura
dessas modificações (PELLEGRINI, 2003, p. 16).
O trabalho do roteirista não está apenas no interior do texto, na transformação das ações em
falas de atores de carne e osso, mas também a serviço do novo meio no qual o conteúdo será
veiculado. Na adaptação tradicional, o trabalho do roteirista adaptador de TV se faz muito
mais no sentido de criar acréscimos, novos planos e anti-planos narrativos, novos
personagens, muitas vezes novos espaços e tempos. Talvez porque um roteiro lida com as
exterioridades textuais, aquilo que precisa aparecer. Na definição de Field (2001, p. 175), “um
roteiro é uma história contada em imagens, colocada no contexto da estrutura dramática”.
Isso quer dizer que muitas vezes, a partir de um trecho de alguns parágrafos da obra original, o
roteirista poderá multiplicar a narrativa audiovisual em dezenas de cenas, por exemplo, de
acordo com a forma com a qual aquele conteúdo será mostrado, seja obra seriada, seja obra
única. Em outras palavras, a transmutação audiovisual exige, em geral, uma estratégia de
expansão narrativa e discursiva, fator que conta também com a participação do público na
hora de preencher lacunas, conforme comenta Hutcheon:
Durante o processo, inevitavelmente, preenchemos lacunas na adaptação
com informações do texto adaptado. A rigor, os adaptadores contam com
essa habilidade de preencher lacunas quando passam da expansão
discursiva do modo de contar para as limitações de tempo performativo e
espaço de mostrar. (2013, p. 166)
Ao analisar a adaptação de romances brasileiros para minisséries de televisão, Balogh (1996, p.
142) afirma que tanto a recorrência de temas básicos (isotopias) quanto os programas
narrativos que as delineiam são mantidos de uma obra para outra. A fragmentação televisual,
no entanto, faz com que haja, no roteiro, uma consciência mais aguda da organização por
blocos de sentido. Há maior exigência de concentração temática e narrativa no roteiro do que
no romance (p. 150). Sendo assim, ao compararmos as adaptações de textos literários para
plataformas de exibição audiovisual, como a televisão e o cinema, podemos dizer que os
programas, por serem serializados, são muito mais extensos do que as obras fílmicas e a
maioria das obras literárias. Além disso, os programas televisuais são descontínuos, visto que
se fragmentam inúmeras vezes, não apenas nos capítulos ou episódios, mas também nos
vários intervalos da programação, como os comerciais e nas chamadas de outros programas. A
característica principal do meio televisivo, a extensão e a fragmentação, serão a constante
preocupação do roteirista, na medida em que são determinadoras da descontinuidade, pois
tornam os elementos conjuntivos propiciadores da tradução intersemiótica muito mais
necessários, pois são os elementos responsáveis pela coerência e coesão do texto, no caso, o
televisual.
Outra característica que atinge diretamente a passagem do texto literário para outros
formatos de adaptação é o número ilimitado de leituras e possibilidades presentes na
ambiguidade poética que eles carregam. Por isso, é muito difícil traduzir exatamente o que o
texto propõe, uma vez que muito daquilo que se expressa não está nas linhas e sim nas
entrelinhas. Sobre este aspecto subjetivo, Jakobson explica tecnicamente:
Em poesia, as equações verbais são elevadas à categoria de princípio
construtivo do texto. As categorias sintáticas e morfológicas, as raízes, os
211
afixos, os fonemas e seus componentes - em suma, todos os constituintes
do código verbal - são confrontados, justapostos, colocados em relação de
contigüidade de acordo com o princípio da similaridade e do contraste; e
transmitem assim, uma significação própria. A semelhança fonológica é
sentida como um parentesco semântico (JAKOBSON, 1969, p. 72).
Em uma transmutação, a plena intertextualidade entre um texto de partida e seu duplo
adaptado, pode atualizar ou relativizar ambos os textos de alguma forma. Por isso, essa
intraduzibilidade entre eles, na verdade, é resolvida pela recriação, como afirma Jakobson:
Só é possível a transposição criativa: transposição intralingual - de uma
forma poética a outra - transposição interlingual ou, finalmente,
transposição intersemiótica - de um sistema de signos para outro; por
exemplo, da arte verbal para a música, para a dança, para o cinema ou para
a pintura (JAKOBSON, 1969, p. 47)
Essa transposição criativa, no entanto, veste uma nova roupagem, novos signos, porém
acreditamos que algo permanece. Linda Hutcheon recorre ao conceito de palimpsesto, o
pergaminho reutilizável da Antiguidade, para exemplificar a questão:
Como transposição criativa e interpretativa de uma ou mais obras
reconhecíveis, a adaptação é um tipo de palimpsesto extensivo, e com
frequência, ao mesmo tempo, uma transcodificação para um diferente
conjunto de convenções. (2013, p.61, grifos nossos).
Apagar o texto anterior a fim de reutilizá-lo em novo suporte seria o aspecto primordial da
adaptação, que ocorre não apenas por parte do adaptador, mas em uma espécie de acordo
tácito com o público. E esse é um acordo que tem como “cláusula pétrea” a temática. Sendo
assim, podemos concluir que a tradução, ou adaptação, está aprisionada à isotopia básica do
texto original e ao seu foco narrativo, conforme já citamos anteriormente quando
mencionamos as semelhanças entre palavra escrita e audiovisual adaptado. Fora isso, quase
tudo muda. Randal Johnson56 complementa que quando se vai de um sistema para outro, há
uma mudança necessária de valores significantes. O que ele quer dizer é que nessa tradução
que migra a homogeneidade da palavra escrita para o sincretismo do texto adaptado, a nova
produção ganha significância autônoma precisamente de suas inevitáveis e necessárias
divergências da obra original. A autonomia total é impossível pois o texto de partida é uma
espécie de cárcere. Mas é necessário considerar que existem alterações inevitáveis nesse
processo, principalmente pela função poética do texto base, o que irá implicar na recriação de
uma nova narrativa, adaptada à linguagem “de chegada” e em consonância com o meio que a
irá reproduzir, em nosso caso, a televisão, por meio da reconstrução audiovisual. Além disso,
há nessa transição outra adequação gramatical: do aspecto formal da língua às possibilidades
infinitas das imagens. Ainda que Johnson aponte pelo menos cinco tipos de material dentro do
processo cinematográfico – imagens visuais, linguagem verbal oral (diálogo, narração e letras
de música), sons não verbais (ruídos e efeitos sonoros), música e a própria língua escrita
(créditos, títulos e outras escritas) enquanto a literatura costuma trabalhar com apenas uma
delas, a escrita, o audiovisual é um meio imagético. Seu sentido, inclusive, parece extraído dos
56
JOHNSON, Randal. Literatura e Cinema, Diálogo e Recriação: O caso de Vidas
Secas. In
PELLEGRINNI, Tânia (org.). Literatura, Cinema, Televisão. São Paulo: Senac, 2003, p. 46
212
vários sentidos que se estruturam de uma imagem para a outra. Não fosse assim, seria
impossível a existência de sentido dentro de qualquer narrativa audiovisual que não contasse
com as palavras (o que excluiria o cinema mudo e boa parte dos desenhos animados infantis).
Dentro deste contexto, pode-se apontar a soberania, o que não significa dizer exclusividade, da
imagem como meio produtor de sentido como uma potencialidade do meio audiovisual. Já a
imaginação também é tratada de modo diferente. De maneira geral, o audiovisual costuma
trazer tudo pronto: não se evoca a imaginação do espectador, pouco é exigido dele. Por outro
lado, esta mesma característica que retira praticamente qualquer possibilidade de evocação,
confere a essa linguagem a sua potencialidade maior: o mostrar. Ao contrário da palavra
literária, que leva o leitor à transformação mental daquilo que está escrito em imagens (algo
que Flusser cita como sendo a função primordial do texto), e do signo literário, repleto de
significações e cruzamentos concomitantes, a imagem costuma trazer seu fim em si mesma.
Conclusão
O alvorecer do século XXI é marcado pelas adaptações. Podemos destacar, pelo menos, três
exemplos de versões fílmicas de romances em escala global: Harry Potter (J.K. Rowlling), O
Senhor dos Anéis (J.R.R Tolkien) e Crepúsculo (Stephanie Meyer). Poderíamos prosseguir nossa
longa lista com os outros filmes que se sucederam e derivaram dos temas “vampirismo” ou
“fantasia”, explorados por esses sucessos de bilheteria. Só ficaríamos atrás das adaptações de
quadrinhos, onde heróis e vilões da Marvel e da DC Comics ganharam o cinema nas versões
audiovisuais de Homem de Ferro, Homem Aranha, Hulk, Capitão América, Vingadores sem
contar suas continuações, em geral, uma a cada dois anos após a estreia. É notável que o
recurso move freneticamente a indústria do entretenimento. Basta acessar sites da internet e
constatar que não apenas os filmes, geralmente as primeiras produções adaptadas, encerram
o processo. Ele continua desenfreadamente com uma série de produtos que nascem deles.
São, por exemplo, itens de vestuário, itens de beleza, videogames, séries de televisão e até
parques temáticos. Nunca antes na história a literatura esteve em um patamar tão rentável e
popularizado. Porém, tudo indica que o ato de ler ficou em segundo plano; primeiro se assiste,
se compra a marca, se joga, depois, se for o caso, vem a leitura propriamente dita.Ou seja, a
obra desse último descola-se tanto do original que passa a fundar uma nova identidade a
partir das múltiplas formas com que o público dialoga com ela. Isso quando não ocorre o
oposto: filmes ou videogames que “viram” livros (Assasin’s Creed), jogos de videogame que
“viram” filmes, ou roteiros de filmes que ganham as prateleiras das livrarias físicas ou virtuais.
Aliás, está aí mais uma adaptação: o livro digital, com sua narrativa multimidiática, reunindo
em um único espaço virtual textos, conteúdos audiovisuais, jogos e fazendo uso cada vez
maior das funcionalidades dos softwares e da portabilidade dos dispositivos eletrônicos como
tablets e smatphones. A escalada adaptativa transforma a obra original em um conteúdo
digitalizado ubíquo, acessível a qualquer hora e em qualquer lugar permitindo, inclusive,
interatividade por meio das redes sociais da internet. Contratos publicitários milionários ditam
as regras do mercado. O que está em jogo não é mais a materialidade da obra. A tecnologia
reduz a cada dia o valor do produto final visando torná-lo cada vez mais acessível e barato.
Nesse sentido, poderíamos oferecer inúmeros exemplos, mas ficamos com o modelo de
negócio massificante mais conhecido: a empresa multinacional de comércio eletrônico
Amazon, sediada nos Estados Unidos e líder de mercado em venda e distribuição de livros no
mundo. Não é o caso aqui dissecarmos as estratégias comerciais, boas ou más, desses grandes
213
conglomerados. Muito menos, critica-los ou enaltece-los levianamente em poucas linhas,
deixando de lado um estudo feito com a devida profundidade. Mas é necessário saber que,
mais do que empresas, eles são agentes de mudança nos nossos hábitos de consumo e, isso
sim, é importante; é fundamental estarmos cientes disso, pois nosso comportamento altera as
engrenagens do mercado. Compreender esse panorama, a cada dia modificado pela tecnologia
crescente, e situar-se nele, se faz mais do que necessário nesses tempos. Em especial, para os
profissionais que atuam no campo das Humanas, em específico, nas áreas das Letras, das Artes
e da Comunicação Social. Nesse sentido, o presente trabalho se estrutura e se justifica
objetivando oferecer, a partir da pesquisa realizada, ferramentas que eventualmente possam
ser úteis para auxiliar na decodificação e na recodificação de construtos audiovisuais
adaptados. A elas, daremos o nome de fatores de adaptabilidade. Em nosso entender, essas
categorias devem ser levadas em conta tanto por aqueles que se propõe a adaptar uma obra
para outra linguagem, como roteiristas ou escritores, quanto pelo público em geral que
consome adaptações, como uma espécie de guia para um entendimento melhor do quesito
“originalidade”, tanto na preservação da autoria no conteúdo adaptado, quanto na própria
adaptação enquanto obra nova. Aliás, não podemos nos iludir que o novo meio adaptador não
se apropria do original. Ele o faz, sim, de dois modos. De forma sutil, na menção formal do
autor de partida, como as cláusulas dos contratos de direitos autorais exigem. Ou em um grau
extremo, incorporando-o à sua natureza e readequando-o aos seus propósitos como meio, ao
ponto de reconfigura-lo completamente sendo parte dele.
A formulação dos itens propostos a seguir não é baseada no sucesso ou no fracasso comercial
dos construtos adaptados. A esse fator atribuímos o modus operandi do mercado, o que em
nada acrescentaria nessa parte, uma vez que é a lógica financeira que o orienta. Nossa
formulação baseia-se nos conceitos aqui abordados, apropriados de diversas teorias e
reunidos nesse trabalho, que podem enriquecer a leitura e auxiliar as escolhas de um grupo
que pretende adaptar uma obra sem ter como único vetor o fator lucro.
A primeira categoria de adaptabilidade é a criatividade receptiva do autor. A popularidade (ou
não) de um autor junto ao público é certamente um aspecto relevante em qualquer
adaptação. Porém, há ainda outros que podem complementa-lo. Como, por exemplo,
conhecer a relação que ele estabelece com o público e a forma como ele desenvolve seu
processo criativo. Conforme vimos nos capítulos anteriores, Nelson Rodrigues é um autor que
utiliza a realidade como matéria-prima de suas ficções. Mesmo sendo jornalista, ele não se
restringe a relatar os fatos com aparente realismo, mas inspirados deles, construir novas
histórias que façam um sentido maior para a massa. Como constatamos, Nelson utilizava a
imaginação para completar as lacunas dos casos que lhe contavam na redação, das suas
memórias de infância e do subtexto das fotografias dos arquivos dos jornais. Essa sua
capacidade criativa era posteriormente “testada” junto ao público para, a partir da aferição
dessa recepção, readaptar as próximas criações, em um movimento contínuo de recriações
que tiveram como laboratório os cerca de dois mil contos publicados em 10 anos na coluna A
Vida Como Ela É... Ou seja, a capacidade de redirecionamento narrativo associada à recepção
do público, recriando-a, de forma sutil, aos seus anseios, é um aspecto ligado ao autor que
pode justificar ou não sua escolha para uma adaptação. Um autor que tem a constante
preocupação em ser aceito ao ponto de imprimi-la em sua obra é um autor permeável pela
alteridade, portanto, adaptável. Esse fator relaciona-se diretamente com o próximo.
214
O segundo, variabilidade de formatos, requer de nós uma análise conjuntural de tudo o que o
autor já produziu. Quanto mais sua obra for diversificada em formatos, mais ela estará apta a
outras linguagens. Como vimos, Nelson Rodrigues ergue assim a sua. Além dos contos aqui
pesquisados, sua obra multiplica-se em peças de teatro, crônicas, resenhas, críticas, romances
e folhetins. E esse constante processo de variação de gêneros (ou sobre o mesmo tema) é a
própria auto-adaptação em si. A próxima obra sempre carrega os erros ou os acertos das
anteriores num processo de “fortalecimento autoral”. Como vimos na peça A Falecida,
originária de um conto de A Vida Como Ela É..., o próprio autor já mostra que foi capaz de
imprimir uma linguagem performática em um texto de natureza verbal o que nos permite
concluir que sua essência é adaptável. E isso irá ocorrer por meio da linguagem, da
caracterização dos personagens e dos cenários escolhidos, expressos no texto. A partir do que
via, lia e, principalmente lhe contavam, ele desenvolvia tipos psicológicos, planos, e situações
facilmente transportáveis de um formato para outro, fator importante quando um adaptador
necessita criar diálogos e cenas a partir de um texto de partida. Com linguagem coloquial,
típica dos jornais, Nelson pré-roteiriza na origem, criando diálogos carregados de expressões
populares, movimento, imprimindo em seus construtos, sobretudo, a ação e o detalhamento
necessários para a equipe de adaptação construir o roteiro final. O próximo fator também está
relacionado com a obra e é a temática de ruptura.
O fator temático presente na obra de origem também precisa ser observado com cuidado.
Como vimos, A Vida Como Ela É... propõe uma ruptura tanto no aspecto formal quanto
semântico. Não somente pelas pequenas histórias exteriorizarem mazelas da sociedade, como
o desejo sexual reprimido e o adultério, mas valer-se deles para romper com a temática
vigente. Os contos de A Vida Como Ele É... repetem esses tabus à exaustão (foram duas mil
histórias sobre assassinatos e adultérios), a ponto desses conflitos repercutirem nas obras de
folhetim feitas até então (lembremos que o Asfalto Selvagem foi inspirado na obra de contos),
sua própria obra dramatúrgica (Tragédias Cariocas) e a própria política brasileira (lembremonos do político Carlos Lacerda e seus constantes ataques ao “tarado” do Nelson Rodrigues). A
temática de ruptura representa um aspecto de adaptabilidade na medida em que está
associada às mudanças internas, na obra do autor, e externas, ao público. Quanto maior sua
ruptura, mais clara estará a identidade da sua autoria. Esse padrão que pode ser trabalhado
em diversas perspectivas pela equipe de adaptação, é o ponto de encontro com o público, que
reconhece a autoria original na adaptação e “permite”, tacitamente, modificações a partir
dela. Isso dará mais liberdade à equipe de adaptação para fazer os ajustes necessários, sem
perder de vista a fidelidade autoral.
O último aspecto é a fenda narrativa. Adaptar uma obra cuja estrutura narrativa é muito bem
construída nos diálogos, nas ações, no tempo e no espaço, pode ser vantajoso. Isso ajuda o
roteirista a construir melhor o roteiro, conforme observamos no capítulo de análise do conto O
Decote em relação ao seu foco narrativo presente tanto na versão escrita quanto audiovisual.
Porém, para que haja uma margem de negociação que permita viabilizar a adaptação, um
texto hermético em sua construção pode trazer problemas. Por isso, acreditamos que é
necessário encontrar na obra de partida pequenas janelas sugestivas de alterações, permitindo
uma maior sintonia com os objetivos gerais da adaptação, na linguagem e no meio de destino.
É esse componente presente nos textos de Nelson Rodrigues, materializado, por exemplo, pelo
interdito, que faz com que a mesma obra ganhe montagens e identidades diferentes,
215
dialogando com sucessivas gerações de espectadores, em diferentes épocas. Essa fenda, ou a
soma delas, também permite uma recriação mais qualificada na adaptação justamente
porque, se bem utilizada, preserva a identidade original, mas abarca a poética da nova
proposta artística que a adapta. Foi justamente isso que, ao nosso ver, caracterizou a
adaptação dos contos pela TV Globo. De modo geral, ela valeu-se de sua competência técnica
para estabelecer, por meio de sua equipe, sua estratégia de adaptação. Dessa sutileza,
conquistada pelos seus realizadores, surge o pacto com o público, indissociável de qualquer
construto adaptado. Pela fenda narrativa surge a troca na programação da emissora: a
programação ressalta o erotismo latente do conto, dando o bote na audiência, mas em
contrapartida, a adaptação oferece uma tecnoimagem convincente, de boa qualidade artística,
“quase original”, permitindo às massas, pela obra de um autor consagrado, o acesso à sua
“verdadeira identidade”.
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219
Fora da rota: os acréscimos de trama na adaptação de “Diários de motocicleta”
Sancler Ebert - Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – [email protected]
Resumo: Este artigo investiga os acréscimos de trama no filme Diários de motocicleta de
Walter Salles, que adapta para o cinema o diário de Ernesto Che Guevara. São analisadas aqui
a extensões e ampliações (Genette, 2011) realizadas pelo roteirista José Rivera, buscando
perceber quais tramas foram criadas para o filme e refletir sobre esses acréscimos na
adaptação.
Palavras-chave: transtextualidade, roteiro, Genette, Walter Salles.
Abstract: This paper investigates the plot additions in the film Walter Salles' The Motorcycle
Diaries. The film adapts the diary of Ernesto Che Guevara. We analyzed the extensions and
enlargements (Genette, 2011) conducted by screenwriter Jose Rivera, seeking to understand
what plots were created for the film and reflecting about these additions in the adaptation.
Keywords: transtextuality, screenplay, Genette, Walter Salles.
Introdução
Neste artigo vamos refletir sobre os acréscimos de trama em Diários de motocicleta (2004) de
Walter Salles, adaptação de De moto pela América do Sul (2011) escrito por Ernesto Che
Guevara e Com Che Guevara pela América do Sul (1978) escrito por Alberto Granado. Che
anotou suas impressões da jornada e narrou as aventuras num diário que foi posteriormente
editado por ele em forma de narrativa. Os manuscritos ficaram guardados por anos, até que a
família resolveu organizá-los e publicá-los em livro em 199357. Granado lançou sua versão no
final dos anos 197058. Em nossa análise, o foco estará no diário escrito por Che, uma vez que, o
filme leva o título da versão inglesa da obra, o longa-metragem de Salles tem como narrador
Guevara e o relato de Granado serviu de apoio à construção do roteiro, não como cerne da
transposição.
Para pensarmos a relação entre literatura e cinema em Diários de motocicleta vamos utilizar os
conceitos de Genette (2011) sobre práticas transtextuais. Por meio da teoria do pesquisador
francês, poderemos entender como se dá a passagem dos diários para o filme.
A ideia de Genette sobre adaptação está vinculada ao conceito de palimpsesto, que “é um
pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada para se traçar outra, que não a esconde de
fato, de modo que se pode lê-la por transparência, o antigo sob o novo” (GENETTE, 2011, p.7).
Ou seja, palimpsestos são obras derivadas de uma obra anterior, o que o autor vai chamar de
57 Utilizamos aqui a edição de 2001, lançada pela Sá Editora no Brasil, que teve como base a traduções das versões inglesa (Verso
Books, 1995) e italiana (Feltrineli Editore, 1993).
58 Utilizamos aqui a edição de 1987, lançada pela Editora Brasiliense, que teve como base a tradução do original Com el Che por
Sudamérica.
220
hipertextos, uma das cinco práticas transtextuais que ele vai sugerir para analisar obras
literárias. Para Genette, o objeto da poética já não é mais o texto, considerado em sua
singularidade, mas a sua transtextualidade, no caso, “tudo que o coloca em relação, manifesta
ou secreta, com outros textos” (GENETTE, 2010, p. 13).
A hipertextualidade é formada por vários processos, sendo o mais importante para este artigo,
o da transmodalização, que podemos entender como “qualquer tipo de modificação feita no
modo de representação característico do hipotexto. Mudança de modo, portanto, ou mudança
no modo, mas não mudança de gênero [...]” (GENETTE, 2011, p. 119).
As transformações modais podem ser intermodais (passagem de um modo a outro) ou
intramodais (mudança que afeta o funcionamento interno do modo). As intermodais diriam
respeito à passagem do narrativo ao dramático59 (dramatização), e à passagem inversa, do
dramático ao narrativo (narrativização). As intramodais seriam as variações do modo narrativo
e as variações do modo dramático. Dentro dessas quatro distinções, a que se relaciona com
Diários de motocicleta é a dramatização, uma vez que Genette a exemplifica ao falar das
adaptações, inicialmente teatrais e hoje, cinematográficas.
Essa prática persistiu ao longo da história, passando pelos Mistérios
(baseados na Bíblia) e pelos Milagres (baseados nas vidas de santos) da
Idade Média, o teatro elizabetano, a tragédia neoclássica, até a prática
moderna da “adaptação” teatral (e hoje em dia, mais frequentemente,
cinematográfica) dos romances de sucesso (GENETTE, 2011, p. 120)
Devido a diferenciação entre as mídias, literatura e teatro, ou no caso aqui, literatura e
cinema, a dramatização normalmente é marcada por transformações quantitativas, tanto no
sentido de abreviá-la (redução) quanto para estendê-la (aumento). “Reduzir ou aumentar um
texto é produzir a partir dele um outro texto, mais breve ou mais longo, que dele deriva, mas
não sem o alterar de diversas maneiras, específicas de cada caso [...]” (GENETTE, 2011, p.
77). A redução compreende processos como a excisão, concisão e condensação e o aumento
pode ser entendido por meio de procedimentos como a extensão, expansão e ampliação.
Neste artigo vamos focar na extensão e ampliação, portanto, antes de entrarmos na análise,
vamos tratar de defini-las.
A extensão se caracteriza pelo aumento por adição maciça, com a criação de tramas não
presentes no hipotexto e com elas novos personagens e cenários. Já na expansão é realizada
uma dilatação estilística, na qual diálogos e cenas são dobradas ou triplicadas. Como no caso
aqui, são tramas que já existem no livro, não iremos analisa-las, dedicando atenção apenas ao
que foi acrescido no filme. O terceiro e último procedimento de aumento é a ampliação, que é
a conjunção dos dois primeiros processos. Como extensão e expansão são práticas simples e
que dificilmente são encontradas em estado puro, não devemos acreditar que um aumento se
limite apenas a uma delas. Sendo assim, “a extensão temática e a expansão estilística devem,
portanto, ser consideradas como os dois caminhos fundamentais de um aumento
generalizado, que consiste mais frequentemente na sua síntese e na sua cooperação [...]”
(GENETTE, 2011, p. 110).
59 Genette (2011) utiliza os conceitos de narrativo e dramático a partir dos modos de representação designados por Aristóteles e
Platão.
221
Para facilitar nossa análise, vamos apontar separadamente as extensões e ampliações, para ao
final, refletir sobre elas.
Extensão: as tramas criadas para o filme
a) Despedida de Che
Logo nos primeiros minutos do filme temos a criação de cenas não existentes na obra original.
Enquanto no relato de Che, a viagem inicia em Córdoba e a passagem por Buenos Aires rende
um parágrafo sem detalhes, no filme assistimos ao jovem discutindo com o pai, que é contra a
viagem, e recebendo o olhar de apoio da mãe e em seguida, a despedida de sua família, que é
toda apresentada. Tais cenas já deixam claro que o foco está em Che. Tanto que um
acontecimento narrado por Granado em seu livro e omitido por Che em sua obra é utilizado no
filme. Em seu diário, Granado narra a sua despedida com a família e conta que ao partirem
quase colidiram com um ônibus. O incidente é visto no filme, mas após Che dar adeus aos seus
familiares.
b) Os dólares de Chichina
Ausente no livro, a trama que envolve os dólares que Chichina dá a Che para que ele a compre
calças em Miami tem grande importância no filme. É por meio dela que o roteiro de Diários de
motocicleta vai fazer uma piada recorrente e, quase no fim da história, demonstrar uma
mudança na conduta do personagem de Che. Tudo começa quando Granado vê Che com as
notas americanas e já inicia a fazer planos com o que poderão fazer com o dinheiro. Che então
corta as esperanças do amigo e explica que o valor será utilizado para a compra de um
presente para a namorada. Revoltado com a situação, Granado provoca o parceiro de viagem.
Mais adiante na narrativa, a dupla de viajantes consegue uma hospedagem no galpão de um
senhor, mas devido a honestidade de Che, que revelou ao homem que ele estava com um
tumor e devia procurar um hospital, acabaram por não conseguir refeições, apenas o direito
de pescar no lago da propriedade. Quando se dirigem para o local, avistam patos e Granado
acerta um. Por ter derrubado a refeição, ele força Che a entrar no lago de águas geladas.
Quando o futuro guerrilheiro se recusa, Granado o chantageia dizendo que eles não precisam
entrar no lago congelado se usarem os dólares, motivo que faz Che adentrar e buscar o pato
que flutua em meio ao lago.
Como resultado, Che fica doente e passa uma noite febril. O amigo propõe que eles utilizem o
dinheiro para ir a um hospital e recebe uma negativa do doente que prefere seguir viagem
passando mal a gastar os dólares. Os dois discutem novamente sobre os dólares quando
atravessam o Deserto do Atacama. Depois desse trecho, a trama do dinheiro só retorna
próximo ao final do filme, quando os viajantes estão embarcados no La Cenepa, rumo ao
leprosário de San Pablo. Granado conhece uma linda e jovem prostituta, Luz, e tenta seduzi-la,
no entanto, ouve uma recusa. Completamente encantado pela moça, ele invade o quarto do
amigo e implora pelos dólares de Chichina. Che que se recupera de um ataque de asma, revela
então que já gastou o dinheiro, causando incredulidade no parceiro de aventura. Então o
jovem Ernesto Che Guevara conta que, tocado pela história do casal que conheceram no
deserto – que estava em busca de trabalho na mina de Chuquicamata, havia abandonado a
222
família na procura de emprego e que era perseguido por serem comunistas – havia dado o
dinheiro para os dois, para ajudá-los em sua peregrinação por serviço. O fato de ter se negado
a facilitar a viagem pela América utilizando o dinheiro ou mesmo gastando-o, enaltece ainda
mais o ato de doação. Che privou a si e seu amigo para não gastar o dinheiro que havia sido
confiado pela namorada, mas não hesitou em dá-lo ao casal que havia o tocado
profundamente.
c) Honestidade de Che
A questão da honestidade de Che parte da realidade, mas é criado um arco para torná-la ainda
mais visível ao espectador. A primeira cena que retrata isso é aquela em que os dois jovens
chegam à propriedade de um alemão, o senhor Pulkmanken, que pede que os “doutores”
examinem seu pescoço. Che toca no caroço proeminente próximo à orelha do homem e o
diagnostica com um tumor, algo que assusta o paciente. Na tentativa de amenizar a situação e
conseguir ser recebido na casa pelo alemão, Granado diz que acha que é apenas um cisto, no
entanto, Che reafirma que aquilo é um tumor e que o paciente deve procurar um hospital o
quanto antes. Irritado com o diagnóstico trazido pelos forasteiros, o senhor Pulkmanken (que
é citado no livro de Che, inclusive com o detalhe sobre sua doença) diz que os dois podem ficar
num galpão e pescar no lago. Após a abordagem sincera de Che lhes colocar numa situação
desconfortável, Granado discutiu com o amigo, que se defendeu dizendo que não podia mentir
para o homem, que era um caso de saúde. Granado criticou a forma como o companheiro deu
a notícia, a seco, sem preparar o paciente. A honestidade de Che é usada aqui também para
mostrar uma solução encontrada pelo jovem para amenizar as reclamações do amigo e ligar
um acontecimento fictício a um fato real: a entrevista que ambos concederam ao periódico
Temuco Austral. Salles cria um evento ficcional para criar uma ligação com outro real, que é
apenas citado na obra.
O outro momento criado, na verdade, é narrado por Granado em Com Che Guevara pela
América do Sul, mas não é citado por Che na sua obra (a qual estamos levando em conta na
análise). No filme, a dupla fica hospedada em Lima com o médico especialista em lepra, Hugo
Pesce, que os leva para atender os pacientes leprosos do hospital da cidade e que se torna
uma espécie de mestre dos dois. Num dos almoços, Pesce revela aos pupilos que escreveu um
romance e pede que eles o leiam. Quando estão embarcando no La Cenepa, barco que os
levará até a colônia de San Pablo, o médico pede a opinião dos jovens. Após um silêncio
incômodo, Granado faz diversos elogios vazios em relação à obra e Che permanece sem falar
nada. Quando Pesce pede que Che revele sua crítica, Granado responde por ele e diz que o
amigo gostou tanto quanto ele e é interrompido pelo mestre que solicita ouvir isso do próprio
Che. Finalmente, o jovem dá seu parecer e faz duras críticas ao romance do médico e sugere
ao final que ele permanece apenas clinicando. A sinceridade de Che deixa Pesce sem falas e
Granado extremamente constrangido, afinal, o amigo havia dado um parecer nada gracioso ao
mestre que tanto os havia ajudado. Pouco antes de se despedirem, Pesce agradece a
honestidade de Che e diz que o jovem foi um dos poucos que lhe deu uma opinião tão
verdadeira. Como mencionado, uma versão breve da história é narrada por Granado, mas aqui
ela ganha destaque ao se reunir com as cenas anteriores em que o caráter de Che está em
foco.
223
d) O aniversário de trinta anos de Granado
Logo no início do filme, ao apresentar a ideia da viagem, Che revela que eles têm como meta
completar a aventura antes do aniversário de trinta anos de Granado. A trama retorna no meio
do filme, quando longe do final do itinerário, eles passam o aniversário de Granado na estrada.
No final da obra, quando os dois amigos estão se despedindo e vão se separar, Granado revela
que a história do aniversário era falsa e que ele a havia criado para motivar Che, que então
conta que sempre soube a verdade. Essa pequena trama adicional serviu como alívio cômico e
como desafio a ser alcançado no início da viagem e não é mencionada nem no diário de Che,
muito menos do de Granado.
e) Uso de atores sociais
Ao se analisar entrevistas do diretor Walter Salles na época de lançamento de Diários de
motocicleta, é possível encontrar uma recorrência em sua fala sobre o uso de um roteiro
aberto à realidade da filmagem, algo que ele coloca ter feito antes, em filmes como Terra
estrangeira (1995) e Central do Brasil, mas que na obra sobre a juventude de Che Guevara
parece mais forte e visível no material fílmico. “Esse é um filme (Diários) que se encontra entre
o documentário e a ficção. Para aproximá-lo de um documentário, usamos muita
improvisação” (SALLES, 2004)60. O cineasta acrescenta: “dei de cara, por exemplo, em Diários
de Motocicleta, com um número incrível de personagens que não estavam no livro, mas
poderiam estar, estavam no espírito daquela jornada, e a gente trouxe esses personagens para
dentro da história” (SALLES, 2012)61.
Um desses personagens é o menino Don Nestor que aparece quando Che (interpretado por
Gael Garcia Bernal) e seu amigo Alberto Granado (interpretado por Rodrigo de la Serna)
chegam à cidade de Cuzco. Como conta Salles: “o garoto que guia os dois na cidade, por
exemplo, não estava no roteiro, foi completamente improvisado” (2004)62.
O diretor se refere novamente ao personagem em outra entrevista63, quando explica que “os
encontros que tivemos em Cuzco e em Machu Picchu [Peru] foram incorporados à história.
Não estavam no roteiro. A cerimônia de coca e os jovenzinhos foram encontros que a viagem
nos proporcionou”. Logo após encontrarem Don Nestor e o menino apresentar a cidade aos
dois jovens, o mesmo participa da cena em que Che e Granado conversam com um grupo de
mulheres indígenas numa praça de Cuzco. É a essa cena que Salles está se referindo em sua
declaração. Che questiona sobre a vida das peruanas e, por fim, participa de uma cerimônia da
coca, na qual as senhoras ensinam como é o ritual.
60 Entrevista disponível em:http://www.delfos.jor.br/conteudos/index_interna.php?id=85&id_secao=
1&id_subsecao=3. Acesso em 01 de julho de 2014.
61 Entrevista disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/2012-07-14/walter-salles-sobre-na-estrada-e-a-buscada-ultima-fronteira-americana.html. Acesso em 01 de julho de 2014.
62 Entrevista disponível em: http://www.delfos.jor.br/conteudos/index_interna.php?id=85&id_secao
=1&id_subsecao=3. Acesso em 01 de julho de 2014.
63 Entrevista disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u43985.shtml. Acesso em 01 de julho de 2014.
224
Além das cenas em Cuzco, há um encontro numa estrada no Peru rumo a Machu Picchu, no
qual os jovens interpelam um andarilho e o questionam sobre sua caminhada e o fato de ter
sido expulso de suas terras, tema que é recorrente no filme.
Para além das falas do diretor, é possível se certificar do acréscimo desses personagens na
leitura do roteiro de José Rivera, que não conta com a presença dos atores sociais.
f) A cena final com Alberto Granado
A última cena do longa-metragem apresenta Alberto Granado, envelhecido, olhando para um
avião que voa ao longe. A cena é uma continuação de outra anterior, na qual o Granado de
Rodrigo de la Serna acompanha o avião que o Che interpretado por Gael García Bernal havia
embarcado. O grande diferencial é que o Alberto Granado da cena final é o real, que
interpretou a si para o último plano do filme. Obviamente, nenhum dos diários escritos
continha tal cena, uma vez que, ambos terminam seus relatos ao fim da jornada em 1952.
Ampliação: extensões e expansões de tramas
Conforme explicitado anteriormente, a ampliação é a conjunção dos processos de extensão e
expansão, que, segundo Genette (2011), dificilmente são encontrados isolados no caso de uma
transmodalização intermodal.
a) Visita à casa de Chichina
Descritos de forma breve em De Moto pela América do Sul, os dias na casa de Chichina foram
expandidos no filme por meio de três sequências. A primeira delas é a do jantar e posterior
dança na sala da mansão. Ali somos apresentados à família de Chichina que é representada
por pessoas ricas e arrogantes que não concordam com o relacionamento da jovem com Che.
Na cena das danças, o casal de namorados discute sobre a viagem que Che está iniciando. Na
sequência seguinte, Che finalmente consegue um tempo a sós com a namorada e a leva de
carro para um bosque. Os dois namoram dentro do veículo, conversam novamente sobre a
viagem e Che convence Chichina a esperá-lo. Para finalizar, assistimos à despedida do casal,
com Che já sobre a moto e Granado na direção. Se no diário a dificuldade em partir e deixar a
namorada para trás ganha destaque, no filme isso é ainda mais expandido. Partir estando
apaixonado torna ainda mais louvável a façanha de Che, e Salles parece empenhado em tornar
a viagem de seu personagem num grande feito.
b) La Cenepa
Os acontecimentos no barco que leva os viajantes até o leprosário em meio à floresta
amazônica são descritos por Che em De Moto pela América do Sul, no entanto, no filme é
criado uma personagem nova, Luz, que traz consigo uma trama própria, assim como
acompanhamos mais aspectos da mudança de olhar do jovem Che Guevara.
Em De Moto pela América do Sul, os dias no La Cenepa são narrados como tediosos, uma vez
que a dupla fica hospedada na primeira classe e acaba por ter de conviver com pessoas ricas e
arrogantes. Além disso, Che destaca as diversas crises de asma que enfrentou durante o
trajeto, que são resumidas numa única cena no filme, em que o jovem cai em meio a estranhos
225
após passar mal e tem de receber uma injeção de adrenalina. Também merecem atenção do
argentino os ataques diários dos mosquitos e a demora para chegar ao final da viagem,
causado pela baixa maré do rio durante a noite.
No filme, logo que embarcam no La Cenepa, Granado conhece Luz e se enamora pela jovem
prostituta. Após receber a recusa dela e descobrir que Che gastou os dólares de Chichina com
o casal que eles encontraram no deserto, Granado decide jogar pôquer para conseguir o valor
necessário para receber atenção da bela moça. Sem dinheiro, o rapaz inicia sua aposta com
apenas um sole, o que motiva piadas por parte dos outros jogadores, mas, conforme o jogo
avança, Granado multiplica seus soles e acaba por ficar com Luz no final da noite. Vale aqui
destacar que, a aposta ínfima e a multiplicação do dinheiro realmente aconteceram, segundo o
relato de Che em seu diário. Notamos aqui que, mais uma vez, Salles criou uma trama fictícia e
a ligou com um fato real.
c) San Pablo: novos personagens e clímax
Cenário do clímax do filme, o leprosário de San Pablo tem maior importância na obra de Salles
do que no diário de Che, tanto que, enquanto na literatura se resume a algumas páginas, no
longa-metragem ocupa um quarto do tempo total. Se no livro acompanhamos descrições do
dia-a-dia dos dois viajantes, sem um foco maior na relação destes com os pacientes, na
narrativa fílmica são criados personagens e novas situações para desenvolver a interação entre
os doutores e os leprosos e com isso levar ao ápice da história: a travessia à noite do rio.
Papa Carlito é um dos personagens criados para mostrar a forma como Che e Granado se
relacionavam com os doentes. Logo que chegam à colônia, eles optam por não usar luvas, pois
sabem que a lepra quando em tratamento não é contagiosa e com isso ganham o respeito dos
pacientes, que se sentem humanizados e se tornam inimigos da freira Sor Alberto, que
comanda o local e não gosta que quebrem suas regras. A personagem da freira é relatada no
livro, com os mesmos traços de personalidade, mas no filme ela ganha contornos mais
salientes, afinal é preciso alguém para se opor aos protagonistas.
Outra personagem criada para o filme é Silvia, jovem que sofre de lepra e recusa-se a permitir
uma operação. O médico que recebe a dupla na colônia apresenta o caso da moça e Che
resolve conversar com ela para convencê-la a mudar de ideia. A cena mostra a humanização
do papel do médico, que ouve a paciente e se expõe, criando uma relação de confiança e
humanização. Após a conversa, Silvia decide realizar o procedimento cirúrgico, que é feito com
o acompanhamento de Che.
Além da criação dos personagens que reforçam a trama da transformação de Che, temos o
clímax da narrativa, que foi totalmente ficcionalizado. Ernesto chegou a cruzar o rio a nado,
como ele conta em uma carta à mãe em seu livro, no entanto, nunca o fez à noite e muito
menos após a festa de seu aniversário. Na mesma correspondência escrita à mãe ele frisa que
jamais teria coragem de se lançar no rio à noite. A cena foi criada para simbolizar a
transformação do protagonista do filme, que entre o antigo (acostumado com o conforto,
distante da realidade latino-americana) e o novo Che (que prefere passar o aniversário junto
aos pacientes, pessoas simples, mas seus iguais), opta por este último ao cruzar o rio. Como se
em cada margem tivesse uma versão dele e, ao nadar rumo à uma, ele deixasse a outra
226
definitivamente para trás. A cena ganha mais emoção porque durante o filme inteiro a
problema de asma de Che foi ressaltado, tornando a travessia do rio um ato ainda mais
heroico. O personagem supera uma dificuldade sua e sai dela transformado.
Livro X Filme: os acréscimos de tramas e o uso de atores sociais
Podemos perceber por meio das extensões e ampliações a mudança no foco entre literatura e
cinema, já comentada aqui. As tramas criadas ressaltam ainda mais a centralidade na
transformação do jovem Che, como vemos na despedida que, ao invés de ser em Córdoba, na
família de Granado, passa a ser em Buenos Aires, com a de Che. As tramas dos dólares e da
honestidade do jovem Guevara foram criadas para reforçar o caráter do personagem, algo
bastante comum na ficção clássica. Se no livro as informações sobre a personalidade do futuro
revolucionário estão implícitas por meio de ações e pensamentos, estão colocadas de forma
sútil, o filme trata de escancará-las, para não deixar dúvida alguma nos espectadores.
No caso das ampliações, todas as três têm um papel importante na ficcionalização da história
de Che. A visita à casa de Chichina tem como foco reiterar o desafio do jovem Ernesto, que
abre mão do seu amor para viajar pela América. O desprendimento de arriscar perder a
namorada para viver uma grande aventura torna a saga do argentino ainda mais digna de
torcida por parte do espectador. As ações que se passam no barco La Cenepa tem por um lado
função de alívio cômico, com Granado e sua busca por dinheiro para ficar com uma prostituta
e reiteração sobre a saúde de Che. Ao mostrar o jovem tendo um forte ataque de asma, o
filme nos lembra da doença que acomete o personagem e que não aparecia há algum tempo
na trama e nos prepara para o clímax, quando Che terá de superar sua debilidade física para
atravessar o rio.
Toda trama de San Pablo foi criada para servir como ápice do filme. Nas sequências na colônia
Che mostra-se ainda mais condoído em relação as mazelas dos povos latino-americanos; trata
os pacientes como iguais, sem se preocupar com o uso de luvas e dando a mão para todos;
convence uma paciente a aceitar a cirurgia; bate de frente com as religiosas que comandam o
local por não concordar com as regras delas. Salles opta por condensar numa única trama toda
a catarse do personagem, que no clímax atravessa o rio a nado para comemorar seu
aniversário junto aos pacientes, uma metáfora de sua escolha em lutar junto ao povo oprimido
do continente.
As sequências com a utilização de atores sociais foram acrescida para dar mais realidade à
história que estava sendo contada e reforçam a ideia de Salles sobre roteirização: “Em
português a palavra ‘roteiro’ tem a ver com rota. É o que o roteiro deveria ser, a indicação de
um caminho. Não deveria encerrar oportunidades, mas ampliá-las” (SALLES apud STRECKER,
2010, p. 244).
É possível observarmos uma relação entre o uso de um roteiro com possibilidades de
aberturas durante as filmagens e sequências mais documentais no filme. As cenas que não
estavam descritas no roteiro de José Rivera e foram acrescentadas durante a captação de
imagens a partir do encontro da equipe com atores sociais são as mesmas que sugerem certa
documentaridade. O registro da conversa com as mulheres indígenas na praça em Cuzco não
estava planejado, nasceu da viagem pelo Peru, dos encontros possibilitados pela filmagem em
227
locação. Como não eram figurantes com um texto a ser decorado e interpretado, as mulheres
foram questionadas e responderam sobre suas realidades, o que agregou um caráter
documental à cena. Ao invés de Che, no caso, Gael Garcia Bernal, questionando, poderia ser
um documentarista que estaria buscando revelar a realidade dos indígenas do Peru.
Além do uso de atores sociais, outra cena com teor documental é aquela em que o próprio
Alberto Granado aparece. Mais uma vez aqui, Salles se utiliza de uma estratégia documental
para provocar tal leitura em seus espectadores. Ao fechar o filme com a imagem do Alberto
Granado real, o diretor busca suscitar uma leitura de que tudo o que se passou no filme foi
real, sendo que foram criadas tramas e personagens para o longa-metragem. A força da
imagem final de um filme, que é algo que fica com o espectador por mais tempo, é aqui usada
com a presença de Granado. O filme enfoca sua trama em Che, mas nos seus minutos finais
rende-se ao olhar de Alberto. Vale destacar que a cena é de alguma forma uma homenagem
de Salles ao argentino que colaborou intensamente com a produção do filme, concedendo
longas entrevistas e até mesmo visitando os sets de filmagens.
REFERÊNCIAS
GENETTE, Gérard.Palimpsestos: a literatura de segunda mão. In: Cadernos Viva Voz.
Trad. Cibele Braga, Erika Viviane Costa Vieira, Luciene Guimarães, Maria Antônia Ramos
Coutinho, Mariana Mendes Arruda e Miriam Vieira. Extratos: capítulos 1, 2, 3, 4, 5, 7, 13, 37,
38, 40, 41, 45, 46, 47, 48, 49, 53, 54, 55, 57,79,80.Belo Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG,
2010.
GRANADO, Alberto. Com Che Guevara pela América do Sul. São Paulo: Brasiliense, 1987.
GUEVARA, Ernesto Che. De Moto pela América do Sul – Diário de Viagem. São Paulo: Sá/
Rosari, 2011.
PAIVA, Samuel, SOUZA, Gustavo. Roteiros abertos em filmes de busca. Revista Intercom –
RBCC. São Paulo, v.37, n. 1, p.175-191, jan./jun. 2014.
RAJEWSKY, Irina. A fronteira em discussão: o status problemático das fronteiras midiáticas no
debate contemporâneo sobre intermidialidade. In: DINIZ, Thaís F. N.; VIEIRA, André Soares
(Orgs.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. Volume 2.
Belo Horizonte: Rona Editora: FALE/UGMF, 2012. p. 51-73.
SALLES, Walter. Diários de motocicleta. FilmFour. 2004. 126 minutos.
SANTEIRO, Sérgio. Conceito de dramaturgia natural. Filme Cultura, Rio de Janeiro, n. 30, ago.
1978, p.80-85.
STRECKER, Marcos. Na estrada. O cinema de Walter Salles. São Paulo: Publifolha 2010.
228
Adaptações no roteiro: literatura e quadrinhos
Isabel Orestes Silveira e Alexandre Jubran, Universidade Presbiteriana Mackenzie
Resumo:
Esta investigação partiu do interesse em desenvolver um roteiro em formato HQ (História em
Quadrinhos) a partir da adaptação da biografia literária do missionário norte-americano Ashbel
Green Simonton (1833-1867). A hibridização das linguagens que conjuga em um mesmo texto,
a escrita e o desenho, exigem especificidades relacionadas à linguagem visual além do domínio
técnico. Nesse sentido a relevância científica desta pesquisa, consiste em dialogar com as
áreas da Comunicação, da Educação, da História, da Cultura, das Artes Visuais e da Teologia
dentre outras, pois na tentativa de enriquecer o repertório infanto juvenil, propõe-se ao
conhecimento da biografia do missionário Ashbel Green Simonton (1833-1867), fundador da
Igreja Presbiteriana do Brasil.
Palavras-chave: Simonton, missionário, Igreja Presbiteriana do Brasil
Introdução
“Lembrai-vos dos vossos guias, os quais vos pregaram a palavra de Deus; e,
considerando atentamente o fim de sua vida, imitai a fé que tiveram.”
(Hebreus 13:7).
Não há dúvida alguma de que em diferentes áreas do saber quer na Biologia, Psicologia,
Filosofia, Educação, etc. muito já se têm dito sobre o desenvolvimento da criança em
diferentes aspectos. Tal tema que desperta inúmeras discussões torna-se atualizado quando
consideramos que a leitura e o resgate de histórias podem contribuir e tornar-se fundamental
para que a criança desenvolva hábitos de leitura, adquira novos vocabulários, amplie seu
universo lingüístico e cresça nos aspectos afetivos, sociais, cognitivos, espirituais etc.
A História em quadrinhos pode, por isso, ser também um dos agentes fundamentais para o
desenvolvimento e a formação da criança. Nessa perspectiva, entendemos que ser leitor e
conhecedor dos diferentes tipos de textos é uma forma de ampliar o universo linguístico. Não
foi a toa que Abramovich (1997, p.16) ressaltou: "[…] ah, como é importante para a formação
de qualquer criança ouvir muitas, muitas histórias. Escutá-las é o início da aprendizagem para
ser leitor, e ser leitor é ter um caminho absolutamente infinito de descoberta e de
compreensão do mundo [...]".
Nesse sentido a relevância científica desta pesquisa, consiste em dialogar com as áreas da
Comunicação, da Educação, da História, da Cultura, das Artes Visuais e da Teologia dentre
outras, pois na tentativa de enriquecer o desenvolvimento da criança propõe-se neste projeto
o acesso desta, ao conhecimento da biografia do missionário Ashbel Green Simonton (18331867), fundador da Igreja Presbiteriana do Brasil.
229
Muitas pesquisas envolvendo Simonton, já foram e são desenvolvidas no meio acadêmico,
sendo publicadas em forma de livros e cadernos de pós-graduação, todavia o acesso a textos
considerados menos densos, especialmente voltado ao público infanto-juvenil pode ser uma
forma interessante de estimular a leitura e o acesso das crianças ao conhecimento da vida e da
obra de um pioneiro que em seu diário (obra autobiográfico) destaca sua fé reformada. A
hibridização das linguagens que conjuga em um mesmo texto a escrita e o desenho (História
em quadrinhos) poderá então, contribuir e estimular o conhecimento da criança sobre a
história do Presbiterianismo no Brasil, ampliando seus recursos de referência, além de
contribuir para a sua formação espiritual.
É importante ressaltar que na simplicidade reside a força dos textos deixados por Simonton em
seu diário. Em seus registros, encontramos a grandeza de uma fé que suportou crises e
provações, sem perder a confiança em Deus. De igual modo, por meio da leitura de um HQ
(História em Quadrinhos), as crianças poderão desenvolver uma relação de confiança no Deus
vivo e verdadeiro, alicerçando a fé firmada no exemplo deixado por Simonton.
Nesse Mackpesquisa, foi possível embasarmos nas referências teóricas sobre o assunto através
dos textos de Costa (1999) e nos escritos de Simonton (os quais foram traduzidos por Rizzo em
1962). Até aqui foi possível desenvolver um texto facilitador para que o público infanto-juvenil
compreenda os principais fatos que marcaram a vinda de Simonton a saber: infância, chamado
ao campo missionário, saída dos Estados Unidos, ministério e sua morte em solo brasileiro.
O êxito para um texto e para a ilustração, arte final e produção definitivos, puderam ser
efetivados na troca com outros pares, a saber: uma equipe de professores que atuam nas
áreas de letras, design, e ilustração, somada ao envolvimento de um aluno do curso de
publicidade e propaganda.
Esta pesquisa possui um duplo objetivo: primeiramente, apresentar a vida do missionário
Presbiteriano Ashbel Green Simonton sob a forma de história em Quadrinhos, em uma
linguagem que alcance a compreensão das crianças alfabetizadas a partir de 8 anos de idade. A
força da imagem ilustrada em quadrinhos pretende despertar o interesse de adolescentes, por
isso o público alvo desta pesquisa se destina ao infanto-juvenil. Em segundo lugar, o resultado
da pesquisa poderá ser passível de ser futuramente publicada a fim de que visibilizada em
forma de HQ, torne-e útil para os professores e pais os quais poderão fazer uso deste material
em suas igrejas, nas classes dominicais, nas escolas bíblicas de férias e em outros trabalhos
(educativos, evangelísticos e missionários) oferecendo oportunidade de reflexão aos adultos e
servindo de estímulo e modelos às crianças.
Esta pesquisa pretende aprimorar a linguagem textual e visual das referências já teóricas e
produzir em forma de História em Quadrinhos para crianças, a narrativa biográfica da vida do
missionário Simonton.
A pesquisa exigiu três passos metodológicos.
Levantamento teórico- prático, dos dados que seguem:

Revisar a bibliografia de Simonton, (Rizzo 1962) e Costa (1999).
230

Adaptar a biografia de Simonton a uma linguagem acessível ao público alvo, tendo
como referências textuais de teóricos diversos.

Experimentar técnicas de ilustração que sejam atrativas ao público infanto-juvenil.
Pesquisa prática da ilustração. A investigação caminha tendo como exigências:

O desenvolvimento dos esboços e croquis de desenhos dos personagens,
indumentários e cenografia.

Definição do ley-aut para a História em Quadrinhos

Pesquisa da técnica da arte final, (poderá ser pintura, desenho manual ou com
recurso computacional ou até mesmo ambas).

Revisão do texto

Produto final conclusivo
1. A força da Mensagem visual
Podemos considerar que todo sentimento ou estado emocional do homem pode ser
representado visualmente. As cores, as linhas e os contrastes podem transmitir sensações e
sentimentos. Essa noção sempre foi utilizada pelas artes plásticas com grande maestria e, tem
sido utilizada pelas artes gráficas, cinematográficas, editoriais, etc. com a finalidade de
direcionar-se de modo mais sedutor para determinados públicos, e de transmitir suas
mensagens artísticas dependendo de seus propósitos, quer sejam culturais ou comerciais.
Podemos constatar então que o potencial atrativo da linguagem visual está diretamente ligado
a emoção transmitida e a rápida possibilidade de compreensão da mensagem de um modo
que seria extremamente complexo ser representado apenas por meio de textos. Sobre isso
Dondis (1997, p. 13) afirma: “Ao ver [...], vivenciamos o que está acontecendo de maneira
direta, descobrimos algo que nunca havíamos percebido, talvez nem mesmo visto,
conscientizamo-nos [...]. Ver passou a significar compreender”. Se considerarmos tal afirmação
como válida poderemos argumentar que o ato de “ver” nos possibilita vivenciar de maneira
direta. Por isso a mensagem visual contribui para a compreensão de ideias, sendo as imagens,
um importante fator para a transmissão da mensagem.
As diferentes imagens visuais sejam elas em forma de desenho, pintura, escultura, etc; sempre
cativaram o ser humano especialmente por causa da atração deste pela estética ou pela busca
da beleza, do equilíbrio e da harmonia. Percebemos isto quando consideramos especialmente
as pinturas das cavernas e observamos o que o homem pré-histórico nos legou. Imagens de
figuras humanas que correm com lanças nas mãos atrás de bisões, retratam uma época e um
modo de vida que se eterniza através da pintura rupestre. Desde que foram feitos os primeiros
registros de tais desenhos, o homem evoluiu e articulou novas formas de linguagem, mas a
força da mensagem visual sempre continuou ilimitada, se tornando sempre cativante e
atraindo o olhar do espectador.
2- A mensagem visual na literatura
231
Até aqui pudemos desenvolver um raciocínio embasado no fato de que as imagens visuais
carregam em si uma força que a caracteriza como mensagem. Portanto podemos entender
que as mensagens visuais comunicam algo ao receptor. Comunicam imagens carregadas de
significado. É interessante notarmos que a palavra “imagem” vem do latim imago que significa
a representação visual de um objeto. As imagens não se detêm no limite de desenhos,
esboços, pinturas etc.; elas caminham e se expandem para outras imagens, quer as mentais ou
as concretas. Imagem, seja em qual dimensão a vinculamos, está sempre em construção.
E nesse universo da comunicação visual se encaixa a literatura. Apesar de não estarmos
discutindo sobre gêneros discursivos, não podemos deixar de alocar que a literatura se
apropria do desenho, da história em quadrinhos, da charge, como mecanismo para destacar
sua mensagem ou destacar um discurso através da ilustração. Para transmitir seus significados
a literatura com o auxílio de imagens dá maior significado as palavras.
As mensagens visuais apoiam o texto escrito não sendo apenas um simples desenho, mas
carregando uma forte expressão gráfica. As mensagens visuais podem abordar temas
polêmicos como a política, a religião, os conflitos sociais etc.; estando quase sempre presentes
no dia-a-dia, em jornais, revistas, outdoors, além de provocarem o humor e,
conseqüentemente, o prazer no leitor.
Não é difícil ouvir de leitor infantil, jovem ou mesmo de um leitor maduro, que um livro de
linguagem complexa seria mais bem compreendido ou menos maçante se houvessem imagens
ilustrativas acompanhando o texto. A imagem pode despertar os sentidos, aflorar experiências
imaginativas e emocionantes de forma criativa.
Por isso a comunicação visual é especialmente interessante quando utiliza de símbolos e
ícones de potência expressiva, dinamicidade e emoção. A literatura não ignora esses fatos, por
isso faz uso da ilustração como solução para aproximar grandes conteúdos literários da
realidade do infanto-juvenil.
3 - Os desenhos e suas diferentes técnicas ilustrativas
O desenho é uma forma de manifestação da arte. O artista transfere para o papel imagens e
criações da sua imaginação. É basicamente uma composição bidimensional (algo que tem duas
dimensões) constituída por linhas, pontos e forma. É diferente da pintura e da gravura em
relação à técnica e o objetivo para o qual é criado. O desenho é utilizado nos mais diversos
segmentos profissionais, tornando a arte diversificada em diferentes contextos.
Existe o desenho de projetos, onde é trabalhada toda estrutura e detalhe de uma construção.
Há também o desenho de composição pictórica, quando a artista expressa no papel, situações
que estão ocorrendo em tempo real; esse tipo de desenho é bastante utilizado em tribunais
durante julgamentos em que a presença de câmeras fotográficas ou algo do gênero não é
permitida. Nesse caso os desenhistas tentam retratar de forma mais real possível todos os
momentos e detalhes do julgamento, para que quando outras pessoas olharem o desenho
tenha a sensação de que estavam presentes na cena.
Há desenhos simples onde é empregada pouca técnica e outros onde a sofisticação se faz
presente. Atualmente, existem cursos técnicos e superiores direcionados ao desenho, quando
232
são trabalhados todos os seus aspectos, criando assim profissionais capacitados na arte de
desenhar. Todavia podemos constatar que o ser humano sempre desenhou. Silveira (2006,
p.121) afirma:
Ao longo da nossa história como seres humanos, podemos observar
registros gráficos como indícios da necessidade do homem de revelar sua
presença e se comunicar, sem necessariamente ter consciência de que ao
desenhar deixa marcas para a posteridade. O registro do desenho permite a
manifestação expressiva e dá acesso ao ser humano que se apropria do
mundo atribuindo-lhe significado.
O ser humano é um ser simbólico, por isso dentre tantas capacidades que lhe são inerentes
destacamos o seu desejo por: simbolizar, conhecer e representar. Seu potencial criativo,
também se mostra através do desenho que desde criança revela interesse pelo rabisco, pelo
uso das linhas e, na medida em que cresce, cresce também seu repertório gráfico. Silveira
(2006, p.121) acrescenta “como fruto da interação entre mão, gesto e instrumento nascem os
desenhos”.
Wucius Wong (1998, p.42), que em seu livro Princípios de formas e desenho considera quatro
tipos de elementos de um desenho: elementos conceituais, o ponto, a linha e o plano;
elementos visuais, formato, cor, tamanho e textura; elementos relacionais, direção, posição,
espaço e gravidade, e por fim os elementos práticos. Estes últimos se manifestam na
representação (realista, estilizada e abstrata), no significado, na função, na moldura de
referência, no plano da imagem e por fim na forma e na estrutura. De igual modo, Dondis
(2002, p.26), no livro Sintaxe da Linguagem Visual, escreve sobre os elementos de que se
compõem as mensagens visuais, ressaltando a importância de desenvolver noções de
gramática visual, a saber: ponto, linha, textura, formas, contraste, instabilidade, equilíbrio,
simetria, assimetria, cores, etc.
Todos esses elementos são utilizados pelo desenhista. O desenho e a ilustração podem dar
vida e realidade à uma história ou à uma mensagem escrita. Novamente podemos citar Dondis
(2002, p.18) o qual postula que existe uma forma, uma sintaxe visual para toda imagem. E
sobre isso argumenta:
Há linhas gerais para a criação de composições. Há elementos básicos que
podem ser aprendidos e compreendidos por todos os estudiosos dos meios
de comunicação visual, sejam eles artistas ou não, e que pode, ser usados,
em conjunto com técnicas manipulativas para a criação de mensagens
visuais claras.
No exemplo que segue podemos observar uma ilustração hiper realista desenhada em um
cenário fictício para a obra de Dante Alighieri: “A divina comédia”.
233
Figura 1: Ilustração da obra de Dante Alighieri. “A Divina Comédia”
Na produção das Histórias em Quadrinhos percebemos o uso de dois grandes meios de comunicação:
a palavra escrita e a imagem que se traduz nas ilustrações em forma de desenho na maioria das
vezes. Eisner (1999, p. 15) argumenta que “a separação das formas de linguagem é arbitrária”, e que
“no mundo moderno da comunicação são tratados como disciplinas independentes, porém na
realidade são derivadas de uma mesma origem”, segundo o autor “o potencial expressivo de palavras
e imagens se dá pela utilização correta de ambos.” Dondis (1997, p. 12) vem ao encontro desse
pensamento quando afirma:
Em textos impressos, a palavra é o elemento fundamental, enquanto fatores visuais, como o
cenário físico, o formato e a ilustração, são secundários ou necessários apenas como apoio. Nos
modernos meios de comunicação acontece exatamente o contrario. O visual predomina, o verbal
tem função de acréscimo.
O desenho feito para as histórias em quadrinhos possibilita dentre tantas variáveis, a narrativa
de histórias e a ilustração de situações concretas, mesmo quando se trata de temas de ficção
ou fantasia. Os elementos essenciais do desenho são os cenários, os personagens, as
expressões faciais etc. As imagens precisam ser facilmente reconhecidas pelo leitor, pois a
credibilidade das histórias não se deve apenas às palavras, mas ao meio imagem/texto visando
fazer com que o leitor consiga visualizar ou processar rapidamente uma idéia.
A predominância de elementos visuais em quadrinhos se dá por uma compreensão absolutamente
icônica e simbólica, tanto de textos como de imagens, considerando textos como imagens e
curiosamente também o contrário: imagens como textos se levarmos em conta a origem da escrita,
cujos caracteres foram formados a partir de imagens representativas como é o caso das letras
chinesas, japonesas, egípcias etc.
Figura 2: Ideograma Egípcio para descrever a idéia de adoração
234
Figura 3: Ideograma Chinês para descrever a ideia de adoração
Figura 4: Um desenho básico que pode expressar a ideia de adoração.
Nessa ilustração de Eisner 64 (Figura 11) percebemos o uso e o tratamento do texto como imagem.
Trata-se de uma ilustração intitulada: “contrato com Deus”. Refere-se a um bloco de pedra feito
para que realce o tema de uma de suas muitas histórias.
Figura 5: Titulo de história de Eisner
O significado da imagem sugere um símbolo universal que é uma tábua dos dez mandamentos
entregue a Moises. Observa-se também o uso de dois estilos de letras, uma delas em hebraico e
outra em letras romanas. O propósito com que o artista desenha, essa dualidade pode ser o de
fortalecer o significado da lei dada ao povo hebreu.
64
*William Erwin Eisner (1917- 2005) é considerado um dos mais importantes artistas
de histórias em quadrinhos e uma das maiores influências no desenvolvimento do
gênero.
235
Podemos considerar então, os quadrinhos como um recurso poderoso e um forte aliado da
educação. Podemos pensar neles como instrumentos para levar ao conhecimento dos jovens
obras clássicas da literatura. Muitos Profissionais de quadrinhos e grandes editoras já têm
despertado para essa realidade que resulta em um sucesso significativo.
Os quadrinhos funcionam como um divulgador e incentivo ao interesse pelos clássicos da
literatura mundial, despertando no jovem curiosidade de procurar posteriormente a obra
original. Outras literaturas clássicas como Dom Quixote, Os lusíadas, Obras de Machado de
Assis e Lima Barreto, são alguns exemplos de ilustração e do uso da literatura em interface
com as histórias em quadrinhos.
Figura 6: Dom Quixote adaptado para quadrinhos.
Figura 7: Os lusíadas adaptado para quadrinhos (série clássicos em hq)
Figura 8 e 9: Obras de Machado de Assis e Lima Barreto
(coleção literatura brasileira em quadrinhos)
Não podemos deixar de mencionar que os quadrinhos (comics) desde sua aparição no Brasil, têm
contado com a apreciação de um numeroso público, estimulando muitas vezes a atividade
literária. A afinidade dos jovens pelas histórias em quadrinhos se dá principalmente pela forma
236
dinâmica de comunicação e linguagem que os quadrinhos permitem, e o que se espera como já
citamos é exatamente a fácil compreensão da combinação de imagens e palavras.
Entre os educadores se discute sobre a preferência dos jovens pelas histórias em quadrinhos e se
esta atividade literária é ou não uma pratica saudável. Para D’Ávilla (1964 p.88) os quadrinhos são
um problema. Segundo o autor, o quadrinho, “rouba nuances literárias” por não haver textos
descritivos. O autor prossegue argumentando contra o uso de quadrinhos, afirmando que ao usar
imagens, “elimina-se o esforço de ler, pensar e julgar”, sendo a imaginação “pouco solicitada”.
Segundo ele, nas histórias em quadrinhos, “tudo é explicitado pela imagem, sem necessidade de
esforço do leitor”. Ainda segundo o autor, o quadrinho, causa “dispersão visual”, tornando a
leitura “desatenta”. Assim, cria-se uma literatura, empobrecida, por ser meramente visual.
Em oposição a este pensamento, apresentamos outra estudiosa do assunto que discorda
do malefício citado por D’Ávilla (1964). Trata-se de Coelho (1991), que nos fala da formação do
leitor. Segundo esta teórica, um bom leitor pode partir das leituras mais simples/fáceis para as
mais complexas/difíceis. Para esta autora os quadrinhos pode ser o início da literatura, e servir de
estímulo durante a formação da criança que aos poucos conhecendo novas literaturas tenderá a
abandonar os HQ progressivamente. Ela reconhece, portanto, a utilidade dos Quadrinhos na
formação do leitor, porém faz ressalvas em relação ao seu conteúdo, pois, em sua opinião, a
maior parte dele é prejudicial, assim como nas demais publicações da imprensa.
O fato das histórias em quadrinhos enquanto literatura ser considerada saudável ou não
para crianças e jovens é uma discussão muito polemica e, portanto nessa pesquisa estaremos
apoiando as considerações de teóricos como Silva (2002), Vergueiro (2004), e Guyot (1994) que
descrevem as Histórias em quadrinhos como positiva para o repertório literário, quando usado
em todas as idades. Dos teóricos recentes, poderemos citar Pessoa (2006) que fez uma
pesquisa intitulada: Quadrinhos na educação: uma proposta didática na educação básica. O
autor destaca o pensamento de Vergueiro (apud Pessoa, 2006, p.8) que afirma:
(...) as histórias em quadrinhos vão ao encontro das necessidades do ser
humano, na medida em que utilizam fartamente um elemento de
comunicação que esteve presente na história da humanidade desde os
primórdios: a imagem gráfica.
Seguindo pelas trilhas do raciocino de Pessoa (2006), podemos percorrer as afirmações que
Vergueiro (apud Pessoa 2006, p. 95) faz ao considerar a importância dos quadrinhos nos
primeiros anos escolares.
Pré – Escolar: Os alunos se encontram nas primeiras iniciativas de
representação (etapa pré-esquemática), atendendo a necessidades motoras
e emocionais. Em seu trabalho com a linguagem, os resultados obtidos são
menos importantes que o processo. A relação desses estudantes com os
Quadrinhos é basicamente lúdica, sem que interfira uma consciência crítica
sobre as imagens que aparecem nas Histórias em Quadrinhos, tanto nas que
recebem do professor como naqueles que eles próprios produzem. Nessa
fase, é muito importante cultivar o contato com a linguagem das HQs,
incentivando a produção de narrativas breves em Quadrinhos, sem
pressioná-los quanto a elaboração de textos de qualidade ou a cópia de
outros modelos.
237
Sobre os quadrinhos para alunos do ensino médio Vergueiro (apud Pessoa 2006, p.104)
acrescenta:
(...) Passam a ser mais críticos e questionadores em relação ao que recebem
em aula, não se submetendo passivamente a qualquer material que lhes é
oferecido. Tendem também a ter uma desconfiança natural (e saudável) em
relação aos meios, demandando um tipo de material que desafie sua
inteligência. Por outro lado, são também, muito pressionados pelo coletivo
perdendo às vezes um pouco da sua espontaneidade ao terem que
confrontar suas opiniões pessoais com as do seu grupo. Nas produções
próprias, buscam reproduzir personagens mais próximos da realidade, com
articulações, movimentos e detalhes de roupas que acompanham o que
vêem ao seu redor.
Com base nesse pensamento de ser relevante o uso do HQ, consideramos importante tornar
a obra de Simonton, o mais interessante para o público infanto- juvenil, utilizando-se de
linguagem
e
técnicas
ilustrativas
das
histórias
em
quadrinhos
adaptando-as
a
contemporaneidade.
4 - Projeto: planejamento e execução
Reforçamos nosso pensamento a favor de que a História em Quadrinhos para o público
infanto-juvenil pode se tornar um recurso de interesse a favor da leitura e do conhecimento.
Por isso, nosso interesse em dialogar com as artes visuais em especial com o desenho em
quadrinhos em interface com a literatura. Dentre tantas possibilidades optamos por escolher a
narrativa da história clássica: Simonton”. Tal interesse teve como premissa o fato de se tratar
de uma literatura cristã que evidencia a importância de uma vida com Deus.
Os desafios de se adaptar tal texto para os quadrinhos nos permitiram trilhar por caminhos
que nos enriqueceram através das experiências criativas. Optamos por ilustrar em forma de
História em quadrinhos e adaptar o texto. Num segundo momento, buscamos argumentos
sobre a arte final.
As referências ilustrativas a seguir demonstram os estilos de ilustração que se pretendeu
chegar neste projeto. O objetivo foi desenvolver um traço realista e dramático que fosse
atraente ao público infanto-juvenil, mas que também transmitisse ao leitor toda profundidade
da narrativa.
Para chegar a este objetivo é fundamental a experimentação e o levantamento de diversos
tipos de desenhos a fim de utilizá-los como referência e analisando-os, compreender melhor e
mais adequada técnica de ilustração para o projeto em questão.
Os desenhos sendo realistas deixam claro ao leitor que não se trata de um conto de
fadas infantil, mas algo familiar a sua realidade. E os traços com contrastes de preto e branco
em nanquim inspiram uma compreensão dramática da narrativa, tornando a reflexão mais
envolvente.
5- Processos de criação
Antes de tudo vale ressaltar que, existem muitos pesquisadores interessados pelo tema da
criação como foco de debate. Estamos falando do processo criativo como um percurso de
238
trabalho, que é executado em meio ao diálogo entre o sensível e o intelectual. Abre-se, assim,
espaço para uma visão da criação onde são reconhecidos modos de ação e decisões com
envolvimento intelectual e sensível - consciente e não consciente.
De modo mais específico, Salles (1998) descreve o processo de criação como movimento
falível, com tendências, sustentado pela lógica da incerteza, englobando a intervenção do
acaso o qual possibilita espaço para a introdução de idéias novas. Um processo no qual não se
consegue determinar um ponto inicial, nem final.
Esse trajeto de criação, com tendências incertas e indeterminadas direcionam o artista em sua
incansável busca pela construção de obras, que satisfaçam seu grande projeto poético. Sem a
pretensão de nos considerarmos artistas, concordamos com Salles (1998)65, acerca do
percurso criativo. A autora descreve o percurso criativo, observado sob o ponto de vista de sua
continuidade. Em outras palavras, o processo de criação não se esgota, coloca os gestos
criadores em uma cadeia de relações, formando uma rede de operações estreitamente
ligadas. Toda ação criativa está atada a outras. Anotações, esboços, exposições, visitas, aromas
lembrados, livros anotados, tudo está de algum modo, conectado. Os elementos selecionados
já existiam, a inovação está no modo como são colocados juntos, dando continuidade ao
processo criador, aliado a sua natureza de busca e de descoberta.
Vale destacar que para Salles (1998) discutir processos de criação leva a um conceito
de inacabamento da obra intrínseco a todos os processos. O inacabamento olha para todos os
objetos de nosso interesse - seja um romance, uma peça publicitária, uma fotografia, um
artigo científico ou jornalístico, como uma possível versão daquilo que pode vir a ser ainda
modificado.
Nesse sentido, para a realização das ilustrações da obra de Simonton e mais precisamente para
a linguagem dos quadrinhos, optamos por investigar as ilustrações feitas aos personagens e
também verificarmos fontes de pesquisa diversas, como revistas, fotos e sites, que nos
servissem de modelo para a criação.
Para essa fase introdutória da pesquisa fizemos um levantamento de referências visuais acerca
do figurino feminino e masculino da época, além de móveis, objetos, cenário e paisagem. Segue
abaixo apenas uma pequena mostra do amplolevantamento que fizemos. Por fim, a
representação do personagem principal: Simonton.
65
Ver discussão mais aprofundada em Salles, C. A. Gesto Inacabado: processo de criação artística. São
Paulo: Annablume, 1998.
239
240
241
Figura 10: Referências visuais para HQ de Simonton
É interessante notarmos que o processo de criação não desperdiça rascunhos, esboços. Para
se obter um produto final, passamos pela dependência muitas vezes de desenhar e insistir no
domínio da técnica. Nos exemplos abaixo, verificamos os primeiros desenhos do personagem
Simonton, feitos na tentativa de adequação do melhor traço. Nesses exemplos, ainda
verificamos a necessidade de relacionarmos traços de desenhos com os figurinos de época e
por meio da gravura que retrata Simonton, procurou-se desenvolver a ilustração que o
representa.
Em uma fase bastante prática, iniciou-se o projeto de formatação para modelo da revista.
Abaixo podemos verificar os primeiros esboços e croquis que foram feitos a partir das
referências visuais levantadas.
242
243
Figura 11: Definição gráfica da estrutura do HQ e esboços iniciais.
Figura 12: Definição gráfica do personagem Simonton
244
Na ilustração que segue apresentamos a sequencia do resultado do Mackpesquisa, ou
seja, a narrativa histórica da vida e obra de Simonton. Começamos apresentando a capa e em
seguida o miolo do livro.
Figura 13: Definição gráfica da capa
245
246
247
Figura 14: História em Quadrinhos: Simonton
4 - Conclusão
Encaminhando-nos para os apontamentos finais desta pesquisa, queremos ressaltar ainda
algumas ideias. A vida de Simonton e seu exemplo de vida de fé impõe uma nova escala de
valores, um estilo de vida e postula modelos de comportamento.
Entendemos que os valores cristãos e sua importância permanecem relativizados na sociedade
secularizada, pela força dos diferentes discursos e dos mecanismos midiáticos.
Portanto, esperamos poder prosseguir nesse diálogo, deixando em aberto um modelo de
literatura que poderá vir a ser publicado e de algum modo responder a uma sociedade que
não consegue esconder o vazio e a frustração da vida sem sentido e ao recorrer ao exemplo de
Simonton, encontrar uma comunicação que trás uma mensagem de fé, de tolerância, de
solidariedade, de compaixão, de amor ao próximo, enfim, mensagens construtivas e
proveitosas que eduquem e estimulem as pessoas de múltiplas maneiras tendo em vista o bem
comum. Dito de outro modo, esperamos que o resultado final desta pesquisa possa de algum
modo, ser o embrião de uma proposta maior, como a publicação, por exemplo, dessa História
em quadrinhos que prioriza o resgate da memória do personagem Simonton, a fim de que as
futuras gerações mantenham a memória viva do legado deixado por esse homem de fé.
5 - Referências Bibliográficas
ABRAMOVICH, F. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1997.
248
COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infanto-juvenil: das origens Indoeuropéias ao Brasil contemporâneo. São Paulo: Ática, 1991.
________________. Literatura infanto juvenil : teoria, análise e didática. São Paulo: Ática,
1991.
COSTA, Hermisten Maia Pereira. Simonton: um homem dirigido por Deus. Cadernos de PósGraduação, Programa de Educação Arte e História da Cultura, Volume II nº 06. Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 1999
D’ÁVILLA, Antonio. Literatura infato-juvenil . 3. ed. São Paulo: editora do Brasil S/A., 1964.
(Coleção Didática do Brasil, série Normal vol. 20)
DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual. 2 ed. São Paulo: Martins fontes, 1997.
EISNER, William. Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo: Martins Fontes,1999.
GUYOT, Didier Quella - A história em quadrinhos – Coleção 50 palavras – São Paulo: ed.
Unimarco - 1994
MOYA, Álvaro de. História da história em quadrinhos no Brasil . 2. Ed. São Paulo: Brasiliense,
1993
RIZZO, Maria Amélia. Simonton: inspirações de uma existência. São Paulo: Gráfica São José,
1962.
SILVA, Nadilson Manoel da. Fantasias e Cotidiano nas Histórias em Quadrinhos. São Paulo:
Annablume, 2002.
SILVEIRA. Isabel Orestes. O ensino do desenho para crianças de 9 a 10 anos de idade. Um
estudo comparativo entre duas escolas públicas e duas escolas particulares da região central
de São Paulo. Dissertação de mestrado de Isabel Orestes Silveira. Orientador: Prof. Dr. João
Cardoso Palma Filho. 2006- Apresentada no Instituto de Artes da Unesp – Universidade
Estadual Paulista no ano de 2006.
SALLES, Cecilia Almeida.
Annablume, 1998.
Gesto Inacabado: processo de criação artística.
São Paulo:
VERGUEIRO, Waldomiro – Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo:
Ed. Contexto, 2004
249
Capítulo 6 Proezas Lúdicas
Apontamentos para compreender a narrativa líquida da TV
Alexandre Kieling66; Edleide Epaminondas de Freitas Alves67; Kênia Freitas68
Resumo
Este artigo aborda as variações contemporâneas da morfologia da narra va da televisual
provocadas pelas relações dessa mídia com as novas tecnologias de comunicação. Nesse
sentido, investigaremos os efeitos sob dois aspectos complementares: a dissolução dessa
narrativa em outros meios, pelas partículas dissipativas, e a inclusão de outras formas na
narrativa televisual, pelas partículas incorparativas. Para fins de análise, observaremos a
natureza de forma e a substância de conteúdo e expressão em exemplos de narrativas que
circulam entre a TV e Internet, trazendo como estudo de caso o projeto Porta dos Fundos.
Palavras chave:Televisão; Narratologia, Morfologia Narrativa; Partículas Dissipativas; Partículas
Incorporativas.
Abstract
This article addresses the contemporary variations of televisual narrative morphology which
result from this media relations with the new communication technologies. Therefore, we will
investigate the effects under two complementary aspects: the dissolution of narrative in other
media, by dissipative particle, and the inclusion of other forms in televisual narrative, by
incorporative particles. For analysis purposes, we will observe the nature of form and
substance and expression of content on examples of stories that circulate through the TV and
the Internet. We will use as study case the project Porta dos Fundos.
Key words: Television; Narratology; Narrative morphology; Dissipative particles; Incorporative
particles.
A narrativa televisual debate-se entre as demandas da múltipla oferta, as demandas de um
público volátil e infiel e as demandas pela fragmentação e expansão. Essas acomodações vêm
induzindo processos de deslocamentos e adaptações ao consumo de novos meios de difusão e
66
Prof
essor permanente do Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade Católica de Brasília, doutor em Ciências da
Comunicação, [email protected].
67
Dou
toranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Brasília, [email protected].
68
Pósdoutotanda do Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade Católica de Brasília, bolsita do Capes/PNPD,
[email protected].
250
circulação. São movimentos que, a priori, produzem variações na morfologia da narrativa da
televisual. Sob um aspecto, podemos dizer que os deslocamentos do texto da TV por outros
dispositivos implicam em efeitos dissipativos, que resultam em adaptações às características
dos meios de circulação e recepção. De outra parte, a mobilidade a qual está submetida
provoca ainda outro processo de composição narrativa: a incorporação de características
comuns aos outros meios. Assim, acreditamos que o presente fenômeno empresta à
morfologia da narrativa televisiva processos que incluem partículas dissipativas e partículas
incorparativas. E são essas partículas que iremos analisar neste artigo.
Iniciaremos nossa investigação retomando alguns aspectos fundamentais da morfologia
narrativa televisual. A morfologia narrativa é o estudo da estrutura narrativa, sendo que a
estrutura narrativa “é o padrão, a uniformidade observável, de acordo com a qual a história é
desenvolvida como um todo” (JIMÉNEZ 1996, p.16). Nossa atenção, dessa forma, estará
voltada para a compreensão de qual seria o padrão de estrutura da mídia televisão
considerando-a como sendo um certo modo de se contar histórias, ou de propor e mesmo
vender discursos que lhe conferem um caráter distintivo de outras mídias.
Por fim, para fins de análise, traremos como estudo de caso o projeto Porta dos Fundos69, um
coletivo de humor que produz esquetes e programas que circulam tanto pela televisão, quanto
pela internet. Defenderemos que a forma de construção narrativa do Porta dos Fundos é uma
demonstração exemplar dos efeitos de incorporação e dissipação da narrativa televisual.
Morfologia Narrativa: o canal televisivo e a promessa
A partir da observação da lógica operativa do relacionamento entre o telespectador e essa
natureza de proposta da emissora que configura sua identidade, é possível alinhavar e mesmo
admitir um deslocamento do sentido de Canal Televisivo. Anote-se que na constituição da
promessa se inscrevem pressupostos das abordagens do mundo, por meio das temáticas, da
estética, tanto de programas quando dos demais elementos paratextuais assim como o seu
encadeamento dentro de um fluxo contínuo, permitindo a manutenção ou atualização da
promessa. São construtos estratégicos que embalam um conjunto de conteúdos cuja
flexibilidade facilita a acomodação dos textos televisivos e sua apropriação pelo público em
qualquer plataforma de recepção.
Assim, analisaremos o Canal Televisivo, não mais como uma designação que se refere à faixa
de frequência na qual opera a organização produtora, programadora e transmissora. Nem
também, e tão somente, ao espaço no espectro eletromagnético por meio do qual um
transmissor emite suas ondas hertzianas. Afasta-se totalmente da aplicação presente na teoria
da informação, na qual canal é unicamente meio técnico. Afinal, admitindo-se a proposta de
Jost (2004), em que a promessa é um espaço de interface entre produtores e receptores dos
conteúdos da TV, é preciso considerar que tudo que o constitui a programação de uma
emissora configura a identidade deste emissor, portanto, como dito, faz parte da promessa.
69
Pro
dutora de vídeos humorísticos veiculados inicialmente pela internet. O Porta dos Fundos foi fundado em 2012. Mais informações
em: http://www.portadosfundos.com.br/. Acesso em 16 de outubro de 2015.
251
Desse modo, conteúdo e expressão do texto televisivo se somam onde suas formas e
substâncias ocupam ambientes técnicos (MCLUHAN, 1974) de circulação e consumo na
dinâmica da Midiosfera (KIELING, 2009). Atribui-se o sentido de canal televisivo a esse
conjunto de estratégias e conteúdos estruturados em grades de programação, com fluxos
vertical e horizontal que permitem o acompanhamento do tempo cronológico dos
acontecimentos, a partir da integração de textos desenvolvidos em tempo presente e tempo
fílmico. Soma-se ainda ao conjunto de textos uma amarração que lhes dá fluência utilizando-se
elementos que levam à identificação e ao reconhecimento (VERÓN, 2004).
O sentido de canal televisivo, livre das limitações de meio de transmissão, assume então uma
nova dimensão simbólica. Opera como uma interface identitária no processo comunicativo
televisual, que funciona como um elo entre emissor (televisão) e receptor (telespectador) em
qualquer suporte de circulação e consumo. Se é a conjunção entre as instâncias que autentica
o valor simbólico do discurso televisivo, a grade de programação funcionaria como uma
macronarrativa (SCOLARI, 2008; KIELING, 2009), que asseguraria a linha imaginária identitária
do canal, que vai costurando a sequência de micronarrativas, que são os programas.
Nesse contexto, os gêneros operam como máscaras que envolvem e ao mesmo tempo
referenciam, ordenam, estruturam os pacotes de conteúdos alinhados na grade. Ou, ainda,
poderíamos supor que os próprios canais televisivos apresentam-se como organizadores dos
gêneros discursivos, agregados ao viés institucional que também é constitutivo da promessa
da emissora.
Até aqui, definimos o canal televisivo para além do seu suporte técnico de transmissão e a
promessa como um vínculo fundamental era o emissor e o receptor da televisão. Mas como
esses elementos podem nos ajudar a pensar a estrutura da narrativa televisual? Esse modo de
contar histórias utiliza como base a linguagem audiovisual. No entanto, a utilização de um
conteúdo audiovisual como forma de relatar uma história não é privilégio dessa mídia.
Suscitando, portanto, a descrição de sua taxonomia narrativa.
Retomando o conceito de morfologia narrativa, Jiménez (1996) orienta que a estrutura do
relato audiovisual se constitui na comunhão entre conteúdo e expressão, e descreve esses dois
elementos em seus aspectos de forma e substância, à luz de Hjelmslev (2009):
A forma do conteúdo é a história. Seus elementos componentes são o
acontecimento, a ação, os personagens, o espaço e o tempo. A substância
do conteúdo é o modo determinado em que os elementos componentes são
contextualizados e tratados de acordo com o código particular de um autor.
A forma da expressão é o sistema semiótico particular ao qual pertence o
relato: cinema, tv, ballet, ópera etc. A substância da expressão é a natureza
material dos significantes que configuram o discurso narrativo. (JIMENEZ,
1996, p. 16-17)
A morfologia também se dedica ao estudo do discurso narrativo, noção que chegou ao âmbito
da narrativa procedente da linguística, por meio de Emile Benveniste. O discurso, em narrativa
audiovisual, “é o fluxo de imagens, sons e outros elementos portadores de significação, que
assumem a função de configurar textos narrativos, ou seja, textos cujo significado são as
histórias” (JIMÉNEZ, 1996, p. 17). A imagem e o som, enquanto significantes discursivos, quer
dizer, enquanto signos da sequencialidade narrativa, exibem três propriedades que lhes
252
conferem a capacidade de dar forma ao relato: a ordem, a duração e a frequência (JIMÉNEZ,
1996, p. 17).
A ordem, a duração e a frequência dos signos da sequencialidade macronarrativa televisiva
podem ser observadas por meio da organização de sua grade de programação, bem como pelo
fluxo estabelecido pelo canal. Podem, ainda, ser observadas verticalmente e horizontalmente.
O executivo de televisão Walter Clark (apud ARONCHI DE SOUZA, 2004, p. 54) afirma que TV
não é programa, mas programação. Aronchi complementa essa ideia lembrando que
“programação é o conjunto de programas transmitidos por uma rede de televisão”, sendo que
“o principal elemento da programação é o horário de transmissão de cada programa”. Verificase então que o horário de exibição é considerado o principal elemento da programação pelo
fato de que este elemento é o responsável pelo índice de audiência da TV. A necessidade de
criar um hábito de consumo de cada programa por meio desse encontro marcado fez com que
a televisão iniciasse o processo de produção de programas seriados. E nessa perspectiva nasce
o conceito de horizontalidade da grade:
A programação horizontal significa, em resumo, a estratégia utilizada pelas
emissoras para estipular um horário fixo para determinado gênero todos os
dias da semana, com o objetivo de criar no telespectador o hábito de assistir
ao mesmo programa nesse horário. (ARONCHI DE SOUZA, 2004, p. 55)
Faz-se necessária, então, a observação da narrativa em sua horizontalidade, pois uma das
características da televisão é a produção de micronarrativas seriadas com duração limitada
(dias, semanas, meses) ou ilimitadas (programas semanais, mensais).
Os conteúdos audiovisuais (programas, vinhetas etc.) produzidos para a televisão,
considerados significantes discursivos ou signos da sequencialidade narrativa, são capazes de
dar forma ao relato por meio de suas propriedades: a ordem, a duração e a frequência
(JIMÉNEZ, 1996). Sendo que a ordem se refere às escolhas de sequência dos programas, por
faixa horária; a duração às janelas de exibição, ou seja, à duração dos programas, ou ainda, dos
blocos de cada programa, que é determinado pela emissora; e a frequência por meio do índice
de variação de gêneros televisivos tanto em sua verticalidade quanto em sua horizontalidade.
De outra forma, ao observar a taxonomia narrativa da televisão por meio de suas várias
substâncias de expressão, da materialização do discurso por meio do texto, ou melhor, do
relato audiovisual, é importante realizar a descrição da morfologia narrativa da televisão,
considerando o conceito proposto por Hjemslev (2009) a partir da linguística e transposto para
a narrativa audiovisual por Jiménez (1996), por meio dos funtivos forma e substância do
conteúdo e forma e substância da expressão.
Acreditamos que a análise dos significantes discursivos, somada à descrição da estrutura
narrativa televisiva, a partir da concepção de canal aqui desenvolvida, nos aproxima de uma
possível proposta de elementos constituidores do palimpsesto televisivo, tais como a
promessa, os gêneros e a grade, fragmentados em macro e micronarrativas.
Dissipação e incorporação: o caso do Porta dos Fundos
253
O Canal televiso (KIELING e ALVES, 2013) composto por conteúdo e expressão em sua forma e
substância pode ser erroneamente comparado a fragmentos de suas substâncias expressivas,
quando ocorre produção de conteúdos híbridos contaminados pela natureza material que
configura seu discurso narrativo e ou pelo sistema semiótico que configura o seu relato. Dessa
forma, um conteúdo produzido de forma emancipada do Canal Televiso, mas que mobiliza a
percepção com um sistema semiótico a ele inerente pode ser considerado uma Partícula
Figura: Partícula Dissipativa
Grade Vertical
GÊNERO
Grade
Horizontal
GÊNERO
(Objetos
semióticos)
(Objetos
semióticos)
GÊNERO
GÊNERO
Híbrido
(Objetos
semióticos)
(Objetos
semióticos)
(Objetos
semióticos TV)
GÊNERO
GÊNERO
(Objetos
semióticos)
(Objetos
semióticos)
Ambiência
Midiática
Ordenamento do Discurso
Dissipativa do Canal Televisivo, como ilustra a figura a seguir:
Por outro lado percebemos que sistemas semióticos da web e da ambiência midiática
constituída em dispositivos móveis contaminam as narrativas de programas televisivos como
forma de tornar o uso de recursos interativos originários dessas ambiências facilmente
reconhecidos por telespectadores, ou seja, facilitando a mobilização de sua percepção. Um
exemplo seria a utilização de um plano que simula a visualização da tela de um computador,
com recursos próprios desse suporte, na tela da televisão. A esse movimento denominamos
incorporação, ou seja, a presença de uma partícula incorporativa ao Canal Televisivo.
254
Figura: Partícula Incorporativa
Grade
Grade Vertical
Horizontal
GÊNERO
GÊNERO
(Objetos
semióticos)
(Objetos
semióticos)
Ambiência
Midiática
GÊNERO
GÊNERO
(Objetos
semióticos)
(Objetos
semióticos
da Web)
(Objetos
semióticos
WEB)
GÊNERO
GÊNERO
(Objetos
semióticos)
(Objetos
semióticos)
Ordenamento do Discurso
A internet sendo reconhecida como um ambiente que, em princípio, oferece maior liberdade
de criação independente, começa a apresentar conteúdos com características peculiares, que
surgem a partir da hibridação de formatos de relatos audiovisuais para consumo na rede.
Um exemplo instigante é o canal Porta dos Fundos que se apresenta como “um coletivo
criativo que produz conteúdo audiovisual voltado para a web com qualidade de TV e liberdade
editorial de internet”. O projeto em menos de um ano de existência alcançou a marca de um
milhão de inscritos e ganhou APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de “Melhor
Programa de Humor para TV” (CANAL PORTA DOS FUNDOS, 2013). Mas o que seria essa
qualidade de TV? Aqui começamos a identificar pistas da presença da forma de expressão
televisiva como critério de identificação de uma suposta qualidade de TV.
A proposta do Porta dos Fundos nasce de forma independente, desconectada de um grupo
específico de mídia, no ambiente da rede e sem a necessidade da concessão de um canal –
frequência de transmissão –, com uma promessa de conteúdo editorial de internet que
pressupõe liberdade de expressão e independência dos grandes conglomerados de mídia. É
preciso lembrar, no entanto, que não há atualização significativa na produção de seus textos.
As esquetes – formato já conhecido pelo público consumidor por sua apropriação no teatro
pelo standup comedy – com pitadas de sitcom americanos, são produzidas sob as lógicas da
televisão tradicional e sofrem adaptações no tempo fílmico para atender a um perfil
identificado de consumo, aquele já descrito anteriormente.
255
Porta dos fundos: uma partícula dissipativa
A maneira como a TV, por meio dos seus mecanismos de produção, constrói recortes do
mundo real ou fictício, ou seja, enfatiza, desfoca, suaviza, exclui objetos na construção de seus
relatos, na materialização de seu simulacro, se refere a sua forma de expressão. Esta está
diretamente relacionada ao conceito de gramática televisiva (DUARTE, 2004). A construção
narrativa televisiva se manifesta na unidade básica da linguagem audiovisual que possui um
significado, o plano (JIMÉNEZ, 1996). Um conjunto de planos formará uma cena que, em
conjunto, formarão uma sequência, e, então, as várias sequências comporão a história. Os
planos desempenham um papel determinante na gramática televisiva.
Supomos então, que o Porta dos Fundos ao mobilizar a forma expressiva da televisão na
construção dos relatos de seus esquetes estão na realidade promovendo a dissipação de uma
partícula do Canal Televisivo. Esse movimento de dissipação, por outro lado, faz com que o seu
conteúdo seja reconhecido como sendo de televisão. Essa suposição explicaria o sucesso dessa
suposta novidade para os seguidores do portal: agora temos televisão na internet,
desvinculada das emissoras. E a contradição demonstrada pelo constante questionamento dos
mesmos seguidores nas redes sociais sobre a ida do produto para a televisão. Com essa
pergunta, os seguidores parecem reconhecer que se trata de uma partícula deslocada do Canal
Televisivo.
O grande sucesso do produto, fez com que o grupo lançasse mão de atualizações semanais de
conteúdo, produção de esquetes inéditas, que passaram a ter dia e horário de
disponibilização. Parece-nos haver aqui mais uma contaminação pelo palimpsesto televisivo, já
que a ação constitui a criação de uma grade horizontal.
Ainda resiste uma característica própria das esquetes que fazem parte desse produto e que
rompe com uma das características dos relatos televisivos, organizados em função de janelas
de exibição. Essa característica é a inexistência de um tempo determinado de duração. As
esquetes não obedecem a um padrão de tempo, cada história possui uma duração específica.
Porta dos fundos: partícula incorporativa
Ao serem questionados sobre a ida do Porta dos Fundos para a TV aberta, o grupo respondeu
com uma esquete entitulada Porta dos Fundos na TV. Na esquete o grupo reproduzia seus
vídeos mais visualizados com textos adaptados com referência ao programa de humor,
veiculado pela Rede Globo, Zorra Total. A ideia era mostrar que a censura inerente à instância
de produção roubaria o sentido de liberdade de expressão proposto pelo grupo. Ou seja, na
internet podemos falar o que queremos, utilizar palavras vulgares, tocar em temas polêmicos.
Na TV todas essas possibilidades seriam censuradas e o programa passaria a representar
apenas mais do mesmo.
Liberdade de criação é tudo. Não queremos ter compromisso algum, nem
mesmo com o politicamente incorreto. Nosso único objetivo é fazer coisas
engraçadas, sem denegrir a imagem de alguém, e acho que as empresas
entenderam isso, porque nos procuraram espontaneamente. Claro que
alguém em algum momento poderá não gostar, mas um aprendizado que a
internet trouxe é que é melhor rir na hora, junto, do que ficar sozinho,
sendo o alvo da piada. (Fábio Porchat)
256
Todavia, com esquetes que alcançam mais 13 milhões de visualizações, como é o caso do
esquete “Judith” ou que mantêm a média de 5 milhões de visualizações, não demorou para
que o grupo recebesse propostas de emissoras para que o projeto se incorporasse ao Canal
Televisivo. Aqui observamos que aquela que nasceu como partícula dissipativa do Canal
Televisivo, retorna como partícula incorporativa.
O Porta dos Fundos fechou parceria com o canal de TV por assinatura Fox, em 2014. Segundo
entrevista de um de seus fundadores, Gregorio Duvivier, a proposta da emissora respeitava o
formato que já vinha sendo veiculado na internet. A estréia do programa aconteceu em
outubro de 2014, no Brasil e em Portugal, e apresentou os esquetes já conhecidos,
disponibilizados no Youtube, com previsão de lançamento de novos conteúdos produzidos
para a emissora, em 2015.
Apesar de carregar a forma de expressão televisiva, o produto sofreu contaminações por ter
sido planejado para consumo na internet. Como foi dito anteriormente, a duração do relato
não seguia um padrão, os esquetes não eram criados de forma a serem organizados nas
janelas de exibição televisivas. Agora, segundo a emissora Fox, os esquetes são editados em
“formato televisivo” com duração de 20 minutos. O produto é considerado como partícula
incorporativa não por ter sido exibido originalmente na rece, mas em função de parte da
substância expressiva da internet se incorporar ao relato.
Referências
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______. Discurso da narrativa. Gérard. Lisboa: Arcádia, 1979.
HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma taxonomia da linguagem. São Paulo: Perspectiva,
2009.
JENKINS, Henry. A cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008.
JIMÉNEZ, Jesús Garcia. Narrativa audiovisual. Madrid: Cátedra, 1996.
JOST, François. Compreender a televisão. Tradução de Eizabeth Bastos Duarte, Maria Lília Dias
de Castro e Vanessa Curvello. Porto Alegre: Sulina, 2007.
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KIELING, A. S. Televisão: a presença do telespectador na configuração discursiva da
interatividade no programa “Fantástico”. Tese (Doutorado em Comunicação) – Unisinos, São
Leopoldo, 2009.
KIELING, A. S. Por uma nova economia do audiovisual. Comunicologia – Revista de
Comunicação e Epistemologia da Universidade Católica de Brasília, 2010. ISSN 1981-2132.
Disponível em:
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257
KIELING, A. S. A dinâmica das ofertas interativas e dos processos de interação na TV Digital.
CONGRESSO DA LUSOCOM, 10. Lisboa, 2012.
KIELING, A. S.; ALVES, Edleide E. F. O canal como um palimpsesto narrativo que preserva o
texto televisivo na convergência de meios digitais. CONGRESSO INTERNACIONAL IBERCOM, 13.
Santiago de Compostela, 2013.
MACLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo:
Cultrix, 1993.
PORTA DOS FUNDOS. Sobre a porta. Disponível em: <http://www.portadosfundos.com.br/>.
Acesso em: ago. 2013.
SCOLARI, Hacia la Hipertelevisón. Los síntomas de una nueva configuración del dispositivo
televisivo. Diálogos e la Comunicatción, 77, Julio-Diciembre, 2008.
SOUZA, José Carlos Aronchi de. Gêneros e formatos na televisão brasileira. São Paulo: Summus
Editorial, 2004.
VERÓN, Eliseo. Fragmentos de um tecido. São Leopoldo: Unisinos, 2004.
258
Reatualizações da Hipótese do Vale do Estranho Familiar em diálogo com a
Psicanálise
Adriano Messias - PUC-SP70 - email: [email protected]
Resumo:
Neste artigo, retomo a hipótese do Vale do Estranho Familiar, de Masahiro Mori, ensaio que
permaneceu por mais de quatro décadas no esquecimento. O texto de Mori me parece mais
pertinente aos cientistas, designers, artistas e teóricos de nossos dias do que poderia ter sido
em 1970, pois, agora, a robótica está mais avançada por meio de seus humanoides, em busca
da sonhada fidelidade à cópia humana. Isso se verifica tanto nos aspectos de aparência e
comportamento, quanto nos atributos da inteligência artificial. Entretanto, o que tem valido,
apoiando-me no texto de Mori, é a constatação e que, quanto mais próximo do humano, mais
incômodo e estranheza um androide causa nas pessoas, a ponto de vir a ser, repentinamente,
repudiado e renegado. Às vezes, basta um detalhe na constituição epidérmica sintética ou um
movimento muscular facial menos semelhante ao natural para se deflagrar que ali está, de
fato, um robô. Proponho, pois, uma reatualização da hipótese de Mori a partir de comentários
sobre o gráfico que acompanha seu pequeno ensaio original, e também de uma mirada
psicanalítica sobre a problemática, considerando o quão presente na contemporaneidade é o
antigo desejo de se fazer com que um robô seja a cópia fiel de um ser humano.
Palavras-chave: psicanálise – semiótica – robótica - cinema
Abstract:
In this paper I retake the Masahiro Mori’s hypothesis of the Uncanny Valley present in an essay
that remained for more than four decades in oblivion. Mori’s text seems more relevant to the
scientists, designers, artists, and theorists today than it might have been in 1970 because now
robotics is much more advanced from its humanoid creations in search of the dreamed
perfection of a human copy. This can be verified both in appearance and behavior aspects as in
terms of artificial intelligence. However, according to the Mori’s text, what has been
noticeable is that the closer is an android to the human form, more discomfort and
strangeness it can cause up to the point of being suddenly disavowed and disowned.
Sometimes just a little detail in a synthetic epidermal constitution or even a facial muscle
movement less similar to the natural movement is able to expose that we indeed face a robot.
I propose therefore an updating of Mori’s hypothesis from comments about the chart
accompanying his small original essay, and also from a psychoanalytic glance on this issue,
considering how present in our times is the ancient desire to produce a robot like the perfect
copy of a human being.
Keywords: psychoanalysis - semiotics - robotics - movies
70 Pós-doutorando com bolsa Fapesp no Programa de Estudos Pós-Graduados em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, PUCSP.
259
Conhecendo a hipótese
O caminho da humanização das criações tecnológicas da robótica coincide com as questões da
humanização das máquinas enquanto personagens do cinema: HAL 9000, o computador
psicótico de 2001, uma Odisseia no Espaço (2001, a Space Odissey, Stanley Kubrick, 1968),
RoboCop (RoboCop, Paul Verhoeven, 1987) e sua teologia da ressurreição, ou a mãe humana
que não estava “programada” para amar o sensível filho androide em A.I., Inteligência Artificial
(A.I., Artificial Intelligence, Steven Spielberg, 2001), por exemplo, evocam o assombro perante
a imprevisibilidade das criaturas robotizadas, em confronto com as limitações humanas.
Agregados ao desejo de se engendrar um aparato inteligente que espelhe uma certa
subjetividade, estão os avanços formais da tecnologia que, muitas vezes, contrariam as
expectativas dos cientistas: por que uma máquina, quanto mais próxima de uma suposta
semelhança humana completa ou idealizada, mais nos incomoda? Por que as pessoas tendem
a rejeitar as representações da cibernética que flertam com o quase-humano? Estas são
perguntas que dialogam diretamente com o fracasso de certos filmes e games junto a seu
público, e com a repugnância que determinadas novidades tecnológicas nos causam, conforme
discuto neste artigo.
A hipótese do Vale do Estranho Familiar (Uncanny Valley)71, de Masahiro Mori, tentou dar
conta do panorama de estranhamento que acompanha muitas criações e representações
cibernéticas. Elaborada no Japão, na década de 1970, inicialmente foi restrita ao campo
científico e praticamente não teve resposta dos leitores que dela tomaram conhecimento na
época72. Mori, convidado para escrever um breve ensaio sobre robótica, lembrou-se da
peculiar e desagradável sensação que figuras de cera lhe causavam quando menino, assim
como da estranheza das mãos protéticas eletrônicas que a ciência já desenvolvia. De início, o
artigo não agradou muito: uma investigação séria sobre robôs era considerada com
desconfiança e sem grandes propósitos no Japão daquele período. Hoje, porém, o Vale do
Estranho Familiar pode ser entendido como instrumento útil para se fazer indagações bastante
úteis no campo da animação em 3D, dos games, dos filmes e de outros suportes que
trabalhem com criação e imagem.
Tal hipótese me impeliu a buscar o precioso ensaio de Sigmund Freud, O Estranho Familiar
(Das Umheimliche), de 1919 – termo este que foi traduzido de forma não muito adequada em
língua portuguesa, ora como “sinistro”, ora como simplesmente “estranho” –, ainda que
Masahiro Mori não tenha sido estudioso da psicanálise. Neste texto, Freud analisa O Homem
71 No original, o texto se chama Bukimi no Tani, e foi publicado inicialmente em um discreto periódico japonês (Energy, de
responsabilidade da Esso). Sua primeira tradução para o inglês aconteceu apenas em 2005, às pressas e de madrugada, em um
laboratório japonês de robótica. Foi feita sem grandes pretensões pelo pesquisador K. F. MacDorman, que queria apenas ajudar
um colega. Somente em 2012 a tradução foi devidamente revisada, tendo contado com a participação da jornalista Norri Kageki,
que escreve sobre robôs. O termo shinwakan, presente no texto original, foi traduzido, no inglês, como sendo equivalente a
“familiaridade”, “afinidade”, “encontro entre mentes”; logo, um shinwakan negativo – o que tem a ver com a sensação de
incômodo que determinados androides nos causam – parece recuperar o sentido psicanalítico anglo-saxônico de uncanny, o
“estranho familiar”. Por isso, houve uma associação apressada entre ambos os termos. O termo familiarity, empregado na linha
vertical do gráfico que sintetiza a hipótese de Mori (gráfico este que é apresentado adiante), foi alterado, no texto revisado de
2012, para affinity. Há quem defenda, em vez de uncanny, o uso de eeriness, que sugere “estranhamento”, “mistério”, “espanto”.
Mas, considerando o quanto o texto japonês tem, de fato, afinidades com a ideia freudiana, prefiro o uso de uncanny. Ou seja, a
proximidade entre o conceito psicanalítico e a expressão de Mori acabou por ser muito mais evidente do que se supôs.
72 Somente em 2005, na Conferência Internacional de Automação e Robótica sobre Robôs Humanoides da IEEE, o ensaio de Mori
ganhou relevo.
260
de Areia (Der Sandmann), conto fantástico de E. T. A. Hoffmann73, e estabelece as bases do
que ele considerou um familiar estranhamento: o fato de alguém se deparar com uma situação
que, a princípio, seria conhecida e mesmo esperada, mas que, simultaneamente, causaria
medo, repulsa ou desconforto. É o caso de quando alguém se levanta à noite para ir ao
banheiro e tem a impressão de ter visto um vulto misterioso no espelho. Porém, ao acender a
luz, conclui que se tratava da mera projeção de um casaco dependurado atrás da porta.
Em seu texto, Masahiro Mori, então professor de robótica do Instituto de Tecnologia de
Tóquio, usou uma expressão que foi traduzida para o inglês como Uncanny Valley, uma vez
que uncanny é expressão equivalente à alemã Umheimliche, conforme explicado em nota de
rodapé. Sob o escopo psicanalítico, é inegável que sua hipótese se ancora intuitiva e
amplamente nos pensamentos de Sigmund Freud e de Ernst Jentsch, psiquiatra alemão que
inspirou a escrita de O Estranho Familiar a partir do ensaio Sobre a Psicologia do Estranho
Familiar (Zur Psychologie des Umheimlichen, 1906). A ideia topográfica de um vale, no gráfico
de Mori, apresenta a reação crescentemente simpática de uma pessoa perante a
verossimilhança de um robô; simpatia esta que, entretanto, cai de maneira abrupta até atingir
o nível da antipatia e da repulsa toda vez que um humanoide não apenas “finge” ser humano,
mas, de fato, “pretende” parecê-lo ao máximo. O ponto nevrálgico aqui, segundo o roboticista,
é existir, por trás dos esforços da criação tecnológica, uma vontade de equiparação ao humano
em termos de aparência, funções e comportamento. De acordo com o ensaio, à medida que a
fisionomia de um robô, androide ou ciborgue se torna mais humanizada, mais positiva e
empática será a resposta de quem o observa, desde que não se ultrapasse um limite máximo
de similitude. Do contrário, cai-se no abismo do estranho familiar. Entretanto, se as feições da
criatura se tornarem cada vez mais distinguíveis às de um humano, a resposta emocional do
observador será, uma vez mais, positiva, e a curva ascendente assumirá o nível empático que
costuma haver entre dois humanos de verdade. Para melhor esclarecer, apresento a seguir o
gráfico de Masahiro Mori.
73 A editora Companhia das Letras traz, em sua coleção Obras Completas de Freud, em 20 volumes, a opção “inquietante”.
Acredito que alguns conceitos psicanalíticos já permanecem tão classicamente definidos em língua portuguesa que se torna difícil
pensar em outra alternativa lexical. O texto desta editora, ao qual me refiro aqui, encontra-se especificamente no volume que
agrega textos de 1917 a 1920, sob o título O Inquietante, com tradução de Paulo César de Souza. Malgrado as críticas que, no
decorrer de décadas, têm sido feitas à tradução da coleção Standard, esta tem-me sido de mais valia.
261
Nele, pode-se notar que a reta vertical vai da menor à maior afinidade com o ser criado, e a
horizontal, da menor à maior semelhança humana. O pontilhado se refere às criações
moventes, que usualmente causam maior impacto do que as imóveis (linha não pontilhada).
Ao acompanharmos esta última, vemos que ela apresenta um pico em animais empalhados, e
depois despenca ao nível dos cadáveres. A linha pontilhada tem seu início com os antigos
robôs industriais, aqueles menos humanizados, e segue até atingir o patamar do robô
humanoide (o androide). Porém, quando a intenção de um designer é tornar a criatura
“idêntica” à forma de um ser humano, a mesma cai em desconsideração por parte dos
apreciadores, e vai parar na fossa abissal do Vale do Estranho Familiar, onde apenas o zumbi
se sobressairá em termos de horror e repulsa. Mori, nos anos de 1970, também inseriu uma
mão protética neste nível não-empático, posto que, para ele, a intenção de se reproduzir o
membro humano em sua perfectibilidade deixava a incômoda marca de um “quase” que se
pretendia “igual”; ou seja, existia, tanto na textura da pele quanto nos movimentos das
próteses de sua época, algo que não conseguia convencer totalmente um observador.
Figura 1: O braço humano (na parte superior da foto) controla a mão
protética. Esta imagem ilustra o ensaio original de 1970 de Masahiro Mori (2012).
A linha repentina de subida do gráfico vai ao encontro dos tradicionais bonecos banraku da
cultura japonesa, dotados de movimentos quase humanos, e termina no ponto em que está
262
representada uma pessoa de aparência saudável. Portanto, conforme o gráfico, o que faz com
que as criações da robótica tenham um efeito angustiante sobre o observador é a presença de
sutis diferenças na aparência e no comportamento dos humanoides, diferenças estas
ressaltadas com a movimentação. A isto eu denomino de efeito do estranho familiar
biotecnológico ou cibertenológico.
A humanização das máquinas
A história das representações dos robôs, androides e ciborgues no cinema ressalta o mal-estar
humano, em grande medida de propensão paranoica e fóbica, para com os prováveis perigos
da tecnologia, ainda que, em torno desta questão, o temor seja de fato tão antigo quanto o
das primeiras incursões da civilização pelo reino das técnicas e das invenções. Porém, o
diferencial que o século passado nos reservou foi a aproximação a uma já não tão fictícia
cultura das máquinas: note-se como até mesmo a célebre configuração do monstro de
Frankenstein no cinema o apresentou mais robotizado – a exemplo dos parafusos no pescoço
(Frankenstein, James Whale, 1931) –, em comparação com a personagem original da obra
literária de Mary Shelley.
Figura 3: Configuração de Frankenstein no clássico de 1931.
Lembro aqui outras figuras que se tornaram caras à ficção científica: o protagonista de O
Exterminador do Futuro (The Terminator, James Cameron, 1984), que nos fez indagar sobre o
que aconteceria se um ciborgue se rebelasse contra a própria programação e, de servo,
passasse a mestre, em oposição à palavra “robô”74.
Dentre os personagens que enriqueceram o imaginário americano em torno da sci-fi, cito os
simpáticos robozinhos do filme Corrida Silenciosa (Silent Running, Douglas Trumbull, 1972).
Nele, um cosmonauta perdido é auxiliado por um trio de drones: o drone 1, Louie; o drone 2,
Huey; e o drone 3, Dewey – homenagem aos três sobrinhos do Pato Donald.
Figura 4: Os três drones de Corrida Silenciosa.
74 Da palavra checa robota significa “trabalho forçado”, “trabalho escravo”.
263
Engraçados e geométricos, eles foram inspiradores de R2D2, o caro parceiro de C3PO na saga
Guerra nas Estrelas. Este último, um polido droide dourado, foi programado para exercer
funções de mordomo.
Figura 5: R2D2 e C3PO
Figura 6: Maria, a robô dominadora.
Sua arquitetura exoesquelética, por sua vez, foi inspirada na terrível Maria, de Metrópolis
(Metropolis, Fritz Lang, 1927). Ainda no percurso das representações de robôs, é valorosa a
figura do desajeitado Robby, tanto de Planeta Proibido (Forbidden Planet, Fred M. Wilcox,
1956) quanto de O Menino Invisível (The Invisible Boy, Herman Hoffman, 1957), outro
representante das máquinas serviçais a caminho da humanização. E no século XXI, dá-se um
encontro cada vez maior entre a inteligência artificial e a robótica, o que se traduz em várias
produções cinematográficas, a exemplo de Eu, Robô (I, Robot, Alex Proyas, 2004), Substitutos
(Surrogates, Jonathan Mostow, 2009) e Eva, um novo começo (Eva, Kike Maíllo, 2011), sem
mencionar os games e as animações.
Figura 2: Robby, o robô gentil.
Decidi, portanto, retomar a hipótese de Masahiro Mori e enriquecer os elementos de seu
gráfico ao pensar em algumas das variadas criações e representações que marcaram a cultura
tecnológica, não só neste século, mas desde os anos de 1970, quando aquele roboticista
japonês desenvolveu pela primeira vez suas ideias em torno do Vale do Estranho Familiar.
Conforme MacDorman (2005), trata-se de uma hipótese que recebeu pouca investigação
científica direta desde sua elaboração. Assim, seguindo a curva ascendente que se inicia com
os robôs industriais, o carismático R2D2 antecederia C3PO, seu companheiro com feições mais
humanas. E o simpático cão robô da Sony, Aibo, também estaria nesta parte da curva. Na linha
264
pontilhada, estariam softwares, como o Siri, um aplicativo no estilo assistente pessoal para
iOS, e Samantha, personagem virtual no filme Her (Spike Jonze, 2013) – na verdade, um
sistema operacional para smartphone. A drone borg Seven of Nine, que aparece nas
temporadas 3 a 7 de Star Trek: Voyager (Rick Berman, Michael Piller, Jeri Taylor, 1995-2001),
se insere na linha contínua descendente. A hipótese de Masahiro Mori também vale para os
esforços de fotorrealismo no que diz respeito a personagens de jogos, em especial aqueles
voltados para a indústria dos produtos 3D: afinal, nos menores detalhes é que se flagra uma
incongruência, como um piscar de olhos pouco natural ou um sorriso não convincente para a
emoção de um personagem em determinada cena.
As linhas descendentes rumo ao solo do Vale exibiriam figuras como as de Data, um androide
do tipo Soong75 do seriado Star Trek (linha contínua), de vários hubots do seriado sueco (Real
Humans/ Äkta Människor, Lars Lundström, 2012); ou dos Real Dolls, bonecos sexuais em
borracha de silicone platina (estes últimos permaneceriam na linha pontilhada). No fundo
quase abissal, jazem criações como o robô Sonny, de Eu, Robô (I, Robot, Alex Proyas, 2004), e
personagens das animações Tin Toy (Tin Toy, John Lasseter, 198876), O Expresso Polar (The
Polar Express, Robert Zemeckis, 2004), A Lenda de Beowulf (Beowulf, Robert Zemeckis, 2007),
As Aventuras de Tintim: O Segredo do Licorne (The Adventures of Tintin: The Secret of the
Unicorn, Steven Spielberg, 2012), que causam estranhamento no espectador. Jogados neste
abismo, provavelmente estariam também nossos clones, caso eles já existissem, ao lado de
membros protéticos revestidos por pele sintética e isolados de seus corpos receptores, e, por
que não, até mesmo a Ultimate Machine, de Claude Shannon. Em tom humorístico, aquele
engenheiro e matemático americano deixava sobre sua mesa esta curiosa invenção: uma caixa
contendo uma mãozinha mecânica dentro. Quando alguém apertava um interruptor na lateral
do dispositivo, a mão saía para fora, desligava-o e retornava para seu sossego. Este dispositivo,
espécie de robô freudiano, tinha por única finalidade se desligar quando alguém acionava o
interruptor. O estranhamento no usuário se dava pela presença da mão independente, que se
movia para fora da caixa, lembrando uma ampla tradição em torno de membros e outras
partes do corpo que se moviam galvânica e misteriosamente. Atualmente, a cirurgia a
distância, que se efetiva por meio de um par de luvas que parecem fazer passes espirituais
sobre o paciente, rememora a invenção de Shannon. Em medicina, este procedimento, que já
ocorre em diversas partes do mundo, é chamado também de cibercirurgia, telecirurgia ou
cirurgia remota. Esta “cirurgia do futuro” teve início em 2001, quando o professor Jacques
Marescaux e sua equipe, em Nova York, operaram a vesícula biliar de uma paciente em
Estrasburgo usando um console robotizado. O procedimento transatlântico pioneiro foi
batizado de Operação Lindbergh.
Quando o robô nos aponta o Real
O Vale proposto por Mori pode ser visto como um desafio geográfico: ou, por cautela, um
cientista se mantém na borda anterior do penhasco, evitando aproximar seu robô da perigosa
semelhança humana, ou, então, ele empreende um “salto” arriscado, que pode inserir sua
obra tecnológica diretamente na margem oposta, sem que aquela conheça as profundezas do
75 Este tipo de androide foi criado pelo ciberneticista Noonian Soong no respectivo seriado.
76 Este filme ganhou o Oscar de melhor curta de animação de 1988.
265
desprezo que o estranhamento causa nas pessoas. Porém, a chance de falhar, em nossos dias,
ainda é significativa, conforme exemplifiquei. Por isso, não se pode desconsiderar a força do
impacto emocional e cognitivo das novas gerações de robôs humanoides sobre os humanos.
O dilema dos cientistas e dos designers tem sido pensar se devem manter suas criações
ligeiramente afastadas de uma suposta fidelidade ao humano, para que se evite provocar
estranhamento, ou se as aprimoram insistentemente, a fim de chegarem a uma desafiadora
cópia perfeita de nós mesmos. Segundo o próprio Masahiro Mori, alguns robôs de nossos dias
praticamente já conseguiram ultrapassar o nível do estranho familiar, evitando-se, com isso, o
infernal abismo do Vale (cf. entrevista do roboticista em: KAGEKI, 2012). Ele cita, como
exemplo, o caso do HRP-4C, um humanoide de tamanho adulto, criado pelo Instituto Nacional
de Tecnologia e Ciência Industrial Avançada do Japão77, que, entretanto, não me convence de
ser totalmente incapaz de provocar o estranho familiar. Relutante, porém, Mori acredita, mais
de quarenta anos após escrever sua hipótese, que é melhor os cientistas pararem de buscar a
similitude humana em suas criações, antes que estas caiam na depressão do Vale. Para ele,
não há necessidade de uma máquina ser absolutamente igual a um humano, considerando-se
que a margem de erro pode transformar um humanoide em fracasso. Diferentemente de
outros pesquisadores, como Rodney Brooks78, Mori acredita que não conseguiremos jamais
criar uma pessoa apenas derivada do maquínico, e se preocupa com o lado negativo da
tecnologia. Para ele, já octagenário, cabe uma reflexão filosófica sobre o problemática, o que
pessoalmente busca apoiando-se na relação entre os ensinamentos de Buda e o mundo
tecnológico.
Do ponto de vista psicanalítico, penso que o Vale do Estranho Familiar é o lugar do “quase”, da
vida que quis ser humana, do morto que não se contentou com a condição imóvel, e do robô
que desejou tornar-se pessoa, mas, por conta de um mero traço performático, veio a cair em
descrédito. Ora, indo além, o que faz com que várias criações tecnológicas sejam “jogadas” no
funesto Vale tem a ver com o incômodo que sentimos com a morte e sua inevitável
constatação: afinal de contas, um androide – esteja ele inanimado ou animado – pode parecer
cadavérico (cf. MacDORMAN, 2005, p. 2) ou nos fazer lembrar o corpo morto, e o mesmo se dá
com uma cabeça, um braço ou uma perna separada do todo orgânico.
A partir deste contexto, ser inserido no perímetro obscuro do Vale significa ter se aproximado
demasiadamente da região dos mortos – ou seja, apresentar indícios e sinais da mortalidade –,
o que exacerba nossos mecanismos de defesa, como a negação. Em suma, estar dentro do
Vale é acercar-se em demasia do Real lacaniano, da perturbadora Coisa – corpo estranho –,
que se constitui por um dimensionamento que se nos escapa em termos de representação. E
isso significa flertar com a própria pulsão de morte que, por rodear sempiternamente o Real,
também se insere nas bordas do reino do impossível. Portanto, a marca “quase” humana de
um robô androide, esta criação que – a despeito dos esforços dos cientistas e designers –
(ainda) foge ao convencimento total de sua similitude, acaba por esbarrar na delicada encosta
77 Cf. os vídeos:
https://www.youtube.com/watch?v=xcZJqiUrbnI, de 2010, https://www.youtube.com/watch?v=YvbAqw0sk6M, de 2011,
https://www.youtube.com/watch?v=X3oH01RXZrI, de 2012, e https://www.youtube.com/watch?v=i3o7P91-WYI, de 2013.
78 Atual diretor do Laboratório de Inteligência Artificial e Ciência da Computação do MIT, Instituto de Tecnologia de
Massachusetts, e professor de robótica da Panasonic.
266
que separa o mundo da linguagem daquele do indizível. O Vale do Estranho Familiar poderia,
assim, ter outro nome: Vale da Sombra da Morte.
Referências:
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Disponível
em:
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2012/11/cirurgia-que-usaimagens-3d-e-robos-e-o-futuro-da-medicina-diz-cientista.html Acesso em: 13 de dezembro de
2014.
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Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
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KAGEKI, Norri. An Uncanny Mind: Masahiro Mori on the Uncanny Valley and Beyond. [12 jun.
2012] Disponível em: http://spectrum.ieee.org/automaton/robotics/humanoids/an-uncannymind-masahiro-mori-on-the-uncanny-valley Acesso em: 12 de dezembro de 2014.
MacDORMAN, Karl F. Androids as an Experimental Apparatus: Why is there na Uncanny
Valley
and
can
we
exploit
it?
[2005]
Disponível
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http://www.androidscience.com/proceedings2005/MacDormanCogSci2005AS.pdf Acesso em:
02 de dezembro de 2014.
MACÊDO, Lucíola Freitas. Primo Levi: a escrita do trauma. Rio de Janeiro: Subversos, 2014.
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and
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Disponível
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MORI, Masahiro. The Uncanny Valley. [nova tradução] [jun. 2012]. Disponível em:
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OLIVEIRA, Adriano Messias de. Todos os monstros da Terra: o bestiário fantástico do cinema
pós-2001. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica). Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, PUC-SP, São Paulo, 2014.
ROTHMAN, Paula. Kinect é rackeado para cirurgia a distância. Disponível em:
http://info.abril.com.br/noticias/ciencia/kinect-e-hackeado-para-cirurgia-a-distancia19012011-21.shl Acesso em: 13 de dezembro de 2014.
267
Play theMovie. O diálogo entre as estéticas lúdica e cinematográfica
Yuri Garcia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, [email protected]; Ivan
Mussa, Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, [email protected]
Resumo:
O presente trabalho tem como objetivo analisar o filme “Tron” (1982) de Steven Lisberger a
partir da relação entre cinema e videogame. Se o diálogo entre diferentes mídias não é
novidade nos estudos de Comunicação (sobretudo do audiovisual), há de se pensar em como
ocorre esse diálogo. McLuhan destaca que toda mídia nova traz características de uma mídia
mais antiga. Seguindo essa ideia, Jay Bolter e Richard Grusin propõem o termo “remediação”
para pensar em como essa relação se dá. “Tron” foi uma novidade no meio cinematográfico ao
referenciar uma história sobre videogames trazendo um visual e uma estética que remetem ao
meio. Assim, ao propormos nosso objeto como um possível pioneiro de tal diálogo, podemos
desvelar interessantes características que se propagam com mais força atualmente (como a
utilização de recursos estéticos e visuais dos games no cinema) e problematizar outras
associações entre essas mídias que não têm obtido o mesmo êxito (como filmes baseados em
jogos).
Palavras-chave: cinema; videogames; mídias; Tron.
Abstract:
This paper aims to analyze the movie “Tron” (1982) of Steven Lisberger through the relation
between cinema and videogame. If the dialogue between different mediums in not something
new in the Communication studies (especially in the audiovisual), we must think about how
this dialogue happens. McLuhan highlightens that all new medium brings characteristics of an
older medium. Following this idea, Jay Bolter and Richard Grusin propose the term
“remediation” to think about the way in which this relation happens. “Tron” was an innovation
in cinema by making reference to a story about videogames bringing an aesthetic and visual
that makes reference to this medium. So, by proposing our object as a possible pioneer of this
dialogue, we can uncover interesting aspects that propagate more intensively nowadays (like
the utilization of aesthetic and visual resources of games in movies) and problematize other
associations between these mediums that haven’t obtained the same success (like movies
based in games).
Key-words: cinema; videogames; mediums; Tron.
Introdução
O cinema se utilizou de elementos de outras mídias desde seu início. Criado como uma
invenção79, adquiriu o aspecto cênico do teatro com o passar do tempo e hoje se assemelha
79 Para mais detalhes ver COSTA, 2005.
268
em muito a literatura em seu aspecto narrativo (tanto que os livros sempre foram uma
enorme fonte de inspiração para filmes). Não estamos apenas nos referindo aqui às
transposições, mas também a diversos elementos de outras mídias que vemos em um filme
(um interessante exemplo é a utilização do clássico “Era uma vez” em início de filmes com a
imagem da primeira página de livros com tal frase).
Atualmente, parece haver uma tendência no cinema Blockbuster em se utilizar de Histórias em
Quadrinhos como sua fonte de inspiração, mas enquanto a indústria dos videogames cresce
massivamente chegando a render mais do que a cinematográfica, poucas transposições são
feitas. Entretanto, pensar nos diálogos entre esses meios apenas no âmbito das transposições
é simplificar demais uma possibilidade mais interessante de análise. Enquanto filmes baseados
em games não surgem com freqüência e/ou não obtém tanto êxito, outros aspectos do
universo dos videogames são cada vez mais vistos no cinema.
O diálogo entre tais mídias não começou com uma transposição e sim com um filme que
misturava animação digital, linguagem de computadores e videogames em uma história que
foi aparentemente muito complexa para a sua época.
A época em questão é 1982, quando a Walt Disney Pictures lançou “Tron” com o astro, ainda
em ascensão, Jeff Bridges e escrito e dirigido pelo desconhecido Steven Lisberger. Traduzido
no Brasil pelo estúdio Herbert Richards como “Tron – Uma Odisséia Eletrônica”, o filme não
obteve a resposta esperada pelo estúdio (talvez em parte pelo lançamento de “E. T. – O
Extraterrestre” no mesmo ano) e recebeu poucas críticas favoráveis. No entanto, com o passar
do tempo, acabou se tornando uma obra Cult.
Atualmente, “Tron” é considerado um precursor na indústria cinematográfica. Além de ser o
primeiro filme a dialogar diretamente com os videogames, é também um dos primeiros na
utilização de diversas técnicas de efeitos visuais tão vistos nos filmes de hoje. O imaginário
gerado por computador foi considerado o inspirador de várias idéias criadas pelo chefe do
grupo de animação da Disney e da Pixar, John Lasseter. Podemos ver não apenas o visual nos
remetendo a videogames da década de 1980, mas toda a história se passa dentro de um
sistema computacional com jogos como desafios (para permanecer vivo).
Mas qual a espécie de diálogo que o filme promove especificamente e como tal diálogo se
desenvolve a partir dele? Embora seja o primeiro e o objeto principal de análise desse texto,
tentaremos utilizá-lo para problematizar certas características que se desenvolvem com mais
força na contemporaneidade e assim, passar por outros filmes ao longo do texto.
Tron
O roteiro de Steven Lisberger é baseado em uma história criada em parceria com Bonnie
MacBird. Kevin Flynn é um engenheiro de Softwares que trabalha para a corporação ENCOM e
passa horas desenvolvendo ideias para videogames com o objetivo de fundar sua própria
companhia. Outro funcionário, Ed Dillinger, rouba seus projetos e os apresenta como seus para
conseguir uma promoção para Vice-Presidente. Flynn é demitido e abre um Arcade para se
sustentar, entretanto, decide invadir o servidor da ENCOM usando um programa chamado CLU
para encontrar provas da fraude. CLU é detectado e destruído por um programa criado por
269
Dillinger para proteger os sistemas da ENCOM chamado Programa de Controle Mestre (MCP)
que acaba também desativando o código de acesso de Alan Bradley, outro funcionário da
empresa que criou um programa chamado Tron para monitorar o MCP.
Bradley e sua namorada, Dra. Lora Baines, ao descobrirem que Flynn tentou invadir os
servidores da empresa decidem ir avisá-lo que ele foi detectado. Unidos, invadem o prédio da
ENCOM para usar o código de acesso do laboratório de Lora. O MCP detecta a ameaça de
Flynn utiliza um laser que a doutora estava desenvolvendo para digitalizá-lo e transportá-lo
para o mundo virtual (onde os programas possuem a aparência de seus criadores, chamados
de Usuários).
Dentro desse novo mundo, começa a aventura de Flynn com torneios (uma espécie de
gladiadores eletrônicos), corridas de motos (Lightcycles), tanques e naves, onde ele descobre
ser mais poderoso por não ser um programa e sim um Usuário e se une a Tron e Yori
(programa criado por Lora) para tentar derrotar o MCP.
A inspiração para criar “Tron” surgiu em 1976 quando Steven Lisberger viu o jogo “Pong” pela
primeira vez. O diretor era um animador de desenhos em sua própria empresa a época. Depois
de tentar produzir o filme independentemente com o auxílio de algumas companhias de
informática. Após receber diversas recusas começou a procurar estúdios de cinema que
também descartavam sua ideia. Em 1980 levou sua ideia aos estúdios Disney, que concorda
em financiar um teste para ter uma noção do produto e após gostarem do resultado decidem
apostar no projeto.
O filme aborda temáticas relacionadas à computação e videogames e, mesmo tendo sido mais
complexo para a época em que foi lançado (em que pessoas ainda não conheciam informática
muito bem) teve um alcance razoável de público (embora bem abaixo do esperado pelos seus
financiadores). De certa forma, podemos vê-lo como um pioneiro nesse diálogo entre cinema e
videogame. Mas qual o diálogo que o filme propõe e qual sua relação com o nosso cenário
contemporâneo. Ao observarmos filmes como “Scott Pilgrim vs. the World” (2010) ou
“SuckerPunch” (2011) vemos uma estética de videogames presente. Seria “Tron” o responsável
por isso?
Mas antes de responder tal questão, devemos pensar no que seria realmente esse termo
“estética de videogames” que usamos tão levianamente para nos referir a tais filmes. E ainda
procurarmos entender porque escutamos falar de linguagem e gramática do videogame no
cinema? O que seria uma “estética” de videogames? O que seria a “linguagem” de
videogames? E como tudo isso se reflete no cinema?
Filmes e Videogames
Diálogos entre mídias diferentes não é um assunto novo e atualmente, parece até ser algo
impossível de se separar. A transmidialidade não é tão comentada apenas por ser um tema
que se encontra na moda, mas também por ser algo sempre visível quando olhamos para um
objeto oriundo de uma mídia. O próprio “Tron”, além se ser um filme com diversos aspectos
de videogames dentro, possui suas versões para videogame que são baseadas no filme, suas
Histórias em Quadrinho, suas animações e seus livros.
270
Jay Bolter e Richard Grusin cunham o termo “remediação” em seu livro “Remediation:
Understanding New Media” (2000) para falar sobre a relação entre mídias diferentes. McLuhan
deixava transparecerem em suas obras que toda mídia possui características provenientes de
mídias anteriores. Bolter e Grusin propõem ampliar e desenvolver a ideia do polêmico autor
canadense em seu livro com o termo que criam.
O subtítulo do livro dos autores “Understanding New Media” faz clara alusão ao mais famoso
livro de McLuhan, “Understanding Media” traduzido para o português como “Os Meios de
Comunicação como Extensões do Homem” (2007). Em “Estendendo McLuhan: da Aldeia à Teia
Global” (2011), Vinícius Andrade Pereira destaca que “[...] um meio porta um outro meio no
seu interior, como maneira de se apresentar e se traduzir para um usuário” (p.142) e discute a
relação entre o livro de Bolter e Grusin e a obra de McLuhan no item 7.2 e 7.3.4 do capítulo 7.
Pereira refere-se mais à questão gramatical, entretanto uma parte da obra de Bolter e Grusin
ainda expande a análise aos conteúdos, tomando como exemplo uma onda de transposições
fílmicas de obras de Jane Austin já a partir da década de 90.
Assim, a ideia do diálogo entre as mídias perpassa qualquer simplicidade. Podemos perceber
que no cinema há referências em relação à linguagem e gramática e até as transposições (de
diversas mídias diferentes). Talvez “Tron” tenha sido apenas um ponto de partida para algo
que ocorre normalmente, mas ainda não havia ocorrido entre cinema e videogame. Todavia,
tal ponto de partida acabou desencadeando uma reação de diálogos de diversas espécies
entre ambas as mídias que perdura até hoje.
Talvez a mais visível ou mais óbvia possa ser a das transposições que se inicia em 1993 com
“Super Mario Bros.”. O filme foi um fracasso de crítica e de público e acabou sendo apenas o
primeiro de um legado de tentativas frustradas de transpor videogames para o cinema
(embora as franquias de Silent Hill, Tomb Raider e Resident Evil tenham conseguido uma
repercussão mais positiva, acabam sendo consideradas pequenas exceções em um universo de
fracassos80).
Outra forma de diálogo bem comum atualmente é a estética e linguagem dos videogames
sendo incorporada no cinema. Quando pensamos em tais características tão presentes em
filmes nos últimos anos, imediatamente fazemos uma ligação entre as mídias. Entretanto,
nunca pensamos que o componente em comum que cria tanto os videogames como as cenas
com “estética” ou “linguagem” de videogames nos filmes é o computador. Na verdade, a
estética que dividem é uma estética computadorizada. A “estética” de videogames nada mais
é do que o uso dos efeitos visuais que tanto os jogos quanto os filmes tem em comum.
Obviamente, alguns casos tentam remeter diretamente à linguagem do videogame como o já
citado “Scott Pilgrim VS. the World”, mas tal linguagem é apenas a utilização de recursos
lúdicos que são utilizados nos jogos (como conseguir poderes, aumentar força, ganhar vida
etc).
Contudo, alguns outros filmes tentam explorar mais a fundo uma linguagem dos videogames
propriamente dita. Aqui nos referimos a movimentos de câmera e a estrutura de cenas de uma
80 Para mais detalhes sobre os processos de transposição de videogames ver nossos dois artigos feitos em 2014 sobre o assunto.
271
forma bem mais complexa que pode até passar despercebido em alguns casos. A cena de luta
do filme coreano “Oldboy” (2003) de Chan-wook Park é um perfeito exemplo de como isso
pode ser feito. O plano sequência e o enquadramento da câmera que acompanha a ação se
movendo apenas lateralmente sem nunca se aproximar ou dar um close misturado com a
coreografia de luta são características típicas de um gênero de jogos chamado “beat’em’up”.
Um caso mais claro é o filme mais desconhecido, embora conte com atores como Josh
Hartnett, Demi Moore, Woody Harrelson e Ron Pearlman, “Bunraku” (2010) dirigido por Guy
Moshe. Em um plano sequência bem coreografado há uma cena de luta similar a de “Oldboy”
em termos de movimentação de câmera, porém acrescentando rapidez e escadas (assim a
câmera se move lateralmente e para baixo).
Outro bom exemplo é o filme “Kick-Ass” (2010) de Matthew Vaughn que usa o recurso
cinematográfico da câmera subjetiva como uma simulação da perspectiva de jogos de tiro em
primeira pessoa (first person shooters), estilo de jogo popularizado pelas franquias Wolfesntein
e Doom81.
“Tron” não se encaixa nesse perfil, a câmera se move como em um típico filme hollywoodiano.
Seu diálogo se dá no uso de temáticas e do mundo dos videogames como enredo. Os efeitos
visuais retratam os jogos da época em que o filme é feito e nos coloca exatamente na posição
que pretende: de ver um filme sobre um personagem que está em um jogo.
A estética lúdica e o cinema
No ensaio com o título de “The Observer’s Dilemma: ToTouch or Not to Touch” (2011), a
pesquisadora Wanda Strauven propõe uma ideia ousada. Em consonância com o campo da
arqueologia da mídia, que procura traçar conexões perdidas na história dos aparelhos
comunicativos (PARIKKA, 2012) a autora seleciona seu corpus de análise entre as geringonças
midiáticas que antecederam o surgimento do cinema como inventado pelos irmãos Lumière.
Estas eram máquinas e brinquedos que pediam, muitas vezes, a manipulação do “usuário”
para dar vida a uma imagem. O exemplo mais simples e evidente talvez seja o de um disco
onde se desenha, de um lado, um pássaro e, no outro, uma gaiola. Fixando dois cordões no
disco, segura-se cada um com uma mão e, com os dedos, gira-se os cordões, que fazem o disco
rodar. A oscilação dos dois desenhos em alta velocidade causa a ilusão de que o pássaro está
dentro da gaiola.
O artefato chamado de taumatrópio, popular no século XIX, é apenas um dentre vários
dispositivos que são comumente chamados de pré-cinematográficos. Para Strauven, no
entanto, faz muito mais sentido chamá-los de pré-videogames. O argumento da autora é de
que a premissa básica do jogo de videogame é a manipulação de imagens através de ação
direta sobre ela – no caso do taumatrópio, uma manipulação manual. O cinema, por outro
lado, caracterizar-se-ia por uma observação que não intervém no movimento da imagem, que
observa a ilusão de movimento sem atuar diretamente sobre ela.
81 As intersecções e distanciamentos entre a câmera subjetiva do cinema e aperspectiva em primeira pessoa no videogame são
traçadas pelo pesquisador Alexander Galloway, no capítulo Origins of the First Person Shooter, no seu livro Gaming: Essays on
Algorithmic Culture (2006).
272
A condição básica do videogame em sua era digital é a de que os bits se reorganizam a partir
da intervenção manual sobre um suporte material – um joystick, um teclado, um mouse, etc. O
movimento de personagens, cenários e objetos está condicionado, em parte, pelos
movimentos manuais que o jogador opera. Assim como no taumatrópio, é a ação lúdica de
manipular um “hardware” que produz o efeito ilusório que forma uma imagem nova a partir
de duas outras (uma espécie de “software”, segundo Strauven).
No cinema como conhecemos, a diferença entre a inspiração na visualidade dos videogames e
a inspiração no seu funcionamento está exatamente vinculada à questão da manipulação.
Obviamente é impossível interferir manualmente no processo de formação da imagem. O que
resta, é simular o resultado desta intervenção.
Sendo assim, qualquer influência da linguagem dos videogames em um filme deve se parecer
com o que o jogador vê na tela quando altera o sistema do jogo através de sua conexão à
interface. As motivações para tal estratégia de direção podem ser as mais variadas possíveis:
seja para referenciar a cultura gamer, como parece ser o caso de “Kick-Ass”, ou para afetar o
espectador de uma forma equivalente à do jogo, objetivo mais identificável em “Oldboy”.
Independentemente da intenção, o que se tem com esse tipo de apropriação intermidiática é
uma expansão das possibilidades do cinema, que consegue se apropriar dos modos próprios
da imagem de se organizar nas telas dos videogames.
Conclusão
O diálogo entre videogames e cinema é algo mais complexo do que parece. As transposições
de jogos para filme ainda passam por diversas dificuldades e aparentemente, ainda não
consegue se estabelecer com o sucesso que as transposições de livros e histórias em
quadrinhos. Entretanto, outras formas de diálogo entre as mídias são mais interessantes e
recorrentes.
“Tron” é um precursor nos diálogos entre essas mídias. Antes de qualquer transposição ou o
uso de elementos de videogame no cinema, o filme de Steven Lisberger traz uma fusão que
pareceu complexa na década em que foi feito, mas hoje alcança o status de filme Cult e uma
significativa importância no meio audiovisual.
Enquanto a estética visual dos videogames é recorrente no atual cenário cinematográfico com
filmes que usam efeitos visuais de computação gráfica e alguns outros casos que se utilizam de
recursos encontrados que remetem ao lado lúdico, casos em que possamos perceber a
estética formal dos videogames ainda permanecem mais raros (e talvez até mais difíceis de
reconhecer).
Talvez, pelo fato de “Tron” utilizar os efeitos visuais e recursos lúdicos em sua narrativa e não
se preocupar em ser similar em termos de enquadramento e movimentação de câmera, seus
antecessores tenham se preocupado mais em dar continuidade ao que já havia sido feito. Se o
filme de Steven Lisberger é o precursor e inspirou tanto tal diálogo, talvez o problema seja que
sua inspiração tenha motivado mais projetos que utilizam as mesmas coisas do que projetos
que foram motivados a fazer o mesmo que “Tron” fez com a relação videogames/cinema:
inovar.
273
A proposta do filme de Steven Lisberger de contar uma história através do cinema de como
seria estar dentro de um jogo de videogames e assim apresentar pela primeira vez o diálogo
entre tais mídias, explorando ainda, seus recursos visuais e suas nomenclaturas poderia ser o
início de uma procura por todas as possibilidades que o cinema tem de se apropriar de
elementos, recursos, linguagens e gramáticas do videogame. No entanto, parece que, fora
alguns casos mais específicos que mencionamos aqui, a maior parte do que surgiu foram
apenas utilizações da receita que deu certo em “Tron”.
Embora essa receita seja difundida e possa até mesmo suscitar a discussão a respeito de um
subgênero, observa-se uma carência de explorações do amplo universo de possibilidades
estéticas que os videogames podem oferecer ao cinema em um diálogo mais formal, além
apenas da temática. Ficamos a espera de mais filmes que causem a sensação de jogo em quem
os assiste.
Referencias Bibliográficas
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2000.
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274
The Ghost Writer: a Crítica Política de Polanski
Maria do Céu Martins Monteiro Marques, Universidade Aberta – CEMRI, [email protected]
Resumo
Através da análise do filme The Ghost Writer, propomo-nos examinar o papel do escritor
fantasma que o realizador Roman Polanski explorou, de uma forma muito peculiar, ao expor a
relação nos bastidores da política, entre os governos, os serviços secretos e a imprensa.
Trata-se da adaptação da obra de Robert Harris, The Ghost, que remete para factos e
personalidades da cena política internacional. O ex-primeiro ministro britânico Tony Blair é a
principal referência, mas no filme surgem outras figuras de grande relevo a nível mundial
como Condoleeza Rice, a secretária de estado do governo Bush ou Dick Cheney.
Encontra-se, neste filme, uma narrativa consistente com a proposta de narrativa mínima
definida por Gardies "equilíbrio – desequilíbrio – reequilíbrio", que pode ser encontrada em
diferentes perspetivas e que procuraremos explorar através da análise de algumas cenas do
filme. Com base em questões atuais, é uma história de enganos e traições em diferentes níveis
- literárias, políticas e sexuais - que nos faz pensar que, muitas vezes, a realidade ultrapassa a
ficção.
Palavras-chave: Escritor fantasma; exílio; suspense; política; Polanski
Abstract
Through the film The Ghost Writer 's analysis, we propose to examine the role of the ghost
writer that the director Roman Polanski explored in a very peculiar way, by exposing the
relationship in the political backstage, between governments, intelligence agencies and the
press.
The film is the adaptation of Robert Harris' book, The Ghost, which refers to facts and
personalities of the international political scene. Former British Prime Minister Tony Blair is the
main reference, but in the film arise other highly prominent figures such as Condoleezza Rice,
the Bush administration's Secretary of State or Dick Cheney.
In this film, there is a consistent narrative with the proposed minimum narrative defined by
Gardies as "balance - imbalance - rebalancing", which can be found in different perspectives
and we seek to explore through the analysis of some scenes of the film. Based on current
issues, it is a story of deceit and betrayal at different levels - literary, political and sexual - that
makes us think that, often, the reality goes beyond fiction.
Keywords: Ghost writer; exile; thriller; politics, Polanski
275
Que maior imitação há da vida que a feita pelos filmes? Nessa imitação
subsumimo-nos e transcendemo-nos. Se não são realistas, é porque os
próprios realizadores têm um conceito idealizado da vida. (Les, 102)
Introdução
The Ghost Writer (2010), a adaptação de Roman Polanski do romance de Robert Harris, The
Ghost, um bestseller publicado em 2007, é considerado um thriller político que contém todos
os ingredientes deste género cinematográfico. Evita clichés e conveniências narrativas
conferindo a lugares comuns uma aura de mistério quando associados a uma conspiração
política.
O argumento resultou de um trabalho conjunto entre o realizador e o escritor, também
jornalista, inicialmente, um apoiante entusiasta muito próximo do líder do Partido Trabalhista
Tony Blair, o Primeiro-Ministro Britânico entre 1997 e 2007, de quem acabaria por se afastar
por não concordar com a decisão de Blair da invasão do Iraque tomada em conjunto com o
presidente norte-americano George W. Bush, que ocorreu em 2003. A obra literária remete
para outras figuras da cena política internacional como a Secretária de Estado dos Estados
Unidos da América, Condoleezza Rice, que exerceu este cargo durante a administração Bush e
a mulher de Blair, Cherie Blair, vista como uma manipuladora do marido.
O interesse público manifestado pelo filme The Ghost Writer deveu-se, em parte, às críticas
feitas à obra de Harris, e à situação pessoal que Polanski estava a viver, a prisão domiciliária,
algo semelhante ao que acontecia com Adam Lang, o político no exílio, e o escritor cujo nome
nunca é mencionado do início o fim do filme. O fantasma que nunca passará disso mesmo, não
consegue fugir a tempo da teia tecida à sua volta e que, provavelmente, acabará por lhe ser
fatal. O espetador nunca saberá o que lhe aconteceu, apenas é sugerido um possível
atropelamento mesmo no final.
Ao aceitar completar as memórias do antigo primeiro-ministro britânico Adam Lang, o escritor
sem nome pensou que esta seria uma excelente oportunidade para a sua carreira. No entanto,
as suas expectativas parecem condenadas ao fracasso desde o princípio, dado o enigma que
envolve a morte do seu antecessor e todas as peripécias que Lang que tenta ultrapassar. A
câmara vai acompanhando o seu trabalho, registando as suas preocupações, os encontros, os
desencontros, a investigação e as descobertas, envolvendo-nos no mistério que se adensa a
cada movimento do escritor fantasma.
A estrutura narrativa
Ao propormos a análise de um filme, estamos conscientes que se trata de uma tarefa
interminável em que ficam sempre aspetos por examinar, uma vez que não existe um método
universal que se possa aplicar. Analisar um filme deve ser mais do que vê-lo, é revê-lo,
examiná-lo e senti-lo pois trata-se de um espetáculo que provoca emoções. Na opinião de
Vanoye e Goliot-Lété
276
A análise vem relativizar as imagens "espontaneistas" demais da criação e
da recepção cinematográficas. Estamos cercados por um dilúvio de imagens.
(…) O desafio da análise talvez seja reforçar o deslumbramento do
espectador, quando merece ficar maravilhado, mas tornando-o um
deslumbramento participante. (…)
O primeiro contato com um filme, a primeira visão, traz toda uma profusão
de impressões, de emoções e até de intuições, se já nos colocamos em uma
atitude "analisante". (Vanoye e Goliot-Lété, 2005: 13)
De facto, tal como é referido, o primeiro contacto com um filme permite a fruição das suas
imagens e provoca processos emocionais, "o que emociona é a participação imaginária e
momentânea num mundo ficcional, a relação com personagens, o confronto a situações."
(Aumont, 2005: 90).
As imagens iniciais de The Ghost Writer brindam o espectador com uma sensação de mistério.
O modo como o realizador utiliza a luz e a sombra cria uma atmosfera propícia à tensão. A
música da cena inicial e a cor fixam a nossa atenção. A penumbra funciona como a
luminosidade possível para ver o que não pode ser visto à luz. Na primeira cena surge um
plano geral, é de noite e a pouca luz provém de pequenos focos fixos, chove bastante. No meio
da escuridão, é possível reconhecer os pilares de um cais e ao longe, em segundo plano,
vislumbra-se a imagem de um navio com as suas luzes ténues que se movimenta na nossa
direção. Em termos de som, consegue ouvir-se o cair da chuva e uma música que cria algum
suspense. Na imagem seguinte houve um pequeno salto temporal, o navio passou para
primeiro plano ocupando grande parte do ecrã, e percebemos a sua rápida aproximação aos
cais. Um plano de pormenor permite ao espectador identificar o tipo de embarcação. Trata-se
de um navio misto conhecido como ro-ro ou um ferrie, geralmente utilizado em viagens curtas
no transporte de passageiros e veículos.
Em primeiro lugar, vislumbra-se o casario iluminado e depois a proa do navio, branca e azul
que se abre. A rampa para o desembarque desce e fica rapidamente disponível. Nas entranhas
do navio surgem homens de rostos indefinidos, semi-cobertos pelas fardas, que se
movimentam entre os vários carros de diferentes portes, todos alinhados que começam a sua
marcha para a saída do navio. Dois destes homens movimentam-se para fora do campo e
apenas um se mantém a orientar os condutores. Um plano picado mostra-nos a imagem de
um carro que não se movimenta e impede a saída dos outros. Um funcionário aproxima-se e
verifica que não existe condutor. O carro acaba por ser rebocado para fora do navio. No meio
da escuridão surgem dois agentes, um carro da polícia, o reboque e o carro rebocado. Em
segundo plano, observa-se a saída do navio que deixa o porto, mas sem luzes. Segue-se um
grande plano, já existe alguma luz, o dia está a nascer e surge a imagem de uma praia em que
a espuma branca das ondas deixa antever um corpo arrastado para a areia.
277
Figura 1 – Um corpo na praia
Estas imagens constituem o que pode ser considerado como a "matriz" do filme por funcionar
como uma potência geradora do género de ficção. Existe no filme uma narrativa que se
identifica com a proposta de narrativa mínima definida por Gardies
"equilíbrio→desequilíbrio→reequilíbrio", como explica:
O que se poderia parafrasear assim: na sequência de um acontecimento, um mundo, até então
estável, fica desequilibrado. Depois, tenta recuperar a estabilidade, quer pela instauração de
um novo equilíbrio, quer pelo regresso ao primeiro equilíbrio. (Gardies, 2008: 76)
Em The Ghost Writer, existem alguns casos em que se pode constatar esta sequência. Na
perspetiva do escritor fantasma, que vive num mundo estável e "equilibrado", o convite para
concluir o trabalho de McKara, o seu antecessor, provoca o seu "desequilíbrio". A estabilidade
é, aparentemente, readquirida através da investigação que realiza, e os imprevistos que vão
surgindo parecem conduzi-lo a um "reequilíbrio". No final do filme, a sequência apresentada
pelo realizador remete para um outro "equilíbrio", o de Ruth. Também no caso desta
personagem ocorre, no final, uma sequência de "equilíbrio, desequilíbrio, reequilíbrio". O
"equilíbrio" existe porque o seu segredo se mantém depois da morte de McKara, mas o
"desequilíbrio" surge quando o escritor fantasma começa a investigar e acaba por descobrir a
verdade sobre Ruth. No entanto, o "reequilíbrio" acontece no final, depois do "acidente" que o
escritor sofre antes de ter conseguido divulgar a sua descoberta.
Um artigo publicado no jornal Guardian em 12/02/2010, intitulado "The Ghost Writer", revela
a opinião do crítico de cinema Peter Bradshaw, relativamente ao trabalho do realizador
Polanski keeps the narrative engine ticking over with a downbeat but
compelling throb. This is his most purely enjoyable picture for years, a
Hitchcockian nightmare with a persistent, stomach-turning sense of
disquiet, brought off with confidence and dash.
De facto, esta opinião expressa a inquietação que muitos espectadores sentiram ao visualizar
obra de Polanski. O ambiente em todo o filme é pesado devido ao céu cinzento escuro e à
chuva torrencial que não pára de cair. As condições atmosféricas condicionam os estados
emocionais dos que vivem em espaços fechados e claustrofóbicos: a ilha isolada do
278
continente, a casa que mais parece uma prisão, e o barco contrastam com a natureza aberta e
espaços amplos, mas de cores mortas em que nem o mar consegue ter uma função
apaziguadora e de descontração.
Na última cena, o espectador imagina que houve um atropelado, casual ou talvez não, do
escritor. Contudo, ficam as apenas as suspeições uma vez que a ação ocorre fora de campo e
apenas se vêm as folhas do manuscrito a inundarem a rua molhada de Londres.
Figura 2 – Folhas espalhadas pelo vento
O final em aberto foi uma forma perspicaz que o realizador escolheu para deixar o espectador
na dúvida deixando-o imaginar o que acontecia fora do campo de visão. O movimento das
personagens na rua, e o som escolhido sugerem o que a câmara não mostra – um presumível
atropelamento mortal. A câmara que tinha acompanhado todos os movimentos da
personagem estando sempre presente, mesmo nos momentos mais íntimos, abandona-o. O
filme termina de uma forma semelhante ao início com mais um mistério por resolver. A
questão do contexto não pode ser ignorada nesta situação tendo em conta que
(…) a linguagem das imagens obriga a adoptar uma posição pragmática, ou
seja, a pôr no posto de comando da análise as determinações externas ao
texto: são elas que regem o modo de leitura que o espectador utilizará, ou
seja, a forma como dará sentido às imagens: assim, conforme o contexto de
leitura, é um texto diferente, apoiado em elementos diferentes da imagem,
que será construído. (Gardies, 2008: 153)
Ao falar em contexto, não podemos deixar de mencionar a existência, no filme, de uma cena
de índole sexual que parece, de alguma forma, fora de contexto, mas que merece ser referida.
A meio da noite, Ruth a mulher de Lang, dirige-se ao quarto do escritor, despe-se, deita-se
com ele na cama e os dois acabam por envolver-se sexualmente. Depois deste encontro, os
seus comportamentos e as suas relações permanecem inalteradas como se aquele episódio
nunca tivesse existido. Não se conhecem consequências, apenas parece um "acidente" de
percurso sem qualquer significado.
Uma vez que este episódio surge perdido na diegese de forma descabida, as imagens acabam
por remeter-nos para a vida pessoal de Polanski que daria um bom argumento para um filme,
tendo em conta as múltiplas histórias por ele vividas envolvendo sexo, drogas e violações. As
polémicas e os escândalos, em parte, fruto de uma infância e adolescência sofridas, acabaram
por deixar marcas nesta e em outras obras de uma forma. O padrão parece repetir-se na sua
vasta produção cinematográfica.
279
O realizador de clássicos como Repulsion (1965), Chinatown (1974), Tess (1979) ou The Pianist
(2002) enfrentou, durante a rodagem, algumas adversidades a nível da mobilidade, devido a
um pedido de extradição por parte dos Estados Unidos da América, que não lhe permitiu
deslocar-se aos locais em que as filmagens decorriam, a Alemanha, e não nas Ilhas Britânicas,
como seria de esperar. Embora as restrições que lhe foram impostas pelas autoridades
restringissem os seus movimentos, Polanski tomou decisões artísticas e supervisionou a pósprodução, quer a partir da sua cela, quer quando se encontrava em prisão domiciliária. Apesar
dos obstáculos que surgiram na sua vida pessoal e acabaram por se repercutir no trabalho,
esta produção cinematográfica apresenta-nos uma história cativante que prende o espectador
ao ecrã através das situações imprevistas que ocorrem até às últimas cenas do filme.
A Crítica Política
A editora responsável pela biografia do ex-primeiro ministro Adam Lang, contrata um segundo
escritor fantasma para finalizar o livro iniciado por outro escritor, cuja morte repentina e
misteriosa deixou a obra incompleta. Quase de imediato, este escritor se apercebe que o
trabalho de recolha de informação para completar as memórias de uma figura que governou o
Reino Unido não será fácil e que existem outras coisas em jogo que podem condicionar o seu
trabalho como a luta pelo poder e a relação entre o casal, aparentemente estável, mas que ele
precisa de entender.
Por ter estado durante muito tempo à frente do governo, Lang parece não conhecer a
realidade do seu país, daí a analogia entre a personagem do romance e Blair que Robert Harris
comentou numa entrevista à estação de rádio americana, National Public Radio, em que
afirmou:
(…) politicians like Lang and Blair, particularly when they have been in office
for a long time, become divorced from everyday reality, read little and end
up with a pretty limited overall outlook. When it comes to writing their
memoirs, they therefore tend to have all the more need of a ghostwriter.
(National Public Radio interview, 31 October 2007)
O escritor critica o alheamento dos políticos face à realidade que os cidadãos vivem, por isso,
quando pensam em escrever as suas memórias, precisam de recorrer a um escritor fantasma,
que, provavelmente, conhece melhor o que se passa no seu país. Na mesma entrevista, Harris
referiu ainda que o título The Ghost Writer também se aplicava a Blair considerado um escritor
fantasma ao serviço de Bush: "Blair, he said, had himself been ghostwriter, in effect, to
President Bush when giving public reasons for invading Iraq: he had argued the case better
than had the President himself". (ibid)
O escritor fantasma é alguém que se propõe assumir a identidade de outra pessoa para
escrever em seu nome, o escritor original ou autor, a troco de uma quantia, mas cujo nome
ficará para sempre no anonimato. Este tipo de contratação é uma prática que acontece com
alguma frequência quando alguém quer escrever textos para anúncios, livros, argumentos
para filmes ou mesmo para redigirem os discursos de políticos. Um pouco por todo o mundo,
políticos famosos como Churchill ou John Kennedy têm recorrido a escritores fantasmas para
elaborarem os seus discursos. Um dos nomes que ficou célebre foi o de Ted Sorensen, cuja
frase "Ask not what your country can do for you; ask what you can do for your country",
280
atribuída ao Presidente Kennedy, ainda hoje é repetida com frequência por alguns políticos
americanos. Em Budapeste, um romance de Chico Buarque, o narrador José Costa é um
escritor fantasma que escreve cartas, artigos, livros e discursos para quem lhe paga,
permanecendo o seu nome no anonimato.
No caso de The Ghost Writer, a vida do escritor parece complicar-se devido à pressão da
editora em querer publicar o livro dentro de poucas semanas, e a uma situação algo
inesperada que foi a acusação de Adam Lang de crimes de guerra pelo Tribunal Internacional
Penal de Haia por ter permitido que soldados britânicos torturassem suspeitos de terrorismo
no Afeganistão. Segundo Bradshaw:
He makes a living ghostwriting the autobiographies of raddled showbiz
veterans. In the current publishing scene, his business is booming, but even
he is astonished to be offered the job of ghostwriting the memoirs of the
former British prime minister Adam Lang, now living with his formidable
wife Ruth (Olivia Williams) in his American publisher's palatial beachfront
home. A possible war-crime prosecution for assisting the rendition of terror
suspects means Lang may never be able to leave American soil. And his last
ghostwriter has been found drowned – an awful fate that resonates,
sickeningly, with TV images of waterboarding. Could it be that the dead man
discovered something dangerous about the ex-PM and his super-powerful,
super-rich American friends? (ibidem)
Para evitar ser preso, Lang terá de permanecer nos Estados Unidos da América onde conta
com a proteção de alguns amigos ricos, mas é perseguido pelos jornalistas que procuram saber
o que se passa. Uma das situações em que existe alguma semelhança entre Lang e Blair surge
através de um cartaz que aparece durante a manifestação e em que está escrito "LIAR". Os
manifestantes anti-Blair também escreveram em cartazes o seu nome sob a forma de
anagrama "TONY B. LIAR".
Ainda de acordo com a opinião de Bradshaw no artigo citado anteriormente, as semelhanças
que existem entre as personagens do filme e as da vida real estão longe de ser meras
coincidências, como se pode constatar pelas suas palavras.
Resemblances to Tony and Cherie Blair are very far from coincidental: both
Harris and Polanski have clearly calculated that a libel lawsuit would make
for an uproarious day in court, precisely the sort of legal appearance that Mr
Blair does not care to make, in fact or fiction. This consideration adds a kind
of meta-pleasure to the narrative. (ibid)
A acusação inesperada de Lang dá origem a uma discussão política dentro do filme sobre
questões que continuam muito atuais como o terrorismo, e as medidas que devem ser
adotadas para combatê-lo. Numa cena, o escritor surge no bar do hotel, a assistir ao noticiário
que está a ser transmitido pela televisão, e em que são apresentadas informações sobre
supostos terroristas vítimas de uma técnica de tortura praticada pela CIA. Esta notícia faz-nos
pensar no papel de Lang no que respeita ao conhecimento e autorização dessas práticas. Há
ainda outra cena, com uma mensagem importante sob o ponto de vista político e que passa
quase despercebida. Quando Lang sai do seu avião particular, na parte lateral do aparelho
pode ler-se "Hatherton", uma referência a uma empresa de segurança que o escritor fantasma
tinha pesquisado numa cena anterior do filme e que remete para as relações ocultas com o
governo americano.
281
Conclusão
Ao longo de mais de quarenta anos dedicados ao cinema, Polanski nem sempre tem sido
notícia pelos melhores motivos. Apesar das transgressões e escândalos relacionados com a sua
vida privada, a sua carreira alcançou muitos sucessos que culminaram com a atribuição de
vários prémios. Profundo e muitas vezes neurótico, o realizador explora de forma exemplar os
medos e ansiedades, quer das personagens, quer dos espectadores, possivelmente um reflexo
do seu passado nubloso que ainda continua a marcar o seu presente.
The Ghost Writer não é apenas mais filme baseado em factos reais transpostos para o cinema.
O que atraiu os espectadores não foi apenas a curiosidade sobre a vida de um primeiroministro inglês, mas o mediatismo por que passava o seu realizador devido à suspeita de
violação de uma menor que o manteve preso durante algum tempo e afastado da vida social.
Enquanto crítica política, The Ghost Writer denuncia algumas ligações secretas entre os
governos do Reino Unido e dos Estados Unidos que visavam pôr fim ao terrorismo. Surgem
referências a várias individualidades do mundo da política em que Tony Blair parece ser o alvo
principal, e empresas internacionais também relacionadas com a política como o Instituto
Claremont cuja missão consiste em restaurar os princípios expressos na Declaração da
Independência Americana, a Halliburton uma empresa de Dick Cheney, vice-presidente de
Bush, responsável por uma parte da reconstrução do Iraque depois da guerra.
Neste filme, Polanski arriscou bastante ao expor as relações entre governos, órgãos de
segurança e a imprensa. Também não poupou o ex-primeiro ministro britânico ao expor a
notificação do Tribunal Penal Internacional para responder sobre os possíveis crimes de guerra
que envolveram a entrega de prisioneiros para serem interrogados e torturados pela CIA. De
certa forma, pode afirmar-se que existe um desejo de punição para um político que cometeu
erros graves, para que o seu julgamento possa servir de exemplo a futuros governantes.
Bibliografia citada
Aumont, Jacques. A Imagem. Lisboa: Edições Texto & Grafia, Lda., 2005
Bradshaw, Peter. "The Ghost Writer", 12/02/2010
http://www.theguardian.com/film/2010/feb/12/roman-polanski-ghost-writer
consultado em 05/01/2015
Gardies, René. Compreender o Cinema e as Imagens. Lisboa: Edições Texto & Grafia, Lda., 2008
Harris, Robert. The Ghost. London: Harrow Books, 2008
Vanoye, Francis, Goliot-Lété, Anne. Ensaio sobre a Análise Fílmica. S. Paulo: Papirus, 2005
282
Capítulo 7 Narrativa audiovisual: lendo permanências e
inovações
Gran Torino, de Clint Eastwood: subversão (e sobrevivência) do modelo
narrativo clássico no cenário pós-industrial
Fabio Camarneiro, Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, [email protected]
Resumo
Em Gran Torino (Clint Eastwood, 2008), encontramos, lado a lado, valores ligados ao
masculino, ao capitalismo industrial e à ética do trabalho (em último sentido, às narrativas
clássicas) e valores ligados ao feminino, ao capitalismo tardio e ao multiculturalismo. Ao
operar essa tensão, Eastwood compõe um filme-réquiem para sua persona fílmica e,
inadvertidamente, aponta novos caminhos para o modelo narrativo clássico.
Palavras chave: roteiro cinematográfico, Gran Torino, Clint Eastwood, capitalismo tardio.
Abstract
Gran Torino (Clint Eastwood, 2008) displays two different sets of values: the classical narrative
(associated with Masculinity, Industrial Capitalism, and the “ethics of work”), and the postmodernity (associated with feminism, late capitalism, and multiculturalism). Eastwood creates
a sort of requiem to his film persona and, at the same time, creates a new understanding
about
the
old
forms
of
the
classical
film
narrative.
Keywords: screenwriting, Gran Torino, Clint Eastwood, Late Capitalism.
O corpus teórico relativo ao roteiro cinematográfico tende a concentrar sua atenção, de
maneira recorrente, em modelos consolidados pelo cinema narrativo de matriz norteamericana, destinados a um público amplo: a “estrutura em três atos” (FIELD, 1995), a
“arquitrama” (McKEE, 2000) ou a “jornada do herói” (VOGLER, 1997) são alguns dos conceitos
normalmente associados a esses modelos.
Se tal modelo efetivamente existe, é possível imaginá-lo em crise ou, ao menos, em processo
de renovação de paradigmas. Estudos de Ivette Huppes (2000) e Ismail Xavier (2000) já
apontaram a capacidade de adaptação do melodrama – um dos modelos mais duradouros das
narrativas modernas. De modo análogo, imaginamos que as “arquitramas” passem por
semelhante processo de renovação. Nosso projeto é analisar a tentativa de superação dos
valores clássicos do cinema (e da sociedade) norte-americano(s), bem como perceber, nos
próprios elementos fílmicos, as contradições históricas que levaram esses modelos (narrativos
e econômicos) a um colapso e uma necessária renovação.
283
Em primeiro lugar, é necessário entender que a chamada “narrativa clássica hollywoodiana”
refere-se a um período histórico específico: Bordwell (2005), por exemplo, fala em 1960 como
um limite para o período caracterizado por esse modo de produção e seu correlato modo
narrativo. Assim, no período clássico, “a história canônica” é entendida como “a atividade de
um indivíduo (o protagonista) voltado a consecução de objetivos e casualmente determinada”.
(BORDWELL, 2005, p. 295) Importa aqui certa “teleologia” do personagem protagonista no
roteiro clássico: ele possui um “objetivo final” que, apesar de muitas vezes ser previamente
enunciado, muitas vezes é apenas “revelado” com clareza (sempre ao público, nem sempre ao
próprio personagem) ao final da narrativa. Então, numa espécie de recapitulação que o
espectador realiza das peripécias narradas, cada elemento da narrativa passa a ser revisto a
partir desse objetivo último.
Esse modelo narrativo está intimamente associado com uma época histórica em que os EUA
eram – desde o fim da primeira guerra mundial – a grande potência de economia mundial e,
ao mesmo tempo, as imagens cinematográficas ainda não tinha recebido o “choque de
realidade” dos cinemas modernos – o neorrealismo italiano e todos os cinemas nacionais por
ele influenciados. Essa peculiar combinação entre poderio econômico, crença quase absoluta
no poder da imagem – associada ao modelo da narrativa canônica e aos valores do American
way of life presentes no cinema estadunidense – criou as bases do cinema clássico
hollywoodiano.
Para tentar examinar como os parâmetros narrativos – que aqui chamaremos de “clássicos” –
encontram-se em processo de crise e de adaptação, numa tentativa de renovar a força dos
modelos tradicionais frente ao público amplo, recorreremos a um exemplo de subversão (e, ao
mesmo tempo, de sobrevivência) desse modelo: Gran Torino (Clint Eastwood, 2008), com
roteiro de Nick Schenk. Além de lidar com a crise de parâmetros narrativos (o papel do
protagonista, o objetivo central, a relação entre protagonistas e personagens secundários
etc.), o filme lida com a crise da própria economia norte-americana, pois a trama se passa em
um subúrbio, habitado por diferentes grupos de imigrantes, que vive a recessão econômica do
retraimento da indústria automobilística.
Perseguidor (outrora) implacável
Em Gran Torino, além das ruas quase sempre abandonadas do subúrbio, a figura da
decadência encontra-se representada também no personagem Walt, interpretado pelo
próprio cineasta. Em suas atitudes, nota-se uma espécie de desarmonia com tudo que o cerca:
em determinada cena, apesar de sua bravata ao enfrentar pequenos ladrões que tentam
roubar seu carro – o “Gran Torino” do título – os resultados de sua ação resultam um tanto
patéticos. Enquanto os jovens delinquentes terminam por fugir, ele se atrapalha, cai e termina
com um leve ferimento. Aqui, o filme coloca em crise a figura do homem viril, destemido e
audaz, capaz de resolver qualquer problema com as próprias mãos (o legítimo self-made man),
imagem que o próprio Eastwood protagonizou em diversas ocasiões, sendo talvez a mais
paradigmática em sua interpretação do detetive Dirty Harry, em Perseguidor implacável (Dirty
Harry, Don Siegel, 1971) e em suas quatro sequências – uma delas, Impacto fulminante
(Sudden impact, 1983), também dirigida por Eastwood.
284
Em Gran Torino, vemos que o arquétipo de Dirty Harry envelheceu. O personagem
“implacável” mostra-se fisicamente comprometido, seja pela velhice, seja pela doença que,
anunciada durante todo o filme (com uma tosse recorrente, às vezes acompanhada de
sangue), é diagnosticada apenas no terço final da narrativa. Além disso, a ética do detetive
(que poderíamos sumariamente resumir como “atirar primeiro e perguntar depois”) também
parece não mais encontrar eco no mundo contemporâneo. O clímax final opera nesse sentido,
ao mostrar um justiceiro que, para surpresa geral, encontra-se desarmado e que desaparece
sem ver (apesar de ter provocado) a reviravolta final da trama, centrada em uma força policial
“correta” (multirracial e sem nenhum excesso no uso da força) e na união da comunidade
(que, ao que tudo indica, decide testemunhar contra a gangue de orientais que representam
os antagonistas da trama do filme).
Duas pedras de toque do detetive justiceiro – o “agir com as próprias mãos” e a “subversão de
regras a partir de resultados desejados” (ou, em termos maquiavélicos: “os fins justificam os
meios”) – aqui aparecem como métodos retrógradas e mesmo insuficientes, algo que poderia
causar surpresa nos aficionados pelos filmes de Dirty Harry, mas não na plateia que
acompanha a carreira do ator-realizador Clint Eastwood. O “truque” final do personagem de
Walt, bem distante das táticas um tanto quanto fora-da-lei de Dirty Harry, consiste em
provocar uma comoção social: em Gran Torino, o coletivo supera o indivíduo – sutil inversão
de uma tradição do cinema estadunidense, baseada quase exclusivamente na força de
indivíduos, seja nas telas (nos protagonistas “voltados a consecução de objetivos”) ou fora
delas (no star system, por exemplo). Mas, antes que possamos imaginar tratar-se de um filme
de ruptura, é importante atentar para as “continuidades” presentes em Gran Torino: toda a
narrativa é perpassada pela ideia de uma tradição “em crise” que precisa encontrar herdeiros
– ou corre o risco de perecer. Aqui, essa herança (de valores culturais) será passada do
anacrônico Walt, cujos filhos não correspondem às expectativas paternas, para o jovem Thao,
seu vizinho, um garoto de etnia hmong (grupo étnico originário do sul da China, do Vietnam e
do Laos).
Sue, mentora de Walt
O filme de Eastwood lida com o ocaso não apenas de um certo tipo de personagem, mas de
suas bases históricas: a supremacia dos EUA no cenário político e econômico internacional.
Note-se que o personagem de Walt lutou na Guerra da Coreia (1950-1953) – de onde saiu
traumatizado – e tem uma relação bastante preconceituosa com seus vizinhos hmong, a
família formada por mãe, avó e pelos irmãos Thao e Sue. Esta última será importante na
narrativa por servir como uma espécie de “guia” quando Walt finalmente adentra a casa e as
tradições dos hmong – retratadas com certo humor, decerto por serem distantes e mesmo
estranhas para um americano de perfil conservador, cheio de preconceitos, como aquele
representado por Eastwood. Considerando as categorias de personagem de Vogler, Sue seria
uma espécie de “mentora” de Walt, a personagem que vai lhe ensinar coisas necessárias ao
seu desenvolvimento (e à conclusão de seus objetivos). Normalmente, personagens desse tipo
são mortos em certo ponto da narrativa, numa demonstração (dentro de estruturas
arquetípicas) de que o protagonista estaria pronto para seguir sozinho em sua “jornada”. O
“mentor” morre para que o discípulo complete sua trajetória. Em Gran Torino, Sue não chega a
285
morrer de fato, mas passa por um martírio quando é violentada pela gangue de seu primo.
(Episódio que representará também o ponto de virada para o ato final da narrativa.)
Eis um primeiro deslocamento das funções dos personagens em relação a sua definição nos
chamados manuais de roteiro. Sendo Walt o personagem mais velho e experiente e Thao o
adolescente que está em processo de entrar na idade adulta, seria lícito pensar que o primeiro
seria o mentor do segundo. Isso efetivamente acontece e, durante o filme, Walt ensinará
muitas coisas ao garoto: como utilizar ferramentas, como lidar com o barbeiro e até mesmo
como flertar com garotas. Thao “herda” certos valores de Walt que representariam, mais do
que o American way of life, uma espécie de ethos nacional, que não exclui certa rudeza, certo
machismo, uma relação puritana com a culpa, a honra e o dinheiro. O homem mais velho tenta
transformar o garoto hmong em algo bastante distinto da imagem que ele tem dos próprios
filhos, ou seja, em alguém construído a partir dos bons e velhos valores dos EUA, a “terra da
oportunidade”: trabalho, honra etc.
A ética do trabalho braçal
Na estrutura simbólica do filme, em lugar diametralmente oposto ao de Thao está Ashley, a
neta de Walt, que gostaria de ter parte da mobília do avô, além de ter esperança em herdar
ela própria o mítico carro guardado na garagem. Mas – eis o ponto nevrálgico para Walt –, ao
contrário de Thao, ela não faz nada para merecer esses presentes. O velho homem vive de
acordo com código ético ligado ao trabalho manual, algo patente na maneira como suas
ferramentas estão arrumadas, bem como na forma como se dá a “reeducação” de Thao: a
partir de trabalhos domésticos, feitos para Walt e para os vizinhos, até que o gatoro possa
conseguir um trabalho (braçal) remunerado. (Note-se que o trabalho intelectual está fora do
escopo do filme, ao menos para os personagens masculinos, de acordo com um antiintelectualismo que marca grande parte da indústria cultural contemporânea e, em particular,
o cinema norte-americano de grande público.)
Essa “ética do trabalho” de Walt é anacrônica porque anterior ao capitalismo tardio (baseado
principalmente na especulação). Na lógica arcaica de Walt, Thao (apesar de ser visto como um
imigrante sem perspectivas) vai “dar duro” e, logo, será recompensado; por outro lado, Ashley
(que não se esforça para fazer ou para aprender nada, mas acredita em uma espécie de
“direito natural”) terminará preterida. O testamento do velho homem realiza uma espécie de
vingança em nome de uma ideia conservadora a respeito dos EUA: quem trabalha duro terá
direito às melhores oportunidades.
Não nos cabe questionar a correção ou a incorreção desse conceito. Basta-nos perceber que
ele existe e serve de motor para as escolhas do personagem de Gran Torino, cujo anacronismo
perpassa de suas decisões testamentárias até a opção de ter em sua garagem um carro
praticamente novo (o Ford Gran Torino), apesar de fabricado na primeira metade dos anos
1970. O carro imaculado é símbolo de um Zeitgeist que, em tese, é passado, mas que Walt
insiste em manter como se fosse contemporâneo. Objeto de desejo para Thao (para quem o
carro representa a chegada da idade adulta, seja como fruto do roubo planejado pela gangue
do primo, seja ao final, quando ele o recebe de herança); símbolo de um tempo perdido para
Walt (lembrança de quando os carros eram fabricados nos próprios EUA, por empresas
americanas, ao invés de serem importados do Japão); espécie de peça de museu que simboliza
286
os sonhos dos imigrantes (possuir o carro) e dos americanos conservadores (possuir –
novamente – a produção do carro).
Nessa imbricação entre uma indústria automobilística decadente (que está ausente do filme,
exceto por suas consequências) e a paixão por um carro construído há décadas encontra-se a
contradição da ética do personagem central. Entre um mercado mundial que delegou aos
países asiáticos a produção de automóveis e um país que segue recebendo imigrantes agora
sem possuir indústrias para empregá-los, a contradição de um mundo globalizado onde
commodities e capitais viajam com muito menos restrições do que pessoas. Assim, o que
permanece subterrâneo no filme de Eastwood é a linha tênue que liga o preconceito em
relação aos imigrantes (as novas fronteiras humanas) com o esgotamento dos tradicionais
parques industriais (a ausência de fronteiras comerciais). Não por acaso, o filme está
ambientado nas redondezas de Detroit, uma das cidades que mais sofreram com o declínio da
produção automobilística nos EUA: segundo o jornal britânico The Guardian (2013), 250 mil
pessoas teriam abandonado a cidade entre 2000 e 2009.
A vizinhança decadente, repleta de imigrantes, é o índice dessa nova massa de “trabalhadores
sem trabalho”. Assim, o discurso do filme de Eastwood sobre uma “ética do trabalho” deixa de
parecer condizente com seu tempo histórico. Eastwood cria um filme marcado pela nostalgia,
não de outras formas estéticas – uma das marcas da pós-modernidade, segundo Fredric
Jameson (1985) – mas de outro tempo histórico, de outras condições econômicas e sociais.
Nesse novo contexto, parece impossível a “harmonia” buscada ao final das narrativas
hollywoodianas clássicas. A sociedade representada em Gran Torino está à beira de um
colapso social, com agressivas gangues surgindo literalmente a cada esquina. Nesse mundo, o
“perseguidor implacável” já não é suficiente para dar conta da violência: o transgressor não é
mais uma “exceção” em meio a um mundo de abundância, mas a “regra” em um mundo
colapsado. A narrativa é marcada pelo sacrifício do anacrônico vingador viril, defensor da
antiga ética do trabalho. Ao invés disso, como já apontado aqui, aposta-se em uma solução
comunitária e, conforme a cena da partilha dos bens de herança, também legalista.
Os estereótipos dos personagens femininos
O personagem de Eastwood – que, em termos ideais, funcionaria como o mentor do garoto –
falha ao não perceber que seus ensinamentos não são mais aptos para dar conta do mundo
contemporâneo. É o próprio Walt que, tutorado por Sue, se transformará em aprendiz – até
perceber que seu tempo (tanto em relação a seus valores quanto a sua sobrevivência física)
está terminado. A personagem forte de Gran Torino, que detém uma espécie de “sabedoria
superior”, não é Walt, mas Sue. Uma jovem mulher, e não o velho homem. Uma oriental, ao
invés do ocidental. Dessa maneira, o filme opera o contato entre paradigmas complementares,
para não dizer “opostos”.
Ao colocar Sue como sua “falsa” protagonista, Gran Torino poderia flertar com o feminismo. Se
isso acontece em cenas pontuais, a própria estrutura do filme tende a recolocá-la em uma
posição secundária. Durante o terceiro ato – no trecho que vai desde a descoberta da violência
por ela sofrida até o final –, Sue torna-se uma personagem sem expressão. Sua única função é
libertar o irmão (que havia sido aprisionado por Walt para impedi-lo de tentar repetir o
exemplo do “justiceiro implacável”) e acompanhá-lo na cena em que a gangue é presa, cena
287
que tem o cadáver de Walt como centro da mise-en-scène. Depois, ela desaparece. No fundo,
Gran Torino é um filme de homens mais velhos e homens mais novos. As lições de Sue, apesar
de representarem um ponto de vista mais historicamente contemporâneo e socialmente
consciente, são ensinamentos “teóricos”. A prática, a ação, a tomada de decisões – e o direito
de estar ao volante do Gran Torino – são parte de um universo exclusivamente masculino.
Desse ponto de vista, podemos repensar Ashley como uma personagem injustiçada. Não é
apenas por ser “interesseira” que ela tem negado seu direito de herança, mas também por
ser... mulher. A sucessão dos bens não pode ser feita diretamente entre Walt e seus filhos, que
já estariam muito contaminados pela lógica globalizada do capitalismo tardio. O velho homem
precisa de outro herdeiro, mas não Sue, que a ele ensina sobre o mundo, nem Ashley, que
teria com ele uma espécie de “dívida de sangue” (para aludirmos ao título traduzido de outro
filme do diretor). Ele precisa de alguém do sexo masculino, alguém apto, de acordo com a
lógica machista do filme, a conduzir a grande máquina do capitalismo “arcaico” (o Ford Gran
Torino).
Nesse sentido, não deixa de ser significativo que a cena inicial do filme seja justamente a
cerimonia fúnebre da esposa de Walt. O elemento que inicia a narrativa é a perda do elemento
feminino e sua substituição (simbólica) por uma figura feminina dividida em duas: uma, o
porto seguro, que traz apoio, suporte, compreensão e, em última instância, redenção, mais
inteligente que sensual (Sue); a outra, trazendo perdição e danação, mais sensual que
inteligente (Ashley).
A mulher que equilibra a equação (segundo a concepção de Walt) é Youa, a pretendente de
Thao: nem tão inteligente (ao ponto de roubar o protagonismo masculino), nem tão sensual (a
ponto de confundir o discernimento masculino). Espécie de nova esposa que será recolocada
no lugar da falecida, não exatamente para Walt, mas para seu pupilo. Como dizia o título de
uma canção de James Brown, “it’s a man’s man’s man’s world”.
Sobrevivência do modelo clássico – agora globalizado
Em Gran Torino, não é exatamente claro o objetivo final do(s) personagem(ns) central(is). Sue
precisa educar Walt para que Walt possa educar Thao para que ele herde os valores de um
capitalismo em colapso. O jovem hmong está em ritual de passagem da puberdade à idade
adulta (representada pela conquista amorosa e pelo direito a possuir o carro). Walt, por outro
lado, encontra-se no ritual final, ao encarar a morte e procurar por um herdeiro, além da
redenção de seus pecados (nesse sentido, torna-se central a presença da igreja católica,
também signo da permanência de certo estado de coisas). Gran Torino define-se, portanto,
como uma espécie de “linha de chegada” muito associada à persona fílmica do ator-realizador:
os ideais de Dirty Harry não encontram mais lugar, assim como a lógica da vingança já não
encontrava lugar em Os imperdoáveis (The Unforgiven, 1992). Também os valores da ética do
trabalho parecem anacrônicos frente à lógica do capitalismo tardio, mas sobrevivem como
souvenires de um outro tempo, talvez meras ruínas. Assim também o modelo da narrativa
clássica, que não parece mais capaz de dar conta do cenário contemporâneo.
Apesar de apresentar sinais de crise, também há sinais de renovação nas estruturas lineares
em que personagens “aprendem” com sua história e tentam superar desafios específicos. A
288
narrativa clássica sobrevive como souvenir (nostalgia) ou como ruína. Porém, aproveitando os
mesmos “resíduos” da globalização, a própria indústria de cinema encontra outras saídas. No
plano que encerra o filme, o Ford Gran Torino avança enquanto Thao e sua namorada
reencenam o sonho do American way of life. A máquina estadunidense, mesmo antiga, ainda
funciona à perfeição. Porém, os velhos valores americanos não parecem mais suficientes; é
necessário uma outra sensibilidade ao volante – uma sensibilidade (que poderia ser feminina,
como, para ficarmos na metáfora dos automóveis, na Furiosa de Mad Max: Fury Road), mas
que é apenas estrangeira. Hollywood vive a diluição das fronteiras entre nacional e
estrangeiro, o que pode ser comprovado na constante importação de profissionais de outras
partes do planeta, que revela um intenso movimento de “globalização” que, entre outras
coisas, coloca em cheque a ideia das cinematografias ditas “nacionais”. Também nesse
sentido, não deixa de ser interessante notar que o mais importante prêmio da indústria norteamericana, o da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles, tenha sido
vencido, em suas últimas cinco edições (entre 2012 e 2016), por diretores oriundos de países
de língua não-inglesa (um francês, um taiwanês, dois mexicanos, um deles premiado duas
vezes).
As oposições operadas em Gran Torino (masculino e feminino, Ocidente e Oriente, capitalismo
industrial e capitalismo tardio) são a tônica do cinema contemporâneo. Apesar do filme de
Clint Eastwood apontar para o passado (sendo assim, mais um réquiem do que qualquer outra
coisa), ele deixa ver, em seus interstícios, as tensões históricas que serão decisivas na definição
das narrativas do futuro.
Referências Bibliográficas
BORDWELL, David. “O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos”.
tradução: Fernando Mascarello. In: RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria contemporânea do
cinema, vol. 2: documentário e narrativa ficcional. São Paulo: Senac São Paulo, pp. 277-301,
2005.
“Detroit: a city in decline – in pictures”. The Guardian. Londres, 19 jul. 2013. disponível em:
http://www.theguardian.com/world/gallery/2013/jul/19/detroit-goes-bankrupt-in-pictures
FIELD, Syd. Manual do roteiro: os fundamentos do texto cinematográfico. Rio de Janeiro:
Objetiva, 1995.
HUPPES, Ivete. Melodrama: o gênero e sua permanência. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.
JAMESON, Fredric. “Pós-modernidade e sociedade de consumo”. tradução: Vinicius Dantas. In:
Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, nº 12, pp. 16-26, jun. 1985.
McKEE, Robert. Story: substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro. Curitiba:
Arte & Letra, 2006.
VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para contadores de histórias e
roteiristas. Rio de Janeiro: Ampersand Editora, 1997.
289
XAVIER, Ismail. “Melodrama, ou a sedução da moral negociada”. In: Novos Estudos CEBRAP,
São Paulo, nº 57, pp. 81-90, jul. 2000.
Filmografia Citada
Perseguidor implacável (Dirty Harry, dir.: Don Siegel, EUA, 1971).
Impacto fulminante (Sudden Impact, dir.: Clint Eastwood, EUA, 1983).
Os imperdoáveis (The Unforgiven, EUA, 1992).
Dívida de sangue (Blood Work, dir.: Clint Eastwood, EUA, 2002).
Gran Torino (dir.: Clint Eastwood, EUA, 2008).
Mad Max: Fury Road (dir.: George Miller, EUA, 2015)
290
O espectador decifrador: reflexões acerca da produção de sentido do filme
“Matou a Família e foi ao cinema” (1969) de Júlio Bressane.
Ana Beatriz Buoso Marcelino – Unesp – [email protected]
Resumo: O presente estudo propõe-se a analisar alguns dos processos de produção de sentido
gerados pelos elementos audiovisuais e narrativos contidos no filme “Matou a Família e foi ao
Cinema” (1969) de Júlio Bressane, parte do escopo do chamado Cinema Marginal. Contudo, a
complexidade dos elementos narrativos e estéticos presentes no filme, caracterizado
principalmente pela fragmentação, tanto da narração quanto de sua forma, vêm a afetar o
entendimento linear das ações trazendo à tona a ideia de uma possível postura decifradora do
espectador em anteparo à transmissão da mensagem, gerando pistas e sugerindo possíveis
caminhos de significação norteados pela análise estruturalista e etnológica do olhar do
espectador.
Palavras-Chave: Recepção; Sentido; Cinema Marginal; Júlio Bressane.
Abstract: This study aims to examine some of the meaning production processes generated by
visual and narrative elements contained in the movie "Killed the Family and went to the
Movies" (1969) by Júlio Bressane, comes from the purpose of so-called Marginal Cinema.
However, the complexity of the narrative and aesthetic elements in the film, mainly
characterized by fragmentation of both, narration as its form, comes to affect the linear
understanding of actions bringing up the idea of a possible decoder posture of the viewer
screen in the message transmission, generating clues and suggesting possible significance
paths guided by structuralist and ethnological analysis of the viewer eye.
Keywords: Reception ; Sense ; Marginal Cinema; Júlio Bressane .
Introdução
O filme “Matou a família e foi ao Cinema” (1969) de Júlio Bressane representa uma forma
complexa e inovadora de se fazer cinema, seja por seu caráter precário de produção, marcado
muitas vezes por uma estética tosca, ou mesmo pela adoção de uma narrativa fragmentada
que acabam por desafiar o entendimento do espectador, marcas estas, peculiares e
características do Cinema Marginal ou underground brasileiro.
Contudo, o olhar do cineasta parece entrar aqui em conflito com o olhar do espectador, pois,
ao mergulhar no universo de significações proposto pelo filme, tem-se a possibilidade de
sistematizar os processos de produção de sentido presentes, que acabam por se desdobrar em
rotas complexas e variadas de significados através da análise de seus elementos audiovisuais e
narrativos, ampliando-se, portanto, as possibilidades de fruição. Para tal iniciação, entretanto,
torna-se pertinente entender o âmbito contextual que abarca a época em que o filme foi
produzido.
291
Em meio a um cenário explosivo cultural marcado por fortes conflitos políticos e ideológicos,
como a Tropicália82 e demais movimentos engajados, o Cinema Marginal aparece como uma
nova vertente do cinema brasileiro moderno, considerado outra fase do Cinema Novo,
nitidamente inspirado no cinema underground americano aliando a invenção estética ao
debate político, somando-se a outras tradições como o cinema de Mário Peixoto, Orson Welles,
Godard e a Chanchada, junto à literatura de Lima Barreto e Machado de Assis, além do
cancioneiro popular dos anos 30. Tal ousadia gerou um rompimento radical com o público,
acostumado ao distanciamento do espetáculo, com o exclusivo objetivo de provocar e
promover o ato reflexivo, como uma espécie de espectador ativo que tenta juntar as peças de
um quebra-cabeça em princípio sem nexo.
O impulso emergente de artista experimental de Júlio Bressane questiona a própria forma de
fazer cinema, um suposto cinema de invenção (Ferreira, 2000), acentuado pelo ajuste formal e
o tratamento dado às cenas que indica ao telespectador o avesso de soluções, prejudicando
um entendimento linear das ações, direcionando caminhos de leitura e apreciação, um estilo
marcado pela heterogeneidade e disjunção (Xavier, 2012), uma espécie de “olhar corrosivo”
que percorre livremente os espaços e cria seu próprio interesse. Dessa forma, esta dialética de
fragmentação intenciona a suspeita de uma possível crise formal, pois o olhar da câmera de
Bressane é como uma máquina que tudo observa a seu próprio tempo, uma câmera que está
longe de ser “tranquila”.
Suas imagens trazem uma dimensão polêmica, intertextual, e a recusa de envolvimento sob
uma imobilidade que pode ser considerada dialógica. A liberdade da câmera de Bressane traz à
tona uma diegese, enunciadora de um espaço off de reflexão independente das ações, com um
olhar amplificador enriquecido pela disjunção. A parataxe, entretanto, aparece como elemento
crucial para a diacronia das cenas. Sem encadeamentos ou subordinações, as séries são
descontínuas e nem sempre olhar e objeto se encontram. Sendo assim, cada sequência é um
recomeço através da liberdade do olhar a princípio sugerindo ser arbitrário, mas que no
conjunto da obra produzirá sentido. Contudo, o fluxo de estímulo das ações é desencadeado
fazendo com que o espectador tome uma postura ativa, de decifrador da mensagem.
Um olhar fragmentado
Júlio Eduardo Bressane de Azevedo, nascido no Rio de Janeiro em treze de fevereiro de 1946, é
considerado um dos principais nomes do cinema nacional, de reconhecimento internacional.
Iniciou sua carreira com a segunda geração do Cinema Novo, e foi precursor do Cinema
Marginal ou Cinema underground brasileiro. No final dos anos de 1960 junto a Rogério
Sganzerla germina os principais conceitos do Cinema Marginal e em 1970, fundam a Belair
filmes, produtora responsável pela confecção de filmes marginais, capaz de executar seis
longas-metragens em apenas seis meses, denunciando assim o caráter precário e improvisado
deste novo estilo.
Nas décadas seguintes, o cineasta desenvolve um rico acervo de filmes, e é reconhecido por
seu caráter inventivo, poético e ensaísta, ganhador de diversos prêmios nacionais e
82 Vale observar a perspectiva adotada por Favaretto (2000).
292
internacionais, além de importantes indicações em eventos sobre cinema que se seguiram ao
longo dos anos até os dias de hoje.
A ousadia de Bressane em romper com o olhar hegemônico e domesticado do público (Xavier,
2014) teve como precursores os pensamentos de Jean-Luc Godard, Jean-Marie Straub, e
Bertold Brecht, que propuseram o rompimento total da quarta parede, elegendo as ações
cotidianas da realidade dentro de um laboratório estético como matéria-prima para a criação,
fazendo com que o espectador se tornasse ativo e em exercício contínuo de reflexão.
Tal caráter marcado pela experimentação fez com que Bressane questionasse a própria forma
de se fazer cinema, bastante semelhante à atitude de Marcel Duchamp, nas artes visuais e o
movimento anti arte83, no início do século XX. Tal invenção acentuada pelo ajuste formal e o
tratamento dado às cenas indica ao telespectador o avesso de soluções, prejudicando um
entendimento linear das ações, como nos aponta Xavier (2012, p. 330): “Bressane recusa a
expressividade da câmera entendida como um imitar emoções, chegar perto para abraçar
valores das personagens. Está ausente a fusão entre consciências: personagens, autor,
espectador.” O autor também argumenta que o mundo diegético de Bressane é fragmentado,
atingindo um nível radical de resíduos:
A câmera, em Bressane, diverge. (...) Mesmo quando mais encorpado, ele
não “segura” a câmera, pois esta busca outras paragens e produz material
para interpolações (...). Ela perambula, cria seu próprio interesse, ou se
assume como extensão do corpo. (Xavier, 2006, p. 9)
Assim, Bressane nos dá outras possibilidades de olhar sobre novas perspectivas, com base num
movimento de liberdade de pensamento, como uma espécie de espectador interativo e
coautor do sentido de sua obra.
O olhar caleidoscópio do espectador
A etimologia nos ajuda a pensar no complexo percurso que o olhar do espectador traça ao se
deparar com o filme em questão, um olhar ativo, pensante e construtor de significados. Chauí
(1988) define o olhar sensível sobre um objeto a partir dos pensadores gregos, cujo olhar do
espectador pode ser entendido como aquele que conhece, pois “... ver é olhar para tomar
conhecimento e para ter conhecimento. Esse laço entre ver e conhecer, de um olhar que se
tornou cognoscente e não apenas espectador desatento, é o que o verbo grego eidô exprime”.
(CHAUÍ, 1988, p 35).
Então temos: eidô: ver, observar, examinar, fazer ver, instruir, informar, conhecer, saber – do
latim, da mesma raiz, vídeo: ver, olhar, perceber – e viso: visar, ir olhar, ir ver, observar,
83 O conceito anti-arte apoia-se na ideia dadaísta da determinação do valor estético não como procedimento técnico, mas como
um puro ato mental, uma atitude diferente em relação à realidade: “Com suas intervenções inesperadas e aparentemente
gratuitas, o Dadaísmo propõe uma ação perturbadora, com o fito de colocar o sistema em crise, voltando para a sociedade seus
próprios procedimentos ou utilizando de maneira absurda as coisas a que ela atribuía valor.” (ARGAN, 1999, p. 356). O estilo
inventivo e provocativo de Duchamp chamou a atenção da crítica pelo caráter enigmático de suas obras, consideradas quebracabeças desafiadores a estudiosos e o grande público: “Precisa-se apenas de virar o caleidoscópio da interpretação para descobrir
que os fragmentos da vida de Duchamp e da sua obra, formaram um novo padrão.” (MINK, 2000, p.8).
293
examinar. Specto: ver, olhar, examinar, ver com reflexão, provar, ajuizar, esperar; Species:
forma das coisas exteriores, figura, aparência, forma e figura formadas pelo intelecto,
esplendor, formosura, semelhança (corresponde a eidós, a ideia). Spectator: o que vê,
espectador; Speculatio: sentinela, vigia, estar em observação, pensar vendo; Spectio: a vista, a
inspeção pelos olhos, a leitura de agouros. Todavia um olhar que sente, vê, percebe, conhece,
sabe, intui e pensa:
Esse olhar que se apercebe, atento, penetrante, atravessador e reflexivo é o
de um olho perspicax (perspicaz, engenhoso) que vê perspicue (claramente,
manifestamente, evidentemente) porque dotado de uma qualidade
fundamental que reencontra no visível e que, dalí, por mutação, transmite
ao espírito e ao intelecto: a perspicuitas, clareza e distinção do transparente.
Esse olhar é o único capaz de vidência perfeita, a evidentia, posta como
marca distintiva do verdadeiro.” (Chauí, 1988, p. 37)
Dessa forma, entende-se que os pares: eidô-eidós, specto-species, spectio-speculatio, definem
o ato de conhecer (intelectual) a partir da visão (sensível). Do olhar nasce o pensar, um outro
olhar ou um modo peculiar de olhar. Segundo a autora, a espiritualidade da visão não seria
apenas descoberta do olho, mas também do olhar poético, criador de todas as artes,
responsável pela passagem das “artes mecânicas” à dignidade de “artes liberais”.
Entretanto, o olhar do cineasta e do espectador parecem adentrar um território conflituoso e
transformador de significados exponenciais. Nem sempre o que um artista materializou de seu
pensar pode ser o que se contempla ou vice-versa. O processo de fruição artístico é em
demasia complexo por sua natureza, de caráter imprevisível, multidirecional, dinâmico e auto
transformável. Pensar um objeto artístico, contudo, parece traçar um itinerário libertador e
independente, marcado por impressões arbitrárias de livre pensar. Esse caráter “interminável”,
de seguir percursos imprevistos e conclusões inusitadas, como se o espectador não obtivesse o
controle, permite a ampliação de possibilidades e um enriquecimento da compreensão, com
crescente proporção do entendimento, um pensamento que infla em anteparo à burocracia do
saber permeada por paradigmas fixos e regras ortodoxas, como um caleidoscópio de ideias
sensíveis e inteligíveis.
Alguns sentidos de “Matou a família e foi ao cinema” (1969)
A presente obra foi filmada e montada em apenas 15 dias, concomitante à filmagem de outro
filme de Bressane “O anjo nasceu” do mesmo ano. Na época, em meio à Ditadura Militar o
filme chegou a ser retirado de cartaz acusado de ser subversivo. O roteiro se baseia na história
de um moço ocioso de classe média baixa carioca que, em meio a suas frustrações assassina
seu pai e sua mãe. Depois disso vai ao cinema assistir ao filme “Perdidas de amor” que conta a
história de Márcia, jovem de classe média alta, casada e frustrada, que decide aproveitar uma
viagem do marido para ficar em uma casa de campo em Petrópolis. Sua mãe pede para que
Regina, sua amiga, vá até ela e converse sobre as dificuldades de um possível divórcio.
Enquanto isso, um homem mata sua mulher dentro de um barraco, aos olhos curiosos dos
vizinhos. Em outro ponto da cidade uma mulher deflagra a infidelidade do marido, enquanto
que em outro local duas adolescentes que se amam são subjugadas pela mãe de uma delas e
acaba sendo morta pela filha. Em meio à narrativa fragmentada de “Perdidas de Amor”, um
294
homem é cruelmente torturado até desfalecer. Também outro homem bêbado e pobre
assassina a mulher e filho por causa de uma crise financeira e possível infidelidade da esposa.
Em meio a tudo isso, as duas amigas em Petrópolis recordam o tempo do colégio, conversam
sobre homens, casamento, festejam, fazem bagunça em vários cômodos da casa, se acariciam,
trocam beijos e finalmente se matam em um tiroteio emblemático com as armas do marido de
Márcia. Ao final de “Perdidas de Amor” duas amigas conversam sobre ter assistido a esse
mesmo filme. No total são nove narrativas, baseadas em tragédias de jornais cariocas
sensacionalistas da época, como homicídios passionais, traições, tortura física e lesbianismo,
todas filmadas pelos mesmos atores, que acaba por dificultar um entendimento lógico.
O filme possui uma série de características cruciais ao olhar sensível e ativo do espectador.
Uma delas, bastante pontual, é a narrativa fragmentada, que acaba confundindo todo o
processo de apreciação e entendimento da história. Júlio Bressane trabalha com essa ruptura
de modo escancarado, fazendo com que o espectador se admire ao ver aos inesperados
assassinatos brutais, em debate através da ironia provocada por outros elementos presentes
do filme, como os efeitos sonoros utilizados, sempre sugerindo sentidos ambíguos, como uma
alegre marchinha de carnaval para um corpo assassinado.
Dessa forma, mergulhando-se no universo estrutural dos planos podemos traçar um mapa de
itinerários possíveis. Na cena em que o filho manipula a navalha, encenando o assassinato dos
pais, por exemplo, ele passa a lâmina afiada em seu rosto, nos olhos, na língua, gerando um
efeito de sentido de provocação sinestésica ao espectador, como a aflição, ou medo. A câmera
nesta cena está posicionada por trás da porta, evidenciando seu caráter voyeur, e depois em
close up, de modo a enfatizar as emoções. O silêncio acentua o tom realista e de suspense,
enquanto o personagem se vê no espelho - cujo reflexo curiosamente não aparece - denotando
a ambiguidade de sua personalidade. Enquanto o ator gesticula a navalha com o sinal da cruz,
aparece em seguida um plano com um quadro de Jesus pregado na parede, sugerindo
ironicamente paganismo e subversão, temas pertinentes ao cenário político e ideológico da
época.
No plano sequência do assassinato dos pais, o filho caminha lentamente por trás do sofá, passa
a mão sobre a cabeça do pai, puxa seu cabelo e lhe deflagra a navalha no pescoço. O pai grita
curtamente. Depois o filho sai do enquadramento e ouve-se em off um grito de horror
feminino, sugerindo a morte da mãe. Com a tomada em close up, sempre perambulando, a
câmera segue o personagem que limpa a navalha suja de sangue no sofá e sai do
enquadramento, o sangue traça uma linha vertical ao escorrer lentamente pela superfície,
acentuando a dramaticidade da ação. Toda sequência de planos aparece ao som da TV,
produzindo o sentido de ironia. No plano que segue, o personagem caminha na rua até parar,
comprar um bilhete e entrar num cinema.
Na narrativa seguinte, Márcia aparece sentada cabisbaixa num ambiente externo, junto ao
marido que manipula uma de suas armas de fogo, atirando para um alvo enquanto comenta
sobre sua viagem de negócios. Pensando-se na simbologia pode-se afirmar que a arma
representa a extensão do falo, o poder relacionado ao marido da qual a esposa está farta. Na
sequência, Márcia aparece em outro plano com expressão séria, ouve-se o ruído do avião a
decolar, denotando sentido de algo desagradável que se soma à expressão do rosto de Márcia,
295
como o tédio. O contrário acontece na casa de campo, com ambientes amplos, abertos, onde
se vê tudo limpo, organizado, farto, com água escorrendo pela torneira, ou seja, sugerindo
fluidez e leveza. A personagem nada, faz ginástica e canta introspectivamente. Quando sua
amiga Regina chega, se cumprimentam e entram nos aposentos. No plano seguinte se ouve em
off o som de uma descarga, enquanto a câmera se posiciona entre a porta do que parece ser
um banheiro, onde Márcia ajeita-se no espelho. Nessa sequência de planos o sentido
sintagmático em evidência é o de eliminação de todas as impurezas físicas, de Regina, assim
como as psicológicas, de Márcia.
No fragmento narrativo seguinte, a câmera solta focaliza e uma mulher morta, de bruços sobre
o sofá, jorrando sangue pelo ferimento nas costas. Em travelling de 360º, a câmera segue até
focalizar um homem cabisbaixo sentado em uma poltrona, de frente para o sofá, com uma faca
na mão. O mesmo repete pausadamente e com clareza: “Matei por amor” insistentemente por
nove vezes. O plano todo ao som de um samba antigo com letra romântica, enquanto olhares
de crianças, adultos e idosos espiam curiosos pela janela do escuro casebre. O sentido
discursivo apresenta a intenção voyeur do ser humano, até mesmo da câmera, e
consequentemente do telespectador. Além disso, o assassinato somado à condição precária do
ambiente e a ironia acentuada pela música e dança, caracterizam ainda mais o conceito
marginal e reflexivo desse filme, com certo ar de deboche. Esse caráter voyeurista da câmera é
uma marca constante. As próprias tomadas, por detrás de portas ou janelas sugerem esse
sentido ao espectador, como na cena em que as duas adolescentes se acariciam, onde a
câmera adota uma postura “bisbilhoteira”.
De volta aos aposentos da casa de veraneio as duas amigas aparecem sentadas, uma de frente
para a outra, conversando sobre o casamento. A postura de Regina, à direita é mais ereta que a
de Márcia, que parece se dissolver pela poltrona. No cenário aparecem dois quadros ladeados
por dois abajures, por trás das duas poltronas, sugerindo a dubiedade, a dúvida, as relações em
pares, a cumplicidade, tanto dos casamentos quanto das amizades – posteriormente serão
cúmplices criminais.
Em outro momento, uma mulher descobre um bilhete na carteira do marido, da qual se ouve a
voz em off, enquanto conversam numa mesa de refeição. Novamente a posição da câmera está
no corredor, entre portas, daí a ideia de distanciamento e separação entre eles, além do caráter
bisbilhoteiro da câmera, trazendo em evidência o sentido de phatos, apontado por Greimas e
Fontanille (1993). O plano seguinte, todavia, a mulher atravessa a rua e dirige-se a uma grande
casa seguida pelo travelling da câmera, adentra aos cômodos por um corredor comprido e
sombrio até espiar por uma porta entreaberta, volta seu rosto para a câmera, com olhar para
baixo e expressão séria, sugerindo uma possível traição do marido. Toda sequência ao som de
um jazz com notas alegres, confirmando mais uma vez o teor irônico e profano da sequência.
A narrativa proposta a seguir trata da relação entre duas adolescentes focalizadas no centro do
plano com acentuado distanciamento, em leve contra-plongé, na rua, sobre uma ponte de
linha férrea, cujo diálogo resume-se em se matarem caso algo as impeça de ficarem juntas, ao
fundo uma paisagem sonora bastante ruidosa com veículos passando, intensificando o
dinamismo da cena. No plano seguinte aparece a mãe, recolhendo roupas num varal no quintal
do que parece ser um casebre no meio de uma favela. A mãe resmunga sobre os fuxicos dos
296
vizinhos em relação a sua filha, ameaçando castigá-la, se necessário. Na sequência, ambas,
mãe e filha, aparecem sentadas numa mesa comendo. A mãe questiona a filha que retruca e
leva um tapa na face. A câmera que estava posicionada na porta do cômodo se distancia em
travelling out até sair do cômodo e focalizar em close up um vaso com flores artificiais de
papel, sobre uma mesinha. Essas flores, entretanto, denotam certo valor simbólico, como algo
que dificilmente se estraga - diferente das flores naturais, de durabilidade limitada - além de
estarem associadas à ideia de feminilidade e de resistência do relacionamento entre as
meninas.
No plano seguinte em plongé de 50º, as meninas são focadas conversando ao pé da porta de
fora da casa, gerando o sentido de pressão e achatamento da imagem, assim como a situação
entre elas. Na sequência aparece uma composição equilibrada com uma pequena janela
destacada, em meio à parede negra, estão as duas meninas se acariciando enquanto a
iluminação cai numa escuridão total. Esse recurso tonal sugere que o romance está às escuras.
No plano seguinte a mãe deflagra o romance entre as duas adolescentes, ao entreabrir a porta
do quarto, voltando e abaixando sua cabeça. Na sequência um corte para a cena em que a filha
estrangula a mãe, batendo sua cabeça no chão, enquanto a amiga aparece sentada numa
cadeira, atrás da ação, lixando sua unha. A mãe desfalece e surge uma música carnavalesca de
Carmem Miranda cuja estrofe diz “Oh, que terra boa pra se farrear...”. A música é tocada na
íntegra adentrando uma cena marítima, com um homem sentado folheando um jornal. O
mesmo joga o jornal e sai do enquadramento. O jornal é levado pelo vento em meio ao trânsito
do cenário urbano, como se as notícias ali pautadas estivessem soltas, vulneráveis e disponíveis
aos olhos de qualquer leitor.
Inicia-se agora uma sequência de cenas que descrevem a farra das duas amigas na casa de
veraneio, as mesmas nadam, cantam, dançam em ritmo frenético, ao som de um foxtrot,
simulam alegoricamente tocar instrumentos. Ambas finalizam adentrando cenicamente as
cortinas fechadas de um cômodo, abrem-na e depois fecham juntamente com o tom final da
música.
Bressane une esse sentido de “entre cortinas”, como algo obscuro, vedado, com o plano
seguinte da tortura de um homem, amarrado seminu numa cadeira, posicionada ao centro de
uma sala obscura, cuja claridade centra-se apenas nele, seu torturador apaga o cigarro em seu
corpo, já com a respiração ofegante e o sangue escorrendo por seu corpo é esbofeteado por
outro homem enquanto uma silhueta de outro homem ao fundo observa tudo. Os poucos
claros e muitos escuros escancarados intensificam o caráter dramático das ações. Depois,
amarrado a uma mesa horizontal, o torturado recebe choques até desfalecer. A composição
horizontalizada da cena lembra o significado da morte, algo que já não pode mais ficar ereto.
Seu corpo aparece no plano seguinte agonizando no chão, em posição fetal, com a boca e nariz
congestionados pelo sangue. A sequência toda ao som de gritos e gemidos que tencionam a
sensação de dor e aflição ao espectador. A câmera focaliza novamente a mesa de tortura com
os três torturadores ao redor do corpo exausto do homem, em contra-plongé, engrandecendo
a postura dos torturadores que executam a última ação até que o homem perde seus sentidos.
De volta à Petrópolis, ao som de uma música de piano doce e melancólica a câmera perambula
pelos cômodos captando as ações triviais das amigas até encontrar a coleção de armas do
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marido de Márcia. As armas são focalizadas em travelling in lentamente, por detrás de uma
porta. Novamente o caráter voyeurista da câmera e a ironia causada pelo contraste dramático
entre imagem e áudio se confirmam. Continuando a sequência, as moças começam a bagunçar
a casa, jogando almofadas, pulando na cama, no sofá, engatinham pelo chão, como se
voltassem à infância. Como num ritual mitológico Regina distribui flores no cabelo de Márcia,
traz uma galinha e caem na banheira, esfregando as flores sobre o tecido molhado das roupas
coladas em seus corpos, num misto entre o bizarro e o erótico.
Essas ações remetem à mitologia grega que se reconhece através da iconografia das deusas
representadas pelos grandes mestres da pintura, como o renascentista Sandro Botticelli84,
assim como ao misticismo, já que os elementos simbólicos: flores brancas e a galinha branca
são inerentes ao Candomblé, cujo ritual religioso parte do princípio da purificação através do
banho com essas plantas e da mandinga com a galinha. Essa referência de Bressane à cultura
afro-brasileira ratifica sua raiz tropicalista, além de provocar polêmicas ao telespectador mais
conservador. A galinha, entretanto, também lembra uma cena de Cabiria (1957) de Frederico
Fellini, que conta a história de uma jovem inocente e ingênua que se prostitui para sobreviver,
da qual é elegantemente resgatada por Bressane.
Voltando-se ao filme em questão, ao som off de um choro de bebê, um homem
bêbado chega em casa e discute com a mulher, saca o revólver e a mata, depois se vira e atira
duas vezes para o lado. O som é cessado sugerindo a morte da criança. A câmera perambula
pelo ambiente e mostra duas manchas de sangue sobre a manta do bebê e a mulher caída no
chão. O homem se agacha com a arma na mão, e paralelamente surge uma música
carnavalesca da Chanchada cujo refrão diz “Rasguei a minha fantasia...” que vai aumentando
de volume fazendo-o levantar e dançar cambaleando com os braços erguidos, sugerindo o
sentido de ironia e deboche como uma solução cruel em anteparo à situação.
Frente a um gramado, duas outras amigas, representadas pelas mesmas atrizes, conversam
sobre terem assistido ao filme “Perdidas de amor”. Uma delas debocha por se tratar de cinema
nacional. Essa narrativa dá o sentido de metalinguagem crítica à própria obra, enquanto que,
também, uma forma de se firmar como udigrudi nacional85, um cinema de autor, altamente
reflexivo, que não precisava de recursos tradicionais ou mesmo luxuosos para serem legítimos.
Por fim, a cena do tiroteio emblemático entre as amigas em Petrópolis, que remete à tragédia
“Antígona” de Sófocles86, uma tentativa de se resgatar o caos anterior à ordem. As duas
portando as armas do marido de Márcia atiram uma na outra em meio a uma mise-en-scène de
subir e descer escadas, dançar, cambalear e rastejar. No meio dessa encenação há o corte para
o plano da cama, onde as mesmas se acariciam, sugerindo uma relação sexual.
84 No mito grego as Três Graças ou Cárites aparecem mais frequentemente pelo trio: Tália, a que faz brotar flores, Eufrosina, o
sentido de alegria e Aglaia, a claridade, representam o encanto, gratidão, prosperidade familiar, sorte, concórdia. No renascimento
se tornaram símbolo da idílica harmonia do mundo clássico. Nas representações aparecem jovens, sempre juntas, dançando ou de
mãos dadas, ora vestidas, ora desnudas, ou seminuas como em “Primavera” (1482) de Sandro Botticelli.
85 Apelido dado por Glauber Rocha ao Cinema Marginal.
86 Tragédia mitológica escrita por volta de 342 a.C. que conta o assassinato mútuo dos filhos de Édipo, Etéocles e Polinices, em
busca do reinado de Tebas.
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Num outro plano, a câmera centraliza um vaso de flores naturais sobre a mesa do jantar, que
diferente da narrativa das adolescentes lésbicas, representam flores perecíveis, assim como a
suposta relação etérea entre Márcia e Regina. No plano seguinte, Regina morre no chão da
sala, em meio aos pés dos móveis. A câmera a focaliza em close up com seu rosto tomando
quase toda a tela, sangrando o enquadramento com a arma direcionada horizontalmente em
seu pescoço. Essa expressão da câmera intensifica as emoções possíveis de serem lançadas
pelo espectador. Márcia, por sua vez morre caída com a cabeça no primeiro degrau e os braços
abertos, numa composição simétrica, equilibrada e harmoniosa, que chama a atenção para o
detalhe da mancha de sangue como elemento principal da fruição da imagem. Essa posição
assemelha-se a algumas representações de Cristo ao longo da história da Arte, como em uma
das perspectivas de Pietá (1499) do renascentista Michelangelo. Também lembra à serigrafia
que Hélio Oiticica fez em homenagem ao bandido “Cara de Cavalo”, em 1968, que morreu
assassinado em uma emboscada policial, considerado um anti-herói, conforme o emblema
gravado: “Seja marginal, seja herói”. Essas duas referências dão sentidos complementares ao
filme, sugerindo no plano discursivo a ideologia implícita, como forma de engajamento.
Toda a sequência final é ainda tensionada pelo áudio, que se inicia com o próprio som
ambiente, dos tiros, gritos e risadas, porém, após a morte inicia-se a canção de Roberto Carlos
“Ninguém vai tirar você de mim” que fala sobre amor e perda. No final da música, a câmera
focaliza os pés de Regina à direita da composição, os pés dos móveis na parte superior, uma
mancha de sangue no chão à esquerda e duas flores brancas no centro, formando um triângulo
composicional. Essa composição, no plano do conteúdo, somada à repetição de 22 vezes do
refrão “Em te perder”, último verso da música, sugere o sentido antagônico de vida e morte, as
flores, posicionadas no ápice do triângulo, denota purificação, feminilidade, vida, mas também
morte, por seu caráter fúnebre, que somadas à mancha de sangue e aos pés imóveis de Regina
acentuam ainda mais o caráter mórbido do filme, entre os opostos vida e morte, que
sustentam toda a narrativa.
Considerações Finais
Em meio à complexidade apresentada pela obra, tais apontamentos de sentidos sugerem
alguns caminhos de significação através da apreciação dos elementos audiovisuais e narrativos
presentes neste filme, capazes de apontar possibilidades de produção de sentido, fazendo com
que as peças fragmentadas da(s) narrativa(s) se encaixem num todo, metonimicamente,
somando itinerários de significação e clarificando as possíveis conclusões de um espectador
sensível, ativo e pensante, digno e decifrador da mensagem. Sendo assim, o filme de Bressane
parece passar pelo filtro de um caleidoscópio, quantificando um exponencial semântico ao
espectador, investindo em sua elaboração perceptiva, crítica, sensível e inteligível.
REFERÊNCIAS
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BERNADET, Jean-Claude. O voo dos anjos: Bressane e Sganzerla. São Paulo: Brasiliense, 1991.
CHAUÍ, Marilena. Janela da Alma, Espelho do Mundo. In NOVAES, Adauto (1988). O Olhar. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988.
299
FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria e alegria. Cotia: Ateliê editorial, 2000.
FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo: Limiar, 2000.
GREIMAS, Algirdas Julien; FONTANILLE, Jacques. Semiótica das Paixões. Trad. Maria José
Rodrigues Coracini. São Paulo: Ática, 1993.
MINK, Janis. Marcel Duchamp 1887-1968: A Arte como Contra-Arte. Köln: Taschen, 2000.
XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
____________. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e
Terra, 2014.
____________. Roteiro de Júlio Bressane: apresentação de uma poética. In: Alceu, v. 6, n. 12.
São Paulo, jan. jun. 2006. p. 5-56.
300
Ver e Tocar: O Dilema de Tomé no Filme Time de Kim-Ki-Duk.
Patricio Dugnani, Universidade Presbiteriana Mackenzie, [email protected]
Resumo
Este trabalho tem o objetivo de analisar a questão da percepção de fenômenos pelos sentidos
da visão e do tato, a partir das questões apresentadas de maneira poética no filme Time: O
Amor Contra o Tempo, do diretor sul-coreano Kim Ki Duk. Levando em consideração a função
poética que predomina no filme, partiremos da observação dos aspectos denotativos do filme,
das qualidades puras apresentadas a partir da organização de seus significantes, que se
projetam em seus significados e analisar as relações conotativas que constituem o seu
discurso. Equipando-se destas teorias, apoiando-se em suas reflexões, apresenta-se este
método híbrido, que servirá para a análise do filme Time, do diretor coreano Kim Ki Duk, pois
estas reflexões desenvolvem um raciocínio que possibilita analisar fenômenos da comunicação
na pós-modernidade.
Palavras-Chave: Comunicação; Imagem; Semiótica; Semiologia; Iconologia.
Abstract
This work has the purpose of analyzing the issue of perception of phenomena by the senses of
sight and touch, from the issues presented in the movie poetic way Time: love against time,
the South Korean director Kim Ki Duk. Taking into consideration the poetic function that
predominates in the film, we leave the observing the denotativos aspects of the film, the pure
qualities presented from their significant organization, which protrude at their meanings and
analyze conotativas relations that constitute his speech. Equipping of these theories, based on
his reflections, this hybrid method, which will serve for the analysis of the film team, the
Korean director Kim Ki Duk, because these reflections develop a rationale that makes it
possible to analyze the communication phenomena in post-modernity.
Keywords: Communication; Image; Semiotics; Semiology; Iconology.
INTRODUÇÃO
Ora, Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com eles quando
veio Jesus. Disseram-lhe, pois, os outros discípulos: Vimos o Senhor. Mas ele
disse-lhes: Se eu não vir o sinal dos cravos em suas mãos, e não puser o
dedo no lugar dos cravos, e não puser a minha mão no seu lado, de maneira
nenhuma o crerei. (Jo, 24 – 25)
Cada vez que retomamos a descrição de quando Tomé recusou-se a crer no que lhe contavam
os discípulos e afirmou que apenas acreditaria se pudesse ver, e mais, pudesse confirmar sua
visão com o toque, a tradição do debate sobre a verdade e a relação com a percepção é
resgatada para o debate. E ainda sobre essa passagem, também é reafirmada a questão, que
301
mesmo para nossa percepção existem verdades que se impõem com mais legitimidade e
verossimilhança que outras. Haja vista o longo debate sobre a verdade revelada pela visão e a
revelada pelo tato. Ou seja a visão pode nos enganar e o tato me traz a verdade irrevogável da
materialidade, como podemos concluir, talvez precipitadamente, a partir deste texto. Nesse
sentido resgata-se todas as grandes 04 iconoclastias (MACHADO, 2001) que já levantaram as
suas bandeiras quanto o aspecto ilusório da imagem: o pensamento platônico, os iconoclasmo
bizantino, a teoria crítica e marxista da Escola de Frankfurt e o novo iconoclasmo da “superabundância de imagens” (2001, p.16) na pós-modernidade. De qualquer forma, a questão da
percepção e suas formas causam debates desde a muito tempo, dessa maneira não se
pretende nesse texto resolver uma questão tão ampla, mas sim, analisar de maneira
semiológica, como a percepção da verdade e sua revelação, a partir da confusão entre os
sentidos do tato e da visão, é tratada no filme Time (2006), do diretor sul-coreano Kim Ki Duk.
O diretor, nesse filme, nos enreda em uma trama labiríntica, onde o tempo não mais se torna
linear, mas cíclico e a diferença entre passado, presente e futuro são abolidas. O tempo e as
personagens são lançadas em uma sequência de entrecruzamentos, onde acabam por perder
sua identidade, se disfarçando através de novos rostos, produzidos artificialmente por
sucessivas operações plásticas, vão constituindo novos sujeitos, rebatizados por novos nomes
(muitas vezes próximos ao do original), mas que ainda, mesmo trocando o nome e a aparência,
mantém amaldiçoadamente algo das antigas personalidades e acabam por retomar os
mesmos equívocos. As ações das personagens vão se revezando e se trocando, onde embora
as ações sejam as mesmas, são praticadas por outros personagens. Desta forma, além do
tempo cíclico, metáfora do filme, o espelhamento, metáfora da aparência, conduz a trama.
Então a partir dessas duas questões, ações cíclicas e espelhamentos é que vamos analisar a
percepção tátil e visual e suas relações com a revelação do discurso, mais que a verdade.
Método de Análise de Imagem
As características principais que compreendem a expressão estética do pós-modernismo, e,
consequentemente, o barroco, são os excessos expressivos de suas formas – seu aspecto
decorativo; o uso intenso de estratégias intertextuais (citação, paródia); os jogos poéticos - as
metáforas, as estruturas labirínticas (enigmas, emblemas, metatextos, os espelhamentos, as
construções cíclicas, o ilusionismo, as personificações, as alegorias); as formas antitéticas - as
contradições, por isso, seu ecletismo, sua multiplicidade, sua mistura de estilos; o uso do
lúdico, a valorização do mito em detrimento da razão; o afastamento dos conceitos absolutos;
a complexidade, o hibridismo, as incertezas epistemológicas, a vertigem, a irregularidade e o
gosto pelo movimento, no sentido mais amplo, o movimento como mobilidade, o gosto pela
mobilidade estética, formal, emocional, conceitual, social, cultural.
Levando em consideração as características labirínticas e enigmáticas do filme Time, de Kim Ki
Duk, além do fato de ser uma produção contemporânea, torna-se inevitável classifica-lo como
uma obra que apresenta características pós-modernas. A partir dessa reflexão, toma-se a
expressão pós-moderna, como um objeto que - assim como seu sujeito, segundo Stuart Hall
(2004) – ganha uma complexidade, devido a carga de incertezas e de rompimentos com
conceitos estabelecidos. A produção estética das imagens na pós-modernidade, apresenta um
jogo constante de citações, intertextualidades, de mistura de paradigmas estéticos dos mais
302
díspares, e esse fator torna a análise do discurso visual um desafio constante, por isso, propõese um método híbrido de análise de imagem, baseado nos estudos da iconologia de Erwin
Panofsky, da semiótica de Charles Sanders Peirce e da semiologia, principalmente, as análises
de imagem realizadas por Roland Barthes.
O primeiro conceito emprestado da semiologia, que será utilizado nesta análise, é o conceito
de intertextualidade, de Roland Barthes (2004). A intertextualidade deverá guiar nossa
observação da produção da imagem na contemporaneidade, pois esta estratégia se mostra
uma constante em tempos pós-modernos. De acordo com a teoria da intertextualidade um
texto, não necessariamente verbal, é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas
em diálogo entre si.
[…] um texto é feito de múltiplas escrituras, elaboradas a partir de diversas
culturas e ingressante em uma relação mútua de diálogo, paródia,
contestação; mas há um lugar em que esta multiplicidade é percebida, e
este lugar [...] é o leitor: o leitor é o espaço em que se inscrevem, sem que
nenhuma se perca, todas as citações que constituem a escritura: a unidade
do texto não reside em sua origem, mas em seu destino, e este destino não
pode ser pessoal: o leitor é alguém sem história, sem biografia, sem
psicologia; ele é, simplesmente, um qualquer que articula, em um único
campo, todos os traços a partir dos quais se constitui a escritura (BARTHES,
2004, p.64).
Além do conceito de intertextualidade, a escolha da semiologia de Barthes se dá pela sua
relação com a semiótica peirceana. A relação da análise dos signos visuais que compõem a
imagem, tanto a semiótica, como a semiologia, parecem concordar que uma análise dos
signos, e sua organização, deve partir de um campo mais concreto e objetivo, para um campo
mais abstrato e representativo. Ou seja, se para Barthes a análise deve seguir do “óbvio” para
o “obtuso” – da denotação para a conotação - a semiótica peirceana observa o signo, em suas
categorias universais, que vão da percepção pura das qualidades, do signo icônico, até a
representação e mediação, o signo simbólico, convencional. Para Barthes:
Diremos, pois, que um sistema conotado é um sistema cujo plano de
expressão é, ele próprio, constituído por um sistema de significação; os casos
correntes de conotação serão evidentemente constituídos por sistemas
complexos, cuja linguagem articulada forma o primeiro sistema. (BARTHES,
1992, p. 95)
Barthes (1964c), por exemplo, distingue três tipos de mensagens na
publicidade ilustrada. Apenas duas delas são codificadas. A primeira é a
mensagem verbal, que depende do código da língua. Ela consiste no nome
da marca e no comentário verbal das qualidades do produto. As duas outras
mensagens são inseridas na imagem visual: uma é a mensagem icônica não
codificada, da qual a imagem fotográfica denota analogamente os objetos
“reais” de maneira que o significante e o significado são quase
“tautológicos”, e a outra é uma mensagem icônica codificada (ou simbólica).
De acordo com Barthes, a última inclui as conotações do quadro em que se
forma a imagem específica do produto que deve ser transmitida aos
consumidores. (NOTH e SANTAELLA, 2010, p. 81)
Já a escolha da semiótica Charles Sanders Peirce e da iconologia de Erwin Panofsky se deu pelo
fato de esses estudos convergirem ao analisar as artes visuais em três níveis. A Iconologia de
Panofsky analisa significado nos seguintes níveis: significado primário ou natural, significado
303
secundário ou convencional e significado intrínseco ou conteúdo (PANOFSKY, 1976, p.50),
separando, assim, o nível formal ou sintático (fundamental) dos níveis semântico (narrativo e
histórico) e pragmático (discursivo). Isso nos deixa livre para analisar cada um deles
distintamente.
A iconologia trata do estudo dos significados das artes visuais, e vai “desde a identificação do
tema pode ser feita uma leitura da obra que a liga à complexidade da cultura...” (CALABRESE,
1987, p.36). Esse método de análise das artes visuais pretende ampliar as possibilidades de
interpretação dos fenômenos artístico-culturais. A interpretação iconológica exige o estudo de
conceitos específicos retirados de fontes literárias. São documentos necessários para
direcionar a escolha e a apresentação dos motivos, bem como a produção e a interpretação
das imagens, histórias e alegorias. Esses fatores darão sentido às composições formais e aos
processos técnicos utilizados. Porém é preciso estar atento para que a subjetividade não
domine a análise, pois podemos confiar demasiado na intuição pura, interpretando os
documentos de uma maneira não objetiva, deixando-nos levar por suposições particulares sem
a devida comprovação e relação com a obra visual escolhida.
Panofsky, como foi demonstrado, dividiu a sua análise em três níveis de significados ou temas
básicos: tema primário ou natural, tema secundário ou convencional (iconografia) e significado
intrínseco ou conteúdo.
Justamente nesse ponto, é que a reflexão de Erwin Panofsky se aproxima da teoria geral dos
signos - a semiótica de Charles Sanders Peirce – principalmente em seu arcabouço teórico e na
estrutura de divisão triádica. Inclusive, devido a essa semelhança, Omar Calabrese, afirma que
os estudos de iconologia de Panofsky, são uma semiótica das artes visuais (CALABRESE, 1987,
p.41).
Percebe-se melhor a afinidade das teorias de Peirce e Panofsky quando compara-se as suas
estruturas. Em ambas percebe-se a predominância de um pensamento triádico, em que
através de três categorias cria-se um mecanismo de entendimento dos fenômenos universais,
sejam eles artísticos ou naturais.
Para Peirce, “um signo ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo,
representa algo para alguém. Dirige-se para alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa, um
signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido” (PEIRCE, 1977, p.46). O signo
representa um objeto em um determinado aspecto, criando um signo, que por sua vez, cria
outro na mente da pessoa. Esse segundo signo criado a partir de um primeiro é denominado
interpretante. Essa relação triádica de signo, objeto e interpretante, permeia toda nossa
percepção dos fenômenos que se apresentam à mente.
Peirce elegeu três faculdades necessárias ao homem para a observação e compreensão dos
fenômenos: a contemplação, a distinção e o julgamento. A partir dessas três faculdades
chegamos às categorias que foram denominadas primeiramente como qualidade, relação e
representação, substituídas posteriormente por qualidade, reação e mediação. Finalmente, as
três categorias foram novamente batizadas dezoito anos depois, por Peirce, de primeiridade,
secundidade e terceiridade.
304
A primeiridade está ligadas às noções de qualidade, possibilidade, consciência imediata. As
idéias de secundidade estão ligadas às noções de existência, incompletude, ação e reação. As
idéias de terceiridade estão ligadas a noções de generalização, convenção, representação,
norma e lei. Percebemos, dessa maneira, que a síntese é uma preocupação comum tanto a
Peirce como a Panofsky.
Enfim, na análise de Panofsky encontramos, na divisão dos três significados, noções
semelhantes às categorias universais de Peirce, demonstrando, assim, a adequação do método
da iconologia à semiótica peirceana. Ao que parece, o teórico alemão, baseado em um
pensamento tricotômico, que poderia ser a arquitetura filosófica peirceana, construiu um
sistema de análise das obras de artes visuais. Esse mecanismo de leitura dos significados das
artes, dividido hierarquicamente em três categorias - a eleição das formas puras (qualidades
das obras); relação das formas puras com os textos que possam esclarecer seus significados; e
mediação das formas puras com a relação entre os textos utilizados para descobrir seu valor.
Equipando-se destas teorias, apoiando-se em suas reflexões, apresenta-se este método
híbrido, que servirá para a análise do filme Time, do diretor coreano Kim Ki Duk, pois estas
reflexões desenvolvem um raciocínio que possibilita analisar fenômenos da comunicação na
pós-modernidade. Partindo-se dos aspectos concretos, formais, denotados e das qualidades
puras da imagem, pode-se chegar à compreensão das relações entre os signos que constituem
o campo da representação, do conteúdo, da conotação. Esta linha central de raciocínio é que
será a base do método híbrido de análise de imagem nesta pesquisa.
Do Filme
Para entendermos esse debate, cabe conhecermos, primeiramente a história do filme. SehHee era noiva de Ji-Woo, mas após uma briga em um café que sempre frequentavam, ela
some e resolve fazer uma operação plástica e mudar totalmente seu rosto. Sem avisar o noivo
ela desaparece por meses, período em que Ji-Woo fica atormentado pela busca de
compreender o motivo do sumiço de Seh-Hee. Após esse tempo Ji-Woo conhece uma
garçonete, no mesmo café que brigara com sua noiva desaparecida, e passa a flertar com ela.
Porém Ji-Woo não sabe que essa garçonete era sua noiva, agora com um novo rosto, tentando
conquista-lo novamente. Basta de labirintos? Mas não é tudo. Sabe qual é o novo nome de
Seh-Hee, a noiva desaparecida, disfarçada de garçonete? Ela se apresenta ao noivo como
sendo See-Hee. Fica clara a estratégia do diretor em criar uma trama labiríntica? Porém as
coisas podem ficar mais enredadas: pois Seh-hee, embora trocou de rosto, sua essência era a
mesma e passa a cometer os mesmos atos que a levaram à desesperada ação de mudar de
rosto. Novamente levada ao desespero, ela revela ao noivo o que aconteceu, em uma cena
angustiante, quando ela, com o rosto que denominava See-Hee, faz uma máscara com a última
foto do seu rosto original, veste-a e encontra com Ji-Woo, afirmando: “Não sou sua mulher do
passado, sou sua outra mulher.”
Ji-Woo, angustiado foge e depois segue Seh-Hee/See-Hee até a clínica de cirurgia
plástica e após a saída dela, faz ele uma operação plástica para mudar de rosto. Este ato foi
revelado a Seh-Hee/See-Hee pelo médico. A partir desse ponto, a história se repete, lugares e
ações retornam, mas agora, em papéis trocados, a história sofre um espelhamento e SehHee/See-Hee, passa a agir como Ji-Woo, buscando encontrar o noivo. E uma de suas únicas
305
pistas, foi dada por uma cena onde Ji-Woo segura a mão de See-Hee e pergunta sobre o toque
e ela responde: o encaixe perfeito. Dessa forma, Seh-Hee/See-Hee, durante a parte final do
filme busca Ji-Woo, não mais com seus olhos, que seriam facilmente enganados pela aparência
trocada, mas segurando nas mãos de vários rapazes, para tentar localizar, através do tato, seu
amor: Ji-Woo.
Da Visão e do Toque: Ver, Tocar e à Dúvida de Tomé
A imagem do casal Seh-Hee e Ji-Woo sentados na escultura em forma de mão, sintetiza as
questões do filme, uma foto de uma escultura que representa mãos. A representação da
imagem que se entrega à visão e a escultura, que se entrega, não só à visão, como ao tato. A
mão que revela o objeto pela materialidade do mesmo, a visão que apresenta o objeto a partir
da luz que é refletida. Percepção tátil e percepção visual ligando-me ao mundo, aos
fenômenos. Mas qual pode me trazer o real mais puro, à verdade à minha consciência? Será
que algum deles pode fazer isso sozinho? E mesmo unidos, bastam os meus sentidos para que
se conheça os objetos em sua complexidade?
Essas são questões lançadas pelo filme, onde a visão é enganada por um ardil cirúrgico, uma
intervenção artificial humana, e resta apenas o tato para guiar Seh-Hee, ou See-Hee – acredito
que mesmo a personagem já não sabe quem é, ou pelo menos já está mergulhando em um
fosso de dúvidas. Ela, como um cego, tateia pelo mundo em busca da revelação tátil que lhe
restitua o reconhecimento de Ji-Woo.
Precisamos nos habituar a pensar que todo visível é talhado no tangível,
todo ser tátil prometido de certo modo à visibilidade, e que há invasão,
encavalgamento, não apenas entre o tocado e quem toca, mas também
entre o tangível e o visível que está incrustado nele. (MERLEAU-PONTY,
1971, p.131)
A questão da imagem e da visão, sempre foi polêmica, como nos apresenta Arlindo Machado
em sua observação sobre os “iconoclasmos” (MACHADO, 2001, p.16) da história. A visão nos
surge muitas vezes como uma criadora de ilusão. Essa constatação não deixa de ter sua razão,
quando percebemos que a todo momento precisamos compensar com o cérebro, a nossa
percepção, que nos engana em uma perspectiva que desestrutura as relações de profundidade
e dimensão. Basta imaginar que captamos objetos à distância, como se eles fossem menores
do que são realmente. Porém, mesmo o tato, também pode nos iludir, a parábola dos ratinhos
cegos, que encontram um elefante é um bom exemplo. Como não podem tocar
simultaneamente todas as partes do elefante, cada um deles, ao toca-lo, fará um prognóstico
do que seja: uma pedra, um coqueiro, uma cobra, etc. Dessa forma, tanto visão, como tato,
não pode nos trazer a percepção total, ou a verdade absoluta. Essa será uma lição que SehHee/ See-Hee irá descobrir. Pois agora sem o auxílio do olhar, ela descobrirá que não consegue
saber, através somente do tato, que é o Ji-Woo com sua nova aparência. Um momento
interessante do filme que ilustra essa passagem é quando Seh-Hee/ See-Hee, toca mão de um
rapaz e faz a mesma pergunta que fez outrora para Ji-Woo, antes da operação:
“O que você acha do nosso encaixe das mãos?
E Ji-Woo responde:
Perfeita.”
306
Essa resposta foi dada por, aparentemente, um estranho, pois nessa fase do filme, para nossa
visão, fica difícil identificar quem é quem. Por causa, mais da resposta verbal do rapaz, que foi
similar à de Ji-Woo, do que pela percepção do tato, ela acredita que ele seria o parceiro
operado e vai com ele até sua casa, onde ocorre um fato constrangedor, pois a visão revela
que Seh-Hee/ See-Hee estava errada. Quando ela entra na casa do rapaz, observa fotos antigas
do mesmo sobre a estante, o que comprova que o mesmo não é Ji-Woo.
Nesse momento pode-se refletir sobre como nossos sentidos, não apenas estão relacionados à
nossa percepção pura dos fenômenos, mas que nosso pensar, nossa cultura, nossa cognição
interfere em nossa relação sensível com o mundo. Nesse momento o crer, o querer sentir o
tato do parceiro perdido, iludiu o juízo de percepção de Seh-Hee/ See-Hee, pois o rapaz não
era Ji-Woo.
“Ser ou não ser”, como sentencia Shakespeare, em Hamlet, “eis a questão”. Essa é a dúvida
que Seh-Hee/ See-Hee levaria até o final do filme, quando, presa em um mundo de dúvidas,
em um labirinto de sensações, se entrega ao jogo do enigma e resolve fazer uma outra
operação plástica e recomeça um novo ciclo, onde através de uma nova aparência, resolve
recomeçar uma nova trajetória. E de uma maneira irônica, absurda, porém cheia de
questionamentos, Kim Ki Duk, o diretor, faz com que ela se encontre com ela mesma,
retornando como no ciclo das marés, ao inicio do filme. Nos deixando pensar que talvez essa
história apenas se repita ciclicamente, sem que haja um final.
Do Tempo Cíclico, do Espelhamento e Outras Estratégias
Para chegar a esta confusão de sentidos, Kim Ki Duk utiliza diversas estratégias durante o
desenvolvimento do filme. Começando pelo construção de uma narrativa cíclica, uma narrativa
impossível cronologicamente, pois o filme termina exatamente onde começou, porém nos
revelando que o encontro apresentado não é de Seh-Hee e uma estranha, mas sim de Seh-Hee
com ela mesma, como se a cirurgia plástica pudesse constituir uma outra vida. Aparência e
essência distinguindo os sujeitos. Um jogo surreal para confundir a percepção do observador.
Esse fato, esse tempo cíclico é metaforicamente representado pela maré que obre a escultura
da mão, uma das cenas finais do filme.
Além do tempo cíclico, uma narrativa espelhada faz uma metáfora da questão, tanto da
aparência como construtora de identidade, como do tempo cíclico, pois algumas ações de SehHee e Ji-Woo, na primeira parte do filme, são repetidas mas em papéis trocados. Ou seja, das
dúvidas, a angústia, a busca de Ji-Woo em relação ao sumiço de Seh-Hee, são vividas por ela –
Seh-Hee, agora transformada em See-Hee, na segunda parte do filme.
Conclusão
Espelhos, aparências, máscaras. Vaidade, identidade, verdade. Esses temas são os permeiam o
filme de Time, de Kim Ki Duk. Temas que refletem a busca do próprio ser humano. A busca por
ser reconhecido entre os outros: a busca pela diferença. A busca pela semelhança: por ter os
mesmos direitos. A busca pelo amor, pela perenidade, pela constância, pela eternidade contra
a passagem do tempo que a tudo corrompe. Essa busca que confunde a questão da essência
eterna e a aparência transitória. A escultura com a sua solidez durável, revelada pelo tato,
307
contra a imagem, a aparência volátil. Esta verdade que nossos sentidos devem revelar, mas
que nossa consciência deve entender é que estão em jogo nas armadilhas da percepção e da
cognição que nos propõem o enredo do filme. Nem somente visão, nem somente tato, nem
somente cognição são capazes de nos ajudar a conviver com a complexidade do mundo que
vai das qualidades às representações. Sentidos e pensamentos, visão e tato esses sistemas
integrados são necessários para revelar os fenômenos que nos rodeiam, sem hierarquia, mas
com a certeza, que mesmo mantendo a integridade de nossa percepção, ainda sim, são
fragmentos de mundo que buscamos organizar para nossa consciência.
O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. (DIDIHUBERMAN, 1998, p. 29).
(...) ver só se pensa e só se experimenta em última instância numa
experiência do tocar.” (DIDI-HUBERMAN,1998, p. 31)
E quando nos questiona René Magritte (1898 – 1967) em sua A Traição das Imagens (1928)
nos apresentando um cachimbo e afirmando “Ceci n’est pas une pipe” (fig. 14), ou seja que
aquela pintura não é um cachimbo, são estas perguntas que buscam ser respondidas por
ciências da percepção, cognição e a semiótica, ou seja, quais são as relações entre fenômeno,
sentidos, representação e qualidades e como os seres humanos relacionam esta imensa
quantidade de informações e sensações em que estão submersos constantemente? Esta talvez
seja a maior contribuição do filme Time, de Kim Ki Duk, para as reflexões científicas: quem
somos, somos o que sentimos, somos o que pensamos, somos o que parecemos, somos o que
vemos, ou o que tocamos? Ou mais, somos todas essas perguntas que vão do percepto ao
juízo de percepção, da sensação à razão, do eu ao outro, a mediação... do signo ao objeto.
Referências Bibliográficas
BARTHES, R. O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
____________. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1992.
CALABRESE, O A Linguagem da Arte. Rio de Janeiro: Globo, 1987.
DIDI-HUBERMAN, G. O que Vemos, O que nos Olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.
HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2004.
MACHADO, A. O Quarto Iconoclasmo e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios
Ambiciosos, 2001.
MERLEAU-PONTY, M. O Visível e o Invisível. São Paulo: Perspectiva, 1971.
PANOFSKY, E.. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1976.
PEIRCE, C. S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1977.
SANTAELLA, L. e NOTH, W. Estratégias Semióticas da Publicidade. São Paulo: Cengage
Learning, 2010.
308
Capítulo 8 Documentário: Convenção e Contravenção
Design de informação jornalística: ensaio sobre o Estadão Light
Jaqueline Rodrigues Pereira87; Letícia Passos Affini88
Resumo
O Grupo Estado de São Paulo foi o primeiro jornal brasileiro a desenvolver aplicativos para
dispositivos móveis. A reformulação do jornalismo tem sido influenciada pela tendência dos
usuários das Tecnologias de Informação e Comunicação, as TICs. O presente estudo é uma
reflexão sobre o aplicativo denominado Estadão Light, versão compacta da edição diária. De
modo ensaístico, observou-se a existência de características específicas da narrativa
hipermidiática com a integração de conteúdos, formas e linguagem, e a possibilidade de
acessar, simultaneamente, textos, imagens e sons, com destaque para a interatividade entre
os elementos da mídia. O aplicativo atende as exigências de leitura digital caracterizada pela
não-linearidade. Diante desse cenário verifica-se a tendência de um novo design de conteúdo
jornalístico, o que requer do profissional de mídia, múltiplas habilidades sobre os modos de
narrar, o uso da hipertextualidade, da multimidialidade, da interatividade, dos formatos e as
maneiras de apresentar os conteúdos.
Palavras-chave: jornalismo; mídia; audiovisual; tecnologia; estética
Abstract
The Group São Paulo was the first Brazilian newspaper to develop applications for mobile
devices. The reformulation of journalism has been influenced by the tendency of users of the
Information and Communication Technologies, ICTs. This study is a reflection on the so-called
application Estadão Light, compact version of the daily edition. Of essayistic way, there was
the existence of specific characteristics of hypermedia narrative with the integration of
content, forms and language, and the ability to access both texts, pictures and sounds,
especially the interaction between the media elements. The application meets the digital
reading demands characterized by non-linearity. In this scenario there is the tendency of a new
journalistic content design, which requires the professional media, multiple skills on the ways
of narrating, the use of hypertextuality, the multimidialidade, interactivity, formats and ways
to present content.
Key words: journalism; media; audiovisual; technology; aesthetics
Introdução
87 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”,
câmpus de Bauru. E-mail: [email protected]
88 Professora Doutora no Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho”, câmpus de Bauru. E-mail: [email protected]
309
O cenário atual das novas tecnologias da informação e comunicação, as TICs, influenciou
diretamente na mudança de mercado e dos hábitos de consumo de mídia. Em 2008, o
relatório “Future of the Internet”, do Pew Internet & American Life Project, projetava que em
2020 os dispositivos móveis seriam a principal forma de acesso à internet. Naquele momento,
o iPhone ainda era uma novidade e o iPad seria lançado apenas dois anos mais tarde. O que
não se previa era que, menos de cinco após a divulgação do relatório, esses dispositivos
despontariam como um mercado em potencial.
Todavia, o fenômeno da convergência tem sido abordado sob diferentes perspectivas desde a
década de 70. Ithiel de Sola Pool popularizou o termo a partir da publicação do livro The
Techonologies of Freedom (1983), no qual estabeleceu a noção de convergência de todos os
modos de comunicação a partir da tecnologia eletrônica.
Nos anos 90, o digital passou a ser a matriz predominante, com a expansão das conexões em
rede, dos computadores, do surgimento da web, das melhorias nas infraestruturas de acesso,
até a atual fase da ubiquidade das tecnologias e das redes e dispositivos móveis.
A convergência digital evidenciou-se em diversos aspectos, inclusive, culturais. Henry Jenkins
(2008), assinala que a cultura contemporânea em si é a própria convergência. Esse fenômeno
digital modificou as relações não apenas entre as tecnologias existentes, mas também entre
indústrias, mercados, gêneros, audiências e consumo dos meios.
Neste processo de expansão desencadeado a partir do século XIX, a tecnologia sempre foi um
fator preponderante para o aprimoramento dos procedimentos da produção jornalística, do
trabalho dos profissionais, da oferta informativa, dos modelos dos produtos e dos formatos
dos conteúdos. Esta mudança de cenário permitiu que a circulação das notícias pudesse
superar barreiras geográficas e temporais até chegar ao público, de forma a satisfazer as
necessidades de informação da sociedade.
Ao lado disso, evoluíram também os meios e as diferentes modalidades de jornalismo: da
imprensa ao cinema, do rádio à televisão, até à internet e à web, na qual despontou a
modalidade do jornalismo digital, também conhecida pelas terminologias jornalismo online,
webjornalismo e ciberjornalismo.
Esta evolução digital proporcionou aos cidadãos dispor cada vez mais de aparatos, que lhes
permitam acessar com facilidade, conteúdos textuais, sonoros e gráficos. Com isso, as mídias
foram obrigadas a buscarem alternativas para acompanhar as distintas tendências e modificar
suas estéticas. Diante desse novo ecossistema midiático, as empresas jornalísticas precisaram
mudar as prioridades a fim de conquistar e manter a audiência.
O presente estudo verifica de forma ensaística essas transformações em um veículo brasileiro
tradicional de mídia impressa, o jornal O Estado de São Paulo, que, influenciado pelas
tecnologias da informação e comunicação, se remodelou de forma a evidenciar em
subprodutos, como o Estadão Light, disponível apenas para tablets, as características
existentes nas diferentes plataformas digitais, predominantes do novo design jornalístico.
310
Um novo ecossistema midiático
A emergência dos dispositivos móveis tem influenciado o ecossistema midiático. Essas
alterações têm impactado diretamente nos formatos, linguagens, distribuição e consumo de
conteúdos jornalísticos.
Atualmente, os espaços midiáticos vivem uma convergência entre as tecnologias, que
oferecem comunicação audiovisual: telefone, televisão e computador. Esses três juntos
ocupam cada dia mais o mesmo espaço. É comum no cenário atual ocorrer a integração entre
as mídias, como o que ocorre com a televisão e internet, o computador e o telefone celular e,
também a televisão e o telefone celular. Essa convergência de tecnologias resulta no que
podemos chamar de mobilidade.
Nos últimos anos, vimos celulares se tornarem cada vez mais fundamentais
nas estratégias de lançamento de filmes comerciais em todo o mundo;
como filmes amadores e profissionais produzidos em celulares competiram
por prêmios em festivais de cinema internacionais. Foi uma poderosa
demonstração de como os celulares se tornaram fundamentais no processo
de convergência das mídias (JENKINS, H. 2008).
Esse cenário tem influenciado também no comportamento do leitor, que deixa de ser passivo
e se torna um receptor/usuário, que busca cada vez mais os espaços com possibilidade de
leitura através de multilinguagem, seja na televisão, no cinema, na literatura ou na internet.
Esse modelo de narrativa transmídia é considerado moderno no Brasil, porém o termo não é
novo. A terminologia Transmídia foi proposta inicialmente por Stuart Saunders Smith em 1975
(Renó & Flores, 2012, pág. 63). Em seguida, o termo foi adotado para o campo da comunicação
por Marsha Kinder (1991), denominando-a de intertextualidade transmídia. Atualmente, o
termo ganhou uma nova vida a partir das palavras de Henry Jenkins (2009), que passou a
difundir o conceito transmídia para justificar a distribuição de conteúdos diferentes, mas
relacionados, por meios distintos, afim de construir uma nova mensagem.
No artigo “Jornalismo Transmidiático ou Multimídia?”, Carlos Pernisa Junior aponta que,
apesar de existir o conceito, ainda é difícil visualizar o jornalismo transmidiático na prática,
pois na maioria das vezes, são os modelos de veículos analógicos sendo transplantados para o
meio digital.
Isso não facilita em nada a missão de se buscar um jornalismo que
transponha os limites de um veículo para se fazer presente em vários deles,
com conteúdos complementares. O jornalismo transmidiático deve apontar
efetivamente para esta linha, fugindo da convergência para um único
espaço e de um “uberjornalismo”, onde o repórter é o faz-tudo da empresa.
(JUNIOR, C. 2010)
Para o autor, o jornalismo transmidiático indica uma conexão de meios e não uma disputa pela
sobrevivência entre eles, o que traz uma nova visão principalmente dos veículos impressos. “A
busca por um modo de se fazer reportagens mais contextualizadas poderia render ainda um
tempo de vida maior a este tipo de meio” (JUNIOR, C. 2010, pág. 4). E também, a vantagem de
ele fazer parte de uma rede, já que poderia remeter a outros veículos e também ser indicado
311
por eles. O jornalismo transmidiático forma um universo de comunicação, no qual o usuário
navega por diversas facetas do acontecimento, independente do meio em que elas estão.
E, paralela a essa convergência midiática, a telefonia celular também tem influenciado na
construção das narrativas. A ferramenta passou a ser fundamental para propiciar a mobilidade
e a instantaneidade do processo.
Este novo ecossistema midiático influenciado evidencia a migração, cada vez mais constante,
dos meios jornalísticos para dispositivos móveis e da transformação provocada por tais
mudanças tecnológica e de linguagem. Sendo assim, é expressamente válida e de fundamental
importância conhecer as novas formas de produção de conteúdos jornalísticos para formatos
cada vez mais imprevisíveis.
Design da informação jornalística
O novo modelo de narrativa transmídia, evidenciado pela migração de conteúdos jornalísticos
para dispositivos móveis, tem potencializado a diferenciação desses produtos. Com novas
formas de roteirização para as produções jornalísticas, os recursos empregados para a
constituição de narrativas originais, buscam explorar uma maior integração entre os formatos
utilizados, no desenvolvimento da hipertextualidade, da multimidialidade e, ainda, da
tactilidade.
Atualmente, os jornalistas necessitam preparar-se para o novo cenário da comunicação
informativa. Além dos conhecimentos tradicionais, é preciso saber produzir conteúdos com
estrutura transmídia para que a sociedade contemporânea possa navegar pelas informações
intertextuais modernas (RENÓ, D., RENÓ, L. 2013).
No Brasil, pesquisas realizadas pela International Data Corporation (IDC) comprovam que o
mercado segue um ritmo de grande crescimento na venda de smartphones e tablets. De
acordo com o estudo, em 2014, foram vendidos cerca de 54.5 milhões de smartphones, alta de
55% na comparação com 2013, quando 35.2 milhões de aparelhos foram comercializados no
país. Isso fez com que o país fechasse 2014 na 4ª colocação entre os maiores mercados de
aparelhos celulares do mundo, atrás da China, Estados Unidos e Índia. Para este ano, a IDC
Brasil prevê, mesmo com a alta do dólar, 16% de crescimento do mercado de smartphones,
com a venda de cerca de 63.3 milhões de aparelhos, sendo que, 30% desse total, seja de
aparelhos com acesso a 4G.
Apesar do aumento na venda de tablets em 2014, a IDC Brasil prevê uma retração em 2015. A
justificativa é de que o aparelho não é mais novidade e a alta no dólar pode impactar
negativamente. O mercado brasileiro encerrou 2014 com alta de 13% em volume de vendas de
tablets, com a comercialização de cerca de 9,5 milhões de equipamentos. Neste ano, a
consultoria prevê retração de 3% do mercado e vendas de cerca de 9,3 milhões de tablets.
De forma a acompanhar esse cenário, o jornalismo cada vez mais tem se apoiado em
plataformas móveis. Essa tendência chamada de jornalismo móvel se caracteriza pelo uso de
dispositivos portáteis digitais como celulares, smartphones, tablets, notebooks, câmeras e
gravadores digitais, aliados a conexões sem fio.
312
Atentas à evolução tecnológica, e também às formas de consumo de mídia, as organizações
jornalísticas têm direcionado as estratégias para multiplicação de suas marcas em produtos
multimídia com foco especialmente para as móveis.
Concretiza-se cada vez mais o que apontou Rich Gordon há dez anos: a
convergência fazendo emergir formas inovadoras para a produção e
apresentação das informações jornalísticas a partir, principalmente, dos
dispositivos móveis, dos computadores, além da televisão interativa. Agora,
naquela que é a quinta fase de evolução para o jornalismo nas redes digitais,
configurada por meio do continuum multimídia dinâmico de fluxo
horizontal. (BARBOSA, S. 2013)
Nos conglomerados midiáticos, tornou-se comum o upload em tempo real do material
produzido com uso de textos, áudio, vídeos e fotos para postagem em blogs, sites jornalísticos
ou, até mesmo, para uma edição impressa.
Para otimizar essa produção, surgiram aplicativos apropriados para uma
cobertura móvel como o Farcast Reporter e o Mobile Reporter que, entre
outras funcionalidades, propiciam flexibilidade de upload por seção, data,
horário e anexo do material que será publicado em real time. (RUBLESCKI,
A., BARICHELLOO, E., DUTRA, F. 2013)
É perceptível o interesse dos indivíduos pela comunicação móvel através de dispositivos como
smartphones e tablets, como alternativas de entretenimento, informação, geração de
conteúdo e fruição de notícias. Diante dessa mudança de comportamento do consumidor, que
força uma reformulação dos meios e das mensagens, tornou-se expressamente necessária a
estruturação da interface de forma a apropriá-la para este novo processo comunicacional do
campo jornalístico e das práticas de comunicação.
O que se tem verificado é que as empresas jornalísticas têm se adaptado para desenvolver
formas de discurso para esta nova realidade de consumo e, que encontraram nessa evolução
midiática, uma nova possibilidade de negócio, que, além de agradar ao consumidor, é uma
solução em meio à crise econômica. Uma das remodelações evidenciadas pelos detentores da
mídia é a de oferecer conteúdos exclusivos e diferenciados aos consumidores. O acesso não é
gratuito e, os novos meios, são dimensionados para atender às demandas publicitárias,
tornando-se um investimento rentável. Jornalisticamente o que tem sido feito é uma
reinvenção do formato das notícias e diferenciação do conteúdo, além de personalizar a
experiência de leitura em mobilidade.
No Brasil, a exemplo dessa readequação ao mercado, o tradicional jornal O Estado de São
Paulo foi o primeiro a inovar e investir nas plataformas móveis. A visão da empresa é a de que
o leitor não se contenta apenas com o noticiário e, exige, cada vez mais, a interpretação e a
análise dos fatos noticiados. Para atender às exigências desses consumidores, o grupo criou,
em 2012, o Estadão Tablet, com versões exclusivas para os assinantes usuários de tablets, que
diferentemente do impresso, traz análises de especialistas, comentários, fotos, áudios e vídeos
sobre os conteúdos disponibilizados.
Estadão Light – novo design de conteúdo jornalístico
As mídias móveis, especialmente smartphones e tablets, são os novos agentes que
reconfiguram a produção, a publicação, a distribuição, a circulação, a recirculação, o consumo
313
e a recepção de conteúdos jornalísticos multimídia. Esses novos formatos de mídia são
propulsores de um ciclo de inovação, no qual surgem aplicativos jornalísticos para tablets e
smartphones, produtos esses, potencialmente inovadores, e cujas aplicações são criadas de
forma nativa com material exclusivo e tratamento diferenciado.
Nesse cenário, o jornal O Estado de São Paulo desenvolveu uma versão do Estadão para tablet
e iPad. O assinante pode baixar o aplicativo e ter acesso a conteúdos exclusivos: Estadão
Premium, Estadão Light, Estadão Noite e Olhar Estadão. O Estadão Premium é o Estadão com o
mesmo conteúdo e organização do jornal impresso, porém com recursos interativos, como
vídeos, galerias de fotos, animações, interação com a redação e diversos recursos digitais. Já o
Estadão Light é uma seleção das notícias do Estadão Premium, em formato especial para
leitura em tablet, incluindo recursos multimídia e de interação. No Estadão Noite, o assinante
tem uma seleção do noticiário do dia, com imagens que foram destaque, Giro 15 da Rádio
Estadão e uma prévia da edição do jornal da manhã seguinte. Por último, o Olhar Estadão, é
uma seleção das imagens que foram destaque no noticiário da semana.
O presente trabalho foi realizado com base na metodologia ensaística, de forma a desenvolver
um estudo formal, discursivo e concludente. Tal ensaio consiste em uma exposição lógica e
reflexiva sobre as características predominantes no objeto da pesquisa, o aplicativo Estadão
Light. Para tanto, a argumentação baseou-se em revisão bibliográfica de obras referências nos
assuntos evidenciados.
Diante do proposto, foram observadas as características predominantes no aplicativo, que o
enquadram em um novo modelo de narrativa. Ressalta-se que a leitura digital é caracterizada
pelo texto hipermídia, ou seja, de leitura menos sequencial e menos linear em relação ao
impresso, que se ramifica de modo que o leitor tenha acesso a todos os outros textos ligados a
eles. Segundo Santaella (2004, pág. 48), a hipermídia mescla textos, imagens, vídeos, sons e
ruídos e, permite a interação do receptor. Além disso, quebra o fluxo linear de texto, próprio
da linguagem impressa.
Assim como Lévy (1993), que caracteriza hipertexto como um texto não-linear que existe
apenas no computador, formado por sequência de informações como textos, imagens, sons e
links variados. Para ele, o hipertexto é um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós
podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou partes de gráficos, sequências sonoras,
documentos complexos que podem eles mesmos ser hipertextos. Os itens de informação não
são ligados linearmente, como em uma corda com nós, mas cada um deles, ou a maioria,
estende suas conexões em estrela, de modo reticular. Navegar em um hipertexto significa,
portanto, desenhar um percurso em uma rede que pode ser tão complicada quanto possível.
Porque cada nó pode, por sua vez, conter uma rede inteira.
A leitura digital exige, diante de tantos suportes eletrônicos, um leitor ainda mais dinâmico,
ativo e que selecione melhor quantitativa e qualitativamente as informações. O trabalho de
leitura de hipertextos exige que o leitor tenha intimidade com diferentes linguagens na
composição do texto eletrônico, bem como os aparatos tecnológicos. Na leitura
hipermidiática, o leitor é imersivo. Isso é possível devido à estrutura não-sequencial, que
permite ao receptor se colocar na opção de co-autor e migrar para diferentes versões virtuais,
314
que são disponibilizadas durante a navegabilidade (SANTAELLA, 2004, pág. 49). Dessa forma,
ele não age apenas como intérprete, mas decide o percurso e o caminho da leitura.
Para Lévy, as características do texto hipermídia são definidas pela não-linearidade,
volatilidade, espacialidade topográfica, fragmentariedade, multissemiose, descentralização ou
multicentramento, interatividade e intertextualidade. Tais características foram utilizadas
como base para analisar o objeto da pesquisa em questão.
No estudo, foram observadas durante trinta dias, as publicações das edições do Estadão Light,
com o objetivo de compreender a periodicidade e a dinâmica dos conteúdos divulgados. Por se
tratar de publicações diárias, para este ensaio, foi selecionada uma amostragem de sete
edições, que compreendem o período de 24 a 30 de agosto.
Observou-se que, assim como o proposto pelo grupo Estado de São Paulo, o Estadão Light é
uma seleção das notícias do jornal O Estado de São Paulo, em formato específico para leitura
em tablet, tanto que, só é possível iniciar a leitura digital se o equipamento estiver na
horizontal. Apesar da fácil navegabilidade, o aplicativo disponibiliza uma página contendo o
passo-a-passo de navegação para o leitor.
Imagens 1 e 2: print screen Estadão Light
A proposta do Estadão Light, além da seleção das principais notícias, é oferecer aos usuários
recursos multimídia e de interação, como identificado nos ícones da imagem 2. Nos botões
disponíveis há opção de acessar o conteúdo na internet, link para outra notícia, áudio, vídeo,
galeria de fotos, além do toque para ampliar o tamanho da imagem na tela. Porém, durante a
observação das edições publicadas no período de 24 a 30 de agosto, pouca hipertextualidade
foi identificada no aplicativo.
As sete edições do Estadão Light possuem as mesmas editorias. Diariamente são
disponibilizados para o leitor textos opinativos (colunistas) e conteúdos relacionados às
editorias de política, internacional, metrópole, esportes, economia, caderno 2 e um caderno
especial diferente em cada edição (disponível em 6 das 7 publicações). Além disso, na mesma
periodicidade das publicações, há fórum de leitores, página explicativa de navegabilidade no
aplicativo e expediente. Em nenhuma edição do período observado houve a disponibilização
315
de áudio, vídeo e/ou galeria de fotos. Sendo assim, as opções de interatividade disponíveis
para o usuário entre os dias 24 a 30 de agosto foram apenas de hiperlink e amplitude da tela.
Em todas as publicações observou-se a estética clean adotada pela empresa, com telas quem
contém poucas informações e itens distribuídos de forma equilibrada, o que proporciona uma
leitura dinâmica e de fácil compreensão. A presença dos hiperlinks tornam-se desnecessárias
se considerar que o leitor não é direcionado para outra janela de interatividade. O botão de
hiperlink existente nas páginas apenas altera o conteúdo disponível, sem necessidade de
migração para outro ambiente, seja interno, ou externo, ao aplicativo.
Imagens 3 e 4: print screen Estadão Light
Na página inicial de todas as edições há o ícone Últimas Notícias, que direciona o leitor para o
Portal de Notícias do Estadão no endereço eletrônico http://m.estadao.com.br. Esta é a única
migração disponível ao usuário para um ambiente externo ao aplicativo e informações extras
ao conteúdo disponibilizado no Estadão Light.
Imagens 5 e 6: print screen Estadão Light
Com relação à estrutura jornalística, as publicações seguem parâmetros tradicionais, que
incluem a disponibilização de notícias acompanhas por títulos, linhas finas, fotos, legendas,
olho, box e infográficos, itens básicos do jornalismo impresso.
316
Imagens 7 e 8: print screen Estadão Light
Apesar de ser notória a escassez de interatividade e hipertextualidade, as características
presentes nas edições do Estadão Light, permitem que a leitura seja caracterizada como
digital, já que, proporciona uma leitura não-linear, o que é o principal diferencial entre as
formas de leituras. A caracterização como leitura digital, faz com que o aplicativo se enquadre
em um novo formato de mídia.
Conclusão
De modo ensaístico, observou-se nas edições do Estadão Light no período de 24 a 30 de
agosto, a existência de características específicas dos novos modelos de narrativa, sendo
evidenciados recursos multimídia como hiperlinks e as possibilidades de ampliação de imagens
e textos.
Diante das análises compreendeu-se que o aplicativo é caracterizado pela leitura digital, já que
adequa-se às condições de hipertexto propostas por Lévy. Apesar de nas edições observadas
estarem ausentes os áudios, vídeos e galerias de fotos, existem características que comprovam
a possibilidade de leitura não-linear e interatividade, como hiperlinks, imagens cinéticas,
navegabilidade, touch-screen e possibilidade de ampliação da página. Além disso, há
volatilidade, que é característico do próprio suporte.
A questão da espacialidade topográfica também se enquadra nas publicações do Estadão Light,
vez que, o espaço de leitura e escrita não é hierarquizado. Assim como, a fragmentariedade do
hipertexto, sendo que não existe um único centro. Apesar de não haver efeitos sonoros nas
publicações analisadas, a multissemiose é notada diante da disponibilização de textos,
diagramas, ícones, tabelas, entre outros aportes sígnicos e sensoriais.
O fato de ser multicentralizado intensifica a característica de não-linearidade, sendo que, o
deslocamento é indefinido. E, a interatividade é visível entre o usuário e o equipamento, o que
reitera a característica da hipertextualidade, assim como, da intertextualidade, em que é
possível o acesso a outros textos potenciais.
Conclui-se, dessa forma, que o aplicativo estudado atende às exigências de leitura digital
caracterizada pelo texto hipermídia e a não-linearidade. O Estadão Light possui uma estrutura
não-sequencial, o que permite uma leitura dinâmica e a imersão do leitor. Sendo assim, o
usuário tem a possibilidade de selecionar tanto em quantidade como em qualidade, as
317
informações às quais quer ter acesso. A leitura imersiva e ativa é característica da leitura
digital.
Com a disponibilização dos hiperlinks, a leitura se ramifica de tal modo que o leitor consegue
navegar por diferentes versões e se aprofundar no assunto diante da disponibilidade de textos
relacionados ao mesmo. Ação essa, que é característica da leitura digital. Diante disso, ele não
age apenas como um mero leitor e sim como um co-autor, já que decide o trajeto da leitura.
O texto não-linear, hipermidiático, é caracterizado pela combinação de variados elementos
informativos como textos, imagens, vídeos, sons e links. No objeto de estudo em questão,
apesar de não haver, no período analisado, a existência de sons e vídeos, os demais elementos
estão visíveis e compõe a estrutura da notícia, o que permite a interação com o leitor e rompe
o fluxo linear da leitura.
Diante desse cenário, verificou-se com base em revisão bibliográfica e de forma ensaística, que
o aplicativo Estadão Light atende às características predominantes da leitura digital e
acompanha, assim, a tendência de um novo design de conteúdo jornalístico.
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319
Metanarrativa entre a realidade e a ficção: efeitos de sentido presentes na
construção de narrativas em mockumentaries
Guilherme Profeta, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com o apoio da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), [email protected]
Resumo
O hábito de estruturar o pensamento em forma de narrativas é uma tendência constante para
a espécie humana, que permite ao narrador transmitir àquele que lê algum tipo de lógica
sobre o mundo. Conduzir uma narrativa pode direcionar o entendimento do leitor, guiando
não só seu olhar, mas a perspectiva da qual se olha. A narrativa pode se utilizar de uma grande
variedade de elementos, os quais, quando analisados em conjunto, servem ao propósito de
criar uma metanarrativa – um tema central, em outras palavras, ou mesmo uma “moral da
história”. Para a análise da narrativa, quando focada em seus aspectos estruturais, os textos
podem ser verídicos ou ficcionais, ou mesmo formas híbridas entre a realidade e a ficção,
como mockumentaries, ou pseudodocumentários. Esse gênero particular de narrativa, que
mistura fontes documentadas à pura ficção, por estar entre a “verdade” e a “mentira”,
apresenta casos ideais para serem estudados tanto do ponto de vista estrutural quanto
metanarrativo.
Palavras-chaves: metanarrativa, teoria da narrativa, análise pragmática da narrativa,
mockumentary, pseudocumentário
Abstract
The habit of structuring thoughts as narratives (or simply stories) is a constant tendency for
the human species, which allows the narrator to transmit to the one who reads some sort of
logic about the world. To lead a narrative can direct the reader’s understanding, guiding not
only his or her sight, but also the perspective from where he or she looks. Narratives can apply
a large variety of elements that work together in order to create a metanarrative (or
grandnarrative) – in other words, a central theme, or even the “lesson of the story”. To the
analysis of narratives, when focused on its structural features, texts can be truthful or fictional,
or even hybrid forms between reality and fiction, such as the mockumentaries. This particular
genre of storytelling, which mixes documented sources with pure fiction, for being among the
“truth” and “lies”, provides ideal cases to be studied both from the structural and
metanarrative points of view.
Key words: metanarrative, narrative theory, pragmatics of narrative analysis, mockumentary,
pseudo-documentary
320
Introdução
Não há homem que saiba quando foi o exato momento em que alguém narrou pela primeira
vez uma história. Podemos imaginar, talvez, um grupo de nossos ancestrais reunidos ao redor
de uma fogueira, sob a noite da aurora dos tempos, nos primórdios do desenvolvimento da
linguagem, compartilhando com os demais os feitos da última caçada. Talvez eles usassem as
histórias para ensinar os pequenos o que deve e não deve ser feito, utilizando de forma inata a
estrutura narrativa para compreender o mundo e passar essa compreensão adiante. Talvez as
primeiras histórias, completadas pelos hiatos de linguagem primitiva por gestos e expressões
faciais, não passassem de uma forma de passar o tempo. A imagem parece nítida, mas não
deixa de ser mera especulação. Não há registros, afinal, da primeira narrativa, pois o próprio
registro compreenderia um paradoxo: a narrativa que narra a si mesma não poderia ser a
primeira.
Psicólogos culturais afirmam que a nossa tendência para organizar a
experiência de forma narrativa é um impulso humano anterior à aquisição
da linguagem: temos uma predisposição primitiva e inata para a organização
narrativa da realidade (BRUNER, 1998 apud MOTTA, 2005, p. 2).
Assim, a narratividade continua sendo uma presença constante na história humana, existente
supostamente desde o começo dos tempos, a partir do primeiro momento em que um de
nossos ancestrais numa savana primitiva precisou encadear algum tipo de informação com
começo, meio e fim, colocando as informações em relação uma à outra. Da fogueira ancestral
às ondas de rádio que cruzam latitude e longitude de norte a sul, as narrativas abarcam um
vasto rol de apresentações possíveis – e novas surgem diariamente conforme os meios dos
quais o homem se utiliza para se comunicar são ampliados.
Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar uma
variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes,
como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas
narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral
ou escrita, pela imagem, fixa ou imóvel, pelo gesto ou pela mistura
ordenada de todas estas substâncias; está presente no mito, na lenda, na
fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na tragédia, no drama,
na comédia, na pantomima, na pintura, no vitral, no cinema, nas histórias
em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disso, sob estas formas
quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os
lugares, em todas as sociedades... internacional, trans-histórica,
transcultural, a narrativa está aí, como a vida. (BARTHES apud D’ONOFRIO,
1983, p.27)
Nessas diferentes apresentações, roupagens variadas para uma mesma intenção
intrinsecamente humana, que é a de compreender o ambiente caótico que nos cerca, as
narrativas exercem o papel de categorizar acontecimentos em modelos que permitam àquele
que narra transmitir a seus ouvintes e leitores algum tipo de lógica sobre o mundo.
Todavia, a simples sequenciação em começo, meio e fim, a qual fundamenta as bases de
qualquer teoria literária e a estrutura de três atos do cinema – que serão abordadas em mais
profundidade na sequência – pode ser suficiente para identificar o que é uma narrativa num
primeiro momento, mas nem de longe dá conta de toda a análise possível e desejável. O que
faz com que determinado conteúdo seja considerado uma narrativa, no fim das contas?
321
Todorov propôs uma distinção entre história e discurso (v.): a história
corresponderia à realidade evocada pelo texto narrativo (acontecimentos e
personagens), o discurso ao modo como o narrador dá a conhecer ao leitor
essa realidade. [...] S. Chatman desenvolve a dicotomia história vs. discurso,
identificando o nível da história com o conteúdo (conjunto de eventos,
personagens e cenários representados) e o nível do discurso com os meios
de expressão que veiculam e plasmam esse conteúdo. (REIS; LOPES, 1988, p.
49)
Percebe-se, assim, no decorrer dessas definições, que as histórias são formadas não só por
uma série de acontecimentos encadeados, mas por um discurso que constrói esse conteúdo.
Não bastam os fatos colocados em ordem cronológica, mas determinados elementos precisam
ser trabalhados de forma estruturada para criar no ouvinte, no leitor ou no espectador a
experiência de uma narrativa. Ao estudo desses elementos, grosso modo, dá-se o nome de
narratologia: “o estudo da forma e funcionamento da narrativa” (PRINCE, 1982 apud REIS;
LOPES, 1988, p. 79)
Observando que as narrativas são compostas de elementos organizadores do discurso e
considerando especialmente o fato de elas serem muito relevantes para a maneira como o
homem constrói e transmite interpretações sobre o mundo que nos cerca, justifica-se a
importância de entender seu funcionamento. Afinal, apresentar uma narrativa pode direcionar
o entendimento do leitor sobre o mundo em si, guiando não só seu olhar, mas a perspectiva
da qual se olha. O narrador não só vira o pescoço do leitor para a direção que deseja, mas
mostra para onde ele deve olhar e que percepção ele deve ter sobre aquilo que está olhando.
Isso vale para a realidade, para a ficção e para todas as áreas cinzentas entre as duas coisas.
Análise pragmática da narrativa & análise das partes do roteiro
Para identificar os elementos estruturadores que dão a um texto a sensação de narratividade,
a análise pragmática da narrativa, conforme proposta por Motta (2005), prevê uma série de
movimentos a serem seguidos para que seja possível isolar os elementos que, quando
orquestrados em conjunto, criarão no leitor a experiência de uma história sendo contada. O
método foi idealizado para a análise da narrativa jornalística, mas pode ser aplicado,
teoricamente, a qualquer narrativa, uma vez que a aceitação de um amplo espectro de
material como objeto de estudo da análise pragmática da narrativa fornece uma série de
teorias periféricas que se mostrarão úteis em qualquer análise.
Paralelamente à análise pragmática em seis movimentos proposta por Motta, a análise das
partes dos roteiros de cinema proposta por Howard e Mabley (1999) oferece uma série de
conceitos complementares para a análise de narrativas, sejam elas jornalísticas, ficcionais ou
híbridas.
A análise pragmática começa, basicamente, pela recomposição da intriga, ou pela
recomposição do(s) acontecimento(s). Em outras palavras, neste primeiro movimento o
“analista precisará recompor retrospectivamente o enredo completo da história.” (MOTTA,
2005, p. 4) O primeiro movimento encontra correspondente na análise de material audiovisual
no paradigma dos três atos, que consiste em analisar as subdivisões da narrativa em começo,
meio e fim.
322
Empregamos o paradigma dos três atos porque é o mais simples de
entender e o que mais de perto se ajusta às fases da vivência que o público
tem da história. O primeiro ato envolve o espectador com os personagens e
com a história. O segundo ato o mantém envolvido e aumenta seu
comprometimento emocional. O terceiro ato amarra o enredo e leva o
envolvimento do espectador a um final satisfatório. Em outras palavras,
uma história tem um começo, um meio e um fim. (HOWARD; MABLEY, 1999,
p. 54)
Já no segundo movimento, identificam-se os conflitos, já que o conflito “é o elemento
estruturador de qualquer narrativa.” (MOTTA, 2005, p. 5) Por conflito, entende-se qualquer
ruptura ou anormalidade que surja para quebrar uma situação estável de equilíbrio, ou o
status quo. Essa situação estável (1), por sua vez, é a primeira função literária que o analista
deve buscar na narrativa, seguida por complicação (2), clímax (3), resolução (4), vitória (5),
desfecho (6), punição (7), recompensa (8) e assim por diante.
No terceiro movimento, identificam-se os personagens. “Por força de sua intervenção na
história, as personagens podem ser identificadas como protagonistas, antagonistas, heróis,
anti-heróis, doadores, ajudantes, etc.” (MOTTA, 2005, p. 6) Uma vez identificado o
personagem, pelo contexto, pode-se identificar as funções que eles desempenham.
A maioria das histórias [...] gira em torno de um personagem central: o
protagonista [...]. Mesmo nas histórias com muitos personagens, e com
estrutura diferente [...], cada subenredo dentro da história principal tem seu
protagonista. Na circunstância dramática básica de ‘alguém quer alguma
coisa desesperadamente e está tendo dificuldade em obtê-la’, o que
‘alguém’ é o protagonista. (HOWARD, 1999, p. 58)
Em seguida, no quarto movimento, Motta (2005) defende que devem ser identificadas as
estratégias comunicativas da narrativa, que estão divididas em estratégias de objetivação, ou
recursos de construção dos efeitos de real, e estratégias de subjetivação, ou recursos de
construção de efeitos poéticos.
As estratégias de objetivação podem ser percebidas pelas citações frequentes, que deslocam a
defesa da verdade para um personagem em vez do narrador, usando elementos linguísticos
que fazem referência àquele que fala; pela identificação de lugares e instituições com
correspondentes no mundo alheio à narrativa, que conferem precisão àquilo que se diz; pela
datação, que confere referenciais temporais. Todas essas estratégias tornam a narrativa
aparentemente objetiva, tirando do autor a responsabilidade pela narratividade. São essas
estratégias de objetivação que constroem um cenário plausível onde a ação pode se
desenvolver.
Já as estratégias de subjetivação residem na criação de relações catárticas entre os
personagens e o leitor: afeto, repulsa, questionamentos, surpresa, ênfase. Para quem analisa o
texto propriamente dito, elas estão...
...nas escolhas léxicas, no uso de verbos prospectivos, verbos de sentimento,
verbos negativos, verbos de conselho, de advertência, etc.; no uso de
adjetivos afetivos, potenciais ou adjetivos de possessão; no uso de
substantivos estigmatizados como terroristas, radicais, pivetes, etc. Estão
nas exclamações, interrogações [pontuação], comparações, ênfases,
repetições e reticências, mais comuns no noticiário que se pensa. Estão nas
323
figuras de linguagem (metáforas, sinédoques, sinonímia, hipérboles). Estão
nas ironias e paródias, que abrem âmbitos de significação. Estão nos
conteúdos implícitos... (MOTTA, 2005, pp. 11-12)
O quinto movimento, por sua vez, é o contrato cognitivo, o qual, basicamente, consiste numa
análise que visa identificar qual é relação entre o público e o texto. Por fim, o sexto movimento
compreende a identificação dos “significados de fundo moral ou fábula da história” (MOTTA,
2005, p. 14), as metanarrativas, que podem ser compreendidas como a narrativa por trás da
narrativa,o sentidos maior por trás da história, a verdadeira intenção não dita do narrador. De
ambos os movimentos finais este artigo tratará antes do fim, já que esses são movimentos
extranarrativa, que presumem um mundo exterior ao cenário em que se passam os
acontecimentos narrados.
A perspectiva contratualista e as zonas cinzentas
Existem muitos tipos de narrativas: há lendas, contos, e fábulas; há tragédia, drama e comédia;
há o conto e há romances extensos divididos em episódios; há pinturas e vitrais nas paredes de
igrejas. As possibilidades são muitas, mas em todas elas, independentemente da forma e de
suas características reais ou ficcionais, existe uma relação de confiança entre o autor e o leitor.
No caso dessa perspectiva contratualista...
...vigora um acordo tácito entre autor (v.) e leitor (v.), acordo
consensualmente baseado na chamada ‘suspensão voluntária da descrença’
e orientado no sentido de se encarar como culturalmente pertinente e
socialmente aceitável o jogo da ficção. Daqui não decorre obrigatoriamente
uma postulação essencialista e autotélica da ficcionalidade; o contrato da
ficção não exige um corte radical e irreversível com o mundo real, podendo
(devendo, até, de acordo com concepções teórico-epistemológicas de índole
sociológica) o texto ficcional remeter para o mundo real, numa perspectiva
de elucidação que pode chegar a traduzir-se num registro de natureza
didática. (REIS; LOPES, 1988, p. 44)
Portanto, mesmo as narrativas que fazem referência ao mundo real, e que não podem ser
chamadas de ficcionais de acordo com uma concepção pura, demandam um contrato
cognitivo em que a suspensão da descrença deve ser aceita pelo leitor. Ao ler um romance, o
leitor aceita por um recorte determinado de tempo, que dura o período da leitura em si, a
realidade apresentada pelo narrador. Ao ler um jornal, especialmente, o leitor aceita a
realidade apresentada como a própria realidade do mundo em que vive. Em ambos os casos, a
descrença é suspensa, por um ou outro motivo.
Seja real ou ficcional, toda narrativa tem uma lógica interna e uma lógica externa. A lógica
interna compreende as bases de sentido construídas pela narrativa em si: o que é possível
dentro daquela narrativa? Uma ficção tem seu próprio conjunto de regras internas que criam a
lógica daquele cenário. Outras narrativas, por sua vez, acontecem não num cenário fictício ou
fantasioso, mas num mundo que é tido como o mundo real: acontecem em São Paulo, no Rio
de Janeiro, em Nova Iorque; acontecem no nosso mundo geográfico e no nosso tempo. A
realidade vira cenário, e essa transformação é o ponto fundamental das narrativas que se
dizem “reais” ou “documentais”.
324
Uma notícia de jornal, por exemplo, só é válida como narrativa por representar a realidade,
diferentemente de um romance fictício. Ao representar a realidade, por outro lado, a narrativa
cria um paradoxo em si mesma, pois o cenário deixa de ser a própria realidade, já que “a
narração tem início, meio e fim, o que estabelece os limites entre a narrativa e o mundo, e
marca sua oposição em relação ao mundo ‘real’.” (DALMONTE, 2010, p. 220) A realidade,
obviamente, é um processo contínuo que possibilita inúmeras interpretações, e é daí que
emergem os questionamentos sobre a capacidade de apresentá-la.
Contudo, ainda que a reflexão crítica em relação à construção de narrativas possa ser uma
realidade para determinados públicos, como os acadêmicos da comunicação, é muito provável
supor que muitos dos leitores típicos tomarão as palavras publicadas em narrativas sobre a
realidade (como as notícias publicadas por um jornalista ou um vídeo divulgado em formato de
documentário, por exemplo) como verdadeiras e, ao menos num primeiro momento,
incontestáveis.
Talvez um dos maiores problemas na análise do jornalismo seja a confusão,
a mistificação e até mesmo a ingenuidade que cercam a discussão sobre a
‘verdade’. O senso comum vê a realidade como definitiva, pensa a existência
de um mundo único e de uma verdade inquestionável. No entanto, qualquer
aspecto da realidade é muito mais complexo do que podemos dar conta. [...]
O problema maior é que cada pessoa acha que seu direcionamento, que sua
limitação na maneira de interpretar a realidade, é a própria realidade.
(HERNANDES, 2006, p. 18)
Essa suposição absoluta, dessa forma, pode causar equívocos de interpretação quando uma
narrativa é construída de modo a parecer documental, mas traz em sua estrutura elementos
ficcionais. É o caso dos mockumentaries, narrativas que estão entre a ficção e a realidade, de
modo que o limite entre a lógica interna e a lógica externa é muito difuso.
O mockumentary trata-se...
...de uma espécie de ‘filho bastardo’ do documentário e da ficção, um
híbrido muitas vezes renegado entre os estudos mais puristas. Falamos do
mockumentary, fake documentary ou, em português, pseudodocumentário:
uma obra de ficção enunciada de forma a emular um filme documentário.
(SUPPIA, 2013, p. 60)
O gênero, apesar de ter sido popularizado recentemente, é mais antigo do que se pode
imaginar. A adaptação do romance A guerra dos mundos, de H. G. Wells (1939), para o rádio é
certamente um dos exemplos mais famosos. Na ocasião, o romance serviu de inspiração para
uma narrativa em forma de noticiário transmitida nos Estados Unidos. As pessoas, inadvertidas
sobre o caráter da produção, julgaram que o que estavam ouvindo era, de fato, um noticiário,
e que o planeta estava realmente sendo atacado por alienígenas. A ficção foi transformada em
realidade.
Já nos pseudodocumentários com raízes em fatos reais (ou ao menos nas situações em que
parte da informação é considerada verídica), ocorre uma estratégia que Suppia (2013) chama
de deslocamento de discurso, ou descontextualização. Ou seja, as informações têm o contexto
deslocado e são aplicadas num novo cenário, causando outros tipos de interpretação. É o caso,
por exemplo, do filme Distrito 9 (2009), dirigidos por Neil Blomkamp, que usa o apartheid sulafricano como mote para uma história em que alienígenas pousam na terra e, sem ter como
325
retornar aos seu mundo, são brutalmente discriminados pelos seres humanos. A
metanarrativa (ou a moral da história) é clara: os alienígenas são representações viscerais dos
refugiados negros no sul da África. A realidade foi transformada em ficção.
Outro exemplo contundente é o mockumentary Mermaids: The Body Found, exibido pela
primeira vez em 27 de maio de 2012. Segundo o release oficial (MERMAID, 2014) da Animal
Planet Media (APM), a obra é baseada em dois eventos reais: 1) testes de sonares executados
pela marinha estadunidense que teriam acarretado na morte em massa de baleias e 2) uma
gravação não identificada gravada pela agência governamental National Oceanic Atmospheric
Administration (NOAA), que, dadas suas características, pode ter sua origem a partir de uma
criatura desconhecida que habita o oceano pacífico. A partir desses eventos reais e de uma
teoria científica que formula como hipótese uma ligação entre o homem contemporâneo e um
primo evolutivo que teria migrado para os oceanos em vez de viver na terra, o mockumentary
narra uma trama em que um grupo de cientistas descobre a existência de um ser até então
tido como mitológico: a sereia, uma criatura saída das fábulas que aqui é retratada como uma
espécie de carne e osso, capaz de organizar-se socialmente em grupos complexos, comunicarse através de um nível altamente sofisticado de vocalização e confeccionar ferramentas – um
primo legítimo do homem, com o qual nós somos capazes de nos identificar, e que está sendo
ameaçado pela presença humana nos oceanos. No decorrer do filme, variados efeitos de
sentido se prestam ao objetivo de construir uma narrativa que ora se apresenta ficcional, ora
documental, sem jamais delimitar em si mesma essas fronteiras, e o próprio mockumentary,
durante seus créditos de encerramento, admite por meio de um disclaimer discreto, que
“nenhuma das instituições ou agências que aparecem no filme são afiliadas ou associadas a ele
de forma alguma, ou aprovaram seu conteúdo” e que “qualquer semelhança com pessoas
reais, vivas ou mortas, é inteiramente incidental.”
Todos os exemplos anteriores denotam uma característica básica dos mockumentaries: a linha
divisória entre ficção e realidade, que nesse gênero é perturbadoramente tênue, um
fenômeno que “diz respeito a particularidades da manipulação da ironia no discurso
audiovisual.” (SUPPIA, 2013, p. 63)
Segundo Nichols, o momento inicial é de indecisão, em que o espectador
primeiramente assiste a um mockumentary sem saber que se trata de um
pseudodocumentário. Nichols observa que a ironia confunde o que os
psicólogos cognitivos chamam de esquema ou schemata. Instala-se, nesse
fenômeno muito sutil, subjetivo e particular, o suposto "encanto" do
mockumentary, algo que Nichols traduz como uma espécie de ‘efeito
Magritte’ – a ideia inquietante de que ‘C'est n'est pas une pipe’. (SUPPIA,
2013, p. 63)
C'est n'est pas une pipe (Isto não é um cachimbo) é a pintura célebre de René Magritte, que
retrata um cachimbo com a frase que dá título à obra logo abaixo. Como pode um cachimbo
criteriosamente representado não ser, de fato, um cachimbo? A chave da resposta está
justamente na representação: não se trata de um cachimbo porque é apenas a pintura de um
cachimbo. A representação não é a própria realidade, jamais. Assim como o cachimbo
representa a realidade, os mockumentaries “enquadram a ideia dos documentários, aquilo que
desejamos encontrar num documentário” (SUPPIA, 2013, p. 63), criando a experiência de um
documentário – para não chamar, tendenciosamente, de ilusão.
326
Considerações finais: a verdade importa?
Vimos que, numa narrativa, os elementos têm papéis predefinidos. O cenário situa o leitor e
apresenta as regras do que é possível, o protagonista cria identificação entre o leitor e o seu
objetivo, os diálogos expositivos afirmam conceitos importantes para que se mantenha a
lógica interna, os conflitos conferem carga dramática (ou efeitos catárticos) à trama, o
antagonista oferece oposição e dificuldade para justificar uma recompensa ao final, e por aí
vai. Tudo isso, por sua vez, quando combinado e analisado do ponto de vista conceitual, serve
também a um propósito que está além da narrativa.
À identificação desse propósito, Motta (2005), em sua análise pragmática, deu o nome de
sexto movimento, ou a identificação do fundo moral por trás da história, as metanarrativas.
Sob a perspectiva da roteirização, Howard e Mabley (1999) chamam este elemento da
narrativa de tema:
Pode-se definir o tema como sendo o ponto de vista do escritor em relação
ao material. Uma vez que é praticamente impossível escrever um roteiro,
por mais frívolo que seja, sem que se tenha uma atitude em relação às
pessoas e às situações criadas, toda história precisa ter um tema de algum
tipo. E existe um lugar, no roteiro, onde esse tema pode invariavelmente ser
percebido: na resolução. É ali que o autor revela, talvez até
inconscientemente, qual a interpretação que ele ou ela deu ao material.
(HOWARD; MABLEY, 1999, p. 95)
O tema é o ponto de vista do escritor. É a ideia que ele defende através de um complexo
arsenal de elementos narrativos, que se prestam a um papel. Os próprios personagens, tão
importantes dentro do contexto narrativo, são personagens-texto, ou seja...
...a personagem, no caso, se confunde com o próprio fazer textual e não
com o fazer de um ou de vários agentes, uma vez que os predicados de ação
da obra se conjugam para traçar e revelar o comportamento de um texto
que se define agora como o palco e o ator, o processo e o produto de um
agir metalinguístico. Estamos, pois, diante de uma personagem-texto, ou de
um novo sincretismo actancial, cujo objetivo agora não é o de englobar dois
ou mais actantes num só ator, mas sim o de submeter os vários atores da
obra à funcionalidade básica de um texto-actante, ocupado em compor a
trama e a história de seu fazer textual. (SEGOLIN, 1978, p. 78)
Esses personagens, cenários e acontecimentos, mesmo que façam referência a eventos reais e
tenham correspondentes históricos, são aquilo que Motta (2005) chama de “figuras de papel”.
Significa dizer que não importa se eles existem de fato ou não, pois sua existência na narrativa
tem um objetivo metanarrativo determinado por quem escreve.
Organizar uma narrativa, afinal, não é um processo aleatório, ainda que possa ser intuitivo.
Aquilo que eu digo, muitas vezes, diz mais sobre mim e sobre minhas próprias intenções do
que sobre quem eu digo. Existe imparcialidade? Enquanto houver escolhas a serem feitas, ao
menos do ponto de vista de quem escreve, é seguro dizer que não.
E no caso de um pseudodocumentário entre a realidade e a ficção, escolhido intencionalmente
por sua característica dúbia, não deixemos que as possíveis implicações éticas de um contrato
cognitivo entre a “verdade” e a “mentira” turvem nossa análise. Para a compreensão da
narrativa em si como estrutura, não importa se ela é aquilo que as pessoas chamam de
327
“realidade” ou “ficção”. Essa conceituação, por si só, depende de uma série de escolhas,
arbitrárias ou não, e variam dependendo do olhar do observador.
Para a narrativa, as implicações externas daquilo que é narrado pouco importam, pois as
histórias são mundos em si mesmas, e as metanarrativas – a moral da história ou a verdadeira
intenção do autor – são elementos de coesão que, em maior ou menor escala, também se
prestam a um papel. Afinal, como bem disse Motta: “Quem narra tem algum propósito ao
narrar, nenhuma narrativa é ingênua.” (MOTTA, 2005, p. 3)
Artigo produzido com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(Fapesp).
Referências
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Representação da Realidade e Regimes de Visibilidade. In: FERREIRA, Giovandro Marcus;
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para captar e manter a atenção do público. São Paulo: Contexto, 2006.
HOWARD, David; MABLEY, Edward. Teoria e prática do roteiro. 2 ed. São Paulo: Globo, 1999.
MERMAID: The Body Found Animal Planet Press Release. Disponível em
<http://press.discovery.com/ekits/monster-week-mermaids/press-release.html> Acesso em: 9
abr. 2014.
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MOTTA,L.G.. A Análise Pragmática da Narrativa Jornalística. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE
CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 28., 2005. Rio de Janeiro. Anais... São Paulo: Intercom, 2005. CDROM.
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Cult. [online]. 2013, vol.65, n.1, pp. 60-63. ISSN 0009-6725.
328
Autobiografias do presente - Entre-Lugares de performance e enunciação em
documentários contemporâneos
Márcio Henrique Melo de
[email protected]
Andrade,
Doutorando
em
Comunicação
(UERJ),
Resumo
Este artigo expõe um projeto de pesquisa em andamento, que investiga como as narrativas
autobiográficas no documentário contemporâneo configuram-se em relação às marcas de
enunciação de seus realizadores e na presença do autor diante da câmera, compreendida
como performance. Na enunciação, propõe-se um diálogo entre os estudos de autoria de
Barthes (2004), da narrativa cinematográfica de Gaudreault e Jost (2009) e da opacidade de
Xavier (2008), unidos pela compreensão deste conceito como explicitação da subjetividade e
do processo de criação no uso de uma linguagem. Em relação à performance, procura-se uma
confluência dos estudos de Klinger (2008) e Brasil (2010): no caso da primeira, como um
trânsito do autor, narrador e personagem; e o segundo, como um “devir” que retroalimenta
real e artificial. Ao analisar Isto não é um filme, Elena e A Imagem que Falta, pretende-se como
resultado entender como estas obras imbricam as instâncias de autor, narrador e personagem
de formas distintas.
Palavras-Chave
Documentário Autobiográfico; Enunciação Fílmica; Performance.
Abstract
This article presents a research project in progress, which investigates how autobiographical
narratives in contemporary documentary shape in relation to enunciation marks of their
directors and in the author's presence before the camera, understood as performance. In the
enunciation, we propose a dialogue between authorship studies from Barthes (2004), the film
narrative studies from Gaudreault and Jost (2009) and the film opacity from Xavier (2008),
united by the understanding of this concept as explanation of subjectivity on the use of
language. Regarding performance, we look up a confluence of studies from Klinger (2008) and
Brazil (2010): in the case of the first, as an confluence between author, narrator and character;
and second, as a "becoming" that feeds back real and artificial. By analyzing In film nist, Elena
and L’Image Manquante, it is intended as a result understand how these works overlap the
author of instances, narrator and character in different ways.
Keywords
Autobiographical Documentary; Filmic Enunciation; Performance.
Introdução
329
O boom das tecnologias digitais vem favorecendo uma espetacularização intensa da
intimidade em blogs, flogs, vlogs e redes sociais que funcionam como espaços de exposição e
formação de subjetividades em formas narrativas, que ganha diversas alcunhas – narrativas e
escritas de si, autoficção, autorretratos, ego-escritos etc. – em diversas vertentes artísticas –
como nas graphic novels Retalhos (de Craig Thompson) e Maus (de Art Spiegelman), em livros
como Berkeley em Bellagio (de João Gilberto Noll) e Stella Manhattan (de Silviano Santiago) ou
no teatro com Ficção (da Cia. Hiato) e Um Torto (Grupo Magiluth).
Na imbricação entre autor e personagem, estas produções dialogam com dois aspectos
basilares para esta pesquisa: a enunciação fílmica e a performance. A respeito da enunciação,
propõe-se, inicialmente, um diálogo entre os estudos de autoria de Barthes (2004), da
narrativa cinematográfica de Gaudreault e Jost (2009) e da opacidade de Xavier (2008), unidos
pela compreensão deste conceito como explicitação da subjetividade e do processo de criação
da própria obra, imbricado na existência da obra e do homem por trás da mesma. Em relação à
performance, procura-se, inicialmente, uma confluência dos estudos de Klinger (2008) e Brasil
(2010), tangenciando textos de Sibilia (2008a; 2008b), compreendendo, inicialmente,
performance como uma representação de si em um feedback entre real e artificial através de
uma presença ou recriação corpórea. Estes autores aproximam performance e autoficção ao
tratar da representação de si como um lugar de trânsito do autor, narrador e personagem e
um ato que revela um “devir” que retroalimenta real e artificial (BRASIL, 2010) e uma
necessidade de uma “autoconstrução” na visibilidade (SIBILIA, 2008b), como os documentários
autobiográficos.
Para esta pesquisa, optou-se focar em como se manifestam os aspectos de enunciação fílmica
e de performance em documentários contemporâneos – Isto não é um filme (In Film Nist), de
2011, de Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb; Elena, (idem) de 2013, de Petra Costa; e A
Imagem que Falta (L'Image manquante) de 2014, de Rithy Panh – a fim de investigar as
estratégias dos autores-personagens para contar suas histórias. Acredita-se que estes filmes
empregam estratégias distintas que evidenciam suas marcas de enunciação e aspectos de
performance, absorvendo aspectos de artifício ao representar e experimentar com o real.
Eu(s) diegético(s) – Contextualizando as nuances autobiográficas no cinema e as tênues
fronteiras entre real e ficcional
As chamadas “narrativas de si”, ao envolverem a reflexão “sobre o que fazemos com nós
mesmos, e o que deixamos de fazer conosco” (SCHOLZE, 2007, p. 62), unem “a experiência
íntima e a exposição pública, a ânsia de extravio e o rigor do compromisso com a verdade”
(LEROUX, 2010, p. 260) através da linguagem. Definido inicialmente como “relato
retrospectivo em prosa que alguém faz de sua própria existência” (LEJEUNE, 1998 apud PACE,
2012, p. 56), este gênero atravessa a História e abraça, hoje, tessituras que privilegiam a
metamorfose e a imprevisibilidade, reconstruindo a intimidade como imagem, influenciando
os trânsitos entre artifício e real.
No cinema, a subjetividade e a autobiografia flertam com os “filmes-diários” de Jonas Mekas
[Walden: diaries, notes and sketches (1969)], com as temáticas feministas de Su Friedrich [Sink
or Swin (1990)]; e, mais recentemente, em As Praias de Agnès, 2008, Agnès Varda; Tarnation
2003, Jonathan Caouette; Uma Passagem para Mário, 2014, Eric Laurence; Os dias com ele,
330
2014, Maria Clara Escobar; dentre outros. Na ficção, Allen, Truffaut e Fellini ressignificaram
reminiscências em A Era do Rádio (1987), Os Incompreendidos (1959), 8 e ½ (1963) e, no Brasil,
André Novais Oliveira realiza Fantasmas (2011) e Pouco Mais de Um Mês (2013).
A autobiografia no cinema enfrenta os debates sobre subjetividade no documentário e suas
distinções em relação à ficção: Nichols (2005), por exemplo, considera documentários os
filmes que oferecem um retrato reconhecível e intervêm nas representações do mundo,
enquanto Ramos (2002) abrange as proposições lógicas e a leitura do público que definem seu
“conteúdo de verdade” (p. 6) e Melo (2002) assume o equilíbrio entre subjetividade e
objetividade ao definir como seus elementos fixos o discurso sobre o real, o registro in loco e o
caráter autoral. Mais recentemente, Carroll (2005) concebe o termo “cinema de asserção
pressuposta” como subcategoria do documentário, em que a intenção afirmativa e de sentido
do cineasta reconhecem certa elasticidade no uso de estratégias como encenação, animação,
materiais de arquivo etc..
Esta elasticidade relaciona-se à ficcionalização em documentários ensaísticos,
mockumentaries, filmes de found footage etc. que problematizam as estratégias narrativas, a
leitura do receptor etc. Se a ficção se apropria dos registros do “real” e os relatos “reais” usam
do artificial, revelando cada vez mais esse espaço “êxtimo” (SIBILIA, 2008a; 2008b), nas
narrativas autobiográficas, algum nível de ficcionalização emerge ao se oferecer um retrato
artístico da própria existência, sendo nossa intenção tratar das imbricações entre o autor fora
do filme – evidenciado nas marcas de enunciação – e o personagem que este cria de si –
manifestado em uma performance.
(In)Visível? – Das noções de autor e das instâncias de enunciação fílmica na autobiografia
cinematográfica
Nas pesquisas cinematográficas, os estudos sobre autoria e, em outro campo, enunciação
fílmica resvalam em um aspecto útil neste projeto: na evidenciação da “figura do autor”
dentro da própria obra. Contudo, se os estudos sobre autoria tratam mais de recorrências
temáticas e estéticas em uma filmografia, a chamada enunciação fílmica apropria-se de
conceitos lingüísticos para se referir à manifestação de elementos que tornam o objeto fílmico
perceptível como tal ao público, ao invés do ilusionismo completo diante da tela – linhas
teóricas que tangenciam estudos sobre a figura do autor em Barthes, Foucault e Bakhtin.
Bakhtin (2003) percebe as incongruências entre a figura do autor – um ser em constante
transformação – e o herói (personagem) – que vive uma história com início e fim: se o autor
“introduz nele [o personagem] princípios de acabamento” (p. 40), no caso do
herói/personagem autobiográfico, este, em teoria, permaneceria em constante construção,
desviando-se da determinação. Foucault (2001), nos estudos sobre discurso, traz o conceito de
função-autor como um espaço de atuação da função-sujeito, em que a autoria apresenta
gradações e instâncias e resulta “de uma operação complexa que constrói um certo ser de
razão que se chama autor” (p. 277. Grifo no Original), compreendido como a origem do ato
criativo. Já Barthes (2004) aproxima-se do que entendemos como enunciação fílmica ao crer
que autor e obra se criam ao mesmo tempo, já que “a enunciação não tem outro conteúdo
(outro enunciado) para além do ato pelo qual é proferida” (p. 59), agregando ao ato criativo
aspectos de performance.
331
Sobre o autor no cinema, nos anos 50/60, nasce a chamada politique des auteurs, com
intelectuais (Truffaut, Godard, Jacques Rivette e André Bazin, críticos da Cahiers du Cinèma)
interessados no cinema como arte e na figura do diretor (STAM, 2003) e suas recorrências
estilísticas e temáticas. O crescimento desta “política” ao status de “teoria” gera críticas de
Bazin (1985) sobre seu caráter valorativo e, por vezes, tendencioso, e de Caughie (2007), que,
ao contrapor as visões francesa e de Bordwell sobre autoria, acredita que esta diversidade
teórica evidencia justamente sua evolução. Sarris, por sua vez, contextualiza o “conjunto de
forças que condicionam o artista individual” (SARRIS, 1962 apud BUSCOMBE, 2005, p. 286),
Buscombe (2005) relativiza a relevância dos critérios de autoria como valor e Wollen (apud
BUSCOMBE, 2005) alia a autoria aos seus estudos sobre “estruturas inconscientes”. Outros
autores, como Heath (2005), compreendem o filme como discurso e arte coletiva, dialogando
com a Collaborative Theory e a autoria “descentralizada” (SELLORS apud TREDGE, 2013). No
documentário, a complexidade aumenta ao lidar com a auto-mise en scène dos sujeitos
filmados e do cineasta com a câmera (FREIRE, 2009) e a fragilidade de critérios de
“reconhecimento autoral” (SERAFIM, 2009).
Todavia, para esta pesquisa, a autoria que se procura refere-se à evidenciação do sujeito
criador dentro do próprio filme, identificando-se as fronteiras entre a instância autoral
(entendida como enunciação) e a performance. Os relatos autobiográficos questionam cada
vez mais o processo criativo: “uma relação constante é estabelecida entre o passado e o
presente, e a escritura é colocada em cena” (LEJEUNE, 1998 apud PACE, 2012, p. 59), flertando
com a autoficção (KLINGER, 2008) que expõe seu work in progress e “denuncia” suas marcas
de enunciação. Advindo da linguística, a enunciação ganha certa complexidade na sua
tradução para os estudos cinematográficos, como no caso de Bordwell (1985), que traz Wayne
Booth, na literatura, e seu “implied author” para conceituar “the invisible puppeteer, not a
speaker or visible presence but the omnipotent artistic figure behind the work” (p. 62),
definido, no cinema, por Albert Laffay como le grand imagier, influenciando os estudos de
Browne sobre o ponto de vista e de Genette sobre a “voz narrativa” e os graus de presença do
narrador na diegese.
Partindo do pressuposto de que não existe “narrativa sem que haja uma instância que narre”
(GAUDREAULT; JOST, 2009, p. 57), o termo “grande imagista” designa o “narrador invisível”
que conta uma história com imagens e sons, evidenciando sua presença mais ou menos
explicitamente. Entendida como a explicitação de uma subjetividade no uso da linguagem, a
enunciação fílmica aparece quando o “efeito-ficção” oferece lugar à percepção da linguagem,
trazendo o autor-narrador à diegese por “vestígios linguísticos do comentador no seio de seu
enunciado” (KERBRAT-ORECCHIONI apud GAUDREAULT; JOST, 2009, p. 59). Neste caso, o autor
é compreendido como um “enunciador fílmico” (GADIES apud GAUDREAULT; JOST, 2009) que
manipularia as “diversas matérias da expressão fílmica” (p. 74), diferente de Metz (apud
GAUDREAULT; JOST, 2009), que aponta para o próprio filme como enunciador, gerando
nomenclaturas distintas sobre “aquele” que olha: “Bellours answers: the subject producing the
discours. Ropars: the narrator. Nash: the author. Sometimes this figure is described in linguistic
terms – the ‘enunciator’ (Bellour), a ‘voice’” (Ropars) (BORDWELL; 1985, p. 24). Xavier (2008)
contrapõe os conceitos de transparência – o ilusionismo do cinema clássico – e opacidade – a
percepção do objeto fílmico – para tratar do apagamento ou evidenciação da instância
enunciativa, mostrando o objeto fílmico como discurso e trazendo em si as marcas da sua
332
criação. Este pensamento dialoga com as proposições sobre autoria de Barthes e, certamente,
apresenta muitas convergências com a escrita fílmica contemporânea que, cada vez mais,
expõe sua própria carpintaria.
Esta reflexividade contemporânea evidencia a “particularização do enfoque” (MESQUITA,
2007), as narrativas mais “imediatas” (BRASIL, 2010) e certa desconfiança sobre a veracidade
das imagens (FELDMAN, 2008) como características de um diálogo entre documentário e
ficção em que artifício e realidade parecem se entranhar mais do que se estranhar. Mesmo
que o documentário, por si só, exiba marcas de enunciação mais evidentes que o cinema
ficcional, o documentário reflexivo explicita o cineasta como um observador do real e o filme
como representação (NICHOLS, 2005). A revelação do dispositivo (LINS, 2007; MIGLIORIN,
2005) fílmico, ao provocar acontecimentos para serem registrados pela câmera, caracteriza
certa recusa do que é “representativo” de maiorias com o foco na singularidade (LINS;
MESQUITA, 2008) e uma “particularização do enfoque” (MESQUITA; 2007, p. 13).
Nos documentários selecionados, as marcas de enunciação evidenciam-se de formas distintas,
imbricando a existência da narrativa e do homem que a cria - “dizer que quer escrever, eis, de
fato, a própria matéria da escrita” (BARTHES, 2004, p. 17). Em A imagem que falta (2014), os
precários e imóveis bonecos de barro reconstituem os anos de comando do Khmer Vermelho
explicitando certo anti-naturalismo; em Isto não é um filme (2011), temos o exercício de
criação de imagens mentais pela leitura e representação de um roteiro cinematográfico; e, em
Elena (2013), as poéticas locuções em off da diretora narram uma busca que se mostra plot do
documentário permeado de imagens de arquivos familiares.
Performances na e para a imagem – Sobre a criação de um personagem de si mesmo no
cinema autobiográfico
Esta profusão de narrativas autobiográficas desvela e alimenta a formação de subjetividades
num exercício de se “autoconstruir” na visibilidade: “hoy la esfera íntima se convierte em uma
espécie de escenario donde cada uno debe montar el espectáculo de su propia personalidade”
(SIBILIA, 2008b, p. 35). Representa-se cada vez menos o coletivo diante da quantidade imensa
de informações, restando as experiências particulares com o mundo e a aproximação entre
arte e vida. No documentário, compreendê-lo como experiência influencia na tentativa de
obter novos “efeitos de verdade” (FELDMAN; 2012, p. 21) ou “efeitos de real” (JAGUARIBE,
2007 apud SILVA, 2013) mais conectados à nossa “desconfiança” sobre a imagem: ensaísmo,
uso de imagens amadoras, valorização do processo, abertura da cena à sua não-realização,
práticas confessionais, autoficção, performance de si, dentre outras. Esta tendência influencia
na concepção de personagens de si em obras autobiográficas, apresentando aspectos
diametralmente opostos a definições anteriores.
Durante muito tempo, os romancistas desenvolviam personagens com contornos mais
definidos em relação ao caos da vida. Esta tradição do personagem como modelo a ser imitado
data desde as teorizações aristotélicas até a Idade Média, evoluindo, na Modernidade, para
uma “visão psicologizante” (BRAIT, 1985, p.38) do indivíduo comum. No cinema, a narrativa
clássica ficcional foca em princípios totalizantes como a criação de vida interior e exterior,
ação, ponto de vista etc. (FIELD, 2009) e, no documentário, a criação do personagem a partir
do entrevistado enfatiza a indeterminação e fragmentação (PINTO, 2006). Em documentários
333
subjetivos, a “pessoa” do cineasta se mistura à “personagem” criada pelo documentarista,
manifestando três versões de si (LINS; MESQUITA, 2008; AVELLAR, 2007), questionando o
processo criativo e a representação pelo filme. A nomenclatura de Nichols (2005) de
documentários performáticos abrange “licenças poéticas, estruturas narrativas menos
convencionais e formas de representação mais subjetivas” (p. 170) em contraponto à
representação dita realista – mas crê-se necessário delimitar melhor o conceito de
performance que se evidencia nestas definições que se pretendem abranger.
Na criação de um personagem de si, estas indeterminação, “inacabamento” e fragmentação se
mostram basilares para uma maior adequação às demandas de “verdade” contemporâneas.
Klinger (2008) aproxima a autoficção à performance – nas teorias do teatro e artes cênicas, por
exemplo, significando “atuação”, “desempenho” etc. –, alimentando as indistinções entre real
e ficcional como um lugar de trânsito do autor, narrador e personagem numa mesma “figura”.
Aparecendo, em alguns autores, em suas relações com o corpo e suas possibilidades poéticas,
a performance pode ser tanto compreendida como “ação oral-auditiva complexa, pela qual
uma mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida” (ZUMTHOR, 1993, p.
222) como se relacionar aos gestos e ações cotidianas dos sujeitos com o espaço da “cena”, o
mundo “real” em volta e suas instâncias de encenação – além das múltiplas configurações
entre um extremo e outro.
Ao denunciar o sujeito enunciador e um constante “inacabamento” artístico, o caráter
performático na autobiografia a transforma “numa forma discursiva que ao mesmo tempo
exibe o sujeito e o questiona” (KLINGER; 2008, p. 26). Diante da saturação de representações
mediadas, este questionamento valoriza as experiências vividas e as estéticas fragmentadas e
“sujas” dos relatos amadores (SILVA, 2013). Esta gradativa indistinção entre os limites entre
pessoa e personagem evidencia também um “apelo realista” (FELDMAN, 2008) que simboliza a
tentativa de “reengajamento” e “reintegração” dos sujeitos à realidade, reduzida, contudo, a
uma “performance comportamental” (p. 66) tornada capital pessoal a ser administrado,
atualizado e tornado visível. Reality shows, vídeos amadores, vlogs, flogs etc. caracterizam a
performance como uma reinvenção dos sujeitos em um espetáculo aberto ao descontrole do
real. Ao “colocar a vida em jogo”, as imagens tornam-se lugares de experiências
aparentemente reais e imediatas (instantâneas e sem mediação) que absorvem o artifício e
tornam-no “real”, alinhado às potencialidades de existência como forma de “concretizar” este
desejo de vir a ser (BRASIL, 2010).
Nos documentários em análise, sua instância enunciativa e a performance como um espaço de
formação de subjetividades em transformação aparecem de formas distintas: enquanto Elena
(2013) permeia imagens amadoras e performance de si; L’Image Manquante (2013) envolve
práticas confessionais aliadas a reconstituições com bonecos (que podem ser questionados
como performance); In film nist (2011) mescla performance de si, abertura da cena à sua nãorealização a um relato do presente e ficcional.
Metodologia
Para esta pesquisa, procura-se uma abordagem qualitativa imbuída da visão do pesquisador
(TRIVIÑOS, 1987), um enfoque fenomenológico, descrevendo e interpretando o fenômeno em
um contexto mais imediato e um método observacional num nível exploratório que considere
334
métodos mais flexíveis de pesquisa (GIL, 1989). Quanto ao tipo de pesquisa, escolhe-se o
“modelo clássico de pesquisa” (idem, p. 46) equilibrado entre objetividade e subjetividade,
empregando estudo comparativo de casos e suas relações de aproximação e distanciamento
(TRIVIÑOS, 1987). Para a análise e a interpretação, pretende-se usar as bases da análise fílmica
(VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994; AUMONT; MARIE, 2004), cruzando-a à especificidade da análise
de imagens em movimento (ROSE, 2008), nas seguintes etapas: a) Seleção – construção de
amostra; b) Transcrição – descrição das amostras; c) Codificação – definição das características
dos objetos de acordo com indicadores; d) Apresentação das informações – descrição,
interpretação e generalização das informações.
Resultados esperados
Como resultado, espera-se obter uma análise sobre as aproximações e distanciamentos entre
as evidenciações das marcas de enunciação e aspectos de performance nos documentários
com nuances autobiográficas, compreendendo como estes absorvem aspectos de artifício em
suas propostas de representar e experimentar com o real, explicitando a figura do autorpersonagem e seu processo criativo no próprio filme.
Em seu alinhamento a estudos mais “clássicos”, este projeto procura aprofundar aspectos dos
modos performático e reflexivo de Bill Nichols, dos autorretratos de Raymond Bellour e,
tangencialmente, das fronteiras entre documentário e ficção de Fernão Pessoa Ramos. Além
destas teorias já sedimentadas, este projeto encaixa-se em uma série de estudos ainda em
processo realizados em artigos, dissertações e teses que fazem emergir panoramas temáticos
e estéticos do documentário contemporâneo (FELDMAN, 2012; SILVA, 2013); estudos sobre
documentários de dispositivo (LINS, 2007; MIGLIORIN, 2005), a profusão de imagens amadoras
(BRASIL, 2010; FELDMAN, 2008) e a autobiografia no documentário (FREIRE, 2003; TEIXEIRA,
2003), por exemplo. Neste contexto, pretende-se conceber um estado da arte sobre
autobiografias no cinema e analisar os tangenciamentos entre a enunciação fílmica e a
performance – recortes pouco explorados em comparação aos estudos que se sustentam na
autobiografia literária, no ensaísmo e no dispositivo, por exemplo.
Em relação à relevância deste estudo, sua verticalização em aspectos macro do documentário
contemporâneo pode contribuir na categorização de marcas da enunciação e da performance
e possibilitar novas taxionomias, debates e a compreensão de outras recorrências temáticas e
estéticas através de prismas ainda em fase embrionária de análise. Quanto à originalidade, crêse que, a partir de autores pouco citados em conjunto (Barthes, Xavier, Klinger, Brasil etc.) e da
análise de um objeto em constante transformação, este foco exibe aspectos distintos nos
estudos fílmicos, narratológicos e autobiográficos sobre documentário a partir de filmes que
representam olhares recentes sobre um gênero que se reinventa em suas ficcionalizações
mínimas e máximas.
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338
O Cine-Olho e sua pertinência contemporânea
Flávia Campos Junqueira, Doutoranda da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
[email protected]
Resumo
Em 2014 o filme Um homem com uma câmera, de Dziga Vertov (1929), foi eleito o melhor
documentário de todos os tempos pela revista britânica Sight & Sound. Mas por que tal obra
pode ser ainda pertinente quase um século depois? Mais que surpreender olhares
acostumados a efeitos computacionais, sua montagem nos ajuda a observar que
características pensadas inicialmente como recursos estéticos de uma linguagem artística
podem extrapolar o campo da arte e transformar nossa forma de perceber o mundo. Se Vertov
afirma que graças ao Cine-Olho podíamos construir o homem ideal, adaptado à realidade à sua
volta, hoje a tecnologia digital nos permite construir quantos eus quisermos, adaptados a
qualquer situação. Embasados nos conceitos de dispositivo e contemporâneo de Giorgio
Agamben, pretendemos discutir como a ideia de montagem, levada a cabo no cinema, foi
radicalizada e tornou-se uma forte característica na subjetividade contemporânea.
Palavras-chave: Cine-Olho; Montagem; Vertov; Dispositivo; Contemporâneo;
Abstract
In 2014 Dziga Vertov’s film, ‘Man with a movie camera’ (1929), was named best documentary
of all time by the british magazine Sight & Sound. But why such a work can be still relevant
nearly a century later? More than surprise looks accustomed to computer effects, its editing
helps us to see that features, initially thought as aesthetic features of an artistic language, can
extrapolate the field of art and transform the way we perceive the world. If Vertov says that
thanks to the "Kino-Eye" could build the ideal man, adapted to the reality around him, today
the digital technology allows us to build as many selves as we want, adapted to any situation.
Founded on Giorgio Agamben ‘s concepts of Dispositif and Contemporary, we plan to discuss
how the editing was radicalized and became a strong feature in contemporary subjectivity.
Keywords: Kino-eye; Editing; Vertov; Dispositif; Contemporary;
Introdução
Construímos, contemporaneamente, nossa compreensão do mundo por meio de ferramentas
que permitem basicamente uma busca não-linear a partir de diferentes fontes, que podem ser
verbais, audiovisuais, materiais ou virtuais. A formação intelectual de hoje vem não apenas dos
livros pedagógicos, mas também da televisão, da internet ou de videogames. O conhecimento
nasce a partir da construção dos dados oriundos de diferentes meios e, com isto, o receptor
339
seleciona o que lhe é ou não interessante, acumulando ou eliminando dados de acordo com
sua seleção. Desta forma, nossa percepção se configura como alinear e dispersa, fragmentada.
A navegação abstrata em paisagens de informações e conhecimentos, a criação de grupos de
trabalhos virtuais em escala mundial, as inúmeras formas de interação possíveis e os mundos
virtuais criam uma enorme quantidade de desempenhos inovadores. O virtual hoje não seria
mais um mundo paralelo, no qual “entramos”, mas que está projetado na realidade. Vivemos
rodeados pela web, nossa comunicação hoje se dá quase toda por meio dela; a todo tempo
informações são enviadas e o retorno é instantâneo.
A escolha de Vertov se justifica pela ainda atual importância do filme Um homem com uma
câmera, de 1929. Em 2014 ele foi eleito o melhor documentário de todos os tempos por um
júri de especialistas, entre cineastas, curadores e críticos de cinema, reunidos pela revista
britânica Sight & Sound do British Film Institute89. Dos trezentos integrantes do corpo jurado,
cem votaram em Um homem com uma câmera. Esta foi a primeira vez que a Sight & Sound,
que tradicionalmente elege os melhores filmes, fez uma pesquisa específica para este gênero.
Até então o filme de Vertov aparecia entre os dez primeiros da lista.
Fato é que a quase centenária obra parece estar ainda très-em-forme, não só para o cinema,
mas também para tomarmos um olhar mais distanciado sobre o contemporâneo e a
subjetividade fragmentada.
A Modernidade, a montagem e o olhar construtor
Entre os séculos XIX e XX, diversas mudanças puderam ser observadas decorrentes da
industrialização e urbanização que avançavam a todo vapor. Enquanto as fábricas produziam
bens de consumo em larga escala, as cidades atraíam trabalhadores do campo que
vislumbravam melhores perspectivas de vida. A velocidade da produção fabril ecoava nas ruas
com os primeiros automóveis e bondes elétricos, assim como as informações ressoavam por
todos os lados por meio de jornais ilustrados, cartazes publicitários, da fotografia e do cinema.
Neste contexto, a atenção da população obrigatoriamente teve de se tornar mais perspicaz.
Georg Simmel (1979), Walter Benjamin (1994) e Siegfried Kracauer (2009) entendiam a
modernidade como um momento em que a experiência subjetiva foi fortemente intensificada
por estímulos. As cidades eram então repletas de imagens, cartazes, jornais ilustrados, além da
velocidade que se impunha sobre a população através de seus bondes elétricos e logo depois
os automóveis. Compartilhamos com Ben Singer o pensamento de que prevaleceram três
ideias de modernidade:
Como um conceito moral e político, a modernidade sugere o “desamparo
ideológico” de um mundo pós-sagrado e pós-feudal no qual todas as normas
e valores estão sujeitos ao questionamento. Como um conceito cognitivo, a
modernidade aponta para o surgimento da racionalidade instrumental como
a moldura intelectual por meio da qual o mundo é percebido e construído.
Como um conceito socioeconômico, a modernidade designa uma grande
quantidade de mudanças tecnológicas e sociais que tomaram forma nos
últimos dois séculos e alcançaram um volume crítico perto do fim do século
89 Sight & Sound. British Film Institute. Disponível em: <http://www.bfi.org.uk/sight-sound-magazine/greatest-docs>. Acesso em:
06 jul. 2015.
340
XIX: industrialização, urbanização e crescimento populacional rápidos;
proliferação de novas tecnologias e meios de transporte; saturação do
capitalismo avançado; explosão de uma cultura de consumo de massa e
assim por diante. (SINGER, 2004, p. 95).
Para Simmel, Benjamin e Kracauer, porém, havia uma quarta definição, que seria uma
“concepção neurológica da modernidade” (Ibid.). Para eles, a modernidade traduzia um novo
registro da experiência subjetiva, desenvolvido em meio aos choques90 vividos nas cidades
naquele período.
Para melhor embasar nossa escolha pela linguagem cinematográfica, recorremos a Benjamin,
que viu o cinema como a característica marcante do século em que a reprodutibilidade gerou
novos conceitos para a obra de arte e permitiu mudanças na cognição do homem no início do
século XX.
O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações
exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua
vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o
objeto das inervações humanas – é essa a tarefa histórica cuja realização dá
ao cinema o seu verdadeiro sentido (BENJAMIN, 1994, p.174).
A ideia de montagem veio primeiro da indústria, das linhas de produção. Apesar de estar
presente em outras artes, no cinema a montagem é um procedimento essencial, e a passagem
de uma imagem à próxima, ou seja, a diferença entre um plano e outro pode ser enfatizada a
fim de criar tensões (XAVIER, 2005). Nesse contexto a montagem tornou-se para muitos
vanguardistas um campo livre, aberto a experimentações, e podemos dizer que Vertov foi um
dos expoentes com sua montagem por associações e contrastes, conectando imagens como
um princípio musical e, desta maneira, criando tensões. Montar significa, para ele,
organizar os pedaços filmados (as imagens) num filme, ‘escrever’ o filme por
meio das imagens filmadas, e não escolher pedaços de filmes para fazer
‘cenas’ (desvio teatral) ou pedaços filmados para construir legendas (desvio
literário). Todo “Cine-Olho” está em montagem desde o momento em que
se escolhe o tema até a edição definitiva do material, isto é, ele é montagem
durante todo o processo de sua fabricação (VERTOV, 1983, p. 263)91.
Não podemos falar do cinema russo de experimentação deixando de lado o momento histórico
no qual está inserido. O período era de transição do regime capitalista para o comunista e a
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) preocupava-se com a estruturação de uma
sociedade mais igualitária. O país estava conturbado pela Primeira Guerra Mundial e
empenhava-se em sua reconstrução. A cultura foi decisiva para a difusão das ideias partidárias
(FIGUEIRA LEAL e PEQUENO, 2009, p. 37).
Lênin viu no cinema o meio ideal para propaganda política, visto que era extremamente
popular e, principalmente, atingia a todos sem exclusão, pois o índice de analfabetismo no
90 Assumimos a ideia benjaminiana de vivência de choque. Para Benjamin, nas palavras de Leo Charney (2004, p. 323), “a irrupção
da modernidade surgiu nesse afastamento da experiência concebida como uma acumulação contínua em direção a uma
experiência de choques momentâneos que bombardearam e fragmentaram a experiência subjetiva como granadas de mão”.
91 O Cine-Olho (Kino-glaz no original) foi expressão criada por Vertov a partir de uma combinação de palavras. Em 1922, ele, a
montadora e também sua esposa, Elizaveta Svilova, e seu irmão Mikhail Kaufman deram origem ao “Conselho dos três”, no qual
propuseram o manifesto Kinoks: uma revolução. A expressão Kinoks também seria derivada da combinação de Kino – cinema ou
filme – e oko – termo poetizado para olho.
341
período era grande. Além disso, a ideia do cinema como um meio essencialmente moderno
também ajudava no discurso de desenvolvimento industrial, contra uma Rússia atrasada. O
Estado, portanto, investiu altos recursos na produção cinematográfica do país.
Movido por tais ideias, Vertov percebeu a montagem como o lugar no qual a experimentação
da linguagem cinematográfica poderia ser plenamente desenvolvida. Benjamin (1994, p. 178)
chega a dizer que o cinema enquanto obra de arte surge por meio da montagem, “na qual
cada fragmento é a reprodução de um acontecimento que nem constitui em si uma obra de
arte, nem engendra uma obra de arte, ao ser filmado”. Para Dziga Vertov, a montagem é a
expressão máxima da construção do comunismo, da vida moderna e do olhar sobre sua nova
realidade.
Lev Manovich coloca a montagem como o que constitui o próprio método do filme. Sobre a
obra Um homem com uma câmera, Manovich (2000, p. 210) afirma que Vertov, por meio da
montagem, criou relações entre as tomadas, ordenando e reordenando a fim de criar uma
nova perspectiva para o mundo. O retrato da vida moderna se constrói a partir de arranjos de
imagens captadas no cotidiano, tornando-se, mais do que isso, um argumento da vida do
período.
O processo de montagem para Vertov, que se dava em todas as etapas da realização do filme,
era pensado pelo princípio do Cine-Olho, que seria “a possibilidade de tornar visível o invisível,
[...] a fusão de ciência e de atualidades cinematográficas” (VERTOV, 1983, p. 262). Ainda que
tivesse o cinema como um instrumento técnico para construção social, o engajamento dos
artistas na construção do novo estado, no entanto, extrapolou sua dimensão prática e tornouse questão estética e conceitual. A ideia de construção lançou-se num projeto maior, deixando
de ser apenas um mero recurso retórico e tornando-se o movimento estético que moldou a
nova cultura soviética durante os anos 20. As artes diversas possuíam um idioma comum “que
refletia a necessidade de reconstrução do todo do organismo social, estabelecendo um forte
equilíbrio entre arte e sociedade” (VIEIRA, 2004, p. 19).
O movimento de ruptura aos padrões clássicos da arte proposto pelas diversas vanguardas do
período crescia em diferentes frentes ao mesmo tempo – como o Futurismo e o Dadaísmo, por
exemplo – e da apologia à velocidade e ao ritmo intenso da cidade surgiu o Construtivismo.
Com uma vocação tecnológica, o Construtivismo tinha o cinema como o meio de
representação e expressão da vida moderna, capaz de levar ao homem uma nova percepção
de mundo, condizente com o cotidiano que agora o circundava.
A ideia de construção estava também na nova política socialista e na reconstrução econômica
e industrial pós-Primeira Guerra. O país tinha que concentrar suas forças na geração de
energia elétrica, na construção de linhas de trens, e no fortalecimento da agricultura a partir
de sua mecanização, investindo na produção do maquinário necessário para isto. João Luiz
Vieira (2004, p. 20) nos explica que foi “dentro desse panorama geral que se desenvolveu o
trabalho cultural, e artistas, escritores e cineastas, num esforço inédito e coletivo, dirigiram
suas atenções e energias para a construção da então nova sociedade”. O papel do artista
ganhou novos contornos pela ideia de “artista-engenheiro”, delineando a síntese entre arte e
tecnologia.
342
Vertov contemporâneo e o cinema como dispositivo
Ao propor um manifesto em 1922, Dziga Vertov afirmou que com o Cine-Olho era possível
construir o homem ideal, em compasso com seu tempo. Hoje podemos construir múltiplas
identidades, que são continuamente transformadas em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (HALL, 2006). Podemos
dizer que a ideia de montagem fragmentada de Vertov, foi radicalizada e tornou-se uma forte
característica na subjetividade coeva, fazendo com que sua obra permaneça atual.
Para embasarmos a ideia de Vertov contemporâneo, lançamos mão do conceito trabalhado
por Giorgio Agamben. A contemporaneidade é, para o filósofo italiano, uma singular relação
com o próprio tempo, que pega-se a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias. Embasado
em Nietzsche, ele diz que:
mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através
de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito
plenamente com a época, que em todos os aspectos a este aderem
perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não
conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela (AGAMBEN,
2009, p. 59).
Agamben aprofunda a definição explicando que, para ser contemporâneo, é fundamental
manter o olhar fixo em seu tempo para perceber justamente seus pontos nebulosos, ou em
suas palavras “perceber o escuro”. Tal percepção é igualada a um ato de coragem, visto que
necessita de uma habilidade particular do sujeito, para “perceber neste escuro uma luz que,
dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num compromisso
que se pode apenas faltar” (AGAMBEN, 2009, p. 65). Ao trazer esta poética definição, ele
mesmo reconhece que não é uma tarefa fácil e, justamente por isso, os contemporâneos são
raros. Perceber no escuro o devir que ao mesmo tempo já foi, “reconhecer nas trevas do
presente a luz que, sem nunca poder nos alcançar, está perenemente em viagem até nós”
(AGAMBEN, 2009, p. 66).
Tomados por tais perspectivas, podemos dizer que o cineasta Dziga Vertov trazia as questões
de um homem contemporâneo em um momento em que a modernidade implicava grandes
transformações práticas e que, além de tudo, ele era plenamente consciente de que a relação
do homem com o cinema levaria a transformações ainda mais profundas. Um homem com
uma câmera, seu mais conhecido filme, permanece contemporâneo ao identificarmos nele,
mais que as questões vividas nas cidades em sua montagem fragmentada, uma relação com
nossa subjetividade atual que o coloca “na forma de um limiar inapreensível entre o ‘ainda
não’ e um ‘não mais’ (AGAMBEN, 2009, p. 67). Vertov sabia que a relação do homem com sua
nova realidade levaria a uma mudança na sua percepção.
Ainda com Agamben, o autor apresenta duas definições de dispositivo e ambas são
importantes para compreendermos a contemporaneidade de Vertov. Primeiro, baseado em
Foucault, o autor italiano afirma que todo dispositivo cumpre uma função estratégica para
responder a uma urgência do momento histórico e que, por isso, estaria sempre inserido num
jogo de poder. Resumindo três pontos principais sobre dispositivo em Foucault, Agamben
coloca:
343
a. É um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico, que inclui
virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições,
edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas, etc. O dispositivo
em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos.
b. O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve
sempre numa relação de poder.
c. Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de
saber (AGAMBEN, 2009, p. 29).
Revisitando o que falamos até aqui, mantemos em mente que o cinema seria o meio que
melhor representaria o momento de crescimento das cidades, captando o ritmo frenético ao
qual nossos sentidos não estavam acostumados até então. A montagem ajudava na construção
do homem ideal, política e socialmente falando. Fica clara a função estratégica que Vertov dá
ao cinema, colocando-o como dispositivo.
Dando sequência ao pensamento, Agamben propõe vermos os dispositivos em relação com os
seres viventes e, como resultado, enxergaremos o sujeito. Este segundo ponto de vista é
possível graças a um movimento necessário de afastamento. Quase um século depois do
manifesto dos Kinoks, temos uma multiplicidade infinitamente maior de dispositivos, e
podemos perceber como marcas da subjetividade contemporânea, características que antes
estavam apenas no campo estético. E como afirmamos acima, Vertov sabia que as
consequências de sua obra poderiam ser bem mais profundas. Em suas palavras notamos
como ele associa a importância da linguagem assumida por ele a um novo olhar: “O meu
caminho leva à criação de uma percepção nova de mundo. Eis porque decifro de modo diverso
um mundo que vos é desconhecido” (VERTOV, 1983, p.256).
Como afirma Agamben (2009, p. 41), um mesmo indivíduo pode ser lugar dos múltiplos
processos de subjetivação. Com a pluralidade de dispositivos, a ideia de montagem foi
radicalizada e podemos construir diversas identidades, de forma totalmente fragmentada.
E retornamos a Benjamin para lembrar que a montagem no cinema foi fator responsável pela
reestruturação do olhar à medida que a imagem no filme
[...] não pode ser fixada, nem como um quadro, nem como algo de real. A
associação de ideias do espectador é interrompida imediatamente, com a
mudança da imagem. Nisso se baseia o efeito de choque provocado pelo
cinema, que, como qualquer outro choque, precisa ser interceptado por
uma atenção aguda. O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos
existentes mais intensos com os quais se confronta o homem
contemporâneo (BENJAMIN, 1994, p. 192, grifo do autor).
Benjamin falava da vivência do choque, reproduzida visualmente no cinema através da
montagem descontínua e do tempo fragmentado dos filmes de vanguarda, como experiência
moderna por excelência. Mas o que queremos dizer quando afirmamos que nossa
subjetividade está transformada e nossa identidade fragmentada? A conexão possibilitou
novas formas de interação e comunicação com o mundo. Temos hoje diferentes formas de
“estarmos presentes” virtualmente por meio dos perfis criados, seja em aplicativos, redes
sociais, conta de e-mail ou simplesmente em um cadastro de site notícias, estamos
constantemente construindo uma identidade múltipla, que talvez dificilmente poderá ser vista
por completo, pois nunca cessará de expandir.
344
Podemos agora compreender melhor porque voltamos quase cem anos no tempo para
debater uma questão que se iniciou ao falar sobre a atualidade. Vertov, com a obra Um
homem com uma câmera, foi um dos “artistas-antena” de sua época que melhor captaram o
rumo que a arte tomava diante do avanço material. Ele conseguiu, no calor das
transformações, perceber o cinema como meio moderno por excelência e, principalmente,
experimentar todos os seus recursos, construindo uma linguagem própria e condizente com
seu tempo.
Aprofundando mais a questão, o distanciamento de Vertov, a consciência da potencialidade
estética do cinema e a noção de que toda obra de arte é manipulada foi essencial para que
lidássemos hoje com a ideia de obra potencialmente manipulável, não só pelo autor mas por
qualquer pessoa ou por softwares. Consideramos, portanto, que a linguagem criada por Vertov
atravessou gerações até encontrar na tecnologia digital um meio no qual suas possibilidades
são radicalizadas e suas principais características deixaram de ser um privilégio artístico e se
tornaram usuais no cotidiano da população, como uma percepção consolidada.
Considerações finais
Podemos afirmar então que, no auge da modernidade, o sujeito pós-moderno foi percebido,
avant la lettre, por homens, acima de tudo, contemporâneos, cada um em seu tempo e dele
distanciados.
Aqueles que procuraram pensar a contemporaneidade puderam fazê-lo
apenas com a condição de cindi-la em mais tempos, de introduzir no tempo
uma essencial desomogeneidade. Quem pode dizer: “o meu tempo” divide
o tempo, escreve neste uma cesura e uma descontinuidade; e, no entanto,
exatamente através dessa cesura, dessa interpolação do presente na
homogeneidade inerte do tempo linear, o contemporâneo coloca em ação
uma relação especial entre os tempos (AGAMBEN, 2009, p. 71).
A contemporaneidade, para Agamben, tem uma relação especial com o passado, e também
com o futuro, o lugar do “não mais” e do “ainda não”. Por estar nesta posição, ela lança mão
do passado a todo momento, reaproveitando-o da maneira que melhor convém, e
depositando no presente a inevitável presença do arcaico, como um movimento que nunca
cessará. Se a contemporaneidade é assim definida, podemos concordar com a afirmação de
que, ser contemporâneo é, portanto, perceber os vestígios do arcaico no moderno (AGAMBEN,
2009, p. 69), mas também ter em mente que nossa relação com tais vestígios, ressignificados,
influenciará nossa percepção do mundo, implicando um vínculo também com o futuro.
No fim do texto, coroando a assertiva do Benjamin contemporâneo, o autor italiano afirma
que:
o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do
presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e
interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em
relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de
“citá-la” segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma
do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder. [...] É
algo do gênero que devia ter em mente Michel Foucault quando escrevia
que as suas perquirições históricas sobre o passado são apenas a sobra
trazida pela sua interrogação teórica do presente. E Walter Benjamin,
345
quando escrevia que o índice histórico contido nas imagens do passado
mostra que estas alcançarão sua legibilidade somente num determinado
momento de sua história (AGAMBEN, 2009, p. 72).
Pelo mesmo viés, podemos dizer que Vertov, consciente das potencialidades do cinema,
utilizou seus recursos ao máximo, criando com uma linguagem própria um novo olhar sobre
seu tempo. Em outras palavras, ele transformou seu tempo ao colocá-lo em relação com o
futuro e permanece, portanto, contemporâneo. Por enquanto, fica a admiração ainda atual
por Vertov, muito mais que sobrevivente, contemporâneo de seu tempo.
Referências bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradutor Vinícius Nicastro
Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: ______, Magia
e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas v.1.
São Paulo: Brasiliense, 1994.
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SCHWARTZ, Vanessa R. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify,
2004.
FIGUEIRA LEAL, Paulo Roberto; PEQUENO, Laura. Vertov: política e cinema na URSS do anos
1920. In: PERNISA JUNIOR, Carlos. Vertov: o homem e sua câmera. Rio de Janeiro: Mauad X,
2009.
HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006.
KRACAUER, Siegfried. O ornamento da massa. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge, Mass: Mit Press, 2000.
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme. O fenômeno
urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
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Leo e SCHWARTZ, Vanessa R. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac &
Naify, 2004.
VERTOV, Dziga. Nós – variação do manifesto. In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 1983.
VIEIRA, João Luiz. Vanguarda cinematográfica: Eisenstein, Vertov e o construtivismo
cinematográfico. Recine: Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo, Rio de
Janeiro, ano 1, nº 1, p. 16-25. Setembro de 2004.
XAVIER,
Ismail.
Especificidades
da
montagem.
2005.
Disponível
<http://heco.com.br/montagem/entrevistas/05_02.php>. Acesso em: 21 abr. 2010.
346
em:
SESSÃO 2 - PAINEL DE GRUPOS DE PESQUISA
Painel1 - Pesquisadores e Grupos de Pesquisa do GERE
[Núcleo de Estudos de Gênero, Raça e Etnia] no VI Seminário
de Roteiristas da Universidade Presbiteriana Mackenzie
Questionamentos Para Um Sistema De Poder: Permanências e Continuidades
Aluno: Guilherme Franco Pinto (graduação), [email protected]
Orientador: Prof.ª Drª. Rosana Schwartz
Resumo
Este ensaio visa discutir estereótipos e preconceitos permanentes inseridos na sociedade
atual. Refletir a partir do clipe musical da banda Arcade Fire: “We Exist”, polêmicas acerca do
ator/personagem que participou do clipe e o contexto social em que ele está inserido. Debater
questões de gênero, relações de poder e a continuidade de comportamentos preconceituosos
construídos pelo processo civilizatório de cada sociedade.
Palavras-chave: preconceito; estereótipo; filosofia; Arcade Fire; música.
Introdução
Por que somos preconceituosos? Nunca nos perguntamos qual o sentido em ter esse
comportamento. Impostos culturalmente dentro das relações de poder e seguimos o fluxo.
Quando crianças não há questionamentos, apenas aceitamos relações de gênero criados e
recriados durante a história de cada sociedade, grupo ou indivíduos. Acabamos por entrar no
cruel sistema de divisão sexual, do menino tem que ser isso e a menina tem que ser aquilo.
Não há espaço nem tempo para derivar, o ciclo da escravidão de estereótipos permanente na
vida cotidiana. É muito forte e cômodo não questionar e manter o poder, do que tentar
transformar-se e entender a realidade de outro.
PODER
Acredito que o ser humano, por meio de seu comportamento cotidiano revela processos
colonizadores e impositores. Tem a sina de viver para – e por - adquirir poder, inserir no social
e manter estruturas construídas no passado/presente. Podemos observar a todo instante
como vivemos em função da relação de superioridade. Invariavelmente queremos a melhor
qualidade de vida, melhores produtos, melhor reputação, ser desejável e sensual, para
podermos mostrar que somos superiores e adaptados ao sistema. Por meio do contexto
midiático social em que vivemos, a hipermodernidade, entre açougues de beleza e caçadores
de prazer, questiona-se dois
347
problemas: poder ser “quem quiser” e estar perto de todos mas longe ao mesmo tempo. Com
isso, o superficialismo, o efêmero, a liquidez da modernidade, e o controle da realidade
acabam se inserindo cada vez mais em meio à nossa vivência.
O ser humano hipermoderno perdeu a capacidade do toque e do relacionamento social do
passado. A cada dia transformamos nossas sociabilidades. O antissocial e neurótico se
concretiza, a maioria das pessoas, segundo o professor David Schlesinger, consegue se
concentrar em um mesmo assunto por no máximo 45 minutos a uma hora. Queremos tudo
para agora e do jeito osmótico que nos é imposto pela grande massa técno-comunicativa.
Cada vez mais nos inserimos num sistema de existência linear, constante e subjugado, mesmo
vivendo em um mundo de hiperlinks.
A maior parte da população não quer um relacionamento sério ou um contato emocional, são
carentes, mas carentes de uma lógica. “O amor líquido visava junto à modernidade líquida.”
(BAUMAN). A tecnologia e o contexto midiático e comportamental imposto a nós por nós
mesmos nos coloca facilmente manipulados e sem a criação de uma opinião subjetiva. Será
que voltamos para o status anterior do ciclo de alienação? Estamos no Planeta Terra há mais
ou menos 500 mil anos e não conseguimos viver em um ambiente harmônico e de igualdade,
insistimos na vivência em meio a guerras e lutas por controle, sempre há uma classe
dominante. Será o “Homem o lobo do Homem”, como Hobbes afirmou no longínquo século
XVII? (Estar em um ambiente de justiça e equidade emocional são argumentos muito fracos
para a conjuntura humana atual.) “Aquietar-se” em uma isonomia social é uma utopia para os
habitantes desse planeta. É necessário nos reconhecer como sujeitos dotados de políticos e
assim interferir e inferir no meio no qual estamos supostamente presentes.
“Dependentes emocionais somos todos nós, homens e mulheres, quer nas relações amorosas,
quer nas relações de amizade.” (SAFFIOTI, 1999, p.1)
O ser humano precisa entender a sua complexidade e usar a individualidade para seu
crescimento e transformar padrões preconceituosos estabelecidos pelo tempo. Se padrões
foram construídos, eles podem ser desconstruídos. Dessa forma, complementar, feminino e
masculino podem ser modificados.
QUESTIONAR E DESCONSTRUIR
Com a imposição do comportamento social de que é necessário “ser isso ou aquilo”, acabamos
sem o trabalho emocional e afetivo, crescemos e nos tornamos fracos para conviver na
sociedade, uma auto cilada desse sistema de construção de autoridade. É necessário ensinar a
questionar e não simplesmente aceitar padrões tradicionais que foram criados na e pela
história, portanto passíveis de transformação. Questiona-se um relacionamento tradicional.
Ser gay ou transexual é “estranho” e “pecado”? É necessário desconstruir o entendimento do
fixo, e não somente na visão de um, mas sim a conduta e visão do máximo possível de pessoas,
um transexual pode não ter nascido mulher, mas pode se tornar mulher e, acima disso,
entender que o fato de haver tido a Redesignação Sexual não diminui em nada o fato de ser
humano.
“Ninguém nasce mulher, torna-se mulher.” (BEAUVOIR, 1949)
348
O sistema de dominação tirou o direito de escolha de animais escravizando-os e inserindo-os
no processo da indústria da carne e fizemos isso com nós mesmos, com relações que não são
um compartilhamento de sentimentos e vitórias, mas sim uma relação de dono e produto.
Impomos e sofremos com padrões. Vivemos na cultura do “não pode ter cabelo colorido”,
“não pode ter tatuagem”, “não pode aquilo, não pode isso” e, assim, nos tornamos mais
controláveis, organizáveis e disciplinados.
Vivemos em meio a um turbilhão de afazeres e esquecemos de tentar sentir a poesia que
existe no cotidiano em que estamos. Quando surge um problema, o que fazemos é tentar
resolvê-lo da forma mais prática e rápida. Encarar o público LGBTT como um desvio e assim
ignorar o fato de que eles são pessoas comuns, e que também existem, é mais ou menos como
as mulheres eram colocadas, antigamente, em hospitais psiquiátricos com tratamento de
choque por suas ideias “revolucionárias”.
Precisamos do diálogo! Sair do pensamento de senso comum e de coisas que como “futebol e
religião não se discutem”, tudo é discutível; é necessário haver uma desconstrução de
paradigmas e, antes disso, a aceitação dessa desconstrução. Muitos pais não aceitam a
homossexualidade, e mais difícil ainda é a transexualidade, não devemos virar as costas e
deixar o indivíduo perdido em meio ao caos. Já é complexo o processo de autodescoberta
quando somos diferentes do que é visto como comum, e sem o apoio das pessoas mais
próximas o caminho torna-se ainda mais árduo.
O próprio movimento LGBTT é muito desunido, muitas vezes não há a aceitação de
transexuais, o “gay afeminado” é visto como inferior e assim menosprezado pelo outro que
sente-se superior pelo simples fato de trazer mais traços masculinos do que um perfil
feminino; mas quem luta e até muitas vezes sofre o preconceito direto e descarado é este
“afeminado”, que encara deboches e outros tipos de escrachos diariamente para trazer
benefícios a toda comunidade LGBTT.
ARCADE FIRE X LARA JANE GRACE
Uma das grandes discussões em torno do clipe “We Exist” - que foi questionada
primeiramente pela cantora Lara Jane Grace - é o uso de um ator que não é trans, Andrew
Garfield, para um papel que supostamente deveria ser de algum ator transexual. Ela critica que
o clip é chamado “We Exist” e ela não vê, literalmente, sinais dessa existência representada;
em sua opinião, deveria chamar-se “Eles existem” ao invés do título usado. Já o vocalista da
banda Arcade Fire defende que, para um jovem gay jamaicano, ver o ator que interpretou o
homem-aranha nos filmes se travestindo é muito poderoso e, com a internet, isso torna-se de
fácil acesso a todos. Já Lara ainda diz que na cidade aonde estão (Kingston) tem comida e
tolerância, ao contrário da Jamaica, então lá eles não têm facilidade de acesso a materiais
como esse e ainda se pergunta o porquê da personagem chorar enquanto corta o cabelo para
depois colocar uma peruca loira.
Questionamentos como esse são necessários para entender o porquê de tal questão. É muito
injusto, sem a visão do artista, impor algum significado para determinada situação e tirar
conclusões imaturas acerca de determinada intertextualidade simbólica.
349
CRÍTICA DO CLIP
Apesar de toda a discussão acerca de qual público o clipe atingiria, não houve o
questionamento para esse público e, além disso, é necessário a ajuda social para quem está
em estado de sofrimento. Não podemos negar que a interpretação de Andrew Garfield está
convincente, mas poderia ter feito um processo mais aprofundado da personagem do clipe,
entretanto, o ator conseguiu trazer - dialogando com a letra da música - a ingenuidade com
que nossa protagonista se encontra: a solidão e as dúvidas em meio a um mundo de
possibilidades, a vontade de exteriorizar seu sofrimento por meio de uma dança cotidiana,
mas expressiva e irônica. Como uma figura da vida real, que se perde em meio a tantas
dúvidas, com a não aceitação da família, ele(a) sai em busca de uma compreensão com alguém
exterior; em meio a um processo de irrupção, vemos nossa heroína desvaecer por conta da
agressão e transfobia e ressurgir em um suposto paraíso metafórico com homens de roupas
curtas e barba dançando. Em seguida, como que ao sair do purgatório, entra pelo corredor do
show da própria banda Arcade Fire e sobe ao palco com a máscara rosa ao redor dos olhos,
como que em um processo de coroação, e dança em frente a milhares de pessoas, como que
após tudo isso, um período de glória a estivesse esperando.
Um ponto em que podemos dialogar com religião é no verso: “Not the first betrayed by a kiss”,
onde há uma clara referência à Judas e seu beijo em Jesus. A letra da música desenrola-se
acerca de um tratamento do suposto pai da personagem, a “traição” de seu genitor em virar as
costas e começar a tratá-lo de maneira diferente, denotando assim um reflexo da realidade,
pois em muitos casos, após se abrir com a família, o LGBTT é expulso e não aceito mais no
meio comum e na comunhão familiar, são crucificador por algo que não é opção e sim uma
imposição, talvez natural ou comportamental, mas não escolha, algo que não conseguimos
aceitar e somente julgar.
Para transformar é preciso desconstruir, pois como já diziam os dadaístas, é por meio da
destruição que conseguimos algo novo, e cada vez mais se vê necessária a evaporação de
preconceitos sólidos e a construção do argumento de que, como algumas campanhas de
publicidade exploram, ser diferente é ser normal.
Em sua entrevista ao Advocate.com, Win Butler, da banda Arcade Fire, disse que foi até a
Jamaica e que, para eles, uma conversa com os pais sobre o assunto acaba trazendo um núcleo
emocional. Mas repensando, é meio utópico que em um país onde se tem uma cultura antigay,
um gay falando a seu pai sobre aceitação será realmente bem quisto.
Outro ponto de discussão na entrevista é a comparação do uso de Andrew Garfield com o de
atores brancos com a pele pintada para representar negros na Hollywood antiga. A defesa é de
que, quando eles ligaram para o ator, ele demonstrou muita paixão e exatamente por isso foi
escolhido.
Podemos também questionar as manchetes com que os veículos de comunicação colocaram a
manchete:
“Andrew Garfield does drag in the Arcade Fire video for ‘We Exist’” (Andrew Garfield fez uma
drag no novo video de Arcade Fire), escreveu The Huffington Post.
350
“Andrew Garfield plays trans woman in new video”, (Andrew Garfield interpreta uma mulher
trans em novo video), escreveu The Independent.
Com isso podemos ver como a sociedade não tem conhecimento dos conceitos de gênero,
muitos, além de não aceitar, acham estranho um transexual, travesti ou drag queen por
inúmeros motivos, como o preconceito e a luta contra a inserção de pessoas LGBTT’s na
sociedade ou o kit gay nas escolas.
Considerações finais
Chegar a uma conclusão de como definir e acabar com essa disputa de egos é muito
complicado e é algo que leva tempo. O processo de desconstrução de preconceitos e
estereótipos demanda aceitação e novas perspectivas, mas continuemos a agir e incentivar a
paz, que é o que todos precisamos.
Referências bibliográficas
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras.
2014
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:
Zahar, 2004. 190 p.
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SAFFIOTI, Heleith I. B. Primórdios do conceito de gênero. In caderno pagu (12) 1999: pp.157163 São Paulo.
351
Painel 2 - "Artemídia Atraente"
Pesquisadores e Grupos de Pesquisa do Artemídia Videoclip
no VI Seminário de Roteiristas da Universidade Presbiteriana
Mackenzie
Trilho do trem 3D
Mônica de Moraes Oliveira – Grupo de Pesquisa ARTEMÍDIA E VIDEOCLIP (DGP – CNPq/UNESP)
– e-mail: [email protected]
Pelópidas Cypriano PEL – Prof. Dr. Livre-docente do Instituto de Artes da UNESP e líder do
Grupo de Pesquisa ARTEMÍDIA E VIDEOCLIP (DGP – CNPq/UNESP) – e-mail: [email protected]
Resumo
Este artigo tem como objetivo fazer uma reflexão sobre o trabalho desenvolvido por uma
pesquisadora da área de Comunicação, um animador 3D e um artista-pesquisador da área de
Artes, em busca de uma linguagem videográfica artística. A intenção inicial era gerar imagens
animadas de um trem e de uma estação (como ambiente) para serem desenvolvidos trabalhos
posteriores. Ao fazermos um vídeo como forma de expressão artística, tivemos como
referência dois filmes (A chegada do trem na estação, dos irmãos Lumière, e O homem com
uma câmera, de Dziga Vertov). Metodologicamente, este primeiro protótipo foi realizado com
base em conceitos de Zamboni (2001) em Pesquisa em Arte e nos conceitos de livre expressão
e de trabalho cooperativo de Freinet. Nosso intuito foi avaliar processos e procedimentos
artísticos para a elaboração do roteiro e do vídeo, utilizando conhecimentos sincréticos para
depois chegarmos aos conhecimentos sintéticos. No evento, ao aplicarmos o método de
avaliação proposto por Frascara (2011), como resultado, percebemos deficiências técnicas que
dificultaram a compreensão da história proposta inicialmente.
Palavras-chave: Artemídia; Animação 3D; Roteiro; Trem.
Abstract
This article aims to reflect on the work of a researcher of Communication area, a 3D animator
and an artist-researcher of Arts area in search of an artistic video language. The original
intention was to generate animated images of a train and a station (as environment) to be
developed later works. In making a video as a form of artistic expression, we as a reference
two films (The arrival of the train at the station, by Lumière brothers, and Man with a camera,
by Dziga Vertov). Methodologically, this first prototype was based on concepts by Zamboni
(2001) about Research in Art and the concepts of free expression and the cooperative work of
Freinet. Our aim was to evaluate artistic processes and procedures for the preparation of the
script and video, using syncretic knowledge and then we get to synthetic knowledge. At the
event, to apply the evaluation method proposed by Frascara (2011), as a result, we noticed
technical deficiencies that hampered the understanding of history originally proposed.
Key words: Artmedia; 3D Animation; Script; Train.
352
Introdução
O presente artigo tem como objetivo descrever uma experiência de trabalho desenvolvido por
uma pesquisadora da área de Comunicação, um animador 3D e um artista-pesquisador da área
de Artes, em busca de uma linguagem artística para filmes de animação 3D, fazendo uma
breve reflexão sobre os elementos que envolveram o protótipo didático (em vídeo) elaborado.
Este foi preparado para ser apresentado no VI Seminário Histórias de Roteiristas, realizado dias
17 e 18 de setembro de 2015 no Mackenzie, no painel do Grupo de Pesquisa Artemídia e
Videoclip.
O objeto de estudo são os processos e procedimentos artísticos para desenvolver uma
linguagem videográfica artística. O problema desta pesquisa vincula-se à dificuldade para se
estabelecer parâmetros que definam um vídeo como obra de arte. Por ser uma pesquisa em
Artes, seguimos, em termos metodológicos, os conceitos de Zamboni (2001), daí termos como
produto final uma produção artística (o vídeo).
Daí decorrem questões como: quais os processos e procedimentos para se chegar a uma
linguagem videográfica artística e não apenas a uma linguagem de vídeo não artístico? O que
transforma o vídeo em uma obra de arte? Como transformar um texto escrito (argumento
e/ou roteiro) em uma linguagem videográfica artística? Seria só uma questão de adaptação ou
há recursos específicos na animação 3D que possibilitem dar um caráter artístico ao vídeo?
Seria possível e viável criar um cenário com base em uma obra de arte (desenho, pintura,
escultura, etc.) para chegarmos a essa linguagem pretendida?
Retomamos a linguagem cinematográfica tendo como base, de modo especial para esse
primeiro momento da pesquisa, experimentos realizados nos primórdios do cinema. Com esse
resgate procuramos uma linguagem artística para aplicá-la em um vídeo de um minuto
(animação 3D). Nós nos baseamos:
1) No filme francês de 1895 A chegada do trem na estação, dos irmãos Lumière que
tem duração de aproximadamente 50 segundos (Figura 1), considerado como uma
experiência de uso da câmera para registrar eventos cotidianos.
Figura
353
1
–
Cena
do
filme
A
chegada
do
trem
na
estação.
Fonte:
https://kinodinamico.wordpress.com/tag/cinematografo/
2) Em cenas do filme Um homem com uma câmera (de Dziga Vertov) – filme russo de 1929.
Figura 2 – Cena do filme Homem com uma câmera
Fonte: http://moviemicah.blogspot.com.br/2013/07/man-with-movie-camera-1929.html
O primeiro filme pode ser enquadrado como um “gênero cotidiano, uma forma popular de
espetáculo”. Tem uma linguagem própria do século XIX, caracterizada pela conceituação do
cotidiano e pelo “reconhecimento da vida diária como um objeto válido de investigação
científica” (COHEN, 2001, p. 317). O segundo filme tem um caráter diferente do primeiro,
busca uma linguagem cinematográfica. Como afirma Dias (2007, p. 200), nele Vertov retrata
um dia de Moscou, apresentando a realidade “como verdade imposta pelo cinema enquanto
tecnologia”.
Evitando manipular sentidos da imagem, esta depura-se formalmente na
crença da sua própria verdade. Vertov não associa sentidos, antes compõe
formas e sequências, uma “organização da percepção” e não uma
“estrutura”. (...) Vertov repete planos, retomados em associações novas,
porque não encerrados num novo sentido resultante do choque entre
planos. (...) A sua montagem está colada ao instante e ao imprevisto, à
multiplicidade de fenómenos e à abertura de cada momento, ou seja, à
mudança. Vertov disponibiliza a fragmentação e a montagem para uma
abertura em cada momento. (DIAS, 2007, p. 201)
Como poderíamos reproduzir algo semelhante ao “choque de planos” de Vertov? Nessa cena,
um trem se aproxima do cineasta que se posiciona nos trilhos e, posteriormente, aparece a
imagem do trem visto por baixo. Tentamos reproduzir com animação uma cena que remetesse
a essa ideia para desenvolvermos a linguagem pretendida originalmente em nossa pesquisa.
O tema proposto para gerar o roteiro foi “trem”, pois a intenção inicial era criar um banco de
imagens animadas de um trem e de uma estação (como ambiente) para serem desenvolvidos
estudos e trabalhos posteriores. Esse tema se relaciona a pesquisas feitas sobre um bairro da
354
zona norte de São Paulo, Parada Inglesa, que teve sua origem relacionada à linha de trem da
Estrada de Ferro Cantareira.
Com base nas primeiras imagens geradas foi construído o protótipo com um minuto de
duração, com a finalidade de desenvolver uma equipe de trabalho especializada em animação
3D. Este foi chamado de didático por se tratar de uma experiência em que os integrantes da
equipe puderam desenvolver conceitos e aplicá-los de forma sincrética para posteriormente
sintetizá-los, baseando-nos nas concepções de Célestin Freinet. Dessa forma, cada um realizou
suas propostas de trabalho com base em conhecimentos adquiridos em suas vivências
anteriores.
Para percebermos as impressões de espectadores, apresentamos o vídeo no Seminário
Histórias de Roteiristas e posteriormente para mais algumas pessoas, seguindo técnicas de
Design de Informação baseadas em Jorge Frascara (2011). Depois do evento procuramos
sistematizar os pontos abordados para darmos prosseguimento a esta pesquisa.
Elaborar este protótipo foi importante para revermos os conceitos fundamentais sobre roteiro
e sobre animação. Uma nova proposta foi então realizada em busca do cumprimento de nosso
objetivo geral a ser realizada em momento futuro.
Materiais e métodos
Decidimos trilhar caminhos “próprios”, construir nosso modo de trabalhar sem termos
preocupações extremas com a busca de referenciais teóricos, ainda que isso pudesse parecer
algo contra o que rege o mundo acadêmico, dada a vasta literatura sobre roteiro e animação.
Esse método de trabalho baseia-se nas teorias de Célestin Freinet (2004). Precisávamos
estabelecer nosso ritmo de trabalho e nosso protocolo de comunicação. O importante foi
termos liberdade para fazermos nossa pesquisa, sem cobranças, sem pressa, construindo e
estabelecendo modos de trabalho com base na frase “A vida prepara-se pela vida” (FREINET,
2004, p. 23).
Iniciamos o trabalho desenvolvendo o cenário tendo como referencial fotos da antiga estação
de trem “Parada Inglesa”, utilizando programa de modelagem e animação 3D.
Foi criada uma história curta tendo como ponto de partida cinco cenas apresentando um trem
chegando em uma estação (de vários ângulos), imagens geradas com o cenário criado. A base
de referência para a elaboração dessas cenas foi o filme A chegada do trem na estação (ver
Figura 1).
A intenção era pensar em uma história apenas apresentando o cenário, ou seja, sem
personagens. Para isso, a câmera subjetiva procurou dar a impressão de que o espectador está
na cena criada. Assim, partimos do seguinte texto, considerado como argumento:
Caminhava, lentamente, pela linha do trem. Buscava uma direção, um
sentido para sua vida. Não enxergava nada, seguia cabisbaixo... sentia um
grande vazio.
De repente ouviu o apito do trem. Assustou-se. Entrou em estado de
choque, não conseguia reagir. O trem foi se aproximando, chegando cada
vez mais perto, mais perto, mais perto.
355
Escuridão e silêncio.
Quando voltou a si, percebeu que tinha desmaiado e caído. Abriu os olhos,
tinha recuperado a visão, viu seu mundo transformado.
A ideia era adaptar o argumento para um vídeo de um minuto. Optamos por fazer as cenas
iniciais da animação em preto e branco, em traços simples para contrastar com a cena final
que seria colorida. Em busca de uma linguagem videográfica artística, imaginamos que esses
efeitos teriam função dramática. Para darmos a sensação de que o espectador seria a
personagem com problemas visuais que caminha pela linha do trem (câmera subjetiva), as
imagens foram desfocadas.
A aproximação do trem foi baseada na cena do filme O homem com uma câmera (Ver Figura
2). Na sequência, foram colocadas as cenas relacionadas à estação (o trem continua seu
trajeto), as quais tinham dado origem ao argumento. Na cena final, criamos um cenário
colorido para transmitir a ideia de “recuperação da visão” da personagem.
Pronto o protótipo, seguindo as concepções de Frascara (2011, p. 18) a respeito de Design de
Informação centrado no usuário, partimos para a etapa da avaliação, feita apresentando-se o
vídeo para algumas pessoas. Esse é o momento de “avaliar se o protótipo funciona, em que
medida funciona e identificar aspectos a melhorar”.
Resultados
Procuramos adaptar o argumento, planejando as cenas e calculando tempos para cada uma. O
vídeo foi produzido com 64 segundos de duração – apesar de a proposta inicial ter tido como
parâmetro 60 segundos exatos –, pois houve erros na renderização e finalização.
No dia 18 de setembro, durante as apresentações de trabalhos do Painel Artemídia Atraente,
do Grupo de Pesquisa Artemídia e Videoclip, foi mostrado o vídeo e as discussões geradas
apontaram elementos positivos e negativos de seu processo de elaboração e de produção. Os
participantes do evento falaram o que compreenderam e os aspectos que ocasionaram
dúvidas.
Durante a apresentação no evento, os efeitos sonoros não foram bem reproduzidos por
problemas técnicos, ponto que prejudicou bastante a compreensão do vídeo. As batidas do
coração ficaram muito baixas, acabando por só ser ressaltado o apito do trem (som que, por
sua vez, foi muito rápido). Tínhamos como proposta elaborar uma trilha sonora própria para o
vídeo, contando com a cooperação de um músico, no entanto, não foi possível nesse primeiro
momento. Decidimos, então, que seriam utilizados recursos sonoros captados da internet
(basicamente: sons de batida de coração; de trem em movimento, seu apito e freada).
A personagem andando sobre o trilho do trem foi percebida, mas não as possíveis razões para
isso. A questão da cegueira não foi mencionada por nenhum dos espectadores, ou seja, o
efeito colocado não produziu os resultados esperados.
Em termos das ações, no enredo o trem seguiu seu curso, chegando à estação, mas isso não foi
bem compreendido. Na discussão sobre o vídeo foi abordada a questão de uma quebra de
eixo, pois foram colocadas três cenas com o trem chegando à estação.
356
No cenário final um efeito fez com que as pessoas vissem água nos trilhos do trem, o que
provocou certa confusão na compreensão do enredo. Não houve a percepção de que a
personagem estava nesse cenário e que o que estava sendo mostrado era seu ponto de vista.
Discussão
Com os resultados obtidos com a primeira experiência foi possível fazer avaliações de nossas
práticas sincréticas, buscar mais informações e embasamentos teóricos para construir o
conhecimento sintético.
Esta primeira experiência foi importante para fundamentarmos nossas bases teórico-práticas e
formarmos uma equipe de trabalho, ajustando pontos de entendimento entre seus
integrantes. Depois dos comentários feitos sobre a apresentação deste primeiro protótipo
didático, a equipe passou a retraçar objetivos e a reestruturar cenas, planos, tempos e efeitos.
Foi realizada uma decupagem mais específica do argumento, o que serviu como ponto de
partida para discussões sobre o que deveria ser alterado. Chegamos à conclusão de que o
roteiro não foi cumprido por problemas técnicos, tais como: mau posicionamento de câmera;
falta enquadramento; falta de adequação às imagens nos tempos previstos; trilha sonora mal
selecionada.
Os efeitos sonoros prejudicaram a compreensão do vídeo, por serem a base para a narrativa.
Sons de batida do coração, de passos, do apito do trem, sobretudo, compõem o panorama
sonoro da história, uma vez que não há personagens explícitos.
Decidimos que a trilha sonora para um próximo vídeo será produzida por músicos,
especialmente planejada, a fim de podermos associar sons e imagens com mais sincronia.
Assim, para a caracterização da personagem (pessoa andando no trilho do trem), os sons de
batidas do coração deverão ser acentuados. A eles serão associados sons de respiração
(normal no início e, posteriormente, ofegante) e de passos (que cessarão depois do apito do
trem, para indicar que a pessoa parou com o susto que levou).
Pretende-se que este vídeo seja veiculado pela internet (Youtube) e, para isso, o som deve
estar adequado a equipamentos de recepção comuns (computadores e celulares). Retirar sons
da internet não produziu efeitos desejados, pois as batidas do coração, por exemplo, não
foram ouvidas.
Há vários aspectos cinematográficos a serem alterados, sobretudo para gerarmos a sensação
de o trem estar chegando perto do espectador com o intuito de fazê-lo sentir-se a personagem
(câmera subjetiva) que anda sobre os trilhos.
Esse protótipo não atingiu seus objetivos completamente por falhas técnicas e isso
impossibilitou chegarmos a possíveis respostas para nossas questões iniciais relacionadas aos
processos e procedimentos para se chegar a uma linguagem videográfica artística. Os recursos
de modelagem e da animação 3D não foram utilizados de forma a se chegar à linguagem
inicialmente planejada. Pretende-se que o próximo vídeo tenha aspectos artísticos em termos
de imagem (desde a modelagem) e de som (trilha sonora específica a ser realizada por
compositores).
357
Referências bibliográficas
COHEN, Margaret. A literatura panorâmica e a invenção dos gêneros cotidianos. In: CHARNEY,
Leo; SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac
& Naify Edições, 2001. pp. 315-349.
DIAS, Fernando Paulo Rosa. As vanguardas russas e o cinema: plano e montagem. In: TAVARES,
Cristina Azevedo; DIAS, Fernando Paulo Rosa. Artes visuais e as outras artes: as primeiras
vanguardas. Lisboa: Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, 2007. p. 193-204.
FRASCARA, Jorge. ¿Qué es el diseño de información? 1a ed. Buenos Aires: Infinito, 2011.
FREINET, Célestin. Pedagogia do bom senso. 7a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
ZAMBONI, Sílvio. A pesquisa em arte: um paralelo entre arte e ciência. Campinas: Autores
Associados, 2001.
358
Roteiro para transmídia Entrefilmes
Rogério Corrêa da Silva – Mestrando em Artes Visuais, Instituto de Artes, UNESP, Grupo de
Pesquisa ARTEMÍDIA E VIDEOCLIP (DGP – CNPq/UNESP) – e-mail: [email protected]
Pelópidas Cypriano PEL – Prof. Dr. Livre-docente do Instituto de Artes da UNESP e líder do
Grupo de Pesquisa ARTEMÍDIA E VIDEOCLIP (DGP – CNPq/UNESP) – e-mail: [email protected]
Resumo
Este artigo é uma das "histórias de roteiristas" envolvendo encanto e conhecimento nos
processos e procedimentos artístico-científicos de roteiros para peças artemidiáticas. Tem
como objetivo difundir o processo de roteirização de transmídia Entrefilmes para concepção
de Realização Audiovisual a ser apresentada como Trabalho Equivalente e respectivo Relatório
Circunstanciado na defesa de mestrado em Artes. A metodologia utilizada é inspirada nas
práticas pedagógicas freinetianas, nos processos de comunicação e controle da cibernética, no
conceito de serendipidade. É apresentada reflexão sobre os resultados esperados na pesquisa
de mestrado no Programa de Mestrado e Doutorado em Artes do Instituto de Artes da UNESP.
A discussão sobre a realização audiovisual na contemporaneidade da integração das artes e
das mídias poderá ter impacto no tripé indissociável ensino-pesquisa-extensão, por exemplo,
em Cursos Superiores de Artes Visuais, Cinema, Audiovisual, Rádio e TV, em Programas de PósGraduação, no Ateliê-Laboratório de Imagem Cinética Eletrônica, em Apresentações Artísticas
Audiovisuais.
Palavras-chave: Artemídia; Roteiro para artemídia; Roteiro para transmídia; Cinema e Artes
Visuais; Realização Audiovisual
Introdução
São vários os autores que tocam na contaminação do Cinema Novo pelo Neo-realismo, entre
eles Paulo Emilio Salles Gomes (1) e Jean Claude Bernardet (2). Ladrões de Bicicletas (3) não é
o início do movimento italiano, mas é um dos seus principais filmes ao lado de Paisá (4) e
Roma, Cidade Aberta (5), ambos de Roberto Rossellini. Mais do que os filmes de Rossellini, a
obra-prima de De Sica se tornou o principal símbolo do Neo-realismo no mundo.
359
Imagem 1: Ladrões de Bicicleta, de Vittorio de Sica (internet)
Já o filme de Nelson é considerado um precursor do movimento brasileiro ao lado de Agulha
no Palheiro, de Alex Viany, mas Rio 40 Graus (6) se presta mais à comparação com a obra
italiana devido à presença de crianças como personagens principais.
Imagem 2: Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos (internet)
O filme contemporâneo que tomarei como exemplo é de minha autoria, No Olho da Rua, que
se aproxima dos citados anteriormente pelo olhar crítico e humanista sobre a sociedade, numa
linguagem que flerta com o documentário.
Outra característica que justapõe as três obras é o tema do desemprego ou do subemprego.
360
Materiais e Métodos
Minha primeira proposta era fazer um paralelo entre os dois movimentos e verificar sua
influência na escritura do roteiro Cinzas de um Sonho, projeto do meu segundo longa
metragem. Mas, segundo meu orientador Prof. Pelópidas Cypriano de Oliveira, isto acarretaria
num vínculo entre a UNESP e o trabalho que poderia gerar conflito de direitos patrimoniais.
Desta forma, por sugestão dele, resolvi transformar minha pesquisa na produção de clips em
vídeo para exibição na internet, tendo como protagonista o personagem Algodão, de No Olho
da Rua. Esta figura, a de um realizador de cinema que se torna amigo de Oton e passa a
documentar a vida do metalúrgico desempregado, continuará seu documentário depois da
“morte” do operário registrando opiniões ou histórias sobre o desemprego.
Para tanto, ele utilizará as características estilísticas dos dois movimentos, atualizando-os e
fazendo ecoar suas heranças na produção audiovisual contemporânea.
Este projeto de Trabalho Equivalente toma como base o movimento italiano que surge ainda
durante o final da Segunda Guerra quando Rossellini, diretor com alguma experiência dentro
da produção fascista, realiza Roma, cidade aberta (1945) cujo tema é a resistência ao regime
de Mussolini.
O cineasta pioneiro abdica da maioria dos equipamentos e estúdios que utilizava para fazer os
melodramas que lhe garantiam a sobrevivência e parte para uma aventura militante apoiada
pelo Partido Comunista, onde só o essencial tem lugar: uma câmera, locações reais e atores
não profissionais, narrando uma história que assume o lado dos pobres no enfrentamento das
injustiças sociais. Com uma linguagem simples, que se assemelha àquela do documentário,
surge um cinema autoral numa Itália destroçada pela Guerra.
Em 1948 Vittorio De Sica realiza Ladrões de Bicicleta a partir de um roteiro escrito por ele e
mais cinco colaboradores, onde se destaca a figura de Cesare Zavattini, que assina diversos
títulos importantes do movimento e se torna o principal parceiro do diretor.
A obra-prima de De Sica segue o mesmo modelo de Rossellini, mas atinge um público muito
maior, tendo até recebido um Oscar especial, já que ainda não havia sido criada a categoria de
melhor filme estrangeiro.
A história simples de um homem que perde o emprego, a duras penas conseguido, porque tem
sua bicicleta roubada, é uma profunda reflexão sobre a Itália no pós-guerra. No longo percurso
pela cidade à procura do instrumento de trabalho ele é acompanhado pelo filho, ainda um
menino. Com um roteiro extremamente elaborado, De Sica se equilibra entre a crueza e a
ternura e atinge um grau de maestria raramente igualado na história do cinema.
Este modelo inspira, em 1955, Nelson Pereira a escrever e dirigir seu primeiro longa
metragem, Rio 40 Graus, que narra a história de alguns garotos que moram na favela e
trabalham vendendo amendoim na zona sul carioca. O filme mescla uma visão documental
com elementos ficcionais de várias sub-tramas que se organizam harmoniosamente.
361
O Brasil encontra-se numa fase de liberdade política e comportamental em que o futuro é
sinônimo de esperança. No cinema brasileiro é a época dos estúdios Vera Cruz e Maristela cuja
produção tenta copiar a linguagem convencional do cinema americano para atingir um padrão
internacional de qualidade que possa dar retorno comercial. Eles são adeptos de
equipamentos grandes e pesados, filmagem em interiores e atores conhecidos do grande
público, para narrar histórias brasileiras de forma acadêmica e com um ponto de vista que
procura reforçar a posição conservadora da classe dominante.
Nelson segue os neo-realistas e com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça realiza um
filme despojado, mas visceral, que faz questão de descobrir o que é o país e o que ele tem de
sublime e desumano. Ele assume o olhar dos personagens do povo e mostra as dificuldades
por que passam para sobreviver, embora ressalte a alegria e a esperança que os contagia e dão
força para prosseguir.
A estréia de Nelson é incensada por dois críticos paulistanos, Francisco Luiz de Almeida Sales
(7) e Paulo Emilio Salles Gomes (8), além do cineasta Rudá de Andrade, que estudara no
Centro Sperimentale de Cinematografia de Roma. Esse trio é responsável pelo ânimo que
toma conta de uma geração de realizadores, que até 1968, data do Ato Institucional n° 5, irá
produzir alguns dos mais significativos filmes brasileiros e se constituir no movimento,
saudado internacionalmente como uma revolução estética: Cinema Novo.
Embora o Cinema Novo tivesse no seu nascedouro a proposta majoritária de ser também uma
reflexão política sobre o país, um dos principais estudos sobre o movimento, Brasil em Tempo
de Cinema (8), de Jean Claude Bernardet, caracteriza o conjunto da obra daquele período
como sendo de jovens de classe média que lançam seu olhar sobre o Brasil profundo, visão
esta limitada pela classe de origem.
No Olho da Rua (2011), produzido e dirigido por mim a partir de um argumento de minha
autoria, procura mimetizar a linguagem neo-realista e cinemanovista. A obra quer fazer uma
reflexão e ao mesmo tempo emocionar. É um filme despojado em termos de realização no
qual a história, os personagens e a direção são mais determinantes que o valor de produção.
É ambientado no Brasil contemporâneo onde as mudanças no perfil industrial eliminam postos
de trabalho e deixam desempregados milhares de pessoas que viveram por anos dentro de
uma estrutura bem definida. Sem preparo para a mudança repentina, muitos trabalhadores
perdem a identidade, por vezes chegando a atitudes desesperadas. É o caso de Otoniel
Badaró, protagonista vivido por Murilo Rosa, que volta à fábrica da qual foi demitido depois de
20 anos de serviço, faz o gerente de recursos humanos refém e é eliminado diante de colegas
e do amigo Algodão, que o acompanhava com sua câmera com o objetivo de narrar a situação
de um desempregado.
Resultados
Esta pesquisa tem o significado de aprofundamento de meu trabalho de quarenta anos como
realizador de cinema e dá sequência a um longo relacionamento que tenho com a cultura
italiana. Sou ligado à Itália por descendência familiar e frequentei o Colégio Dante Alighieri (SP)
onde estudei o idioma por sete anos.
362
Vivi em Roma durante o ano de 1979 e fui estagiário voluntário como segundo assistente de
montagem de som no filme La Luna, de Bernardo Bertolucci, e Oggetti Smarritti, de Giuseppe
Bertolucci.
Ainda considero válidos os conceitos que estão por trás de grande parte dos filmes neorealistas e cinemanovistas, de que a realidade de um país pode ser mudada para melhor na
medida em que o espectador, ao mesmo tempo em que frui esteticamente, se conscientiza
dos problemas.
Sempre pautei meus filmes a partir de uma visão que tenta preservar certa semelhança com
Ladrões de Bicicleta, Rio 40 Graus e os filmes dos movimentos a que pertencem, tentando
atualizá-los e ir sempre além.
Imagem 3: A partir da esquerda, Murilo Rosa (OTON) e Leandro Firmino da Hora (ALGODÃO)
em No Olho da Rua, de Rogério Corrêa (Leão Filmes)
Discussão
O projeto de realização dos clips com Algodão tem como objetivo caminhar no mesmo sentido
de No Olho da Rua, mas pretende dar vários passos rumo ao desconhecido. Tenho a intenção
de superar definitivamente os laços com os mestres e dar início à criação de uma assinatura,
que me permita construir uma verdadeira obra. Para isso acredito ser indispensável esgotar
minha relação com os estilos que me formaram e dar vazão a um modo pessoal como diretor,
ainda que errante.
Nos clips, Algodão, depois da “morte” de Oton, discute a situação do desemprego no país
através de depoimentos de personagens variados e coloca na internet. O personagem, que no
filme é “formado” em letras na USP, agora faz mestrado em Artes Visuais na UNESP.
Com sua câmera na mão, ele entra no Instituto de Artes contando em off um pouco de sua
trajetória, refere-se à “morte” de Oton, personagem principal do seu documentário sobre o
desemprego, e diz que vai continuar discutindo o tema.
363
Ele entrevista as seguintes pessoas em seus ambientes de estudo:
– ALUNA de Artes Cênicas
– ALUNO de Artes Cênicas
– ALUNA de Música
– ALUNO de Música
– ALUNA de Artes Visuais
– ALUNO de Artes Visuais
E também MULHERES e HOMENS, nas imediações da estação Barra Funda.
Os clips serão editados em diversos formatos, indo do depoimento único àquele que mistura
várias entrevistas, podendo também variar em duração e estilo. A proposta é que se tornem
peças de um mosaico e sejam combinadas de infinitas formas, resultando em inúmeros
sentidos.
Eles serão postados na internet por um largo período com a intenção de provocar uma
discussão não apenas sobre o tema desemprego, mas também sobre o cinema que procura
retratar o fato social e político.
Referências
[1] GOMES, Paulo Emílio Salles. “Ladri di Biciclette”. O Estado de São Paulo. São Paulo, 18 fev.
1950.
[2] BERNARDET, Jean Claude. “Vicissitudini Ideologiche del Neorealismo in Brasile”. In: Il
Neorealismo e la critica: materiali per uma bibliografia. Quaderni della 10ª Mostra
Internazionale del Cinema di Pesaro, 12/19 setembre, 1974. Jean-Claude Bernardet. pp. 197201.
[3] Ladrões de Bicicletas, (Ladri di Biciclette), direção Vittorio de Sica, produção PDS, preto e
branco, 93’, Itália, 1948.
[4] Paisá, (Paisà), direção Roberto Rossellini, produção OFI, preto e branco, 125’, Itália, 1946.
[5] Roma, cidade aberta (Roma, città aperta), direção Roberto Rossellini, produção Excelsa
Film, preto e branco, 103’, 1945.
[6] Rio, 40 Graus, direção Nelson Pereira dos Santos, produção Moacyr Fenelon, 100’, preto e
branco, Brasil, 1955.
[7] SALES, Francisco Luiz de Almeida. Cinema e verdade. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
[8] BERNARDET, Jean Claude. Brasil em Tempo de Cinema. São Paulo: Civilização Brasileira,
1967.
[9] No Olho da Rua, direção Rogério Corrêa, produção Leão Filmes, cor, 100’, Brasil, 2011.
364
365
Roteiro para flanar no bairro de Parada Inglesa
Taísa Nogueira Silva – Mestranda em Artes Visuais, Instituto de Artes, UNESP, Grupo de
Pesquisa ARTEMÍDIA E VIDEOCLIP (DGP – CNPq/UNESP) – e-mail: [email protected]
Pelópidas Cypriano PEL – Prof. Dr. Livre-docente do Instituto de Artes da UNESP e líder do
Grupo de Pesquisa ARTEMÍDIA E VIDEOCLIP (DGP – CNPq/UNESP) – e-mail: [email protected]
Resumo
Este artigo é uma das "histórias de roteiristas" envolvendo encanto e conhecimento nos
processos e procedimentos artístico-científicos de roteiros para peças artemidiáticas. Tem
como objetivo difundir o processo de roteirização do flanar no bairro de Parada Inglesa para
concepção de Interferência Artística Urbana a ser apresentada como Trabalho Equivalente e
respectivo Relatório Circunstanciado na defesa de mestrado em Artes. A metodologia utilizada
é inspirada nas práticas pedagógicas freinetianas, nos processos de comunicação e controle da
cibernética, no conceito de serendipidade. É apresentada reflexão sobre os resultados
esperados na pesquisa de mestrado no Programa de Mestrado e Doutorado em Artes do
Instituto de Artes da UNESP. A discussão sobre a interferência artística urbana na
contemporaneidade da integração audiovisual poderá ter impacto no tripé indissociável
ensino-pesquisa-extensão, por exemplo, em Cursos Superiores de Artes Visuais, Arquitetura,
Audiovisual, Design, em Programas de Pós-Graduação, no Ateliê-Laboratório de Imagem
Cinética Eletrônica, em Apresentações Artísticas Audiovisuais.
Palavras-chave: Artemídia; Roteiro para artemídia; Roteiro para Flanar; Arquitetura e Artes
Visuais; Interferência Artística Urbana
Introdução
Este artigo tem como objetivo principal apresentar e difundir um processo de roteirização do
flanar no bairro de Parada Inglesa visando analisar a relação do espaço perceptivo entre os
usuários e a cidade. O processo de elaboração do trabalho se pauta num processo criativo
englobado pelo conceito de ARTEMIDIA, grupo pertencente da pesquisa.
O projeto objetiva analisar a modificação perceptiva e como tais procedimentos artísticos
podem colaborar para a apropriação de novos conhecimentos, possibilitando um estudo da
percepção artística como instrumento didático-metodológico.
O roteiro apresenta alguns resultados obtidos no Grupo de Pesquisa ARTEMÍDIA e VIDEOCLIP
(WIP Work In Progress), sob a orientação do Prof. Dr. Pelópidas Cypriano. O projeto se pauta
na elaboração de um Trabalho Equivalente de Intervenção Urbana por meio de estudo
perceptivo para o entendimento da cidade, a partir de reflexões em áreas urbanas
consolidadas com "case Parada Inglesa", bairro da Zona Norte (SP) e seus desdobramentos sob
os aspectos artísticos e arquitetônicos.
366
Será elaborada uma revisão bibliográfica a respeito dos conceitos de percepção espacial,
propondo a criação de roteiros por meio de mapeamentos perceptivos, partindo de autores
como Kevin Lynch, para quem “As imagens ambientais são o resultado de um processo
bilateral entre o observador e seu ambiente, ou seja, a imagem de uma determinada realidade
pode variar entre observadores diferentes.” (LYNCH,1960, p.6). Esse autor propõe o estudo
das relações entre o observador e as imagens públicas, ou seja, imagens mentais comuns a
vastos contingentes de habitantes de uma cidade, áreas consensuais que possibilitam a
interação de uma única realidade física.
As pesquisas de Kevin Lynch sobre a percepção do espaço estão relacionadas a conceitos de
legibilidade, reconhecimento e organização num modelo coerente pela escala urbana, ou seja,
um processo de orientação do indivíduo para o reconhecimento espacial e a construção da
imagem perceptiva (idem, p.11).
Fig. 01 – Mapa Mental elaborado pelos moradores de Jersey City (LYNCH, 1980).
Métodos
A metodologia utilizada é inspirada nas práticas pedagógicas freinetianas, nos processos de
comunicação e controle da cibernética, no conceito de serendipidade, considerada uma forma
especial de criatividade ou uma de muitas técnicas de desenvolvimento do potencial criativo,
que alia perseverança, inteligência e senso de observação.
O trabalho WIP (Work In Progress) tem se configurado sob vários aspectos. Primeiramente, o
projeto visa formular, metodologicamente, por um roteiro, um procedimento artístico de
intervenções urbanas por meio do flanar. Deste modo, foram elaborados alguns “roteirosmapas mentais” antes do estudo em campo, visando a compreensão da área anterior as
experiências com mapas e a produção de imagens mentais, apenas com referências “neutras”.
367
O material foi arquivado como "estaca zero" (Fig. 02) e estão sendo incorporados outros
desenhos e relatos para no final ser avaliada a transformação do mapa mental sobre a Parada
Inglesa.
Fig. 02 – Releitura e Mapa Mental “estaca zero” elaborado dia 20/06/2015. O
orientador plotou 4 ocorrências notáveis no mapa e a equipe saiu para o flanar.
Seguindo conceitos do Flanar e do Estudo do Meio para reconhecimento da área de estudo
(Parada Inglesa - Zona Norte-SP), pudemos exercitar a contemplação e estabelecer relações
(cheiro, barulho, cores, desenhos, massas) com o lugar (Fig. 3).
368
Fig. 03: Roteiro do Flanar / Estudo do Meio no Bairro da Parada Inglesa. O trecho em
destaque: 3km de caminhada. Fonte: GoogleMaps
A partir da criação das imagens (por meio de fotografias e desenhos – ver Fig. 04), pretende-se
desenvolver uma proposta de intervenção urbana. Segundo Del Rio (1990), a análise da
imagem urbana configura a base mais importante para o desenvolvimento do conceito de
desenho urbano. A percepção das configurações urbanas permanece sujeita a certas leis de
conformação, tais como de proximidade, semelhança, coesão, pregnância, entre outras, que
condicionariam os conceitos “gestálticos” estáticos e dinâmicos (envolvimento, alargamento,
acentuação, emolduramento, etc.).
Fig. 04. Imagem obtida no Flanar da Parada Inglesa (Av. Tucuruvi) vista para a região
central da cidade de São Paulo.
A escolha do local de pesquisa e a intervenção urbana na Parada Inglesa cumpre o imperativo
metodológico por ser uma área de fácil acesso aos dados da pesquisa e ao tratamento
adequado dos respectivos dados a serem levantados, além de ser um local sem uma definição
geográfica precisa, ou seja, um lugar inexplorado sob a ótica da percepção ambiental e onde
será aplicada uma metodologia didático-pedagógica.
Um segundo aspecto a ser abordado é o roteiro sob a ótica dos moradores: os aspectos
históricos serão abordados por meio de histórias contadas por eles. A antiga estação de Parada
Inglesa (Fig. 05), que deu nome ao bairro a sua volta, não ficava no mesmo local da atual
estação de Metrô. O nome refere-se ao inglês William Harding (Fig. 06), proprietário da gleba
por onde passava a linha do trem da Cantareira com destino ao Guapira. Em 1927 foi
inaugurada a referida estação.
369
Fig.
05.
Foto
da
antiga
Estação
Parada
http://www.estacoesferroviarias.com.br/p/paringlesa.htm
Inglesa.
Fonte:
Fig. 06. Foto de William Harding. Fragmento do vídeo “Parada Inglesa e Tucuruvi –
História
do
Bairro
de
São
Paulo/SP”
(3:10´)
Fonte:
https://www.youtube.com/watch?v=Lh6cQMNi3u0
Pretende-se sintetizar as análises dos processos de produção artística contemporânea, tendo
como objetivo produzir um recorte metodológico e experimental das manifestações artísticas
urbanas. Na terceira e última etapa de roteirização, pretende-se sintetizar as análises dos
processos de produção artística contemporânea, tendo como objetivo produzir um recorte
metodológico e experimental das manifestações artísticas urbanas. O roteiro da Intervenção
Urbana: a instalação passa a ser encarada como o reflexo (resultado) de um método de
produção artística, ou seja, um procedimento que busca a sensibilização da população para o
meio ambiente urbano por meio de diversas abordagens.
A Intervenção Urbana tem como referência visual projeções de luz. Foi elaborada uma série de
pesquisas na web sobre o tema, em diversas aplicações, nacionais e internacionais, de
referências sobre Intervenção Urbana. Intervenções urbanas são trabalhos que lidam com
“impermanência” material, efemeridade do fenômeno artístico, onde a própria cidade é
entendida como suporte para visualização dos trabalhos.
ARTEMIDIA ATRAENTE: Roteiro Para Instalação
O roteiro para instalação passou por um brainstorm, buscando diversas mídias e suportes para
a apropriação artística. Parte de uma elaboração com referências metodológicas por meio de
“insights performáticos” em Joseph Beuys e Marina Abramovic, passando por projetos de
Helio Oiticica (Galeria Cosmococas em Inhotim) até a materialidade em “Wire Sculptures” de
Alexander Calder e instalações de artistas como Anthony Gormley.
370
Fig. 07 e 08: Imagem da escultura em arame em processo de concepção (2,5m).
Foi elaborado um protótipo tipo WireFrame Man de 2,5m de altura, buscando criar uma
proposta de materialidade da obra (Figs. 07 e 08). O protótipo, batizado de FRED, visa auxiliar
na compreensão perceptiva do espaço por meio da serendipidade. O foco principal do estudo
é a projeção de luz e sombras no objeto, criando novas formas a serem apropriadas pelo
espaço.
O protótipo FRED foi apresentado na exposição L.O.T.E. 2015 (Lugar, Ocupação, Tempo,
Espaço) promovida no Instituto de Artes (UNESP) entre os dias 20/09/2015 a 15/10/2015.
(Figs. 09 a 12). A obra intitulada Palimpsesto (do Grego palin, “para trás”, e psen, “esfregar
suavemente”) pertencente ao Grupo Coletivo Artemidia Equivalente, como conceito, é
definida por camadas de interação dos artistas/fruidores nos diversos eventos de exposição.
371
Fig. 09 e 10: Imagem do FRED: escultura em arame e projeção de luz.
Fig. 11 e 12: Imagem do FRED na exposição L.O.T.E. 2015 (IA – UNESP)
A proposta de instalação na praça é um “start” de ação temporária, que se utiliza de cabos
tensionados, panos esticados e a figuração do protótipo FRED, com projeções de luz indireta
por meio de dois refletores LED com baterias próprias (Fig 13). Por meio de formas diagonais,
372
buscando um olhar diferenciado do expectador na praça a proposta visa uma intervenção e
enfatiza a ocupação da praça, tendo como base os estudos da modificação perceptiva da cor
(por meio da iluminação LED). Esta intervenção prevê a “visibilidade” vertical da projeção da
escultura de arame na praça.
Fig. 13: Imagem preliminar do projeto de implantação da Praça Nsa. Sra. dos Prazeres no
bairro de Parada Inglesa (SP).
O trabalho foi apresentado à Subprefeitura Santana-Tucuruvi, intitulado “Esculturas em
Arame” com o intuito da aprovação de intervenções na Praça Nsa. Sra. dos Prazeres (Parada
Inglesa), juntamente com as artesãs da feirinha “Encantos da Cantareira” que acontece
periodicamente aos domingos. A intervenção aconteceu dias 03 e 04 de outubro de 2015,
promovendo uma ação “start” que visa indicar por meio de um roteiro inicial a relação dos
usuários com a praça e um novo objeto inserido.
373
Fig. 14: Instalação do FRED da Praça Nsa. Sra. dos Prazeres - Parada Inglesa (SP) dia
03/10/2015.
Resultados
O roteiro de flanar no bairro de "Parada Inglesa" em processo WIP está aderido ao Grupo de
Pesquisa ARTEMÍDIA E VIDEOCLIP e pretende-se estudar as relações entre o observador e as
imagens públicas, ou seja, imagens mentais comuns de uma cidade, áreas consensuais que
possibilitam a interação de uma única realidade física. O Trabalho Equivalente se pauta numa
intervenção urbana que tem como intenção se configurar numa função didático-metodológica,
ou seja, a proposta tem por finalidade propor um método de sensibilização artística que
possibilite a criação de site specific buscando uma função social da arte.
O trabalho experimental se iniciou numa busca perceptiva do ambiente urbano, por meio de
imagens mentais e um protótipo de arame que possibilitaram consolidar uma proposta de
374
intervenção urbana. Os estudos perceptivos por meio de diversos suportes de modo
ARTEMIDIÁTICO estão possibilitando explorações interessantes, diversas interpretações e
abordagens do tema. As intervenções artísticas viabilizam a capacidade de catalisar e
promover novas dinâmicas, adequados à inserção espacial, contemplando os anseios e
expectativas da população.
Fig. 15: Instalação do FRED da Praça Nsa. Sra. dos Prazeres no bairro de Parada Inglesa
(SP).
Discussões
Os estudos perceptivos por meio de diversos suportes de modo ARTEMIDIÁTICO estão
possibilitando explorações interessantes, diversas interpretações e abordagens do tema. As
intervenções artísticas viabilizam a capacidade de catalisar e promover novas dinâmicas,
adequadas à inserção espacial, contemplando os anseios e expectativas da população.
A cidade, para Argan (1998), é entendida como Gestaltung, que em alemão significa em
formação (processo em construção) e não como Gestalt, ou seja, como uma forma definida.
Portanto, a forma da cidade é o resultado de um processo cujo ponto de partida não é uma
forma pré-estabelecida. Segundo esse autor, só a história como a vivência da sociedade e dos
indivíduos constitui a mutável imagem da cidade.
Analisar a cidade de São Paulo e a relação dos usuários com o espaço construído significa
compreender suas influências nas interações sociais, tendo como foco principal a utilização
dos espaços públicos, bem como a falta de identidade local promove a degradação (ou
subutilização) local. Portanto, é necessário o entendimento da memória do lugar, a
importância do estudo histórico para compreender o espaço urbano, além de um diagnóstico
atual das deficiências e indicando potencialidades a serem intervidas e como criar
estratégias/diretrizes de requalificação cultural para essas áreas.
Referências
375
ARGAN, G. C. Historia da arte como história da cidade. trad. Píer Luigi Cabra, 4ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
CULLEN, Gordon. Paisagem urbana. Lisboa: Edições 70, 1971.
DEL RIO, Vicente. Introdução ao desenho urbano no processo de planejamento. São Paulo:
Editora Pini, 1990.
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Lisboa: Edições 70, 1980.
WHITE, E. O Flaneur (2000) por meio do template sugerido pelo orientador.
Artigo
em
link:
http://www.outrostempos.uema.br/OJS/index.php/outros_tempos_uema/article/viewFile/45/
32;
Ver
em:
ims/index.php/CSO/article/viewFile/775/786;
https://www.metodista.br/revistas/revistas-
http://www.estacoesferroviarias.com.br/p/paringlesa.htm
Vídeo “Parada Inglesa e Tucuruvi – História do Bairro de São Paulo/SP”.
https://www.youtube.com/watch?v=Lh6cQMNi3u0
376
Fonte:
SESSÃO 3 - ARTIGOS LIVRES
Temas propostos em debates
Debates "Reflexões sobre audiovisual contemporâneo"
Mediação Luciano Vaz Ferreira Ramos
Alice Aquém Da Fantasia: O País Das Maravilhas Na Vida Real. Por Luciano
Vaz Ferreira Ramos
A CARNE E O OSSO DA FANTASIA
Tratado geralmente como um conto de fadas, no filme “Alice no País das Maravilhas” o diretor
Tim Burton transforma a narrativa fantástica do livro num discurso crítico sobre a história
econômica da Inglaterra. Se não fosse assim, por que motivo ele atribuiu à protagonista a
idade de 20 anos, colocando-a como herdeira de um poderoso empresário de comércio
internacional? E por que, na última cena, ela toma um navio mercante em direção à China, no
comando de uma missão de negócios? Essas surpresas fazem parte de uma complexa
estratégia que ele adotou para adaptar o livro do inglês Charles Dodgson (1832-1898),
publicado sob o pseudônimo de Lewis Carroll em 1865 – esse, o ano exato em que se iniciou
uma guerra de 4 anos entre a China a Grã Bretanha, que ficou conhecida como a Segunda
Guerra do Ópio. Falando nisso, o que era mesmo aquilo que a lagarta azul fumava de um
narguilé, sentado num cogumelo?
Transformada pelo roteiro em comerciante internacional, o que a jovem heroína interpretada
por Mia Wasikovska iria comprar e vender lá na China? Naquela época, os britânicos
377
importavam da China seda, porcelana e chá – bebida da qual a Rainha Vitória era dependente,
junto com a totalidade de seus súditos. Em meados do século XIX o ópio representava o grosso
das exportações britânicas para o Império chinês, porque era a mercadoria que mais
interessava aos consumidores no extremo oriente. Assim, quando a sua importação foi
proibida pela dinastia Qing, os britânicos declararam guerra. Produzida em alguns locais da
Índia e do Oriente Médio, que na época era ocupado pelo Império Otomano, a droga era
fornecida aos chineses por mercadores ingleses que a trocavam basicamente por seda,
porcelana e chá. Será por acaso que esses produtos dominam a cena de Alice, por meio do
Chapeleiro Louco e seus comensais?
No livro, o nome original do país com o qual a menina Alice sonhava todas as noites desde os 6
anos, aliás, era simplesmente “Under Ground” – instância social em que se situavam as
transações mercantis envolvendo o produto aspirado pela Lagarta Azul. Aliás ao fim da
história, a lagarta “morre” para se transformar em borboleta da mesma cor. Aí a simbologia se
completa: ao longo da história econômica, os ingleses trocam o comércio subterrâneo de
escravos e drogas por mercadorias mais nobres, como tecidos e outros produtos
manufaturados. Na versão de Tim Burton, antes de recusar o pedido de casamento feito a ela
pelo filho de um Lorde, a Alice de 20 anos cai na toca do Coelho e experimenta na carne as
mesmas aventuras com as quais sempre sonhara. É importante notar que, no filme, essa
queda se prolonga por vários minutos e, ao seu término, a personagem cai sentada sobre o
teto de uma sala, com os cabelos para cima. Ao olhar em torno, ela depara com um
candelabro em que as velas se acham com a chama virada para baixo e, aí sim, cai ao chão.
Isso indica que o fundo da toca coincide com um local antípoda à Europa, ou seja, o extremo
oriente
do
planeta,
onde
se
localiza
a
China.
Após o término da movimentada aventura transcorrida no mundo subterrâneo, ao sair do
buraco, ela encara o mundo real: recusa o pedido de casamento e chama o pai do noivo para
378
uma conversa privada. É quando ela propõe ao empresário sociedade num empreendimento
comercial no extremo oriente. A protagonista deve ter vislumbrado retalhos de uma realidade
futura por trás dos símbolos contidos naqueles sonhos recorrentes desde a infância. Numa
premonição, observou um confronto interno entre brancos e vermelhos. Brancos, como era
designado o próprio chá chinês obtido da camellia sinensis – o "chá branco". Vermelhos, como
é a bandeira da China e, que na tradição da marinha britânica, também é a cor da bandeira
que representa guerra. Há finalmente uma batalha na qual ela defende um dos lados: imitando
São Jorge, de espada e armadura, a moça chega a matar um dragão, numa referência explícita
à tradição inglesa. Aliás, os ocidentais venceram a Guerra do Ópio. Em resultado, a China abriu
50 de seus portos para o comércio com estrangeiros e a Ilha de Hong-Kong permaneceu sob o
domínio
inglês
até
1997.
Para a sua versão de Alice, Tim Burton e a roteirista Linda Woolverton desenvolveram duas
histórias, uma recheando a outra. Desta forma, no primeiro ato, vemos a história real de uma
menina rica que vai ser pedida em casamento por um aristocrata; no segundo, ela cai num
buraco e vive (ou sonha de novo com) toda aquela fantasia com que sempre sonhou; e o
terceiro ato conclui a história esboçada no primeiro, ou seja, ela volta para a realidade, recusa
o pedido de casamento e tem um insight que a leva a embarcar em viajem mercantil para a
China. Na cena, ela aparece usando uma gravata, numa clara alusão aos papéis reservados
para as mulheres no futuro. Tim Burton e os executivos da Disney podem ter decidido essa
linha para poder trabalhar com dois níveis de dramaturgia, fazendo com que o plano do
discurso realista valorize a narrativa fantástica transcorrida no País das Maravilhas. Foi, aliás, o
mesmo estratagema de Guillermo Del Toro em “O Labirinto do Fauno” (El Laberinto del Fauno,
2006).
379
Mas falta pensar sobre o que significa esse o Chapeleiro Louco, sempre com um dedal de
costura no dedo? Na passagem em que ele participa mais ativamente da trama, está criando e
costurando chapéus para a Rainha Vermelha que irá experimentá-los um a um. Naquela parte
do século XIX, ainda não existia a indústria de confecção e as roupas ainda não se
identificavam por meio de marcas para o mercado consumidor. E esse personagem vivido por
Johnny Depp talvez possa ser visto como o protótipo de um estilista de moda, um designer
excêntrico, sempre em conflito com a padronização. Talvez seja o símbolo da manufatura de
roupas e tecidos que se tornaria o carro chefe da industrialização inglesa e o núcleo de seu
comércio exterior. Mais do que a própria Alice, quem sabe o Chapeleiro seja a figura central
desta alegoria onírica sobre o colonialismo britânico, em busca das maravilhas da China. Em
suma, essa estrutura de roteiro é um enigma que Tim Burton submete ao público, equivalente
aos que o próprio Lewis Carrol inventava e com os quais os personagens do livro desafiavam
uns aos outros.
Luciano Ramos
(11)3237-2352
(11)99274-7336
culturafm.cmais.com.br/cinema-falado
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Cinema como perseguição. Por Diogo Vasconcelos Barros Cronemberger
Diogo Cronemberger, Columbia University, [email protected]
Em entrevista a David Brady publicada na New York Times Magazine em 29 de outubro de
1950, Alfred Hitchcock afirmou que a perseguição seria a expressão mais acabada do meio
cinematográfico, que talvez a própria forma dramática consistisse em uma perseguição. Os
estudos do pesquisador canadense André Gaudreault, editor de American Cinema, 1890-1909:
Themes and Variations, oferecem uma justaposição interessante: estaria nos primeiros filmes
de perseguição do início do século XX (1904-5) a transição entre o cinema de atrações e o
cinema narrativo.
Para Hitchcock, se tratava, em última instância, de alguém correndo em direção a um
objetivo, frequentemente com o movimento reativo de alguém fugindo de um perseguidor.
Vale ressaltar que, segundo ele, uma boa perseguição seria reveladora de traços de
personagens. De acordo com Gaudreault, os primeiros filmes de perseguição seriam narrações
de séries de atrações. Uma explicação se faz necessária: o “cinema de atrações”, termo
cunhado por Tom Gunning, caracteriza-se por seu caráter exibicionista, despertando e
satisfazendo a curiosidade visual do público, provocando espanto e admiração em vez de
suspense - um exemplo de atração é Electrocution of an Elephant (Edison, 1903), que mostra a
elefanta de circo Topsy sendo eletrocutada. A temporalidade desses filmes, que dominaram a
primeira década do cinema (considerando como início dessa história a primeira projeção
380
pública do cinematógrafo dos Lumière para um público pagante em 28 de dezembro de 1895),
é a da presença e da ausência, em oposição à configuração temporal de uma história, em que
eventos se desenrolam a partir de um enigma narrativo. Assim, os primeiros filmes de
perseguição seriam, para Gaudreault, séries de espetáculos, havendo relações temporais de
causa e efeito, os tableaux centrípetos começando a dar lugar aos planos centrífugos. Para
Gunning, forneciam um modelo para a causalidade, a linearidade e a montagem em
continuidade, como indica Flávia Cesarino Costa em O primeiro cinema.
Sem nos esquecermos de filmes de história anteriores, como os de Méliès e Porter, e
até mesmo de protótipos de perseguição, como Stop thief! (1901), de Williamson,
reconhecendo a multiplicidade de histórias do cinema e a dificuldade de delinearmos
fronteiras de gêneros com precisão, é importante destacar que, na visão de Gaudreault, os
filmes que considera os primeiros de perseguição evidenciam a interseção entre atração e
narrativa e, historicamente, a mudança de paradigma, com a interseção entre traços de
personagem e narrativa: sem motivação, não há perseguição. Dessa forma, começou a se
desenvolver o cinema narrativo-dramático. Em seu texto “Movies and the missing link(s)”, o
pesquisador canadense aponta um exemplo fundamental e influente de filme de perseguição:
Personal (1904). Com esse filme, segundo audaciosa reivindicação de Charles Musser, a
Biograph Company foi a primeira produtora nos Estados Unidos, talvez no mundo, a fazer a
mudança decisiva para filmes longos de ficção. Com os filmes de perseguição e o
estabelecimento de espaços fixos para a exibição, os “nickelodeons”, começou o processo de
institucionalização do cinema como arte (“respeitável”) e negócio tal qual conhecemos hoje
(ou de sua domesticação, como diria Costa), que cerca de uma década depois teria como
marco decisivo O nascimento de uma nação (1915), dirigido por Griffith.
Personal, com 371 pés (113 metros) e um tempo de projeção de seis a sete minutos - o
que é relevante para a mudança de paradigma verificada, conta a história de um francês
recém-chegado aos Estados Unidos que coloca um anúncio no jornal para encontrar uma
esposa. No local do encontro, uma mulher se aproxima, imediatamente seguida por inúmeras
outras pretendentes. Ele foge, até que, no final, uma delas o alcança e, empunhando uma
arma, o força a casar-se com ela. A estrutura é a mesma dos outros filmes de perseguição do
período (em sua maioria, cômicos): um tableau inicial mostra a ruptura da paz e termina com
uma fuga, os tableaux seguintes dão continuidade à ação e a perseguição chega ao fim quando
o perseguido é alcançado e punido. Conforme explica Gaudreault, não há, nesse tipo de filme,
rigidez na conexão entre os tableaux (ou planos, embora seja possível argumentar que estão
mais próximos de quadros independentes que de fragmentos, prevalecendo o paradigma da
autonomia do quadro). Assim, a ordem dos planos poderia até ser alterada, exceto nos casos
em que o número de perseguidores aumenta de um plano para outro. Parênteses: já sabemos
que o termo “plano” também poderia ser alterado, mas sua escolha não é fortuita. Em
Personal, a perseguição se dá em oito dessas unidades que mostram basicamente a mesma
ação: o homem correndo das mulheres. Considerando-se apenas o aspecto narrativo, oito é
um número excessivo. A mesma ideia é repetida, não há necessariamente desenvolvimento da
ação. Considerando-se as atrações, não são tão simples as questões que se impõem.
Os oito planos, além de possibilitarem o prolongamento da ação e mais detalhes,
oferecem uma série de espetáculos, próprios do modo de representação das atrações. O texto
381
de um boletim da Biograph é revelador nesse sentido, explicitando que uma senhorita usando
meias brancas atrai atenção levantando sua saia ao perseguir o francês. Ao longo dos planos,
mudam as locações (ruas, campos e até as proximidades de um rio) e as mulheres se
comportam de forma nada convencional. Fazem o mesmo caminho do homem, que corre em
direção à câmera e sai de quadro. As roupas são obstáculos para as mulheres e outros
obstáculos surgem a cada plano, como uma ponte e uma cerca que todos pulam ou
atravessam pelo meio. Há também um barranco íngreme. As mulheres pulam, de uma vez só
ou não, às vezes caindo, as saias levantadas pelo vento, revelando os tornozelos. No plano
seguinte, uma das mulheres cai e se torna o obstáculo, fazendo com que as outras tropecem.
Uma festa de prazer visual para os homens que assistiam a esse cinema atracional-narrativo.
Ao público, além do tênue fio de história, interessavam os espaços, a beleza, a excitação
presente no que é mostrado - “mostração” é outro conceito-chave, parte da teoria
narratológica de Gaudreault, também útil para a discussão do primeiro cinema porque se situa
em campo quase oposto ao da narração. Em suma, ao público interessava o movimento em si,
sua qualidade espetacular.
A constatação dessa ambivalência e desse interesse do público nos leva sem muito
esforço aos dias de hoje, em que são cruciais a mesma interseção entre narrativa e atração e o
interesse pelo espetacular. Nos arrasa-quarteirões atuais, há um predomínio da atração sobre
o fio narrativo, há um predomínio metafórico dos oito planos em que tudo, a não ser a
história, se movimenta. Citar exemplos nem é necessário, pois se trata de uma espécie de
regra hollywoodiana. Reina o espetáculo da ação sem limites dos super-heróis, das explosões
abundantes, dos cada vez mais sofisticados efeitos especiais. Continuando com as metáforas e
a ironia, outro paralelo é possível: poucas semanas depois do lançamento de Personal, Porter
lançou quase uma cópia exata, a refilmagem How a French Nobleman Got a Wife through the
New York Herald “Personal” Columns; hoje em dia, apesar da rígida regulamentação no que diz
respeito a direitos autorais (cuja semente foi lançada com o surgimento da figura do
distribuidor no período de transição abordado) e da impossibilidade de cópias (duplicadas ou
refilmadas) como no primeiro cinema (a não ser nos infinitos casos sancionados pela indústria,
os “remakes”, no de obras com licenciamento alternativo, em ambientes “underground” e na
internet), é crescente o número de “cópias”. Além da cópia de Porter, houve outras, até na
Europa. Voltemos ao espetáculo: é justamente para que os filmes viajem para a Europa e os
demais continentes e consigam “se pagar”, devido aos custos exorbitantes não mais
amortizados nos Estados Unidos, que Hollywood insiste nas atrações. Os diálogos e a narrativa
têm sua importância diminuída diante da ávida perseguição aos mercados internacionais. Vale
lembrar que, antes da Motion Picture Patents Company, companhias francesas, lideradas pela
Pathé, dominavam o mercado estadunidense quando nascia a indústria.
Voltemos a Hitchcock. Fazer paralelos entre o primeiro cinema e o audiovisual
contemporâneo não é novidade, mas a lição do mestre, aliada ao que está aqui exposto, pode
ser bastante útil: cinema como perseguição; ou melhor, cinema de personagens como
perseguição - o retorno ao primeiro cinema, bem como faria um retorno às vanguardas,
evidencia que o cinema como um todo é muito mais plural. A ideia de um cinema de
personagens como perseguição, da forma mais concreta à mais abstrata, pode ajudar a criação
e servir como um instrumento de análise e reflexão, mesmo em relação a filmes nada
hitchcockianos. Se na obra por ele dirigida é privilegiada a narrativa dramática, sempre
382
acompanhada do espetáculo, e hoje a regra hollywoodiana é o espetáculo hipertrofiado, a
ênfase no sensorial também se observa em muitos “filmes de arte” atuais, o espetacular
dando lugar ao sensível sutil, que também remete ao primeiro cinema, o que ocorre no
“cinema de fluxo”. Nele, os conflitos são em geral internos, mas é possível falar em
perseguição ou fuga, com outra intensidade, sem a mesma urgência ou clareza. Por fim, as
atrações nos ajudam a pensar as possibilidades do cinema, dentro e fora do que é institucional
e hegemônico. “Mad Max: Fury Road”, um dos mais importantes filmes (de perseguição) de
2015, seria um excelente estudo de caso.
Bibliografia:
COSTA, Flávia Cesarino. O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação. São Paulo:
Scritta Editorial, 1995.
GAUDREAULT, André (ed.). American Cinema, 1890-1909: Themes and Variations. New
Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2009.
GOTTLIEB, Sidney (ed.). Hitchcock on Hitchcock: Selected Writings and Interviews. Berkeley, CA:
University of California Press, 1995.
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Considerações acerca de livros simultâneos ao filme: 2001: Uma Odisseia no
Espaço. Por Camila Loricchio Veiga
Camila Loricchio Veiga – Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI), [email protected]
Introdução
2001: Uma Odisseia no Espaço é um filme de 1968 dirigido por Stanley Kubrick e com roteiro
do próprio Kubrick em colaboração com Arthur C. Clarke, autor de inúmeros livros de ficção
científica como O Fim da Infância. Durante a longa pesquisa e produção do filme, teve-se a
ideia de escrever um livro para dar suporte ao roteiro, esse escrito de forma simultânea. O
interessante ao se analisar o livro é a divergência de intenções de explicações que o filme quis
fornecer. Uma imagem permite manter o clima muito mais enigmático do que uma descrição
em palavras, nesse caso, palavras auxiliam, traduzem, permitem que considerações e
explicações sejam feitas de forma descritiva, já a imagem consegue mostrar e não mostrar ao
mesmo tempo: intenção de Kubrick ao fazer o filme. Essas diferenças de possibilidades que um
roteiro e um romance permitem são importantes para se entender como trabalhar as duas
linguagens.
2001: Uma Odisseia no Espaço é um dos casos onde o livro homônimo foi escrito
simultaneamente ao filme. Após assistir e ler ambos, foi intencionado traçar um paralelo etapa
a etapa pensando nas diferenças e intenções que cada um, Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke,
tiveram ao compor coletivamente as obras, para assim tentar compreender possibilidades de
cada linguagem (escrita e visual/auditiva).
A construção de uma odisseia
383
O ano era 1964, o homem só iria à Lua anos depois, em 1969, e nesse ano Stanley Kubrick vai
conversar com Arthur C. Clarke querendo fazer um “filme de ficção científica proverbial”
(AGEL, 1972, página 9), na época a tendência em filmes de ficção científica era a de roteiros
mais fracos e menos embasados na física realista, ainda mais sem levar em consideração as
implicações que isso teria em todos os campos da sociedade, sua relação com a filosofia e a
própria religião (AGEL, 1972).
Kubrick sempre teve uma relação com o cinema de inovação, seja na questão cinematográfica
ou de roteiros mais experimentais, seus trabalhos posteriores como Laranja Mecânica (1971) e
O Iluminado (1980) sempre tiveram detalhes que inovaram na construção e no modo de “fazer
filmes”, até seu filme anterior Dr. Strangelove (1964) (Dr. Fantástico, no Brasil), que tratava de
uma sátira política pesada na forma de humor negro, mostram que o diretor sempre vagou por
vários gêneros cinematográficos, seja ficção científica, terror ou até filmes melodramáticos
(CURTAS VILA DO CONDE, 2013).
Uma preocupação dos dois autores foi a de realmente criar um filme que não acabasse se
tornando obsoleto em alguns anos, considerando a corrida espacial que ainda estava em
progresso na época, e foi naquele momento que perceberam a necessidade de situar o filme
num futuro distante o suficiente para que isso não ocorresse, mas que não fosse tão distante
que impedisse a conexão com público de acontecer (AGEL, 1972).
Então, ao escrever a nossa trama nos primórdios da era espacial, Stanley e eu tínhamos um
problema de credibilidade; queríamos criar alguma coisa realista e plausível, que não se
tornasse obsoleta com os acontecimentos dos anos seguintes. E, embora nosso primeiro título
original fosse How the Solar System Was Won (…), o objetivo de Stanley era algo além de uma
simples história de exploração. Como ele gostava muito de me dizer: ‘O que eu quero é um
tema de grandeza mítica’. (CLARKE, 2013, p. 14)
A reunião de Kubrick e Clarke ocorreu em 22 de abril de 1964, e havia uma tensão da parte de
Clarke em relação ao livro no qual se basearia o filme, tanto que o escreveram durante dois
anos antes de começarem a filmagem, o que subverte a questão usual de se fazer filmes. A
maior parte é feita a partir de livros que já acabaram se tornando best sellers, outros filmes se
baseiam apenas nos próprios roteiros, ou por vezes há as novelizações, onde se escrevem
livros a partir de filmes (AGEL, 1972), novelizações essas que Clarke demonstra ter uma
aversão imensa:
mas por que escrever um romance, vocês podem se perguntar, quando nosso objetivo era
fazer um filme? É verdade que novelizações (ugh) são, na maioria das vezes, produzidas
depois; neste caso, Stanley tinha excelentes motivos para inverter o processo (CLARKE, 2013,
p. 17)
As intenções de Kubrick ao criar um romance inicialmente estavam nas possibilidades que isso
fornecia. Para ele o “fazer” roteiros de criar os scripts traziam uma limitação ao escritor,
tolhavam sua criatividade. Então, ao começar com um livro, a intenção era ampliar ao máximo
suas ideias, sem restrições de detalhamentos extremos que ocorrem nos scripts
cinematográficos, embora o que tenha realmente ocorrido seja que as mudanças de roteiro e
384
as mudanças no livro acabassem se intercalando, com pedaços de um sendo baseados em
versões prévias e vice-versa (AGEL, 1972).
Foi mais ou menos assim que funcionou, embora, mais para o final, o romance e o roteiro
estivessem sendo escritos simultaneamente, com sugestões e comentários em ambas as
direções.. Assim, reescrevi algumas partes depois de ver os copiões do filme - um método bem
caro de criação literária, do qual poucos outros autores puderam desfrutar, embora eu não
tenha certeza se 'desfrutar' seja a palavra certa. (CLARKE, 2013, p. 18)
Mesmo que o livro estivesse sendo escrito pelos dois, bem como o script, a autoria do livro
ficou apenas para Clarke (embora de acordo com o mesmo, fosse mais correto dizer que o livro
foi escrito por “Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick e o filme por Stanley Kubrick e Arthur C.
Clarke”)(AGEL, 1972). E mesmo antes da produção começar já havia repercussões grandes
referentes aos acontecimentos. As intenções das cenas e acontecimentos no filme e no livro
também eram divergentes, para Kubrick não se deveria dizer o que estava acontecendo, pois
geralmente os espectadores apenas “prestam atenção com os ouvidos e não com os olhos”,
ele cita em The Making of Kubrick’s 2001 que alguns que assistiram o filme foram convencidos
de que a reunião onde o Dr. Floyd comparece, na base Clavius, acontece em um planeta
chamado Clavius, embora as imagens demonstrem que o local é a Lua. O que terminou por
comprovar o ponto de Kubrick. 92
Um paralelo
Nessa seção intenciona-se mostrar quanto de dedicação foi destinada à cada parte no filme e
livro:
Lançamento do livro e filme: 1968
Diferença de 3 meses entre o lançamento do filme e o do livro homônimo
Livro com autoria de Arthur C. Clarke e filme com direção de Stanley Kubrick, roteiro com coautoria de ambos
Livro: 299 paginas
Filme: aprox. 2h30
Na tabela 1, pode-se visualizar um paralelo das partes dedicadas à cada meio, filme e livro.
Livro (em páginas)
Parte 1:Noite Primitiva
Filme (em minutos)
35 p.
Dawn of Men
15 min.
92 Recomenda-se para maior aprofundamento a leitura completa do The Making of Kubrick’s 2001, de 1972 por Arthur C. Clarke,
onde são explicadas várias questões sobre a produção técnica do filme e processo criativo. Que por limitação de espaço não
puderam ser adicionadas no presente artigo.
385
Parte 2: A.M.T.1
59 p.
(Sem título)
Parte 3: Entre Planetas
36 p.
Parte 4: Abismo
60 p.
Jupiter
Mission 67 min.
(Espécie de junção
das partes 3, 4 e 5)
Parte 5: As Luas de Saturno
43 p.
Parte 6: Através do Portal de 37 p.
Estrelas
(Sem título)
35 min.
18 min.
Tabela 1: Paralelo do tempo/páginas dedicado à cada parte do filme/livro, Fonte: Autor, 2015
No caso, apenas 2 títulos são expostos como tal durante a exibição do filme, Dawn of Men e
Jupiter Mission, por isso na Tabela 1 constam como “Sem título”.
Na próxima sessão se explana um pouco mais como as limitações em cada tipo de linguagem
modificaram a própria história.
Limitações e Variações
A primeira limitação foi quanto ao planeta para onde a Discovery rumava. No livro a missão é
ir até o planeta Saturno, mas por limitações de efeitos especiais (não conseguiam realizar os
anéis de Saturno com realismo convincente)93, isso acaba modificando todo o roteiro da nave,
que no livro tem seu encontro com Júpiter como manobra gravitacional e parte para uma das
luas de Saturno.
O próprio monólito foi uma modificação, o modo como se possibilita a descrição no livro e até
a entender o que as personagens pensam auxilia na compreensão de sua verdadeira natureza.
Uma modificação talvez também por impedimento de recursos, foi que na Parte 1 (Dawn of
Men no filme) o monólito é descrito como transparente, no filme aparecendo preto.
E muitas outras considerações conseguem ser tiradas do filme por meio da trilha sonora, a
primeira trilha sonora (à exceção da do título) começa com a descoberta do monólito pelos
Homens-Macaco, uma cacofonia que também é descrita no livro:
Era um som macabro, pois não tinha nada a ver com o Homem. Era tão solitário e sem sentido
quanto o murmúrio das ondas em uma praia, ou o estrondo distante do trovão além do
horizonte (CLARKE, 2013, p. 149)
No livro se compreende de outra forma todos os acontecimentos pelo leitor ter acesso “à
mente” dos homens-macaco.
Uma diferença grande também aparece na última parte, (parte 6 no livro e parte 4 no filme),
na cena do quarto. O quarto no livro é descrito como um quarto de hotel, e vemos Dave
experienciar todo o quarto, seus alimentos, suas possibilidades, numa linha temporal que se
julga linear.
93 Nesse caso foi uma excelente escolha, pois anos depois seria descoberto que os anéis não são sólidos e sim aglomerados de
rochas e gelo, fato que tornaria o filme datado (CLARKE, 2013).
386
No filme, temos uma sequência de Dave envelhecendo e passando por várias fases da vida a
cada corte. Como o fim de uma vida para o início em outra (ELIAS, 2011), culminando na cena
final com o bebê vendo a Terra.
Figura 5. Cena do quarto em 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968)
Fonte: Print da tela do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968).
Toda a experiência de Dave é vivida de forma diferente quando se lê o livro, compreendendo
toda a situação, entendendo o que ele sente e vê de seu próprio ponto de vista, do que
quando se assiste à sequência de imagens. As conclusões que se consegue chegar são bem
diferentes94.
Considerações Finais
Esse foi um recorte bem sucinto de vários paralelos que se pode traçar entre o livro e o filme
de 2001: Uma Odisseia no Espaço, são vários as outras considerações e paralelos que são
possíveis de serem feitos. A intenção desse artigo foi de mostrar como as possibilidades em
duas linguagens diferentes, a escrita e a visual/auditiva (por conta da trilha sonora),
promovem experiências bem diferentes e permitem que por vezes se chegue a conclusões
completamente opostas. Nem sempre uma imagem te permite chegar mais longe do que uma
descrição bem elaborada, ao mesmo tempo que uma imagem pode te permitir uma polissemia
enorme de significados, como é o caso de 2001: Uma Odisseia no Espaço. No filme precisa-se
pensar e tirar conclusões com muito mais frequência do que no livro, onde a intenção foi de
esclarecer todas as questões e pontos. A partir disso seria interessante traçar paralelos entre
outros casos similares para se compreender mais a fundo as possibilidades de se trabalhar com
cada uma dessas linguagens, inclusive seus limites, se é que existem.
Referências
AGEL, J. The Making of Kubrick's 2001. The New American Library, Inc. 1970.
94 Também recomenda-se a leitura do depoimento da Srta. Stackhouse que, com 17 anos, enviou uma carta ao Kubrick na época
do filme com suas considerações e opiniões, foi a que Kubrick considerou a melhor dentre todas que ele havia lido até o momento,
é possível de ser vista no The Making of Kubrick’s 2001 (1972) a partir da página 201.
387
CLARKE, A. C. 2001: Uma Odisseia no Espaço. São Paulo: Aleph, 2013.
ELIAS,
P.
R.
2001,
Uma
Odisseia
No
Espaço.
março
de
2011.
<http://webinsider.com.br/2011/03/06/2001-uma-odisseia-no-espaco/> acesso em 9 de
setembro de 2013
Curtas
Vila
do
Conde.
Sob
Influência
de
Kubrick
Artigo.
<http://www.curtas.pt/solar/index.php?menu=537&submenu=550> Acesso em 9 de setembro
de 2013
2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey). Dirigido e produzido por Stanley
Kubrick. EUA/Reino Unido: MGM, 1968. DVD. 142min.
______________________________________________________________
Cúmplices de uma alegoria: análise estilística do roteiro do primeiro capítulo da
telenovela do SBT. Por João Paulo Lopes de Meira Hergesel
João Paulo Hergesel95
Meu foco no doutorado é o SBT. Enquanto aluno do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, tenho como projeto de pesquisa principal a
análise estilística de programas desenvolvidos pelo Sistema Brasileiro de Televisão. Embora
meu objeto de estudo sejam os programas de auditório, formato que consagra a emissora,
escolhi abordar a telenovela Cúmplices de um Resgate como recorte para uma das disciplinas
eletivas, visto que o primeiro capítulo apresenta uma sequência inicial que recorre à narrativa
alegórica.
Escrita por Iris Abravanel – com colaboração de Carlos Marques, Fany Higuera, Grace Iwashita,
Gustavo Braga e Marcela Arantes e supervisão de texto de Rita Valente –, a telenovela, que
tem direção geral assinada Reinaldo Boury – em parceria com Luiz Antônio Piá, Mário Moraes,
Ricardo Mantoanelli e Roberto Menezes –, conta a história de irmãs gêmeas separadas no
nascimento. No ar desde 3 de agosto de 2015, trata-se de uma adaptação da novela mexicana
Cómplices al Rescate, de autoria de Rosy Ocampo.
Por se tratar de uma adaptação, elementos são adicionados e subtraídos do roteiro. Uma das
problemáticas encontradas por Iris Abravanel é que, na versão original, a trama se inicia com
as protagonistas já adolescentes, sem uma justificação introdutória de como as irmãs foram
separadas. Desejando inserir uma passagem explicativa, mas preocupada com o público-alvo –
considerando que poderia ser agressivo para crianças apresentar o sequestro de um bebê –,
Abravanel optou por fazer uso da alegoria.
95
Doutorando em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi (UAM) e bolsista da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PROSUP/Capes). Mestre em Comunicação e
Cultura e licenciado em Letras pela Universidade de Sorocaba (Uniso). Membro do Grupo de
Pesquisa em Narrativas Midiáticas (Uniso/CNPq). Contato: [email protected]. Orientador: Prof.
Dr. Rogério Ferraraz
388
Imergindo no mundo dos contos de fadas, Abravanel mostrou o sequestro da criança dentro
de um universo mágico, proporcionado por um livro que a personagem Dóris lê na biblioteca,
para depois estabelecer um diálogo com o que a diegese consideraria “vida real”. Coube a
mim, portanto, analisar a alegoria, enquanto figura de linguagem e fenômeno da Estilística,
como recurso condutor de uma narrativa infantojuvenil, movido pela inquietação em descobrir
como a alegoria deu conta de exibir, de forma sensível e afetiva, a separação das gêmeas
Isabela e Manuela, personagens vividas pela atriz Larissa Manoela.
Dentre alguns teóricos que utilizo nos meus trabalhos e que, de certa forma, estão umbilicados
a este início de análise são: Arlindo Machado, no que compete aos estudos televisivos; Silvia
Maria de Sousa, nas discussões acerca do SBT; e Nilce Sant’Anna Martins, nas abordagens
estilísticas. Com isso, procuro entender como a Estilística pode interferir na produção de
roteiros de telenovela. Para isso, portanto, elegeu-se como corpus a sequência inicial de 11
minutos da versão brasileira de Cúmplices de um Resgate.
Figura 1 – Personagens Manuela e Isabela, irmãs gêmeas interpretadas pela atriz Larissa
Manoela, em Cúmplices de um Resgate. No meio, o cachorro Manteiguinha. Fonte: SBT –
Divulgação.
A sequência começa com Dóris folheando um livro e, enquanto a câmera mergulha em uma
das ilustrações, que servirá de ambientação para a subdiegese (ou diegese da diegese), a
garota faz a narração: “Em um reino não muito distante...”. A Floresta Encantada, com direito
choupanas e palácios, entra no foco da narrativa, em possível alusão ao universo mágico
proporcionado pela leitura.
Nessa passagem, a abertura é marcada pela donzela plebeia que lamenta com a mãe a fuga do
marido, mas mostra-se esperançosa por seu retorno. Também é mostrada a falsa gravidez da
rainha má e pacto que o escudeiro paladino faz com o médico, nas trevas da floresta noturna,
em troca de um baú cheio de tesouros. O desmaio da donzela durante o parto das gêmeas e o
chamado de sua mãe, cerzideira, ao trabalho são elementos-chave para facilitar o roubo de
uma das crianças pelo vilão.
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No palácio, a rainha má aparenta estar descontente com o fato de o bebê ser do sexo
feminino, mas o rei demonstra empatia por aquela que acredita ser sua filha biológica. A
sequência se encerra congelando a imagem do rei abraçado com a princesa e a câmera se
move em travelling, reforçando que saiu de dentro do livro. O último frame se transforma em
ilustração, e Dóris encerra a sequência com a narração: “Orlando abraça a filha fortemente”.
Em seguida, seu irmão, Mateus, interrompe sua leitura para chamá-la.
É perceptível, na sequência do universo fantástico, que a heroína da narrativa foi retratada
como a camponesa ingênua, enquanto a anti-heroína foi figurativizada pela imagem da rainha
má. Configura-se, assim, a alegoria, isto é, uma espécie de metáfora continuada cuja
consistência encontra-se na substituição do chamado pensamento em causa por um outro
pensamento; este outro pensamento está ligado, numa relação de semelhança, ao primeiro
pensamento.
Em outras palavras e de uma maneira mais generalizada, a alegoria é a figura de linguagem
que se caracteriza por um conjunto de metáforas, imagens e comparações, formando uma
produção totalmente fantasiosa, sem vínculo explícito com a denotação. Diante disso, passei a
me perguntar como a crítica de televisão, talvez o meio mais amplificado de se ter uma
opinião geral acerca de um produto televisivo, enxergou esse aspecto estilístico.
Patrícia Kogut, do Jornal O Globo, escreveu96:
Cúmplices de um resgate” tem a seu favor a realização. No gênero, é bemdirigida e livre de efeitos toscos. Se o elenco conversa com flores
cenográficas e contracena com baús repletos de ouro é porque a história
pede. A novela lembra as montagens mais desprovidas de imaginação de
“Branca de Neve”, mas por escolha artística, não por acidente. É essa
mesma escolha que deverá acertar aquele público do SBT que acompanho
com gosto “Chiquitas” (sic), “Carrossel” e afins. Essa trama, como as outras,
equilibra bem a previsibilidade e as intrigas pueris.
Existe uma menção ao recurso estilístico e sua suposta utilização: “por escolha artística”. No
entanto, o roteiro é desconsiderado em sua relação com o sentido conotativo; a crítica foca-se
na direção e na composição de cena, bem como no espectador idealizado e como esse públicoalvo receberia a mensagem, muito mais do que os enlaces da trama.
Já Neuber Fischer, do Observatório da Televisão, resenha97:
Com qualidade ímpar em cenografia, figurino, maquiagem, iluminação e
sonoplastia, a nova novela adaptada por Iris Abravanel, guardadas as
devidas proporções e limitações, é digna de produções hollywoodianas.
Alegre, colorida, família, Cúmplices de Um Resgate [...] mistura a magia do
conto de fadas, com a simplicidade do interior e elementos típicos de um
96
KOGUT, Patrícia. ‘Cúmplices de um resgate’: estreia leva espectador a embarcar num conto de fadas.
O Globo (05/08/2015). Disponível em:
<http://kogut.oglobo.globo.com/noticias-datv/critica/noticia/2015/08/cumplices-de-um-resgate-estreia-leva-espectador-embarcar-num-conto-defadas.html>. Acesso em: 18 ago. 2015.
97
FISCHER, Neuber. Cúmplices de Um Resgate mostra expertise do SBT em novelas infantis.
Observatório
da
Televisão
(04/08/2015).
Disponível
em:
<http://observatoriodatelevisao.com.br/opiniao/2015/08/cumplices-de-um-resgate-mostra-expertisedo-sbt-em-novelas-infantis>. Acesso em: 18 ago. 2015.
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dramalhão como gêmeas separadas da família ao nascer, príncipe (mocinho
rico) e camponesa (mocinha pobre) que se apaixonam, bruxa (vilã e rica),
que faz de tudo para atrapalhar a vida dos bons, entre outros clichês, que
todo mundo adora.
É notável que a crítica exalta os aspectos positivos, muitas vezes beirando a hipérbole, o
exagero, como em “digna de produções hollywoodianas”. Também pode-se perceber que o
crítico menciona sutilmente a presença da alegoria, pelo menos ao estabelecer as relações
príncipe/mocinho rico, camponesa/mocinha pobre e bruxa/vilã e rica. Esse fenômeno
estilístico, entretanto, não é explorado; a presença dos efeitos especiais chama mais a atenção
do que as estratégias narratológicas.
Outros críticos como Nilson Xavier, Maurício Stycer, James Akel, Flávio Ricco e José Armando
Vanucci fazem abordagens comuns à produção audiovisual: direção, elenco, ângulos e
posicionamento, figurino, cenografia e até mesmo autoria. Contudo, o roteiro e suas
artimanhas deixam de ser destaque – ou até mesmo de ganhar uma nota de rodapé. Críticos
como Fabíola Reipert e Odair Braz Jr., comuns por estabelecerem comentários sobre
telenovelas, não escreveram nada sobre o respectivo programa.
Perante o exposto e do material analisado, foi possível chegar às seguintes considerações: em
geral, não se discute o que está além da mise-en-scène; apenas uma crítica menciona, de fato,
os aspectos estilísticos, sem se aprofundar no assunto, dando ao gênero – ou até mesmo à
história – relevância maior que à trama; não há apontamentos da novela como constructo
social, pois ela é praticamente tratada como obra per se; tampouco existe relação entre o
remake e a obra original, dando àquela o caráter de produto inédito, sem dependências ou até
mesmo recriação.
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Da tela para o livro. Por Graciene Silva de Siqueira
Graciene Silva de Siqueira98
Assim como livros, contos, peças teatrais, entre outros, podem inspirar um produto
audiovisual (para TV ou cinema), de igual forma um produto feito inicialmente para essas duas
mídias pode resultar em um livro, em processo denominado por Gérard Genette de
narrativização.
Ela ocorre com menos frequência, em comparação à adaptação literária, e para Gennete esse
pequeno interesse em narrativização se dá por ser comercialmente mais atraente levar uma
narrativa para o palco (ou para a tela) do que o contrário. Constatamos isso em breve pesquisa
sobre o tema, na qual identificamos pouco mais de uma dezena livros, produtos de
narrativização.
Entre os filmes que migraram das telas para as páginas impressas podemos citar Star Wars
(1977), Alien (1979), Resident Evil (2002), Branca de Neve e o caçador (2012), O Exterminador
98
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da UPM e bolsista do Programa RHInteriorização da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam).
391
do Futuro (1984), Os gonnies (1985) e A garota da capa vermelha (2011). Em terras brasileiras
temos O invasor (2002), de Marçal Aquino, pensado inicialmente para livro, mas que chegou
primeiramente às telas, para então depois ganhar versão impressa. São obras oriundas de
filmes que obtiveram bons resultados nos cinemas, o que nos leva a concluir que a
narrativização nesses casos é atraente comercialmente, ampliando os ganhos do produto
audiovisual, ao mesmo tempo em que fideliza os fãs.
São vários os trabalhos que analisam a adaptação da obra literária para o cinema, mas poucos
que fazem o caminho inverso, o que pode ser explicado até mesmo pelo pequeno número de
livros, como vimos, que originam do produto audiovisual.
Essa lacuna que impulsionou a elaboração do presente estudo, uma análise comparativa entre
o episódio Blood da série Arquivo X, exibida na década de 1990, e o livro originado do produto
audiovisual, escrito por Les Martin.
O seriado e o livro
O seriado Arquivo X, criado por Cris Carter, estreou na TV americana em 10 de
setembro de 1993. Exibida pela Fox, a série acompanha as investigações dos agentes do FBI
Fox Mulder e Dana Scully, que trabalham em um departamento responsável por casos
considerados estranhos, os X-Files. A série teve nove temporadas, totalizando 202 episódios,
com o último exibido em 2002. O sucesso da série rendeu dois filmes para o cinema: Arquivo
X: o filme (1998) e Arquivo X: Eu quero acreditar (2008) e dois spin-offs99 The lone Gunman
(2001) e Millenium (1996-1999). Na TV brasileira aberta, foi exibida pela Rede Record. A série
ganhou adaptação em HQs, de 1995 a 2009, pela Comics e Mythos.
O artigo analisa o terceiro episódio da segunda temporada da série, Blood, baseado em
história de Darin Morgan, com direção de David Nutter, e escrito por Glen Morgan e James
Wong. A história se passa na cidade de Franklin, Pensilvânia (EUA), onde algumas pessoas,
consideradas até então pacatas, tornam-se assassinos violentos após receberem mensagens
via aparelhos eletrônicos. Originalmente exibido em 1994, o episódio tem 45 minutos de
duração.
No Brasil, o livro escrito por Les Martins ganhou o título de Sangue e foi lançado no
Brasil em 1997 pela editora Mercuryo, responsável pela edição de outros episódios da série.
Entre os livros, há três com histórias originais que não existem em versão para a TV.
Análise comparativa
Norteamos nossa análise a partir dos estudos de Gérard Gennete sobre
hipertextualidade, relação de transformação ou imitação que um texto mantém em relação a
um texto anterior, abordada em sua obra Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Neste
trabalho, o texto anterior, denominado de hipotexto, é o episódio do seriado e o texto
derivado, chamado de hipertexto, o livro.
99
Série derivada de outra série.
392
Ao discorrer sobre como a hipertextualidade pode se manifestar no texto, Genette destaca as
transformações quantitativas – operações de redução e adição. E cada uma dessas apresenta
subdivisões. Neste estudo, identificamos o processo de adição, por meio da expansão.
“Digamos por caricatura que esse procedimento consiste em dobrar ou triplicar a extensão de
cada frase do hipotexto” (2010, p.107).
Na narrativização de Blood, percebemos essa extensão em relação à história dos personagens,
cujas motivações são mais desenvolvidas, em comparação ao episódio. O livro traz ainda mais
informações sobre os personagens, dando a eles um passado, como no caso do personagem
Ed Funsch. Na série o que sabemos sobre ele é que trabalha no Serviço Postal Americano,
acabou de ser despedido, tem alucinações e pavor de sangue. No livro, descobrimos que ele
acha o trabalho extremamente aborrecido (o que não fica claro na série) e temos uma maior
descrição do seu estado mental, sua perturbação diante das alucinações. Houve também
ampliação dos diálogos, que passam a ser usados para acrescentar informações que na série
eram apenas mostradas ou descritas por meio das imagens.
Les Martin usou como base o texto do roteiro, que tende a ser enxuto, a não entrar em
explicações, como observado por Syd Field, consultor de roteiros em Hollywood, em sua obra,
Manual do Roteiro. “O roteiro é uma história contada em imagens, diálogos e descrições,
localizada no contexto da estrutura dramática” (2001, p.2). Como sua principal função é contar
uma história, o que vai prevalecer no roteiro são informações visuais. Assim, pensamentos e
intenções de personagens são indicadas em suas ações e nos diálogos, enquanto no livro isso
ocorre na mente dos personagens, revelados por um narrador.
A ordem cronológica da história do episódio manteve-se no livro, assim como quase 100% do
conteúdo – o mesmo enredo, personagens e situações. O escritor buscou ainda manter a
linguagem própria do meio audiovisual. No episódio, uma cena onde Mulder analisa os
arquivos de um assassino contém inserções de imagens de Scully lendo o relatório escrito por
Mulder, numa montagem paralela100. As imagens se alternam, o que o escritor também faz no
livro, intercalando trechos de Mulder escrevendo e Scully lendo.
Uma mudança substancial no episódio é o corte de uma cena onde Mulder, em sua
corrida matinal, percebe um caminhão no bairro lançando inseticidas na grama. No livro,
Mulder apenas refere-se a ela, como algo passado, mas que não é exposto na narrativa.
Aparentemente não houve perda para a compreensão da história no livro, mas o fato é que na
série trata-se de cena importante, pois mostra uma das características principais de Mulder,
sua capacidade de observação. É a partir desse momento que ele consegue solucionar o caso.
A cena também é visualmente interessante. Ao se aproximar do lugar onde foi lançado o
inseticida, Mulder percebe vários insetos mortos e pega um deles entre os dedos. A seguir
temos um plano detalhe101 da mosca na mão de Mulder. A câmera então se afasta em um
zoom out102 e mostra que a mosca não está mais na mão de Mulder, mas na de um cientista,
100
Alternância entre ações simultâneas
Plano próximo que mostra parte do corpo do personagem ou apenas um objeto
102
Movimento de câmera que afasta imagem antes próxima
101
393
amigo dele. O plano detalhe permitiu a mudança de ambiente, da calçada ao ar livre para um
laboratório, ondem tentam descobrir a causa da morte do inseto.
O texto também tem suas vantagens, assim como a imagem. Em uma cena do episódio em que
o xerife Spencer está ao telefone conversando sobre os resultados dos exames de sangue
feitos com a população, a câmera mostra o ambiente em um movimento panorâmico,
aproxima-se do xerife que está ao telefone (ouvimos sua conversa) e depois acompanha-o até
um quadro onde estão Mulder e Scully. No livro, ainda que não consiga expressar essa
experiência visual, obtemos informações mais detalhadas do ambiente, do material de
investigação que está anexado ao quadro e das ações da polícia na tentativa de encontrar um
possível suspeito.
Por fim, no livro ocorre uma mudança na sequência final, que não se trata de redução ou
adição, mas de dar um novo sentido ao enredo. No seriado, após a polícia levar um atirador
que tentara matar várias pessoas durante coleta de sangue, Mulder decide ligar para Scully e
antes de conseguir falar com ela, lê no visor do celular as palavras “Tudo acabado” e “Adeus”,
a exemplo do que ocorria com os personagens que recebiam mensagens por meio de
aparelhos eletrônicos com ordens para matar. Enquanto Mulder tenta compreender o que
está acontecendo, ouvimos a voz de Scully ao telefone, sem obter resposta de Mulder. A tela
escurece, ouvimos Scully chamando por Mulder, em tom preocupado, e entram os créditos,
encerrando o episódio.
No livro, Scully está com Mulder. Enquanto ela decide ir para o hospital com o Xerife, Mulder
fica na cena do crime. Ele pega o celular e digita um número (no livro não especifica para
quem) quando vê no visor os dizeres “Tudo acabado” e “Adeus”. Mulder apenas olha para o
visor e responde “Isso é o que vamos ver”.
Em nossa opinião, o final do episódio televisivo é mais coerente com o programa, pois suscita
vários desfechos: Afinal, Mulder está sofrendo alucinações? Foi severamente atingido pelo gás
tóxico? Ele também vai se tornar um assassino, como as demais vítimas das mensagens
subliminares? Mistério esse que não se sustenta no livro.
Considerações
Grande parte do conteúdo do livro é o que se encontra na série e as mudanças feitas
tiveram como objetivo dar maior densidade aos personagens e aos eventos. Do ponto de vista
do texto, este ficou ao roteiro, com alguns acréscimos, como observado por Gérard Genette, e
cujo objetivo foi triplicar a extensão do texto já existente.
Por outro lado, no processo de narrativização percebe-se que não houve preocupação
com a construção de um texto mais elaborado. Podemos atribuir o texto mais simples do livro
ao fato dele ter sido baseado no roteiro, cujo conteúdo tem como propósito, principalmente,
fazer indicações técnicas aos realizadores do filme, sobre como deve ser montado o cenário,
qual o figurino e quais as ações (e expressões) dos personagens.
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Cinema, uma arte (só) do diretor? - Evidências de Autoria no Roteiro
Cinematográfico
Márcio Henrique Melo de Andrade, Doutorando em Comunicação (UERJ)
Este artigo almeja problematizar as noções de autoria na criação cinematográfica, explicitando
a figura do roteirista e as recorrências temáticas e estéticas ao longo de suas obras. A maioria
dos estudos e publicações sobre autoria no cinema envolvem o diretor, como a politique des
auteurs dos críticos da Cahiers du Cinèma. Contudo, autores como Sarris, Buscombe, Wollen,
Heath e Tredge, por exemplo, desconstroem essa ideia e contextualizam a diversidade de
autorias que compõem a narrativa e o discurso fílmico. A partir da minha experiência como
roteirista, além de acompanhar a carreira de roteiristas (como Kaufman, Wilder, Allen, Sorkin
etc. que possuem especificidades autorais), percebo que alguns escritores exibem evidências
de autoria a partir de três aspectos – Imaginário, Narrativa e Linguagem, que podem ser
destrinchados. Ao debater e traçar indicadores destas evidências, pretende-se imaginar
métodos de criação e formação e valorizar o status do roteirista nos estudos de autoria.
Introdução
Movie opens. Charlie Kaufman, fat, old, bald, paces. His voice-over carpets
the scene. "I am old. I am fat."
Na metade do filme Adaptação, roteirizado por Charlie Kaufman e dirigido por Spike Jonze,
vemos o sofrido Charlie carregando a cruz de escrever um roteiro inventivo para adaptar um
livro “sem narrativa”: O Ladrão de Orquídeas, de Susan Orlean. E, sem aviso, percebemos que
se trata do processo criativo do filme que já estávamos assistindo uma hora antes. Nesse
ourobouros que desvela véus de autoria que confunde ao mesmo tempo que inspira, Charlie
Kaufman, literalmente, expõe a si mesmo e os dilemas da criação.
Corta para. Uma folha em branco. Uma máquina de escrever. Um sujeito com uma angústia
atroz. Roteiristas, escritores, dramaturgos em crise são personagens constantes na história do
cinema: Barton Fink, Tiros na Broadway, Garotos Incríveis e outros tantos títulos versam sobre
as distintas maneiras de atravessar o exercício da criação, complexo por natureza. Com minha
experiência no exercício do roteirismo, já atravessei várias delas e de diversas formas, com
soluções dignas (e outras nem tanto). Muitas estas representações exibem o roteirista como
figura arredia, pouco afeita ao contato pessoal e que possui certa integridade artística ao não
se “vender para a indústria”, mas sabemos que existem roteiristas de todos os tipos e
personalidades. Focando neste aspecto da integridade artística, acredito que, mais do que ser
um sujeito que tenta resistir o máximo que pode às mudanças que ferem seus princípios e
modus operandi, os roteiristas (ou alguns deles, ao menos) serpenteiam brechas para
evidenciar ao mundo suas ideias mais particulares.
Contudo, quando se estuda o exercício da autoria no cinema, a figura do diretor termina sendo
valorizada (em demasia, talvez?), ignorando-se as criações que envolvem a centena de
profissionais que adentram o processo, como compositores, diretores de arte, figurinistas,
395
designers de som e de créditos etc. e, no meio deles, os roteiristas. No início da Era de Ouro de
Hollywood, os roteiristas eram considerados verdadeiros autores dos filmes, quando alguns
deles, como Billy Wilder, por exemplo, possuíam imenso prestígio junto aos estúdios. Porém,
com a ascensão da politique des auteurs, que, claro, teve amplas contribuições na valorização
do status artístico do cinema e da figura do diretor, os roteiristas terminaram perdendo este
posto.
Corta para. Greve de roteiristas nos EUA. Organizada pela Writers Guild of America (WGA),
começou no dia 5 de novembro de 2007 e findou em 12 de fevereiro de 2008, gerando quedas
de audiência, prejuízos financeiros e paralisação de produções em cinema, rádio e televisão.
Com esta interrupção nas atividades, tornou-se perceptível a importância dos roteiristas no
processo criativo da maquinaria cinematográfica estadunidense, gerando favorecimento no
lucro dos produtos concebidos com as ideias de seus autores. Mas que, conexões podemos ver
entre a autoria e as exigências sindicais? Valorização das contribuições seminais de uma
categoria e de um status artístico de que muitos diretores gozam, mas poucos roteiristas
possuem. Quantas pessoas conhecem nomes como Steven Spielberg, Christopher Nolan e
David Fincher e desconhecem Aaron Sorkin, Tina Fey ou Guillermo Arriaga?
A política (ou teoria, para alguns) do autor termina negligenciando uma das figuras mais
relevantes para a construção de histórias na arte cinematográfica e, através deste artigo,
pretende-se iniciar, a partir de algumas elucubrações a respeito do que vem caracterizando
minha análise sobre meu próprio processo criativo, do que poderia envolver o que,
provisoriamente, intitulo Evidências de Autoria no Roteiro Cinematográfico. Os indicadores
que compõem estas evidências serão destrinchados posteriormente, a partir das temáticas e
critérios que vêm sendo estudados sobre autoria no cinema, aliando a especificidades que
envolvem o ofício do roteirismo.
Autoria no Cinema
Uma diversidade de teóricos já escreveu sobre a arte da autoria (no cinema e em outras artes),
tentando compreender como acontece a gestação de uma obra, os métodos percorridos e os
significados mais amplos que se desenhavam ao longo de suas carreiras.
Se os cineastas e críticos da Cahiers du Cinéma Truffaut, Godard, Jacques Rivette e André Bazin
estavam interessados na valorização do cinema como arte e da figura do diretor, teóricos
como Bazin, Caughie, Sarris, Buscombe, Tredge e Heath criticavam fortemente os textos
provenientes da politique des auteurs por seus critérios de caráter valorativo e, às vezes,
tendencioso, assim problematizavam não somente o fato de ser uma criação de organização
individual, mas com colaborações coletivas, mas também consideram um conjunto de forças
que criam as condições para que esse artista individual emerja.
Ampliando esta lógica mais estruturalista, que tentava perceber uma linha mestra que guiava
as obras de diretores como Hitchcock, Renoir, Polanski e outros tantos, alguns estudos
cinematográficos estão oferecendo olhares mais diversos e complexos sobre a questão da
autoria. Contudo, o que se procura neste artigo é tentar compreender como autor e sua obra
se criam ao mesmo tempo, como os roteiristas concebem, ressignificam e recriam imaginários,
narrativas e linguagens no processo criativo. Não se procura pressupor que o autor é uma
396
instância externa, etérea e una, mas solidificar a ideia de que esse atravessa vivências externas
ao processo criativo que nele influenciam. Para identificar estas evidências, mostra-se
necessário destrinchá-las em indicadores.
Evidências de Autoria no Roteiro Cinematográfico
A partir da experiência como roteirista e de minhas reflexões sobre como me envolvia no
processo criativo, delineei três indicadores destas chamadas Evidências de Autoria no Roteiro
Cinematográfico: Imaginário, Narrativa e Linguagem, que se encontram segregados por pura
didática, mas que se mostram imbricados enquanto o autor concebe sua obra.
Quanto ao que chamo de Imaginário, pode ser definido como conteúdo cultural, os modos de
ver e existir do autor, as histórias que já ouviu e que gostaria de contar, os personagens que
gostaria de conceber, as mensagens que gostaria de comunicar. De início, denominava este
indicador como Repertório Cultural, mas, a fim de trazer uma percepção menos técnica,
pragmática e até limitada do ofício do roteirista, pareceu-me interessante e amplo lidar com a
ideia de imaginário. Se repertório parece se conectar mais à diversidade de produtos e
experiências com que entramos em contato durante a vida – livros, filmes, programas de
televisão, programas radiofônicos, expressões do dia a dia, experiências de vida, conversas
com pessoas de diversas origens e áreas etc. –, a ideia de imaginário me permite refletir sobre
ideias, sentimentos, narrativas, construções ideológicas etc. que envolvem as práticas
cotidianas e como essas podem ser distorcidas nas ficções que criamos.
Quanto à narrativa, apesar de partir do clássico modelo de Introdução, Desenvolvimento e
Conclusão e suas variáveis, considera-se narrativa os modos de organização da experiência,
independente de sua lógica se der de forma linear, não-linear, experimental etc. Considera-se
essencial neste aspecto os modos de organização dos eventos que compõem a narrativa do
autor, como as ações dos personagens (ou modos de subjetivação ou corpos-situação para
roteiristas que não trabalham com personas como as conhecemos), tempo, ambiente etc..
Além disso, neste indicador, mostra-se necessário compreender como os autores concebem o
vínculo com seu público: se por uma identificação de linha mais aristotélica ou de
distanciamento mais épico, digamos assim.
Quanto à linguagem, inicialmente, considera-se os modos de articulação dos eventos através
das palavras e suas conexões com as imagens descritas nas rubricas do roteiro. Se nos veículos
de comunicação audiovisual (programas de TV, rádio etc.), a linguagem mostra-se essencial
para que uma mensagem seja compreendida pelo público, investe-se, muitas vezes, em uma
linguagem simples, coloquial e direta – o que, muitas vezes, “despersonaliza” a forma que se
deseja trazer à narrativa e ao imaginário pretendidos. Mas, mesmo diante destas pressões,
como os roteiristas desenvolvem, através das palavras, as ações dos personagens e os modos
como estes são percebidos pelo seu público?
Estes três aspectos (ainda inicialmente delineados) foram conjeturados a partir da minha
própria experiência ao refletir sobre meu processo de criação, mas, a partir do diálogo com
outros roteiristas e teóricos relacionados a cinema, é possível destrinchar estes e outros
397
aspectos que não foram contemplados. Ao conceber estes aspectos, pretendo me distanciar
de fórmulas que ditem o “sucesso para ser um autor (de verdade)” ou “descobrindo a autoria
de (Fulano de Tal) em três passos”, mas investir na reflexão particular dos próprios roteiristas
sobre os aspectos que atravessam suas próprias obras e como elas refletem suas próprias
vivências, questões e prospecções de existência – e, assim, criar com mais consciência e
inconsciência. Além disso, acredito que, ao compreender alguns dos aspectos que envolvem o
autorismo no ofício do roteirista, é possível dar os primeiros passos rumo à uma maior
valorização do seu espaço de criação dentro de uma indústria e de uma arte coletiva e
colaborativa. Se Kaufman, Mantovani, Allen e Lacerda demarcaram, cada um à sua maneira,
seu território, faz sentido acreditar que seja possível outros roteiristas encontrarem o seu a
partir da reflexão sobre o que fazem.
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Debate: "Meios e fronteiras da concepção audiovisual"
Mediação José Carlos Sibila
Projeção mapeada em cena - Estudo de caso. Por Ricardo Botini Salgado
Apresentaremos um roteiro de concepção e produção de uma projeção de vídeo mapeada,
como recurso cenográfico, para a peça de teatro intitulada "Quem disse que Inês é Morta?!".
Um monólogo que aborda a vida da dama da corte portuguesa Inês de Castro, decaptada em
1355.
No roteiro da peça, a história de Inês de Castro é contada por uma narrativa em off (parte
ilustrada pelas projeções) e comentada por diferentes personagens que levantam temas
relacionados a poder, amor, justiça, traição , etc.
Nos trechos em que ocorrem as narrativas sobre a tragédia do amor de Inês, a ideia é que,
como numa espécie de fantasmagoria, a projeção traga a presença de Inês e de seu universo
de forma imaterial.
Mais do que simplesmente fazer uma projeção "quadrada" sobre o palco, o esforço foi sempre
buscar uma interação com elementos cênicos reais presentes em cena (trono e esferas) com
uso de técnicas de mapeamaneto de vídeo com o software Modul8.
Trabalhos do Artista/Diretor norte-americanoTony Oursler serviram como referencial na
construção de imagens e projeções mapeadas para o espetáculo. Imagens de olhos e bocas
isolados, separados de suas respectivas faces são projetadas em superfícies esféricas.
Produção e Projeção de vídeo
A produção audiovisual foi impactada nos anos 1960 com a disponibilização no mercado de
câmeras de vídeo. Recursos até então dispendiosos e exclusivos de emissoras de TV, como a
gravação em fita e imagem em tempo real, fizeram com que artistas de vanguarda passassem
a ter o vídeo como um suporte de trabalho. Obras de Nam June Paik, junto ao grupo Fluxus,
são referências históricas desse processo.
Ao mesmo tempo que presente no cotidiano das pessoas por meio da transmissão televisiva, a
imaterialidade do vídeo desafia e convida o fazer artístico a um diálogo constante. Para
Philippe Dubois, esta é a situação do video "...que se movimenta assim entre a ordem da arte e
da comunicação, entre a esfera artística e a midiática - dois universos
a priori antagônicos."(DUBOIS, 2004)
O salto tecnológico ocorrido pela revolução microeletrônica em meados dos anos 1970 trouxe,
como consequência, um barateamento de equipamentos como projetores digitais. E a partir
disso, é percebida a sua crescente utilização em shows e apresentações de teatro e dança
como um recurso cenográfico.
399
Por conta da forma de sua apresentação e com um tipo de linguagem que possui mais traços
comuns à Videoarte e às Artes do Vídeo do que propriamente ao discurso cinematográfico
tradicional, este tipo de manifestação, ainda sim, percorre processos pertencentes ao fazer
audiovisual, como roteirização (concepção), produção (realização) e exibição (projeção).
Nas palavras do pesquisador Marcus Bastos, " Com a diversificação de formatos dos diferentes
ciclos tecnológicos que se sucedem, os entendimentos mais heterogêneos, que percebem a
cultura audiovisual em sua pluralidade e cruzamento de circuitos revelam-se mais adequados
que aquele que desconsideram a hibridez dos processos em curso, ao defender a estabilidade
de formatos ou gêneros."(BASTOS, 2015)
Processo de trabalho
O intento nesta apresentação é abordar mais incisivamente o processo de trabalho e o
instrumental utilizado em cada uma das 3 etapas citadas acima; concepção, realização e
projeção.
- Concepção (Roteirização): Nesta fase, o roteiro da peça teatral é utilizado como
referência do que deve ser produzido e quais serão as características e propriedades destas
imagens. As narrativas em off são destacadas e a partir de cada trecho é
imaginada uma situação ou imagem que trace um paralelo com a ideia principal do texto.
- Realização (Produção): Esta etapa do processo é a que mais se aproxima das atividades da
construção do audiovisual tradicional. Envolve gravação de personagens em estúdio (com
fundo verde para posterior recorte em croma key)para a construção do espectro de Inês de
Castro. Após a gravação em estúdio, são utilizados softwares de edição de vídeo (Final Cut) e
videografismo (After Effects).
- Projeção (Exibição): Esta etapa é o próprio mapeamento do vídeo e sua respectiva execução
na forma de projeção. O software utilizado foi o Modul8.
Mais do que cimentar regras e definir padrões, o intuito desta apresentação é criar um debate
sobre métodos e processos de trabalho com a materialidade do audiovisual e a troca de
experiências dentro deste contexto.
Referências Bibliográficas:
BASTOS, Marcos. Audiovisual ao Vivo. Feedbacks entre os Cinemas Experimentais, as
Artes do Vídeo e o Audiovisual Contemporâneo. Revista ECO PÓS - Arte, Tecnologia e Medição.
Vol. 18. N.1.Rio de Janeiro - UFRJ, 2015.
DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosacnaify, 2004.
400
SESSÃO 4 - PALESTRAS
Mitologia no cinema contemporâneo: Superman, Batman e Star Wars
Carlos Pereira Gonçalves
RESUMO
O artigo pretende discutir sobre a permanência de comportamentos mitológicos no imaginário
simbólico das sociedades contemporâneas refletidos no cinema. Para tanto aborda
inicialmente a definição de mito e sua inserção nas culturas tradicionais e modernas; as
estruturas, arquétipos e funções principais com base em autores como C. G. Jung, M. Eliade e
J. Campbell e G. Bachelard. Para análise do material audiovisual foram interpretados filmes dos
gêneros aventura, fantasia e ficção científica que iniciaram franquias a partir dos anos 1970,
com o objetivo de delinear modelos de herói de características míticas a partir do cinema
popular-massivo. Os longas-metragens selecionados foram - Superman (1978) e Batman
(1989), cujos enredos foram baseados nas histórias em quadrinhos da editora norte-americana
DC Comics, bem como a primeira trilogia do épico espacial - Star Wars (1977-80-83), criado por
George Lucas.
PALAVRAS-CHAVE:
Mitologia. Cinema contemporâneo. Super-heróis. Gêneros ficcionais.
A JORNADA MITOLÓGICA
Nas sociedades tradicionais os mitos refletem o modo como homens e mulheres
pensam/sentem o mundo ao redor e a si próprio. São observados na narrativa oral por meio
de histórias imaginárias compostas de seres extraordinários em tramas de encanto e magia,
uso de objetos simbólicos e experiência de ritos coletivos. Inserem-se no cotidiano dos povos
primitivos e projetam anseios sociais e arquétipos do inconsciente coletivo que dizem respeito
aos sentidos da vida, a noção do tempo, os ciclos da existência (infância, maturidade e
velhice), a origem da comunidade, os mistérios da natureza e a morte.
Edgar Morin (2009), em sua teoria da complexidade, afirma que tanto as
culturas
primitivas como as modernas possuem dois eixos fundamentais de
dinâmica e
estruturação do pensamento: o simbólico/mitológico/mágico e o empírico/técnico/racional. Se
nas sociedades tradicionais o mito ou a religião são modelares na formação das mentalidades
e movo de vida, a outra esfera é também essencial para a sobrevivência destas. Cabe
considerar que os povos primitivos constituíram um sofisticado conhecimento técnico sobre a
natureza.
Em relação às sociedades contemporâneas, a razão e a ciência são os dínamos mais aparentes
da cultura e economia, mas o outro lado do duplo, que define e modela a natureza humana
desde os tempos pré-históricos, o simbólico/mitológico/mágico, também se sedimenta a
despeito de sua condição subterrânea, camuflada ou metafórica, agindo tanto na conservação
como na transformação do imaginário social.
401
A arte tem uma função especial para a permanência do mito no mundo moderno segundo
Joseph Campbell (2002). O que ele chama de mitologia criativa. O autor discorre sobre certos
artistas, como Thomas Mann e James Joyce, que escolheram trilhar um caminho criativo
autêntico, que se situa, segundo sua própria opinião, no sentido contrário à ordem autoritária
das religiões. Ao reforçar a importância do papel espiritual que a arte desempenha nas
sociedades contemporâneas, afirma: os poetas de hoje são os profetas de ontem (CAMPBELL,
2002, p.117). A respeito da presença deles no cinema o autor comenta no conhecido livro O
poder do mito que a narrativa elaborada em Star Wars por George Lucas havia imprimido “a
mais nova e poderosa rotação à história clássica do herói” (CAMPBELL, 1990, p.214).
Por sua vez, o notável mitólogo Mircea Eliade (1972), numa análise a respeito do mito e seu
significado para a produção artística do século XX, notadamente em relação à produção
popular-massiva, salienta que o romance e as histórias em quadrinhos vão retomar muito das
questões ontológicas imersas nas narrativas mitológicas arcaicas. Em seu entender, a “prosa
narrativa, especialmente o romance, tomou, nas sociedades modernas, o lugar ocupado pela
recitação dos mitos e dos contos nas sociedades tradicionais e populares” (ELIADE, 1972,
p.163).
No mesmo sentido de conexões, Morin (1967, 1997) observa no cinema o poder da magia da
imagem e sustenta que este construiu um novo Olimpo imaginário habitado por deusesestrelas, atores e atrizes carismáticos (Chaplin, James Dean, Marilyn Monroe) e que
representam um heroísmo moderno de natureza mítica. Os grandes atletas do esporte, que se
juntam às estrelas de cinema e aos astros musicais, são exemplos de um universo mitológico
latente, cujas façanhas extraordinárias se ampliam com o desejo de busca de referências
heroicas acomodadas nos arquétipos do inconsciente coletivo conforme concepção do
fundador da psicologia analítica moderna Carl Gustav Jung (2000).
Além disso, observa-se, em pleno século XXI, que as grandes religiões do planeta – cristã,
mulçumana, budista e hinduísta –, todas de base mitológica, continuam a sensibilizar o
homem no caminho da espiritualidade, e seus adeptos são ainda muito numerosos. Também
produzem suas marcas profundas nos valores de comportamento e na identidade social não só
nos grupos religiosos aos quais pertencem, mas na regulação normativa mais geral, bem como
no imaginário contemporâneo (produção/recepção). Há um intenso fluxo simbólico entre
tradição e modernidade. Exemplo disso pode ser notado na filmografia em análise. Adiante
será demonstrado como a mitologia judaico-cristã molda as tramas narrativas de Superman
(1978), Batman (1989) e Star Wars (1977).
O ARQUÉTIPO CRIANÇA E A IMAGEM DE SALVADOR EM SUPERMAN
O personagem Superman (Super-Homem) foi criado por Joe Shuster e Jerry Siegel em 1938
para a revista mensal Action Comics. Um ano depois Bob Kane cria Batman (Homem-Morcego)
para a revista Dective Comics, ambas pertencentes à editora norte-americana DC Comics
(GOIDANICH; KLEINERT, 2014). De imediato fizeram um grande sucesso e estão em posição de
destaque no universo dos personagens criados na era de ouro dos quadrinhos nos EUA década de 1930 a meados de 1950. Essa visibilidade se potencializou ainda mais com as várias
versões destes HQs adaptados para televisão e cinema em mais de 75 anos de existência
(MORELLI, 2009). Superman e Batman são hoje ícones da cultura pop produção inserida no
402
contexto maior do que o sociólogo Renato Ortiz (1988; 1994) analisou como internacionalpopular ou mundialização da cultura, processo sociocultural observado com maior relevância a
partir dos anos 1950.
Com roupas colantes, capas aladas ou máscara, e habilidades de luta extraordinária, a serviço
de causas cidadãs ou patrióticas, Superman e Batman compõem personagens-modelo do
panteão mítico-pop dos chamados super-heróis originários das histórias em quadrinho (HQs) e
adaptados à linguagem audiovisual do cinema e televisão a exemplo também de - MulherMaravilha, Lanterna Verde, Flash, Aquaman (da editora DC Comics); e - Homem-Aranha,
Quarteto Fantástico, Hulk, Homem de Ferro e Thor (da Marvel Comics); entre outros.
O jornalista Sérgio Augusto afirma que há uma influência direta da literatura de ficção
científica, de recepção mundial ascendente a partir da década 1930, para o desenvolvimento
das histórias em quadrinhos mencionadas acima e destaca a importância do modelo narrativo
em torno do personagem homem de aço:
Os super-heróis, sub-produtos da ficção científica, começaram a nascer ao
findar a década 30, no lastro de Superman (1938), centro geográfico de três
temas de S-f [Science-fiction]: fim do mundo=destruição do planeta Kripton,
viagem interplanetária e poderes sobrenaturais e eixo vetorial, ao nível
mitológico, de uma geração de seres anormais ad nauseam... (AUGUSTO,
1977, p.191).
A primeira adaptação da história de Superman em versão longa-metragem para cinema foi
realizada pelo diretor Lee Sholem em 1951, Superman e os homens toupeiras, e se
transformando em seguida em série de televisão - 1952-58 (MORELLI, 2009). Contudo, a
versão de Richard Donner lançada em 1978, quarenta anos após a criação do personagem, é
um marco do cinema contemporâneo pautado pelos filmes blockbusters, grandes produções
que se caracterizam pelo uso e abuso dos efeitos especiais para atrair o grande público. O ator
Christopher Reeve está no papel de protagonista; Gene Hackman é o vilão Lex Luthor; Margot
Kiddera, a repórter e namorada do super-herói e Marlon Brando o pai biológico, Jor-El. A
história começa com o nascimento de Kal-el (nome original do homem de aço) no planeta
Krypton. Como o astro natal estava condenado a desaparecer os pais o enviam a Terra.
Adotado por fazendeiros Clark Kent passa a infância em Smallville, Kansas.
Com a morte do pai adotivo, aos 18 anos, ele parte em busca de sua origem e na tentativa de
desvendar o segredo de seus superpoderes que já haviam se manifestado parcialmente (sua
capacidade de correr velozmente, por exemplo). O impulso para a jornada de iniciação ocorreu
por conta de certo episódio mágico/místico. Numa noite durante o período de luto Superman
acorda sobressaltado e sente um chamado. O sinal vem do paiol da fazenda. Ao levantar a
palha do chão encontra acondicionado num fosso cristais luminosos esverdeados – kryptonitas,
que estavam na nave que o trouxera a Terra e foram guardados pela nova família.
A longa perambulação, seu rito de passagem, o faz atingir o Ártico. A pedra verde é lançada à
ampla paisagem gelada e em seguida se ergue do solo uma estrutura montanhosa chamada
Fortaleza da Solidão. Dentro parece uma grande gruta; suas paredes são constituídas de
cristais brancos (a maioria), verdes e azul turquesa, que desenham formas como estalagmites
e estalactites. No centro dela, por meio de cristais holográficos, seu pai surge e lhe conta toda
a sua história a partir das perguntas do filho. Pleno de seus superpoderes ele sai do lugar
403
voando com suas roupas características até Metrópolis, onde começa sua carreira de repórter
no Planeta Diário. Em certa ocasião, para salvar sua colega de trabalho Margot, ele revê-la
seus poderes especiais que serão acionados em outras situações em que houver grande perigo
para os habitantes da cidade. Descontente com o surgimento de um super-herói em
Metrópolis, Lex Luthor (Gene Hackman), cientista e gênio do mal, o obriga a se desdobrar para
evitar a morte de milhões de pessoas.
Superman tem por base a mitologia judaico-cristã projetada na simbologia do justo redentor.
Jung (2000) vê na figura do Salvador a imagem arquetípica da criança divina. Para o autor “o
conceito arquétipo, que constitui um correlato indispensável da ideia do inconsciente coletivo,
indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e
em todo lugar” (JUNG, 2000, p. 87). A criança, o velho sábio, a sombra e o self (si mesmo)
fazem parte também do imaginário primordial e são arquétipos.
A imagem da criança aparece logo no inicio do filme em duas sequências marcantes; o superherói bebê está no berço feito por kryptonitas e cercado pelo pai Jor-El (a palavra semítica El
significa Deus) e a mãe Lara Lor-Van, cena registrada pouco antes de ele ser enviado a Terra;
quando é encontrado no campo de trigo pelo fazendeiro Jonathan e sua esposa Martha Kent.
Ao contrário de notívago Homem-Morcego/Batman, Superman é um personagem solar e
apolíneo. No universo mítico grego, Apolo, deus filho de Zeus, significa o princípio ligado ao
elemento figurativo, racional, conceitual, à beleza da forma.
Vale retomar as imagens da Fortaleza da Solidão e os cristais de kryptonitas; afinal são
elementos simbólicos e narrativos importantes para compreensão de Superman como herói
mítico. A Fortaleza da Solidão representa a simbologia de ascensão espiritual e expressa na
figura sagrada da montanha cósmica encontrada em diversas construções mitológicas
(MIRCEA, 2012). Ela projeta a união da terra e céu. Na trajetória do homem de aço significa o
elo entre a vida nova terrena e sua condição alienígena sobrenatural. No centro dela uma
caverna repleta de pedras mágicas.
Bachelard (1990) afirma em A terra e os devaneios do repouso que as figuras – gruta,
estômago, ventre, porão, desfiladeiro – trazem “a lei do isomorfismo das imagens da
profundidade” (p. 195), retidas na imaginação material do elemento terrestre (o autor trabalha
com a premissa de que o inconsciente é projetado nas imagens alusivas à água e também à
terra). No coração/gruta da Fortaleza da Solidão, o herói encontra sua essência,
experimentando o arquétipo self de modo transcendente.
De acordo com o pensamento de Jung (2000) a formação da individualidade possui seu ápice
quando da percepção e experiência do self, a unidade plena da psique, que simboliza o
equilíbrio transcendente entre o inconsciente – pessoal e coletivo – e o consciente pessoal do
homem com a natureza. O arquétipo si mesmo manifesta a imagem do centro, equilíbrio
absoluto, projetado em símbolos e narrativas míticas como mandala, cruz, pedras/cristais,
cálices, etc.
Na versão de Superman (1978) realizada pelo diretor Richard Donner os cristais de kryptonita
possuem a condição predominante de elemento benéfico ao herói. Elas estão ao seu lado na
infância, em berço protetor, são objeto guia e pedra alquimista, pois lhe conectam ao passado
404
e o amplo conhecimento. Em outros filmes da franquia cinematográfica, e nas histórias de HQ
(MORELLI, 2009), a kryptonita será mostrada principalmente como elemento de
desestabilização e supressão de seus superpoderes, cobiça permanente do seu antagonista Lex
Luthor.
A história de Superman reatualiza o velho sonho do homem em voar. E também conecta
outras camadas de imaginário simbólico. A imagem do céu, bem como a terra, é para Jung
(2000) a projeção do arquétipo mãe. Por isso o aconchego de Superman ao voar. Mas o espaço
sideral pode estar associado também ao arquétipo sombra expresso nos seres, astros e
ambientes alienígenas maléficos típicos da ficção científica a exemplo do trio de vilões
originário do planeta natal do homem de aço - General Zod, Ursa e Non, que aparecem no
começo do filme antes de serem enviados ao Phantom Zone (Zona Fantasma).
BATMAN, O SUPER-HEROI DAS SOMBRAS
É quase sempre noite em Gothan City, a cidade-centro do universo mítico do HomemMorcego. Quando o iconoclasta diretor Tim Burton realizou o longa-metragem Batman (1989)
o personagem multimídia das histórias em quadrinhos de referência completava cinquenta
anos de existência e já havia sido adaptado ao cinema em diversas produções, bem como
transposto para série de televisão das mais conhecidas no Brasil. Mesmo assim a versão
surpreende especialmente pelo projeto visual contemporâneo e de grande beleza plástica.
Relembrando a conhecida história de Batman, o órfão, solteiro e milionário Bruce Wayne
(Michael Keaton) mora num elegante palacete da periferia de Gothan City, com extensa área
arborizada de miragem florestal, e vive sob os cuidados do mordomo e tutor Alfred
Pennyworth (Michael Gough). Existe um episódio marcante na vida Wayne que o motiva a
virar o protetor mítico da cidade natal por meio da persona Homem-Morcego, na busca de
justiça e sublimação da dor de sua orfandade: quando pequeno ele testemunhou o assassinato
de seus pais numa rua escura.
Sabe-se pela versão de Tim Burton que o assassino é Jack Napier. Este bandido entrará
novamente na vida de Batman de modo inusitado. Na sequência em Napier está envolvido em
outro crime, após ser atingido num tiroteio, o vemos cair num tonel contendo estranhas
substâncias químicas. Sai de lá transfigurado na forma do palhaço psicopata Coringa (Jack
Nicholson). Ele é o grande vilão deste filme; aparece em diversas tramas diabólicas criadas
para aterrorizar Gothan City e luta com o herói mascarado até a batalha derradeira.
Interessante notar que tanto para história do personagem Superman como Batman foram
inventadas cidades fictícias próprias de identidade dos heróis, respectivamente, Metrópolis e
Gothan City. Elas são a imagem metafórica do centro do universo. Pode-se refletir tal questão
do ponto de vista ideológico e teríamos um campo muito fértil de interpretação. Mas vamos
atentar para outra abordagem igualmente reveladora das narrativas cinematográficas. De
acordo com o mitólogo Mircea Eliade as cidades da Idade Antiga, a exemplo de Jerusalém,
Babilônia, Alexandria ou Tebas, também apropriavam semelhante concepção de centralidade
para seus povos de pertencimento. Os templos ou monumentos nelas encontrados aludem à
“Árvore Cósmica”, porta mágica, pois lá os deuses poderiam descer. Em Metrópolis ou Gothan
City os arranha-céus realizam em parte essa função simbólica.
405
Mas Gotham City também reflete significados específicos associados diretamente ao
protagonista da historia. A cidade de Batman é encenada como um filme noir. Afinal ele é um
ser hibrido - humano e morcego - e como tal tem hábitos noturnos. Os morcegos são os únicos
mamíferos que voam verdadeiramente; seu nome é derivado do latim muris (rato) e coegus
(cego). Para se movimentarem eles emitem sinais de eco localização de orientação espacial.
“No transcorrer da evolução, finas e elásticas membranas se desenvolveram entre seus dedos,
alongando-se até parte distal de suas pernas, dando-lhes capacidade de manobras e tornandose grandes voadores” (REIS at al., 2007, p. 20).
Na China os morcegos possuem uma simbologia positiva de felicidade e riqueza. Porém, no
mundo ocidental, desde a Idade Média, eles foram idealizados muitas vezes a figuras maléficas
devido, em boa medida, ao fato de que podem transmitir doenças endêmicas como a raiva,
bem como certos morcegos são hematófagos, os chamados vampiros. Na literatura o vampiroDrácula (1897) de Bram Stoker colabora para criar as matrizes modernas do gênero horror. O
expressionista Nosferatu (1922) de Murnau transporta essa visão negativa do mamífero
voador com cara de rato para cinema em planos inesquecíveis (RODRIGUES, 2012).
A história do herói de Gothan City se apropria dessa moderna tradição narrativa de
ambiguidades, de tensão entre ciência e religião/mitologia, entre cultura e natureza, expressa
na figura do morcego ou vampiro, uma dança simbólica de luz e sombra, bem e mal, vida e
morte. Tim Burton cria um filme de herói soturno e angustiado mesclando gêneros diversos
como fantasia, policial/noir, terror, ficção científica e melodrama.
Do ponto de vista da concepção dos arquétipos de Jung a sombra é a parte inferior da
personalidade. Todos os elementos pessoais e coletivos, não compatíveis com a forma de vida
escolhida, que ganham uma personalidade própria. Ela se comporta de maneira
compensatória à consciência. Campbell (2002) a compara com o inconsciente descrito por
Freud. Batman se depara com as sombras tanto em situações de perigo confrontadas nas ruas,
becos ou esquinas escuras e misteriosas de Gothan City como no aconchego materno e
silencioso da caverna situada anexa ao palacete de residência, espaço físico de centralidade e
experiência anímica do arquétipo si mesmo. A caverna abrigada seu inconsciente. Diferente de
Superman que camufla sua real condição de vida sobrenatural apenas para se preservar no
mundo terráqueo, o personagem Bruce Wayne (Homem-Morcego) deseja viver na fantasia do
duplo (máscara ritualística) uma persona mágica que o leve a sua verdadeira essência. Sua
missão heroica é salvar a cidade dos malfeitores que desejam destruí-la a exemplo do Coringa,
e, internamente, sublimar o trauma de infância (orfandade) e superar os conflitos e complexos
mergulhados no lago-noite do seu inconsciente.
A FLORESTA SIDERAL DE STAR WARS
Guerra nas estrelas (1977) é um grande clássico do cinema de ficção cientifica criado por
George Lucas. Primeiro filme da série ele foi renomado posteriormente como Star Wars episódio IV: uma nova esperança. O longa-metragem conta a história do período pós-República
marcado pelo quase extermínio da ordem Jedi (guardiões iluminados do bem, a chamada
Força) e o apogeu dos Siths (guerreiros seguidores do lado mal do universo) durante o novo
regime de poder - o Império Galáctico.
406
O protagonista da história é o jovem Luke Skywalker (Mark Hammil), filho do icônico vilão
Darth Vader (um dos líderes Siths), nascido Anakin Skywalker. A aventura mítica de Luke
começa por acaso; quando compra o robô (R2-D2) ele encontra uma mensagem da princesa
Leia Organa (Carrie Fisher) para o Jedi Obi-Wan Kenobi (Alec Guiness) sobre os planos da
construção da Estrela da Morte, uma gigantesca estação espacial de alto poder bélico. Luke é
iniciado cavaleiro do lado bom da Força por Obi Wan Kenobi e ambos partem com o
mercenário Hans Solo (Harrison Ford) para se juntarem aos membros do grupo de Resistência
com o objetivo de destruir a grande nave do mal.
Segundo o mitólogo Joseph Campbell (1990; 2008) a história de Luke Skywalker perpassa
estruturalmente pelo chamado monomito – percurso padrão heroico: separação (partida),
iniciação e retorno. Após recusa ao chamado (Luke não aceita de pronto a missão; Superman
também resiste em viver seu mito), a iniciação ocorre com o auxilio sobrenatural – a Força, o
treinamento militar e espiritual Jedi e o conhecimento do uso mágico do sabre de luz.
É momento que o herói precisa se recolher e ativar seus arquétipos, seu inconsciente em
busca do caminho, sua individuação. Esse limiar é momento em que o herói passa do "mundo
comum" para o “mundo da aventura”, a passagem do campo real para o mágico e vice-versa:
Quando assisti a esses filmes [a primeira trilogia], notei que Lucas usa
sistematicamente os arquétipos que apreendeu nos meus livros – ele
mesmo confirma isso (...). Então, no final de O retorno de Jedi é trabalhado
de maneira bastante explícita o tema da reconciliação com o pai – é para
isso que se encaminha a série. Na verdade ela é uma peça em três atos: o
chamado à aventura, o caminho das provações, e a provação final, com a
reconciliação com o pai e o retorno através do limiar (CAMPBELL, 2008, p.
155).
Após a passagem pelo primeiro limiar mítico (a aventura mágica), o caminho de
provações ocorre o momento do “ventre da baleia” (referência ao mito
bíblico
de Jonas/Moby Dick) ou a passagem para o reino da noite, com a “provação suprema”. Esta
fase da jornada do herói está contida nessa sequência. A sua primeira aventura se encerra,
parcialmente, com a vitória dos rebeldes frente ao inimigo Darth Vader (seu pai) e o primeiro
retorno (final de Guerra nas estrelas/Star Wars episódio IV: uma nova esperança). Com a fuga
deste antagonista, um novo ciclo da jornada do herói pode ser criado (o périplo continua;
temos a sequência da trilogia - Star Wars episódios V e VI). Segundo Campbell (2013, p.67), o
retorno e a reintegração à sociedade do herói é necessário “à continua circulação de energia
espiritual no mundo”.
Star Wars articula uma história com base na mitologia judaico-cristã e
em religiões e tradições militares orientais. A ordem Jedi, os guardiões iluminados do bem, da
Força, tem como referência principal os famosos guerreiros samurais. Eles foram uma casta
miliar e social importante do Japão medieval, conhecidos por sua lealdade, coragem, honra,
disciplina e conhecimento intelectual e espiritual. Seu código de conduta moral - bushidô
(literalmente caminho ético) - possui três fontes religiosas: o budismo, xintoísmo e
confucionismo. Para os samurais, a catana (espada) deve espelhar sua alma e a morte a
sublime entrega ao bushidô (YAMASHIRO, 1987).
407
Darth Vader é o bíblico anjo caído (Lúcifer) e espelha a simbologia da sombra. Obi Wan Kenobi
incorpora o arquétipo do velho (e mentor), o guardião do liminar mítico segundo Campbell.
Luke Skywalker, o anjo bom, nasce e vive para redimir os pecados do pai (seu destino). A
história de pai e filho - Luke e Darth Vader - articula densa narrativa psicológica de ativação
dos arquétipos (Jung) e do complexo de Édipo (Freud). A máscara de Darth Vader não tem a
mesma função simbólica encontrada em Batman. Enquanto para o Homem-Morcego ela é
ritualística no sentido da transcendência anímica em Star War ela é persona icônica do mal e
projeção de certas camadas do arquétipo sombra.
A cortante luz do sabre que revela a Força divina, metáfora do fogo mágico, é apreendida em
ato com o intenso treinamento militar e espiritual Jedi; ela repercute o processo de
individuação do herói Luke Skywalker, sua jornada mítica. Vale comentar que para Bachelard o
fogo, comparativamente aos quatro elementos da natureza e imaginação simbólica - além de
terra, água e ar, é o mais dialético, ligado à profunda transformação, revelador da paixão da
alma e corpo e vontade de conhecimento:
O fogo é íntimo e universal. Vive em nosso coração. Vive no céu. Sobe das
profundezas da substância e se oferece como amor. Torna a descer à
matéria e se oculta, latente, contido como o ódio e a vingança. Dentre todos
os fenômenos, é realmente o único capaz de receber tão nitidamente as
duas valorizações contrárias: o bem e o mal. Ele brilha no Paraíso, abrasa no
Inferno. (BACHELARD, 1994, p. 11).
Os dois grupos guerreiros de luta antagônica na série Star Wars, Jedi (bem) e Siths (mal),
compartilham da referida dialética do fogo. Ele está nas espadas de luz a laser de ambos, azul
ou verde e vermelho, em armas diversas, na combustão das naves espaciais e pode ser
observado na metamorfose espiritual de Anakin. Como um Frankenstein cibernético, seu
corpo e a mente são transfigurados pelo fogo e se moldam na couraça negra do vilão Darth
Vader.
Contudo o mito se encerra com a vitória do fogo celestial; no último filme da trilogia, O retorno
de Jedi, após a luta derradeira entre Vader e o filho, com arrependimento dos pecados por
parte do vilão, Luke queima o corpo morto do pai em funeral junto à floresta num ritual de
ressureição d´alma, de retirada da mácula do pecado original. Vê-se o elemento físico
simbólico transformador também nas fogueiras festivas que celebram a vitória do herói. Luke
observa, em aparição, seu pai ao lado de Obi-Wan Kenobi e Yoda. Ele pode agora repartir à
comunidade o elixir do regresso - como Campbell (2013) define essa fase final do monomito,
fazendo circular a energia espiritual mais elevada por conta da superação das provações de
sua jornada heroica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo teve como foco uma leitura pautada pela antropologia visual sobre o cinema
contemporâneo, ou seja, a produção realizada partir dos anos 1970, com o objetivo de
identificar comportamentos, estruturas, arquétipos e funções principais dos mitos
notadamente em filmes inseridos nos gêneros aventura, fantasia e ficção científica. Para
circular no universo popular-massivo foram selecionados os longas-metragens - Superman
(1978) e Batman (1989), cujos enredos foram baseados nas histórias em quadrinhos da editora
norte-americana DC Comics, bem como a primeira trilogia do épico espacial - Star Wars (1977408
80-83), criado por George Lucas. Para tanto se utilizou de base teórica consolidada em
pesquisas sobre o imaginário simbólico e mitos elaborados principalmente por C. G. Jung, M.
Eliade e J. Campbell e G. Bachelard.
As análises realizadas demonstram com certa nitidez que os filmes mencionados possuem
diversas características e estruturas de narrativa mítica. Evidentemente não adquirem o
mesmo papel social e simbólico inscritos nas culturas tradicionais uma vez que os atuais
padrões societários se distanciam do universo totalizante do sagrado, e que diz respeito à
primeira função dos mitos, de acordo com a concepção de Joseph Campbell: o aspecto místico
ou metafísico (CAMPBELL, 2002, p.23).
Se o metafisico não se revela de modo pleno nesses mitos modernos, contemporâneos, as
histórias dos heróis pesquisados – Superman, Batman e Luke Skywalker, demonstram poderes
extraordinários dos protagonistas e outros personagens que ultrapassam a capacidade de
explicação da ciência mais avançada, se manifestando assim como fenômenos sobrenaturais
ou mágicos. Além disso, ainda segundo a proposta de Campbell, as outras funções do mito
(são quatro ao todo) - a cosmológica, a sociológica e a psicológica, são amplamente ativadas
nessas narrativas heroicas oriundas das histórias em quadrinhos ou formuladas especialmente
para o cinema.
Vale comentar que a segunda função, a cosmológica, é aquela da formulação e apresentação
de uma imagem do universo. Temos, por exemplo, na centralidade das cidades de Metrópolis
(Superman) e Gothan City (Batman) - os HQs de base foram criados entre os anos 1930/1940, a
projeção da sociedade capitalista moderna a partir da imagem coesa do Estado-nação. Por
outro lado, a viagem sideral de Star Wars cria um novo campo de visão de mundo e espelha a
sociedade global e digital de hoje. Temos simbolicamente uma conexão entre a segunda e
terceira funções do mito – a cosmológica e a sociológica, de validação e manutenção da ordem
social vigente.
A quarta, a função psicológica, de abordagem ontológica, possibilita certamente o campo de
análise mais complexo e mais sintonizado com as sociedades contemporâneas quando se
observa o pêndulo da individualidade. Arquétipos do inconsciente coletivo como criança,
velho, sombra e self (Jung) são profusamente ativados nas narrativas fílmicas pesquisadas e
movem o eixo do indivíduo para o inconsciente coletivo a partir de um campo noturno,
subjetivo, de duplos. Além disso, os elementos míticos da natureza, principalmente – terra, ar
e fogo, da chamada poética do devaneio de Gaston Bachalard, são fundamentais para compor
as histórias heroicas conforme as análises anteriores demostraram.
Cabe ainda considerar que a mitologia judaico-cristã é preponderante e molda de modo
estruturante as narrativas dos três filmes selecionados por meio da figura onipresente do
Salvador inscrita na imagem da criança divina. A orfandade dos três heróis (Luke por parte da
mãe) reforça a mediação com esse arquétipo e à imagem redentora de Cristo. Além disso as
três histórias são mitos escatológicos e criam uma cosmologia própria de fim do mundo e de
renascimento. Como disse CAMPBELL (1990, p.214), George Lucas havia imprimido em Star
Wars “a mais nova e poderosa rotação à história clássica do herói”. A despeito do tempo
transcorrido desde sua criação, Superman e Batman também continuam selando fortes
409
vínculos de identificação cultural e emocional com as novas gerações. Todos se mantem como
ícones, Deuses do Olimpo, da chamada cultura pop-nerd.
REFERÊNCIAS
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Paulo: Perspectiva: 1977.
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
________. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
________. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
________. Ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
BUSCOMBE, Edward. “A ideia de gênero no cinema americano”. In: RAMOS, Fernão (org.).
Teoria contemporânea do cinema, v. II, documentário e narratividade. São Paulo: Senac, 2005.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.
________. Mitologia na vida moderna. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 2002.
________. Para viver os mitos. São Paulo: Cultrix, 2006.
________. Mito e transformação. São Paulo: Ágora, 2008.
________. O herói das mil faces. São Paulo: Pensamento, 2013.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.
________. Mitos, sonhos e mistérios. Lisboa: Edições 70, 2000.
GOIDANICH, Hiron Cardoso; KLEINERT, André. Enciclopédia dos quadrinhos. Porto Alegre:
L&PM, 2014.
JUNG, C.G. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1997.
________. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000.
MORELLI, André. Super-heróis no cinema e nos longas-metragens da tv. São Paulo: Editora
Europa, 2009.
MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: Relógio D´água, 1997.
________. O método 3: o conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 2008.
ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
REIS, Nélio Roberto dos [et al]. Morcegos do Brasil. Londrina: Nelio R. dos Reis/Universidade
Estadual de Londrina, 2007.
410
RODRIGUES, Andrezza Christina Ferreira. História dos vampiros: das origens ao mito moderno.
São Paulo: Madras, 2012.
YAMASHIRO, José. História dos Samurais. São Paulo: Aliança Cultural Brasil-Japão/Massao
Ohno, 1987.
FILMOGRAFIA
BATMAN. Direção: Tim Burton. 1989. EUA. DVD (126 min).
STAR WARS EPISÓDIO IV: uma nova esperança. Direção: George Lucas. EUA. 1977. DVD (121
min).
STAR WARS EPISÓDIO V: o império contra-ataca Direção: Irvin Kershner. EUA. 1980. DVD (124
min).
STAR WARS EPISÓDIO VI: o retorno de Jedi. Direção: Richard Marquand. EUA. 1983. DVD. (134
min).
SUPERMAN.
411
Direção:
Richard
Donner.
EUA.
1978.
DVD
(143
min).
SESSÃO 6 RODADA DE PROJETOS
Reino Vazio
Dados Técnicos
série dramática de tv, duração do episódio 45 min com duração de 05
temporadas.
Nome Autor (es)
Claudio Alves Gomes Sampaio
Resumo
O desaparecimento dos animais, a perda de um sonho, o início de uma jornada, assim comela
Reino Vazio – Blecaute o início de uma era sem a presença de todos os animais no planeta,
deixando a raça humana desorientada e sem reação diante dessa grande catástrofe. Adalmiro,
jovem morador do interior de Campinas/SP, sonha em se tornar um peão de boiadeiro, com
muito esforço ele consegue sua sonhada chance, e exatamente no momento que a porteira é
aberta, em que ele ia sentir a emoção do sonho realizado, acontece o evento que fica
conhecido no mundo todo como O Blecaute, todos ao redor do planeta Terra ficam
desacordados por 24 horas e quando despertam estão diante de um verdadeiro caos,
acidentes por toda parte, várias pessoas mortas e estranhas manchas negras no chão
exatamente no lugar onde estavam os animais antes do blecaute. Adalmiro desperta em cima
de uma macha negra, que antes era o touro que estava montado, passado choque inicial ele
encontra sua namorada Joana e o amigo dela Edmar e juntos partem para a fazenda dos seus
pais, com muitas perguntas e nenhuma resposta, o trio caminha pela estrada observando
cenas de horror e tragédia. Ao chegar na fazenda fica aliviado por encontra seus pais vivos,
mas descobre que a fazenda também sofreu com o fenômeno, sobre muitas especulações,
Adalmiro decide partir para o centro da cidade atrás do seu antigo amor, Ana, hoje uma
estudante de biologia, com a certeza que achará as respostas que o ajudará a descobrir quem
foi o responsável pela perda do seu sonho.
Desaparecidos
Dados Técnicos
Características Técnicas: duração; técnica; gênero; mídia, etc.:
Argumento de Série
Nome Autor (es)
Graciene Silva de Siqueira
Resumo
O projeto de série centra-se no drama de pais em busca de seus filhos desaparecidos. Cada
episódio acompanha a investigação policial (assim como suas limitações) e o trabalho da
fictícia ONG Desaparecidos, em São Paulo.
Um dos personagens fixos é Suzana, que trabalha na 2ª Delegacia de Polícia de Pessoas
Desaparecidas - Divisão de Proteção à Pessoa. Muitas vezes, sem poder seguir com a
investigação, por conta do volume do trabalho ou porque seus superiores não consideram a
412
pista importante, a policial auxiliará a ONG Desaparecidos, orientando seus representantes
quais caminhos seguir. Paralelamente ao trabalho na polícia, Suzana vai tentar resolver seus
problemas pessoais como a morte suspeita do pai, também policial, e a tentativa de
reaproximação de sua mãe, a quem não vê desde criança.
Ainda na delegacia, trabalham Cavalcanti, delegado titular que terá embates com Suzana,
especialmente por questões ligadas à ONG Desaparecidos que vai ficar no “pé” para cobrar
investigações. Há ainda Roberto Dias, policial que trabalhará ao lado de Suzana em alguns
casos e insistirá em um relacionamento com ela, e Félix Moura, policial corrupto, que busca
vantagem em tudo. Diante das desconfianças de Suzana, vai tentar puxar o tapete dela na
delegacia.
Na ONG Desaparecidos temos como personagens recorrentes, a fundadora da instituição,
Flávia Ribeiro, cujo filho de nove anos desapareceu a caminho da escola; Ana Fernandes, que
dedica sua vida à procura da filha Vitória desaparecida aos quatro anos em frente à sua casa, e
Júlio Cardoso, que luta para encontrar o filho que desapareceu em um parque. O drama dos
pais, dos personagens fixos e das vítimas vão compor cada episódio.
Outro aspecto a se destacar, é quanto à forma de lidar com os casos. A ideia é abordar a
questão de forma mais realística possível, dentro do que é possível em se tratando de uma
obra de ficção. Assim, nem sempre os “mocinhos” vão vencer, nem sempre os “bandidos”
serão punidos ou os pais terão seus filhos de volta.
Aliado a esse aspecto - que acredito ser o mais importante na produção da série - temos ainda
o fato de lidar com casos envolvendo crianças e adolescentes. É um problema real que afeta
famílias brasileiras, e possivelmente afetou alguém que conhecemos. De acordo com notícia
publicada no Jornal O Dia (digital), em 24 de maio de 2015, a cada ano 250 mil pessoas
desaparecem misteriosamente no Brasil. A estimativa do Ministério da Justiça é que entre elas,
40 mil sejam menores de idade.
O público-alvo são especialmente fãs de seriados no estilo Lei e Ordem: Unidade de Vítimas
Especiais, Criminal Minds, Cold Case, entre outros, nos quais me inspirei.
Nicolau, deu pau
Dados Técnicos
Série de TV- Comédia- meia hora de Duração
Nome Autor (es)
Luciana do Valle Ribeiro da Silva
Resumo
Nicolau é um jornalista inteligente, porém muito crítico e orgulhoso, de 35 anos em crise
financeira e de identidade. No início da série ele é demitido do jornal Notícia Fresca, em São
Paulo, e é substituído por um publicitário, o que ele acha um absurdo porque tem preconceito
com propaganda. Decepcionado com a carreira de jornalista e precisando de dinheiro para se
manter, ele aceita a proposta do seu melhor amigo Tadeu, e passa a ajudá-lo como assistente
de técnico de informática. Apesar de não entender muito de placa-mães, redes, e memórias
413
rãs. Atrapalhado, mas bem intencionado, Nicolau começa a anteder os clientes sozinhos, e se
encanta pelo vê: seres humanos. Em cada episódio ele visita um cliente diferente, e se depara
com todo tipo de gente. Clientes que não entendem nada de informática cujas perguntas são
bem sem pé nem cabeça (perguntas muito básicas para qualquer amador) viram piada na
série: mulheres carentes que dão em cima dele, casais que brigam no meio da visita, pessoas
perfeccionistas, artistas, palhaços, vai aparecer de tudo. Além de trabalhar, Nicolau vai ter que
visitar empesas, pessoas e lugares inusitados e aprender a conviver com isso. Mas como
Nicolau não entende tanto assim de informática, muitas vezes ele liga às escondidas para pedir
ajuda para Tadeu, que trabalha numa empresa de lixo eletrônico, reciclando computadores.
Quando um liga para o outro eles trocam os diálogos, “Já sei Nicolau, deu pau.” que é
respondido por Nicolau, “Isso mesmo Tadeu, fudeu.” No início da série Nicolau até tenta, por
precisar da grana mesmo dar uma de malandro e cobrar mais pelas peças dos computadores
que conserta, mas esta malandrice repentina não vai durar muitos minutos do episódio.
Depois de entrar em contato com a vida dos seus clientes, ele se fragiliza com os dramas deles
e mal consegue cobrar pelo seu próprio trabalho. A nova labuta de Nicolau vai colocar por
terra muito dos seus preconceitos e transformar a vida dele e das pessoas que estão ao seu
redor, depois de um tempo, para melhor.
Os recém chegados
Dados Técnicos
Reality Show transmidia - 18 episódios
Nome Autor (es)
Karin Poljana do Vale Ludwig
Resumo
“OS RECÉM-CHEGADOS” é um roteiro transmídia feito para a Era da Convergência, permitindo
transversalizar seu conteúdo em múltiplas plataformas, tais como: livro, games, jogo de
tabuleiro, card game, guia turístico não convencional, reality show, série, etc. Para a mídia
principal o projeto foi concebido no formato de um reality show cultural com 18 episódios, que
mistura competição e confinamento. Usando elementos culturais como folclore, história e
costumes, o reality “OS RECÉM-CHEGADOS” cobre temas das cidades do Brasil, possibilitando
nacionais e estrangeiros conhecer a cultura de um país através do entretenimento. Além disso,
o reality tem o atributo de promover grande interação entre o público e os meios de
comunicação – tendência irreversível, tendo em vista os avanços tecnológicos. Envolvemos o
público em todo o processo.
São 16 participantes estrangeiros de diferentes países, recém-chegados ao Brasil que são
alocados em hostels-sedes de várias cidades do país, de onde eles somente sairão para realizar
provas. Eles enfrentam desafios ligados à cultura brasileira baseados na história, cotidiano,
costumes e modo de vida do país. Como os participantes não poderão consultar internet,
banco de dados ou livros, a primeira dificuldade será entender a linguagem coloquial dos
moradores locais. O formato desenhado é para 18 episódios, com sugestões de 8 cidades, mas
é possível fazer com apenas um local e adequar o formato de acordo com o orçamento e
necessidade de cada projeto. É possível, por exemplo, transformá-lo num quadro dentro do
414
programa. Os participantes serão pessoas reais, comuns, não celebridades, mas aqui foram
criados personagens com o intuito apenas de criar a atmosfera do reality e facilitar a
organização da produção.
Quarta parede
Dados Técnicos
Formato - Reality Show | Duração - 50min
Nome Autor (es)
Márcio Henrique Melo de Andrade
Resumo
Quarta Parede: expressão usada no meio cênico para nomear a parede imaginária que fica à
frente do palco, por meio da qual a plateia assiste os eventos que acontecem na realidade que
está sendo encenada. Inspirado no recurso do ator que, subitamente, começa a dialogar com a
plateia para quebrar essa parede, este reality show almeja romper com a separação que existe
entre um processo criativo e seu público: um grupo de atores e atrizes (entre iniciantes e
profissionais) que não se conhecem recebem as conduções de um diretor para criar um
espetáculo de um dramaturgo (nacional ou estrangeiro) pelos meses seguintes. A cada
episódio, o público acompanhará o work in progress em cada uma de suas etapas: leituras,
marcações, criação de figurino, iluminação, cenografia, trilha sonora, adereços etc.. Ao longo
do programa, poderemos ver também alguns inserts de hiperlinks com informações breves
sobre os termos da carpintaria teatral usados pela equipe (como boca de cena, solilóquio etc.)
e informações sobre o dramaturgo e diretor, por exemplo. Mesclando às cenas dos ensaios e
marcações, teremos depoimentos dos participantes do processo – atores, atrizes, diretor,
técnicos, narrando sentimentos em relação ao trabalho, assim como suas experiências
externas à criação. Além disso, ao longo da temporada, o público poderá estabelecer
comentários (via redes sociais) sobre o processo e conferir ensaios abertos e a montagem final
em eventos específicos. A cada temporada, o reality show pode variar o gatilho que dá início
ao seu jogo e complexificar suas regras, mas precisará manter o formato inicial de acompanhar
um work in progress de um espetáculo de formas variadas, como, por exemplo: 1.
Acompanhar dois grupos (um iniciante, outro profissional) montando cenas de um único texto
de um dramaturgo nacional ou estrangeiro, explicitando os diferentes modos de construir
cenas de um mesmo espetáculo – como musical, comédia, performance, farsa, infantil etc.; 2.
Acompanhar um grupo de atores e atrizes em um processo colaborativo sem texto como
ponto de partida, mas de histórias concebidas ao longo dos ensaios; 3. Acompanhar um grupo
de pessoas que nunca atuaram (com faixas etárias, classes sociais e regiões distintas)
experimentando a arte de criar cenas de dança, teatro, circo etc. pela primeira vez; 4. Criar um
espetáculo baseado em materiais de outras mídias – como textos literários, pinturas, filmes,
músicas, histórias em quadrinhos, notícias, depoimentos de pessoas etc.; 5. Montar
espetáculos (ou cenas) com outros tipos de artes cênicas, envolvendo linguagens de dança
(clássica, contemporânea etc.), circo, ópera etc. e mesclando artistas de outras vertentes –
como literatura, artes visuais, arquitetura, cinema, fotografia, graffiti, arte digital etc.. A partir
destas estratégias, o Quarta Parede pretende não somente aumentar a visibilidade para as
artes cênicas, mas trazer informações sobre vivências de um processo criativo a fim de formar
415
um público crítico e inventivo.
4º DP
Dados Técnicos
Seriado para TV
Nome Autor (es)
Sebastião Sidnei de Oliveira
Resumo
ARGUMENTO Dr. Pacheco delegado titular do 4° DP conduz ha anos, a sua delegacia com rigor
e eficiência, tem orgulho de resolver todos os crimes no seu distrito, serio e de uma
honestidade incontestável já tirou do seu quadro de investigadores policiais corrupto, hoje
conta com um quadro de investigadores da sua confiança. Neste ultimo ano de trabalho ele
terá de enfrentar e achar um assassino meticuloso que não deixa pista e mata suas vitimas
todas as mulheres, além de resolver crimes do dia a dia de uma delegacia, com ajuda de duas
equipes de investigadores da sua confiança, ale de informantes que ele recrutou nesses anos
todos, pessoa comum que em sigilo manda informações a ele. Depois de encontrar o terceiro
corpo na sua região, ele não consegue mais manter sigilo das investigações por se tratar de
uma advogada separada e filha de um senador da republica. Assim que a impressa descobre a
identidade da vitima o circo fica armado na frente da delegacia. Dra. Vera que faz parte do
DHPP, e mandada pelo chefe de policia para auxiliar nas investigações, assim pai e filha vão
poder trabalhar juntos pela primeira vez. Assim começa uma caçada a este assassino, as
prostitutas da região são alvo fácil, desse maníaco, Dra. Vera não perde tempo e começa uma
busca por imagens das câmeras perto de onde os corpos foram encontrados. Depois do
primeiro corpo encontrado sem registro para ser identificado não se podia fazer muito coisa a
respeito para esclarecer o caso, apenas o laudo do IML que descrevia que não a ferimentos da
vitima. Mas DR. Pacheco ficou surpreso ao receber uma ligação na sua casa, outro corpo foi
encontrado com as mesmas características ele não perdeu tempo e foi ao local a vitima estava
com os mesmo traços de mutilação da primeira, isso fez com que ele com todo 
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2016 ENTRE ENCANTO E CONHECIMENTO (versão errada)