Civilizações e Sistemas
Alimentares
Prof. Ms. João Luís A. Machado
Centro Universitário Senac
Campus Campos do Jordão
Referência:
MONTANARI, Massimo. Sistemas
alimentares
e
modelos
de
civilização. In: FLANDRIN, Jean
Louis; MONTANARI, Massimo.
História da Alimentação. São Paulo:
Estação Liberdade, 1998. Págs. 108120
Dentre todos os aspectos que
definem a cultura alimentar do
que
denominamos
“mundo
clássico”,
um
dos
mais
significativos é a vontade de o
apresentar como o domínio da
civilização, como uma zona
privilegiada e protegida, em
oposição
ao
universo
desconhecido da bárbarie.
No sistema de valores elaborado
pelo mundo grego e romano, o
primeiro elemento que distingue
o homem civilizado das feras e
dos bárbaros é a comensalidade:
o homem civilizado come não
somente (e menos) por fome,
para satisfazer uma necessidade
elementar do corpo, mas,
também (e sobretudo) para
transformar essa ocasião em um
momento de sociabilidade (...)
... as “boas maneiras no banquete”
servem na sociedade grega para
distinguir os homens civilizados –
os citadinos – dos selvagens que
não as praticam e dos semiselvagens que as praticam apenas
ocasionalmente. Como quer que
seja, a comensalidade é percebida
como um elemento “fundador” da
civilização humana em seu
processo de criação.
O banquete torna-se, assim, o
sinal
por
excelência,
da
identidade do grupo, quer se trate
do núcleo familiar ou de toda a
população
(...)
As
mesas
separadas
significam,
ao
contrário, uma diferença de
identidade, segundo símbolos que
regem não apenas as relações
entre os homens, mas, também,
entre os homens e as divindades...
O banquete, expressão da
comunidade, representa também
as hierarquias e as relações de
poder no seu interior. Essas
relações de poder expressam-se
pelo lugar que cada um ocupa
na mesa, pelos critérios de
repartição dos alimentos, pelo
tipo de alimentos servidos a
cada conviva...
O symposium – esse rito coletivo
durante o qual os convivas bebem
vinho e que, no mundo grego, se
segue ao banquete, do qual é
rigorosamente separado – é uma
outra manifestação importante da
coesão social e da pertença a
civilização.
Ele
celebra
a
sacralidade do vinho, que produz a
embriaguez e favorece, portanto, o
contato com o divino.
... não é a carne, na verdade, mas o pão
– exemplo absoluto de artifício, de
produto totalmente “cultural” em todas
as fases de sua complexa preparação –
que é o símbolo da civilização, da
distinção entre o homem e o animal. O
pão (e também o vinho e o óleo) é o
sinal que distingue uma sociedade que
não repousa sobre recursos naturais,
mas que é capaz ela própria de fabricálos...
Mas são sobretudo as plantas, e a
agricultura que distinguem o
homem civilizado do bárbaro, que
se satisfaz em coletar o que
encontra na natureza e em caçar.
Os povos que não se dedicam à
agricultura, que não comem pão
nem bebem vinho, são, por
conseguinte, selvagens e bárbaros:
seu alimento é a carne, sua bebida,
o leite.
Mas, se deixarmos a ideologia e os
esquemas abstratos para entrar
plenamente nas realidades da
produção, perceberemos diferenças
notáveis. Em primeiro lugar, as
terras cultivadas estão longe de
fornecer
todos
os
recursos
alimentares. Em seus limites, as
terras incultas são largamente
exploradas pela pastagem, a caça, a
pesca e a coleta de frutos silvestres.
Além disso, o pão nem sempre é pão,
nem o vinho, vinho. O “vinho”,
muitas vezes é vinagre com água; o
pão, por sua vez, é, em verdade, um
alimento-símbolo,
um
emblema
ideológico antes de ser um alimento
real. Na maioria dos casos deveríamos
nos limitar a dizer “cereais” em vez
de pão (...) gregos são “comedores de
cevada” e romanos “comedores de
papas de farinha”...
Além dos cereais, as leguminosas
também têm uma importância
considerável na alimentação:
principalmente as favas, o grão de
bico, as lentilhas, as ervilhacas.
Nas hortas, importante fonte de
aprovisionamento, os gregos
cultivavam principalmente alho,
alho-poró e cebola. Os romanos
produziam a couve, nabos, nabos
silvestres, plantas aromáticas,...
Rigidamente fundado sobre os três
valores “fortes” do trigo, da vinha e
da oliveira, o modelo dietético
greco-romano faz pouco caso das
sopas e das papas de cereais
inferiores, das papas de legumes
secos, das sopas de legumes.
Considera menos ainda os produtos
das terras incultas. Atividades de
exploração de pastagens, brejos e
florestas não são nem mencionadas...
Em suma, os valores alimentares
propostos pela literatura grega e
romana são essencialmente utopias,
modelos ideais e ideológicos que
correspondem apenas parcialmente
à realidade cotidiana. Esses
modelos alimentares (baseados no
pão, vinho, azeite, figos e mel)
estão ligados à idéia de frugalidade,
símbolos de uma vida simples, de
trabalho duro e satisfações singelas.
O próprio conceito de pátria
relacionado ao mundo clássico carrega
em si o vínculo entre civilização e
domínio sobre a terra. Os juramentos
gregos previam, que a pátria seria a
terra onde “crescem o trigo, a vinha e a
oliveira”. De certa forma o que se dizia
era que em qualquer lugar que os
gregos se estabelecessem essas plantas
e árvores seriam cultivadas e
floresceria a civilização...
Em compensação, a relação com o
consumo de carne é sempre
problemática. Imagem do luxo, da
festa, do privilégio social, a carne
não é considerada pelas civilizações
da Antiguidade um bem tão
primordial como os produtos da
terra: seu preço, portanto, não é
sujeito ao controle político como o
dos cereais; em certas épocas do ano
sua venda chega até a ser proibida...
A prática do sacrifício faz do
consumo da carne um acontecimento
ainda mais excepcional, conferindo a
esse alimento uma grande força
simbólica, mantendo-o, ao mesmo
tempo, à margem dos valores
“cotidianos” da existência. No
mundo grego os cereais fornecem
80% do aporte calórico total e os
citadinos consomem não mais do que
um ou dois quilos de carne por ano...
Ovinos e caprinos, principais
animais de criação na época grega e
romana, são criados sobretudo por
sua lã e seu leite: o queijo é,
portanto, mais importante que a
carne na alimentação diária. Os
bovinos, extremamente raros, são
utilizados como animais de carga e
tiro e seu consumo ocorre apenas
quando estão muito velhos e
tornam-se bestiae inutiles.
A carne é mais importante entre os
romanos devido a sua tradição de
criação de porcos, cujas carnes
respondem
por
um
aporte
considerável de proteínas animais. O
porco assume uma importância maior
na época imperial e, a partir do
século III, os imperadores mandavam
distribuir sua carne junto com o pão
para manter a ordem pública e
reafirmar seu status...
A importância e prevalência do pão
entre
os
romanos
aparece
principalmente a partir do exemplo dos
soldados
do
império.
Esses
“comedores de pão” consumiam
diariamente entre 800 g a 1 kg do
produto e depois das conquistas eram
instados a iniciar nas terras agregadas a
produção de cereais, especialmente do
trigo, para abastecer o consumo
pessoal e grupal.
A preeminência do pão na cultura
antiga é também decorrente de uma
ciência dietética, que coloca o pão no
ápice
da
escala
de
valores
nutricionais. Com efeito, os médicos
gregos e latinos vêem no pão o
equilíbrio perfeito dos diferentes
componentes (quente e frio; úmido e
seco), que a dietética reconhece como
elementos de cada alimento e de tudo
o que existe na natureza.
A ciência dietética tem papel
fundamental na formação da
cultura alimentar e gastronômica
da Antiguidade. Em razão de
uma evolução cuja origem
remonta
provavelmente
à
descoberta da possibilidade de
cozer os alimentos com o fogo, a
cozinha antiga vive em estreita
simbiose com o pensamento
médico e com a reflexão
dietética...
Destaque-se que desde as origens,
pela sua própria essência, a arte da
cozinha consiste em não apenas
tornar o sabor dos alimentos mais
agradável, mas, ao mesmo tempo,
transformar a natureza dos produtos
adaptando-os
as
necessidades
nutricionais dos homens. Partindo-se
dessa premissa a nutrição e a saúde
se confundem, como apregoam
autores gregos e latinos desde aquela
época.
A alimentação da Antiguidade
também possui grande variação
quando comparamos a vida no campo
e na cidade. Os citadinos tinham a
sua disposição uma oferta mais farta
e podiam prover-se a partir dos
mercados ou da assistência pública.
Aos
camponeses,
por
sua
proximidade com os locais de
produção, havia sempre a garantia de
acesso aos alimentos mesmo em
tempos de escassez.
Na Internet:
MACHADO, João Luís de Almeida.
Alimentos de homens e de deuses.
Disponível em
http://www.planetaeducacao.com.br/
new/colunas2.asp?id=628.
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A antiguidade e os sistemas alimentares