Singular e plural na poesia de Augusto
“Por muito que de mim procure na memória,
não alcanço data mais velha à do ano de 1900,
para o começo de minhas relações
pessoais com Augusto dos Anjos.
Feriu-me de chofre o seu tipo excêntrico
de pássaro molhado,
todo encolhido nas asas com medo da chuva”.
Órris Soares, 1920
A Paraíba, cada vez mais, tem sido pródiga no lançamento de poetas
e poesias. Isso desde o início do século, já que em relação a períodos
anteriores há pouca coisa registrada em relação ao assunto. Nos dias
de hoje, por exemplo, chega a impressionar a quantidade de poetas
que surgem nos saraus, eventos literários e nas editoras da
província. Há quem diga, com tom mais crítico, que a Paraíba tem
um poeta para cada habitante. Pode parecer exagero, mas não deixa
de ter sua razão quem assim pensa. Basta dar uma olhada nas
páginas de jornais e conferir os livros lançados mês a mês. A poesia
sempre ocupada lugar de destaque, e, guardadas as saudáveis
exceções, como Sérgio de Castro Pinto, Políbio Alves, Vanildo Brito,
Jomar Morais Souto e Marcos Tavares, entre poucos outros, o
destaque sempre tem sido maior do que merecido.
No caso, quantidade quase nunca está a rimar com qualidade. Em
pouco mais de 4 séculos de existência, a Paraíba pouco produziu em
termos de qualidade literária. Na poesia, então, raríssimos nomes
merecem citação. O maior dele, lógico, é Augusto dos Anjos. Depois
(ou mesmo antes) do autor de EU quem se lembra de outro nome
que atravesse os séculos? Em favor dos demais, há o fato de que de
um modo geral tem sido assim também nos estados. Em Minas
Gerais, cita-se Carlos Drummond de Andrade, no Rio de Janeiro,
Vinicius de Moraes, em São Paulo, os Andrades e os irmãos Campos
e por ai vai. De fato. Mas não deixa de ser constatador que a singular
poesia de Augusto dos Anjos singularize tanto nossa estrada de
versos ao longo das décadas. É como se o EU resumisse a ideologia
de uma terra que tem muitos talentos, mas talentos esses que não
costumam trabalhar em bloco. Há uma dose exagerada de
individualismo em cada um de nós. É como a poesia de Augusto dos
Anjos. Plural na qualidade dos poemas. Singular na quantidade de
poetas com P maiúsculo.
Augusto dos Anjos teve esse mérito de ser singular e plural ao
mesmo tempo. Foi singular na forma, no conteúdo, no vocabulário,
no próprio isolamento dos círculos literários de sua época. Foi
singular no único livro lançado – EU, obra que incomoda a crítica
tradicional até hoje. Os próprios críticos e teóricos reconhecem isso.
Otto Maria Carpeaux, por exemplo, o classificou como “o mais
original, o mais independente dos poetas mortos do Brasil”. Hermes
Fontes disse coisa parecida:
“Augusto dos Anjos é um poeta que não se confunde com os outros.
É diferente dos demais pelo credo, pela leitura e pela grande
independência de pensar e dizer”.
Antônio Torres afirmou coisa semelhante, em 1914:
“O autor do EU era um caso realmente curioso, quase dizia, singular,
na literatura brasileira”.
Interessante que em sua vida pessoal não existiu nada de singular.
A julgar pela biografia divulgada pelos estudiosos da sua obra e de
sua vida, Augusto dos Anjos era uma pessoa comum. Transposto
para hoje, seria um típico cidadão de classe média que, após a
falência da família, perambulou por vários empregos até se
acomodar numa cidadezinha qualquer do interior do país. Quantos
professores de hoje não vivem drama semelhante ao que passou o
vate paraibano? Ademais, Augusto dos Anjos também não teve
grandes paixões e até a doença que o dizimou não foi o mal da época
– a tuberculose. Não fosse a singularidade da sua poesia, seria mais
um plural entre tantos brasileiros do início do século.
Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos nasceu no dia 20 de abril
de 1884, no Engenho Pau D´Arco, município de Cruz do Espírito
Santo, Paraíba. Filho de Alexandre Rodrigues dos Anjos e D. Córdula
de Carvalho Rodrigues dos Anjos, recebeu do pai as primeiras letras
e instrução colegial. “Saudade” é o título do seu primeiro poema,
publicado no Almanaque do Estado da Paraíba, em 1900. Torna-se
colaborador assíduo de jornais da Paraíba e de Recife, com crônicas
e poemas. Em fevereiro de 1903, transfere-se para o Recife e se
inscreve na Faculdade de Direito.
Em 1905, seu pai, Alexandre Rodrigues dos Anjos, morre e Augusto
lhe dedica três sonetos: “A meu pai doente”, “A meu pai morto” e “Ao
sétimo dia do seu falecimento”. Em 1908, retorna à capital da
Paraíba. Dá aulas particulares e colabora com o jornal da Festa das
Neves, Nonevar. No mesmo ano, é nomeado professor do Liceu
Paraibano. Em 1909 começa a colaborar com o jornal A União, onde
publica poemas como “Budismo moderno”, “Mistérios de um fósforo”
e “Noite de um visionário”.
No dia 4 de julho de 1910, casa-se com Ester Fialho. Sua família
vende o Engenho Pau D´Arco e Augusto dos Anjos demite-se do
Liceu Paraibano. Embarca com a mulher para o Rio de Janeiro, onde
chega a 13 de setembro. No ano seguinte, Ester, grávida de seis
meses, perde a criança. Em 23 de novembro, nasceria Glória, sua
filha. Por essa época, mudava constantemente de endereço.
Em 6 de julho de 1912 termina a impressão do EU, custeada por ele
e por seu irmão, Odilon. Em 1913, no dia 12 de junho, nasce
Guilherme Augusto, filho do poeta. Nomeado diretor do Grupo
Escolar de Leopoldina, transfere-se para aquela cidade no dia 22 de
julho de 1914. Morre na cidade mineira no dia 12 de novembro de
1014, vítima de pneumonia.
Após a morte, Augusto dos Anjos foi vítima de várias injustiças, de
vários equívocos. Estudiosos e críticos apressaram-se em definir sua
obra das formas mais estapafúrdias possíveis. Outros foram mais
longe e julgaram o autor através de seus poemas. Augusto dos Anjos
era sempre uma pessoa triste, melancólica, amante da morte e que
desprezava o amor. Ora, nem o mais pessimista dos mortais seria
assim.
Não se encontra, entre os escritos sobre o poeta do EU, nenhum
depoimento claro comprovando tais afirmações. Nem mesmo quem
conviveu com o poeta, como o jornalista paraibano Órris Soares,
autor do belíssimo prefácio à segunda edição do EU. Nas lembranças
que guardava do poeta, Órris Soares não exagerava no tom de
tristeza, embora reconhecesse a seriedade com que Augusto dos
Anjos encarava os desatinos normais da vida. Assim, prefiro imaginar
os vários momentos alegres do poeta paraibano. Por que ele não
brincaria feliz no engenho da família, quando ainda era criança? E
por que essa felicidade não se multiplicaria com o nascimento de
seus dois filhos, anos mais tarde, apesar da morte do que seria o
primogênito? O seu sucesso nas letras como estudante também não
seria motivo para provocar alegria no poeta? E o casamento com
Ester? Não, Augusto dos Anjos não era apenas um ser triste pela
própria natureza. A vida talvez o tenha transformado num homem
amargo, excessivamente reticente quanto ao destino da
humanidade. Um discípulo de Schopenhauer num país onde só se
aceita a depressão se ela acontecer provocada por um mal de amor.
Para os nossos meios acadêmicos, a dor é um sentimento menor se
tiver como causa o desemprego ou a falta de perspectivas na vida
para uma pessoa. Os grandes dramas humanos – como seca,
escravidão, etc, etc, etc – até que tem um caráter nobre para muitas
dessas pessoas. Nesse tolo engano, talvez resida a explicação para
o sucesso da poesia de Augusto dos Anjos. Ora, enquanto muitos
apostam nos dramas coletivos, Augusto dos Anjos preferia reproduzir
em sua poesia a angústia do homem comum. Mesmo utilizando
termos científicos e o vocabulário empolado da época, não deixava
de reproduzir os dissabores do homem comum. Mais uma vez o
singular aparece forte em sua obra e o poeta individualiza os
sentimentos para tornar a poesia universal. O vocabulário difícil só
faz acentuar ainda mais essa identificação com o leitor comum, que
adora ver seus dramas narrados de forma sofisticada. Era um poeta
popular, como bem lembrou Fausto Cunha, relatando ter ouvido pela
primeira vez os versos do paraibano na voz de uma pessoa do povo,
quando trabalhava numa fábrica de tecidos em Pernambuco. Mas
vamos à poesia, que ela é a melhor razão para essas considerações.
Difícil alguém, com algum pingo de idealismo, não se identificar com
versos como esses, de “Monólogo de uma sombra”:
“(...) Com um pouco de saliva quotidiana
Mostro meu nojo à Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
E o animal inferior que urra nos bosques
É com certeza meu irmão mais velho!”
Ou a derrota interior de “Psicologia de um vencido”:
“Sofro, desde a epigênesis da infância
(...) A influência má dos signos do zodíaco”.
Por que não o arremate fatal no belíssimo soneto “O Morcego”?
“(...) A consciência Humana é este morcego!”.
“As cismas do destino” insere-se na bela tradição lírica dos poemas
longos, tão comuns na filosofia personalíssima do poeta português
Fernando Pessoa. Como um pouco de desalento não faz mal a
ninguém, não seria exagero imaginar quantas pessoas comuns se
identificaram, ao longo dos anos, com versos como os que transcrevo
a seguir:
“(...) Ninguém compreendia o meu soluço,
Nem mesmo Deus!
(...) Ah! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma força especial que me esperava!
(...) Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em tora a moral do cristianismo!
Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam
Eu não deixasse o meu cuspo carrasco,
Jamais exprimiria o acérrimo asco
Que os canalhas do mundo me provocam!
(...) Prostituição ou outro qualquer nome,
Por tua causa, embora o homem te aceite,
É que as mulheres ruins ficam sem leite
E os meninos sem pai morrem de fome!”
Falemos de filosofia fatalista? Por que não os versos finais de “Último
Credo”?
“Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!”.
Ou o mais que popular “Versos Íntimos”:
“Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!”.
E o lamento agoniado do primeiro verso de “Queixas Noturnas”:
“Quem foi que viu a minha Dor chorando?!”.
Esse elo de ligação com o leitor comum acentua-se de forma
surpreendente num poeta que tinha por hábito discorrer sobre
amores e paixões com altas dosagens eróticas. Afinal, no Brasil, o
lugar-comum sempre foi deixar os sentimentos da carne aflorarem de
forma explícita. Prevalecia nos poetas brasileiros os versos que
abusavam do lirismo reverenciando as moçoilas de então, com uma
ou outra exceção. E mesmo as exceções, como em Castro Alves,
funcionavam apenas em alguns poemas. No conjunto geral da obra,
sempre havia espaço para a poesia lírica, erótica, sensual. Em
Augusto dos Anjos, essa exceção só surgia como negação aos
desejos. Como no poema “A Meretriz”:
“A rua dos destinos desgraçados
Faz medo. O Vício estruge. Ouvem-se os brados
Da danação carnal... Lúbrica, à lua,
Na sodomia das mais negras bodas
Desarticula-se, em coréias doudas,
Uma mulher completamente nua!
É a meretriz que, de cabelos ruivos,
Bramando, ébria e lasciva, hórridos uivos
Na mesma esteira pública, recebe,
Entre farraparias e esplendores.
O eretismo das classes superiores
E o orgasmo bastardíssimo da plebe! (...)”.
É como se Augusto dos Anjos rejeitasse o erotismo intrínseco e
natural a qualquer ser humano. Como se o encarasse como um
sentimento abjeto, asqueroso, que deveria ser desprezado pelas
pessoas cultas. Como se o poeta estivesse aprisionado pelos seus
próprios desejos, temendo libertá-los. A propósito, confiram esses
trechos do poema “Lupanar”:
“Ah! Por que monstruosíssimo motivo
Prenderam para sempre, nesta rede,
Dentro do ângulo diedro da parede,
A alma do homem polígamo e lascivo?! (...)”
Ou este outro de “Pecadora”:
“Tinha no olhar cetíneo, aveludado,
A chama cruel que arrasta os corações,
Os seios rijos eram dois brasões
Onde fulgia o simb’lo do Pecado. (...)”
Enfim, o sociólogo Gilberto Freyre escreveu que Augusto dos Anjos
era extremamente sensível a tudo que lhe parecia sordidez. “O
mundo do sexo era para ele um mundo sórdido, em que o homem só
fazia degradar-se numa espécie de lama: lama de carne”, teorizou.
Anti-erótico em sua poesia, Augusto dos Anjos não renegou o
romantismo em seus versos. Chegou a negar o amor em alguns
poemas, é verdade. Como no caso de “Idealismo”:
“Falas de amor, e eu ouço tudo e calo
O amor na Humanidade é uma mentira.
E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.
O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo? (...)”.
Negação por conta de alguma desilusão amorosa? Quem sabe?
Em “Estrofes Sentidas”, ele tenta explicar essa rejeição ao amor:
Eu sei que o Amor enche o Universo todo
E se prende dos poetas à guitarra
Como o Pólipo que se agarra ao lodo
E a ostra que às rochas eternais se agarra.
O Amor reduz-nos a uniformes placas,
Uniformiza todos os anelos
E une organizações fortes e fracas
Nos mesmos laços e nos mesmos elos.
Por muito tempo eu lhe sorvi o aroma,
E, desvairado, sem prever o abismo
Fiz desse amor um ídolo de Roma,
Eleito Deus no altar do fetichismo!
Tudo sacrifiquei para adorá-lo
- Mas hoje, vendo o horror dos meus destroços,
Tenho vontade de estrangulá-lo
E reduzi-lo muitas vezes a ossos!
(...) Dos meus sonhos o exército desfila
E, à frente dele, eu vou cantando a nênia
Do Amor que eu tive e que se fez argila,
Como Tirteu na guerra de Messênia! (...)”.
O fato é que, se negou o amor, não conseguiu esconder o
romantismo e o lirismo em muitos de seus versos. Agripino Grieco
cita como exemplo desse caráter romântico-afetivo mal disfarçado no
poeta a singeleza lírica da dedicatória do livro lançado: “à mãe,
esposa, filhinha e irmãos”. Depois, o mesmo Agripino Grieco
radicaliza e diz que Augusto dos Anjos praticou o “romantismo do
macabro”. Prefiro saudar a lírica que aparece na poesia do paraibano
e que não exibe, necessariamente, um culto ao macabro, ao
horrendo, à morte. São vários os poemas do autor do EU com esse
tom romântico/lírico/nostálgico. Como este soneto que, inclusive,
desmitifica a tese de que Augusto dos Anjos era um ser incapaz de
felicidade:
“O sonho, a crença e o amor, sendo a risonha
Santíssima Trindade da Ventura
Pode ser venturosa a criatura
Que não crê, que não ama e que não sonha?!
Pois a alma acostumada a ser tristonha
Pode achar por acaso ou porventura
Felicidade numa sepultura,
Contentamento numa dor medonha?!
Há muito tempo, o sonho, do meu seio
Partiu num célere arrebatamento
De minha crença arrebentando a grade
Pois se eu não amo e se também não creio
De onde me vem este contentamento,
De onde me vem esta felicidade?!”.
Exemplo perfeito desse lirismo augustiano são os três sonetos
dedicados ao seu pai, embora no terceiro o poeta tenha caído na
tentação de dar vazão aos seus instintos sádicos. Confiram o que é
dedicado ao seu pai morto, o mais velo dos três:
“Madrugada de Treze de Janeiro.
Rezo, sonhando, o ofício da agonia.
Meu Pai nessa hora junto a mim morria
Sem um gemido, assim como um cordeiro!
E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!
Quando acordei, cuidei que ele dormia,
E disse à minha Mãe que me dizia:
“Acorda-o”! deixa-o, Mãe, dormir primeiro!
E saí para ver a Natureza!
Em tudo o mesmo abismo de beleza,
Nem uma névoa no estrelado véu...
Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,
Como Elias, num carro azul de glórias,
Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!”.
Outro belo soneto merece ilustrar essa fase lírica do poeta. Falo de
“A Árvore da Serra”. Aqui, o trágico que encerra o poema não tem
nada de macabro ou assustador. Tem, sim, de um idealismo que
valoriza as coisas simples da sua terra. Confiram:
“- As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!
- Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pos almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ...
- Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa:
“Não mate a árvore, pai, para que eu viva!”
E quando a árvore, olhando a pátria serra,
Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!”.
Por que não o romantismo com o lado material da vida. Ele está
presente, de forma perfeita, em “O Lamento das Coisas”:
“Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos,
O choro da Energia abandonada!
É a dor da Força desaproveitada
- O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
jazem ainda na estática do Nada!
É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza...
Da luz que não chegou a ser lampejo...
E é em suma, o subconsciente ai formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!”.
E a ambição de ser superior ao próprio luar, neste poema de Outras
Poesias:
“Quando à noite, o Infinito se levanta
À luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha tátil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!
(...) Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com minha plenitude!”.
Um pouco de telurismo não faz mal também a Augusto dos Anjos.
Como nos versos de “Saudade”:
“(...) E assim afeito às mágoas e ao tormento,
E à dor e ao sofrimento eterno afeito,
Para dar vida à dor e ao sofrimento,
Da saudade na campa enegrecida
Guardo a lembrança que me sangra o peito,
Mas que no entanto me alimenta a vida.”
Quem disse que não há descontração e irreverência no ritmo poético
do autor do EU? É porque não leu “Noivado”. Confiram:
“Os namorados ternos suspiravam,
Quando há de ser o venturoso dia?!
Quando há de ser!? O noivo então dizia
E a noiva e ambos d’amores s’embriagavam.
E a mesma frase o noivo repetia;
Fora no campo pássaros trinavam,
Quando há de ser!? E os pássaros falavam;
Há de chegar, a brisa respondia.
Vinha rompendo a aurora majestosa,
Dos rouxinóis ao sonoroso harpejo
E a luz do sol vibrava esplendorosa.
Chegara enfim o dia desejado,
Ambos unidos soluçara um beijo,
Era o supremo beijo de noivado!”.
É forçoso reconhecer que em Augusto dos Anjos o romantismo se
não era macabro, como queria Agripino Grieco, também não era
apenas singelo. Havia sempre um quê de melancolia em seu lirismo.
É como se ele tentasse disfarçar a ternura envolta na nuvem cinza
da tristeza que invadia sua alma. Isso está evidente em poemas
como “Triste Regresso”, onde a pretexto de falar do amor de um
soldado por uma bela virgem, acaba compondo um arremate trágico
para o soneto. O soldado vence todas as batalhas da guerra, mas
encontra a sua amada morta. Ou um outro soneto, onde o poeta
louva o mar, mas o compara a um cemitério.
Não é à toa que muitos estudiosos procuraram razões clínicas para
o vocabulário cientificista e para a obsessão não só pelo sangue,
como diz em um de seus poemas. Mas também pela dor, pelos
coveiros, pelos cemitérios, enfim, por tudo que a humanidade rejeita.
Daí muitos classificá-lo de pessimista.
Prefiro reconhecer em Augusto dos Anjos um ceticismo além do
normal. E é esse ceticismo que o faz mal disfarçar a crença nas
coisas da Igreja. Chamavam-no de materialista, por conta da
influência de Ernest Haeckel e outros modismos científicos/literários
da época. Discordo de mais essa tese. Se não, por que versos como
esses de “Última Visio”:
“Quando o homem resgatado da cegueira
Vir Deus num simples grão de argila errante,
Terá nascido nesse mesmo instante
A mineralogia derradeira!
(...) A Verdade virá das pedras mortas
E o homem compreenderá todas as portas
Que ele ainda tem de abrir para o Infinito!”.
Prefiro vê-lo como uma vítima do dualismo, como ele próprio se
define em poema que tem justamente esse titulo – “Vítima do
Dualismo”. Dividido entre o materialismo que aprendeu nas letras e
o espiritualismo que herdou da tradição familiar. Na dúvida,
valorizava, em seus poemas, o materialismo, o “cosmopolitismo das
moneras”, o EU. Por isso, para entender um pouco mais a alma do
poeta, aconselho a leitura dos poemas dispersos, dos versos de
circunstâncias. Neles não há a qualidade técnica dos incluídos no
EU, é claro. Mas na falta de um protocolo rígido de qualidade literária,
sobra espontaneidade, em alguns, irreverência, em outros.
Augusto dos Anjos era então, para mim, um cético que não
acreditava na sinceridade dos ideais humanos. Um de seus poemas
esquecidos, inclusive, tem o título de “Ceticismo”. Ele era apenas um
idealista ao contrário. Ou seja: não acreditava que a humanidade
fosse muito longe. Afinal, vivíamos (e vivemos) cercados por
orgulhos bestas, invejas, ódios e outros defeitos tão comuns à raça
humana. Como ser otimista vendo quadro tão melancólico? Recorro
mais uma vez a Agripino Grieco. Ele dizia que havia em Augusto dos
Anjos “uma certa volúpia feroz de escandalizar o burguês, ou seja, o
velho prazer aristocrático de, tanto quanto possível, contrariar os
escrúpulos do próximo”. Aceita-se, assim, a “influência” de nomes
como Schopenhauer, Edgar Allan Poe, Antero de Quental, Cruz e
Sousa, Baudelaire, Cesário Verde e Guerra Junqueiro. Ou do
Budismo, Centificismo, Parnasianismo, etc, etc, etc. Mas Augusto
dos Anjos foi muito mais do que essas escolas e tendências todas
em voga em no início do século passado. Foi muito mais,
principalmente, do que todos esses poetas citados. Não há uma
escola sequer que abrigue, sem contestação, seu estilo único. Não
há um poeta citado que o tenha influenciado ao pé da letra. Foi
singular. É singular. Sempre será singular na literatura brasileira...
Minha terra tem tamarindos...
Gonçalves Dias, poeta maranhense que foi destaque no Romantismo
brasileiro, era conhecido mais pelas canções de amor à Pátria, ao
seu país. “Canção do Exílio”, seu poema mais conhecido, fala da
saudade das palmeiras e do Sabiá, num canto de lirismo e amor às
coisas da sua terra, da sua gente. Vamos recordar o poema citado:
"Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá."
Augusto dos Anjos também era um romântico, como Gonçalves Dias,
apesar de muitos teóricos não concordarem com tal afirmação. É que
sendo singular, lógico que não exporia esse romantismo da forma
comum a todos os poetas de então. A exemplo de Gonçalves Dias,
ele também cantou a sua terra natal – a velha Paraíba -, e a sua flora.
Só que ao contrário do poeta maranhense, singulariza mais uma vez
sua poesia ao escolher a árvore de devoção. Ora, não vivemos numa
terra tropical, cercada de palmeiras e sabiás gorjeando por todos os
recantos? Para Augusto dos Anjos, todo esse simbolismo-pátrio não
tinha a menor importância. Ele foi buscar no tamarindo a razão maior
para a sua canção poética. Não poderia ser diferente. Note-se que o
tamarindo é um fruto azedo, áspero e do agrado de muitos poucos.
Alguma semelhança com o próprio poeta, objeto desse estudo?
Prefiro ver como coincidência que a principal fonte de inspiração do
poeta seja o tamarindo de sua infância. É a ele que sempre recorre
quando quer dar provas da saudade que tinha pela terra natal ou
mesmo da infância protegido pela sombra do tamarindo. Vários
poemas falam desse amor, que nada mais é do que uma adaptação
para o estilo augustiano do romantismo patriótico de Gonçalves Dias.
Comecemos pelo mais conhecido deles, o famoso “Debaixo do
Tamarindo”:
“No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilissimos trabalhos!
Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flora Brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!
Quando pararem todos os relógios
De minha vida e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,
Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!”
Observem que o poeta atribui ao tamarindo como se fosse uma aura
mítica que abriga a alma dos Carvalhos. Percebam, também, que
esse poema, por si só, já serviria para desarrumar uma outra tese
que vem sendo, ao longo dos anos, cultuada por muitos: a de que
Augusto dos Anjos, magoado com a Paraíba, não queria ser
enterrado em nosso solo. Se assim fosse, por que o poeta diz que
após a sua morte a sua sombra há de ficar debaixo do tamarindo
querido? Outro poema – “Minha Árvore” – corrobora esse amor pelas
coisas da sua terra, da sua infância. Só que aqui, o simbolismo é
muito maior a unir o poeta e a árvore querida:
“Olha: E um triângulo estéril de ínvia estrada!
Como que a erva tem dor... Roem-na amarguras
Talvez humanas, e entre rochas duras
Mostra ao Cosmos a face degradada!
Entre os pedrouços maus dessa morada
É que, às apalpadelas e às escuras,
Hão de encontrar as gerações futuras
Só, minha árvore humana desfolhada!
Mulher nenhuma afagará meu tronco!
Eu não me abalarei, nem mesmo ao ronco
Do. furacão que, rábido, remoinha...
Folhas e frutos, sobre a terra ardente
Hão de encher outras árvores! Somente
Minha desgraça há de ficar sozinha!”.
Augusto dos Anjos não tinha essa fobia toda à Paraíba, como
insistem em apregoar alguns. Talvez houvesse uma mágoa profunda
em relação a algumas pessoas de quem o poeta tenha sido vítima de
desprezo ou desprestígio na terra natal. Em toda a obra de Augusto
dos Anjos, há, em um ou outro verso, citações de ruas da Paraíba
(como em “Noite de um Visionário”) ou de coisas da terra natal. Onde
que está o ódio citado por familiares e a mágoa comentada por
estudiosos da obra, então? No belíssimo “Poema Negro”, onde o
autor do EU deixa aflorar seu lado filosófico, ele encontra uma forma
de acomodar Jesus Cristo na Serra da Borborema:
“(...) A desagregação da minha Idéia
Aumenta. Como as chagas da morféia
O medo, o desalento e o desconforto
Paralisam-me os círculos motores.
Na Eternidade, os ventos gemedores
Estão dizendo que Jesus é morto!
Não! Jesus não morreu! Vive na serra
Da Borborema, no ar de minha terra,
Na molécula e no átomo... Resume
A espiritualidade da matéria
E ele é que embala o corpo da miséria
E faz da cloaca uma urna de perfume. (...)”.
Em “Queixas Noturnas”, cita o pintor Pedro Américo, paraibano
natural de Areia:
“(...) O quadro de aflições que me consomem
O próprio Pedro Américo não pinta...
Para pintá-lo, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem! (...)”
No mesmo poema, mais adiante, o tamarindo volta a ser fonte de
inspiração:
“(...) Hoje é amargo tudo quanto eu gosto;
A bênção matutina que recebo...
E é tudo: o pão que como, a água que bebo,
O velho tamarindo a que me encosto! (...)”
No longo e tocante poema “Tristezas de um Quarto Minguante”,
Augusto dos Anjos volta a dar vazão à sua devoção pela terra natal,
pelo Engenho Pau D´Arco. Aliás, todos os versos são digressões
filosóficas sobre a amargura do seu estado de espírito, mas sem
esquecer a importância do engenho para sua formação moral e
espiritual:
“Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare,
Este Engenho Pau d’Arco é muito triste...
Nos engenhos da várzea não existe
Talvez um outro que se lhe equipare! (...)
Abro a janela. Elevam-se fumaças
Do engenho enorme. A luz fulge abundante
E em vez do sepulcral Quarto Minguante
Vi que era o sol batendo nas vidraças. (...)”
Em “Mistérios de um Fósforo”, lembra mais uma vez seu pai, ao
atribuir à herança paterna a tristeza de seus olhos. Aliás, diria que
nem só de louvações amargas ao engenho e ao tamarindo foram
feitos os versos de Augusto dos Anjos exaltando à terra amada.
Quando fala do pai, da mãe, da ama de leite, dos filhos e dos irmãos,
não deixa, ainda, de ser uma forma de reverenciar suas raízes. Há
sempre aqueles que dirão ser natural que o poeta cante tanto a sua
terra e sua gente. Afinal, argumentariam, a maioria dos poemas onde
há referência explícita ou implícita à velha Paraíba foi escrita ainda
no Engenho Pau D´Arco. Correto. Só que se houvesse tanta ojeriza
à província, na edição final do EU alguns versos de exaltação
poderiam ser excluídos. No mínimo, o poeta evitaria repetir a
saudade e o amor pelo engenho ou pelo tamarindo. Não foi o que
aconteceu. O que fez foi deixar claro que o tamarindo estava acima
de todos os seus ideais, como cúmplice que foi de suas angústias e
ilusões. E é isso que se repete no poema “Vozes da Morte”:
“Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,
Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!
Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!
E a podridão, meu velho! E essa futura
Ultrafatalidade de ossatura,
A que nos acharemos reduzidos!
Não morrerão, porém, tuas sementes!
E assim, para o Futuro, em diferentes
Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,
Na multiplicidade dos teus ramos,
Pelo muito que em vida nos amamos,
Depois da morte, inda teremos filhos!”
Claro que a louvação de Augusto dos Anjos à terra natal não teria,
jamais, o toque ufanista tão comum em um Gonçalves Dias. Seu
estilo é vem outro, realmente. É o estilo da concisão sentimental, da
melancolia poética, da solidão métrica, até. Mas o simples fato de
citar o engenho em vários poemas, de cantar o tamarindo na vida e
na morte e de fazer referência, aqui e acolá, às coisas e gente da
Paraíba já foi uma prova inconteste do seu respeito à terra natal.
Augusto dos Anjos poderia até cantar que sua terra tinha tamarindos.
Mas como o fruto citado, seus versos teriam que obrigatoriamente
reproduzir a acidez da alma do poeta. Senão, não seria Augusto dos
Anjos!
(“Augusto dos Anjos” (plaquete) – Coleção Paraíba Nomes do
Século, Série Histórica, nº 38, Editora A União, João Pessoa/PB,
2000)
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