A ética do discurso religioso, entre o estratégico e o comunicativo
Luiz Signates∗∗
Introdução
A história do pensamento moderno tem sido a história da perda da força dos argumentos
religiosos e da capacidade de conferir explicações ao mundo a partir dos dogmas e fundamentos
absolutos. O pensamento religioso tem perdido a capacidade de explicar o mundo objetivo para as
ciências naturais, o mundo intersubjetivo para as ciências humanas e sociais e, mais recentemente, o
mundo subjetivo para as disciplinas psicológicas e psicanalíticas. A esfera religiosa acabou sendo
transferida para o movediço território do místico, o misterioso que precisou se pretender inexplicável
por definição, tal a essencialidade subjetiva presumida.
Entretanto, a religião não morreu. Sobreviveu à laicização do Estado, ao agnosticismo e à
ateização das ciências e filosofias e à materialização dos grandes objetivos humanos (embora a
incidência prática destes sentidos nos pareça bem menor do que o que geralmente se admite). E não
apenas sobreviveu – como se poderia afirmar de um náufrago que escapa à tragédia, semimorto e
esfaimado –, a religião manteve-se forte, em sua capacidade de aglutinar multidões e exercer fascínio
e poder sobre populações inteiras.
Uma pretensa filosofia materialista da consciência, que atribua tal realidade social à
ignorância e à miséria, sofre a dura crítica de ser contrafática (não é de modo algum evidente que os
religiosos estejam somente ou mesmo principalmente entre tais categorias, por mais iluministas ou
elitistas sejam os critérios que se possa utilizar), perdendo assim seu aspecto materialista, já que
acaba fundamentando-se num posicionamento de natureza ideológica. Trata-se, além disso, de uma
formulação simplista e pretensiosa, porque deixa de considerar ou subconsidera aspectos
fundamentais dos processos de sociabilidade, cultura e construção de sentidos e significados nas
sociedades modernas e contemporâneas.
A religião de fato não morreu. Isso, porém, não significa que tenha passado incólume às
transformações históricas e culturais da modernidade. Efetivamente, a religião se modernizou, no
sentido filosófico de adequar-se de forma negociada aos sentidos da modernidade. Trata-se, a
∗∗
Luiz Signates é jornalista e professor assistente da Universidade Federal de Goiás. Especialista em Políticas Públicas pela UFG, e Mestre
em Comunicação pela Universidade de Brasília, cursa atualmente o doutorado no Departamento de Cinema, Rádio e TV na Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
modernização da religião, de uma movimentação histórico-social cujas origens podem ser
encontradas na extraordinária conjunção operada pelo cristianismo entre as orientações sócioculturais de pelo menos três sentidos da antigüidade: a pretensão universalista da filosofia grega, a
monoteísta da cultura judaica e a imperialista da história romana. Tal conjunção ajuda sobremaneira
a compreender a construção Católica (universal) que transfunde o “um só Deus” do compromisso
identitário judaico para o “único Deus”, transpondo um privilégio local para o plano de uma
postulação de validade absoluta, e dentro desse sentido, lançando-se aos projetos de conquista e
hegemonia do mundo.
É trivial considerar que tais sentidos não se restringe à esfera da crença, mas constitui-se em
racionalidade fundante da modernidade ocidental. Quando a superação da Idade Média irrompe na
forma da laicização do Estado e da sociedade, as construções científica e filosófica mantiveram,
apesar da ruptura com certas formas de teísmo, o projeto cristão praticamente intocado, no plano
das práticas e dos sentidos. O humanismo, entretanto, no campo da religiosidade, determinou as
condições de sobrevivência da religião, ao redimensionar esse projeto ao que talvez possa ser
chamado de monoteísmo mitigado, ou seja, a um quase politeísmo estruturado a partir da
diversidade de crenças a maioria das quais, cada uma, monoteísta à sua maneira. Eis que, lentamente,
com a fundação da sociedade de mercado, evidencia-se o que se traduz pela pós-modernização da
religião.
A autonomização (moderna) das esferas de vida culminou na autonomização religiosa
(vinculadas, numa perspectiva weberiana, à racionalidade moral-prática), momento em que a religião
como identidade familiar, regional ou tradicional deu lugar à prática religiosa enquanto assunção
voluntária de princípios e crenças, deixando assim de distinguir coletividades para identificar
indivíduos e instituições marcadas por uma discursividade até certo ponto especialista; e a
fragmentação (pós-moderna) dos sentidos engendrou a fragmentação das propostas de fé e, moto
continuo, a ética capitalista da concorrência implantou a disputa por mercados entre as instituições
ideológicas e jurídicas nas quais se materializaram as referencialidades fragmentárias. Nasce a
religião pós-moderna, para a qual o movimento New Age talvez seja o mais bem acabado exemplo
(Terrin, 1992).
Aplicada às movimentações religiosas, independente da validade que tais sentidos possam ter
para outras esferas sociais, a modernização da religião engendrou, desde a expansão do cristianismo
a partir de Paulo de Tarso, uma característica típica de discursividade: o conversionismo, que aqui
conceituamos como sendo o uso argumentativo e/ou performático da linguagem para modificar
vínculos religiosos, práticas rituais e disposições de crença. No quadro de uma pós-modernização da
prática religiosa, é possível identificarmos o aprofundamento da natureza performática dessa
discursividade, sobretudo pela emergência das práticas carismáticas e pentecostais das igrejas, de
certa forma já existentes nos ritos mediúnicos e nas diversas formas de mentalismo, fluidicismo e
comportamentalismo das demais tradições.
1. O discurso na ética de Habermas: marcas do estratégico e do comunicativo
O recorte deste artigo, contudo, não pode abranger todos esses sentidos. Ficaremos com a
modernização e com a sua discursividade característica, o conversionismo. Dois aspectos distinguem
esse processo, podendo ser tomados como espaços heurísticos de pesquisa e também como
categorias de análise: a institucionalidade e a discursividade. A primeira diz respeito às formas
concretas de organização dos conteúdos e práticas religiosos e a segunda refere-se aos jogos
discursivos dentro dos quais as imagens religiosas de mundo e os rituais institucionalizados se
movimentam no espaço social.
Numa perspectiva habermasiana – que parcialmente é a deste trabalho –, tais espaços podem
ser categorizados como sendo as interações sistêmicas e as relacionadas ao mundo da vida, tratadas
a partir do âmbito da esfera religiosa. Cada um desses tipos de interação implica uma orientação
específica, como coordenadora de ações sociais: estratégico-instrumental, no âmbito sistêmico, e
comunicativa, no quadro do mundo da vida. Este artigo pretende, por problemas de espaço, limitarse à questão da discursividade e, nesse sentido, levantar o problema do discurso conversionista,
explícito em algumas denominações religiosas e implícito em outras, procurando assim verificar até
que ponto esse discurso se movimenta dentro de uma lógica estratégico-instrumental ou de uma
lógica comunicativa.
Essa tipificação é construída por Habermas (1981) a partir da crítica que faz à teoria
weberiana da ação. Habermas questiona a limitação da teoria de Max Weber a contextos
exclusivamente teleológicos, isto é, orientados a objetivos. A opção, então, é investigar a
racionalização social levando em consideração o conceito de ação comunicativa, baseado na teoria
dos atos de fala (Austin). Na ação racional orientada a fins, o ator elege meios (adequados) e
considera conseqüências (condições de êxito, sendo o êxito a efetuação no mundo do estado de
coisas desejado), para atingir a meta (fins concretos). Os efeitos da ação podem ser: resultados (fim
desejado); conseqüências (previsões do ator); e efeitos colaterais (que o ator não previu). Habermas
subdivide em dois tipos, as ações orientadas ao êxito: instrumentais, cujas regras de ação técnicas
medem-se pelo grau de eficácia da intervenção e podem ser associadas a interações sociais; e
estratégicas, cujas regras de eleição racional medem-se pelo grau de influência sobre as decisões de
um oponente racional e são, elas mesmas, ações sociais. E, em seguida, distingue as ações
orientadas ao entendimento: comunicativas, cujos atores não fazem o cálculo egocêntrico de
resultados, por buscarem atos de entendimento, e nem são orientados ao próprio êxito, por buscarem
fins individuais baseados numa definição compartilhada da situação (negociação). Um acordo
comunicativo, por definição, não pode ser induzido de fora, mas tem que ser aceito como válido
pelos participantes; deve ter uma base racional; e se baseia em convicções comuns.
Para identificar dentro desse modelo os atos de fala, Habermas trabalha a partir de Austin,
que distingue os atos de fala como: locucionário (que expressa estados de coisas, diz algo,
utilizando-se para isso de orações enunciativas e nominalizadas); ilocucionário (que realiza uma
ação dizendo algo, fixa o modo em que se emprega uma oração, por meio de afirmações, promessas,
confissões, etc., e cuja condição padrão é o verbo na primeira pessoa do indicativo); e
perlocucionário (que causa um efeito sobre o ouvinte ou o mundo). Os atos de fala resultantes do
componente ilocucionário são auto-suficientes, isto é, o propósito é que o ouvinte entenda e aceite a
emissão, enquanto que nos perlocucionários o ato de fala assume papel de ação teleológica.
O objetivo ilocucionário deriva do significado da oração, os atos de fala se identificam a si
mesmos, ao passo que o objetivo perlocucionário não se segue do conteúdo manifesto, só podendo
ser determinado pela averiguação das intenções do agente, isto é, o destinatário infere fins a partir do
contexto. O êxito ilocucionário de uma oração ocorre apenas se o destinatário entende a afirmação e
a aceita como verdadeira, fundando obrigações de ação para ele e expectativas de ação para o
falante, independente das conseqüências se produzirem ou não. Os efeitos perlocucionários, por sua
vez, surgem quando os atos ilocucionários desempenham um papel num plexo de ação teleológica. O
êxito ilocucionário de uma expressão não é condição suficiente para gerar o efeito perlocucionário,
pois este se insere num contexto de ação teleológica que vai além do ato de fala.
As conclusões de Austin são de que os êxitos ilocucionários têm com o ato de fala uma
relação interna ou regulada por convenções, ao passo que os efeitos perlocucionários dependem de
efeitos contingentes e não são fixados por convenções. Habermas, no entanto, considera
problemático o critério de convencionalidade, pois as convenções semânticas dos predicados da ação
com que se formam atos ilocucionários excluem, em alguns casos, certas classes de efeitos
perlocucionários.
Tal dificuldade levou Strawson, conforme Habermas (1981), a substituir os critérios de
convencionalidade pelo de demarcação distinta. Atos perlocucionários seriam uma subclasse de
ações teleológicas que o ator pode realizar por atos de fala, na condição de não confessar como tal o
fim de sua ação. Isto é: o falante, se quer ter êxito, não pode dar a conhecer seus objetivos. Ao
contrário, os fins ilocucionários só podem ser conseguidos fazendo-se expressos. Habermas
considera, porém, que essa distinção não tem caráter analítico, pois, se os efeitos perlocucionários
são indício da integração de atos de fala em contextos de interação estratégica, os ilocucionários, por
sua vez, são incluídos em ações teleológicas (orientadas ao êxito), donde se conclui que os atos de
fala só servem a fins perlocucionários se são aptos a fins ilocucionários (se o ouvinte não entender,
nem atuando teleologicamente o falante pode induzi-lo à sua finalidade). Mas, como os atos de fala
nem sempre funcionam assim, as estruturas da comunicação lingüística, para Habermas, têm de se
explicar sem recorrer às estruturas da atividade teleológica, pois a ação orientada ao êxito não é
constitutiva do sucesso dos processos de entendimento, nem mesmo quando inseridos em contextos
de interação estratégica.
Para Habermas, efeitos perlocucionários são uma classe especial de interações estratégicas
caracterizada por estados do mundo produzidos por intervenções no mundo e na qual as ilocuções
são meios em contextos de ação teleológica, num emprego sujeito, conforme Strawson, a
determinadas reservas, isto é, o propósito ilocucionário (ouvinte entender e contrair obrigações da
oferta do ato de fala) ser conseguido sem deixar perceber o propósito perlocucionário (no mínimo,
um dos participantes se conduz estrategicamente, engana os demais).
Já os efeitos ilocucionários se definem num plano de relações interpessoais, nas quais os
participantes em comunicação se entendem entre si sobre algo no mundo. Os êxitos ilocucionários se
produzem no mundo da vida dos participantes, sendo este o transfundo dos processos de
entendimento.
A ação comunicativa é, pois, uma classe de interações, na qual os participantes harmonizam
entre si seus planos individuais de ação e perseguem seus fins ilocucionários sem reserva alguma,
isto é, o propósito é o acordo para a coordenação de planos de ação individuais. Habermas admite
que, em contextos complexos de ação, a ação comunicativa pode dar lugar a conseqüências não
intencionadas (quando o falante tem de recorrer a explicações, desmentidos, desculpas, e o ouvinte
pode se sentir fraudado e abandonar a ação orientada ao entendimento), o que significa que atos de
fala em princípio sob ação comunicativa podem ter valor estratégico e provocar efeitos
perlocucionários em diferentes contextos.
Ao definir que, numa condição standard, o falante não quer dizer nada diferente do
significado literal do que disse, Habermas busca reduzir a compreensão de uma emissão ao
conhecimento das condições sobre as quais a emissão pode ser aceita por um ouvinte: “entendemos
um ato de fala, quando sabemos o que o faz aceitável” (Habermas, 1981, p. 382). Ele identifica,
pois, as condições de êxito ilocucionário às condições de aceitabilidade. Esse conceito, para
Habermas, não deve ser abordado de forma objetivista (aceitabilidade pela perspectiva de um
observador), e sim como atitude realizativa de um participante na comunicação. Aceitável é, pois,
um ato de fala que cumpre as condições necessárias (condições de reconhecimento intersubjetivo de
uma pretensão lingüística que estabelece um acordo) para uma postura do ouvinte, frente à
pretensão de vínculo do falante. Duas são as condições pressupostas: correção gramatical
(corretamente formadas) e condições gerais de contexto.
Numa oração exigitiva, gramaticalmente correta, usada como imperativo em condições
adequadas de contexto (por exemplo: “Exijo que não fumes”), as obrigações relevantes para a
interação subsequente são as condições de cumprimento: o ouvinte entende a exigência se
reconhece as condições de produção do estado de coisas desejado e se sabe o que fazer ou omitir
dentro das circunstâncias, para que as condições se cumpram. Não basta, contudo, as condições de
cumprimento, para se saber quando a exigência é aceitável. Um segundo componente é o
conhecimento das condições para que haja um acordo. Isso significa que o ouvinte só entende o
sentido ilocucionário da exigência se sabe por que o falante espera poder impor sua vontade, isto é,
quando aceita a pretensão de poder do falante, pois conhece suas razões. Tais razões não se podem
radicar no sentido ilocucionário do ato de fala, mas no potencial de sanção, vinculado ao ato de fala
de forma externa. A conclusão é que as condições de cumprimento (o ouvinte conhece as condições
sob as quais o destinatário pode produzir o estado desejado) somadas às condições de sanção (o
ouvinte conhece as condições sob as quais o falante espera que o ouvinte se sinta forçado a cumprirse, como, por exemplo, sanções por descumprimento) engendram as condições de aceitabilidade
(condições para uma postura afirmativa do ouvinte).
Esse quadro se complica quando se analisa as exigências respaldadas por um transfundo
normativo (como a ordem para não fumar por causa das normas do tráfego aéreo internacional).
Nesse caso, o falante apela para a validade de normas de segurança, e, por não ser uma decisão
motivada apenas empiricamente, nem ser expressão de uma vontade contingente, revela uma
pretensão de validade, que só pode ser rechaçada na forma de uma crítica com adição de razões
contra (a) a legalidade da normativa (juridicidade de sua validade social), ou (b) a legitimidade da
normativa (pretensão de ser correta), ou (c) por uma justificação prático-moral. A pretensão de
validade resulta, portanto, de uma conexão interna por razões que derivam da força ilocucionária do
ato de fala mesmo, não necessitam de condições de sanção adicionais.
Habermas distingue ainda a validade (do ato ou da norma que o respalda), da pretensão de
validade (de que há o suficiente para que se cumpram as condições) e do desempenho (prova de que
se cumprem as condições de validade do ato ou da norma subjacente). É com a conexão interna
entre esses elementos que o falante pode garantir que aportará razões convincentes contra as críticas
do ouvinte à sua pretensão de validade. Assim, a força vinculante de seu êxito ilocucionário, o
falante deve não à validade de seu dito, mas ao efeito coordenador que tem a garantia que oferece
no desempenho da pretensão de validade de seu ato de fala. Sempre que o papel ilocucionário
expresse, não uma pretensão de poder, mas uma pretensão de validade, não nos encontramos diante
de uma força de motivação empírica, mas uma força de motivação racional, própria da garantia que
acompanha as pretensões de validade.
Só os atos de fala aos quais o falante vincula uma pretensão de validade suscetível de crítica
têm, por sua própria força, a capacidade de mover o ouvinte à aceitação da oferta, podendo resultar
como mecanismo coordenador das ações. Isso define uma precisão maior para o conceito de ação
comunicativa: não basta que os participantes persigam sem reservas, os fins ilocucionários: com os
imperativos em sentido estrito (vinculados a uma pretensão de poder, e não de validade) e nas
exigências não normatizadas, os falantes podem perseguir sem reservas fins ilocucionários e, apesar
disso, estarem atuando estrategicamente. Na ação comunicativa, pois, só se inserem os atos de fala
aos quais o falante vincula pretensões de validade suscetíveis de crítica.
Tais referenciais habermasianos, enunciativos de marcas dos tipos de discursividade, são
metodologicamente suficientes para efetuarmos uma análise do discurso conversionista, na esfera das
relações religiosas. Entretanto, uma conexão desses conceitos com as noções de alteridade e
dialogicidade em Emmanuel Lévinas conduz o estudo em direção a referenciais de ordem ética que
nos parecem importantes para uma reflexão posterior sobre a questão da fraternidade ou de sua
ausência no contexto das relações mediadas pelos conteúdos e práticas da religião.
2. A dialogicidade em Emmanuel Lévinas: o outro como espaço do indizível
A contribuição heurística de Lévinas é, sem dúvida, a da relação que estabelece entre a sua
concepção de alteridade, como sendo aquilo que não se dá ao conhecimento do eu, e a sua noção de
dialogicidade, isto é, ao fato de que a comunicabilidade com a alteridade do outro é, apesar disso,
possível. Por um lado, enfatiza ele que apenas coisas podem ser conhecidas, logo, não sendo coisa o
ser humano, dar-se ao conhecimento é significar-se a partir do que não se é. Entretanto, por outro
lado, Lévinas (1954) propõe que o “rosto” do outro (a emergência de sua alteridade como evento
diante do eu, ou, no dizer do próprio autor, “presença para mim de um ser idêntico a si mesmo” –
Lévinas, 1954, p. 59) se manifesta, evidenciando a diferença que lhe é constitutiva, que não pode ser
ignorada pelo eu, porque lhe é vinculatória. E a relação do eu com o outro, na mediação inesperada
do rosto, é o problema ético fundamental da comunicação.
Ora, esse modo de ver apresenta a comunicação como um paradoxo: uma impossibilidade
cognitiva que, no entanto, ocorre concretamente. Impossibilidade, porquanto relação com o
desconhecido do outro; mas que ocorre, porque o sujeito social existe e se relaciona, apesar da
alteridade. O outro é espaço do indizível, mas há a relação com ele e relação tal que deixa marcas na
linguagem e nos contextos extra-lingüísticos. A linguagem é, destarte, verificação da distância e
condição da proximidade. Desperta o comum em nós, mas supõe alteridade e dualidade. Possibilita,
a um só tempo, transcendência e acesso. Acesso na mediação do conceito e transcendência porque o
conceito não esgota o ser. A alteridade na linguagem é a emergência do rosto de outrem, na sua
singularidade irredutível.
O conteúdo ético dessas considerações é imediato. O face-a-face é quando o rosto rompe o
sistema, via ética de um reconhecimento sem submissão, no qual a palavra se converte em “relação
entre liberdades, que não se limitam, nem se negam, mas se afirmam reciprocamente” (Lévinas,
1954, p. 61).
A comunicação é, nesses termos, definida como a relação de alteridade, da qual emerge o
evento. Relação de impossibilidade, porquanto a alteridade do outro é sempre por definição o
desconhecido, cuja emergência é rosto e toda conceituação não passa de ato de nomear, jamais
resultando em domínio e manipulação, senão como gesto de assassínio, rompimento da condição
humana que, no entanto, fracassa porque o outro enquanto tal é sempre resto, sempre escapa.
Contudo, a impossibilidade comunicativa é obrigatória ao eu, sendo mesmo condição para sua
caracterização como sujeito humano. O sujeito da comunicação é, portanto, sujeito orientado ao
outro, eticamente vinculado de forma irremediável à alteridade que lhe é inalcançável de um ponto
de vista do domínio cognitivo.
Nesse sentido, entram em conexão as perspectivas habermasiana e levinasiana. O ato
comunicativo, enquanto ato de fala nos quais os participantes persigam, sem reservas, os fins
ilocucionários e vinculando pretensões de validade – e não de poder – suscetíveis de crítica, são, sem
dúvida, fundantes de relações dialógicas, dentro das quais o rosto do outro se manifesta de tal forma
que sejam possíveis a recusa de ser conteúdo, a cura da alergia, o desejo, o ensinamento recebido e a
oposição pacífica do discurso1. A interação de tipo comunicativo, enriquecida pela dialogicidade
conforme Lévinas, foi denominada, de forma a nosso ver muito feliz, como alteritária, pelo
professor Weber Lima (Lima, 1998). Não me alongarei, contudo, nas considerações a respeito das
perspectivas de utilização das categorias de Emmanuel Lévinas para a pesquisa da comunicação, por
já tê-lo feito em um trabalho anterior comunicado a este GT (Signates, 1998a), o que possibilita um
aproveitamento do espaço deste texto para as questões relacionadas ao seu objeto específico.
3. O conversionismo na discursividade religiosa: breves estudos de casos
Após as considerações teóricas enunciadas, a questão central deste trabalho pode ser
enunciada como a tentativa de proceder a uma avaliação empírica qualitativa da comunicatividade do
discurso religioso, no âmbito público da comunicação social (rádio, televisão e Internet).
Examinando com especificidade a discursividade conversionista, dada a sua característica moderna,
a questão será procurar perceber como se constrói esse tipo de discurso religioso como espaço de
relações sociais, tanto no sentido das pretensões de poder e/ou validade que o asseguram e que o
vinculam ou às racionalidades sistêmicas ou às relacionadas ao mundo da vida. Acredita-se aqui que
uma reflexão a partir do prisma dos movimentos religiosos, a respeito da tensão discursiva entre
sistema e mundo da vida, possa contribuir para situar as possibilidades de verificação do conceito de
fraternidade ou de solidariedade social num plano de análise ética fundada na natureza construtiva
1
Para uma exposição justificada dessas categorias, ver Signates, 1998a.
das regras intersubjetivas e, com isso, propor aquele conceito dentro do quadro de uma ética
comunicativa.
O quadro situacional desta pesquisa refere-se a dois campos diferentes de trabalho e a
observações igualmente situadas em tempos distintos. O primeiro, diz respeito a alguns programas
religiosos, de caráter espírita e pentecostal, veiculados por algumas emissoras de rádio e televisão de
Goiânia, durante o segundo semestre de 19972. Tanto a presença e o aperfeiçoamento dos discursos
movidos pela racionalidade estratégica, quanto a busca por um discurso de tipo comunicativo,
podem ser encontrados no interior dos movimentos religiosos e na relação que encetam a partir das
programações de rádio e televisão. Neste trabalho, citaremos três casos típicos.
O primeiro, diz respeito ao estilo de programação adotado pelo Ministério Comunidade
Cristã na Rádio Aliança, especialmente o “Show do Rádio”, veiculado por Marcelo Albuquerque,
um jovem egresso de um dos grupos de juventude dessa denominação e que, sem qualquer formação
acadêmica ou técnica, adquiriu experiência trabalhando como produtor e locutor de programas
evangélicos em diversas emissoras de Goiânia. Observa-se, na programação da emissora e, em
especial, no programa movimentado por Marcelo Albuquerque, uma tentativa de negociação de
sentidos entre o vocabulário e o modo de falar próprio dos freqüentadores da igreja, e a linguagem
que histórica e culturalmente se estabeleceu como a “linguagem do rádio”. Albuquerque defende um
modelo de rádio alegre, vibrante, ligado ao formato do entretenimento, e critica emissoras e
programas que, segundo ele,
“... não têm a cabeça aberta para a comunicação. Só querem mostrar o que
têm para mostrar, e não o que o ouvinte tem para mostrar. São emissoras
mantidas pelo dízimo das igrejas. Mesmo uma rádio evangélica, como a nossa,
que é voltada para o segmento evangélico, precisa tocar o que o evangélico
gosta.”
Na prática, o tipo de rádio que esse locutor faz é uma verdadeira mimetização do rádio
popular profissional. O “Show do Rádio” é um programa de dicas, curiosidades, perguntas,
brincadeiras, prêmios e diversos quadros, como de receitas de bolo, bolsa de empregos, sempre com
participação do ouvinte, e tratando de temas atuais, como aborto, homossexualidade, problemas
sociais e econômicos, etc., e muita música gospel. Todo o direcionamento dos assuntos é evangélico
2
Esta parte da pesquisa reorganiza material empírico colhido para a dissertação de mestrado do autor (Signates, 1998, p. 205-216).
ou bíblico, ou culmina numa conclusão que privilegie esse sentido. As perguntas feitas ao ouvinte,
solicitando a participação por telefone, são do tipo que envolve diretamente a vida dentro da igreja:
“Descobre-se que um membro da igreja é homossexual. O pastor deve ou não excluí-lo?”; ou se
remete a temas sociais gerais, como: “Você é contra ou a favor do MST?”
O propósito estratégico, subsumido no interesse conversionista, torna-se claro, nas
declarações de Marcelo Albuquerque. Ao criticar as emissoras concorrentes – como a Rádio Riviera,
da Igreja Universal –, ele afirma:
“Essas rádios muitas vezes não evangelizam falando a língua da pessoa que
quer evangelizar, mas usando a linguagem da própria igreja. Falando a
língua do não-evangelizado, facilita”.
Outro aspecto importante para a realização desse tipo de programação é a resistência que os
contatos comerciais dessa emissora têm para vender a rádio aos anunciantes. Segundo o radialista
Túlio Izac, diretor de programação da Rádio Aliança, o fato de a emissora ocupar o primeiro lugar
no segmento AM não impede que haja dificuldades desse tipo. Por isso, ele traz a própria
experiência profissional para tentar resolver o problema. Os comerciais são, então, produzidos com a
finalidade de criar alternativas para vencer a resistência dos anunciantes em anunciar em emissora
evangélica. Assim, por exemplo, o anúncio de uma marca de arroz é feita a partir de um estímulo à
participação do ouvinte, que sugere uma receita em que o produto seja ingrediente. A propaganda de
um analgésico consome um programete diário de 10 minutos a cada dia, pelo qual ouvintes são
convidados a contar “qual é a sua maior dor de cabeça” (que pode ser o vizinho, a sogra, etc.); após
a narrativa, a emissora toca o jingle do produto. Promoções no próprio ambiente do anunciante
também são opções, como a propaganda de um supermercado, para a qual se adotou o velho
expediente de sortear um consumidor que ganha um tempo para encher o carrinho e ganhar produtos
de graça, com o locutor junto, narrando ao vivo. Garante Túlio Izac:
“Se não fizer assim, ele não anuncia de jeito nenhum. Para o comerciante,
rádio evangélica é aquele modelo de rádio de pregação chata. Eu nunca
ofereço inserção, nem na RBC, mas um projeto específico de venda do produto
dele. E vende.”
Se a solução empregada pela Rádio Aliança foi a de integrar, de forma estrategicamente
negociada, o discurso evangélico e o comercial ou o característico do veículo, a TV Record, por sua
vez, prefere marcar uma separação entre os dois tipos de programação. E é de tal modo feita essa
separação que Francisco Carlos de Almeida, membro à época da gerência de programação da Rede,
em São Paulo, chega a afirmar que “eu sequer tomo conhecimento do que vai ao ar durante o
horário da igreja”. Isso, contudo, não é tão complicado assim. A estratégia da Igreja Universal do
Reino de Deus é extremamente apelativa e se baseia em discursos e orações de seus pastores e
bispos e, sobretudo, em testemunhos, editados em VTs específicos ou obtidos por meio de “falsas
entrevistas” (método, aliás, muito utilizado em programas dotados de ideologia definida, como os
religiosos e políticos).
As “falsas entrevistas” podem ser feitas de dois modos: o modo de edição, em que, primeiro,
grava-se todo o conteúdo de forma declaratória e, depois, no processo de edição, são incluídas as
perguntas; e o modo planejado, em que os ditos são anteriormente preparados pelo entrevistador,
sendo a gravação da entrevista uma espécie de encenação, dentro da qual inexiste a possibilidade de
surpresa ou contraditório para qualquer dos interlocutores. Os pastores da Igreja Universal, na TV
Record, utilizam principalmente este segundo tipo. As entrevistas feitas por eles são sempre dirigidas
dentro de um formato simples e repetitivo. São, invariavelmente, quatro os seus momentos.
1º momento: Sempre se começa pela narrativa das desgraças da vida da família e da pessoa,
motivada por uma pergunta típica: “como era a sua vida?”;
2º momento: O pastor incita o “entrevistado” a tornar a narrativa o mais negativa possível,
fazendo falsas perguntas de reforço, como: “Quer dizer que sua vida era um verdadeiro inferno?” ou:
“Você sentia que o diabo vivia com vocês?”, ou, ainda, de modo mais explícito: “Tudo o que você
faziam dava errado? Vocês não conseguiam ganhar dinheiro?”
3º momento: Em seguida, modifica-se o tom da entrevista, pois o relato se inverte, a partir do
momento em que o pastor convida o entrevistado a falar sobre sua entrada na Igreja Universal, que
é, invariavelmente, apresentado como divisor de águas para a vida da pessoa.
4º momento: O encerramento da falsa entrevista se dá com o pastor e seu entrevistado se
dirigindo ao telespectador, a fim de chamá-lo para a Igreja. Esse momento costuma começar com
uma solicitação do tipo “Diga algo para aquele telespectador que está vivendo hoje um problema
semelhante ao que você viveu”, e normalmente termina com um comentário do próprio pastor,
também nesse sentido.
Durante todo o tempo da entrevista, são exibidos caracteres com nomes e endereços da
Igreja Universal. As variações de conteúdo ocorrem somente por conta do relato do entrevistado,
que, naquele momento, e dentro das condições de enquadramento formal da situação de falsa
entrevista, expõe fragmentos da própria vida, colorindo-os com as cores sempre berrantes que esse
enquadramento exige, seja para desqualificar totalmente a narrativa do passado (muitas vezes
pontuada pelo combate ao Espiritismo, à Umbanda ou ao Candomblé), seja para constituir uma
imagem idílica do presente. O cotidiano narrado torna-se, dessa forma, inteiramente subserviente do
interesse da instituição que possibilita sua narração. Sem que seja necessário duvidar da hipotética
sinceridade do entrevistado, ou, mesmo, sem pretender acusar a Igreja de “fabricar testemunhos” –
talvez até porque tais gestos sejam desnecessários, por conta do jogo de emoções desencadeado pelo
exercício da fé – é notória a condição de falsa entrevista em tais programas.
Essa seqüência se repete com impressionante exatidão, mesmo nos VTs editados, sem a
configuração de perguntas e respostas ou na ausência visível de um pastor. Os VTs são normalmente
longos (de sete a onze minutos cada). No rodapé, em caracteres, os VTs de testemunhos sempre
contam com um rodízio dos endereços da Igreja Universal em Goiânia.
É incorreto, contudo, supor que os movimentos religiosos engendram tais sentidos de
maneira absoluta, ou seja, que a vinculação estratégico-instrumental seja própria ou necessária na
discursividade religiosa. Na Federação Espírita do Estado de Goiás, houve no início de 1997 uma
desavença interna entre a diretoria e o grupo de profissionais (jornalistas, radialistas e publicitários,
todos espíritas, trabalhando gratuitamente para a instituição) que produzia o programa “Espaço
Aberto”, em exibição até hoje aos domingos na TV Brasil Central. O programa era dividido em três
blocos, sendo dois de entrevista e um último, intitulado “Tome Nota”, composto de informações
gerais sobre eventos promovidos pelos espíritas. No formato inicial, proposto e executado pelo
grupo de profissionais, dois convidados, um espírita e outro não-espírita, tratavam de um tema
social, dentre os mais comentados pela imprensa, sob mediação de um jornalista profissional. Foram
feitos, por exemplo, programas sobre “Impunidade”, quando da morte de PC Farias; aborto, quando
da discussão do Projeto Marta Suplicy no Congresso Nacional; etc. A argumentação dos
coordenadores era a de justamente romper com o formato monologal do discurso religioso,
adotando uma perspectiva de diálogo social, dentro da qual os espíritas entrariam com uma das
opiniões. Resguardadas as proporções, o modelo era até certo ponto semelhante ao “25a. Hora”,
transmitido pela TV Record. Entretanto, as discordâncias internas na Federação Espírita do Estado
de Goiás provocaram, no início de 1997, uma mudança total no quadro de direção do setor de
comunicação da instituição, e o programa mudou sua denominação para “Espaço Espírita”, passando
a adotar o modelo de falsa entrevista, em que espíritas conversam entre si sobre temáticas
tipicamente doutrinários.
Um fato semelhante ocorreu também na Rádio Aliança. Durante o ano de 1995, essa
emissora colocava no ar todos os dias úteis, às 15 horas, um programa de debates que, por
coincidência, às segundas feiras se intitulava “Espaço Aberto”. Nela, o diretor à época, Carlos
Antonio, debatia com não-evangélicos diversas temáticas sociais, inclusive controvérsias religiosas,
para as quais convidava membros de outras correntes e denominações. Porém, a política
programática desse diretor entrou em choque com a da Transmundial, proprietária da emissora, para
a qual a função do rádio é pregar e converter, e, por isso, ele foi afastado, ocupando o seu lugar o
pastor Oziander Reis, que adotou um formato mais monológico de discurso religioso, passando a
evitar toda e qualquer controvérsia religiosa no espaço programático e discursivo da Rádio Aliança.
4. Conclusão: por uma reconstrução alteritária do conceito de fraternidade.
Analisando o material colhido, em suas perspectivas lingüística e contextual, isto é, a partir
de um olhar pragmático e tendo em vista as categorias analíticas caracterizadas por Habermas e
deduzidas de Lévinas, a primeira conclusão a que se pode chegar é a constatação de que a
discursividade religiosa de orientação conversionista enquadra-se no âmbito das ações estratégicoinstrumentais, dentro das quais fracassa uma vinculação dialógica e alteritária. Tal constatação pode
ser demonstrada pelo seu cotejamento com as marcas desse modelo de ação em Habermas. Senão,
vejamos.
A primeira marca diz respeito à natureza teleológica da ação conversionista. Segundo
Habermas, a teleologia da ação se revela pela orientação a objetivos que, em princípio, elege meios e
considera conseqüências para atingir uma meta de características monológicas. Ora, o ator religioso,
ao investir no discurso conversionista, articula uma visão instrumental da comunicação, a qual
transparece na interpretação de suas instituições como “meios” para se alcançar os objetivos da
religião. Em seguida, considera como conseqüências nas quais o estado de coisas desejado é a
conversão do outro aos conteúdos e padrões do eu ou do falante, e, com isso, efetua cálculos de
eficácia a partir do êxito em se alcançar a meta (trazer à igreja ou à aceitação de conteúdos
predeterminados). Definida a natureza teleológica do discurso conversionista, subsume-se que o
falante ignora ou menospreza os objetivos do interlocutor e, se os apreende, age de forma
perlocucionária, fazendo-o com o propósito de modificá-los em direção às condições preconcebidas.
O resultado dessa construção de sentidos é o desenvolvimento de modelos monológicos de
fala, sem qualquer espaço para o diálogo, ou que, quando são criados, culminam, conforme se
constata, em jogos de encenações, destituídos das pretensões de validade caracterizadoras da
interlocução comunicativa. A televisão, nesse caso, é percebida e feita não como uma forma de
sociabilidade, e sim como um espelho do mesmo. A falsificação dos diálogos gera, na verdade, uma
espécie de “monólogo a dois”, em que o ego religioso se presume iluminado pela Verdade e intenta
converter a sociedade. O discurso autoritário3 (Orlandi, 1993) termina em mero espelhamento, pois,
ao ignorar os componentes identitários da audiência e os usos que o público faz das programações, é
lícito presumir que o processo de recepção desenvolva resistências e talvez esta seja uma das razões
ponderáveis pelas quais os institutos de pesquisa captam em tais programas e nos “horários
políticos” uma queda significativa de audiência.
Quanto à natureza estratégico-instrumental, a ação conversionista evidencia de forma
diferenciada ambas as características analíticas mencionadas por Habermas. As ações estratégicas
são ações sociais que se especificam como influência sobre o outro, percebido enquanto oponente –
ao menos de forma discursiva, fator que se observa na relação de conversão. Entretanto, a
característica instrumental parece ser historicamente mais recente, derivada dos condicionamentos
tecnológicos da construção das regras de interação no mundo moderno. A instrumentalização da
discursividade religiosa não é muito recente, estando presente nessas esferas desde os manuais de
retórica sacra; mas, tornaram-se inevitáveis e definidores, instalando-se no âmbito do próprio modo
de produção discursiva, na medida que os religiosos, assumindo posições no interior das instituições
modernas de comunicação social, passaram a incorporar especialistas, não obrigatoriamente
3
Eni Pulcinelli Orlandi (1993, p. 24) define o discurso do tipo autoritário como “o que tende para a paráfrase (o mesmo) e em que se procura
conter a reversibilidade (há um agente único: a reversibilidade tende a zero) e em que a polissemia é contida (procura-se impor um só
sentido) e em que o objeto do discurso (seu referente) fica dominado pelo próprio dizer (o objeto praticamente desaparece)”. Tal discurso,
para essa autora, opõe-se ao tipo polêmico, traduzido como aquele que apresenta “um equilíbrio tenso entre polissemia e paráfrase, em que
a reversibilidade se dá sob condições, é disputada pelos interlocutores, e me que o objeto do discurso não está obscurecido pelo dizer, mas
é direcionado pela disputa (perspectivas particularizantes) entre os interlocutores, havendo, assim, a possibilidade de mais de um sentido: a
polissemia é controlada”. Há, ainda, para Orlandi, o discurso lúdico, que é “... aquele que tende para a total polissemia, em que a
reversibilidade é total e em que o objeto do discurso se mantém como tal no discurso”.
vinculados às comunidades religiosas, a fim de garantirem as condições performáticas do discurso, o
que pode significar inclusive a melhor ocultação dos sentidos perlocucionários.
Dos exemplos colhidos empiricamente, ressalta, como demonstração da existência fática de
atos de fala perlocucionários na discursividade conversionista, a utilização do modelo de falsa
entrevista. O contexto teleológico e o propósito perlocucionário só são percebidos pragmaticamente,
isto é, apenas se fazem evidentes quando a análise se desdobra para além da superfície do texto,
abrangendo circunstâncias de contexto, como a performaticidade insistentemente reproduzida e os
conflitos que, não raro, culminam em ações excludentes contra os adeptos que ousam romper com
esse tipo de discursividade. No discurso conversionista, percebe-se a existência de reservas
(conteúdos a serem ocultados pelo participante que atua estrategicamente na interação), derivadas
do fato de as respostas estarem prontas antes mesmo de as perguntas serem feitas, razão pela qual
estas só comparecem na interação de forma condicionada.
Resta, ainda, avaliar até que ponto o discurso religioso conversionista se efetua a partir de
pretensões de poder. Segundo Habermas, o modo de analisar esta categoria é a avaliação das
condições de aceitabilidade do ato de fala exigitivo em condições adequadas de contexto, sendo que
tais condições implicam razões radicadas no potencial de sanção, de natureza extralíngüística,
vinculado de forma externa ao ato de fala. Ora, no caso do discurso religioso contemporâneo, o
potencial de sanção só se dá em situações muito específicas de contexto, que é justamente o que as
instituições religiosas têm perdido ao longo do processo de modernização. Tais condições apenas
existem de forma importante no âmbito intrainstitucional, sendo interessante, na abordagem desses
fatores, considerar os estudos da microfísica do poder, em Michel Foucault. Assim sendo, pode-se
concluir dessa análise que o discurso conversionista é nitidamente estratégico e às vezes carregado
de características instrumentais, graças às pretensões de poder de que os seus falantes o revestem;
entretanto, tais pretensões têm perdido a capacidade de desempenho, devido tanto à fragmentação
de sentidos, quanto à democratização das capacidades de participação social.
Tais características parecem se enquadrar no que Habermas categorizou como patologias da
comunicação, isto é, a constatação de uma distorção sistemática, como resultado da confusão entre
ações orientadas ao êxito e ações orientadas ao entendimento. A esse problema, ele denominou
manipulação, quando pelo menos um dos participantes age estrategicamente e faz parecer aos
outros que cumpre os pressupostos da ação comunicativa; e defesa inconsciente (conceito
psicanalítico), que produz perturbações na comunicação, quando ao menos um dos participantes se
engana a si mesmo, gerando a aparência da ação comunicativa. É preciso fazer aqui, porém, uma
ressalva às conceituações de Habermas, a fim de que a noção de manipulação não nos conduza de
novo a uma perspectiva monológica, traduzida pela passividade necessária dos ouvintes,
característica que tem sido superada pelas mais recentes teorizações e pesquisas no campo da
recepção. E isso o fazemos ao distinguir analiticamente, numa perspectiva de pragmática sóciointeracionista em Habermas, as pretensões dos falantes e os respectivos desempenhos. No âmbito
destes, toda manipulação se desempenha negociada por situações de contexto.
E, por fim, o último referencial analítico diz respeito à possibilidade de crítica às pretensões
de validade. Nossa conclusão a esse respeito é a de que o discurso religioso conversionista não
admite a crítica de suas pretensões – exatamente por não serem pretensões de validade, e sim de
poder – sem se descaracterizar como conversionista. A ação conversionista traz, por definição, uma
dinâmica identitária, para a qual o rosto do outro surge como problema a ser anulado e não como
possibilidade de desempenho cognitivo ou afetivo. Isso significa que – e esta conclusão tem valor
axiomático para a busca em direção à qual este trabalho se encaminhou – a condição de
possibilidade da interação de tipo comunicativo dentro da discursividade religiosa é diretamente
dependente da renúncia ou da perda de seu caráter conversionista. Este axioma é fundante, no
estudo das condições de possibilidade da ação comunicativa no discurso religioso.
Um extraordinário estudo a respeito da religiosidade em Habermas é, sem dúvida, a obra
Religião e modernidade em Habermas (1996), de Luiz Bernardo Leite de Araújo, publicada a partir
de sua tese doutoral, defendida na Universidade de Louvain, na Bélgica. Este autor demonstra
copiosamente, em seus estudos, que Habermas propõe que a perda do fundamento absoluto das
verdades de crença não deve ser lamentada, pois o que resta dessa perda é suficiente para remeter as
sociedades modernas ao longo caminho do entendimento mútuo, ao abrigo de toda insinuação
dogmática. A perda da segurança quanto ao caráter absoluto das normas conduz os homens ao
acordo normativo fundado na validade racional dos atos de fala. A esfera religiosa é, pois, absorvida
pela comunicação. A argumentação, contudo, não aniquila a tradição, mas apenas a supera enquanto
autoridade anti-argumentativa, determinando que a construção da discursividade e da ação religiosas
subsuma não a preferência de valores, mas a validez prescritiva de normas de ação, o que, no
entender de Araújo, “é campo imenso para a esfera religiosa”. O religioso deverá assim buscar no
mundo da vida, onde prevalece a ética comunicativa, o seu lugar, já que ali há o debate livre acerca
de conteúdos morais concretos, a aspectos substantivos sobre os quais todo religioso tenha algo a
dizer. A ética discursiva é, portanto, uma ética de fraternidade despida do caráter dogmático e da
fundamentação religiosa absoluta.
Em termos conclusivos, reunimos alguns indicadores de ordem ética e discursiva do que pode
ser uma reconstrução da noção de fraternidade no interior das práticas religiosas.
a)
Ruptura com o conversionismo. Estabelecimento de suportes dialógicos,
ancorados em pretensões de validade suscetíveis de crítica.
b)
Superação da auto-centração. Busca do outro enquanto tal, com o propósito
constitutivo de aprender com ele, assegurando-lhe alteridade sem perda da própria
identidade, isto é, a relação entre diferenças não obrigatoriamente redutíveis uma à outra.
c)
Renúncia às pretensões de poder. O que significa evidentemente renúncia às
garantias extra-lingüísticas de coerção e sanção.
d)
Desenvolvimento do sentido de reflexividade e auto-crítica. Busca da verdade
sem jamais supô-la; reestruturação ética das próprias posições, diante da alteridade
manifesta.
e)
Desocultação das reservas. Efetuando com isso a ruptura com os procedimentos
perlocucionários.
f)
Interação com conhecimentos e discursividades instaladas em outros domínios,
visando interlocução. Em termos religiosos, o ecumenismo possível.
Ao final, uma observação marginal, porém interessante... Existe, no arcabouço teológico da
tradição cristã, suficiente fundamentação para tal ética. Porém, o cotejamento teológico ou bíblico
escapa aos objetivos e à metodologia deste trabalho...
Bibliografia
HABERMAS, Jürgen (1981) Intermediate reflections: social action, purposive activity and
communication. In:___________ The theory of communicative action: reason and the
rationalization of society (V. 1). Boston : Beacon Press, 1996. (p. 273-337)
LÉVINAS, Emmanuel (1954) O eu e a totalidade. In: ________ Entre nós. Petrópolis : Vozes,
1997. (p. 34-65)
SIGNATES, Luiz (1998) O evento além das grades: um estudo sócio-interacionista e
fenomenológico da comunicação a partir das programações de rádio e televisão. Brasília
: UnB. (Dissertação de Mestrado)
SIGNATES, Luiz (1998a) Os espíritas na Internet: interatividade e alteridade no jogo das
identidades culturais. Recife : XX Intercom : GT Comunicação e Religiosidade.
LIMA, Weber (1998) Comunicação e experiência religiosa. Goiânia : UFG.
ARAÚJO, Luiz B. L. (1996) Religião e modernidade em Habermas. São Paulo : Loyola.
ORLANDI, Eni P. (1993) Discurso e leitura. São Paulo : Cortez.
TERRIN, Aldo N. (1992) Nova era: a religiosidade do pós-moderno. São Paulo : Loyola, 1996.
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A ética do discurso religioso, entre o estratégico e o