The Accord: a morte como bifurcação da existência e potencialização
do corpo híbrido
Aline Amsberg de ALMEIDA1
Resumo: Em The Accord (Keith Brooke, 2009), Noah Barakh é o programador de
informática que constrói um paraíso virtual, um espaço dentro do netspace para onde
vão os usuários após sua morte. Dentro desse espaço, volta-se à vida a partir de um
backup das informações pessoais feitas antes da morte. A partir das reflexões de
Deleuze e Guattari a respeito da construção do Corpo sem Órgãos e das propriedades do
rizoma, assim como as noções de pós-humano e corpos de informação de Katherine
Hayles, busco o híbrido corpo-tecnologia presente nesta obra de Keith Brooke, tomada
como exemplo de produção cultural da literatura de ficção científica do século XXI.
Palavras-chave: Ficção Científica – corpo – novas tecnologias – híbrido – Keith
Brooke
Abstract: In The Accord (Keith Brooke, 2009), Noah Barakh is the information
technology programmer who builds a virtual heaven, a space within the netspace to
which the users go after their death. Inside this space, it is possible to live again from a
personal informational backup made by the user before her death. From the thoughts by
Deleuze e Guattari about the Body without Organs and the properties of the rhizome, as
wells as Katherine Hayles notions concerning the posthuman, I intend to find the bodytechnology hybrid in this work by Keith Brooke, one example of the cultural production
of SF literature of the XXI century.
Keyworkds: Science Fiction – Body – new Technologies – hybrid – Keith Brooke
1
Doutoranda do Instituto de Estudos da Linguagem – IEL/Unicamp. CEP:13015-120, Campinas/SP,
[email protected]
The computer molds the human even as the
human builds the computer.
Katherine Hayles (1999)
“Você é só uma espécie de coisa no sonho dele
[...] Se o rei acordasse [...] você sumiria [...]
você sabe muito bem que não é real” [...] “Eu
sou real!” disse Alice e começou a chorar [...]
“Não vai ficar nem um pingo a mais real
chorando” [...] “Se eu não fosse real, não
conseguiria chorar” [...] “Espero que não
imagine que suas lágrimas são reais”
Lewis Carroll (1871)
Através do espelho e o que Alice encontrou por
lá
“Eu sonho com você. Sempre sonho com você. Asseguro que aconteça. Sou o
arquiteto do Accord: posso rodar a realidade. Posso rodar realidades.”2 (BROOKE,
2009, p.10) Noah Barakh é conhecido como o homem que construiu o paraíso, ou “The
Accord”, um espaço virtual onde se pode continuar existindo após a morte do corpo
orgânico. “Uma realidade construída a partir da massa de experiência humana, uma
super-cidade da mente, uma realidade onde a humanidade [pode] viver após a morte”
(Ibid., p.9). Espaço possibilitado e potencializado pelas novas tecnologias, habitado por
memória, onde o humano é informação e o corpo se torna e se apresenta como forma
computacional, constituindo o híbrido onde a pele deixa de ser somente fronteira e passa
a ser também interface, muito embora ainda constitua matéria orgânica, limite corporal
e, principalmente, lugar e meio para que ocorra a experimentação.
O corpo não é somente carne fora do Accord, nem somente virtual dentro dele,
em ambos os casos é de um corpo híbrido que estamos falando, em função da parcela de
tecnologia que coexiste com a parcela orgânica daquilo que define o humano. A morte
aqui serve apenas como ponto de bifurcação em ao pressupõe o fim do orgânico, visto
que os personagens da narrativa retomam sua existência no espaço virtual a partir da
organicidade da memória. Portanto, a grande questão é que, sim, há morte, mas ela não
representa um fim, por não liquidar o orgânico, apenas transformá-lo em sua
codificação.
Utilizo o termo “corpo pré-virtual” para me referir ao corpo antes do momento
da morte fora do Accord ou “corpo não-virtual” para o corpo fora do Accord (haja ou
não na narrativa uma morte para esse corpo); e o termo “corpo virtual” serve para falar
do corpo que renasceu dentro desse espaço. Todos são híbridos e orgânicos, e todos são
2
Todas as tradução de The Accord neste trabalho são de minha responsabilidade.
informação e corpo interdependentes. O corpo pré-virtual e o corpo não-virtual existem
predominantemente fora do espaço virtual mas têm também sua existência virtual ao
acessar o netspace, tomando a forma de um corpo virtual. O corpo virtual tem sua
existência predominantemente no Accord, mas em alguns casos pode acessar o mundo
não-virtual através de um corpo que vive fora do Accord, para isso é necessário um
corpo não-virtual. A fronteira entre o virtual e o não-virtual, portanto, é bastante porosa
e desenhada por uma linha tênue onde o dentro e o fora não podem ser radicalmente
definidos, sob pena de se cair numa dualidade opositora excludente entre aquilo que
seria o virtual “puro” e o completamente fora do virtual. São termos que podem se
complementar ou mesmo intercalar numa construção do corpo híbrido, que existe em
ambos os espaços. A aplicação do rizoma de Deleuze e Guattari permite essa
intersecção.
Embora a tecnologia tenha estado constantemente presente no decorrer da
história humana de que se tem conhecimento, o século XXI não apenas guarda o
embrião de uma provável explosão do elemento humano-tecnológico – já prevista por
Hans Moravec em 1988 com um otimismo quase excessivo, embora não sem razão, a
respeito dos robôs como próxima etapa da evolução humana –, como também fornece o
terreno onde se desenvolve a versão atual desse híbrido corpo-tecnologia, em toda sua
potência, visto que a discussão sobre a bomba atômica e a penicilina, longe de ser
superada, a cada dia ganha mais espaço, visibilidade e importância. The Accord, obra
publicada em 2009, participa de uma nova tradição dentro da ficção científica, que vem
se desenvolvendo desde a segunda metade do século XX, com uma explosão
tecnológica que tem transformado o social, o cultural e o orgânico, principalmente com
as ciências quânticas, a nanotecnologia e a internet.
Cabe aqui salientar a tese de Paula Sibilia, segundo a qual, na era da evolução
pós-humana, “o corpo humano, em sua antiga configuração biológica, estaria se
tornando obsoleto” (SIBILIA, 2002, p.13). Nessa “configuração biológica” está o corpo
organizado, aquele regido pela hierarquia do organismo que, segundo Deleuze e
Guattari, deve ser quebrada pela/para a emergência do Corpo sem Órgãos (CsO). Ou
seja, num processo de subjetivação onde o eu e o corpo significam a mesma direção,
embora não sejam o mesmo elemento, ultrapassando os limites da organização
sistemática do organismo lógico e mecanizado.
Portanto, quando falo de experimentação, é no sentido dado por Deleuze e
Guattari (1996), ao descreverem os modos de agenciamento do Corpo sem Órgãos. A
noção de “interpretação” é dada por Noah, arquiteto do paraíso, como definidora da
relação com o mundo e dos modos de existência dentro das possíveis realidades.
Portanto é no sentido da “percepção” que faço uso da palavra “interpretação”, num viés
que se pretende não limitado à fixidez de uma rápida leitura subjetiva, nem de uma
busca destinada à descoberta/invenção do sentido, aquele que se esconde por baixo da
superfície. Mas a superfície é em si uma experimentação construída pela percepção
singular das realidades: “a cor não é cor, é apenas um conjunto compartilhado de regras
para como interpretar diferentes comprimentos de ondas de radiação eletromagnética.”
(Ibid., p.13-14) E, aqui, as realidades são multiplicidades e são interconectadas, por
estarmos tratando da existência como um composto de camadas e intensidades, possível
naquilo que Deleuze e Guattari chamam de “plano de imanência”.
Deleuze e Guattari sugerem a construção permanente do eu através da busca
incessante do CsO, ao qual jamais se chega e jamais se para de chegar (DELEUZE;
GUATTARI, 1996, p.11). Essa construção do processo de subjetivação ocorre pela
experimentação de superfícies no lugar outrora ocupado pela interpretação no seu
sentido tradicional: descobrir significados ocultos ou profundos.
No romance The Accord o corpo virtual aparece como possibilidade encontrada
pelo programador de informática Noah Barakh para lidar com a questão da mortalidade
humana. A tecnologia utilizada em The Accord oferece aos usuários a possibilidade de
uma continuação da vida após a morte do corpo pré-virtual. Entretanto, é apenas quando
esse corpo morre e a partir dos dados gravados antes dessa morte que os corpos de
informação passam a existir como entidades virtuais.
O corpo virtual carrega em si a potência da bifurcação, da multiplicação e da
fragmentação, assim como a alma, entendida pelo programador e pelos usuários do
Accord como o conjunto de dados referentes ao corpo – a memória e suas configurações
– passíveis de codificação binária e tradução para o corpo virtual constituído pelo
computador. Noah explica o funcionamento do Accord, juntamente com sua definição
da alma:
aqueles que escolhem continuar vivendo no Accord após a morte,
somente o [farão] como a última instância gravada de si mesmos – os
minutos, horas, dias finais [estarão] perdidos para sempre, até seu
último upload... sempre funcionando a partir do último instantâneo da
alma. (BROOKE, 2009, p.11)
O corpo, que já era híbrido fora do espaço virtual, em vista de toda a tecnologia que o
constrói em sua existência, continua a vida dentro do Accord, embora sofrendo uma
mutação na matriz e passando a ser um híbrido de outra ordem: o pós-humano; um
híbrido virtual que carrega a memória subjetiva traduzida em código binário, porém não
se sustenta no antigo formato onde predominava o elemento carne. Nas palavras de
Katherine Hayles, “o pós-humano aparece quando a computação, ao invés do
individualismo possessivo é tomado como o chão do ser, um movimento que permite o
pós-humano ser perfeitamente articulado com as máquinas inteligentes” (HAYLES,
1999, p.34).
A bifurcação da existência em Priscilla
Logo no início do romance, o corpo pré-virtual de Priscilla é assassinado por seu
marido: Jack Burnham. Imediatamente, Priscilla renasce dentro do Accord, mostrando
que a experiência de estar viva num corpo é o que caracteriza efetivamente a vida, seja
ela dentro ou fora do ambiente virtual. Priscilla nasce mais de uma vez no Accord, visto
que ora é assassinada lá dentro, ora surgem na narrativa outras instâncias suas
espalhadas pelo espaço virtual.
Em um de seus nascimentos, ou reinicializações, informático-computacionais,
Priscilla “sente... um sentimento de vitalidade. Ela corre uma mão pelo seu corpo, olha
para baixo. [...] Ela está morta. Percebe isso. [...] Isto é a coisa real.” (BROOKE, 2009,
p.51) Nesse momento da história, Priscilla ainda está se acostumando à sua nova
condição viva, afinal de contas, além de haver deixado o mundo não-virtual – que
possui uma materialidade conhecida e confortável – ao ser assassinada, já passou por
uma bifurcação de existência também dentro do mundo virtual.
Essa bifurcação ocorre pela primeira vez com Priscilla quando ela está viajando
de carro junto com Noah dentro do Accord e ambos verificam que os elementos da
paisagem apresentam pouca definição em suas linhas de contorno:
Passamos pela floresta, mas as árvores... o detalhe se foi... num olhar
rápido está tudo bem, mas encare fixamente um ponto e eles não se
resolverão em ramos, folhas, troncos. Blocos de verde e marrom
escuros mudam quando examinados, resistindo às tentativas do olho
de distinguir forma, detalhe. (Ibid., p.26)
Nesse momento, Noah e Priscilla estão se deslocando dentro do mundo virtual.
Embora o lugar de destino tenha as linhas perfeitamente definidas, o que deveria
significar a segurança da forma física, a transição entre espaços faz com que Priscilla
sinta um forte mal-estar em meio à redefinição dos elementos do ambiente, quando vê
as “árvores... a parede de calcário... blocos de cores, mudando, se reorganizando,” um
desconforto, a vertigem da incerteza; “apenas outra anomalia”, explica Noah Barakh
(Ibid., p.26-27), afinal o Accord ainda se encontra incompleto, inacabado. E
subitamente ambos sentem o chão tremer, um tremor sentido nas profundezas do corpo
assim como nas profundezas da terra, lento, “passa através do [...] corpo, ressoando com
os [...] ossos” (Ibid., p.28). E Priscilla desaparece.
É depois desse primeiro desaparecimento que Priscilla acorda sentindo a
vitalidade, a realidade e a organicidade de seu corpo virtual. Aqui, ela se dá conta da
inexistência - ou impossibilidade - do fim dentro do paraíso, quando “[o futuro] a
assusta de uma maneira diferente” (BROOKE, 2009, p.82), porque agora o futuro
representa também o infinito. Além disso, ao despertar pela segunda vez dentro do
Accord, Priscilla se encontra no “cinza”. O “cinza” é a palavra usada no texto para
descrever uma espécie de lacuna – ou “limbo” que pode mesmo conter o inferno – onde
após desaparecer o indivíduo acorda antes de retomar sua existência. É no “cinza” que a
bifurcação da existência se concretiza, é o primeiro instante da consciência após o
desaparecimento virtual.
Entretanto, aquele indivíduo que decidiu fazer seu backup virtual, sempre irá
despertar dentro do Accord iniciando uma história de vida que parte do momento de seu
último backup. Essa regra aparentemente serve tanto para aquele primeiro renascimento,
logo após a morte orgânica, quanto para as reinicializações seguintes, após as
bifurcações de existência que, neste caso, identifico na história da personagem Priscilla.
Em consequência disso, a cada reaparecimento, Priscilla inicia uma nova existência
virtual, que irá seguir um caminho próprio e singular. Essa existência única é iniciada e
formada por padrões informáticos, dado que está no ambiente virtual: “Priscilla é. Uma
espécie de. Ela é formas. Padrões. Ela é altos e baixos e ondas e cores caleidoscópicas”
(BROOKE, 2009, p.170).
Ou seja, “Priscilla é”: é corpo, existência legítima, é real. A questão também se
aplica à realidade como estatuto onde a palavra “real” talvez não seja prioridade para
definição. Assim, em certos momentos, o narrador em primeira pessoa entra em cena
falando um pouco sobre essa condição de realidade virtual sem a necessidade
imperativa do “real” como adjetivo ou substantivo: “este mundo, esta realidade... eu
ainda fico maravilhado com como a sinto real, embora saiba que “real” não é um
conceito válido: este mundo é. Isso é tudo.” (BROOKE, 2009, p.170)
Depois de já haver visitado o país das maravilhas e agora explorando o mundo
encontrado do outro lado do espelho, a preocupação de Alice (Lewis Carroll, 1865) com
a condição real de seu corpo não vem acompanhada de um questionamento, a menina
apenas refuta a constatação de Tweedledee e Tweedledum, decretando que o fato de
poder chorar atesta sua condição real, usando o argumento de que essa experiência é
sentida sem a necessidade de uma explicação. Já em The Accord, a realidade virtual é
baseada na proposição de que a realidade – física, material e palpável, mas também
relacional, afetiva, rizomática e, em todos esses aspectos, portanto, corporal – é
construída pelo contato com o mundo, pela experiência de existir nele, pela
decodificação de suas fórmulas e tradução de suas linguagens. Uma paisagem não muito
diferente da história de Alice, onde o país das maravilhas (Wonderland) se assemelha a
uma terra virtual onde as possibilidades excedem o conforto do óbvio e do conhecido e
podem enganar a primeira percepção.
Dessa maneira, a percepção é condicionada pela interface que permite a
experimentação e a criação do eu e do outro através do contato, da sensação, da
definição do mundo. Estatuto de interface atribuído à pele por Pierre Lévy (1996), que
serve aqui para definir o corpo como lugar de experimentação. Quanto à existência
bifurcada de Priscilla, acontecem no romance muitos despertares de Priscilla no “cinza”,
inclusive multiplicando suas instâncias. Isso já é anunciado no início da história por
Noah, o próprio arquiteto do paraíso, aquele que programou os protocolos do Accord e,
portanto, permitiu essa possibilidade da multiplicação de existências.
Nós somos anomalias. Temos múltiplas instâncias, algo que os
protocolos não podem permitir. Eu antecipei este pensamento: o
consenso deveria reunir meus pedaços, me integrar, tornar-me um,
assim como deveria fazer com Priscilla. (BROOKE, 2009, p.30)
E, no entanto, os protocolos, as regras que regem o paraíso virtual, não fazem essa
reintegração esperada, em função de uma brecha programada pelo próprio Noah.
Durante a construção do paraíso virtual, foram criadas múltiplas instâncias de Noah e de
Priscilla, pois, segundo o programador, “a duplicação era um resultado inevitável de
tomarmos conta de uma fase experimental” (Ibid., p.25). Priscilla não é a única Priscilla
dentro do Accord, há outras instâncias dela que passam a ter sua existência, também
única, a partir de um despertar no “cinza”.
Aquilo que Noah chama de “duplicação” pode ser também chamado de
bifurcação, no sentido trabalhado aqui, uma bifurcação que define o ponto fundamental
na questão da mutação. Segundo Katherine Hayles, a mutação prova o padrão porque
o divide, ou transtorna, e a bifurcação é o que ocorre quando a interação entre padrão e
aleatoriedade dá uma nova direção ao sistema ao qual pertencem (HAYLES, 1999,
p.33), ou seja, padrão e aleatoriedade formam um sistema, neste caso informacional e
computacional, por meio de uma interatividade constante que deve sofrer mutação:
bifurcação da existência; existência em padrões (a existência humana se dá em padrões
também fora do ambiente virtual, a ordem complexa dos padrões é o assunto da teoria
da complexidade ou do caos, de acordo com Hayles). O corpo e a máquina também
formam um sistema, que Katherine Hayles coloca na forma da máxima: “o computador
molda o humano assim como o humano molda o computador” (HAYLES, 1999, p.47),
mostrando que a criação e a construção são mútuas quando se trata de corpo e
tecnologia.
O assassino híbrido: a pluralidade da morte define a pluralidade da vida.
Dentro do Accord caminha outra anomalia: o assassino de Jack Burnham,
marido de Priscilla. A situação aqui é mais complicada do que no caso de Priscilla, pois
é um assassino no mundo não-virtual construído especialmente para conseguir escapar
das investigações após cometer o assassinato, portanto feito para não ter uma identidade
certa. Não há nome para ele, é chamado somente de “assassino”, “um amálgama, um
construto. Quem quer que seja [...] pegou algumas características daqui, outras dali, e
construiu um assassino adequado para o trabalho” (BROOKE, 2009, p.133). E então,
ele precisa se refugiar no Accord, entrar no netspace, e isso só é possível através da
própria morte ou da ajuda de um hacker profissional: Chuckboy Lee.
Ao chegar ao escritório de Lee, o assassino é logo reconhecido pelo hacker, que
se mostra interessadíssimo no caso:
como é ser você, Sr. assassino? Ser um homem de muitas partes.
Partes de outros homens – e talvez mulheres, quem sabe? – e módulos
de IV [inteligência virtual], um mix, um remix. Todos andando em um
corpo de outro homem. [...] como é ser algo novo, algo único, um dos
primeiros de sua espécie? Uma nova variedade de homem pela
primeira vez em, o que, vinte mil, cem mil anos? (BROOKE, 2009,
p.151)
O hacker Lee visualiza o próximo passo da evolução humana nesse ser híbrido, um
homem feito da união de partes de outros seres humanos, possibilitada somente pela
ação tecnológica.
Mais tarde, já dentro do Accord, o assassino encontra Noah Barakh, e obtém a
uma explicação de sua natureza múltipla: “você é, em uma parte significante, baseado
no perfil de um estudante chamado Bartie Davits, mas isso é uma grande máscara. Um
elemento ainda mais significante sua natureza é o próprio Elector Burnham”
(BROOKE, 2009, p.191). Uma vez no Accord, o assassino resolve procurar Burnham
para continuar seu trabalho dentro do espaço virtual e nessa busca descobre que o corpo
não-virtual com o qual cometeu o assassinato fora do Accord era o de Joey Bannerman,
uma terceira peça do quebra-cabeça, aparentemente um adolescente que ganha a vida
alugando seu corpo a terceiros, assim como Bartie Davits. Há ainda outras partes a
serem descobertas e acrescentadas ao longo de sua estadia no Accord.
A partir disso, o assassino passa a dividir a narração da história com o narrador
em terceira pessoa e o narrador em primeira pessoa (Noah Barakh), porém utilizando o
pronome “nós”. Além disso, assumindo sua natureza híbrida, passa também a refletir
sobre essa condição e entender que não é feito apenas de Bartie Davits, Joey Bannerman
e Jack Burnham, mas também foram incluídas partes de outros corpos ainda no espaço
não-virtual. Entretanto, ele apenas consegue pensar sobre isso a partir do olhar para si e,
principalmente, ao assumir essa condição através da linguagem, dizendo “nós” onde um
narrador em primeira pessoa diria “eu”. “Nós somos Jack Burnham, nós somos Bartie
Davits, nós somos um conjunto de subprogramas de IV; somos outros também, mais
tênues: somos suas habilidades, somos remixes fragmentados de suas experiências”
(BROOKE, 2009, p.256). Muito embora essa mudança ocorra apenas no nível da
narrativa (nos diálogos com outros personagens ele ainda usa “eu”), é uma troca
linguística significativa na matriz da autoimagem; a criatura do Dr. Frankenstein jamais
diria “nós” pois passa sua história inteira tentando encontrar uma unidade em si mesmo,
enquanto o assassino em The Accord entende e assume a multiplicidade como essência
da sua subjetividade.
Mais tarde, quando o hacker Chuckboy Lee, que já conseguiu entrar no Accord
mesmo sem a morte de seu corpo não-virtual, encontra-se com o assassino híbrido
dentro do netspace - sabendo de sua capacidade magnética para agregar a seu todo
partes encontradas pelo caminho, principalmente no ambiente virtual - volta a lhe fazer
a mesma pergunta que havia feito no momento do primeiro encontro:
“Como você se sente sendo uma nova espécie de pessoa?” [...]
“Você já me perguntou isso antes.” [...]
“Você era diferente então. Havia menos de você.” [...]
“Eu sou eu,” nós dizemos. “Eu sou majoritariamente eu. Mas... está
no mix. Todo mundo é feito de muitos componentes diferentes:
fragmentos de experiência, de conhecimento, de entendimento.
Então o que é tão diferente a meu respeito? Sou realmente algo
novo?” (BROOKE, 2009, p.283-284, ênfase minha)
Uma descrição que talvez seja aplicável a qualquer outra pessoa tanto dentro do
Accord quanto fora dele. Misturados à tecnologia, assim como uns aos outros, podemos
também ser descritos como esse mosaico representado pelo assassino em The Accord,
uma reunião de muitos, mistura do orgânico e do não-orgânico, sem os quais não se
pode dizer “eu”. Aqui, a tradição da criatura do Dr. Frankenstein toma outras medidas.
O mito da criatura-mosaico, feita de partes humanas mortas na obra de Mary Shelley,
quando transposta para o contexto da realidade virtual agrega ainda os protocolos dos
programas informáticos aos quais está submetida, e figura como resultado em processo
da manipulação tecnológica e humana, numa tradição fáustica de quem cria o próprio
paraíso e suas regras para poder desafiá-las em nome da ciência.
O lugar deste personagem, portanto, é o de quem tem consciência da
multiplicidade de seu corpo, que aceita ser construído e recusa a necessidade de uma
identidade única para favorecer a subjetividade como processo contínuo, intermitente e
interminável. Parecido com o mapa de Deleuze e Guattari, “desmontável, reversível,
suscetível de receber modificações constantemente” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.
22). O novo também depende da percepção, da mesma maneira que Noah Barakh
explica que a realidade das cores é fruto da percepção das ondas eletromagnéticas; indo
ao fundo das coisas, encontra-se a superfície.
O híbrido em The Accord, portanto, tem mais de uma configuração: refere-se a:
(a) união entre o orgânico representado pela memória guardada em backup, e os padrões
computacionais não-orgânicos, e (b) a mistura de instâncias dentro do próprio ambiente
virtual, no momento do desaparecimento de um indivíduo e seu posterior
reaparecimento dividido em várias instâncias de si mesmo ou mesmo o reaparecimento
de diferentes instâncias de diferentes indivíduos em um só corpo.
Bernard Andrieu parte do conceito de handicap para caracterizar e pontuar o
híbrido em sua gama de modificações, afirmando-o como aquele modificado em sua
“materialidade inicial” (ANDRIEU 2007, p.33). Ou seja, o handicap ou “deficiente”
não é mais considerado diminuído ou menor em relação ao não-handicap (ou nãodeficiente), mas é aquele que dá continuidade à sua existência através da modificação
corporal. Assim, o “natural” e o “original” não são mais referência para o humano em
sua questão corporal, mas o híbrido se torna a nova referência, ganhando autonomia
como tal (ANDRIEU 2007, p.33).
Andrieu ainda recorre ao ciborgue de Donna Harraway, mostrando que o híbrido
redefine
o
esquema
corporal
(ANDRIEU
2007,
p.35).
Como
instrumento
revolucionário, o ciborgue incorpora a máquina ao orgânico (ANDRIEU 2007, p.36);
como organismo cibernético, o ciborgue é o resultado da fusão permanente (sem
retorno) entre a carne (orgânico) e o protético (não-orgânico) em uma única realidade
material. Redesenhado, reconfigurado, reapropriado concomitantemente por si mesmo e
pelas novas tecnologias, o corpo se torna híbrido em sua subjetividade e em toda sua
complexidade. A hibridação, portanto, produz um novo corpo, inteiro em sua existência
e na incorporação da tecnologia, “uma nova condição humana de um ser híbrido
biotecnológico” (ANDRIEU 2007, p.38)
Assim, tanto a morte do corpo pré-virtual quanto o desaparecimento virtual,
permitem a hibridização do corpo em diferentes modalidades. Porém, definir um
estatuto de híbrido pressupõe a existência de um não-híbrido, o que forçosamente gera
outro questionamento: “que não-híbrido é este?” ou “o não-híbrido é possível?” Não
estou certa de que este não-híbrido possa ser encontrado na história da humanidade e,
menos ainda, no mundo do século XXI, onde narrativas classificadas sob o gênero de
ficção científica como The Accord proliferam e conquistam espaço. Também não tenho
ainda certeza da necessidade de tal definição, pois isso levaria estas reflexões ao
caminho de um dualismo opositor excludente do qual me esforço por esquivar, por uma
questão de coerência com os pensadores nos quais apoio minhas reflexões.
Embora seja muito difícil se libertar desses dualismos, Deleuze e Guattari
oferecem uma saída: a inexatidão. Ou antes, uma “anexatidão”. Um “[p]roblema de
escrita: são absolutamente necessárias expressões anexatas para designar algo
exatamente” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 32). Penso que seja possível uma
inversão dessa fórmula - prática também muitas vezes utilizada por esses filósofos: é
absolutamente necessário usar expressões exatas para designar algo anexato. Já que o
recurso para designar as coisas são as palavras e este é um recurso único no lugar de
onde escrevo, pode-se tomá-las como exatas ou anexatas. E, dessa maneira, encontrar o
habitante híbrido da literatura de ficção científica pode ou não passar pela detecção do
não-híbrido como seu oposto binário (que creio não detectável) ou como seu oposto
complementar (que seria mais um de seus fragmentos constituintes). Seja qual for o
caso, cabe agora definir quais são elementos caracterizadores desse híbrido formado
pelo orgânico e pelo não-orgânico dentro da literatura de ficção científica do século
XXI.
REFERÊNCIAS
ANDRIEU, Bernard. L‟intégration des hybrids. In: Pratiques sportives at handicaps,
Lyon: Cronique Sociale, 2007. Direção de Joël Gaillard.
AUGÉ, Mark. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.
Campinas: Papirus, 1994. Tradução de Maria Lúcia Pereira.
BROOKE, Keith. The Accord. Solaris, 2009.
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2010 [1865].
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Como criar para si um corpo sem órgãos. In:
Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 3. Rio de Janeiro: Editora 34,
1996.[1980]
______. Três novelas ou „o que se passou? In: Mil Platôs – Capitalismo e
Esquizofrenia, vol. 3. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.[1980]
______. Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível. In: Mil Platôs –
Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 4. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997[1980].
______. Introdução: Rizoma. In: Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1.
Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. Tradução de Eloísa
Araújo Ribeiro.
HAYLES, N. Katherine. How we became posthuman: virtual bodies in cybernetics,
literature and informatics. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.
LÉVY, Pierre. Que é o Virtual?, O. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34,
1996[1995].
MORAVEC, Hans. Homens e Robôs: o futuro da inteligência humana e robótica.
Lisboa: Gradiva, 1992 [1988].
SIBILIA, Paula. O Homem Pós-Orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias
digitais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.
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a morte como bifurcação da existência e potencialização do corpo