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RELATO DE CASO
Psicossomática psicanalítica em a metamorfose: uma nova possibilidade
para a compreensão de Franz Kafka
Psychosomatic psychoanalysis in metamorphosis: a new possibility for
Franz Kafka comprehension
João Eduardo Torrecillas Sartori1; Lazslo Antônio Ávila2
Acadêmico do curso de Medicina da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto-FAMERP
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Livre-docente do Departamento de Psicologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto-FAMERP
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Resumo
Introdução: O escritor tcheco Franz Kafka é reconhecido como um dos maiores de todos os tempos. Sua obra-prima, “A Metamorfose”, considerada complexa pela crítica internacional, narra a história de Gregor, jovem que acorda metamorfoseado em um inseto
monstruoso, e os problemas que o assolaram antes e depois da transformação. Alguns autores afirmam que “A Metamorfose” é uma autoanálise disfarçada de Kafka. A teoria psicossomática psicanalítica afirma que o indivíduo escolhe, inconscientemente, adoecer. Em sua
autobiografia, Kafka revela acreditar que sua tuberculose fora causada por sua enorme angústia, o que estaria de acordo com tal teoria.
Objetivo: Avaliar a relação entre o adoecimento de Kafka, apresentado em vida e por meio de seu protagonista em “A Metamorfose”, e
a teoria psicossomática psicanalítica. Material e Métodos: Em diálogo com a psicossomática psicanalítica, juntamente à sua autobiografia, traçaram-se paralelos entre autor e protagonista de “A metamorfose”. Resultados: Por meio dos paralelos citados, revelaram-se
aspectos essenciais quanto ao adoecimento de Kafka e fatores causadores. O autor, como o protagonista, sofreria de problemas ligados
à figura paterna severa, ao sentimento de não pertencimento a lugar algum e ao impedimento de realizar, como meio de vida, aquilo
que lhe dava prazer. Ambos escolheram inconscientemente adoecer, processo conhecido como somatização. Conclusão: a teoria psicossomática psicanalítica permitiu uma análise diferenciada do adoecimento de Kafka, trazendo à tona Aspectos importantes da vida
mental do autor e de seu protagonista, em associação com a sua autobiografia, Carta ao Meu Pai. Kafka escreveu “A Metamorfose”
como uma espécie de desabafo, visando à elaboração de conflitos psíquicos. Há, também, correspondência entre protagonista e autor,
ambos sendo sofredores – o que foi agravado por questões familiares – e adoecendo na tentativa de romper com o quadro em que se
viam encarcerados.
Descritores: Medicina Psicossomática; Psicanálise; Literatura; Kafka; Metamorfose Biológica.
Abstract
Introduction: The Czech writer Franz Kafka is known as one of the greatest of all time. His masterpiece, “Metamorphosis”, which is
considered complex by international critics, tells the story of Gregor, a young man who wakes up one morning metamorphosed into a
gigantic insect, and the problems that plagued him before and after his transformation. Some authors say “Metamorphosis” is a Kafka’s
disguised auto-analysis. The psychosomatic psychoanalysis states that the individual chooses unconsciously to become sick. In his autobiography, Kafka reveals he believed that his tuberculosis was caused by his huge distress, what agrees with that theory. Objectives:
To evaluate the correlation between Kafka’s illness, shown in his life and in his protagonist in “Metamorphosis”, and psychosomatic
psychoanalysis theory. Material and methods: Using the psychosomatic psychoanalysis, in association with his autobiography, we
made parallels between the author and the protagonist of “Metamorphosis. Results: By the above-mentioned parallels, we revealed
some essential aspects on Kafka’s disease and its etiology. Kafka, like his character Gregor, suffered from problems related to a severe
father figure, to the feeling of not belonging anywhere, and to the impossibility of doing what he loved for a living. Both have chosen
unconsciously to become sick, a process known as somatization. Conclusions: the psychosomatic psychoanalysis allowed a differentiated analysis on Kafka’s illness, bringing up important aspects of the author’s mental life as well as of that of his protagonist, in association with the author’s autobiography, “Letter to My Father.” Possibly, Kafka has written “Metamorphosis” trying to elaborate his own
emotional problems. Still, there are correlations between protagonist and author, both suffering – what is linked to family disorders – and
getting sick in an attempt to break the terrible framework in which they were prisoners.
Descriptors:Psychosomatic Medicine; Psychoanalysis; Literature; Kafka; Metamorphosis, Biological.
Recebido em 10/02/2014
Aceito em 06/05/2014
Arq. Ciênc. Saúde. 2014/Abr-Jun; 21(2)9-14 1
Não há conflito de interesse
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Introdução
Desde a sua publicação em 1915, a novela “A Metamorfose”, uma das mais conhecidas do mundialmente famoso
escritor tcheco Franz Kafka, tem sido alvo da crítica internacional que, apesar da gama de métodos de análise utilizados, são unânimes em considerarem a obra extremamente
complexa. A novela inicia com a transformação repentina do
protagonista Gregor Samsa em um inseto monstruoso, após
despertar de sonhos agitados. Com o desenrolar da história,
fatos a respeito da existência do protagonista até o momento
de sua transformação – e após aquela –, são contados pelo
narrador e, disso, depreendem-se os conflitos existenciais
que o assolam, tal como o isolamento(1).
Na narrativa, sinaliza-se a ideia de que a metamorfose de
Gregor em inseto ocorre como meio de quebra do contrato
que mantivera com a vida que levara até então, uma espécie
de libertação. Considerava angustiante a sua vida de viajante
comercial. Via-se preso a uma rotina maçante da qual não
poderia escapar, observado o fato de que sua família dependia totalmente de seu emprego para a subsistência, desde que
uma crise financeira se abatera sobre ela e fizera com que
seus pais se endividassem. Fora, desde então, provedor exclusivo da família, uma responsabilidade enorme, visto que,
para isso, era obrigado a abdicar de uma vida de realizações
para que os familiares pudessem viver de modo mais satisfatório(1).
Contudo, não perdia a esperança do momento em que a mencionada ruptura chegaria. Este sentimento permanecia utópico em virtude da grande dívida herdada de seus pais, que o
fazia concentrar todos os seus esforços diários em torno do
trabalho – sendo, este último, o instrumento pelo qual a debelaria aos poucos(1). Supõe-se, desde já, que a metamorfose
em inseto acontece como manifestação de um desejo, mudando a conformação de Gregor, para, assim, auxiliá-lo na
obtenção de um ganho secundário, a tal quebra do contrato
que lhe fazia enorme mal.
É certo que uma transformação de tal espécie seria
impensável em nossa realidade. Logo, para que seja dado
prosseguimento à análise, será necessário que se admita
este incrível evento – bem como outros que são revelados
no desenrolar da trama – como sendo possível(1-2). Apesar
de aparentemente estranho, o tratamento do evento absurdo
como se fosse normal é corriqueiro em Kafka(2). O universo por ele criado se reveste de situações incríveis que são,
contudo, descritas com tom demasiadamente realista(1-2).
Sempre detalhista e minucioso, Kafka, transforma suposições aparentemente absurdas em circunstâncias possíveis de
ocorrência(2).
Feita a observação, é possível que a metamorfose ocorrida
seja analisada sob a ótica da psicossomática psicanalítica,
que pode ser compreendida como uma área da ciência – e
ainda, corrente de pensamento – que parte do princípio de
que a mente, quando da não possibilidade de suportar determinado conflito psíquico de ordem inconsciente, utiliza-se de mecanismos de defesa com o propósito de deslocar a
ameaça psíquica para o corpo, produzindo sintomas, fenômeno a que se denomina somatização(3). Além disso, segundo a teoria citada, a mente atribui, ao processo de adoecimento, valor subjetivo – o sintoma produzido reveste-se de
importância simbólica(3-4).
Deste modo, o órgão – ou a estrutura – que se mostra alvo
da transformação é visado pelo inconsciente do doente como
representante de um valor subjetivo, dotado de simbolismo,
e não de modo aleatório(4-5). Nesse sentido, o protagonista
Gregor não sofre qualquer transformação que o impeça de
prosseguir com sua exaustiva rotina, mas sim, especificamente, transforma-se em um inseto, criatura diminuta, por
vezes vista como insignificante aos olhos humanos, podendo
também ser entendido como asqueroso ou irritante. Gregor
sentia-se, muito provavelmente, um inseto. A somatização
confirmaria sua percepção de si, ao mesmo tempo em que o
libertaria de seus deveres.
O autor, Franz Kafka, em Carta ao Meu Pai, uma publicação póstuma (1919) e que nunca fora enviada, refere-se ao
próprio adoecimento – Kafka sofrera de tuberculose –, como
algo dotado de significado e como se fosse expressão somatizada de seu conflito psíquico(6). Curiosamente, refletira em
acordo com a psicossomática psicanalítica, todavia, cerca
de dez anos anteriormente à sua formulação teórica(4). Em
diálogo com a psicossomática psicanalítica, pode-se supor
que a metamorfose sofrida pelo protagonista, assim como a
tuberculose contraída pelo autor, consiste em típico processo
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de adoecimento psicossomático.
Assim, em virtude da dimensão adquirida pelos conflitos
existenciais em que se encontravam autor e protagonista –
este último tendo sido criado pelo primeiro na tentativa de
elaborar tais conflitos –, o inconsciente deles operaria um
conjunto de modificações em seus corpos que terminariam
por trazer-lhes um benefício, a quebra do contrato que por
eles era visto como injusto, encerrando aquele ciclo de dores.
O estudo faz-se justificado, portanto, não somente pela aplicabilidade de um diálogo entre a psicossomática psicanalítica e a narrativa, mas também pela possibilidade de uma
nova interpretação da vida de Franz Kafka, figura pública
de importância internacional, tendo sido consagrado um dos
maiores escritores de todos os tempos. Desse modo, visando a esclarecer os fatores associados com seu adoecimento,
traçaram-se paralelos com o protagonista de sua maior obra,
“A Metamorfose” – escrita como uma espécie de autoanálise
disfarçada –, e de trechos de sua autobiografia, Carta ao Meu
Pai(7) – rica em detalhes sobre sua vida. Sustentou-se, inclusive, a ideia de que ambos, autor e protagonista, sofreram
o processo de adoecimento psicossomático, apresentando
somatização de seus conflitos psicológicos. Nesse contexto,
o objetivo deste estudo foi avaliar a relação entre o adoecimento de Kafka, apresentado em vida e também indiretamente por meio de seu protagonista em “A Metamorfose”, e
a teoria psicossomática psicanalítica.
Material e Métodos
Tratou-se de um estudo qualitativo baseado em literatura sobre psicossomática, psicanálise e psicossomática psicanalítica. Foram também utilizados estudos sobre vida e obra do
autor, além de suas próprias obras: A Metamorfose e Carta
ao Meu Pai.
Contextualização da Psicossomática
Corpo e mente são indissociáveis, sendo apenas aspectos
– não tão bem delimitados quanto se costuma afirmar – de
um mesmo conjunto. Nisso consiste a natureza holística do
homem, em que ele se revela como algo mais que soma –
traduzido como apenas cadáver, no grego antigo –, como um
todo indivisível. Partindo desse pressuposto, qualquer alteArq. Ciênc. Saúde. 2014/Abr-Jun; 21(2)9-14 1
ração em um dos dois aspectos citados, leva, inevitavelmente, porém em grau variado, a uma modificação no outro, para
que seja alcançado um novo equilíbrio, como no fenômeno
de homeostasia(4).
A psicossomática é o ramo da ciência que parte do princípio
de que, em decorrência de tal união corpo-mente, um acaba
por se expressar no outro, de alguma maneira. Logo, considera que todo processo mental reflete em nossa ação ou em
nosso discurso, bem como tudo a que somos apresentados no
ambiente físico em que nos inserimos, recebe representação
em nosso universo psicológico, o que se faz por intermédio
da criação de símbolos. E isso acontece no âmbito, também,
de constituição corporal. O homem se recria a partir de seu
universo simbólico(4-5).
Não foge à regra, portanto, aquele fenômeno tão conhecido dos homens e, paradoxalmente, tão pouco desvendado,
que é o adoecimento. A psicossomática considera que certos
conflitos de ordem psíquica, sendo impedidos de encontrar a
devida expressão na consciência, são somatizados, ou seja,
transmitidos ao corpo, e assim, sintomas e sinais dos mais
diversos tipos podem aparecer em decorrência de traumas
psicológicos(3). O órgão – ou estrutura – escolhido como alvo
da modificação é visado não de modo aleatório pela mente,
mas sim, de acordo com certos símbolos e valores de seu
universo psíquico. Há, nesse contexto, relação entre o valor
simbólico dado ao conflito e a região somática afetada(4-5).
Portanto, a psicossomática supõe que o doente, inconscientemente, escolhe adoecer, o que pode ocorrer por uma infinidade de motivos, entretanto, sempre visando, também
de modo inconsciente, a obtenção de uma espécie de ganho pessoal – que vai da não necessidade de comparecer ao
trabalho à obtenção de maior atenção pelos seus familiares.
A psicossomática não se coloca como um método, mas faz
uso de uma metodologia pré-existente: a Psicanálise. Tanto
assim, que há psicanalistas defendendo o ponto de vista de
que a evolução natural daquela seria a psicossomática psicanalítica, teoria usada no presente estudo. Prestam-se, juntas,
psicanálise e psicossomática, sob uma perspectiva diferenciada, a buscar o motivo pelo qual o doente ensejou adoecer, bem como compreender o significado subjetivo de sua
doença em sua vida e em seu universo de representações,
permitindo que se processe o aniquilamento do sintoma e
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um rearranjo psicossomático condizente com o conceito de
saúde e de bem-estar do indivíduo(4-5).
Breve Biografia de Franz Kafka
Nasceu no dia 13 de julho de 1883, na cidade de Praga, capital da República Tcheca. Primogênito do comerciante judeu Herman Kafka, figura importante no entendimento da
história de vida do autor – como será visto a seguir – e de
Julie Löwy, também judia. Concluiu seus estudos na mesma
cidade, tendo como língua principal o alemão, tamanha a
influência alemã em sua criação; porém, crescera sob a influência também das culturas judaica e tcheca(6).
Em 1906, formou-se em Direito e então, trabalhou como advogado numa companhia de seguros, na qual foi eleito funcionário exemplar durante anos, chegando a ser promovido
por duas vezes. Apesar da competência profissional e da boa
convivência com os colegas de trabalho, Kafka sentia certa
insatisfação em seu ofício, pois este o impedia de se dedicar
totalmente à atividade literária, que era seu maior prazer(6-7).
Sua obra ficcional considerada mais importante e conhecida
é “A Metamorfose” (1912), obra alvo desta análise. Publicou
sete livros, tendo pequena projeção e pouco reconhecimento
literário em vida.
Não chegou a se casar, mesmo após dois noivados frustrados
com a mesma mulher, Felice Bauer, e uma forte relação com
Milena Jesenská. Aos 34 anos de idade, sofreu a primeira
hemoptise de uma tuberculose pulmonar, doença que acreditava ter desenvolvido por causa de seus tantos problemas
emocionais e que o mataria sete anos mais tarde, um mês
antes de completar 41 anos, no dia 3 de junho de 1924, em
Kierling, na Áustria(6).
No ano de 1902, conhecera Max Brod, que se tornou um
grande amigo, a quem pediu, em 1922, que queimasse todas
as suas obras após sua morte. Esta vontade, evidentemente,
não foi atendida e isto permitiu que os textos pudessem, posteriormente, ganhar reconhecimento mundial. Não imaginaria, o autor, que seria futuramente consagrado como um dos
maiores nomes da literatura contemporânea, e que a dificuldade em interpretar sua obra seria justamente um dos pontos
que a mantém, ainda hoje, como uma das mais discutidas(1).
Relação entre Autor e Obra
Por anos, a Psicanálise – bem como outras correntes teóricas – prestou-se à análise de obras literárias com o intuito de
compreender, ao menos em relação ao aspecto subjetivo, a
mente de seus criadores. Isso se revela possível em virtude
do fato de que, em sua obra, o autor deposita muito de sua
subjetividade, e é extensamente estudada a importância da
escrita como meio de elaboração de conflitos psíquicos(4).
Tanto que o próprio Freud, fundador da psicanálise, interessava-se demasiadamente pelo estudo de narrativas.
Comparando-se a autobiografia de Kafka à sua obra, elementos de correspondência importantes poderão ser visualizados entre o autor e o protagonista de “A Metamorfose”,
Gregor Samsa. Alguns críticos de Kafka os consideram indissociáveis, comparando, desta maneira, sua obra com aspectos de sua vida pessoal. Consideram também a grande
influência do contexto histórico e cultural no qual se inseria
o autor. E tendem a definir seus escritos como expressivo
reflexo de seus sentimentos e de suas frustrações, ou como
uma maneira encontrada pelo autor de exteriorizá-los, sendo
uma espécie de autoanálise. Kafka desabafaria, então, seus
mais íntimos padecimentos – como insegurança e baixa autoestima, decorrentes de sua conturbada relação com o pai –,
com seu público anônimo, pela figura de Gregor(8).
Assim sendo, exige-se cautela porque essa forma de interpretação, embora se baseie em fatos coerentes, gera limitação. Deve-se atentar para o fato de que a obra de Kafka
requer, em função de sua complexidade, uma interpretação
mais ampla e reflexiva. É possível, sim, traçar paralelos entre o personagem e o autor, tomando-se, entretanto, o cuidado para que o entendimento sobre o autor não se restrinja
apenas a uma análise do texto. A psicossomática psicanalítica utiliza a metodologia psicanalítica e conceitos complementares da disciplina psicossomática. Nesse caso, se for
empreendido o diálogo entre tal corrente de pensamento e
a narrativa selecionada, atentando-se à biografia do autor,
revelar-se-ão aspectos interessantes da visão de mundo do
autor e de seu aparelho psíquico(4).
Partindo-se do que fora explicitado, é possível inferir que
ambos, autor e protagonista de “A Metamorfose”, podem ser
pensados como sofrendo de uma particular má resolução do
Complexo de Édipo – fase universal do desenvolvimento,
descrita por Freud, em que a criança se apaixona pelo progeArq. Ciênc. Saúde. 2014/Abr-Jun; 21(2)9-14 1
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nitor do sexo oposto e rivaliza com aquele do mesmo sexo .
Segundo a teoria freudiana, o Complexo pode ser superado
diante da identificação da criança com o progenitor do mes(9)
mo sexo, atenuando a rivalidade, o que ocorre quando este
é presente e compreensivo(9). Kafka, ao contrário, convivera
com um pai opressor e distante(6), o que se evidencia na obra
Carta ao Meu Pai(7).
Nessa publicação póstuma, escrita por ele para o pai na
forma de uma carta – e que nunca chegou a ser enviada –,
Kafka discorre sobre sua conturbada relação com aquele homem autoritário que lhe impunha seu modo de ver o mundo
e que lhe despertava emoções conflitantes, do extremo ódio
à profunda admiração – processo conhecido como ambivalência(9). Kafka, nesse texto, deixa explícita a ideia de que
contexto da lógica capitalista – sendo uma peça facilmente descartável. Consequentemente, não consegue enxergar
perspectiva de crescimento no que faz e nem sentir prazer,
nem mesmo captar qualquer sentido naquilo em que tanto se
empenha. Kafka, em uma sociedade regida por um capitalismo problemático, apresentando distintas crenças, mas não
conseguindo se adequar a nenhuma delas, também se sentia
permanentemente fora, mostrava-se deprimido e constantemente insatisfeito(1).
Outro importante paralelo possível de ser traçado entre protagonista e autor, corresponde ao insucesso quanto ao aspecto amoroso. No caso de Gregor, o fato de ter conseguido em
sua vida apenas um flerte malsucedido pode ser um dos motivos de sua baixa autoestima e de sua visão negativa e deturpada de si mesmo. Isso se acentua por ser ainda um jovem
de aproximadamente duas décadas de vida, no momento em
que, na narrativa, ocorre sua metamorfose em inseto(7). Era
seu pai era, por vezes, tirano, não se preocupando com a
felicidade do filho, somente desejando que este seguisse o
que lhe preconizara. Era conflituosa a vivência familiar no
lar dos Kafka(7) e essa situação familiar insustentável faz-se
válida também para o protagonista de “A Metamorfose”, o
que é confirmado em trechos da narrativa em que o pai do
protagonista é também retratado como severo e incompreensivo. Por isso, pode-se dizer que há um componente a mais
no fato de Franz Kafka e de Gregor Samsa revelarem baixa
autoestima e grande insegurança.
esperado à época que jovens em sua idade possuíssem maior
êxito. Kafka, em diálogo constante com o seu protagonista,
não chegou a se casar, tendo vivido dois noivados frustrados
com a mesma mulher e uma relação infrutífera com outra(1,7).
Para Freud, criador da Psicanálise, o Complexo de Édipo é
fundamental na estruturação da personalidade. E, além disso, no caso do menino, a dificuldade em superar essa fase e
em se identificar com a figura paterna poderia ser a explicação de um comportamento de dependência emocional exacerbada, ou de uma crise de identidade em fases posteriores
do desenvolvimento. É válida, portanto, a inferência de que
o Complexo de Édipo mal resolvido foi um problema enfrentado por Kafka e por seu protagonista. No caso do autor,
este pode ser pensado como problema central da existência
– o que é corroborado pela análise da obra Carta ao Meu Pai.
solucionara com o tempo será base para o desenvolvimento
de outros conflitos que surgiriam nas vidas do autor e do
protagonista, bem como de sua doença, segundo aquela corrente de pensamento(9-10). Kafka, como já foi dito, adoeceria
de tuberculose e Gregor se metamorfosearia em inseto.
Em adição ao exposto, assinala-se que o problema de Kafka
compreendia sua falta de identificação com a realidade na
qual se encontrava, a não integração em qualquer sociedade
e a sensação da não existência. Revela-se, deste modo, um
diálogo vívido com o protagonista de sua novela, que também não se sente integrado ao mundo em que habita. Pelo
contrário, vê-se apagado e sem valor e, inserindo-se em um
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É importante ressaltar que, como dissera em um de seus
diários, o autor acreditava veementemente que o seu próprio
adoecimento – a tuberculose – teria causas emocionais.
Isso é notável, visto que fora pensado uma década antes,
aproximadamente, da data eleita como a de consagração da
teoria psicossomática(4). O Complexo de Édipo que não se
No caso do protagonista, por ter assumido o papel de provedor exclusivo da família, desde a falência de seu pai,
viu-se obrigado a sacrificar sua vida pessoal, objetivando a
preservação da estabilidade em seu lar(1). Neste momento de
aceitação do papel de provedor, encontrava-se em sua fase
pós-puberal – entre os quinze e vinte anos de existência. Esta
fase do desenvolvimento da personalidade é caracterizada
pela tentativa de integração, por parte do indivíduo, ao mundo dos adultos. Quanto ao aspecto profissional, é o momento
em que ele deve escolher um ofício(9). Gregor, provavelmen-
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te, vê na falência do pai situação perfeita para que pudesse
se afirmar perante a família, deixando de ser um menino. Levando em consideração a relação ambivalente que mantinha
com seu pai, a possibilidade de mostrar seu valor conceder-lhe-ia maior satisfação. Também, não seria como qualquer
jovem que se limita a adquirir, gradativamente, independência econômica. Faria com que aqueles a quem dava enorme
importância – em especial, o pai – reconhecessem seu valor.
Nitidamente, fantasiava com o próprio heroísmo e optou por
um cargo em que a possibilidade de ganho era maior, facilitando o processo desejado, mas não realizando, contudo, o
ofício mais prazeroso. A fantasia inconsciente do autor, Kafka, encontrou expressão indireta na escrita, por meio de seu
protagonista Gregor. A situação apresentada pela narrativa
é idêntica à que vivera o autor, exceção feita à falência dos
pais, que seria uma vontade de Kafka, o que faria com que
seu pai se tornasse seu dependente – realizando assim um de
seus desejos inconscientes(9).
Contudo, como é narrado em seguida, passado um tempo
de exercício da profissão, Gregor começava a notar que não
havia correlação entre aquilo que fantasiara e o que, concretamente, acontecia nos âmbitos profissional e amoroso.
Também, no âmbito familiar, há grande frustração: a família acostumara-se à situação, deixando de mostrar gratidão
por seu trabalho. Com isso, o encanto é quebrado, restando, ao protagonista, apenas a obrigação a ser cumprida. Esta
situação pode ser considerada, seguramente, uma das mais
influentes em sua sensação de encarceramento. Sua vida
se resume ao ofício, mas este oscila entre desconfortável
e desprovido de intensidade. Logo, almeja a ruptura desse
quadro(1,8). Não necessitando de adaptações, Kafka vivera a
mesma situação que seu protagonista.
A narrativa mostra que o protagonista, Gregor, faz-se filho
exemplar, submetendo-se prontamente à execução das tarefas que lhe foram impostas pelo destino. É passivo com
relação não somente à família, mas também com relação ao
chefe, no trabalho(8). Desprovido de vida pessoal significativa, dedicado por inteiro à família e ao trabalho, absorvido
integralmente pela autoridade de outrem, cumpre a função
daquele que executa o que lhe é prescrito, em detrimento do
que, de fato, deseja. Torna-se um sujeito alienado, tanto com
relação ao trabalho, por viajar demasiadamente, permane-
cendo distante da firma, como em casa, por não participar do
cotidiano familiar e por esconderem, os pais, fatos a respeito
das finanças da família – assunto em que deveria ser incluído, por ser o único provedor do seu lar(1,8).
Faz-se totalmente válida a comparação com o autor, Kafka,
que era também passivo com relação ao pai e integralmente absorvido pelo seu ofício – permanecendo nele, apesar
de odiá-lo, na tentativa de afirmar-se como alguém valioso
para o pai. A sensação de encarceramento no cotidiano apresentada por Gregor pode ser transposta quase integralmente
para o autor, feitas mínimas alterações. Ambos mostram-se
verdadeiramente incapazes de “tomar as rédeas” de suas vidas, mesmo que, aparentemente, eles sejam uma peça-chave
na dinâmica e na manutenção das suas estruturas familiares.
Alienados como são, alheios ao mundo que os cerca e, parecendo, mesmo, não estarem inseridos nele, realizam automaticamente as tarefas diárias, não obtendo prazeres, não
desfrutando dos deleites que a vida tem a lhes oferecer(1).
Essa vida monótona que levavam ambos, protagonista e autor, é representação caricatural daquilo que é chamado de cotidiano – o que é habitual ao ser humano e que se faz presente
no dia-a-dia. A própria ideia de cotidiano traz consigo, certa
perda de intensidade. A banalização e a automatização de
certos processos diários tornam-nos, ao menos parcialmente,
desprovidos de sentido(1). Mesmo que haja, ainda, a finalidade de possibilitar um bem maior, como no caso discutido – a
estabilidade familiar ou a autoafirmação –, a monotonia do
cotidiano torna as ações mais cansativas e menos interessantes. Isso dificulta, então, que seja dada continuidade ao projeto de assegurar o bem maior. Eis o motivador necessário à
ruptura. Ao se deparar com o próprio aprisionamento em um
mundo desprovido de intensidade, o indivíduo – neste caso,
tanto Kafka como seu personagem Gregor – torna-se apático
e sua vida perde o sentido.
Qualquer pressão psicológica, a partir de então, como, por
exemplo, um simples dever, tende a ferir o aparelho psíquico
de modo significativo(4). Algo será, portanto, feito para que
seja retomado o sentido, pois não se vive sem este último(1).
Supondo-se que ambos, autor e protagonista, modificaram
sua constituição morfológica de modo a obterem um ganho secundário – o que é inferido no livro, pelo contexto –,
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somatizando um problema psíquico para o qual não encontravam solução, pode-se afirmar que a transformação pela
qual passaram consiste em um caso típico de adoecimento
psicossomático(11). Escolheram, inconscientemente, adoecer,
com a finalidade de não mais necessitarem comparecer ao
trabalho e de não mais se sujeitarem a tamanho sofrimento.
No caso de Gregor, o protagonista, pode-se inferir que a
metamorfose gera, simultaneamente à liberação do cumprimento diário de seus deveres, a adequação de sua aparência
física ao modo como ele se enxergava. Possibilitava, deste
modo, que o mundo pudesse vê-lo de uma maneira mais próxima à que ele se via: um inseto insignificante. Esta segunda
consequência da metamorfose acaba por facilitar a efetivação da primeira, pois, ao perceber que Gregor não é capaz,
que se tornara doente, não mais seria cobrada dele a postura
de provedor. Enxerga-se, assim, a metamorfose, como apelo
desesperado, cujo intuito é o de se fazer notado pelo mundo
à sua volta. Para Kafka, a tuberculose o livraria da sua vida
angustiante, ao passo que exporia sua imensa fragilidade ao
mundo, que teria de vê-lo como ele se enxerga: a analogia
com seu personagem é total.
Sabe-se que a doença traz, àquele que adoece, juntamente
com o sofrimento – e, também, em decorrência deste – a
legitimação de diversos benefícios sociais(3-5). Ao adoecer,
o indivíduo passa a receber um tratamento diferenciado, desempenhando o que pode ser chamado de “papel do doente”.
Recebe maior cuidado, carinho e atenção dos seus próximos
e passa a não mais ser malvisto por realizar ações que, para
não doentes, seriam rechaçadas, como resmungar, exasperar-se diante de situações inócuas, dramatizar ou, ainda, não
participar de certas atividades. Somado a isso, advêm, geralmente, com a doença, a não necessidade de comparecer ao
trabalho. Portanto, será válido afirmar que autor e protagonista tiveram como motivo de seu adoecimento, a possibilidade deste ganho secundário.
correspondência entre protagonista e autor, os quais foram
discutidos no presente estudo. Por meio de um diálogo com
a psicossomática psicanalítica, traçando-se paralelos entre a
vida do autor Franz Kafka e a do protagonista de sua obra-prima “A Metamorfose”, Gregor Samsa, pôde-se realizar
uma análise diferenciada da questão existencial e do enorme sofrimento por eles apresentados. Ambos, autor e protagonista, sendo inseguros, sofrendo demasiadamente em
decorrência de seus problemas familiares – possuindo relação ambivalente com o pai – e sendo consumidos por um
sentimento de falta de identidade e de valor. Optam, assim,
inconscientemente por adoecer – objetivando o rompimento com o quadro decadente no qual se viam presos –, cada
um à sua maneira. Consistem, deste modo, em típicos casos
de adoecimento psicossomático nos quais há somatização
decorrente da incapacidade de elaboração da problemática
existencial e visando a obtenção de um ganho secundário: a
libertação do contrato injusto ao qual se viam presos.
1. Merçon FES. Uma leitura analítica da novela “A Metamorfose”, de Franz Kafka [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas; 2006.
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Considerações Finais
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Kafka escreveu a novela “A Metamorfose” como uma espécie de autoanálise disfarçada, tentando elaborar conflitos
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em Gregor, o protagonista, toda a sua problemática existencial. Por isso, são passíveis de verificação, os traços de
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http:// www.scielo.gpeari.mctes.pt/scielo.php?script=sci _
arttext&pid=S1645-00862012000100012&lng=pt
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São José do Rio Preto-FAMERP Av. Brigadeiro Faria Lima,
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Arq. Ciênc. Saúde. 2014/Abr-Jun; 21(2)9-14 1
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Psicossomática psicanalítica em a metamorfose