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PROPOSTA DE TRABALHO PARA MESA-REDONDA
Rastros da violência entre mãe e filha: a melancolia da ausência.
José Maurício Bigati1
Rita Maria Manso de Barros2
Florbela d'Alma da Conceição Espanca nasceu em Portugal, Vila Viçosa, em
08/12/1894. Conceição também era o nome de sua mãe. Poucos dias antes de morrer,
Florbela interroga-se "que importa o que está para além?" e responde: seja o que for
será melhor que o mundo e que a vida. A morte anunciada ao longo da sua escrita
ocorrerá pouco depois. No dia em que faz trinta e seis anos, põe fim à vida (08/12/1930)
e na certidão de óbito é anotado como causa mortis: neurose. Sua mãe biológica, morta
aos 29 anos, é questionada sobre o motivo de tê-la feito vir a este mundo, entre dores e
agonias. A dimensão da mãe imaginária, que abandona, fica transparente em suas
poesias, fazendo da morte aquilo que poderia estancar a continuidade da sofrida
linhagem feminina, para curar a dor de existir. Sua precoce preferência por temas
melancólicos, leva-nos à magistral descrição da melancolia feita por Freud em Luto e
Melancolia (1915). Esta é, desde Aristóteles, uma espécie de episteme daqueles que têm
a dimensão trágica da existência, como também uma das formas mais graves de psicose.
Do que sofria Florbela?
Palavras-chave: Arte, psicanálise, feminilidade, relação mãe-filha, clínica, melancolia.
No dia 8 de dezembro de 1894 nasce Florbela d´Alma da Conceição Espanca, na
casa de sua mãe, Antônia da Conceição Lobo, em Portugal, Vila Viçosa. Florbela terá
um irmão, filho da mesma mãe e mesmo pai, chamado Apeles. Foram registrados em
cartório como “filhos ilegítimos de pai incógnito”, mesmo vivendo na casa e na
companhia do pai, o republicano chamado João Maria Espanca, e de sua esposa Maria
Inglesa, madrinha de batismo de Florbela. O pai de Florbela era inimigo ferrenho do
regime monárquico, além de autodidata apaixonado pela fotografia, introdutor do
cinematógrafo em Portugal. João Maria só perfilhará a filha dezenove anos depois de
sua morte, quando a certidão de nascimento de Florbela constando paternidade
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Psicanalista, psicólogo. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ.
Psicanalista. Professora Adjunta do Programa de Psicanálise da UERJ.
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incógnita, impedia que um busto em sua homenagem fosse erguido. Seu pai e seu irmão
Apeles serão o foco da atenção e carinho de Florbela durante sua infância.
Aos oito anos Florbela escreve seu primeiro poema, cujo título tem no paradoxo
A Vida e a Morte serão os opostos que cruzam toda a saga da escritora: a primeira, com
bravura, tentará significar, e o destino, por fim, clamará para aliviar sua falta, sua dor,
sua errância.
Antônia da Conceição Lobo morrerá precocemente aos 29 anos, em 1908. O
desligamento de Florbela com sua mãe vai marcar sua obra; e ficará destacado num de
seus últimos poemas intitulado Deixai Entrar a Morte, onde suplica a entronização ao
reino da morte para que lhe cure a dor de existir. O amor, como veremos, terá valor à
medida que acarreta sofrimento, e a solidão, o medo da rejeição e a propensão para o
funéreo são sempre sublinhados em seus poemas. Mas “desde a nascente poesia de
Florbela, ficam definitivamente seladas e imbricadas as suas mais significativas
constantes: a condição feminina e a marginalidade” (DAL FARRA, 1996: 29).
Florbela revela uma ascendência do mundo masculino sobre a mulher, e neste
contexto, se apropria da dor como dote feminino para daí extrair seu motor literário. A
ausência de proteção, de um olhar, “por que não dizer patriarcal” (idem, 1996: 30),
lança esta mulher num mundo escuro, de liberdade à deriva, mas de muita fecundidade,
pois Florbela escreve nos seus instantes mais hemorrágicos. Contrariamente à
passividade ou à apatia, sua dor parece motor para sua produção, tristeza que desafia a
indiferença e torna-se seu brasão.
Se a criação e a inspiração advêm do nada, é do nada, fora do simbólico que o
melancólico nos fala. Podemos tomar a criação como um movimento que parte desse
nada, que faz com que esse nada apareça, tente ser circunscrito, nomeado, bem-dito;
talvez podendo conter uma parte da hemorragia libidinal.
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Florbela tem consigo uma dor original, uma dor básica, fundamento de seus
escritos. Uma dor de desligamento da mãe, terra e mulher; uma dor cósmica, cuja
nascente remete à brecha existente entre o sonho e a morte.
Deixai entrar a Morte
Deixai entrar a Morte, a Iluminada,
A que vem para mim, pra me levar.
Abri todas as portas par em par
Como as asas a bater em revoada
Que sou eu neste Mundo? A deserdada.
A que prendeu nas mãos todo o luar,
A vida inteira, o sonho, a terra, o mar
E que ao abri-las, não encontrou nada!
Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste?
Entre agonias e entre dores tamanhas
Pra que foi, dize lá, que me trouxeste
Dentro de ti?...Pra que eu tivesse sido
Somente o fruto amargo das entranhas
Dum lírio que em má hora foi nascido... (1996: 300).
Inteiramente disponibilizada à morte, neste poema, Florbela faz um inventário
do que tem sido, e muito embora tenha herdado o luar, toda a vida, sonho, terra e mar, e
os tivesse tentado reter, nada deles lhe restou, a não ser o título de deserdada. Fundindose implicitamente à mãe nessa hora crucial, Florbela parece querer estancar, a partir da
morte, toda a linhagem feminina, pois não encontra ali nenhum refúgio. Ela pergunta à
mãe sobre o motivo de ter vindo a este mundo, entre dores e agonia a razão para o
amargo fruto que testemunha ser. E nos dá conta de sua simbiose com a mãe a partir da
metáfora do “lírio”, que tanto pode querer dizer de uma como da outra.
Florbela sente o mundo passar por si, e como nele não consegue se deter, enlaça
a marginalidade que experimenta relativa à falta do Nome – do – Pai à falta de um
significante que é próprio da mulher. O abandono que sente o melancólico,
caracterizado como dejeto ou resto, contextualiza-se em Florbela quando ela traz em
seus poemas a dimensão da mãe imaginária que a abandona. Sem os recursos
simbólicos adquiridos no percurso edípico, Florbela passa a descrever a violência com
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que experimenta o abandono do Outro. Não encontrando sentido para sua existência,
rechaça sua linhagem feminina, o útero que lhe protegeu a vida e suplica o reino da
morte.
A morte, tida como “a iluminada” é a porta pela qual o encontro com a mãe
mítica se torna possível, possibilidade de regresso ao útero cheio de luz, ao qual se abre
Florbela. Ao eleger como dia de sua partida aquele mesmo de sua chegada ao mundo,
Florbela assume o seu nascimento como um corte abrupto, como um desligamento
doloroso das verdadeiras energias vitais. “É como se tivesse morrido para a vida no dia
em que nasceu, e regressado á existência primordial no dia em que morria para o
mundo” (DAL FARRA, 2002: 295). Melhor que qualquer argumentação que ratifique
esta proximidade e devoção, no poema intitulado À Morte vê-se com que intimidade
Florbela trata da morte, na espera que esta venha a dar o suporte e aconchego, a
proteção e o sentido para a sua existência.
A Morte
Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E como uma raiz, sereno e forte.
Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.
Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!
Vim da Moraima, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
Á tua espera,... quebra-me o encanto!(1996: 301).
A vida de Florbela, vemos, é na verdade seu exílio. Seu desejo é o de regressar
ao lugar de origem, que é a Morte, de quem mais uma vez ela espera o bálsamo para as
dores de sua alma, lugar que daria a estabilidade e unidade ao seu universo. Florbela se
intitula princesa apenas deste lugar de morte, Moraima, terra de estrangeiros, de onde
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vêm os mouros. A morte se recobre de sentidos de proteção, de fortaleza, de guarida. O
nascimento e a vida serão sempre tomados como um corte que lhe tirara a paz, a
quietude, o aconchego, e que lhe causa dor. Essa ausência de um lugar de desejo, típico
da psicose, faz com que Florbela se sinta marginalizada, forasteira, uma estranha no
mundo que habita e “naufraga da vida”. (1996: 149).
Florbela, em 1927, verá morto seu irmão Apeles que se suicidará mergulhando o
avião que pilotava, após não suportar a morte de sua amada. A dor de Florbela faz com
que ela produza o Livro de Sóror Saudade, volume que contém o soneto nomeado O
meu mal, dedicado a Apeles, que veremos agora:
O meu mal
Eu tenho lido em mim, sei-me de cor,
Eu sei o nome ao meu estranho mal:
Eu sei que fui renda dum vitral,
Que fui cipreste e caravela e dor!
Fui tudo que no mundo há de maior;
Fui cisne e lírio e águia e catedral!
E fui, talvez, um verso de Nerval,
Ou um cínico riso de Chamfort...
Fui a heráldica flor de agrestes cardos,
Deram as minhas mãos aromas aos nardos...
Deu cor ao eloendro a minha boca...
Ah! De Boabdil fui lágrima na Espanha!
E foi de lá que eu trouxe esta ânsia estranha!
Mágoa não sei de quê? Saudade Louca!(1996 pg.178)
Por ter sido “tudo que no mundo já de maior”, Florbela parece ter saudade louca
deste tempo mítico de completude, de plenitude, onde compartilhava a origem de tudo,
já que o perfume vinha das suas mãos e de sua boca o colorido ao eloendro. Chama
atenção que ao finalizar o soneto, Florbela não localiza o que perdeu, embora sinta
saudade louca deste tempo onde com o cosmos estava fundida. Lembra-nos Freud em
Luto e Melancolia (1915) que na melancolia houve a perda de um objeto de amor, mas
que o sujeito não sabe o que perdeu neste objeto, achatando o desejo que ficará sob a
sombra deste objeto.
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Em Reliquiae, conjunto de poemas publicado postumamente, encontramos
Florbela “À janela de Garcia de Resende”, com coração palpitando ao luar, “flor no
poético balcão”.
À janela de Garcia de Resende
Janela antiga sobre a rua plana...
Ilumina-a o luar com seu clarão...
Dantes, a descansar de luta insana,
Fui, talvez, flor no poético balcão...
Dantes! Da minha glória altiva e ufana,
Talvez... Quem sabe?...Tonto de ilusão,
Meu rude coração de alentejana
Me palpitasse ao luar nesse balcão...
Mística dona, em outras primaveras,
Em refulgentes horas de outras eras,
Vi passar o cortejo ao sol doirado...
Bandeiras! Pajens! O pendão real!
E na tua mão, vermelha, triunfal,
Minha divisa: um coração chagado!...(1996: 70).
A “mística dona” se exalta ao vê passar, ao sol, bandeiras, pajens e o pendão
real. Nas mãos de alguém ela observa algo que conhece algo familiar: o coração
chagado. Este poema, na leitura de Dal Farra, empreende “o ritual de passagem da dor
cósmica para a dor de existir enquanto... mulher. [...] De um lado a de outras eras, a que
do alto, contempla; na divisa do coração chagado, aquela que, de outro habita este baixo
mundo, aquela que, neste mundo vive enfeitiçada”. (DAL FARRA, 2002: 302).
A dor, como aqui já foi dito, no corolário de Florbela é um atributo
marcadamente feminino, que carece do olhar amado, da luz do desejo que ela sente
como vácuo, e que conferem identidade e existência ao sujeito. Essa dor do feminino
em Florbela é a dor da falta de um significante que lhe responda sobre si mesma, sobre
a mulher e a dor real da existência. E com coragem encarna o próprio estandarte da dor,
mergulhando nela, tomando-a para si, e produzindo com isto. Daí que os poderes de
suas palavras tomam proporções maiores, pois ela não se furta em mergulhar na busca
de nomear-se, cada vez mais de perto.
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A mulher e a estrutura psicótica têm como ponto de intersecção o fato de, em si,
compreenderem uma forma de gozo que não se encontra toda na norma fálica. Isto
porque o psicótico, ao não atravessar o processo edípico, não se desligou da relação
imediata ao outro, e ocupa o lugar que sutura a falta no outro, ou seja, o lugar encarnado
do falo. É por isso então que ele não conhece o desejo, uma vez que este é tributário de
uma falta constitutiva, falta que funda o inconsciente. Só assim se torna possível que o
sujeito dê significação fálica ao seu órgão, escolhendo que posição ocupar na partilha
dos sexos, e encaminhar seu gozo dentro de uma determinada norma, que chamamos de
fálica.
O pênis serve ao homem como suporte imaginário do falo, que o define, e à
mulher, que carece deste significante sinalizador de desejo no corpo, caberá inventar
uma forma de gozo, menos circunscrita e menos óbvia que a masculina. “A mulher
precisa tornar-se mulher, fabricar, inventar um ser a partir do nada. Recobrir-se com
máscaras que – até pela sua variedade – nos indicam um quê de falsidade.
Sintomaticamente a mulher faz um parecer ser”. (MIRANDA, 2002: 288). É a partir de
semblantes, das máscaras do feminino que as mulheres acedem ao gozo fálico, referido
à norma fálica. Mas Florbela não acredita nas máscaras.
Nesta sua ânsia em escrever sobre o vazio de significação que sente em seu ser,
de sujeito e mulher, não consegue encontrar uma máscara que lhe vestisse a falta, que
lhe signifique o feminino. Ela fracassa no semblante de mulher, pois da posição
feminina sua poesia revela-se congelada, triste, morta. Vejamos em um trecho de um
soneto chamado Tédio:
O frio que trago dentro gela e corta
Tudo que é sonho e graça na mulher!(...)
O que é que isso me importa? Essa tristeza
É menos dor intensa que frieza,
É um tédio profundo de viver!(1996: 156).
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Noutro trecho de um poema intitulado Ambiciosa, podemos notar que o
sofrimento de Florbela ligado à necessidade de ser acolhida pelo Outro se transforma
em demanda de amor cujo objeto não é mais passível de ser alcançado.
O amor de um homem? – Terra tão pisada!
Gota de chuva ao vento baloiçada...
Um homem? – Quando eu sonho o amor dum Deus!...(1996: 234).
Talvez um Deus uno e absoluto pudesse saciar sua inquietude. Mas o Deus de
Florbela parece não conhecer sua dor, pois a tentativa de fundir-se a este também não
apazigua seu sofrer. Florbela busca “Deus como um dos nomes da Coisa, que é o real
padecendo do Significante” (MIRANDA, 2002: 289).
A posição feminina do não-toda fálica dá acesso a um gozo fora do
significante, um gozo específico do feminino presente nos poetas, nos
místicos e nas mulheres. É esse gozo louco, identificado ao êxtase dos
místicos, que Florbela tenta experimentar (MIRANDA, 2002: 289).
Para Florbela, não há uma busca de completude amorosa que se satisfaça no
sintoma, e o gozo surge para o sujeito como algo sem cor e frio, ao qual o sujeito está
submetido, pura pulsão de morte. O vazio não cessa em se presentificar e é desse lugar
que Florbela fala na tentativa de legitimar a si mesma, ao seu eu, ao seu ser mulher.
Referências Bibliográficas
CABAS, A. G. A função do falo na loucura. Tradução: Claudia Berliner. Campinas,
SP: Papirus, 1988.
DAL FARRA, M. L. Florbela: um caso feminino e poético. In. Poemas de Florbela
Espanca - estudo introdutório, organização e notas de Maria Lucia Dal Farra. São
Paulo: Martins Fontes, 1996, p.9 – p.44.
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_____. Pequena biografia de Florbela Espanca. In: Poemas de Florbela Espanca estudo introdutório, organização e notas de Maria Lucia Dal Farra. São Paulo: Martins
Fontes, 1996, 1ª. ed., p. 45 – p. 61.
_____. A dor de existir em Florbela Espanca. In: QUINET, A. (org.) Extravios do
desejo: depressão e melancolia. Coleção Bacamarte, no. 1 Rio de Janeiro: Rios
Ambiciosos, 2002, 2ª. ed., p. 291 – p. 304.
ESPANCA, F. Poemas. In: Poemas de Florbela Espanca - estudo introdutório,
organização e notas de Maria Lucia Dal Farra. São Paulo: Martins Fontes, 1996, 1ª. ed.
FREUD, S., Luto e Melancolia (1917 [1915]). In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago.
1980, p. 275 – p. 290.
MIRANDA, E. R., O fracasso das máscaras. In: QUINET, A. (org.) Extravios do
desejo: depressão e melancolia. Coleção Bacamarte, no. 1 Rio de Janeiro: Rios
Ambiciosos, 2002, 2ª. ed., p. 287 – p. 289.
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Rastros da violência entre mãe e filha: a melancolia da ausência.