mãos
M E N I N A S
mulheres
A CULTURA COMO FERRAMENTA DE INCLUSÃO SOCIAL
mãos
M E N I N A S
mulheres
A CULTURA COMO FERRAMENTA DE INCLUSÃO SOCIAL
mãos
M E N I N A S
mulheres
A CULTURA COMO FERRAMENTA DE INCLUSÃO SOCIAL
RICARDO BUENO
QUATTRO PROJETOS
PORTO ALEGRE, RS, BRASIL
MARÇO DE 2011
PROJETO CULTURAL: QUATTRO PROJETOS
COORDENAÇÃO EXECUTIVA: FLAVIO ENNINGER
COORDENAÇÃO EDITORIAL: RICARDO BUENO
EDIÇÃO E TEXTOS: RICARDO BUENO – ALMA DA PALAVRA
REVISÃO: FERNANDA PACHECO – ALMA DA PALAVRA
PROJETO GRÁFICO E DIREÇÃO DE ARTE: LUCIANE TRINDADE
FOTOGRAFIA: ITA KIRSCH FOTOGRAFIAS
IMPRESSÃO: GRÁFICA E EDITORA PALLOTTI
PATROCÍNIO
PRODUÇÃO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( CIP )
B928m Bueno, Ricardo Rodolfo.
Mãos, Meninas, Mulheres – A Cultura como Ferramenta de Inclusão Social/ Ricardo
Bueno. – Porto Alegre : editora Quattro Projetos, 2011.
152 p. ; il. (fotogr.); 25x30cm
Projetos desenvolvidos exclusivamente por mulheres, reunidas em associações, que utilizam o
artesanato como uma fonte de renda e inclusão social.
978-85-64393-00-4
1. Política social - Brasil. 2. Mulher –Projeto social. 3. Artesanato – Projeto social. I. Título.
CDU 364-78
Bibliotecária Responsável: Denise Pazetto CRB-10/1216 (51)30297042
QUATTRO PROJETOS E SERVIÇOS: [email protected] – 51 8599 1009
ALMA DA PALAVRA: [email protected] – 51 9844 0652
8
RENNER
Cumplicidade, esta é a maneira como nós nos relacionamos com as nossas clientes. Essa
proposição de valor nos motiva a entender cada vez mais a mulher moderna, desvendando
seus desejos e transformando-os em realidade através dos produtos oferecidos em nossas
lojas espalhadas por todo o país.
A mulher é a razão da nossa existência.
É neste contexto e filosofia sólida que está alicerçado o trabalho do Instituto Lojas
Renner. Hoje 35% dos lares brasileiros são sustentados por mulheres. Acreditamos que, investindo no desenvolvimento destas chefes de família, contribuímos para que elas possam se
apropriar de forma efetiva de suas vidas, seja no âmbito pessoal, seja no desempenho profissional, desatando os nós que as mantêm presas ao ciclo da pobreza. Por isso, investimos em
projetos de capacitação profissional e geração de renda para a mulher.
Tecendo sonhos, transformando
realidades
É muito confortável para nós, portanto, patrocinar, via Lei Federal de Incentivo à Cultura,
a publicação que chega agora às suas mãos. Ao longo dessas páginas, você encontrará 15
iniciativas as quais, sem exceção, contribuem para a educação e formação profissional, fomentando o empreendedorismo econômico e a geração de renda e inserindo jovens e mulheres no
mercado de trabalho. Algumas delas já contam com nosso apoio, outras ainda não, mas todas
são merecedoras do texto apurado e das imagens sensíveis que retratam seu trabalho.
Enquanto elas tecem seus sonhos, nós costuramos suas vidas a uma nova realidade,
abrindo caminhos que só se conquistam com preparo, capacitação e desenvolvimento. Temos
a convicção que o presente trabalho será muito útil nessa trajetória, até porque acreditamos
poder contar também com o apoio de todos daqueles que se dispuserem a apreciá-lo, no
sentido de ampliarmos a visibilidade dessa causa. Boa leitura.
9
ÍNDICE
O ARTESANATO NO BRASIL: DIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE
12
INTRODUÇÃO: CULTURA QUE INCLUI E GERA VALOR
18
GRUPO DE ARTESÃS DA BARRA: COSTURANDO CAMINHOS E TECENDO SONHOS
24
TECENDO MEMÓRIAS: BORDADOS E LEMBRANÇAS
32
LÃ PURA: COOPERAÇÃO A SERVIÇO DO PURO TALENTO
40
GRUPO CANOA: JEITO NOVO DE LIDAR COM REJEITOS
50
MULHERES DO FREI: ARTESANATO DE PALHOÇA E DO BRASIL
58
COPESCARTE: O MILAGRE DA TRANSFORMAÇÃO DOS PEIXES
66
CAFÉ IGARAÍ: BORDANDO E PINTANDO COM SABOR DE CAFÉ
76
ALDEIA DAS MULHERES: UMA ALDEIA FEMININA POR NATUREZA
84
MULHERES CERAMISTAS: MOLDANDO TALENTOS NAS ONDAS DA MARÉ
92
TOQUE DE MÃO: MUITAS MÃOS E TODOS OS TOQUES
100
COSTUMES ARTES: COM FIBRA E MUITA DETERMINAÇÃO
110
FIBRA VIVA: NATUREZA RECRIADA COM RETALHOS
118
ASSOCIAÇÃO DAS ARTESÃS DO PORTO DE SAUÍPE: TRANÇANDO A PIAÇAVA, TRAMANDO A VIDA
126
CRIANDO E FAZENDO ARTE: COM AS CORES DA CRIATIVIDADE JUVENIL
134
FRAGMENTOS: UM MOSAICO DE TEXTURAS E REALIZAÇÕES
144
CONTATOS
152
12
ARTESANATO NO BRASIL
diversidade
e sustentabilidade
13
ARTESANATO
NO BRASIL
Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior do Brasil, o artesanato nacional movimenta anualmente
cerca de R$ 28 bilhões, ou 2,8% do PIB do país, indicador impressionante, que equivale ao da indústria automobilística. Números recentes apontam que cerca de 8,5 milhões de pessoas trabalham na produção do artesanato no Brasil, e nada menos que 87% delas são mulheres. Tradicionalmente, elas aprenderam o ofício com as mães, pois este tipo de conhecimento costuma ser passado de geração em geração. É uma atividade que
não apenas contribui para o aumento da produção de riqueza no país,
como também impacta no desenvolvimento sustentável de regiões com
potencial produtivo e que muitas vezes se encontram à margem do desenvolvimento.
Atualmente, em todas as regiões do país é possível encontrar produção artesanal diversificada, feita com matérias-primas regionais e com técnicas específicas, que variam de acordo com a cultura e o modo de vida da
população de cada localidade. Esses contrastes, além de tornarem o nosso
artesanato ainda mais rico, criam uma marca de identidade nacional. As
referências regionais são muito valorizadas por um mercado externo
globalizado e cada vez mais aberto a produtos diferenciados, que retratem a origem e a história do povo que os produz.
Artesanato (de artesão + ato) é essencialmente o próprio trabalho
manual ou produção de um artesão. Com a mecanização da indústria, a
partir da revolução industrial, o artesão passou a ser identificado como
aquele que produz objetos pertencentes à chamada cultura popular. Um
aspecto do artesanato brasileiro diz respeito ao caráter familiar da produção, na qual o produtor (artesão) possui os meios de produção, sendo o
proprietário da oficina e das ferramentas e trabalhando com a família em
sua própria casa. Realiza, portanto, todas as etapas da produção, desde o
preparo da matéria-prima, passando pela concepção do produto a ser executado, até o acabamento final. Não há, como fica claro, divisão do trabalho ou especialização para a confecção de algum produto.
Os primeiros objetos feitos pelo homem eram artesanais. Foi no período neolítico (6.000 a.C.) que o homem aprendeu a polir a pedra, a fabricar a cerâmica como utensílio para armazenar e cozer alimentos e descobriu a técnica de tecelagem das fibras animais e vegetais. Este processo
Contrastes criam identidade
nacional,muito valorizada no exterior
14
15
16
ARTESANATO
NO BRASIL
também ocorreu na região que futuramente seria o território brasileiro.
Pesquisas permitiram identificar uma indústria lítica e fabricação de cerâmica por etnias de tradição nordestina que viveram no sudeste do Piauí
justamente em 6.000 a.C. Os índios, como se sabe, foram os mais antigos
artesãos a marcarem presença no país. Eles utilizavam (e em alguns casos
seguem utilizando, apesar da população bastante deprimida na atualidade) a arte da pintura, com pigmentos naturais, a cestaria e a cerâmica,
sem esquecer a arte plumária, como os cocares, tangas e outras peças de
vestuário feitas com penas e plumas de aves.
A partir do século XI, em especial na Europa, o artesanato ficou concentrado em espaços conhecidos como oficinas, onde grupos de aprendizes viviam com o mestre-artesão, detentor de todo o conhecimento técnico. Este oferecia, em troca de mão-de-obra barata e fiel, conhecimento,
vestimentas e comida. Criaram-se, assim, as Corporações de Ofício, organizações que os mestres de cada cidade ou região formavam a fim de
defender seus interesses.
No Brasil, uma importante transformação se inicia a partir do século
XIX. Com o início da forte imigração europeia, novos aportes de técnicas
artesanais chegaram ao país trazidos pelos imigrantes, em especial de
origem italiana, alemã, polonesa, japonesa, síria e libanesa, transformando
e ampliando a gama de produtos feitos artesanalmente nas diversas regiões brasileiras.
Um dos principais agentes de fomento ao artesanato no Brasil é o
Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa). Presente
nas 27 Unidades Federativas do país, a instituição investe em estratégias
de atuação diferenciadas que possibilitam o desenvolvimento de cada
categoria de artesanato, mantendo, entretanto, os valores simbólicos dos
modelos culturais. O Sebrae atua em aproximadamente 2.700 municípios
brasileiros e já capacitou em torno de 220 mil artesãos.
Nas próximas páginas, estão retratadas 15 diferentes iniciativas em
artesanato, de nove estados brasileiros, todas elas desenvolvidas por mulheres e com foco em inclusão social e geração de renda. Chama a atenção
a diversidade de técnicas, bem como de aspectos culturais que cercam
cada uma das atividades. O artesanato de caráter social, como se verá,
jamais acontece descolado da realidade que o gerou.
Artesanato de caráter social nunca
está descolado de sua realidade
17
18
INTRODUÇÃO
cultura
que inclui e gera valor
19
Em uma de suas mais conhecidas canções, a dupla Milton NascimentoFernando Brant diz que "todo artista tem de ir aonde o povo está". Inspirados
neste trecho de Nos bailes da vida, e pedindo a devida licença aos renomados
poetas da Música Popular Brasileira, com este livro nos propusemos a fazer o
caminho inverso: levar o povo (os leitores e todos os que visitarem a exposição
que integra este projeto) aonde os artistas estão - no caso, as artistas, para
não incorrermos em um deslize quanto ao gênero que permeia e protagoniza
INTRODUÇÃO
estas páginas. E assim foi feito.
Uma vez selecionadas as 15 diferentes experiências protagonizadas por
mulheres, as quais dessem conta do artesanato como forma de expressão cultural, e da cultura como ferramenta de inclusão social, iniciamos o roteiro de viagens por nove estados, literalmente de sul a norte do território brasileiro. Percorremos estradas e rotas aéreas do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São
Paulo, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Pernambuco e
Rio Grande do Norte. Foram nada menos que 30 trechos, entre deslocamentos de
avião, de ônibus ou de van, e mesmo de táxi, em uma ocasião.
Em cada parada do roteiro, uma miríade de emoções. Olhares, gestos,
histórias, sonhos, realizações, esperanças renovadas - e trabalho, muito trabalho. Se Roberto Carlos se dispusesse a percorrer os caminhos que percorremos,
já de início comentaria: "São tantas emoções...". Para um jornalista que a
cada dia se convence mais de que seu papel é ser um contador de histórias (e
por isso o nome da empresa que dirijo é Alma da Palavra), foi realmente um
Em cada parada do roteiro, uma miríade
de emoções: olhares, gestos, sonhos
20
21
22
privilégio ter estado em Rio Grande, Canoas, Ivoti, São Borja, Palhoça, Antonina,
Mococa (e Igaraí), São Paulo capital, Rio de Janeiro idem, Cariacica (ao lado de
Vitória), Porto de Sauípe, Recife e Natal.
Em cada cidade, conheci mulheres de fibra, força e fé. Mulheres que já
fizeram muito, ainda fazem e muito farão. Mulheres que se transformam dia a
dia e que seguirão transformando realidades - as suas e as do entorno. De
agosto a dezembro de 2010, fui iluminado por dezenas de olhares, cada um
INTRODUÇÃO
com sua peculiaridade, todos eles com a energia de quem acredita em si e no
poder transformador da união, do firme propósito, da determinação.
Nas pegadas dos trajetos que percorri, seguiram depois o fotógrafo Ita
Kirsch e sua equipe. E a partir dos retratos colhidos em cada parada, devidamente "embalados para presente", como costumo dizer, no sensível projeto
gráfico da designer Luciane Trindade, chegamos ao resultado final desta jornada. Sempre sob a liderança serena e tranquila de Flavio Enninger, da Quattro
Projetos, esta aventura não teria sido possível sem o apoio da Lei Rouanet de
Incentivo à Cultura e o patrocínio da Lojas Renner. As mãos das meninas e
mulheres que serão conhecidas nas páginas seguintes fazem uma breve pausa
em seu trabalho para aplaudirem essa iniciativa. Até porque elas sabem como
ninguém que as expressões culturais servem muito bem como ferramenta de
inclusão social e geração de renda, e que seus exemplos poderão ser replicados
Brasil afora. Que assim seja.
RICARDO BUENO
artesanato
funcionam como ferramenta de inclusão
Expressões culturais como o
23
24
GRUPO DE ARTESÃS DA BARRA
RIO GRANDE RS
costurando
caminhos e tecendo sonhos
25
DA BARRA
GRUPO DE ARTESÃS
QUALIDADE E ATENÇÃO AOS PRAZOS SÃO DIFERENCIAIS DO GAB
O que é que répteis surgidos há mais de 150
milhões de anos têm a ver com resgate da
autoestima, inclusão social e geração de renda?
Quem se deslocar até a 4ª Seção da Barra, em Rio
Grande, litoral sul do território gaúcho, vai descobrir. É lá que atuam, desde 2004, as mulheres que
integram o Grupo de Artesãs da Barra (GAB). Mas
qual a relação delas com os répteis, no caso, as tartarugas marinhas? Estes animais são parte da inspiração do artesanato produzido pelo GAB, trabalho
que, além de buscar a geração de renda e inclusão
social, contribui para a preservação ecológica. É o
artesanato da conservação.
O início dessa história é o projeto "Tartarugas
Marinhas no Litoral do Rio Grande do Sul", uma
das tantas atividades desenvolvidas pelo Nema
(Núcleo de Educação e Monitoramento Ambiental),
uma ONG (Organização Não Governamental) nascida há 25 anos, por iniciativa de estudantes de
Oceanologia da Universidade Federal de Rio Grande (Furg). Além de se ocupar da agroecologia, da
educação ambiental, de cuidar da conservação de
santuários como o banhado do Taim e a Lagoa Verde, o Nema percebeu que era preciso atuar também na geração de renda, tendo como foco a comunidade de mulheres da barra. "O modelo é semelhante ao que o projeto Tamar implantou em diversos estados brasileiros", explica a bióloga Alice
Monteiro, que até o final de 2010 atuava como
coordenadora do projeto "Costurando caminhos,
tecendo sonhos", através do qual o Nema conseguiu apoio do Instituto Renner e do Instituto
Nestor de Paula para o GAB, que financiaram a compra de equipamentos.
Via projeto, o conhecimento dos técnicos e voluntários do Nema sobre as tartarugas e outras espécies que habitam o litoral do Rio Grande do Sul
foi sendo repassado às artesãs. Apesar de morarem
uma vida inteira junto ao mar e em geral serem casadas com pescadores, elas não sabiam diferenciar,
por exemplo, as tartarugas cabeçuda, verde, de pente, oliva e de couro. Eram mulheres que também não
trabalhavam com a possibilidade de assumirem o
artesanato, uma vez encerrada a capacitação inicial
Artesanato da conservação
ressignificou
a vida das artesãs e a realidade em torno
26
27
A EXPERIÊNCIA DE LEDENI CONVIVE COM A JUVENTUDE DE LIDIANE EM NOME DA COOPERAÇÃO
28
DA BARRA
GRUPO DE ARTESÃS
em 2004 (modelagem de tartarugas marinhas em biscuit, corte e costura,
pintura em tecido, reciclagem de papel e modelagem em biscuit de animais
marinhos que ocorrem na região).
Foi Suzana Camargo Reis, 42 anos, líder informal do grupo, quem na
ocasião se fez a pergunta: "E agora que terminou o curso, vai cada uma para
sua casa?" Alice Monteiro confirma: "A ideia de formar um grupo realmente
foi delas." Das 36 mulheres que fizeram a capacitação inicial, nove foram as
mais persistentes. Hoje, junto com Suzana, as mais assíduas participantes do
grupo são Lidiane Gonçalves de Andrade, 21 anos, Juceli de Assunção Marques, 29, Fátima Regina Rodrigues, 42, e Ledeni Alves dos Santos, 51.
"A gente passou a enxergar de forma diferente as coisas à nossa volta",
explica Suzana, mostrando os móbiles, chaveiros, bolsas e peças em biscuit,
crochê e fuxico, adornados com biguás, garças, cisnes-do-pescoço-preto, gaivotas, golfinhos, tubarões, polvos e siris. Moradora da Barra há 15 anos, ela
teve momentos muito difíceis na vida, por conta das dificuldades de ter um
irmão para criar, de um quadro forte de depressão, que superou, e da resistência inicial do marido. "Hoje ele apoia, mas no começo dizia que eu estava era
arrumando incomodação". Lidiane tem mais sorte: encontrou uma alternativa
para a rotina de passar os dias em casa, apenas cuidando da filha, Dyuliane, 6
anos, e sempre contou com o incentivo do marido, Alex. Assim como Fátima,
que tem todo o incentivo do esposo, José Luiz. Mas Juceli lembra que muitas
mulheres ainda não se deram conta das alternativas que possuem: "Pouca
gente vai atrás. Dizem que não sabem dos cursos que acontecem aqui."
percebiam
as fragilidades da natureza à sua volta
Até então as mulheres não
29
DA BARRA
SUZANA (EM PÉ, À DIREITA): LÍDER INFORMAL DO GRUPO DE ARTESÃS
GRUPO DE ARTESÃS
A propósito de capacitações, uma das metas das artesãs do GAB é aprender a confeccionar as camisetas que hoje compram e estampam com serigrafias.
Constituir formalmente uma associação ou cooperativa é outro objetivo, mas
os custos ainda dificultam. Enquanto isso não acontece, elas mostram com
orgulho as carteiras de artesãs. “Agora temos uma profissão”, lembra Ledeni.
Nas quartas-feiras, uma das integrantes do GAB marca presença com uma
banca no campus da Furg (Fundação Universidade de Rio Grande), instituição para a qual, a propósito, já produziram mochilas, especialmente confeccionadas para um evento. Sem falar nas muitas outras feiras e eventos onde
elas expõem seu trabalho. Outro grande cliente, de prestígio nacional, é o
Projeto Tamar, de preservação das tartarugas marinhas. Fátima comenta: "Demorou um pouco para sair essa parceria, mas hoje sempre temos encomendas, não só porque o nosso produto é de qualidade, mas também porque
nunca deixamos de atender no prazo". No mês de outubro de 2010, elas
estavam focadas em produzir 340 peças encomendadas. Para novembro, seriam mais 530, e outros 710 chaveiros e móbiles para o final do ano.
As peças em biscuit, espécie de porcelana fria produzida a partir de maisena e cola, que primeiro tem que ser cozida para depois passar pela modelagem e pintura, foi aos poucos dando lugar ao feltro recheado com fibra acrílica
e posteriormente bordado. Com o croché e o fuxico é possível produzir bichinhos com uma riqueza impressionante de detalhes. A bióloga Alice resume a
transformação que a iniciativa gerou, nela e no grupo: “Quando eu cheguei à
comunidade da Barra, o que eu mais conhecia era o mar, o estuário. No entanto, eu não valorizava a cultura e a estrutura social da comunidade. Eu simplesmente não as via. Só passei a enxergar à medida que as mulheres foram me
mostrando, abrindo meus olhos para o contexto de suas próprias vidas. Eu,
em contrapartida, mostrei para elas o que eu enxergava no mar. E neste fluxo,
elas foram revendo seus contextos e reconstruindo suas visões do mar e de
sua comunidade, e eu conheci a comunidade e resignifiquei o mar para mim.”
Dito de outra forma: o Grupo de Artesãs da Barra, desde 2004, vem costurando
caminhos e tecendo sonhos – seus e de quem quiser compartilhá-los com elas.
30
As mulheres do GAB vão
costurando
caminhos e tecendo muitos sonhos
31
32
TECENDO MEMÓRIAS
IVOTI RS
bordados
e lembranças
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DIFERENTES GERAÇÕES COMPARTILHAM CONHECIMENTOS E HABILIDADES
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MEMÓRIAS
TECENDO
As primeiras famílias de origem alemã chegaram em Ivoti, no Rio Grande
do Sul, por volta de 1826. Na bagagem, entre os escassos objetos trazidos,
encontravam-se os Wandschoner, panos de parede que haviam sido bordados
em seu país de origem (e, quem sabe, também, no navio, durante a viagem da
Europa para a América do Sul). Uma vez instalados nas novas terras, os domingos à tarde daqueles que seriam chamados de teuto-brasileiros eram reservados para que os homens jogassem cartas ou tivessem outra atividade de lazer,
enquanto as mulheres se reuniam na casa de uma delas para bordar. A prática,
passada de mãe para filha, prosseguiu até o período da Segunda Guerra Mundial, quando foi proibido o uso da língua alemã no Brasil. Celita Holler, 77
anos, bordadeira reconhecida por sua habilidade, não se cansa de relembrar
que seu pai colocou a Bíblia, vários documentos e os Wandschoner da família
em uma caixa de madeira, e enterrou-os, com medo de perseguições. Quando
terminou a guerra, descobriu que todo o material havia se estragado por causa
da umidade. "Foi quase a morte para ele", relembra Celita. Justamente para
resgatar a tradição dos Wandschoner surgiu em Ivoti, por volta de 2004, uma
iniciativa que, alguns anos depois, redundaria no projeto Tecendo Memórias.
Tudo começou com o Grupo de Terceira Idade Amizade, sob a coordenação da psicóloga Ivete Mariane Johann. Na fase inicial do trabalho, entre 2004
e 2005, foram realizadas algumas ações pela comunidade e pelo poder público municipal, como fichamento, classificação e catalogação dos objetos
coletados, levantamento das frases mais citadas, seus significados e sentidos.
Através da busca e empréstimo de Wandschoner, montou-se um acervo, cujo
material deu origem a exposições em eventos culturais de Ivoti e arredores.
perseguições
e sofrimento, hoje alimenta esperanças
Influência alemã, motivo de
35
AULAS INICIAIS DE CAPACITAÇÃO FICARAM A CARGO DE EXPERIENTES BORDADEIRAS
36
MEMÓRIAS
TECENDO
Por fim, houve o resgate das técnicas artesanais propriamente ditas, através de oficinas de bordado e de
educação patrimonial.
O passo seguinte se deu em em 2007, quando o
governo do Rio Grande do Sul lançou, através da Secretaria da Justiça e do Desenvolvimento Social
(SJDS), a Rede Parceria Social (RPS). Por meio dela, a
Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho, em parceria com
o Grupo Gerdau, criou a carteira de projetos sociais
intitulada "Desenvolvimento Social e Protagonismo
Comunitário por meio da Cultura". Via edital, organizações da sociedade civil poderiam encaminhar projetos, com valor máximo de R$ 30 mil. E então surgiu
o projeto Tecendo Memórias.
"A iniciativa do Instituto de Educação Ivoti buscou resgatar o conhecimento tradicional das mulheres e, ao mesmo tempo, agregar uma proposta
educativa de aprendizagem do bordado", explica Marli
Brun, coordenadora do projeto. Dois grupos passaram a se reunir no próprio instituto e um grupo, na
Associação dos Moradores do Bairro União. "Mantivemos nos três grupos o estudo de Técnica e História
do Bordado, Criação e Arte, Direitos Humanos e Gestão de Negócios. As áreas de Alemão, Memórias e
Vivências e Informática Educativa foram desenvolvidas em duas turmas", acrescenta Marli.
Do total de 30 mulheres inscritas, 19 concluíram
com índice de presença superior a 75%. A maior parte das integrantes possuía entre 30 e 55 anos de idade, mas algumas adolescentes e uma senhora com mais
de 60 anos também participaram do curso. O grau de
instrução da maioria situava-se entre a 3ª e a 7ª série
do Ensino Fundamental.
As aulas de Técnica de Bordado foram ministradas por bordadeiras reconhecidas na comunidade por
sua expertise. A incorporação ao projeto como
monitoras remuneradas significou um reconhecimento
pelo saber que construíram informalmente. Na fase
inicial, quando processo era chamado de resgate das
memórias histórico-afetivas, três das quatro
bordadeiras contratadas puderam se aperfeiçoar ainda mais através de algumas oficinas.
Desde aquela época, a frase em alemão que tem
acompanhado o grupo, sendo motivo de produção
de vários Wandschoner, é Gott segne dieses Haus und
alle die da gehen ein un aus (Deus abençoe esta casa
e todos os que nela entram e saem). Ingrid Margareta
Tornquist, pesquisadora e professora aposentada do
Instituto de Formação de Professores de Língua Alemã, diz que os provérbios bordados nos Wandschoner
são "como a voz da mulher, da dona de casa. Era ela
quem os escolhia e bordava".
Provérbios bordados
nos
Wandschoner
são como a voz
da mulher
37
MEMÓRIAS
MARLI (PRIMEIRA À ESQUERDA, AGACHADA) E ALGUMAS DAS ARTESÃS DE IVOTI
TECENDO
O trabalho das bordadeiras atualmente ultrapassa a produção de
Wandschoner. O grupo, que a partir de 2009 deu início ao projeto de constituir
uma associação, instituindo uma mensalidade para aquelas que possam contribuir, tem participado de feiras e exposições comercializando também aventais, camisetas e trilhos. "É uma terapia, pois exige calma, paciência", explica
dona Celita, a professora septuagenária que tem o privilégio de conviver com
a iniciante Tainara, de 16 anos. Exímia desenhista, Tainara está fazendo o curso de Técnica em Artes Visuais e passou para o 3º ano do Ensino Médio. Ao
lado delas, convive Teresa, nascida na região das Missões, que já costurava,
mas quer se tornar bordadeira profissional um dia. A renda complementar que
sua produção gera tem sido importante para a família, já que o marido foi
demitido de um curtume há um ano, e ela ainda ajuda a sustentar um cunhado
que tem deficiência mental.
Vera Koch Schneider, professora voluntária no projeto e espécie de "presidente informal" da futura associação, diz que é difícil mensurar o valor do
que vem sendo feito no Tecendo Memórias: "Expor os Wandschoner sempre
traz boas recordações para as pessoas que tomam conhecimento do trabalho.
Muitas têm boas lembranças da casa da mãe, da avó. Uma moça, em especial,
chamou minha atenção durante uma exposição, porque ficou muito emocionada, com os olhos cheios de lágrimas. Ela lembrou de sua avó, pessoa muito
querida. Fotografou todos os panos e nos contou com muita satisfação sobre
suas lembranças do tempo de criança". Vera tem razão: quanto vale costurar
(ou bordar) com mãos firmes e delicadas um elo entre o presente de realizações e o passado feliz?
bordando
um elo entre o presente e o passado
É difícil mensurar o valor de ir
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DONA CELITA (ACIMA, À ESQUERDA) DOMINA E COMPARTILHA OS SEGREDOS DO PONTO À MODA ANTIGA
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LÃ PURA
SÃO BORJA RS
cooperação
a serviço do puro talento
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PURA
AGULHAS, LÁS E CRIATIVIDADE FORMAM A BASE DO SUCESSO DA COOPERATIVA
LÃ
Dona Eva Kufner, gaúcha de 65 anos, nascida no pequeno município
chamado São Pedro do Sul, admite: "Foi um sonho que eu não sonhei". A
bela definição refere-se à semana de setembro que viveu em Paris, em 2009.
Na capital francesa, ela passou boa parte do tempo no estande do projeto
Talentos do Brasil, na condição de presidente da cooperativa Lã Pura, de São
Borja, que lá estava mostrando seu trabalho. Mas guiada pela assessora do
Ministro do Desenvolvimento Agrário, teve oportunidade de conhecer também os pontos turísticos da chamada Cidade Luz. Apesar de se considerar
uma pessoa "pé no chão", como ela mesma diz, desfrutou e deslumbrou-se
com uma sensação de liberdade e de encantamento que sua rotina de donade-casa jamais sinalizaria ser possível um dia. "A arquitetura é maravilhosa.
As igrejas, então, nem se fala", relembra dona Eva. Mas a emoção maior veio
mesmo dos elogios recebidos quando do desfile das peças produzidas por
ela e suas companheiras, tendo como adereço principal a lã dos pampas
gaúchos. "Vendemos até as peças do mostruário".
Uma evolução e tanto para quem, desde sempre, se dedicou a produzir peças mais rudimentares, como o bachero, espécie de pelego colocado entre o cavalo e a sela, confeccionado a partir das sobras da lã de
ovelha, ou ainda palas, cobertores, tapetes e blusões. Habilidades que
ela herdou de sua bisavó, que fazia os próprios fios que usava para remendar as roupas da família. Hoje, dona Eva e as companheiras da Cooperativa Lã Pura compram a matéria-prima de qualidade que, depois, transformam em belas peças artesanais. São fios mais sofisticados, que mandam lavar em Santana do Livramento, na fronteira sul do Estado, e que já
Nas mostras no exterior, não é incomum
42
serem vendidas até as peças do mostruário
43
44
PURA
LÃ
PREPARAÇÃO DOS FIOS É ETAPA ESSENCIAL PARA A QUALIDADE DO PRODUTO
Sonho de fazer artesanato com a matéria-prima
abundante na região já é realidade
45
PURA
LÃ
O reconhecimento ao
trabalho
das
artesãs gera maior
visibilidade
46
chegam a São Borja cardados. Ainda assim, é preciso "limpar", tirar fiapos. "Dá trabalho. Não é todo
mundo que aguenta", acrescenta dona Eva.
A história do Lã Pura começa em 2005, quando
o designer Renato Imbroisi, consultor do Sebrae,
mais Adriane Colleto e Fabio del Re estiveram na cidade, envolvidos com um projeto para a região sul
com apoio do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Cerca de 10 a 12 mulheres de São Borja, que
tinham algum conhecimento de crochê, tricô e bordado, foram convidadas a acompanhar estes profissionais a São Gabriel, onde durante dez dias trocaram experiências e conhecimentos. E foi lá que começaram a sonhar com a possibilidade de transformarem o que eram noções de corte e costura em autêntico artesanato, a partir da mais típica matériaprima da região, a lã. O sonho logo começou a se
tornar realidade. Voltaram para São Borja no dia 20
de dezembro, e já no dia 5 de janeiro de 2006 deveriam entregar as mais de 100 peças daquela que seria sua primeira coleção, a ser apresentada na Fashion
Rio, no Rio de Janeiro.
Tânia Razia Cappellari, Gema Maria Thiele
Frizon e Eronildes Brittes Mattes eram algumas das
integrantes das ousadas mulheres que toparam o
desafio na época, e que seguem no projeto até
hoje. Assim como Cleni Ocampos Feldberg, uma
espécie de faz-tudo do grupo, pois cuida das finanças, alimenta o site e ainda consegue tempo
para dar asas à imaginação e usar de muita
criatividade para desenvolver ecobags e vestidos,
como o modelo Quero-Quero, que despertam paixões nas europeias. "Sofremos muito no começo,
e não tínhamos noção de onde poderíamos chegar", reconhece Cleni. Por falar em reconhecimento, Cleni foi destaque na etapa estadual do Prêmio Sebrae Mulher de Negócios, edição de 2008,
tendo sido distinguida na categoria Membros de
Associações ou Cooperativas de Pequenos Negócios. Na ocasião, emocionada, afirmou: "Essa não
é minha história, ela é o resultado de um trabalho
feito com muito amor por um grupo de pessoas".
Não é à toa, portanto, que se multiplicam reportagens sobre o trabalho das artesãs, que já foram ao ar no Globo Rural, da Rede Globo, e no
TeleDomingo, da RBS-TV, apenas para citar algumas
das muitas ocasiões em que o trabalho que realizam
foi reconhecido publicamente.
Em um dos textos sobre a relação do designer
Renato Imbroisi com diversos projetos de artesanato Brasil afora, a repórter Clarice Couto, do Globo
Rural, descreve: "Quem já teve a oportunidade de
conhecer os cachecóis feitos pelas mulheres da coo-
NA MÁQUINA OU À MÃO, HABILIDADE DAS ARTESÃS SEMPRE ENCONTRA SEUS CAMINHOS
47
PURA
CLENI (SENTADA) E DONA EVA (EM PÉ, NO MEIO) COM ALGUMAS DAS COLEGAS
LÃ
perativa Lã Pura, adornados com pequenas pimentas ou bolinhas coloridas
de lã penduradas, ou seus gorros em variados estilos, cores e bom acabamento, não relaciona essas criações de aspecto moderno ao antigo processo
pelo qual são confeccionadas. Cleni Ocampos Feldberg, uma das sócias fundadoras da Lã Pura, conta que é no mês de outubro que a atividade se inicia:
as famílias tosquiam as ovelhas, lavam o velo (lã), cuidam da fiação da matéria-prima na roca e do tingimento dos fios. Coloridos, eles podem ser aplicados sobre as roupas (é o caso das pimentas) ou trabalhados em tear manual. (...) O Lã Pura envia seus artigos com frequência cada vez maior para os
estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo."
A Cooperativa Lã Pura hoje integra a Cooperúnica, espécie de cooperativa das cooperativas e que abrange o território nacional. Em um site partilhado, 12 associações que reúnem 15 cooperativas compartilham também
um mesmo modelo de nota fiscal para venda de seus produtos. Na Lã Pura,
são 25 as sócias-fundadoras, mas o grupo de apoio é bem maior. A planilha
de controle do trabalho realizado, que serve também para o rateio dos valores que ficam para cada uma delas, a partir de uma ficha técnica de cada
produto, foi desenvolvida por Cleni "meio na marra", mas já está virando
modelo de gestão. Em paralelo, o trabalho das artesãs ganha visibilidade
junto a nomes consagrados do design, como Ronaldo Fraga e a mineira Ana
Vaz, que desenvolveram alguns produtos para a cooperativa. E tudo porque,
se a lã é pura, elas são puro talento.
qualidade dos produtos tem chamado
a atenção de designers consagrados
A
48
PEÇAS CRIADAS EM SÃO BORJA DESPERTAM PAIXÕES QUANDO LEVADAS AO EXTERIOR
49
50
GRUPO CANOA
CANOAS RS
jeito
novo
de lidar com rejeitos
51
o que era para ser lixo ganha
O
52
atributos
CANOA
REAPROVEITAMENTO: CRIATIVIDADE QUE FAZ NASCEREM LUMINÁRIAS E BOLSAS
GRUPO
Quem procurar no dicionário um sinônimo de persistência não vai encontrar o nome de Edy Ferreira Ribeiro entre as opções. Mas a culpa é dos
dicionaristas. Porque essa gaúcha de 57 anos é do tipo que não desiste nunca.
Não é à toa, portanto, que está à frente do Grupo Canoa, na cidade quase
homônima de Canoas, no Rio Grande do Sul. Formada em corte e costura ("que
não deixa de ser uma espécie de artesanato") e filha de mãe artesã, que operava com destreza o tear, tecidos e retalhos, dona Edy é uma usina. Seu celular
não para de tocar, seja para tratar dos assuntos referentes à formalização da
associação de artesãs, que está em curso; seja para ver os detalhes da participação na próxima feira; seja para combinar a remessa de resíduos que serão
enviados por uma fábrica, para depois serem transformados pelas mãos habilidosas de suas companheiras de trabalho.
Reaproveitamento, como se vê, é palavra-chave no Grupo Canoa. O nome,
aliás, é mais do que uma homenagem à cidade. Acontece que os índios que
habitavam a região utilizavam canoas para revender o que produziam. "Se eles
encontravam sua sustentabilidade usando canoas, nós também podemos", explica dona Edy. Sustentabilidade que passa também pela criação de peças
artesanais a partir da reutilização de resíduos da indústria automobilística, especialmente insumos de borracha que fazem parte do sistema de filtragem de
óleo e ar de carros e caminhões, mas também banners descartados e, ainda,
garrafas pet e tampinhas. O que seria rejeito acaba se transformando em luminárias, joias, acessórios, carteiras e bolsas. Dona Edy gostaria que mais empresas
contribuíssem com o projeto, até porque, como ela enfatiza, quem recicla pode
pleitear algumas isenções fiscais.
como beleza e funcionalidade
53
CANOA
DONA EDY (ESQ.) É A LÍDER DO PROJETO QUE MUDOU A VIDA DE SIRLEI
GRUPO
O projeto tem o apoio do Sebrae-RS (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) e da Petrobras. Logo em seus primeiros passos, contou com a
consultoria da designer Karen Ghetto, de Novo Hamburgo, que coordenou as
oficinas iniciais de capacitação, em agosto de 2007, em uma sala emprestada
pelo Colégio La Salle. A iniciativa foi da Secretaria de Desenvolvimento Econômico. E a evolução foi rápida. O lançamento das primeiras peças, concebidas a partir de garrafas pet e borracha, aconteceu já em outubro de 2007,
durante a Mercopar.
A história, entretanto, começa bem antes, quando dona Edy resolveu participar de uma feira promovida pela prefeitura de Canoas, onde comercializava
peças que ela mesma produzia, a partir de roupas reformadas e decoradas com
retalhos. A feira não durou muito tempo, mas ela foi a última a desistir. "Eu
sou muito persistente, sabe? Sou sempre a última a me entregar. A maioria das
pessoas não têm visão de futuro", enfatiza. Em razão dessa característica, dona
Edy foi convidada para liderar a oficina de artesanato que acabaria sendo o
embrião da atual associação. O prédio onde as artesãs trabalham desde 2008
foi cedido pela prefeitura municipal. "Somos muito gratas ao prefeito Jairo
Jorge e à primeira dama, Tais, que sempre nos apoiaram".
Dona Edy tem outra marca: o uso constante do plural majestático. Dificilmente sai de sua boca um "eu isso" ou "eu aquilo". É sempre "nós". É dessa sua
convicção no trabalho coletivo que vem parte da energia que sustenta o Grupo
Canoa. Outra pilar é a solidariedade e o compartilhamento de experiências
positivas. A colega Sirlei que o diga. Quando chegou ao projeto, o marido, que
havia sido aposentado como piloto da Varig cinco anos antes, passava por um
quadro de depressão. "Nossa vida deu uma virada para pior. A família entrou
em crise. Perdemos amizades, perdemos o ânimo, perdemos quase tudo", lembra Sirlei. Indicada por uma amiga, resolveu conhecer a iniciativa. E foi lá que
recuperou a autoestima. "Aqui aprendo muita coisa no convívio diário. Até
dicas de como arrumar casa, fazer isso ou aquilo", explica, garantindo que
tudo mudou de um ano para cá, quando se integrou ao grupo.
54
Rotina do projeto diminui espaço do “eu”, pois
no trabalho coletivo o “nós” é quem impera
55
CANOA
GRUPO CANOA NAVEGA MOVIDO A TALENTO E MUITA PERSISTÊNCIA
GRUPO
É claro que dificuldades existem, e para o Grupo Canoa são basicamente
duas: espaço para estocar material (no final de 2010 elas ganharam do Sebrae
nada menos que 26 mil tampinhas de garrafas pet) e os gastos na compra de
insumos para os acessórios, como fechos e elos. Sem falar na matéria-prima, que
algumas vezes é doada, mas muitas empresas só aceitam revender, mesmo que se
tratem de sobras que não teriam qualquer utilidade. É dinheiro que as artesãs
investem, pois os patrocínios que o projeto consegue em geral não cobrem este
tipo de gasto, apenas estandes e despesas de viagem para participação em feiras, o que não deixa de ser um apoio importantíssimo. Desde 2008, por exemplo,
o Grupo Canoa participa da Paralela Gift, em São Paulo. É uma oportunidade e
tanto, porque os melhores resultados advêm das vendas no atacado.
A propósito de investimento, 10% do valor fixado para cada peça é reinvestido
na associação. "Nós calculamos o preço de venda a partir do valor da hora, que
para nós é de R$ 5. Se uma peça pode ser feita na metade desse tempo, então ela
vai custar R$ 2,50. Na venda no varejo, há um acréscimo de 50%", explica Elisabeth
Madrid, a Beth, uma das mais antigas do grupo e espécie de braço direito de
dona Edy. Hoje, em torno de 12 a 15 mulheres participam mais constantemente
dos trabalhos, pois há muitas idas e vindas. Para participar, não há burocracia.
"Elas chegam por indicação ou porque ouviram falar de nós em algum lugar",
explica dona Edy. Toda nova integrante passa por uma capacitação inicial.
Com visão de futuro, dona Edy, que hoje dá aulas de corte e costura em
uma iniciativa de geração de emprego e renda no município de Estância Velha,
já está pensando na Copa de 2014. E por isso insiste na necessidade de que
mais empresas doem materiais. É com orgulho que ela mostra um dos tantos
resultados da criatividade do grupo: uma espécie de esponja que filtra o ar do
motor, e que depois de ser tingida com erva-mate e dobrada delicadamente,
vira flor. "Eu sempre acredito que as coisas possam acontecer, decolar." Quem
conhece dona Edy passa a acreditar também.
Esponja do filtro de ar vira flor depois de
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SEJAM FIOS, SEJAM TAMPINHAS, TUDO GANHA NOVA VIDA NA MÃO DAS ARTESÃS CANOENSES
tingida e dobrada com delicadeza
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MULHERES DO FREI
PALHOÇA SC
artesanato
de Palhoça e do Brasil
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DO FREI
MULHERES
APURO TÉCNICO (ACIMA) EM EMBALAGENS ADEQUADAS (AO LADO)
Peças eram produzidas
individualmente,
mas hoje mais de uma
artesã se envolve
60
Na teoria, as mulheres que moram em uma comunidade chamada Frei Damião, em Palhoça, na
Grande Florianópolis, conhecida por seus altos índices de risco social, dificilmente poderiam ter qualquer relação com lojas como Le Lis Blanc e
Imaginarium, estabelecidas nos melhores
shoppings do país. Na prática, uma associação nascida informalmente por volta de 2005, mas formalizada desde 2009, está mudando esta realidade.
Acontece que a Mulheres do Frei Produção Artesanal,
mais conhecida simplesmente como Associação
Mulheres do Frei, se transformou em uma fornecedora dos elegantes acessórios vendidos pelas duas
famosas grifes. A delicadeza do crochê, o bom gosto no uso das cores e o capricho no acabamento
das peças produzidas por mãos humildes, mas muito
talentosas, vêm encantando as clientes das duas
grandes redes, de abrangência nacional.
Se no início as peças eram produzidas individualmente, hoje o trabalho é cooperado, literalmente. Três e até quatro mulheres podem se envolver em alguma etapa da produção. "Tudo em
nome da produtividade e da qualidade", explica
Marinete Bachesk Rodrigues, 49 anos, espécie de
mãezona do grupo, pois está sempre preocupada
com o bem-estar de todas. Ela faz questão de lembrar que o momento atual é bem diferente da realidade de cerca de seis anos atrás, quando tudo
começou, num galpão cedido pela prefeitura e
onde a poeira imperava.
Na época, um grupo de mulheres se reuniu e
decidiu encontrar alguma maneira de complementar sua renda familiar. As possibilidades eram
três: investir no ramo da alimentação, opção logo
descartada, em razão da dificuldade de seguir as
normas de higiene e necessidade de equipamentos; produzir sabão e revender de casa em casa
ou em mercadinhos de bairro, atividade que foi
a escolhida por algumas delas; e por fim o crochê e o bordado, nicho preferido por um terceiro
grupo. O que prosperou mesmo foi o terceiro, até
porque neste grupo a união e o espírito de cooperação se mostraram mais fortes - características que seguem até hoje.
Para que as coisas seguissem evoluindo, foi
fundamental o apoio do Sebrae-SC, através de uma
consultoria de moda. Graças a este apoio, as artesãs foram adaptando o tipo de trabalho que realizavam. Elas chegaram a produzir um vestido de
noiva inteirinho em crochê, mas aquele tipo de peça
não tinha apelo comercial, além de levar muito tempo para ficar pronto. Acabaram descobrindo que
poderiam usar como tema o boi-de-mamão e per-
61
A QUALIDADE DO TRABALHO COOPERADO ABRIU MERCADO NACIONAL PARA COLARES COMO O ACIMA
62
DO FREI
MULHERES
sonagens como a Bernunça, o Boi e a Maricota, do folclore açoriano, cuja
presença é muito forte em Santa Catarina. As peças, assim, poderiam contar com um apelo diferenciado, mais próximo da cultura local e explorando o sentimento de pertencimento a uma comunidade. E começaram, então, a nascer panos de prato, toalhas, cobertas de mesa e sachês, hoje
comercializados em delicadas embalagens com a marca própria. Com a
melhoria nos negócios, veio a cedência de uso da atual sala, que pertence
à prefeitura de Palhoça e onde há dois anos funciona a associação. O projeto, a propósito, foi incluído no programa municipal de artesanato.
Outra parceria importante foi estabelecida com a Rede de
Comercialização Casa Catarina, o que garante diversos pontos de vendas
com fluxo constante de pessoas, pois a rede tem filiais em shoppings.
Além disso, a loja trabalha com um sistema de gerenciamento de estoques
muito útil, para que não falte nunca produto nas filiais. Sem falar no Projeto Comércio Brasil, através do qual o Sebrae aproxima instituições de
mercados para colocação de seus produtos.
CAPACIDADE DE APRENDER
Na trajetória do grupo, uma das marcas mais fortes tem sido o aprendizado, tanto no que se refere ao trabalho artesanal em si, quanto na gestão.
Sirlei Anhaia é um exemplo explícito. Seu nome completo (Sirlei Aparecida
Serafim Luiz Ferreira Anhaia) é proporcional à capacidade que tem de se
Decisão de adotar temas do folclore açoriano
gerou novas
oportunidades de negócio
63
DO FREI
QUARTETO AFINADO: MARINETE, ROSÂNGELA, SIRLEI E TEREZINHA
MULHERES
aprimorar. Casada, 31 anos, recebeu a incumbência de manter os controles
da produção, e a cada momento vem sofisticando mais as planilhas que utiliza para registrar quem fez o que e em quanto tempo. Simultaneamente,
revelou-se uma aplicada aluna de Rosângela Loureiro Gorri, 46 anos, exímia
no crochê e bordados. "Muitas vezes eu dizia para ela: esse aqui tem que
desmanchar, não ficou direito", lembra Rosângela. Hoje, ela mostra com orgulho que o ponto apertadinho da "aluna" Sirlei beira à perfeição.
Terezinha Gomes do Rosário, 48 anos, é outro exemplo de superação.
Analfabeta funcional, tinha apenas noções básicas de costura quando entrou para o grupo, e acabamento não era o seu forte. Mesmo assim, persistiu.
Em uma ocasião, recebeu fita métrica e tecidos para cortar em casa, mas
como não sabia ler as medidas (ficou com vergonha de admitir), não cumpriu a tarefa. Em lugar de se abater, decidiu se inscrever no EJA (Educação de
Jovens e Adultos), e já está no terceiro ano. Do tipo mais calada, divide suas
horas entre as terças e quintas à tarde na Associação Mulheres do Frei e o
pequeno sítio onde cria porcos, coelhos e galinhas. Durante muito tempo,
sua atividade principal foi a reciclagem de lixo.
O futuro da Associação Mulheres do Frei ainda é uma incógnita. Até
porque elas seguem vivendo e trabalhando em um ambiente complicado, do
ponto de vista social. Mas o fato é que o faturamento anual da associação só
faz crescer. De 2007 para 2010 as receitas aumentaram consideravelmente, e
para 2011 as perspectivas são muito animadoras, ainda que boa parte do
capital continue sendo reinvestido na própria associação. É por essas e outras que as mulheres do Frei já são mulheres do Brasil.
O futuro é uma incógnita, mas bons
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TEREZINHA (ESQ.) DECIDIU FAZER O EJA E SIRLEI BORDA MELHOR QUE A PROFESSORA
resultados alimentam o otimismo
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66
COPESCARTE
ANTONINA PR
o milagre da transformação
dos peixes
67
COPESCARTE
ARTESÃS DE ANTONINA PASSARAM A ENXERGAR NOVOS HORIZONTES
Salmão, corvina, linguado e abrótea são algumas das espécies que há
muitos anos fazem parte do dia a dia da comunidade pesqueira de Antonina,
no litoral paranaense. Desde 2006, entretanto, estes peixes passaram a desempenhar um outro papel, ainda que também ligado à economia local e à
geração de renda, tal qual a pesca. Acontece que a pele e as escamas destes
habitantes de rios e mares, depois de devidamente beneficiadas, passaram a
ser utilizadas como insumo de belas e originais peças de artesanato. Elas são
produzidas por uma cooperativa integrada por mulheres de baixa renda e
moradoras de comunidades socialmente vulneráveis - a maioria dos bairros
Portinho, Graciosa de Cima e Graciosa de Baixo. Há mais de quatro anos, a
Copescarte tem contribuído para resgatar a autoestima e ressignificar a vida
destas mulheres e suas famílias.
Ainda que o trabalho seja coletivo e que sua continuidade seja resultado
do espírito cooperativo que mantém unidas as 20 associadas efetivas, o
catalisador (ou catalisadora) de todo o processo tem nome. Chama-se Leocília
Oliveira da Silva, 53 anos. Nascida em Manaus e ex-voluntária do Instituto
Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Leocília domina como ninguém os
segredos e mistérios do processamento da pele de peixe. No início de 2004,
ela fez uma especialização na Universidade Estadual de Maringá, no oeste
paranaense. Em 2005, quando visitou Antonina a passeio, apaixonou-se pelo
lugar. E está lá até hoje.
O embrião de tudo foi um desfile-mostra na cidade das muitas peças de
vestuário e de artesanato que poderiam ser confeccionadas a partir da pele
Talento e cooperativismo se
68
uniram para
oferecer uma nova perspectiva às mulheres
69
UMA DAS PEÇAS CHEIA DE ESTILO PRODUZIDAS PELAS COOPERADAS, COMO MARLI
Trabalho cooperado contribui na
70
superação
COPESCARTE
TINGIMENTO PROPORCIONA VARIEDADE DE TONS ÀS PELES TRANSFORMADAS EM COURO
transformada em couro e das escamas. Com o apoio de Nelson Rosa, do Instituto Ambiental e Cultural Carijó (que também colaborou na redação do que seria o
futuro estatuto da Copescarte), Leocília conseguiu despertar a curiosidade e o
interesse da comunidade de Antonina, em especial das chamadas marisqueiras.
Antonina tem cerca de 25 mil habitantes, e não é incomum as pessoas que
querem ter uma vida melhor saírem de lá em busca de oportunidades. Para as
mulheres, então, as alternativas são ainda mais reduzidas. E muitas delas também têm que conviver com a violência doméstica, resultado do abuso do álcool
ou drogas por parte dos maridos, quase todos pescadores. Por isso, a Copescarte
se transformou em uma opção tão atraente, menos pelos resultados financeiros
(isto porque os ganhos têm sido quase todos reinvestidos na própria cooperativa), e mais por proporcionar uma nova perspectiva de realização pessoal e de
condições de vida.
Após saírem de casa por volta das 5 da madrugada, as marisqueiras, em
grupos de 10 a 12, vão de canoa a remo (barco contratado e com o custo
rateado) até um ponto determinado. Atravessam a baía de Antonina e
embrenham-se nos mangues até por volta de 16h30min, quando retornam com
sacos de bacucu. As marisqueiras precisam permanecer de seis a oito horas com
suas pernas e ventre submersos no substrato lodoso dos manguezais. Na maior
parte do tempo, essa submersão ocorre até a altura do busto. O corpo feminino,
enterrado por horas no rico lodo dos manguezais, sofre com as consequências:
doenças vaginais, uterinas e renais, como infecções e corrimentos, geram um
quase que permanente comprometimento da saúde da mulher - e também da
vida do casal, sob o ponto de vista sexual. Involuntariamente sendo contami-
do drama da falta de horizontes
71
COPESCARTE
Ver a autoestima
renovada
é
um privilégio que
não tem preço
72
nadas e contaminando os manguezais, acabam gerando impactos negativos para a saúde pública e no
ecossistema.
Uma das protagonistas desta realidade chamase Marli Pereira de Oliveira, 48 anos. Mãe de três filhos (duas mulheres, já casadas, e um menino de 12
anos), com nove anos já ajudava a mãe "a tirar siri,
sentadinha em uma lata de leite", como ela mesma
relembra. Engravidou aos 15 anos, acabou perdendo
o bebê. Mais tarde, conheceu aquele que viria a ser
seu futuro marido, mas também seu algoz. Passada a
fase inicial do relacionamento em que tudo eram flores, ele começou a beber e até a espancá-la na frente
dos filhos. Depois de muita resistência, finalmente
ele concordou com a separação, o que de um lado foi
bom, pois Marli parou de ser agredida, mas por outro
ficou a carga de sustentar sozinha o filho e os netos.
"Depois que entrei na Copescarte minha vida melhorou muito, conheci pessoas diferentes, fiz novas amizades, deixei de tirar siri. Quero voltar a estudar e
pelo menos terminar o Ensino Médio, pois parei na 6ª
série", diz Marli.
Não menos dramática é a história de Cristiane
Mari Fligikowski, 31 anos. Abandonada pela mãe, que
era garota de programa, logo depois de nascer, teve
a felicidade de ser criada por um casal muito amoroso, que a adotou e com quem foi morar em Curitiba.
Com a separação dos pais adotivos, anos depois, as
dificuldades aumentaram. Mas Cristiane acabou se
mudando para Antonina com a mãe, quando o pai,
que vivia sozinho na cidade, ficou muito doente e não
tinha quem cuidasse dele. Acabou engravidando de
surpresa aos 17 anos. O neto durante algum tempo
foi a alegria de seu pai, mas ele morreu poucos anos
depois. Quando engravidou da segunda vez, de novo
de forma inesperada, primeiro tentou abortar, pois
não tinha condições de criar mais um filho; depois,
decidiu que daria a criança, assim que nascesse (repetindo a história que havia acontecido quando ela era
um bebê). Acabou se arrependendo da decisão, buscou a filha de volta, mas não escapou da prostituição
(outra vez repetindo a história da mãe), fazendo programas com marinheiros embarcados que passavam
por Antonina. Foi Leocília, da Copescarte, quem ofereceu a ela uma outra possibilidade de encarar a vida.
E é essa a trajetória que Cristiane vem percorrendo
desde então. "Agora tenho uma profissão, sou respeitada pela sociedade que me condenava", assegura
ela. Formada em Técnica Portuária e concluindo o curso
de Técnico em Meio Ambiente, ela agora sonha em
cursar uma faculdade - "Ciências Contábeis ou Matemática", explica Cris.
A beleza do artesanato produzido pelas associa-
ESCAMAS VIRAM FLORES NAS MÃOS HABILIDOSAS DAS ARTESÃS DA COPESCARTE
73
COPESCARTE
LEOCÍLIA (A SEGUNDA DA DIREITA PARA A ESQUERDA, SENTADA) E SUAS PARCEIRAS
das da Copescarte envolve um processo trabalhoso, e com uma peculiaridade:
elas são as únicas do Brasil que sabem como beneficiar a pele de peixes de mar,
e não apenas de água doce. As peles são compradas em Paranaguá, de uma
peixaria. Aos pescadores foi mostrada a importância de caprichar na hora de
tirar o couro dos peixes, evitando furos e outras imperfeições. O material fica
guardado em câmaras frigoríficas, até chegar a hora de descongelar, fazer mais
uma limpeza, reidratar. Só então as peles vão para o fulão, aparelho onde,
durante dois dias e meio, ocorre todo processo químico para a transformação
em couro, com a utilização de 23 produtos. Depois vem a secagem, e só então
a matéria-prima está pronta para ser transformada em peças de artesanato.
O trabalho tem rendido diversos convites para palestras Brasil afora, e até
no exterior, como no caso dos cônsules do Senegal e do Congo e do governo
do Paraguai. Também não foi à toa que a presidente da Copescarte foi indicada
ao Prêmio Soroptimista Ruby - Para Mulheres Ajudando Mulheres, reconhecimento que homenageia aquelas que, através de seus esforços pessoais e profissionais, estão fazendo diferença na vida de mulheres e meninas.
Leocília confessa que o trabalho realizado hoje pelas artesãs tem como
principal objetivo divulgar o domínio da técnica de beneficiamento da pele,
porque elas imaginam que poderão obter recursos mais vultosos vendendo
diretamente o couro. "É como se as peças que produzimos fossem um mostruário das muitas possibilidades que existem", explica. Quem já viu os cintos,
colares, brincos, chaveiros, calçados, e até biquinis, produzidos pelas artesãs
da Copescarte, fica na torcida para que elas não parem de criar, mesmo que
vender as peles possa um dia vir a ser seu negócio mais rentável.
transforma
em Antonina é a realidade feminina
Mais do que as peles, o que se
74
MIÇANGAS DE MADEIRA, LIGADAS POR FIO DE TUCUM, FAZEM PARTE DOS ACESSÓRIOS
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76
CAFÉ IGARAÍ
MOCOCA SP
bordando e pintando com
sabor de café
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IGARAÍ
CAFÉ
ALTERNATIVA: EM LUGAR DE ENXADAS E FOICES, AGULHAS E LINHAS
Eixo da produção de
78
Distrito do município de Mococa, na região norte de São Paulo, Igaraí quer dizer "canoa pequena".
Com uma população estimada em apenas 2.500 pessoas na área urbana (e talvez outras mil nas fazendas
em torno), Igaraí é, de fato, minúscula. Trata-se de
uma pacata localidade em cuja pracinha central está
localizada a modesta, mas organizada sala de uma
instituição dedicada ao artesanato. Batizada Café
Igaraí, a associação congrega mulheres que se dedicam ao crochê, ao bordado e à pintura em porcelana
para retratar uma histórica atividade econômica da
região, explícita em seu nome: o cultivo do café.
Claudia Meirelles Davis, que apoia, de forma voluntária, as artesãs (ela já foi gerente de fazenda de
café durante três anos), conta que Igaraí fica bem na
divisa com Minas Gerais, na região que durante algumas décadas, mais exatamente entre 1898 e 1930, foi
protagonista da famosa política do café com leite, que
estabeleceu um revezamento entre políticos paulistas,
plantadores de café, e mineiros, produtores de leite,
no comando dos rumos do país. Se o eixo da produção
de café tipo exportação atualmente se deslocou para o
norte de Minas e até para Goiás, ficou a tradição em
Igaraí, onde muitas fazendas seguem recebendo visitantes, em programações do tipo turismo rural em um
roteiro batizado, é claro, "Café com Leite". Parte do
público que adquire os produtos artesanais da associação Café Igaraí está justamente neste nicho.
A história começa por volta de 2006, quando foi
veiculado nas rádios locais um anúncio convidando
as mulheres da região para um encontro sobre uma
alternativa de geração de renda. A possibilidade despertou a curiosidade de nada menos que 70 mulheres, boa parte das quais, como se descobriria depois,
estava justamente em busca de uma opção para o trabalho cansativo no plantio e colheita do café. De início, ninguém sabia bem do que se tratava. Quando
informadas de que a ideia era a realização de oficinas apoiadas pelo Sebrae, durante as quais seriam
transmitidas noções de crochê e bordado, em aulas
teóricas e técnicas visando à produção artesanal, apenas 30 decidiram continuar. E assim foi feito, de agosto
de 2006 a abril de 2007. As aulas incluíram até encontros com renomadas bordadeiras do município mineiro de Taguatinga.
Uma vez definidas as artesãs que tocariam adiante o projeto e escolhida a linha de trabalho, um
aspecto que foi bastante estudado foi a paleta de
cafés finos mudou, mas
DO GRUPO DE 70 MULHERES, 30 PERSISTIRAM E FUNDARAM SUA PRÓPRIA ASSOCIAÇÃO
tradição se mantém viva em Igaraí e região
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A PINTURA EM PORCELANA É UM COMPLEMENTO PERFEITO AOS PANOS BORDADOS
Além da produção própria, cada artesã é
80
IGARAÍ
CRENÇA: DURANTE BOM TEMPO, ARTESÃS REINVESTIRAM OS GANHOS NA ASSOCIAÇÃO
CAFÉ
cores. Durante a florada do café, entre setembro e outubro, as plantações ficam
brancas como a neve. Depois, os tons mudam para amarelo ou vermelho, dependendo da variedade. Há ainda os tons do terreiro utilizado para secagem dos
grãos, e, ainda, as cores da terra propriamente dita. Para o tingimento dos tecidos, a técnica utilizada é japonesa, e inclui sutilezas como adicionar leite de
soja nos panos de algodão, pois a proteína ajuda na absorção do pigmento. O
consultor do Sebrae, Renato Imbroisi, foi quem sugeriu que, aos trabalhos em
bordado e crochê, se agregasse a pintura em porcelana, de forma a que se
pudesse montar uma mesa de café da manhã completa, da louça à toalha e
descansa-pratos, passando pelos guardanapos, todos com motivos da região.
Durante um bom tempo, as artesãs reinvestiram na íntegra tudo que ganhavam (inclusive com a venda da produção das oficinas). Gessi Inácio de Souza Teodoro,
59 anos, casada e mãe de três filhos homens, lembra que ouvia sempre a mesma
frase, durante o período do treinamento: "Não vai dar certo. Vocês estão trabalhando de graça, perdendo tempo." Hoje, além de trabalhar no corte e estar estudando
a costura, ela se aventura no computador, ajudando na parte administrativa. Eliana
de Fátima Santana Cipriano, 40 anos, casada, dois filhos, acrescenta que justamente
por causa desta descrença é que decidiu continuar: "Gosto muito de desafios". Há
pouco tempo ela morava na capital paulista, onde vivia de faxinas, e fez o caminho
inverso de muita gente que procura oportunidades. Preferiu fugir da violência urbana, e considera que já evoluiu muito na costura.
"As tarefas são compartilhadas. Cada uma delas, além do artesanato que
produz, é responsável por uma área: umas cortam, outras passam, uma cuida
das rotinas de banco, a outra da limpeza, outra dos emails", explica Claudia.
responsável por alguma tarefa de apoio
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IGARAÍ
OTIMISMO: CLÁUDIA (PRIMEIRA À DIREITA) E O GRUPO ESTÃO CONFIANTES NO FUTURO
CAFÉ
Maria Aparecida Arcas Costalonga, a Cida, 64 anos, morou e trabalhou em fazendas a vida toda. Viúva, tem 10 filhos e 18 netos, apenas três dos quais não
ajudou a criar, como ela faz questão de enfatizar. Trocou a rotina de carpir,
plantar, colher e descascar o café pelo bordado e, basicamente, crochê, que já
dominava. Mineira de Guaxupé, quando voltou a morar em Igaraí dedicou-se
ao vagonite, um tipo de ponto do bordado. Já Silvia Helena Xavier Antonioli,
43 anos, conta que desde o início teve a intuição de que as coisas iam dar
certo. "Pensei: vou entrar e vou lutar por uma coisa que vai me servir amanhã,
mas também pode ser uma opção para outras pessoas, no futuro."
As vendas da Café Igaraí seguem sendo um tanto sazonais, mas cerca de
40% das encomendas chegam via internet, enquanto 30% são vendidos em
bazares e outros 30% em Mococa ou diretamente em Igaraí. Além da participação em feiras como Paralela Gift e Arts & Crafts, a associação chegou a vender
para uma loja de São Paulo um conjunto com saia para berço, protetor, rolinho
e trocador. Outra alternativa de negócio é investir nos bordados finos, através
da terceirização ou dando treinamento.
Em meio às perspectivas de crescimento, a associação busca maior aproximação com grupos de jovens. Enquanto o pessoal da terceira idade conta histórias, os mais novos desenham. O projeto se chama TUMM (Todos Unidos Mudaremos o Mundo), e faz parte de uma movimentação que pretende transformar o prédio onde funciona a sala do Café Igaraí em um Ponto de Cultura.
Quando acontecer, a marca do Café Igaraí, criada pelo arquiteto Marcelo Aflalo,
vai ganhar novo e privilegiado ponto de visualização. Merecidamente.
Prédio onde fica a associação deve virar
Ponto de Cultura e melhorar
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visibilidade
INVESTIMENTO EM BORDADOS FIINOS PODE GERAR NOVOS NEGÓCIOS PARA A ASSOCIAÇÃO
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ALDEIA DAS MULHERES
SÃO PAULO SP
uma
aldeia
feminina por natureza
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MULHERES
INÊS TEM PAPEL FUNDAMENTAL NA FORMAÇÃO DAS ARTESÃS
ALDEIA DAS
Como diz o ditado, uma andorinha sozinha não faz verão. Da mesma forma,
um simples canudo (ou tubete), feito com folha de jornal ou com papel de
revista, se visto isoladamente, pouco significa. Mas se algumas dezenas deles
passarem pelas mãos femininas e mentes criativas que povoam a Aldeia das Mulheres, cooperativa de São Paulo que funciona dentro de uma ONG chamada
Aldeia do Futuro, a lista de produtos e objetos que dali nascem pode chegar a
nada menos que 10 mil. A técnica, desenvolvida pelo artesão, arte-educador e
educador ambiental Alexandre Chagas dos Anjos, 40 anos, oferece uma fantástica versatilidade, mas não é apenas ela que brilha no segundo andar do centro de
convivência localizado no bairro de Americanópolis, subprefeitura de Jabaquara.
É também do corte e da costura que o talento destas mulheres emerge.
O impulso maior na geração de renda para instrutoras e alunas da Aldeia
das Mulheres aconteceu há cerca de dois anos, quando o Instituto Wal-Mart encomendou a produção de nada menos que 15 mil peças, mas exigia como
contrapartida que o grupo estivesse formalizado. Daí nasceu a cooperativa, que
hoje reúne em torno de 30 associadas. A cada ano, entretanto, cerca de 300
mulheres são ali capacitadas, e em torno de 200 seguem trabalhando de forma
terceirizada com a cooperativa.
Ainda muito dependentes do suporte concedido pela Aldeia do Futuro, elas
em breve devem encontrar o caminho da autonomia e da autogestão. De momento, como enfatiza Alexandre, cumprem um importante papel na valorização
do artesanato urbano, que tem como matéria-prima os muitos resíduos que as
cidades geram. "O artesão paulistano está se transformando em um grande profissional. Mais engajado e atento para a importância do design, realiza um trabalho mais sofisticado, a caminho de se transformar em artesão plástico", explica o
arte-educador.
A cada ano, cerca de 300 artesãs são formadas,
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MULTIPLICIDADE DE USOS DOS TUBETES SE UNE AO APELO ECOLÓGICO DA TÉCNICA
e em torno de 200 se mantêm em atividade
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AMARRADINHO, FUXICO E CROCHÊ: DIVERSIDADE DE TEXTURAS E DE ACABAMENTOS
Muitas das artesãs são
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responsáveis
MULHERES
QUALIDADE DO ARTESANATO PAULISTANO COMEÇA A SER RECONHECIDA
ALDEIA DAS
O mercado para as peças produzidas tendo os tubetes de papelão como insumo
é vasto. Passa, por exemplo, por uma parceria com a Sabesp, companhia de saneamento de São Paulo, para fornecimento de 30 mil vasos para mudas (os vasinhos
de tubete são totalmente absorvidos pela natureza, ao contrário dos tradicionais
sacos pretos). Outro nicho é o setor de brindes para empresas do interior, de
quem as artesãs recebem encomendas de organizers, mouse-pads, relógios e até
troféus, pintados com tinta à base de água, para não perder o apelo ecológico.
Além do jornal, os tubetes também podem ser feitos com folhas de revista, mas o
papel couché, que é o mais usado neste tipo de publicação, apesar de mais decorativo, é mais agressivo ao meio ambiente, pois carrega tinta e verniz.
Um aspecto importante a salientar em relação às sócias e artesãs ligadas à Aldeia
das Mulheres é que muitas delas são as responsáveis pelo sustento das famílias, ou ao
menos desempenham papel fundamental na manutenção de seus lares. Para outras, a
atividade pode ser uma tábua de salvação por motivos distintos. É o caso de Meirilane
Vitória Dias Freitas, 38 anos. Como mora perto, passou de lotação pela Aldeia do
Futuro e viu a placa com o anúncio dos cursos gratuitos. Meire, como é mais conhecida
por lá, inscreveu-se tanto nas aulas de bordado quanto de costura. Era o ano de 2001,
período em que passava por uma forte crise de depressão e ansiedade. Não imaginou
de início que ali poderia estar uma atividade que daria novamente sentido à sua vida;
uma saída para que pudesse seguir cuidando dos três filhos, de 19, 17 e 11 anos.
Meire foi tão bem sucedida que foi convidada em seguida para dar aula em uma
penitenciária feminina, desafio que as colegas tiveram receio de encarar. Meire enfrentou a barra, e deu aulas para reclusas todas as manhãs, durante dois meses. Na sequencia,
virou professora em outro curso, desta vez no Sesc Mariana. A mãe, Cenira, também se
pelo sustento de suas famílias
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MULHERES
ARTESANATO É UMA ALTERNATIVA DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL EM BAIRRO VULNERÁVEL
ALDEIA DAS
integrou à cooperativa, e a filha, Vanessa, está se interessando pela atividade, pois vê
a mãe costurando em casa. Até o pai e uma irmã estão envolvidos na produção, pois
a família hoje tem cinco máquinas de costura em casa.
Se o mais difícil de tudo foi o começo, como ela diz, hoje sua grande realização é quando percebe que suas alunas conseguem realizar sozinhas um trabalho, sem a ajuda dela. A mestra inspiradora de Meire é Inês. "Ela mostra como se
faz, mas deixa espaço para que a gente aprenda sozinha", explica Meire. A Inês a
que Meire se refere é Maria Inês Manoel, 51 anos, que conhece a Aldeia do Futuro
desde 1998, quando foi convidada para compartilhar seus conhecimentos, não
só porque dominava as máquinas de costura que haviam sido recém-compradas,
mas também por ser exímia no corte e costura manual. Na época, Inês vendia sua
produção para bazares, e passou a dar aulas duas vezes por semana. "A satisfação das meninas quando aprendem é o mais legal. Muitas vêm aqui para se divertir e acabam descobrindo que o trabalho também pode render uma graninha",
explica a professora, com um sorriso permanente no rosto.
De alunas de Inês para colegas de cooperativa, Joaquina Aparecida Lima, 53
anos, e Aparecida Robélia Otávio Ramos, de 55, hoje trabalham lado a lado. Dividem
com as colegas a produção de um sem número de peças feitas com amarradinho,
fuxico, ráfia, biscuit. De suas mãos talentosas surgem ecobags, macacões, sacolas
feitas com banner, barras de guardanapo, almofadas. É assim que a Aldeia do Futuro,
um centro de convivência que abriga vários jovens em liberdade assistida, localizado
em um bairro conhecido pelos problemas ligados ao tráfico de drogas, vai mostrando que é possível acreditar no potencial de muitas aldeias. Um lugar onde mãos de
meninas e mulheres ajudam a construir uma nova perspectiva de vida.
O centro de convivência ganhou
perspectiva
diferente capacitando dezenas de mulheres
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JOYCE E UM CONJUNTO DE ALMOFADAS PRODUZIDAS PELAS MULHERES DA ALDEIA
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MULHERES CERAMISTAS
RIO DE JANEIRO RJ
moldando
talentos nas ondas da Maré
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Cerâmica de Itaboraí ganha tom negro
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CEERAMISTAS
DONA RITINHA (AO LADO) E ALGUMAS PEÇAS PINTADAS DEPOIS DA QUEIMA (ACIMA)
MULHERES
A Vila do João é apenas uma entre as 16 comunidades que formam o chamado Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, região conhecida pelos altos índices de fragilidade social. Basta dizer que há na vila apenas uma escola, e ainda
assim de Ensino Fundamental, para uma população estimada em 32 mil pessoas
(de um total de 132 mil em todo o complexo). Pois é em meio a um inevitável
oceano de semianalfabetos e analfabetos funcionais que há quase 10 anos vêm
se movimentando insistentes ondas de um surpreendente fazer artístico, impulsionadas por lufadas de talento individual e movidas também pelo respeito ao
meio ambiente. O projeto Mulheres Ceramistas, que desde 2002 é realizado pela
Ação Comunitária do Brasil (ACB), tem proporcionado a criação de peças de rara
beleza, em um processo puramente artesanal cujas peculiaridades se iniciam na
matéria-prima, passam pelas etapas de produção e preparação, e chegam ao
resultado final: objetos utilitários ou peças figurativas cuja qualidade e originalidade já foram reconhecidas e admiradas até mesmo fora do país.
O principal insumo das Ceramistas da Maré (excetuada sua própria
criatividade e talento) é a argila que vem de Itaboraí, município localizado a
45 quilômetros da capital fluminense. O material é adquirido em sua forma
bruta, ou seja, são pedras que precisam inicialmente ser desmanchadas, permanecendo de molho na água durante uma semana. Em seguida, a cerâmica é
filtrada, passando por uma sequência de peneiras, primeiro mais grossas, depois mais finas, em um processo de hidratação e desidratação. Mais ou menos
20 dias depois é que a argila poderá ser manuseada. Uma vez que as peças
ganhem forma pelas mãos das meninas e mulheres que as moldam, é a vez do
alisamento, ou polimento, que pode levar um dia ou mais, dependendo do
após queima com serragem e óleo
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CEERAMISTAS
DEPOIS DE POLIDAS, PEÇAS VÃO PARA O FORNO ECOLÓGICO (AO FUNDO DA IMAGEM)
MULHERES
tamanho da obra e do grau de exigência de cada artista com seu próprio trabalho. Só depois estão prontas para serem "queimadas" no forno. É ali, em uma
estrutura construída pelas próprias artesãs, seguindo preceitos ecológicos como
o de filtragem de resíduos, de forma a se gerar a menor agressão possível ao
meio ambiente, que a cerâmica ganhará o tom negro que é uma de suas peculiaridades – e tudo graças a uma combinação inusitada de serragem e óleo,
técnica primitiva que remete a tradições históricas de afro-descendentes. Em
média, as peças ficam queimando por quatro horas, sem considerar o tempo
inicial de pré-aquecimento do forno, em geral de uma hora.
Em meio a tantas e tão delicadas etapas, há sempre o risco do resultado
final não ser o esperado. As peças podem rachar, ou mesmo se quebrar em pedaços durante o processo de queima. Neste caso, é preciso não apenas saber lidar
com a frustração pela perda do trabalho de tantos dias, mas também, e principalmente, tentar entender o que pode ter gerado a falha. Para isso, as artesãs contam com o privilégio de uma convivência muito próxima entre as mais experientes e as iniciantes. Como destaca Ana Paula Degani, coordenadora do Núcleo da
Maré, "a atividade da cerâmica requer atenção do tipo flutuante, ou seja, é possível criar e ao mesmo tempo trocar ideias, cultivar amizades. Nosso espaço é
tomado pelas conversas, e é quando as mais velhas aconselham as mais jovens,
nos mais variados aspectos da vida, em um ambiente lúdico, alegre, onde se
aprende muito mais do que apenas dominar uma técnica".
A propósito: nos indicadores de monitoramento e avaliação permanente de
cada turma, a ACB procura medir o grau de mudança de atitude das artesãs, em
relação a si próprias e às pessoas com quem convivem. São avaliadas a melhoria
na capacidade de se comunicar e de resolver problemas e conflitos, o desenvolvimento de espírito de equipe e o apreço e respeito por suas tradições culturais.
Já no indicador que se refere ao desenvolvimento pedagógico são avaliadas a
capacidade de produzir peças originais, de um lado, e o aumento da concentração e desenvolvimento das funções psicomotoras, de outro. Por fim, o terceiro
indicador diz respeito ao convívio intra e extra-familiar, através do qual o que se
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Convívio entre as mais experientes e
as novatas gera ambiente alegre e lúdico
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CEERAMISTAS
CÁTIA (À FRENTE, TERCEIRA DA ESQ. PARA DIR.): DESCOBERTA DE UMA VOCAÇÃO
MULHERES
busca é medir a melhoria da autoestima. Para chegar a estes números, que têm se
mostrado bastante positivos a cada turma formada, os educadores preenchem
questionários mensalmente, e os próprios educandos, a cada três meses.
A qualidade das peças produzidas vem sendo conferida de perto em diferentes eventos de moda e decoração, em especial no Rio de Janeiro. Casa Cor,
Fashion Business e até o Salão Pret-à-Porter So Ethic, este último em Paris, tem
levado a originalidade e o bom gosto das ceramistas da Maré para territórios
que elas não poderiam imaginar. De outra parte, uma parceria formalizada em
2010 com a ONG Mulheres de Respeito, do município de Caxias, permitiu uma
relevante troca de conhecimentos e resultou na criação de uma coleção inédita
de acessórios: brincos, colares e pulseiras que combinam as peças em cerâmica
negra com fios trançados em folha de bananeira.
Sob a liderança informal de Glória da Conceição, 53 anos, e Francisca Duarte,
43, mais conhecida como dona Rita, ou então Ritinha, ambas integradas ao
projeto desde 2003, há sempre novos talentos sendo descobertos no projeto.
Enquanto Glória produz enormes vasos encomendados pela Rede Record para
decorar um de seus cenários e dona Ritinha relembra da frase que ouviu muitas
vezes dos filhos, incrédulos com seu talento ("Mãe, foi a senhora mesma quem
fez?"), a novata Cátia vai esculpindo mais um totem, e parece surpresa com a
descoberta de que "é capaz de fazer alguma coisa do nada, do barro", como ela
diz. "Eu trabalhava como copeira, e agora descobri uma habilidade que não
sabia que tinha, uma coisa que estava muito oculta", completa, orgulhosa da
admiração que o marido, José Carolino, e os filhos, Gilliard, 21 anos, e Jacqueline,
17, vêm manifestando em relação às peças que cria. Para Cátia, o trabalho feito
pela Associação Comunitária do Brasil deveria ser estendido para mais pessoas,
em diferentes lugares. "A grande coisa dessa vida é a oportunidade", resume.
Como se vê, Cátia não entende apenas de escultura.
Há sempre novos talentos se revelando
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UTILITÁRIOS E PEÇAS FIGURATIVAS AGORA TÊM A COMPANHIA DE COLARES
em meio às constantes capacitações
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TOQUE DE MÃO
RIO DE JANEIRO RJ
muitas mãos
e todos os toques
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DE MÃO
IMAGENS DO RIO DE JANEIRO GANHAM NOVAS CORES E TONS
TOQUE
É comum encontrarmos entre as pessoas que se dedicam a uma atividade
artística uma personalidade pincelada com traços de ousadia, irreverência e
até mesmo alguma petulância. Quase todo artista gosta de romper barreiras,
ultrapassar limites, derrubar convenções. Eunice da Ressurreição Matos, 59 anos,
moradora do bairro Santa Teresa, no Rio de Janeiro, talvez até não se considere uma artista, mas seu trabalho como artesã assim a qualifica. Pois Eunice não
tem o menor pudor em afirmar: "O nosso Abaporu ficou até mais bonito que o
original; tem mais cores, mais volume". Ela se refere nada mais, nada menos
que à tela pintada por Tarsila do Amaral em 1928 e que hoje é considerada a
obra de arte brasileira mais importante e mais valiosa em todos os tempos (foi
adquirida por um colecionador argentino por US$ 1,5 milhão). Acontece que o
quadro foi "recriado" por Eunice e suas colegas do projeto Toque de Mão, iniciativa cujo embrião remonta aos anos 2000 e desde então vem oportunizando
a um grupo de mulheres em situação de alta vulnerabilidade social expressar
seus dotes artísticos através da pintura, do bordado e da costura.
A própria camiseta "oficial" do grupo já revela as ferramentas e recursos
utilizados pelas artesãs: é uma combinação colorida e vibrante de alfinetes,
retalhos, joaninhas, flores, bordados e costuras (só não entra a pintura). Eunice,
por exemplo, descobriu no projeto os segredos do bordado e das telas. Costurar não é o seu forte - ainda, pois se diz disposta a aprender. Mais velha das
atuais integrantes do Toque de Mão (ela tem 59 anos), acabou formando uma
dupla inseparável com a mais moça. Ela e Géssica Dias Duarte, 21 anos, não se
desgrudam. "Eu faço o grosso e ela faz o fino", explica Eunice, que, mesmo sem
admitir, costuma proteger e defender Géssica nas eventuais situações de conflito que possam surgir. "Quando cheguei aqui não sabia absolutamente nada.
Camiseta do grupo é uma combinação
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À MÁQUINA OU À MÃO, TECIDOS VIRAM ARTE NAS MÃOS DAS ARTESÃS CARIOCAS
de alfinetes, retalhos, bordados e costuras
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DE MÃO
TOQUE
ESPECIALIZAÇÃO: TAREFAS SÃO DIVIDIDAS DE ACORDO COM HABILIDADES
Oficinas batizadas Compartilhar é que
deram origem ao projeto Toque
de Mão
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Melhoria da autoestima tem peso de
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DE MÃO
EUNICE E JÉSSICA (PÁGINA AO LADO): DUPLA INSEPARÁVEL
TOQUE
Quando vi o anúncio, pensei até que era um curso de manicure para senhoras",
explica Jéssica, mãe de Marco, 6 anos.
Todo esse relacionamento afetivo e artístico que une Eunice e Géssica é
resultado de uma iniciativa do Instituto Marquês de Salamanca (IMDS), instituição que atende dois núcleos (além de Santa Teresa, possui também atividades sociais em Três Rios, zona rural do Rio de Janeiro). Na capital carioca, o
embrião de tudo foi o Espaço Educacional Cantinho Feliz, creche onde os filhos
das futuras artesãs (moradoras da comunidade em torno) costumam ser acolhidos. De início, foi oferecida às mães a possibilidade de participarem de oficinas, batizadas Compartilhar, cujo objetivo principal era a terapia ocupacional.
Nestes momentos, aprenderam a pintar sabonetes e tinham aulas de tricô. O
interesse de algumas das mulheres foi crescendo, e veio então a ideia de criar
um grupo com autonomia e que buscaria uma complementação de renda.
Para dar conta do desafio, a diretora do IMDS, Paula Baggio, foi buscar
o apoio da Pró-Social, uma ONG que promove o desenvolvimento sustentável
e socialmente responsável por meio de programas de formação em gestão.
Na sequência veio o apoio do BG Group, decisivo para a compra de alguns
equipamentos e remuneração dos instrutores de bordado e costura, assim
como das aulas de história da arte, empreendedorismo, formação de preço
etc. "A renda extra é importante, mas podemos dizer que uns 50% do resultado tem a ver com questões emocionais, de aumento da autoestima, de inserção das mulheres em um outro contexto", explica Mônica Igrib, coordenadora do projeto. "Sentirem-se importantes e reconhecidas é um fator relevante
para elas", acrescenta.
O amadurecimento do grupo foi rápido, e não demorou a surgir a ideia de
realizarem releituras das obras de grandes pintores brasileiros, em especial em
50% nos fatores de sucesso da ação
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DE MÃO
DIFERENCIAL: AO FUNDO, UMA DAS OBRAS DE PORTINARI, RECRIADA PELAS ARTESÃS
TOQUE
bolsas e almofadas. Di Cavalcanti e Candido Portinari, além da já citada Tarsila
do Amaral, são alguns deles. Em novembro de 2010, por exemplo, as artesãs
estavam às voltas com a produção coletiva de uma enorme tela com um quadro
de Portinari retratando uma fazenda de plantação de café (os grãos da planta
que aparecem na imagem, explica Géssica, haviam sido feitos em rococó).
Lucileide Mendes de Barros, 33 anos, ou simplesmente Lu, está há cinco
anos no Toque de Mão. E não tem queixas, ao contrário. Mãe de Lucas, 7 anos,
e casada com o conferente de supermercado Raimundo Geraldo, lembra até
hoje dos primeiros R$ 8 que ganhou na época dos Jogos Pan-Americanos de
2007, com a venda de um sabonete que havia pintado. Sua vida mudou muito
desde então, pois não raras vezes teve receita superior a R$ 2 mil mensais no
projeto. Tanto é verdade que com seus ganhos conseguiu ampliar a casa onde
mora, comprar ar-condicionado e inclusive mais uma máquina de costura, além
da que já possuía, pois também trabalha em casa. "Reconhecimento é importante, mas dinheiro no meu bolso me dá a independência que eu tanto prezo",
explica a determinada Lu.
Alcidéia Estevão, 53 anos, foi outra que chegou ao IMDS sem saber nada
de corte, costura e pintura. Na ocasião, havia perdido um dos cinco filhos
(que lhe deram 10 netos), e integrar-se ao grupo foi muito importante para
superar a depressão por que passava. "Além da renda, dá bem para a gente se
animar aqui", explica, acrescentando que sua preferência é pelo bordado.
Segundo ela, o marido Gustavo de Oliveira, 50 anos, que trabalha como fotógrafo da arquidiocese da cidade, não se importa que ela tenha trabalho sábados, domingos e feriados.
Atualmente, o Toque de Mão desenvolve produtos para estilistas e lojas
como Corpo Alma, Alfaias, Missiza, entre outras. Também atua no segmento de
brindes corporativos para empresas como Kuat Guaraná, DNV, Brasil Cap, Instituto Realice e Hortifruti. As artesãs vão, assim, construindo sua trajetória particular. Sempre com um toque especial. Um toque de suas talentosas mãos.
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Grãos de café em quadro de Portinari
foram recriados em rococó pelas artesãs
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COSTUMES ARTES
CARIACICA ES
com
fibra
e muita determinação
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ARTES
FOLHA DA BANANEIRA PODE REVESTIR OS MAIS DIFERENTES MATERIAIS
COSTUMES
Dizer que Maria Antonia Moura Silva, 55 anos, é uma mulher de fibra poderia soar como um trocadilho infeliz, já que ela, entre outras atividades, é a
líder de um grupo de artesanato baseado na economia solidária no qual uma
das principais matérias-primas é justamente a fibra - no caso, da bananeira.
Melhor seria dizer que dona Antonia, como é mais conhecida, é uma usina de
energia. E não foi à toa, portanto, que terminou por ser indicada ao Prêmio
Mulher Empreendedora, do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa), logo na primeira edição, em 2004. Também não foi por acaso
que dona Antonia esteve entre os destaques do Prêmio Betinho - Atitude Cidadã 2009, promovido pelo Coep, uma rede que reúne cerca de 1.100 organizações, públicas e privadas, mais de 100 comunidades em todos os estados brasileiros e 12.500 mobilizadores sociais. Casada, mãe de duas filhas e avó de
Milene, 6 anos, dona Antonia está à frente da Costumes Artes, localizada em
Cariacica, na Região Metropolitana de Vitória, Espírito Santo. É lá que artesãs
produzem diversos itens, boa parte deles decorados com a fibra da bananeira
e papéis artesanais. E tudo com base na economia solidária, modelo de trabalho em que tanto tarefas quanto resultados são divididos de forma igualitária.
Este capítulo da história de dona Antonia começa por volta de 2001, quando
o Centro de Capacitação Profissional (Cecap) da Pastoral da Criança de Cariacica
promoveu um curso de corte e costura, logo seguido de outro, de produção e
revestimento de embalagens. Em meio às aulas, surgiu uma primeira encomenda, de um shopping center. O trabalho de revestimento das embalagens com
fibra de banana foi tão bem recebido que logo em 2002 a Petrobras, via programa Ciranda Capixaba (uma espécie de Fome Zero), decidiu apoiar o grupo.
E então veio mais uma encomenda: 1.200 caixinhas a serem forradas e distribuídas para os participantes de um congresso do Instituto Ethos.
O próximo passo na história da Costumes Artes foi o registro de um CNPJ
próprio, em 2005. A partir de 2006, quando foi feito o primeiro planejamento
estratégico, surgiu a percepção de que era preciso caminhar para que a organização trabalhasse de forma mais independente e, se possível, tivesse uma sede
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A Costumes Artes se baseia na economia
solidária,
seja no fazer, seja no repartir
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TODAS AS ARTESÃS DOMINAM AS TÉCNICAS DE MANUSEIO DA FIBRA, MAS ALGUMAS TAMBÉM COSTURAM
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ARTES
COSTUMES
própria, meta que só seria alcançada efetivamente em 2010. Naquele momento, decidiram sair da sala que ocupavam até então, cedida pela Associação
Comunitária do Espírito Santo, e alugar um espaço, cujo recurso para pagamento seria proveniente de palestras sobre superação pessoal e motivação. E
neste aspecto dona Antonia também é craque. Uma das artesãs, Terezinha de
Almeida Guinzani, 50 anos, acompanhou a palestrante em diversos momentos:
"Lembro de uma ocasião em que um rapaz, com jeito de executivo, chorava no
final da palestra, e dizia para a mãe, ao lado dele: 'Eu sempre achei que não
tinha nada, quando na verdade agora me dou conta que tenho tudo'. As pessoas se emocionam muito com a fala dela", conta Terezinha.
Emoções à parte, a sede própria, batizada Casa Sol, foi inaugurada em 2010,
graças ao apoio da Fundação Banco do Brasil, que entrou com o recurso financeiro, e da Mitra Diocesana, que cedeu o terreno. No mesmo prédio hoje funciona
um telecentro, aberto à comunidade, e uma filial do Banco Sol, instituição financeira comunitária que empresta recursos a juros baixos para a comunidade. A
moeda que começa a circular na região é o girassol, já aceito por 18 comerciantes
do entorno. Duas das artesãs da Costumes Artes, inclusive, solicitaram empréstimo ao banco, na condição de pessoas físicas, para aquisição de máquinas de
costura. O Instituto Renner aportou, em 2010, R$ 20 mil para o Banco, com a
condição de que o recurso fosse utilizado apenas por mulheres, público que é
seu alvo preferencial na geração de renda e inclusão social.
Do ponto de vista dos insumos, a Costumes Artes terceiriza a produção
do papel artesanal e o cozimento da fibra da bananeira, que adquire de
agricultores da região. O conceito de sustentabilidade fica explícito, uma
Conquista da Casa
Sol, a sede própria,
foi um marco no ano de 2010
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ARTES
MAIS DO QUE RENDA, O ARTESANATO TRAZ MELHORIAS NA AUTOESTIMA
COSTUMES
vez que, assim, se pode aproveitar tudo o que a planta oferece, sem necessidade de se queimar a palha que é descartada pelos agricultores, por exemplo, atividade que polui o meio ambiente. Na sala ocupada pela Costumes
Artes, espalham-se diversas peças, moldes de trabalhos já entregues, como
uma bolsinha e um bloco forrados com papel feito da folha da bananeira,
distribuído em um encontro de casais, e uma miniatura de circo, concebido
como uma das peças de decoração de um aniversário de criança.
A artesã Terezinha, que foi parceira de dona Antonia em viagens Brasil
afora, é uma das mais experientes do grupo, e em geral é ela quem desenvolve e dá acabamento à primeira peça, que serve de modelo para o trabalho
das colegas. Patrícia dos Anjos, 35 anos, mãe de Layssa, 14 (que frequenta a
Casa Sol no contraturno da escola), prefere os trabalhos com papel reciclado,
mas lembra que todas estão habilitadas a desenvolver as atividades. "Menos
a costura, na qual a dona Rita é que sabe mais", explica.
Ela se refere a Rita Maria Rodrigues de Almeida, 59 anos, cinco filhos,
que encontrou na Costumes Artes uma oportunidade de ampliar suas habilidades, pois dominava apenas a costura manual. Foi no convívio com o grupo
que aprendeu a operar a máquina, e hoje a receita extra que recebe ajuda, e
muito, no pagamento das despesas da casa, já que o marido sofre com uma
doença nas pernas que limita seus movimentos.
Ao lado de Rita, dona Benedita da Conceição Amorim, 57 anos, trabalha
em silêncio, discretamente. Oriunda da Pastoral da Criança, onde atuou durante muitos anos, comenta, com a voz baixa que lhe é peculiar, que chegou
“a tirar um salário mínimo” nos rateios dos trabalhos realizados, mas que em
média sua renda é de R$ 100 por mês, valor que para ela é satisfatório. "Se
fosse apenas pelo dinheiro, talvez não estivéssemos aqui. A gente trabalha
mesmo é por amor", intervém Terezinha. E não é uma ótima motivação?
Fibra da bananeira tem apelo ecológico,
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DONA ANTONIA (ESQ.) SE TORNOU REFERÊNCIA DE COMPROMETIMENTO SOCIAL
pois o que seria queimado vira arte
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FIBRA VIVA
BONITO MT
natureza
recriada com retalhos
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VIVA
MATERIAL RECICLÁVEL E INSPIRAÇAO NA NATUREZA SÃO INSUMOS DAS ARTESÃS
FIBRA
A vida de Ana Gicelda Rodrigues dos Santos, 37 anos, deu uma guinada a
partir de novembro de 2007. Foi nessa época que a mãe de Evelyn Ester, 10
anos, e Lilia, 8, ouviu dizer que uma instituição do município de Bonito, no
Mato Grosso do Sul, estava oferecendo curso gratuito de corte e costura. Como
já dominava os rudimentos da atividade (inclusive tinha uma máquina em
casa), Ana, que até então passava os dias envolvida apenas com as lides domésticas, foi conferir de perto do que se tratava. O tal de curso não era exatamente de corte e costura, mas hoje, já na condição de instrutora do projeto
Fibra Viva, Ana está fazendo autoescola para aprender a pilotar a motocicleta
que comprou com o rendimento do artesanato que produz (habilitação para
dirigir automóvel ela já tem).
Casada com o oleiro Ricardo Gonçalves dos Santos, 36 anos, Ana é um
exemplo prático do potencial transformador do projeto Fibra Viva, iniciativa do
Instituto Família Legal, ONG que é resultado do desmembramento das atividades da Fundação de Proteção à Criança e ao Adolescente Vida Bonito. A descoberta de sua vocação não só para produzir artesanato de qualidade, mas também
de multiplicar e compartilhar estes conhecimentos, veio aos poucos. "A gente
começa estudando as cores, porque tem que entender o que se está fazendo",
afirma Ana. Ela desde logo mostrou que conseguiu entender o processo. "Pegava uma peça para fazer, produzia logo várias. Mas se pudesse, preferia ficar só na
produção", admite Ana, meio que se contradizendo em relação à preocupação
com os outros e a vontade que sempre teve de ajudar as pessoas, características
que logo fizeram dela uma instrutora compreensiva, mas exigente.
E o que é que Ana e outras 15 mulheres fazem? Elas transformam lonas de
malotes doados pelos Correios (que são desmanchados, lavados e consertados), assim como roupas de mergulho usadas, feitas de neoprene (material
Retalhos e sobras viram objetos que ajudam
120
ANA (À DIREITA) DOMINOU RAPIDAMENTE A TÉCNICA E PASSOU A INSTRUTORA
a transformar duras realidades
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BOLSAS E SACOLAS PARA EVENTOS TÊM GERADO BOAS PARCERIAS E VENDAS EM GRANDE VOLUME
Materiais geram renda e inclusão
122
social,
VIVA
COSTUREIRAS QUE NÃO USAVAM MÁQUINA HOJE SÃO EXÍMIAS PROFISSIONAIS
FIBRA
emborrachado e isolante térmico), além de retalhos de jeans, em uma gama de
produtos cujo apelo ultrapassa o fato de contribuírem para gerar renda para
mulheres em situação de vulnerabilidade econômica e social. São sacolas, bolsas, mochilas, puxa-sacos, luvas de forno, capa protetora para notebooks,
porta-cds, revisteiros etc, todos desenvolvidos também a partir de conceitos
de sustentabilidade e respeito ao meio ambiente.
Isto porque os objetos comercializados pelo Fibra Viva, além de proporcionarem o reaproveitamento de materiais cujo descarte sempre foi um problema
de difícil solução, são também adornados com as figuras de animais da região
do Cerrado e do Pantanal. Desenhos geométricos produzidos com a técnica do
patchwork e inspirados nos origamis japoneses dão vida a macacos, araras,
tucanos, peixes etc. "Muitas das mulheres nascidas aqui mesmo na região,
famosa pelas belezas naturais, nunca tinham prestado atenção nas cores da
arara ou do tucano, ou se sensibilizado com a visão de um tamanduá-bandeira", explica Sinéia Zattoni Milano, coordenadora voluntária do Fibra Viva.
Rotina bem diferente da que tinha até então é também uma nova realidade
para Aparecida Martins Duarte. Com 35 anos e mãe de nada menos que dez filhos
(cinco homens e cinco mulheres, que já lhe deram inclusive duas netas), faz
quase um ano que Aparecida não sabe mais o que é encarar um dia de sol ou de
chuva torrencial nas frentes de trabalho que recrutavam mulheres para fazer a
limpeza das ruas da cidade. Sensibilizada pela irmã, Luciana, que já havia se
incorporado ao Fibra Viva, hoje seu dia a dia é vivido sob o lema "quem trabalha
bem, ganha bem". Nascida em Bodoquena, Aparecida está há 23 anos em Bonito, e hoje é especialista em corte, costura e acabamentos das peças feitas pelas
colegas. Sua atividade diária torna-se ainda mais importante porque o marido
(do segundo casamento) está desempregado. Como mora em Marambaia, bairro
e tudo com base na sustentabilidade
123
VIVA
SATISFAÇÃO EXPLÍCITA: ARTESÃS COMEMORAM VENDAS CRESCENTES
FIBRA
um pouco distante e que abriga 95% das mulheres que atuam no Fibra Viva,
Aparecida pega carona no ônibus que traz um dos filhos, Adriano, para as atividades no Projeto Família Legal. "A maioria vem de bicicleta", explica ela.
Quem também não para um minuto sequer de trabalhar, nem mesmo para
dar entrevista, é Miriam Ramos de Souza de Assis. Casada, 33 anos, ela enfatiza:
"Quem trabalha mais, ganha mais". Mãe de quatro filhos (Robert, Mylena,
Michelle e Gabryele), Miriam nunca tinha feito absolutamente nada que se
referisse a costurar, cortar, cerzir etc. "Eu fazia faxina e salgados para ajudar na
renda familiar", conta, explicando que usa a bicicleta para chegar ao Fibra Viva
(são cerca de 15 minutos pedalando). A capacidade produtiva e a disciplina
fizeram de Miriam uma auxiliar temporária da monitora Ana.
As cotas de patrocínio do Fibra Viva são negociadas e renegociadas a todo
momento. Os parceiros mais constantes do projeto, que já capacitou em torno de
60 mulheres, são os Correios, o Sebrae/MS, o Recanto Ecológico Rio da Prata, o
Rio Sucuri, o Aquário Natural e a Tittus Jeans. No rol de parcerias incluem-se
ainda as irmãs paulistas Graça e Zulmira, que comandam o Empório Olinda, no
centro de Bonito. O resultado das vendas na loja, mesmo que parceladas em até
seis vezes no cartão de crédito, é pago à vista para a instituição. "Outro dia
vendemos de uma vez seis bolsas, seis porta-notebooks e seis lixeirinhas para
carro. Um professor universitário brasileiro vai levar de presente para colegas da
Noruega", lembra Graça. Os produtos Fibra Viva, cujo valor de venda é revertido
em 30% para manutenção do projeto (o restante é da autora da peça), podem
ser encontrados também na Livraria da Vila, que tem lojas em três shoppings de
São Paulo, além dos aeroportos do Rio de Janeiro e de Brasília. Sem falar nas
dezenas de congressos e seminários, cujas sacolas de material trazem a marca da
fibra e da vivacidade das mulheres de Bonito.
O nome, Fibra
124
Viva, remete à capacidade
PROFUSÃO DE MOLDES, LINHAS, TESOURAS E RETALHOS COMPÕEM O AMBIENTE
de superação: da natureza e das mulheres
125
126
ASSOCIAÇÃO DAS ARTESÃS DO PORTO DE SAUÍPE
ENTRE-RIOS BA
trançando
a piaçava, tramando a vida
127
DO PORTO DE SAUÍPE
CAPACITAÇÕES TIVERAM COMO UM DOS OBJETIVOS A PADRONIZAÇÃO DO TRABALHO
ASSOCIAÇÃO DAS ARTESÃS
Na tarde quente de uma segunda-feira de dezembro, Valdimira Batista
Bispo Silva, 74 anos, está sentada no chão da peça, em posição estratégica:
bem no corredor de brisa que passa pela porta da frente, refresca o ambiente e
sai pela porta dos fundos. O prédio, batizado Centro Artesanal, está localizado
em frente ao mar, em Porto de Sauípe, um vilarejo costeiro que pertence ao
município de Entre-Rios. Estamos a cerca de 80 quilômetros de Salvador, em
direção ao norte da Bahia, seguindo pela rodovia BA-099, também conhecida
como Linha Verde. Dona Vavá não está sozinha, e nem é pela companhia naquele momento de algumas das colegas que integram a Associação das Artesãs
do Porto de Sauípe (APSA), entre elas, a filha Dilma Conceição dos Santos, 40
anos. Enquanto trança rolos de piaçava já cozida, riscada e tingida, dona Vavá
pode sentir a companhia etérea da mãe, da avó, da bisavó, já falecidas. Mulheres simples como ela e que muitas vezes, no passado, viveram momentos semelhantes, repassando seus conhecimentos, geração após geração. Com uma
diferença: dona Vavá hoje trabalha de forma cooperada na busca de uma renda complementar. Mais do que isso: dá asas ao seu talento artesanal alicerçada
nos conceitos da sustentabilidade, ou seja, não deixa de levar em consideração as gentilezas que a natureza demanda, de forma a que o meio ambiente
possa seguir oferecendo a piaçava que abunda nos matos da região.
Fundada em 1998, a Associação das Artesãs do Porto de Sauípe (APSA)
foi uma decorrência quase que inevitável do surgimento do Complexo Hoteleiro da Costa do Sauípe, nos idos dos anos 1990. A mudança radical no cenário
econômico da região, despertada para os prós e contras do turismo alicerçado
em enormes conglomerados hoteleiros, trouxe uma ameaça velada a todos os
que se dedicavam há dezenas de anos ao artesanato: levas de homens deixa-
Tradição de trançar a piaçava vem
128
passando
de mãe para filha há muitas gerações
129
ANTES DE TRANÇAR É PRECISO ENCONTRAR O TOM ADEQUADO NO TINGIMENTO DA PALHA
Apoios institucionais contribuíram para
130
DO PORTO DE SAUÍPE
NA REGIÃO, É USUAL QUE OS CHAPÉUS DAS MULHERES SEJAM ABERTOS NO TOPO
ASSOCIAÇÃO DAS ARTESÃS
ram a atividade e viraram pedreiros ou carpinteiros; muitas artesãs passaram a
trabalhar como camareiras, cozinheiras, ajudantes. Para que a cultura centenária do artesanato da região não morresse, era preciso encontrar atrativos para a
atividade, do ponto de vista da inclusão social e da geração de renda.
Fundar uma associação, entretanto, não seria suficiente. Foi preciso buscar
o apoio de iniciativas como o Projeto Trança do Mar, viabilizado pelo programa
Comunidade Solidária, com recursos da Caixa Econômica Federal. Entre os anos
de 2000 e 2001, as artesãs frequentaram oficinas e cursos que enfatizavam não
apenas a técnica artesanal em si, mas também, e principalmente, os aspectos da
sustentabilidade, do associativismo, da importância da qualidade e da padronização do produto final, sem falar nos fundamentos da administração e da contabilidade. O passo seguinte veio com o Programa Berimbau, ligado ao programa Fome Zero e iniciativa da administração da empresa Sauípe S.A., que mudou
sua visão de negócio, mais atenta aos impactos gerados pelo empreendimento
na comunidade local. Via Berimbau, a APSA conquistou sua sede própria.
Em janeiro de 2009, a APSA uniu-se a outras cinco associações de artesões
da região, algumas do município de Mata de São João e que também utilizam
a piaçava. Oficializaram, assim, a criação de uma cooperativa que chega aos
mercados de várias capitais, como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Porto
Alegre. "A ideia é evitar a concorrência entre nós e ganhar força para negociar
com comerciantes de todos os estados", conta Maria Joelma Bispo Silva, outra
das filhas de dona Vavá e que atualmente preside a APSA.
Além de dona Vavá e Dilma, trançavam a piaçava naquela segunda-feira
Maria Oliveira dos Santos, 57 anos, mais conhecida como Cota; Irani Batista dos
Santos, 66, a falante dona Nitinha; Dionísia Maria da Conceição, 64, a tímida
qualificação e na conquista da sede própria
131
DO PORTO DE SAUÍPE
INTEGRANTES DA APSA TRABALHAM NA SEDE PRÓPRIA QUE CONQUISTARAM EM 2003
ASSOCIAÇÃO DAS ARTESÃS
dona Dió, e Jandira Ferreira da Silva, 52 anos. Como manda a tradição, cada
uma delas é responsável por todas as etapas do artesanato da piaçava. Todas
coletam (ou compram em molhos), cozinham, riscam, tingem, trançam e costuram suas esteiras, tapetes, bolsas, chapéus, almofadas ou cestos. O fazer individual não significa que não haja interação, troca, aprendizado. Em especial na
etapa do trançado, que pode ser feito em qualquer lugar, a qualquer hora, elas
relembram histórias passadas, alinhavando-as com os fios do presente.
Todas também sabem que, na hora da coleta, é preciso cuidar onde cortar a
piaçava (é bem no miolo, o chamado coração da planta), para não inviabilizar o
pé, de forma que em três meses se possa fazer novo corte. Depois vem o cozimento
em grandes panelões, em fogo a lenha, no chão, para que a palha se flexibilize. A
etapa seguinte é a riscagem, que equivale a desfiar, fazer tiras com a mesma
largura e comprimento. Em seguida, o tingimento, feito hoje com anilinas, porque os corantes naturais, menos agressivos, exigiriam a inclusão de mais uma
etapa de trabalho, que já é muito. Ademais, as cores não ficam tão marcantes.
Elas já tentaram o cipó de rego para extrair o vermelho, a lama do mangue para
o preto, a capianga (madeira comum na região) para o amarelo.
A constituição da associação e, depois, da cooperativa, trouxe à tona outros
papéis a serem desempenhados pelas artesãs, na liderança comunitária, na gestão, na comercialização. Esta simbiose entre a tradição e a modernidade não tem
futuro garantido, porque, como diz Anamari Batista Silva, 43 anos, os jovens
tendem a buscar alternativas. Enquanto o futuro não vem, as artesãs de Porto de
Sauípe vão trançando a piaçava como quem não desiste de tramar a própria vida.
Cada uma das artesãs coleta, cozinha, risca,
tinge, trança e costura sua própria peça
132
DONA VAVÁ É O SÍMBOLO DE UMA CULTURA QUE PASSA DE GERAÇÃO EM GERAÇÃO
133
134
CRIANDO E FAZENDO ARTE
RECIFE PE
com
as
cores
da criatividade juvenil
135
FAZENDO ARTE
USO DE CORES FORTES VALORIZA A IDENTIDADE REGIONAL
CRIANDO E
Desenhar e pintar não são propriamente tarefas complexas. Entretanto, para
que trabalhos produzidos a partir destas técnicas ganhem status de produção
artística e, mais ainda, para que possam gerar renda, é preciso a contribuição de
uma série de outros elementos, tanto no que se refere à qualificação constante
de quem desenha e pinta, quanto à sua capacidade de entender o ambiente onde
a produção será colocada à mostra. Se a pessoa que se pretende protagonista
deste fazer artístico estiver inserida em um ambiente considerado de baixa renda, há que se trabalhar ainda outros aspectos, como a questão da autoestima, de
uma visão positiva de si mesma. Todos estes elementos fazem parte da rotina da
Casa Menina Mulher, ONG de Recife que iniciou suas atividades em 1994, no
bairro Boa Vista. São temas que dizem respeito muito especialmente a um dos
projetos da instituição, o Criando e Fazendo Arte, voltado para meninas de 16 a
24 anos, e que a partir de 2006 encontrou seu ponto de equilíbrio.
"Na verdade, é mais do que um projeto. É um programa permanente, com
visão de médio e longo prazo", explica Maria de Lourdes de Sousa, 54 anos, a
Lurdinha, coordenadora da iniciativa. Ela acrescenta que a parceria com o Instituto Lojas Renner foi fundamental para a compra de maquinário e material, e
lembra que os primeiros passos do projeto foram dados ainda em 1998, com
apenas algumas meninas da comunidade. Em 2000, novo avanço, a partir de uma
aproximação com o programa Comunidade Solidária. Mas foi a partir de 2006,
com o apoio recebido do Wal-Mart para a montagem do núcleo de produção, que
a iniciativa decolou. "Desde então, o público-alvo são jovens moradoras de bairros circunvizinhos, que se caracterizam pela baixa renda. Todas elas recebem,
inicialmente, uma formação específica, com aulas sobre história da arte, desenho
e pintura, grafismo, empreendedorismo, associativismo, vitrine, comercialização,
inclusão social e comércio solidário", detalha Lurdinha. Outro aspecto importan-
Mais do que um projeto, trata-se de um
136
CORES DOS UNIFORMES AJUDAM A DISTINGUIR AS DIFERENTES TURMAS
programa, com visão de médio e longo prazo
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PENINA E DONA DORA: DIFERENÇA DE 45 ANOS ENTRE ORIENTADORA E ALUNA
Cada aluna acompanha sua própria evolução
138
FAZENDO ARTE
AMBIENTE DESCONTRAÍDO: MONITORAS E ALUNAS CONVIVEM EM HARMONIA
em um banco
CRIANDO E
te é a valorização da identidade regional, a qual se expressa, entre outros detalhes, pelo uso de cores fortes nas linhas de moda, decoração, brindes e acessórios. As meninas e mulheres aplicam seus talentos em uma extensa gama de produtos, como camisetas, passadeiras, tapetes, jogos americanos, bolsas, telas, cabaças, porta-cartão, capas de agendas, chaveiros, entre outros.
No segundo semestre de 2010, duas turmas se revezavam nas atividades
desenvolvidas principalmente no amplo salão localizado no segundo andar da
Rua Leão Coroado, 55, uma delas com 19 meninas, outra com 16. As cores predominantes nos uniformes, vermelho ou preto, ajudam a identificar a qual grupo
pertencem. "Temos em torno de 32 produtos sendo comercializados", explica Livia
Aguiar, assistente de desenvolvimento de produto. Cada aluna tem uma pasta,
chamada Banco de Imagens, onde toda a evolução individual fica documentada.
"Um aspecto interessante diz respeito ao trabalho das monitoras. Quem repassa o
conhecimento se qualifica, também, porque aprende a dar aula, e para tanto precisa ter amplo domínio da técnica", acrescenta Livia. Além disso, quem está na
função consegue perceber que uma simples pintura é diferente de um produto,
no qual há todo um processo por trás. É o caso de Angélica, 27 anos, mãe de Ana
Paula, 1 ano e 7 meses, monitora há cerca de quatro anos no Criando Arte. Do
ponto de vista pessoal, ela prefere trabalhar mais com o jogo de cores, mas já está
tendo aulas de corte e costura, pois a ideia é aprenderem a modelar as camisetas
que hoje pintam. "Até os uniformes que nós usamos poderemos produzir aqui
dentro no futuro", explica Angélica.
Outra monitora, Patrícia, 22 anos, garante que o mais interessante em sua
função é a possibilidade de repassar sua experiência para quem está iniciando.
de imagens individual
139
FAZENDO ARTE
FILOSOFIA: COMPROMISSO DE FAZER CERTO DESDE O INÍCIO É ENFATIZADO
CRIANDO E
E acrescenta que o mais difícil é quando uma aluna resiste às observações:
"Algumas não querem refazer o que não ficou bem. Por isso, procuro mostrar a
elas como é importante ter o máximo de atenção desde o início." Das etapas do
processo criativo e produtivo, Patrícia prefere o desenho, pois diz que é a partir
dele que tudo se inicia. Quanto aos temas dos trabalhos de suas alunas, são de
livre escolha, mas não é raro as monitoras fazerem sugestões.
Quem também procura ser bastante exigente com uma aluna considerada
"especial" é a alegre e vivaz Penina, 23 anos. Coube a ela ser a orientadora de
Maria Auxiliadora Perez, 68. A diferença de 45 anos entre aluna e instrutora
parece não atrapalhar o relacionamento, ao contrário. Dona Dora, como é mais
conhecida, havia comprado um jogo americano produzido pelas meninas do projeto, justamente no momento em que procurava alternativas de cursos que proporcionassem mais criatividade do que as experiências que havia tido até então,
usando moldes vazados. Mesmo que a Casa Menina Mulher não possua turmas
abertas para a terceira idade, ela tanto insistiu com Livia que a instituição decidiu
abrir uma exceção, até como projeto piloto para abertura de futuras oportunidades para moradores da comunidade. "Ela é muito exigente", diz dona Dora, sobre
o tratamento que recebe de Penina. "Levei uns dois meses para chegar no pano.
Até então, era só papel e lápis", explica, sorrindo. Penina devolve o sorriso e
confirma: "Depende só dela. Só termina o curso quando estiver dando conta
sozinha". E acrescenta: "Tem que criar o compromisso de fazer certo", com uma
firmeza e convicção que surpreendem, pela idade de quem as verbaliza.
Ana Cláudia Rodrigues, educadora que também atua na coordenação do
projeto, diz que é importante ter em mente alguns conceitos quando se avaliam
Instituição está avaliando possibilidade de
ampliar público beneficiado pelo programa
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PERCURSO: SÓ DEPOIS DAS AULAS TEÓRICAS VÊM AS AULAS DE DESENHO E PINTURA
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ARTICULADORA DE MERCADO TRABALHA PARA DAR MAIOR VISIBILIDADE AOS PRODUTOS
Diferente da escola formal,
142
foco da
FAZENDO ARTE
LÍVIA (À ESQUERDA): UMA PINTURA NÃO NECESSARIAMENTE É UM PRODUTO
instituição é na
CRIANDO E
os resultados do trabalho, como o de que a Casa Menina Mulher não oferece um
emprego formal, e sim oportunidades de acessar o mercado e, assim, gerar renda.
Ela também ressalta a importância dos momentos de integração, em que as pessoas da família sejam envolvidas. "Temos que ter atenção com elas e também com
quem cuida delas". A pedagoga Andréia Oliveira acrescenta que a instituição não é
uma escola, e portanto o processo que ali se dá não é igual ao do ensino formal.
Questões como nota e frequência precisam ser relativizadas: "Nosso foco é na
cidadania, na construção da autoestima. É um trabalho desafiador, que não para
nunca, porque cada uma delas tem seu próprio tempo. E precisamos ter presente
que pode ser necessária alguma atividade complementar, para dar conta de eventuais dificuldades", explica.
Adriana Bacci, por sua vez, que atua como articuladora de mercado, explica
que o trabalho de sensibilização em busca de apoio é constante. "Mas não apelamos para o assistencialismo", diz Adriana, cuja tarefa é aumentar ao máximo a
visibilidade, não só do projeto, mas de toda a instituição. Ela trabalha de forma
permanente na montagem e monitoramento da agenda de feiras, congressos e
eventos, e acrescenta que os produtos do projeto Criando e Fazendo Arte são
comercializados na Loja Solidária que funciona no shopping Passo Alfândega.
Sem falar nas demandas pontuais: "Agora mesmo elas estão terminando de produzir 150 caixinhas de madeira, com uma chave, encomendadas por uma construtora de Recife".
E é assim que o programa vai cumprindo sua missão, "favorecendo o fortalecimento do núcleo familiar, o protagonismo infanto-juvenil, a qualificação profissional e o exercício pleno da cidadania, rumo a uma sociedade justa e solidária".
Palmas para a Casa Menina Mulher.
cidadania e na autoestima
143
144
FRAGMENTOS
NATAL RN
um
mosaico
de texturas e realizações
145
FRAGMENTOS
HARMONIA: CORES E FORMAS EM PEDAÇOS VIRAM OBRAS DE ARTE
É com lágrimas nos olhos e a voz embargada pela emoção que Maria Antonia
dos Santos Rodrigues, 52 anos, profere a seguinte frase: "Eu amo o artesanato".
E em seguida acrescenta: "O mosaico é contagiante". Naquele momento, Antonia
está em meio às colegas artesãs do projeto Fragmentos, em Natal, Rio Grande do
Norte, ao final de uma oficina sobre formação de preço, oferecida pelo Sebrae
(Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa). A razão de tanta emoção vem na sequência de sua fala: ela conta que descobriu há cerca de dois anos
que tinha câncer de mama. "Estava terminando de fazer uma peça aqui na oficina
quando fiquei sabendo". As sequelas do tratamento afetaram seu braço direito e
dificultam o manuseio do torquês, espécie de alicate utilizado para quebrar em
pequenos pedaços as peças de revestimento cerâmico que formam os mosaicos.
"Acaba funcionando até como fisioterapia, pois tenho que fazer força. Estou
tentando continuar", explica Antonia, sentada ao lado da irmã, Maria do Socorro, que, de tão tímida, costuma ficar sem voz quando está em um grande grupo e
é convidada a falar. Maria do Socorro não faz nenhum comentário sobre a fala da
irmã, mas os olhos, também marejados, deixam explícita sua solidariedade.
O projeto Fragmentos, que vem ajudando Antonia a superar a depressão
após o diagnóstico da doença, é uma iniciativa da Adote (Associação de Orientação Aos Deficientes), instituição sem fins lucrativos localizada no bairro Cidade
Esperança. A Adote atua em três frentes: atendimento clínico, escola de ensino
infantil e fundamental e centro de convivência. Os primeiros passos do projeto
de artesanato voltado para as mães foram dados em 2006, na época sob a forma
de uma oficina de artes. No ano seguinte, com a inauguração do Centro de Convivência, a proposta se incorporou a atividades de cunho artístico e de inclusão
digital, e é ainda em 2007 que se realiza a primeira exposição de trabalhos, lá
mesmo. Em 2009, um passo adiante é dado com a primeira mostra realizada fora
da sede da Adote, desta vez na Assembleia Legislativa do Estado.
Primeiros passos foram dados em 2006, e
146
PARTIR A MATÉRIA-PRIMA EM PEDAÇOS É TRABALHO DURO, MAS NECESSÁRIO
já em 2007 aconteceu a primeira mostra
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TRABALHAR O MOSAICO GARANTE AOS PRODUTOS UM DIFERENCIAL COMPETITIVO
Grupo visitou os famosos mosaicos
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FRAGMENTOS
O NOME FRAGMENTOS SURGIU A PARTIR DO APOIO DO INSTITUTO LOJAS RENNER
Mas foi graças à formalização de parceria com o Instituto Lojas Renner, por
meio da "Campanha Mais Eu", que as oficinas ganharam o nome atual, Fragmentos, e o foco em atividades em um grupo produtivo, capacitando as mulheres para
o empreendedorismo e possibilitando ações práticas que resultem em geração de
renda. Além das oficinas de design, as artesãs, todas mulheres cujos filhos e filhas
com algum tipo de deficiência são atendidos pela Adote ou que moram na comunidade em torno, também passam por capacitações em empreendedorismo, fluxo
de caixa, negociação, atendimento ao público, técnicas de venda.
Edízia Lessa, coordenadora do centro de convivência e do projeto Fragmentos, explica que a opção pelo mosaico como mote se deu em razão da técnica ser
pouco explorada. Em Natal, por exemplo, apenas uma fábrica de móveis e um
artista plástico se dedicam a este tipo de trabalho. Do ponto de vista do marketing,
as peças, portanto, têm um diferencial bastante interessante. Além do mais, o
setor de construção civil, que anda bastante aquecido, registra 10% de perda de
revestimentos cerâmicos, que acabam sendo adquiridos pela Adote em lojas de
material de construção. Em João Pessoa, a tradição do mosaico é mais forte. Edízia
diz que justamente por isso as alunas estiveram visitando, em novembro, os famosos painéis de mosaico da capital da Paraíba. E conta com orgulho que uma das
alunas, Gildeci Pereira do Nascimento, foi escolhida para dar aulas no Ponto de
Cultura de São José de Mipibu (município a 35 quilômetros de Natal), capacitando outras 40 mulheres na arte do mosaico.
Gildeci, a propósito, tem 39 anos e é mãe de Luana, 18, aluna da Adote. Ela
atuava como voluntária na instituição, ajudando nos cuidados com outros deficientes, e durante muito tempo ficou apenas observando o trabalho das artesãs da
oficina. De 2008 para 2009 deixou de lado o receio, e hoje garante que o processo de colar pedrinha por pedrinha em uma base de madeira, usando cola e depois
de João
Pessoa em 2010
149
FRAGMENTOS
CRIADORAS E CRIATURAS: AS ARTISTAS DE NATAL E ALGUMAS DE SUAS PEÇAS
rejunte, para o acabamento, "é encantador". Maria Galiléia, a Léia, 41 anos, também ex-voluntária da Adote, resistiu o quanto pode, pois não gostava do torquês:
tinha medo de usar a ferramenta. Até que um dia resolveu participar das aulas.
Ela lembra do primeiro quadro, uma figura geométrica até hoje exposta na sala
do grupo. No dia da entrevista, ela estava trabalhando em uma peça com 80
centímetros de diâmetro, que deveria consumir no mínimo três dias de trabalho.
Maria da Apresentação, 43 anos, mãe de Mateus Jordan, 17, que tem paralisia cerebral, fazia trabalhos em biscuit, pintura em tecido e cerâmica antes de se
envolver com o mosaico. Achou que poderia ser uma boa terapia e uma forma
interessante de passar o tempo, enquanto aguardava as seções de atendimento
do filho. Aos poucos, foi mudando a forma de olhar seu próprio trabalho. Hoje,
se dedica às paisagens, e decidiu fazer também um curso de desenho. Ela e o
marido, a propósito, trabalharam desde o início e de forma voluntária na construção da Adote. Já Ana Torres Borges, 48 anos, está envolvida com o Fragmentos desde o início. Ela tem uma sobrinha com Síndrome de Down que frequenta a
Adote, e diz que largou o crochê para se dedicar apenas ao mosaico. "A gente se
apaixona logo que conhece. Quando se termina um trabalho, já quer fazer outro.
Eu até levo para casa, quando posso". Quando conversou com a reportagem, ela
estava há quatro dias trabalhando na figura de uma enorme tartaruga, e faltava
ainda a metade por fazer.
As peças produzidas pelas artesãs do Fragmentos tem uma peculiaridade:
utilizam não apenas as partes lisas e retas dos revestimentos cerâmicos. Elas
separam também as bordas, arredondadas, e as utilizam para fazer contornos
mais delicados ou no meio do desenho, garantindo uma textura e movimento
insuspeitados. É por esses e outros detalhes que faz sentido estar exposta na
sala da coordenação do Centro de Convivência da Adote uma frase de Wassily
Kandinsky, o renomado artista plástico russo nascido em 1866: "A arte é uma
força cuja finalidade deve desenvolver e apurar a alma humana".
Uso de contornos arredondados
150
dá textura e movimento às peças
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PATROCÍNIO
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